UMA P ROMESSA DE B E L E Z A
Camilla tirara em segredo um dos frasquinhos mais atraentes da colecção da mãe, que estava em cima do toucador, e passara cuidadosamente o pincelinho sobre a unha de um dos dedos grandes dos pés. Parecia-lhe uma zona boa para experimentá-lo. Era para pintar na horizontal ou na vertical? O rótulo não dizia nada; pelos vistos, partiam do princípio de que o consumidor já o sabia. A cor acabou por revelar-se diferente do que ela pensara. Prateado com um brilho nacarado. Também era bonito. Agora tinha de pintar as restantes, uma a uma. Pareceu-lhe que as unhas, depois de pintadas, a olhavam, resplandecendo de entusiasmo. De súbito, tinha um grupo de pequenos seres seguros de si na extremidade dos seus dedos dos pés. Ao que parecia, cada um tinha vontade própria, mas, se se tentasse mover cada um deles sozinho, não se conseguia. Só o dedo grande fazia solenemente o que lhe mandavam. Ela estava sentada no parapeito estreito da janela, de pernas encolhidas, à espera que o verniz secasse. Involuntariamente, virou a cabeça para o lado e olhou para a rua, sem suspeitar de que, à conta daquela casual mudança de perspectiva de noventa graus, iria associar para sempre o verniz prateado a um rapaz e um cão. O seu quarto ficava no primeiro andar. Ela olhou lá para baixo, para eles, pelo vidro antigo das janelas velhas. O vidro levemente colorido deformava o mundo exterior, envolvendo numa luz alienante as duas figuras do outro lado da rua, que separava a casa e o rio. O rapaz e o cão estavam sentados, um ao pé do outro, na relva alta da margem e olhavam para o rio como dois velhos amigos a conversar
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em silêncio. A água formava ondinhas; rugas suaves surgiam à superfície. Camilla conhecia o rio em todas as suas formas. Podia ser escuro e ameaçador, metálico e apressado, frio e sereno, mas também pleno de sedução enganadora. Desde que se lembrava que tinha tendência para personificar tudo em seu redor. Dava-lhes um coração, uma alma e uma noção de tempo, para que, tal como ela, pudessem desfrutar e sofrer. Uma espécie de animismo que surgira em tenra idade, por falta de companheiros de brincadeira. Nesse dia, o Amstel parecia tão calmo e inspirava tanta confiança, que estava tentada a alertá-lo: espera só até chegares a Amesterdão! Ela não suportava a cidade. O formigar de gente, os eléctricos que ameaçavam passar por cima dos pés das pessoas, os ciclistas anárquicos que surgiam de esquinas inesperadas, as lojas que lhe davam a sensação de que nunca pertenceria àquele local. Havia uma tal sobrecarga de estímulos que ela se perguntava como é que todos aqueles transeuntes os aguentavam tão calmamente. Sentia-se como se, por um acaso tenebroso, fosse parar a um daqueles jogos de computador em que o jogador tem de matar o maior número de peões possível. Ela tornava-se um deles, uma presa acossada num universo frio e mecânico. Então vinha o medo, o convidado que ninguém avisara, indesejado, que, qual a fada má num conto de fadas, lhe lançava uma maldição. Medo de um ataque no meio de desconhecidos. Era verdade que existiam medicamentos para prevenir essa eventualidade, mas depois ficava tão aparvalhada e sonolenta que os seus resultados escolares eram seriamente afectados. Por esse motivo, tomava-os esporadicamente e, na medida do possível, aprendera a viver com a imprevisibilidade da doença. Só uma coisa a aborrecia: quanto mais medo sentia, maiores as hipóteses de um ataque. Mas como lutar contra o medo, sem o recear? Antes de nos darmos conta, estamos presos numa corrente em que um medo chama o outro. Uma visita à capital resultava quase sempre num exercício de extremo autocontrolo. Assim, ela não aproveitava nada. Passear descontraidamente, deixar-se ir na multidão de gente fanática por pechinchas, experimentar roupas apesar da enervante batida de discoteca eram actividades que não estavam ao seu alcance. Enquanto não existissem em Amesterdão lojas onde pudesse comprar uns nervos mais sólidos que os seus, a cidade não era para ela.
HARLEKINO OU O LIVRO DA DÚVIDA
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O rapaz e o seu cão estavam fraternalmente sentados à sombra de um vimeiro, rodeados de dentes-de-leão sem flor cheios de penugem para uma vida longa. A sua bicicleta estava um pouco mais adiante, tombada na relva. Camilla esqueceu as unhas dos pés e saltou para o chão. Abriu a janela, empurrando-a para cima, e meteu a cabeça de fora. — Ei! — gritou. O rapaz olhou para trás e para cima ao mesmo tempo. O cão também. Dois pares de olhos fitaram-na e ela repetiu o cumprimento. Riu-se de forma desarmante. Era muito boa nisso. Depois de um ataque junto de desconhecidos, ela tentava rir-se assim o mais depressa possível, para afastar a vergonha. — Olá... — soou lá de baixo, com hesitação. Ela via agora que ele era mais um homem do que um rapaz. Ou algo entre os dois. O cão não emitiu qualquer som, mas arrebitou as orelhas. — Como é que ele se chama? — perguntou Camilla. — O quê? — gritou o rapaz. — Espera... — tornou ela. A casa dos seus pais datava do século XVIII e, provavelmente, tinha sido construída assim tão perto da estrada para que, quando chovesse, fosse possível entrar em casa mal se saía do coche. Ainda assim, era difícil conversar dali com alguém que estivesse sentado na margem do rio, do outro lado da estrada. Ela apressou-se a calçar os chinelos de plástico e desceu a escada maciça de carvalho a correr, atravessou diagonalmente o chão de mosaicos pretos e brancos do hall e saiu lá para fora. Por dar mais jeito, deixou a porta maciça com batente de cobre encostada. Atravessou a estrada, com os chinelos a bater-lhe nos pés — por ali, só passava um automóvel de vez em quando. Sem fôlego, deixou-se cair sobre a erva, junto do cão. — Posso fazer-lhe uma festinha? — Desde que não lhe mexas nas orelhas. — Porque não? — Ele interpreta isso como um insulto. — Um insulto? — Camilla olhou admirada para a cabeça do cão que estava junto de si. Pareceu-lhe um animal muito bem-disposto. Olhando para o focinho, dava até a impressão de que ele estava a sorrir.
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— Por acaso, ele tem umas orelhas particularmente elegantes e compridas — explicou o rapaz — e consegue ouvir muito bem. Talvez sejam a parte do corpo de que ele se orgulha mais. Embora a honestidade me obrigue a dizer que também tem uns bonitos olhos. Mas, se me encostasses uma pistola ao peito e me obrigasses a escolher o que é mais bonito nele, se as orelhas, se os olhos, talvez me decidisse pelos últimos, afinal. Se olhares bem, vês que ele tem um misterioso olhar oriental. Mas não te vai passar pela cabeça mexer neles, por isso, não preciso de chamar-te a atenção. Camilla pousou a mão na cabeça do animal e observou-o atentamente. Ele tinha os olhos debruados a negro, como se lhe tivessem desenhado linhas finas com um eyeliner. Tinha uma expressão tragicómica, parecia ver o humor do seu dúbio estatuto de animal doméstico. — Como é que ele se chama? — voltou ela a perguntar. — Estupa. — Olá, Estupa de orelhas bonitas — tornou ela —, prazer em conhecer-te. Fez-lhe festas na cabeça e no dorso. O seu corpo adaptava-se agradecidamente à mão dela, como se ele fosse um gato. Quando ela lhe fez cócegas por entre os pêlos do peito, ele deitou-se de barriga para cima, de patas esticadas, coquete. Fechou os olhos, todo satisfeito. Abriu um bocadinho a boca, como que a incitá-la a continuar. — Acho que até lhe podia mexer nas orelhas — disse Camilla. — Ele, a mim, deixa. — Eu, se fosse a ti, não contava com isso — disse-lhe rispidamente o rapaz. — Sou a Camilla, e tu? — Said. Ela franziu o sobrolho. Ele era alto e louro, mas tinha sobrancelhas espessas e escuras. Não se parecia com o Brad Pitt. Ela tinha o hábito de comparar secretamente todos os rapazes que ia conhecendo com o seu ideal de beleza absoluto. De longe, Said não se parecia com o seu ídolo, mas, para seu espanto, apesar disso, achara-o bonito. Conclusão: era possível alguém não se parecer com o Brad Pitt, mas, ainda assim, poder ser o objecto dos sonhos de alguém. E o melhor é que ele não precisava de ficar a saber.
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— Não és turco ou marroquino, ou assim, pois não? Ele fitou-a sem dizer nada e depois voltou a fixar o olhar no rio. Passou um barco a motor com dois homens a bordo. Bebiam cerveja em lata e cantavam, mas a letra era imperceptível devido ao ruído do motor. A ondulação batia contra o muro da margem. As suas tábuas balançavam para um lado e para o outro como uma série de charutos bêbedos. — Ei, isso não faz mal nenhum — acrescentou ela, pouco à vontade. — Isto é, mesmo que fosses um hotentote, isso a mim não me interessava. — És sempre assim tão curiosa? Ele olhou-a de soslaio, ela não ficou com a impressão de que ele estivesse aborrecido. — Na verdade, não — respondeu, hesitante —, mas não é todos os dias que vejo rapazes com cães, sabes? Para ser sincera, vocês são os primeiros, e isso deixa-me curiosa. Porque estão aqui e não noutro sítio qualquer? É, por exemplo uma das coisas que gostava de saber. Ou estou outra vez a querer saber demais? — Estamos aqui por causa dos porcos — disse Said, calmamente. — Quais porcos? — Os do complexo agro-industrial do outro lado do rio. — Apontou com a cabeça naquela direcção. Camilla olhou para a outra margem, perplexa. — Referes-te à quinta de criação de porcos? Said acenou afirmativamente. — O Estupa e eu temos um nojo tremendo de carne de porco. E sem criações não há costeletas, escalopes ou salsichas, é isso. — Então, sempre és marroquino — tornou Camilla, perspicaz. — Não é preciso ser-se mesmo marroquino para isso. — Mas o que é que tens contra a carne de porco? Tens pena dos bichos? Said endireitou as costas e olhou-a com ar aborrecido. — Porque é que dizes isso? — Bom, nunca ali estive, mas ouvi dizer que aqueles porcos têm uma vida curta e horrível. Parece que arrancam as presas aos leitõezinhos, sem usar anestesia. Coisas desse género, quero eu dizer.