Poesia comer e chorar mais

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Poesia de comer... ... e chorar por mais!


“Poesia de comer e chorar por mais” não é mais do que uma modesta compilação de poemas de autores portugueses que têm em comum a referência ao ato de degustar e/ou de confecionar alimentos. À exceção do poema “Açorda portuguesa”, cujo autor, do qual se sabe muito pouco, nasceu no século XIX, os restantes são da autoria de poetas portugueses e brasileiros, vivos ou não, que pertencem ao grupo que comummente se designa de “poetas do século XX”. A recolha dos poemas e das imagens que os ilustram, bem como a composição dos trabalhos, foi feita pelos alunos do Curso Profissional de Restauração, em escassos noventa minutos. Pretendeu-se aliar a poesia à área de estudos dos alunos e mostrar que gestos prosaicos, como comer ou cozinhar, não são desprovidos de notas poéticas. Na verdade, os alimentos e a poesia têm mais em comum do que pode parecer à partida. Ambos despertam os nossos sentidos, ambos são motivo de partilha e de convívio. Além disso, se os primeiros nutrem o corpo, a segunda alimenta a alma. Luísa Félix


Açorda Portuguesa

Pão de trigo sem ter sombra de joio; Azeite do melhor, de Santarém; Alho do mais pequeno, e do saloio, Ponha em lume brandinho e mexa bem; Sal que não seja inglês – porque é remédio; Toda a criança assim alimentada É capaz de deitar abaixo um prédio, Quatro meses depois de desmamada. Com este bom pitéu, sem refogados, Invenção puramente lusitana, Os ilustres varões assinalados Passaram inda além da Taprobana. Fortes pela açorda, demos nós aos mouros, Como se sabe, uma fatal derrota; E abiscoitámos majestosos louros Para os nobres troféus de Aljubarrota.

José Inácio de Araújo (1807-1927)

Cátia Frederico e Nélia Fernandes


Amoras

O meu país sabe às amoras bravas no verão. Ninguém ignora que não é grande, nem inteligente, nem elegante o meu país, mas tem esta voz doce de quem acorda cedo para cantar nas silvas. Raramente falei do meu país, talvez nem goste dele, mas quando um amigo me traz amoras bravas os seus muros parecem-me brancos, reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

Daniela Ribeiro, Joana Ferreira e Margarida Gonçalves


Dobrada à moda do Porto Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, Serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha Que a preferia quente, Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria. Impacientaram-se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, E vim passear para toda a rua. Quem sabe o que isto quer dizer? Eu não sei, e foi comigo... (Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim, Particular ou público, ou do vizinho. Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. E que a tristeza é de hoje). Sei isso muitas vezes, Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram Dobrada à moda do Porto fria? Não é prato que se possa comer frio, Mas trouxeram-mo frio. Não me queixei, mas estava frio, Nunca se pode comer frio, mas veio frio. Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos, Poemas

Cassandra Fernandes e Patrícia Pires


Dor de alma Meu pratinho de arroz doce polvilhado de canela; Era bom mas acabou-se desde que a vida me trouxe outros cuidados com ela. Eu, infante, não sabia as mágoas que a vida tem. Ingenuamente sorria, me aninhava e adormecia no colo da minha mãe. Soube depois que há no mundo umas tantas criaturas que vivem num charco imundo arrancando arroz do fundo de pestilentas planuras. Um sol de arestas pastosas cobre-os de cinza e de azebre à flor das águas lodosas, eclodindo em capciosas intermitências de febre. Já não tenho o teu engodo, Ó mãe, nem desejo tê-lo. Prefiro o charco e o lodo. Quero o sofrimento todo, Quero senti-lo, e vencê-lo. António Gedeão, Teatro do mundo Patrícia Neto e Rute Anes


Frutas

Pêssegos, peras, laranjas, morangos, cerejas, figos, maçãs, melão, melancia, ó música de meus sentidos, pura delícia da língua; deixai-me agora falar do fruto que me fascina, pelo sabor, pela cor, pelo aroma das sílabas: tangerina, tangerina. Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos

David Alves e Luís Cordeiro


Receita para fazer o azul

Se quiseres fazer azul, pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande, que possas levar ao lume do horizonte; depois mexe o azul com um resto de vermelho da madrugada, até que ele se desfaça; despeja tudo num bacio bem limpo, para que nada reste das impurezas da tarde. Por fim, peneira um resto de ouro da ariado meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal. Se quiseres, para que as cores se não desprendam com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado. Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico. Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que possas distinguir entre uma e outra. Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim, iluminador de Loulé – e [deixei a receita a quem quiser algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice, Poesia reunida

Casimiro Parreira e Flávia Gonçalves


Sentimental Ponho-me a escrever teu nome com letras de macarrão. No prato, a sopa esfria, cheia de escamas e debruçados na mesa todos contemplam esse romântico trabalho. Desgraçadamente falta uma letra, uma letra somente para acabar teu nome! - Estás sonhando? Olhe que a sopa esfria! Eu estava sonhando... E há em todas as consciências, um cartaz amarelo: "Nesse país é proibido sonhar." Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia

Liliana de Jesus e Joana Oliveira


Tabacaria

[…] (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) […] Fernando Pessoa /Álvaro de Campos, Poemas

Artur Monteiro e Emanuel Gonçalves


Trem de Ferro Café com pão Café com pão Café com pão

Quando me prendero No canaviá Cada pé de cana Era um oficiá

Virge Maria que foi isso maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que eu preciso Muita força Muita força Muita força (trem de ferro, trem de ferro) Oô... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho Da ingazeira Debruçada No riacho Que vontade De cantar! Oô... (café com pão é muito bom)

Oô... Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra matar minha sede Oô... Vou mimbora vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô... Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente... (trem de ferro, trem de ferro) Manuel Bandeira, Estrela da tarde

André Gonçalves e Carlos Teixeira


Alguém parte uma laranja em silêncio Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada de noites fabulosas. Mergulha os polegares até onde a laranja pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois renasce. Alguém descasca uma pêra, come um bago de uva, devota-se aos frutos. E eu faço uma canção arguta para entender. Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas, as línguas que devoram pela atenção dentro. Eu queria saber como se acrescenta assim a fábula das noites. Como o silêncio se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo uma canção para ser inteligente dos frutos na língua, por canais subtis, até uma emoção escura. Porque o amor também recolhe as cascas e o mover dos dedos e a supensão da boca sobre o gosto confuso. Também o amor se coloca às portas das noites ferozes e procura entender como elas imaginam seu poder estrangeiro. Aniquilar os frutos para saber, contra a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua solidão - é devotar-se, esgotar a amada, para ver como o amor trabalha na sua loucura. Uma canção de agora dirá que as noites esmagam o coração. Dirá que o amor aproxima a eternidade, ou que o gosto revela os ritmos diuturnos, os segredos da escuridão. Porque é com nomes que alguém sabe onde estar um corpo por uma ideia, onde um pensamento faz a vez da língua. - É com as vozes que o silêncio ganha. Herberto Helder, Ou o poema contínuo Ana Santos e Gonçalo Alves


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