Edição 421 - de 24 a 30 de março de 2011

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Marcello Casal Jr/ABr

Obama

Por que ele veio?

Circulação Nacional

Págs. 2 e 5

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Ano 9 • Número 421

R$ 2,80

São Paulo, de 24 a 30 de março de 2011

www.brasildefato.com.br US Navy

Ataque à Líbia

A partilha do mundo continua

O bombardeio à Líbia evidencia mais uma vez o caráter imperialista das maiores potências do mundo. Com a ação, os EUA e seus aliados pretendem manter a hegemonia na região, ameaçada pelas revoltas árabes. Além de conquistar a Líbia, a ideia central é manter o alinhamento dos países locais aos interesses estadunidenses. Págs. 2, 9 e 10

Revolta em Jirau reflete superexploração

Pág. 4

Em Alagoas, os limites dos programas sociais

Pág. 7

Por que sumiram as imagens de Vandré?

Pág. 8

ISSN 1978-5134

Leandro Konder

Altamiro Borges

Alipio Freire

O jogo e o trabalho

O desafio está lançado!

Week-end em Pindorama

Os brasileiros estão jogando mais. Como se pode canalizar esse inconformismo e essa ânsia de um futuro mais bonito para uma ação historicamente mais fecunda do que a febre das apostas? Pág. 3

No dia 16 de março, foi aprovado pela Câmara Federal o lançamento oficial da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação. Pág. 3

É preciso ficar claro: não houve gafe, deslize ou simples quebra de protocolo no fato de o senhor Barack Hussein Obama ter anunciado a invasão da Líbia em território brasileiro. Pág. 3


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de 24 a 30 de março de 2011

editorial

O Obama no Brasil COMO PREVISTO, a passagem pelo nosso país do presidente da maior potência imperialista do planeta, Barack Obama, não poderia passar desapercebida e muito menos não causar polêmicas. Partidos políticos de esquerda, como o PCB, não hesitaram em clamar por um “vade-retro, Obama!”. Ativistas populares, impedidos de se manifestarem, foram reprimidos e presos. Analistas políticos, identificados com os princípios da soberania nacional, com as lutas anti-imperialistas e contrários às políticas bélicas, escreveram antes, durante e depois da visita, sobre a nulidade de resultados concretos da passagem de Obama pelo país. Mas saltam aos olhos como a mídia burguesa brasileira é pateticamente subserviente ao império. Trataram a visita como um megaevento, dando tratamento similar ao dispensando a artistas e personalidades do mundo dos espetáculos. Como disse o deputado federal Dr. Rosinha (PT/PR), parecia Deus passando por aqui num final de semana. Imaginem se a Rainha da Inglaterra passar por aqui? Um traque da matrona real será transformado, por essa mesma mídia, numa bafejada de ar puro dos campos ingleses do período pré-capitalista.

opinião

A mídia foi incapaz de mostrar a grave crise econômica e social que afeta o povo estadunidense. Em nenhum momento constrangeu o governo do império sobre o apoio que dá a todas as ditaduras do mundo contemporâneo. Não questionou, em seus noticiários, o fato de Obama não ter cumprindo com suas promessas eleitorais, como a de acabar com o bloqueio econômico a Cuba. Servil e bajuladora ao império, não teve coragem de condenar as guerras no Iraque e no Afeganistão e responsabilizar as tropas invasoras pela prática da tortura e da violação dos direitos humanos naqueles países. Subserviente, restou-lhe dar ênfase ao estrelismo e à simpatia da família Obama. O presidente Obama pode ser bem intencionado, ter boas ideias e sua eleição ter representado uma vitória do polo progressista frente a direita e a ultradireita do seu país. Mas, como afirma a economista Maria da Conceição Tavares, não tem o poder real, nem bases sociais compatíveis com suas ideias e “foi anulado pelo conservadorismo de bordel dos EUA”. Por isso suas visita restringiu-se a gestos de cortesias, típico de um visitante educado. Com baixos níveis de apoio popular e abalado com a derrota nas eleições legislativas de 2010, o presi-

A mídia foi incapaz de mostrar a grave crise econômica e social que afeta o povo estadunidense

dente Barack Obama fez em dezembro um acordo com os republicanos no Congresso para manter os cortes de impostos iniciados há uma década pelo presidente George W. Bush, atendendo aos interesses da parcela mais rica e poderosa do país. Decorrente dessa política econômica, como afirma o economista Sachs, “o 1% mais rico dos lares estadunidenses tem agora um valor mais alto que o dos 90% que estão abaixo. A receita anual dos 12 mil lares mais ricos é maior que o dos 24 milhões de lares mais pobres”. Com o acor-

crônica

Frei Betto

Kadafi e as potências ocidentais AS POTÊNCIAS ocidentais, lideradas pelos EUA, botam a boca no trombone em defesa dos direitos humanos na Líbia. E as ocupações genocidas do Iraque e do Afeganistão? Quem dobra os sinos por um milhão de mortos no Iraque? Quem conduz à Corte Internacional de Justiça da ONU os assassinos confessos no Afeganistão, os responsáveis por crimes de lesa-humanidade? Por que o Conselho de Segurança da ONU não diz uma palavra contra os massacres praticados contra os povos iraquiano, afegão e palestino? O interesse dos EUA e da União Europeia não é a defesa dos direitos humanos na Líbia. É assegurar o controle de um território que produz 1,7 milhão de barris de petróleo por dia, dos quais depende a energia de países como Itália, Portugal, Áustria e Irlanda. O caso do Iraque é exemplar: os EUA inventaram as jamais encontradas “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein para exercer o controle sobre um país que é o segundo maior produtor mundial de petróleo – 2,11 milhões de barris por dia, só superado pela Arábia Saudita. E possui uma reserva calculada em 115 bilhões de barris. Soma-se a essa riqueza o fato de ocupar uma posição geográfica estratégica, já que faz fronteiras com Arábia Saudita, Irã, Jordânia, Kwait, Síria e Turquia. No dia 20 de março, completaramse oito anos que os EUA e parceiros invadiram o Iraque sob o pretexto de “estabelecer a democracia”. O governo de Maliki está longe do que possa ser considerado uma democracia. Em fevereiro, milhares de iraquianos foram às ruas para reivindicar trabalho, pão, eletricidade e água potável. O exército os reprimiu brutalmente, com mortes, detenções arbitrárias e sequestro de ativistas. Nenhuma potência mundial clamou em favor do direitos humanos nem sugeriu que Maliki responda perante tribunais internacionais. A ONU é, hoje, lamentavelmente, uma instituição desacreditada. Os EUA a utilizam para aprovar resoluções que justifiquem seu papel de polícia global a serviço de um sistema injusto e excludente. Quando a ONU aprova resoluções que contrariam a Casa Branca – como a condenação do bloqueio a Cuba e da opressão dos palestinos – ela simplesmente faz ouvidos moucos. Kadafi está no poder desde 1969. São 42 anos de ditadura. Por que os EUA e a União Europeia jamais falaram em derrubá-lo? Porque, apesar de seus atentados terroristas, era conveniente manter ali um déspota que atraía investimentos estrangeiros e impedia que chegassem à Europa os imigrantes ilegais da África subsa-

do de dezembro, Obama rendeu-se a essa política. No cenário internacional, também não há diferenças significativas com a política externa governo republicano de Bush. Basta lembrar que frente às revoltas populares dos povos árabes por melhores condições de vida, reformas democráticas e soberania nacional, o governo dos EUA estimulou a Arábia Saudita a intervir no Bahrein e a reprimir os povos em lutas. Assemelhando-se ao governo Bush, o governo de Obama não foi além da retórica com sua política de Direitos Humanos, frente às denúncias de discriminação racial, execuções extrajudiciais, práticas de tortura, manutenção de prisões ilegais no Iraque, Afeganistão e na base militar de Guantánamo. Em relação ao Brasil, esse mesmo governo que se diz amigo e admirador do nosso país, de acordo como os documentos revelados pela Wikileaks, não hesitou em pressionar as autoridades ucranianas para dificultar o acordo com o Brasil, para o desenvolvimento de uma plataforma de lançamento de foguetes espaciais. Ainda, da mesma fonte, o governo de Obama desencadeou uma série de ações para combater as leis que o governo Lula fez para assegurar o controle sobre o petróleo do pré-sal.

ariana, ou seja, todos os países ao sul do deserto de Saara. Agora que o povo líbio clama por liberdade, os EUA ocupam posições estratégicas no Mediterrâneo. Barcos anfíbios, aviões e helicópteros são transportados pelos navios de guerra US Ponce e US Kearsarge. A União Europeia, por sua vez, não está preocupada com a democracia na Líbia, e sim em evitar que milhares de refugiados desembarquem em seus países combalidos pela crise financeira. Temem ainda que a onda libertária que assola os países árabes, produtores de petróleo, elevem o preço do produto, onerando ainda mais as potências ocidentais, que lutam com dificuldade para vencer a crise do sistema capitalista. Fala-se em estabelecer uma “zona de exclusão aérea” na Líbia. Isso significa bombardear os aeroportos do país e todas as aeronaves ali estacionadas. E exige o envio de porta-aviões às costas africanas. Em suma: uma nova frente de guerra. O fato é que a Casa Branca foi surpreendida pelo movimento libertário no mundo árabe e, agora, não sabe como proceder. Era mais cômodo prosseguir cúmplice dos regimes autoritários em troca de fontes de energia, como gás e petróleo. Mas como opor-se ao clamor por democracia e evitar o risco de o governo de tais países cair em mãos de fundamentalistas? Kadafi chegou ao poder com amplo apoio popular ao derrubar o regime tirânico do rei Idris, em 1969. Mordido pela mosca azul, com o tem-

Luiz Ricardo Leitão

O bom-mulato Obama no “samba do crioulo doido”

Gama

O discurso do Ocidente é a democracia. O interesse, o petróleo

O governo Obama também foi responsável por, primeiro, incentivar e, depois, minar o acordo que o Brasil e a Turquia estavam promovendo com o Irã. Obama tinha enviado uma carta ao governo Lula com os termos de um acordo. O Brasil e a Turquia conseguiram que o Irã concordasse com aqueles termos. E, depois, o governo Obama foi para a ONU exigir sanções contra o Irã, jogando o acordo na lata de lixo. Por último, foi uma agressão feita pelo presidente Obama ao governo e ao povo brasileiro ao ordenar, do solo do nosso país, o ataque à Líbia, quando o Brasil, juntamente com a Alemanha, Rússia, China e Índia, havia se abstido de aprovar o ataque na votação do Conselho de Segurança da ONU. A visita de Obama reforçou a necessidade de dar continuidade e aprofundar a política externa brasileira de conquistar a sua soberania nacional. Cabe ao recém iniciado governo da presidenta Dilma Rousseff assegurar uma política externa criativa e ousada, rompendo a dependência das grandes potências, fortalecendo a relação Sul-Sul, priorizando a integração do povos da América Latina e do Caribe e contrapondo-se contra a ingerência imperialista em qualquer parte do planeta.

po esqueceu todas a promessas libertárias que fizera. Em 1974, valendose da recessão mundial, expulsou as empresas ocidentais, expropriou propriedades estrangeiras, e promoveu uma série de reformas progressistas que fizeram melhorar a qualidade de vida dos líbios. Finda a União Soviética, a partir de 1993 Kadafi deu boas-vindas aos investimentos estrangeiros. Após a queda de Saddam, temendo ser a bola da vez, assinou acordos para erradicar armas de destruição em massa e indenizou vítimas de seus atentados terroristas. Tornou-se feroz caçador de Osama Bin Laden. Pediu ingresso no FMI, criou zonas especiais de livre comércio, abriu o país às transnacionais do petróleo e eliminou os subsídios aos produtos alimentícios de primeira necessidade. Iniciou o processo de privatização da economia, o que fez o desemprego aumentar cerca de 30% e agravar a desigualdade social. Kadafi mereceu elogios de Tony Blair, Berlusconi, Sarkozy e Zapatero. Como ao Ocidente, desagradou-lhe a derrubada dos governos tirânicos da Tunísia e do Egito. Agora, atira contra um povo desarmado que aspira vê-lo fora do poder. Para as potências ocidentais, Kadafi tornou-se uma carta fora do baralho. O problema, agora, é como derrubá-lo de fato sem abrir uma nova frente de guerra e tornar a Líbia um “protetorado” sob controle da Casa Branca. Se Kadafi resistir, Bin Laden pode ganhar mais um aliado ou, no mínimo, um concorrente em matéria de ameaças terroristas. O discurso do Ocidente é a democracia. O interesse, o petróleo. E para o capitalismo, só isto interessa: privatizar as fontes de riqueza. Enquanto a lógica do capital predominar sobre a da liberdade, o Ocidente jamais conhecerá verdadeiras democracias, aquelas nas quais a maioria do povo decide os destinos da nação. Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.

APESAR DA ENORME pompa e do frenesi midiático que suscitou, a visita do bom-mulato à nossa Bruzundanga, movida obviamente por mal dissimulados interesses políticos e comerciais, acabou por tornarse (como toda farsa que se preze) mais uma página hilariante do eterno Febeapá (Festival de besteiras que assola o país) registrado pelo saudoso Sérgio Porto nos idos do século 20. Ainda às vésperas da espetacular efeméride, o prefeito do Rio, ao discursar em uma cerimônia no subúrbio, chamou ao palanque um sósia de Bin Laden (!), o qual não se furtou a exibir sua barba em público, para pasmo de uns e alegria de outros, mais afeitos aos incidentes surreais desta província. É claro que a presença da inusitada figura foi logo difundida pela mídia e pela rede virtual, o que gerou mal-estar em Brasília e no Itamaraty (Dona Dilma, de olho numa cadeira do Conselho de Segurança da ONU, não perdoou a travessura do gracioso alcaide). Mas decerto não foi ele o responsável pela suspensão da micareta marcada para a Cinelândia, que, para tristeza da mídia local, acabou restrita a uma plateia ‘vip’ (?) – com Luciano Huck, Ricardo Teixeira e outros próceres da nação – no interior do Teatro Municipal. A julgar pelas outras atrações mirabolantes que a tchurma do playboy Cabral preparou para o cara-pálida (com direito a capoeira e até a uma ordem unida de boleiros mirins da Cidade de Deus, ensaiados por um brioso sargento da PM), o show da Cinelândia prometia ser de fato espetacular. Se lá em Brasília a trupe do CQC pôde desfilar à vontade na recepção oficial à longa comitiva de Tio Sam, imaginem como seria o parangolé em plagas cariocas, onde o bom-mulato teria de requebrar mais do que Shakira nesta versão 2011 do “samba do crioulo doido” tropical. Bem que a Globo tentou transformar bacon com ovos em feijoada, mas o molho desandou... Isso explica o ar de frustração que o casal 20 do JN estampou na telinha, ao anunciar que não haveria mais o bombástico comício no centro da cidade. Quem sabe a rede não pensara em alguma megapromoção do Caldeirão do Huck (até que centenas de casas novas seriam bem-vindas em Nova Orleans, onde milhares de pessoas continuam a padecer as sequelas do furacão Katrina e da crise imobiliária do Império), ou um Mais Você especial de Ana Maria Braga com Michelle Obama, ainda que o louro José viesse a ser depenado pelos falcões de Washington?

Os EUA carecem de abrir mercados para as suas exportações e de garantir seu abastecimento de petróleo (eles dependem da Venezuela e do revolto mundo árabe) Chistes à parte, o que menos se viu na TV foi uma análise fria dos objetivos do síndico em sua visita a este, agora, arredio condomínio. Entre paetês e purpurinas, poucos ousaram dizer que o ambicioso rei está nu: os EUA carecem de abrir mercados para as suas exportações e de garantir seu abastecimento de petróleo (eles dependem da Venezuela e do revolto mundo árabe). Com enorme déficit comercial e fiscal, além de uma dívida pública superior a US$ 14 trilhões, Tio Sam não pensa em importar, só em exportar – para equilibrar a balança comercial e, de quebra, conter a alta de desemprego. Em suma, como sentenciou Moniz Bandeira do alto de seus 75 anos, dificilmente Obama logrará superar a atual crise, similar à da Grécia e à de outros países europeus. As promessas de campanha se esfumaram: o bom-mulato cedeu ao mercado financeiro, aos neoconservadores instalados na máquina de Estado, ao complexo industrial-militar e a várias forças retrógradas da sociedade ianque. Quem apita na política exterior é a macabra Hillary Clinton e a diferença do atual síndico para George W. Bush talvez esteja apenas “no estilo e na tonalidade”, frisa o professor, pois “ambos defendem interesses imperiais dos EUA”. O recado foi dado, mas será que a turma da micareta vai tocar esse rap no trio elétrico? Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Leandro Konder

instantâneo

O trabalho e o jogo

Gama

Alipio Freire

Week-end em Pindorama A VISITA DO Soba Barack Obama primou pela humilhação contra o nosso povo. Deixemos as alegrias e esperanças cartesianas e contábeis do economicismo a cargo dos economi(ci)stas. Vamos à política internacional. É preciso ficar claro: não houve gafe, deslize ou simples quebra de protocolo no fato do senhor Obama ter anunciado a invasão da Líbia em território brasileiro. O Brasil se absteve de votar essa matéria na reunião da ONU. Assim, anunciar sua nova guerra estando em nosso território, é mais que uma provocação do senhor Soba. É uma grave ameaça que exige manifestação pública do Itamaraty, junto à embaixada dos EUA em Brasília – o que provavelmente não acontecerá: certamente, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Aguiar Patriota, foi entronizado entre os cisnes, para cumprir esse papel. Juntemos peças: 1. Nos últimos meses do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, encaminhou gestões junto a Ânkara e Teerã, visando uma saída negociada e pacífica para a questão Irã.

2. A Casa Branca protesta. A chefa do Departamento de Estado, Hillary Clinton, faz duras críticas à articulação em curso. 3. Com o endosso do senhor Obama, a iniciativa brasileira é abortada. 4. O presidente Luiz Inácio denuncia publicamente o senhor Obama, como sendo a pessoa que lhe pediu que tomasse a iniciativa sobre o Irã. 5. Fim de governo, mantêm-se as aparências: fique tudo por conta das mudanças “naturais” da transição. 6. O ministro Celso Amorim não cai. Apenas foi substituído no novo governo pelo diplomata Antonio Aguiar Patriota. 7. Uma das primeiras e mais importantes mudanças anunciadas pela presidenta Dilma Rousseff, depois de sua posse: a mudança da política internacional com relação ao Irã. 8. Na reunião da ONU para autorizar a invasão da Líbia, o Brasil se abstém. 9. O senhor Obama vem ao Brasil. O ex-presidente Luiz Inácio não vai recebê-lo: é aniversário de um dos seus filhos. 10. Em território brasileiro, o chefe da Casa Branca, anuncia a invasão da Líbia.

Altamiro Borges

O desafio está lançado! EM REUNIÃO REALIZADA, dia 16 de março, na Câmara Federal, foi aprovado o lançamento oficial da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular. Ele será feito em 19 de abril, às 14 horas, no auditório Nereu Ramos, que comporta cerca de 400 pessoas. Com a presença de várias entidades da sociedade civil, a reunião também fez um balanço das adesões à proposta de criação da frente. Até a semana passada, 94 parlamentares já tinham assinado a solicitação. Pelo regimento interno da Câmara, são necessárias 171 adesões para formalizar uma frente parlamentar. A reunião também deu os últimos retoques e aprovou a versão final do manifesto da frente. Conforme ele explicita logo na abertura, ela “é uma iniciativa de membros da Câmara dos Deputados, em parceria com entidades da sociedade civil, que visa promover, acompanhar e defender iniciativas que ampliem o exercício do direito humano à liberdade de expressão e do direito à comunicação”. Entre outros objetivos, a frente irá “defender os princípios constitucionais relativos ao tema, especialmente aqueles previstos nos artigos 5º e 220 a 224 da Constituição Federal; lutar contra qualquer tipo de ação direta ou indireta de censura prévia de caráter governamental ou ju-

dicial; defender a ampliação do acesso da população à banda larga; trabalhar pela liberdade na internet”. Ficou acertado que os parlamentares concentrarão suas energias na convocação de representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e das entidades de caráter nacional – incluindo as empresariais, a CNBB, a OAB e outras. Já as entidades da sociedade civil presentes à reunião ficaram responsáveis pela massiva mobilização dos movimentos sociais e das várias frentes de luta pela democratização da comunicação. Em recente plenária, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), que reúne centrais sindicais, entidades estudantis e outras organizações populares, aprovou como prioridade a luta pela regulação da mídia. O lançamento oficial da frente parlamentar tende a ser a mais importante iniciativa nesta estratégica de luta após a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação. O êxito do evento contribuirá para fazer deslanchar o debate sobre o novo marco regulatório. O ideal é que todas as entidades representativas do campo popular coloquem o ato de lançamento como agenda prioritária. A batalha pela regulação da mídia é dificílima. Os barões da mídia inclusive já se movimentam para sabotar a frente parlamentar. O desafio está lançado!

OS BRASILEIROS ESTÃO jogando cada vez mais. A prática das apostas ganha novos adeptos a cada dia. O jogo do bicho prospera. O governo federal e os governos estaduais promovem suas diversas loterias. Muita gente faz fila para arriscar a sorte na sena, na quina da loto ou nas numerosas raspadinhas. O fenômeno está preocupando muitos setores da sociedade. Nos círculos conservadores se fala, com escândalo, na “generalização da jogatina” e se adverte contra a expansão da “influência perniciosa do vício”. Outras áreas lamentam que os poucos recursos economizados pelos assalariados sejam investidos numa aventura, em vez de serem sabiamente poupados e postos a render dividendos. Mesmo entre os que enxergam os aspectos desagregadores do jogo, entretanto, há muitos espíritos críticos que procuram compreender o que está acontecendo e repelem a tentação autoritária do recurso simplista a medidas de repressão. As proibições com frequência são dolorosas, traumáticas e inócuas. Em lugar de tentar resolver os problemas prendendo e arrebentando, devemos procurar discernir suas raízes históricas e culturais. Devemos ter a coragem de indagar se o poder de atração do jogo não tem a ver com o tipo de sociedade que foi criado aqui, ao longo da nossa história. A questão – note-se – não é exclusivamente brasileira: é fácil percebermos que ela tem uma presença marcante na América Latina. O grande escritor argentino Jorge Luis Borges já escreveu uma vez: “Yo soy de un pais donde la loteria és parte principal de la realidad”. As sociedades do nosso continente nasceram, todas, sob o signo da aventura: os europeus que destruíram as culturas indígenas e importaram negros escravizados apostavam no enriquecimento rápido.

Quem joga, afinal, ainda está mostrando que é capaz de ansiar por um futuro melhor No caso brasileiro, as condições se agravaram enormemente com a modernização autoritária e a sucessão das negociatas. A população tinha a impressão de que as elites haviam transformado a sociedade num imenso cassino. Entre os grandes trambiqueiros do nosso país, quantos foram exemplarmente punidos? E quantos permaneceram (e permanecem) impunes? Obrigado a dar duro para sobreviver, o trabalhador vem observando esse espetáculo e tentando extrair dele sua lição. A experiência quotidiana e o sufoco do salário arrochado lhe dizem com muita eloquência que no mundo do trabalho quase não há espaço para a esperança. O sonho, expulso pela remuneração aviltante, emigra para o jogo. A paixão pelo jogo cresce paralelamente à constatação de que o trabalho está caracterizado como ocupação de otário. O que conta, para o trabalhador, não são os discursos em que os políticos e os empresários o cobrem de elogios: é o salário que lhe mostra o que ele realmente vale aos olhos do Estado e do patrão. O homem do povo, o homem comum, está valendo pouco na nossa sociedade. Quando ele joga no bicho ou na loto, aposta no futebol ou nas corridas de cavalo, é claro que não está contribuindo, concretamente, para superar a situação frustrante para a qual foi empurrado, como vítima, pelos donos do poder político e econômico. A “fezinha” só pode resolver o problema de um ou outro no meio de muitos milhares. No entanto, o movimento que leva a pessoa a jogar manifesta, também ao lado da ilusão, certo inconformismo diante do vazio do presente. Quem joga, afinal, ainda está mostrando que é capaz de ansiar por um futuro melhor. Como se pode canalizar esse inconformismo e essa ânsia de um futuro mais bonito para uma ação historicamente mais fecunda do que a febre das apostas? Como mobilizar coletivamente as energias que se dispersam na aventura individualista do jogo? Creio que a direção política em que deve ser buscada uma resposta democrática para essas indagações passa, necessariamente, por uma enérgica valorização do trabalho – e dos trabalhadores. Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.

comentários do leitor Governo Dilma O Brasil invadiu militarmente o país irmão, Haiti, para ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. E para quê? Para se abster numa decisão “terrorista-militar” contra um outro país irmão. O governo Dilma deixa muito a desejar, nesses primeiros meses já, na política internacional e nacional. A falta de democracia pode ser sentida pelos brasileiros na prisão política de 13 manifestantes contra o imperialismo, como também na condução das obras do PAC, em especial, na região amazônica, onde servidores do Ibama e MPF não têm seus estudos e orientações respeitados. Ou no desmantelamento do Incra e no corte de recursos para a Reforma Agrária. Infelizmente os ventos que sopram no Brasil não trazem a esperança de dias melhores, pelo contrário. E antecipando futuras análises medíocres de melhor com

Dilma do que Serra, peço que ultrapassemos esses esquemas político-partidários-reformistas e pensemos e lutemos pela verdadeira transformação social.

Aline Sêne

Mal menor

É estranho que o Brasil de Fato, tão afeito a apoiar “o mal menor”, como nas eleições brasileiras, em que publica uma edição especial anti-Serra por entender que Dilma seria o mal menor, não toma a mesma atitude perante a Líbia. Lá, como não temos atualmente posições socialistas, o mal menor é Kadafi, mesmo sabendo de suas mudanças na última década (como o nosso Lula e Dilma aqui).

Denise Souto

Kadafi

Alguns veículos de comunicação preferem bater na mesma tecla usada e gasta do impe-

rialismo, segundo a qual a Líbia é governada por um ditador tirano. Por ignorância ou simplismo, desconhecem que a Líbia tem o maior IDH da África, maior que o do Brasil, Argentina e alguns países europeus. Kadafi construiu a União dos Países Africanos, apoiou concretamente (com treinamento militar e armas) a luta contra o apartheid na África do Sul e diversos países no mundo. Por defender a justiça e a liberdade, a Líbia sofreu ataques do imperialismo norte-americano. Portanto, atacar Kadafi é um erro grosseiro e histórico.

José Gil de Almeida

Dilma e Obama

Por enquanto, acredito que o governo da presidenta Dilma saberá defender os interesses nacionais frente aos Estados Unidos ou outra nação qualquer. Como disse Vladimir Pomar, não se pode prescindir do capitalismo, para promo-

ver o crescimento. E nesse aspecto entendo que saber fazer boas alianças com os norte-americanos é uma boa política externa para o Brasil. Fiquemos de olho nos acordos entre Dilma e Obama. Não precisamos ser totalmente a favor de Obama, mas também não precisamos ser totalmente contra, certo ou não?

Gustavo Salles Jr.

McDonald’s

Tudo o que acontece de negativo é por culpa do governo brasileiro e da alienação dos que frequentam a rede com suas comidas gordurosas. O Ministério Público não causa admiração positiva quando se trata de multinacionais. Age com covardia e alienação. Triste.

Norma Miglietti

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br


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brasil

A fatura chegou JIRAU Causas da revolta dos trabalhadores da usina hidrelétrica envolvem “licenciosidade” federal e superexploração Rodrigo Stüpp/Folhapress

Eduardo Sales de Lima da Redação EM 15 DE MARÇO, parte dos cerca de 22 mil trabalhadores da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, levantaramse contra as péssimas condições de trabalho em que viviam. Mais do que isso. Muitos compreenderam que o consórcio Energia Sustentável do Brasil, formado pelas empresas Camargo Corrêa, Suez e Eletro, estão lucrando às custas de sua exploração. Na ocasião, dezenas de veículos foram incendiados e algumas instalações do canteiro de obras, depredadas. Praticamente todos os alojamentos foram incendiados. As obras estão paralisadas por tempo indeterminado. Uma assembleia já havia sido marcada para o dia 27 de março. Segundo os trabalhadores, o estopim foi a agressão, por parte de um motorista da empresa que transporta os funcionários, a um operário que fora impedido de embarcar porque não possuía autorização para deixar o canteiro. A situação, então, tornou-se incontornável. Por causa da manifestação, cerca de 35 trabalhadores foram presos. “Vandalismo”

Emergem dúvidas, entretanto, sobre quem praticou o primeiro ato de “vandalismo”. “O funcionários nos relatam constantemente inúmeros desmaios por dia em plena obra, sendo que os ambulatórios não possuem médicos. E o pior: permanecem sob observação por dez minutos, e, depois, são obrigados a retornar ao trabalho”, revela a irmã Maria Ozânia da Silva, coordenadora da Pastoral do Migrante em Rondônia. O transporte dos operários é de péssima qualidade. Segundo conta o coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Rondônia, Océlio Muniz, aquele que perde um ônibus devido à lotação e chega atrasado na rodoviária de distribuição para os canteiros de obras perde o dia de serviço. De acordo com ele, no almoço, que dura uma hora, todos se apressam para tomar o ônibus. Não há tempo para descanso. O mesmo acontece para quem perde o ônibus que retorna ao alojamento e é obrigado a andar por cerca de 7 quilômetros até o dormitório. Em junho de 2010, um funcionário do setor de reciclagem de Jirau afirmou à reportagem do Brasil de Fato presente no local que o simples posicionamento de um trabalhador exigindo seus direitos, como a existência de instrumentos básicos de proteção, como máscaras, por exemplo, resultava em sua demissão ou perseguição. “A falta de diálogo, o autoritarismo da empresa, isso tudo se reflete na violação dos direitos humanos tanto das comunidades atingidas quanto em relação aos operários”, critica a irmã Maria Ozânia da Silva. Também existem relatos de trabalhadores que teriam sido agredidos por outros funcionários contratados pela Camargo Corrêa.

R$

1500

é o salário médio dos funcionários da Usina Hidrelétrica de Jirau, cujo projeto recebeu R$ 7,2 bilhões do BNDES.

tais “cronogramas autistas” mesmo que o custo seja o desrespeito aos direitos dos barrageiros. “O governo federal, em nome da atratividade do negócio, afrouxou ao máximo a regulamentação e a fiscalização em todas as áreas afetadas devido às obras (ambiental, trabalhista, urbanística, compensações sociais) e blindou política e juridicamente todo o processo de outorga, concessão e licenciamento”, destaca. “Arranjo financeiro”

Novoa lembra que as hidrelétricas feitas na região amazônica devem ser extremamente flexíveis na sua implementação, oferecendo, nos leilões, ta-

De acordo com a coordenadora da Pastoral do Migrante em Rondônia, a irmã Maria Ozânia da Silva, a capital de Rondônia testemunha o ataque aos direitos humanos dos trabalhadores Direitos atacados

Não é de hoje que as empresas que constroem a Usina Hidrelétrica de Jirau – que faz parte do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, a maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – estão envolvidas em sérios ataques aos direitos trabalhistas. Em setembro de 2009, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Rondônia e o Ministério Público do Trabalho libertou 38 pessoas que trabalhavam em condição análoga à escravidão para a BS Construtora, empresa terceirizada do consórcio dono da barragem que construía a Vila Nova Mutum, para onde serão transferidas as famílias que residem na área que será inundada. A grande imprensa focaliza o “vandalismo” dos trabalhadores, mas pouco ou nada diz sobre os motivos da revolta que, para o sociólogo Luiz Fernando Novoa, professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir), reside na “insistência em disciplinar e aferrar a mão de obra a cronogramas físico-financeiros autistas e irreais, com condições de trabalho degradantes, e através da repressão policialesca”. Para Novoa, grande parte dos erros cometidos contra os trabalhadores está inscrita em dois equívocos maiores: na “licenciosidade” por parte do governo federal em relação à implementação das obras no rio Madeira e na busca das empresas pelo lucro imediato, atrelados a

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Policiais acompanham a movimentação de trabalhadores da Usina Hidrelétrica de Jirau

rifas reduzidas que justifiquem o risco nesse investimento. O consórcio Energia Sustentável do Brasil, que constrói Jirau, ofereceu, em leilão ocorrido em 2008, o preço de R$ 71,40 por Mwh (megawatt-hora), um considerável deságio de 21,5%. Quase um ano depois das rebeliões ocorridas na Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, o sociólogo aprofunda a questão ao elucidar que o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira resulta de um arranjo financeiro, arquitetado pelo Ministério do Meio Ambiente (MME) e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e viabilizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que premia a máxima antecipação da operação das usinas com a venda de 100% da energia, gerada antes do prazo contratual, no mercado livre. “Impõe-se a etapa da construção nas margens mínimas de tempo e de custos e quem paga por isso são os trabalhadores, a população atingida e o meio ambiente. É preciso lembrar que o governo federal, ao defender a construção

Abandono e criminalização Coordenadora da Pastoral do Migrante de Rondônia denuncia ataque aos direitos humanos

da Usina de Belo Monte, apresentava as usinas do Madeira como modelo de sustentabilidade e participação. Será esse o paradigma para a construção de novas grandes hidrelétricas na Amazônia?”, critica Novoa. Como ele disse ao Brasil de Fato em 2010, “a fatura está vindo de modo informal, por meio dessas rebeliões”. Altair Donizete de Oliveira, do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Rondônia (Sticcero), joga mais luz nessa situação. Ele lembra que a Camargo Corrêa não pagou a Participação nos Lucros e Resultados (PLR) que deveria ter sido repassada em novembro.“É dito 50 vezes por dia que a Usina de Jirau está um ano adiantada no cronograma, e a empresa não paga PLR porque diz que não teve lucro. Então, como fica a cabeça do trabalhador?”, conta. O projeto da Usina Hidrelétrica de Jirau recebeu R$ 7,2 bilhões do BNDES. O salário médio dos funcionários é de R$ 1.500. Grosso modo, os gastos do consórcio com salários gira em torno de R$ 33 milhões e R$ 40 milhões. (ESL, com informações da RadioagênciaNP)

Barrageiros sofrem com a falta de representação da Redação

da Redação Cerca de 10 mil funcionários da Usina Hidrelétrica de Jirau ficaram desabrigados após o incêndio nos alojamentos. Os outros 12 mil residem na capital de Rondônia, Porto Velho. Após a revolta, os barrageiros migrantes rumaram à cidade em ônibus ou por meio de caronas. A empreiteira Camargo Corrêa, responsável pelas obras em Jirau, informou que providenciou alojamento, alimentação, kits de higiene pessoal e transpor-

De acordo com a coordenadora da Pastoral do Migrante em Rondônia, a irmã Maria Ozânia da Silva, a capital de Rondônia testemunha o ataque aos direitos humanos dos trabalhadores te desde o início dos tumultos. A empresa também comunicou que foi custeado o retorno de 10 mil trabalhadores a seus estados de origem. A Camargo Corrêa anunciou a paralisação da obra por pelo menos 30 dias. Nesse período, os canteiros estarão ocupados pela Força Nacional de Segurança. Antes de retornarem, porém, cerca de 8 mil barrageiros permaneceram acampados no prédio do Sesi (Serviço Social da Indústria) da cidade. Segundo infor-

mações do dirigente sindical Altair Donizete de Oliveira, do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Rondônia (Sticcero), os trabalhadores ficaram abandonados e não receberam nem mesmo alimentação. Preconceito

No período “pós-revolta”, a situação piorou para os trabalhadores. De acordo com a coordenadora da Pastoral do Migrante em Rondônia, a irmã Maria Ozânia da Silva, a capital de Rondônia testemunha o ataque aos direitos humanos dos trabalhadores. Ela diz que os trabalhadores estão sendo tratados como bandidos, seja por policiais, seja por parte dos comerciantes locais. Há informações de que entre as noites dos dias 18 e 19, parte do comércio da cidade fechou as portas. “Nada ocorreu. A Camargo Corrêa mentiu para que toda a sociedade se voltasse contra os trabalhadores. A minha impressão, ou melhor, o meu sentimento é de [estar acontecendo] um profundo desrespeito aos direitos humanos”, critica Maria Ozânia. A coordenadora da Pastoral do Migrante em Rondônia conta a história que mais a surpreendeu negativamente. “Logo após as manifestações, um senhor, já bem idoso, foi à agência de um banco para retirar seu FGTS para custear sua passagem à Bahia. Mas [na confusão] ele perdeu todos os documentos e o cartão do banco, e o dinheiro não foi liberado. Extremamente triste, ele sentou-se em frente à agência e ficou por lá. Alguns minutos se passaram e a Polícia Militar o maltratou e o expulsou da frente da agência”, relata. (ESL, com informações da RadioagênciaNP)

A questão organizativa transformou-se em mais um desafio aos barrageiros das usinas de Jirau e Santo Antônio. A assessoria da Camargo Corrêa disse não ter recebido “registro de nenhuma reivindicação trabalhista”. Logo após, o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção Civil de Rondônia (Sticcero) divulgou uma nota em que afirma não existir, de fato, ações sindicais ou trabalhistas movidas pela entidade. Mas por que, em meio a tantos ataques a direitos trabalhistas, não existe sequer uma ação movida contra o consórcio responsável pela construção da Usina de Jirau? Segundo o sociólogo Luiz Fernando Novoa, professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir), os sindicatos que englobam as categorias envolvidas na construção foram incorporados pela lógica “imediatista” e “canibalística” das grandes construtoras antes mesmo do início das obras. “São organizações paraempresariais infiltradas procurando enquadrar os trabalhadores. Além disso, grande parte da força de trabalho é itinerante, oriunda de distintos estados do país e que segue no encalço da indústria barrageira e de seus ciclos de grandes obras, o que dificulta a organização independente e a formação de oposições sindicais não cooptáveis”, destaca. (ESL)


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Por que veio Obama? Marcello Casal Jr/ABr

IMPERIALISMO Mais do que somente simbólica, a visita firmou acordos preocupantes, como o de exploração do présal e a participação no banquete dos megaeventos

Uma das maiores expectativas do governo brasileiro era se Obama defenderia a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU

Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) FORAM APENAS dois dias. A visita do presidente dos EUA, Barack Obama, a Brasília e ao Rio de Janeiro, nos dias 19 e 20 de março, monopolizou as notícias no país, mesmo em tempos de tragédia no Japão e invasão militar na Líbia. Era a primeira vez, em décadas, que um estadista do império vinha ao Brasil visitar um presidente eleito, sem que antes esse – ou essa – o visitasse. A versão oficial era a de que a viagem era carregada de valor simbólico e representava uma “reaproximação” entre os dois países, política e econômica, além do crescimento da influência geopolítica do Brasil no mundo. O que há de verdadeiro nisso? Quais eram as reais intenções do visitante num momento tão crítico no cenário internacional e na conjuntura interna estadunidense? A julgar pela opinião dos analistas ouvidos pelo Brasil de Fato, há muito a não se celebrar por trás do sorriso carismático de Obama.

Os EUA estariam percebendo como é custoso, econômica e politicamente, comprar petróleo do Oriente Médio “Obama veio aqui defender o interesse do país dele. Eles vivem uma crise enorme, com desemprego crescente. Ele veio, sobretudo, procurar mercado”, analisa Argemiro Pertence, especialista em política internacional. Os negócios entre os dois países teriam sido centrais na visita, conforme admitiu a Casa Branca. Dez acordos bilaterais foram assinados logo na primeira reunião entre Obama e a presidente Dilma Rousseff (PT) – e, até agora, não foram totalmente esclarecidos. Aos EUA também interessava vender seus caças aéreos F-18, numa disputa que atravessou todo o governo Lula. Atualmente, estão em competição com o Rafale, da França, e o Grippen, da Suíça. Sua maior desvantagem seria a baixa transferência de tecnologia. A eles também interessa negociar o etanol brasileiro. E, entre as prioridades, estava participar do projeto dos megaeventos esportivos a serem sediados pelo Brasil.

Oba-Obama

A presidenta Dilma recebe Obama no Palácio da Alvorada

Entretanto, os EUA estão pouco dispostos a fazer concessões. “Ele impôs uma agenda negativa, contemplando apenas os interesses deles”, protesta Maristela Pinheiro, do Comitê de Solidariedade à Luta do Povo Palestino. A fragilidade interna de Obama, após perder feio as eleições do Congresso, em 2010, seria uma das razões. “Quem não trabalha com o conceito de imperialismo, não consegue avaliar o caso Obama. Não importa quem seja o presidente dos EUA, a postura é a mesma. O que está acontecendo é a impotência liberal. O Obama nunca foi uma solução”, afirma Nildo Ouriques, coordenador do Observatório Latino-Americano (OLA). Em janeiro de 2009, quando assumiu o presidente, Nildo já previra toda a impossibilidade de Obama cumprir suas promessas, em entrevista ao Brasil de Fato: “Sobre Obama só há o benefício da ilusão. É um governo ultraconservador, e essa é a transição mais conservadora da história dos Estados Unidos”. Cobiça

Desde o início da visita, ficou claro que a maior fonte de cobiça era o pré-sal brasileiro. Obama queria utilizar o Brasil como nova fonte de petróleo. Os EUA estariam percebendo como é custoso, econômica e politicamente, comprar a commodity do Oriente Médio. Admitem a preferência em adquirir do Brasil – por sermos, segundo eles, um país de democracia estável e índices significativos de desenvolvimento. “Pelo menos 20% de nos-

sa pauta de exportações aos EUA já são de petróleo. Como dobraremos nossa produção até 2020, isso vai aumentar. O Lula garantia que o Brasil não iria exportar petróleo bruto, apenas derivados. Lamentavelmente, parece que com a Dilma isso mudou. Agora, o importante é apenas vender. Isso gera emprego lá, não aqui”, diz Pertence. Outros analistas fazem coro, lamentando a exportação de produto primário, e defendendo o monopólio estatal sobre a produção, diminuição do ritmo de exploração, e ampliação da matriz energética.

A permissão à intervenção militar na Líbia, por parte dos EUA, foi mais do que emblemática. A ordem da guerra foi dada em território brasileiro Por isso, a permissão à intervenção militar na Líbia, por parte dos EUA, foi mais do que emblemática. A ordem da guerra foi dada em território brasileiro. “Foi um desrespeito. Justo o Brasil, que tem tradição pacífica”, lamenta Maristela. O Itamaraty esperou Obama ir embora para pedir cessar fogo. A guerra tem o protagonismo dos europeus, os maiores beneficiados do petróleo líbio. Sendo o Brasil um potencial fornecedor, nada mais simbólico. A visita do presidente estadunidense também se-

Nem tão continuista assim A suposta mudança de política externa de Dilma é, na esquerda, por uns questionada, por outros lamentada do Rio de Janeiro Na cobertura da mídia comercial também havia outra unanimidade. O governo Dilma estaria apresentando mudanças sutis na política externa em relação a seu antecessor, Lula. A “reaproximação” com os EUA seria uma delas. Os elogios à suposta diferença eram onipresentes na cobertura oficial. De fato, há analistas de esquerda que concordam com a mudança, e a lamentam. Lula, ao lado do ex-chanceler Celso Amorim, teria uma política externa mais progressista e independente, que teria, de certa forma, causado ganho de importância geopolítica do Brasil. As divergências do país em relação ao Irã, quando chegou a negociar à parte com o presidente Mahmoud Ahmadinejad, e o protagonismo no golpe a Honduras, seriam exemplos disso. Entretanto, também há os analistas que não consideram haver mudanças significativas. “O Brasil independente? Só porque esboçou um raio mínimo de ação no caso Honduras? Não, a mudança é mínima. Essa declaração do chanceler Antônio Patriota, de que estudou nos EUA e tem relações sentimentais é um absurdo”, afirma Nildo Ouriques. Mesmo no caso do Irã, Lula teria acertado anteriormente com Obama o que nego-

ria fruto do crescimento da importância do Brasil na geopolítica mundial. Obama disse, reiteradas vezes, que éramos “o país do presente”. Que fôramos elevados à elite decisória das nações. Em parte, isso teria se dado devido ao crescimento econômico, assim como o de China e Índia. Mas o que Obama não diz é que isso se deu, também, porque as grandes potências e suas instituições foram perdendo legitimidade.

ciar com Ahmadinejad. Mas Obama não cumpriu o acordo. “É a mesma subserviência, de outra maneira”, completa.

Mesmo no caso do Irã, Lula teria acertado anteriormente com Obama o que negociar com Ahmadinejad. Mas Obama não cumpriu o acordo. “É a mesma subserviência, de outra maneira”, completa A visita de Obama a Brasília foi marcada por dois fatos importantes. Um deles, a ausência de Lula no almoço com ex-presidentes, gerou todo tipo de especulação. Há os que acreditam que ele não queria ofuscar Dilma em seu primeiro teste internacional, e os que creem em protesto contra suposto recuo na política externa. Houve também um boicote de ministros ao discurso de Obama. Aluízio Mercadante (PT), Fernando Pimentel (PT), Guido Mantega (PT) e Edison Lobão (PMDB) deixaram a cerimônia de que participavam, em protesto contra as rigorosas exigências de segurança (LU).

Não por acaso, uma das maiores expectativas do governo brasileiro era se Obama defenderia a entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU. A declaração veio mais tímida do que na Índia, onde ele defendera de forma enfática. Em reunião reservada, o presidente estadunidense disse ter “apreço” pela ideia. Pouco depois, disse que a entrada “iria demorar”. Entre os analistas de esquerda, há os que consideram um avanço a entrada do Brasil. Entretanto, a maior parte considera o Conselho de Segurança e, em certa medida, a própria ONU, instituições falidas. Não seria mais do que um órgão carimbador de decisões tomadas pelos EUA e seus aliados.

A visita, e qualquer atitude da família Obama, foram abordados de forma festiva – ganhando a irônica alcunha de “oba-obama” Enquanto se reunia com os principais empresários e políticos brasileiros, Obama era fortemente criticado nos EUA. A mídia estadunidense lamentava a viagem em meio a um cenário internacional turbulento, com as crises líbia e japonesa, e a votação orçamentária no Congresso. A crise dos EUA, e a inabilidade de Obama em administrá-la, levaram-no a lidar, hoje, com um parlamento majoritariamente de oposição, pela perda de base social. Internamente, Obama se tornou refém dos Republicanos, deixando de lado quase todas as suas promessas de campanha – com a exceção isolada da reforma no sistema de saúde. Na mídia brasileira a abordagem era completamente diferenciada. A visita, e qualquer atitude da família Obama, foram abordados de forma festiva – ganhando a irônica alcunha de “oba-obama”. Os analistas da direta foram unânimes em enxergar elementos positivos na visita do Império.

Visita marcada por manifestações Em Brasília e no Rio, os protestos contra a recepção foram marcados por forte repressão do Estado do Rio de Janeiro (RJ) Durante os dois dias em que Obama esteve no Brasil, militantes de movimentos sociais e partidos políticos organizaram protestos, em Brasília e no Rio de Janeiro. O principal deles aconteceu dia 18. Manifestantes foram até o Consulado dos EUA, no Centro do Rio, protestar contra a visita. Do meio da multidão, alguém lançou um coquetel molotov no prédio, ferindo um segurança. Meia hora depois, a polícia decidiu reprimir, atirando nos manifestantes com balas de borracha e levando 13 presos. “Há 100% de certeza de que o coquetel molotov não foi lançado por nenhum militante. Era uma manifestação pacífica”, afirma Cyro Garcia, presidente regional do PSTU, partido ao qual pertence a maioria dos presos. As teses mais prováveis são de que o projétil tenha sido lançado por um infiltrado ou por militantes de uma organização de ultraesquerda presente no ato. Entre os presos estava o jovem J.P.A., de 17 anos, e Maria de Lurdes da Silva, de 67 anos. Conhecida como “vovó tricolor”, ela teria aderido casualmente à passeata – estava passando e resolveu segurar um cartaz. À exceção dela, os outros presos foram libertados apenas no dia 21. Todos os homens tiveram sua cabeça raspada. Circulou um mani-

festo na internet com 7,2 mil assinaturas, e uma nota assinada por 23 parlamentares, sendo dois senadores. O PSTU prometeu acionar o Estado na Justiça por danos morais.

A polícia decidiu reprimir, atirando nos manifestantes com balas de borracha e levando 13 presos No domingo, dia 20, pouco antes do discurso de Obama no Theatro Municipal, dois atos de protesto se uniram na região da Glória. Cerca de mil manifestantes caminharam até o início da Cinelândia. Ao ver a ocupação pela polícia de todas as saídas do local, temendo nova repressão, decidiram interromper o ato. Indivíduos que atravessaram o bloqueio policial ainda se concentraram próximos ao Teatro, em protesto, com cerca de 200 pessoas. A Cinelândia é um local importante na trajetória da esquerda carioca, onde aconteceram passeatas como a dos Cem Mil, em 1968 (LU). O Brasil de Fato contatou o Itamaraty, mas não obteve retorno.


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As características de um processo de perseguição Arquivo Brasil de Fato

ENTREVISTA No início de abril, Gegê deve ir a julgamento em um processo em que seu único crime pode ter sido lutar por moradia.

Brasil de Fato – Poderia, brevemente, fazer um histórico do caso do Luiz Gonzaga da Silva, Gegê? Guilherme Madi Rezende – Houve, em 2002, em agosto, o assassinato de José Alberto dos Santos Pereira Mendes em um acampamento feito dentro de uma ocupação do MMC [Movimento de Moradia do Centro] na rua Barão de Resende. Duas ou três pessoas (não se sabe exatamente) entraram nesse acampamento e mataram José Alberto, entre essas, uma chamada Danilo. Essas pessoas saíram e fugiram. Logo depois desses fatos, o Gegê chegou nesse acampamento porque ele iria buscar a Luísa [uma das coordenadoras do MMC], que estava na portaria. Ao chegar no acampamento, soube o que aconteceu. Depois disso, até acabou socorrendo uma mulher grávida a pedido da polícia, ligou para advogada Michael [Mary Nolan] porque, como líder do movimento, ele queria saber o que estava acontecendo e quais providências que caberia tomar. Chegou até a ir com Michael na delegacia. A advogada levou depois o endereço do Danilo, e a polícia nunca o procurou. Começou depois uma acusação contra o Gegê por parte dos inimigos políticos dele, ou seja, gente que estava lá no acampamento, que morava no acampamento, mas queria montar um outro grupo político para poder impor outras regras que não aquelas do MMC. O MMC tinha algumas características de organização e de regras que eram sempre tiradas em assembleias. O objetivo era que as ocupações não acabassem virando favelas.

“As provas apresentadas contra o Gegê são os testemunhos dessas pessoas, que são inimigos políticos do Gegê, que começaram a falar ‘foi o Gegê que mandou’” Havia, inclusive, nesse acampamento específico, um projeto de mutirão desenvolvido em conjunto com estudantes de arquitetura da USP a fim de que as habitações fossem construídas de forma organizada. Mas tinha um pessoal que queria transformar aquilo em uma terra de ninguém, sem ordem e eventualmente até para praticar tráfico, coisa que o MMC impedia. Tráfico, uso de armas, bebidas. Então, se a pessoa chegasse bêbada, não entrava, tinha que ficar fora para curar a bebedeira; o cara que batia na mulher era convidado a sair de lá. Havia uma série de regras, que a coordenação interna [do acampamento], da qual o Gegê não fazia parte, fazia cumprir. Mas o Gegê era líder do movimento e, enfraquecendo o Gegê, enfraqueceriam o próprio MMC naquele acampamento. Qual é exatamente a acusação contra Gegê?

Ótica dominante Assim que ficou sabendo da revolta dos trabalhadores na hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, a presidente Dilma Rousseff determinou providências imediatas para os ministros da Casa Civil, Defesa, Justiça, Secretaria Geral e Gabinete de Segurança Institucional. Só se esqueceu de mobilizar o Ministério do Trabalho, já que o protesto ocorreu por causa das péssimas condições de trabalho oferecidas pela empresa construtora da obra. Imagem externa A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão da OEA, acaba de determinar que o Estado brasileiro garanta a integridade e a vida dos menores presos na Unidade de Internação Socioeducativa de Cariacica, no Espírito Santo. A medida é resultado de denúncia formulada pela Pastoral do Menor, Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Serra e Justiça Global, sobre casos de torturas e mortes naquela instituição.

Patrícia Benvenuti da Redação SERÁ REALIZADO nos dias 4 e 5 de abril, em São Paulo, o julgamento de Luiz Gonzaga da Silva, Gegê, um dos líderes do Movimento de Moradia no Centro (MMC). Em um processo com fortes características de perseguição política, Gegê é acusado de ser mandante do assassinato de José Alberto dos Santos Pereira Mendes, morto em 2002 em um acampamento do MMC na capital paulista. Com um longo histórico de militância social e sindical, Gegê foi um dos fundadores da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do PT e de movimentos de moradia. A Unificação das Lutas de Cortiço (ULC), do Movimento de Moradia do Centro (MMC), da União dos Movimentos de Moradia do Fórum Nacional de Reforma Urbana e a Central de Movimentos Populares (CMP) estão entre as organizações que contaram com a participação do líder. Para o advogado Guilherme Madi Rezende, que auxilia Gegê, as falhas na investigação e o histórico do militante evidenciam a perseguição. Em entrevista, o advogado fala sobre o processo e comenta a atuação da Justiça no caso.

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Congelamento A bem da verdade é preciso que se diga: o governo federal, o PT e a base aliada no Congresso Nacional não estão fazendo o menor empenho para a aprovar o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade, que deve apurar os crimes da Ditadura Militar (1964-1985). Pelo menos, que fique registrado na história quem e quais grupos políticos contribuíram para o apagamento das violências do Estado naquele período.

Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê

Ele é acusado de ser mandante desse crime, de ter levado os executores para praticar o crime. Mas essa acusação é absolutamente descabida, porque ele não tinha qualquer razão para matar o José Alberto, e segundo porque não é da índole dele agir dessa maneira. Mas essa acusação de ele ser o mandante decorre, na minha visão, de uma tentativa de enfraquecê-lo dentro do movimento e, com isso, tirar o MMC daquela ocupação, que foi o que de fato aconteceu. Os líderes do MMC acabaram saindo de lá à medida que as coisas foram ocorrendo, essas acusações e outras brigas.

“Eu acho que tem um interesse em se pegar, como se diz, um ‘peixe grande’” Como se deram as investigações a respeito desse crime? Isso chama muito a atenção porque, desde o primeiro momento, o Danilo é identificado como sendo o autor do crime, todas as pessoas dizem que viram o Danilo. Os sogros do Danilo moravam naquela ocupação. O Danilo, portanto, era alguém muito facilmente identificável, mas durante toda a investigação ele não foi procurado. O delegado direcionou a investigação contra o Gegê e não contra os verdadeiros autores do crime. Então não parece nem um pouco razoável uma investigação que, diante da notícia de quem seja o autor, sequer o procure para ouvi-lo. Me parece que é muito direcionado para pegar o Gegê, tão escancaradamente que eles nem pegam o verdadeiro autor. As testemunhas foram chamadas para prestar depoimento? Elas [testemunhas] foram chamadas para prestar depoimento e todo mundo disse que viu que foi o Danilo. Mas aí é que está o ponto, a acusação não é de que o Gegê tenha desferido os tiros, é de que ele tenha dado carona para os executores. Que provas o Ministério Público apresentou contra o Gegê? As provas apresentadas contra o Gegê são os testemunhos dessas pessoas, que são inimigos políticos do Gegê, que começaram a falar “foi o Gegê que mandou”, “o Gegê estava dando carona”, “eu vi o Danilo entrando no carro do Gegê”, o que não é verdade. Ele chega de carro lá, logo depois do crime. Testemunhas que estavam com o Gegê naquela noite dizem que ele pegou o seu Luís [militante] para ir até essa ocupação pegar a Luísa. Portanto ele [seu Luís] estava com o Gegê o tempo todo, e pode e vai afirmar que o Gegê não deu carona para o Danilo e para ninguém. E não faria sentido o Gegê chegar na ocupação em que todo mundo o conhece com um carro, que é um Opala preto, dando carona para alguém que ia para lá, matar, e sair com o carro. Seria de uma burrice sem tamanho. Não faz sentido algum, mas são as acusações possíveis dos inimigos políticos, eles não podem dizer que viram o

Gegê matando porque quem matou foi o Danilo e todo mundo viu. Mas dizer que quem mandou matar foi o Gegê é fácil. Como a defesa avalia a atuação da Justiça, de modo geral, em relação ao caso? Eu não avalio de uma forma positiva desde o início, principalmente porque a polícia, nesse caso, não investigou o Danilo. Ainda teve um outro fato na delegacia: o delegado havia intimado o Gegê para comparecer em um determinado dia. O Gegê compareceu. Foi ouvido, mas não neste caso, em um outro. Alguns dias depois, o delegado pede a prisão do Gegê dizendo que ele não prestou depoimento nesse caso, não compareceu na delegacia e não justificou. A Justiça decreta a prisão dele e depois se percebe que ele estava, naquele dia, naquela delegacia, prestando depoimento para esse mesmo delegado sobre um outro fato. Então isso dá bem o tom de como foram feitas as investigações. Aí ele é preso, impetram um habeas corpus depois de um tempo e é solto. Vem a pronúncia e com base em argumentos anteriores à primeira decretação da prisão, que já haviam sido rechaçados pelo Tribunal e que, portanto, não seriam idôneos a uma nova prisão, essa nova prisão é decretada. Então fica um pouco clara a perseguição que o Gegê sofre.

“O Gegê era líder do movimento e, enfraquecendo o Gegê, enfraqueceriam o próprio MMC naquele acampamento”. A defesa acredita em motivações políticas contra Gegê, devido à sua militância em movimentos sociais, como argumentam algumas organizações? Eu acho que tem um interesse em se pegar, como se diz, um “peixe grande”. Não que o Gegê seja um peixe grande, mas é alguém que chama a atenção pelo destaque que tem dentro do movimento. E, em razão desse destaque, existe um interesse em tentar derrubá-lo. Então existe, sim, um conteúdo político nessas acusações e um interesse em pegar o Gegê em razão da liderança que ele exerce no movimento. E de quem seriam esses interesses? Eu acho que esse interesse começa com os adversários políticos dele dentro do movimento - não do MMC, mas daquela ocupação, pessoas que queriam fazer outro movimento -, e vai passando pelo delegado que, em vez de se preocupar em investigar o autor do crime, prefere direcionar a investigação para o Gegê, porque talvez isso dê algum holofote. Acho que não é claro, por parte das instituições públicas, a perseguição política, mas fica implícita no desejo de se pegar alguém de destaque. E qual a expectativa para esse julgamento? A expectativa que eu tenho é que ele seja absolvido. A expectativa é conseguir demonstrar que ele é inocente.

Privatização Depois que saiu do governo, o ex-presidente Lula, ex-metalúrgico, ex-sindicalista e presidente de honra do Partido dos Trabalhadores (PT), passou a atuar como garoto propaganda do capital privado – nacional e estrangeiro: participou do lançamento de obra da Vale, na Guiné; fez palestras para executivos da coreana LG, em São Paulo, e da TV Al Jazeera, no Qatar. Cobra R$200 mil por palestra, sempre com muitos elogios aos patrocinadores. Droga pesada Relatório do governo dos Estados Unidos sobre a situação mundial das drogas afirma que o Brasil é o maior consumidor de drogas na América do Sul, com mais de 900 mil usuários de cocaína. O consumo interno é abastecido pela Bolívia, já que a cocaína de melhor qualidade da Colômbia e do Peru apenas transita pelo Brasil rumo a outros mercados, especialmente Europa. Diz que o consumo de crack e cocaína continuam aumentando. Bolha imobiliária O Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi) informa que, em fevereiro, o número de ações de cobrança por falta de pagamento da taxa de condomínio cresceu 84% em relação a janeiro. Nos dois primeiros meses de 2011, computou-se 1.464 ações, 20% a mais do que as 1.218 registradas no primeiro bimestre de 2010. Resta saber se a inadimplência dos condôminos (proprietários e inquilinos de imóveis) persistirá ou não. Mito caído Apesar de o discurso dominante nos meios empresariais e na mídia conservadora pregar a educação e o aumento da escolaridade como fundamentais para se colocar no mercado de trabalho, estudo recente do Insper demonstrou que o desemprego cresce mais entre trabalhadores com mais anos de escolaridade: 60% dos desempregados, em 2010, tinham mais de 11 anos de estudo, enquanto 33% tinham até 8 anos de estudo. As vagas não são qualificadas! Inundação O Movimento dos Atingidos por Barragens denuncia que o fechamento das comportas da Usina Hidrelétrica de Estreito, entre Tocantins e Maranhão, para formação do lago da barragem, deixou muitas famílias em situação desesperadora, já que a água da represa – ao contrário do previsto – está inundando suas casas. O MAB pediu providências urgentes para a Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal. Reencarnação Famosa antes de 1964, a sigla PSD (Partido Social Democrático) deve voltar ao cenário político brasileiro, agora pelas mãos do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, o mais fiel aliado do tucano José Serra, e de outros políticos do DEM, PP e PSDB. O lançamento do novo partido conta inclusive com a simpatia de petistas, que apostam no racha da direita para engrossar as bases do atual governo. Mais um saco de gatos na praça!


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Desenvolvimento sem marcha Fotos: Charles Souto

POLÍTICA SOCIAL Programas federais de combate à pobreza melhoram a vida de milhares de famílias alagoanas, mas ênfase no poder de consumo de tais beneficiados “escondem” mazelas estruturais Charles Souto de Maceió (Alagoas) “EU SÓ VOU no pega. Subo calçada, passo entre os carros, entro na contramão. Gosto da adrenalina.” Espremido entre ônibus e carros, no lusco-fusco de Maceió, Jadson Martins não freia sua bicicleta por nada. Sem marcha ou capacete, chinelo de dedo nos pés, ele não participa de nenhuma competição. Depois de nove horas de trabalho, o servente de pedreiro só quer chegar mais cedo em casa. Deixando para trás a praia de Ponta Verde, onde ajuda a levantar um novo prédio de luxo no metro quadrado mais caro da cidade, Jadson vai costurando becos, ruas e avenidas a pedaladas velozes rumo à sua morada na comunidade Virgem dos Pobres 2, bairro do Trapiche, subúrbio maceioense. Aos 19 anos, é a primeira vez que trabalha na construção civil. Há oito meses foi contratado como “orelha seca”, alcunha de todos os serventes na obra. Desde então, todos os dias, sai às seis da manhã e só às seis da noite retorna à casa que adquiriu com ajuda do pai, também pedreiro. “Comprei essa casa tem menos de um ano. Dei R$ 4 mil nela e gastei mais R$ 2 mil na reforma”, diz o servente no raro momento em que um sinal vermelho o obriga a cessar por alguns segundos o ritmo frenético de suas pedaladas. “Estudei até o segundo grau ginasial, mas aí, decidi largar e comecei a trabalhar. Queria sair da casa dos meus pais, ter minha independência, sabe?” Na carteira de trabalho, seu salário não ultrapassa a casa dos R$ 500, mas em alguns meses Jadson chega a receber R$ 700 ou mais. Segundo ele, tudo depende do ritmo da obra e da quantidade de produção – entenda-se: horas extras. “No início da obra tem mais produção e a gente consegue fazer mais. Agora que está acabando, fica mais difícil.” O prédio em que trabalha atualmente será entregue em poucos meses. Terminada a obra, a construtora dará baixa em sua carteira e Jadson ficará na torcida para ser contratado novamente.

Por trás dos celulares da China, próteses com detalhes prateados, acesso à internet domiciliar, esconde-se um novo fenômeno social que vem se configurando nos últimos anos em toda região Nordeste

Conectado

Mas enquanto o salário estiver garantido no final de cada mês, Jadson parece não se preocupar. “Comprei este smartphone. É chinês, mas tem tudo. Até internet”, fala ao tirar do bolso o aparelho rosa-choque. Ainda não conseguiu habilitar o uso da internet, mas isso não é problema. Toda noite ao chegar do trabalho Jadson acessa o Orkut e o MSN através da internet que instalou e ajuda a manter na casa dos pais. “Pago R$ 40 por mês num acerto que fiz com meu vizinho. Antes a conexão era lenta e caía muito. Essa agora é a cabo e não preciso esperar uma eternidade para assistir os vídeos no Youtube”. Jadson não precisou da internet para encontrar sua esposa, com quem vive há cerca de um ano. “Conheci ela aqui mesmo na Virgem dos Pobres.” Ainda não formalizaram o casamento – “pra que se está tão bom assim?”. Tampouco planejam filhos. “Ela só tem 15 anos e está no primeiro ano do ginásio. Quando terminar os estudos e eu conseguir um trabalho bom, a gente pensa nisso.”

Indústria da cana

14,5

Jadson Martins, que há oito meses trabalha como servente de obra

milhões de famílias nordestinas, de um total de 16,5 milhões, recebem recursos da Previdência Social ou do Bolsa Família

“São quarenta minutos para ir e para voltar. Se fosse de ônibus, gastaria uma hora e meia e ainda ia naquele aperto. Chego em casa com as pernas doloridas, é verdade, mas depois de um bom banho nem parece que pedalei. E agora que comprei essa bicicleta com marcha melhorou. Sabe como é, tô ficando velho”, relata o gesseiro de 40 anos. A atual bicicleta lhe custou R$ 230 e não foi o único investimento nos últimos tempos. Airton adquiriu por R$ 180 uma prótese dentária adornada com detalhes prateados, que usa com indisfarçado orgulho. A mesma quantia que despende por mês no consórcio de uma moto: “Entrei nesse consórcio no início deste ano. Parcelas de R$ 185 por mês, no total de 50. É uma moto de 125 cilindradas. Só pra fazer uma graça no final de semana. Não vou abandonar a bicicleta”. As despesas de Airton não param por aí. Em seu terceiro casamento, arca com a pensão alimentícia dos dois filhos que concebeu com as esposas anteriores. “Na verdade, eu tive três filhos”, corrige, “mas o primeiro morreu com menos de um mês de vida, por causa de complicações no parto. A gente morava no sítio, distante da cidade, e o pessoal da usina não quis liberar o carro para nos levar ao hospital. O parto demorou muito e ele já nasceu quase morto”. “Pãozeiro”

A usina de açúcar em questão é a Serra Grande, localizada no município de São José da Laje, zona de mata alagoana e terra natal de Airton. Trabalhando em diversos setores do corte de cana desde os 14 anos, depois da morte de seu filho e da expulsão dos sitiantes levada a ca-

Investimentos

O servente de pedreiro procura seguir a trilha de outro ciclista que costuma acompanhá-lo em suas pedaladas depois da jornada de trabalho. É o colega Airton Tavares, que começou como servente há oito anos e depois de passar por cinco prédios e um curso profissionalizante, tornou-se gesseiro. “Ganho R$ 750 por mês. Mas quando a produção é boa, chego aos R$ 1 mil”, afirma. Morando no bairro do Tabuleiro dos Martins, mais do que o dobro da distância da moradia de Jadson, Airton vem e volta do trabalho todos os dias na sua bicicleta. Não há ciclovias no percurso.

rais destinados à região, especialmente os oriundos da Previdência Social e dos programas sociais de combate à pobreza. Péricles lembra que “o Nordeste possui 16,5 milhões de famílias. Destas, 14,5 milhões recebem Previdência ou Bolsa Família. Metade das pessoas que recebem salário mínimo no Brasil está no Nordeste. Então, quando o salário mínimo salta de R$ 200 no último mês de FHC para os R$ 545 atuais, imagine o ganho, a explosão na economia”. No caso específico de Alagoas, Péricles alega que as transferências federais alcançaram o status de principal fonte de renda da população mais pobre. Para comprovar sua tese, relata que somente em 2009 a Previdência Social pagou R$ 2,6 bilhões aos 414 mil beneficiários alagoanos, além dos R$ 182 milhões pagos pelo Seguro Desemprego. Mais da metade da população alagoana é beneficiária do Bolsa Família, que destina mensalmente R$ 40 milhões a 404 mil famílias alagoanas, o equivalente a R$ 480 milhões por ano.

bo pela usina, Airton decidiu que era hora de migrar para a capital. Chegou em Maceió aos 23 anos. Depois de trabalhar por algum tempo com um tio, juntou dinheiro suficiente para comprar um carrinho e começar a vender pão pelas ruas do Tabuleiro dos Martins. O negócio prosperou e comprou sua casa – onde mora até hoje. Passado algum tempo, as vendas esfriaram e ele buscou uma profissão mais estável. Foi então que iniciou sua jornada na construção civil. Mas os tempos de pão não foram esquecidos e até hoje ele é conhecido por todos na obra como “Pãozeiro”.

Entre os anos de 2004 e 2008, 300 mil alagoanos saíram da faixa que fica abaixo da linha da pobreza e outros 300 mil saíram da indigência Poder de consumo

Para muitos, “Pãozeiro” e “Orelha Seca” seriam apenas dois trabalhadores que utilizam suas bicicletas como meio de transporte e que poderiam ser utilizados como exemplo para abordar o tema tão em voga da falta de ciclovias que liguem os bairros populares às regiões centrais das grandes cidades. Mas para Cícero Péricles, isso não é o bastante. Na opinião do professor de economia da Universidade Federal de Alagoas, por trás dos celulares da China, próteses com detalhes prateados, casas reformadas, acesso à internet domiciliar e consórcio de motos, esconde-se um novo fenômeno social que vem se configurando nos últimos anos não só em Alagoas, mas em toda região Nordeste: o aquecimento da economia local originado pelo aumento de poder de consumo das classes sociais mais baixas. De antemão, Péricles esclarece que seus estudos não omitem os problemas estruturais que ainda vigoram em Alagoas, estado que ostenta o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e as maiores taxas de analfabetismo e mortalidade infantil do Brasil. Exemplo disso, é que 62% dos alagoanos são pobres e destes apenas 4,3% recebem mais de R$ 2 mil por mês. O setor sucroalcooleiro, na mão de apenas seis grupos familiares, domina a economia e a política local, sendo responsável por 94% de todas as exportações alagoanas. Sem contar que o governo do estado tem sua atuação freada por uma dívida pública que não para de crescer e alcançou a casa dos R$ 6,8 bilhões em dezembro de 2009. Mas é diante desse quadro desolador e aparentemente insolúvel que o professor Péricles traz a informação de que “entre os anos de 2004 e 2008, 300 mil alagoanos saíram da faixa que fica abaixo da linha da pobreza e outros 300 mil saíram da indigência”. No mesmo período, continua, “78.530 novos empregos foram criados, um crescimento de 22,6% em apenas quatro anos. Sem contar que o rendimento real médio do trabalhador alagoano aumentou de R$ 732,84 para R$ 1.058,04, e pela primeira vez na história o consumo dos segmentos C e D ultrapassou o dos segmentos A e B nas compras totais realizadas no estado”. Impacto econômico

As bicicletas utilizadas pelos “pãozeiros” e “orelhas secas”

Como explicar esse aparente paradoxo? Para Cícero Péricles não restam dúvidas: esses resultados positivos são resultado do aumento de recursos fede-

Comparando esses recursos com a massa salarial gerada no corte de cana, principal fonte de empregos da economia alagoana, Péricles deixa claro o real impacto causado por estas transferências federais: “Alagoas colheu, em 2008, uma safra recorde de 30 milhões de toneladas de cana, e cada tonelada de cana cortada pagou ao trabalhador R$ 4. Mesmo que toda cana do estado fosse colhida manualmente, a renda gerada naquela safra seria de R$ 120 milhões, o que corresponde a apenas uma quarta parte do que o programa Bolsa Família paga a seus beneficiários”. Encarando essas políticas públicas federais e o consequente empoderamento das parcelas mais pobres da sociedade como pré-condições necessárias para o desenvolvimento do estado, Cícero Péricles é enfático ao concluir que “a perspectiva econômica e social para Alagoas nos próximos anos parece apontar para uma única forte alternativa: a radicalização da parceria Estado-União para realizar, simultaneamente, o processo de modernização social e o crescimento econômico”.

Outro lado

Não é o que pensa, todavia, o historiador e pesquisador alagoano Golbery Lessa. Para ele, “a ideia de que as transferências federais vão salvar Alagoas é uma ideia falsa. Detectar esse aumento significativo das transferências federais para o estado é importante, mas a reflexão não pode parar por aí, se não se torna insuficiente. Mesmo que essas transferências federais se multiplicassem por dez, o subdesenvolvimento alagoano não mudaria”. É que para Golbery os resultados dessas transferências federais são limitados. Os recursos provenientes dos programas sociais aumentaram de fato a demanda da economia, de salários, de empregos, de insumos. Só que no caso de Alagoas, o aumento da demanda é exportado para outras regiões.

“Quando o salário mínimo salta de R$ 200 no último mês de FHC para os R$ 545 atuais imagine o ganho, a explosão na economia [do Nordeste] “Como a economia alagoana continua especializada e concentrada em produtos agroindustriais, o aumento das demandas em Alagoas provenientes dessas transferências federais gera mais empregos em São Paulo, na Bahia, em Pernambuco, Sergipe. Ou seja, aumentou o emprego e a economia de todos os estados dos quais Alagoas importa seus produtos. Daí o que a gente tem é um fenômeno dialético. Aumenta muito o consumo, mas a economia continua especializada e concentrada. Pode multiplicar por mil essas transferências! Essa demanda não vai industrializar Alagoas, não vai desenvolver nosso mercado interno. A gente tem que atuar na modificação da estrutura produtiva e não apenas na estrutura distributiva”, afirma o historiador. Diante deste quadro, Golbery Lessa alerta: “Os problemas de Alagoas não se resolvem fora de Alagoas. As forças populares, as forças progressistas não podem achar que o seu protagonismo seja um elemento menor na superação de nossos problemas. Ele é ainda o elemento essencial dessa superação. Governos podem facilitar esses processos, mas não podem criá-los. É só na mudança do equilíbrio das forças locais que ocorrerá a transformação necessária”. Ao que parece, não são só bicicletas que “Pãozeiro” e “Orelha Seca” precisam conduzir.


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de 24 a 30 de março de 2011

cultura

Onde estão as imagens de Geraldo Vandré? MÚSICA Cineastas e pesquisadores acreditam que paranoia dos Anos Médici “apagou” registros em movimento do compositor paraibano Geraldo Vandré

Gama

Maria do Rosário Caetano Especial para o Brasil de Fato NO DIA EM QUE completou 75 anos (12 de setembro do ano passado), o cantor e compositor paraibano Geraldo Vandré sugeriu ao repórter Geneton Moraes Neto que procurasse, nos arquivos da Rede Globo, o VT (videotape) com as imagens do imenso coro que acompanhou, no Maracanãzinho, os versos de “Caminhando” ou “Prá Não Dizer Que Não Falei das Flores”. “Aquilo [o Maracanãzinho lotado] foi bonito, muito bonito. Pena que eu não possa ver o VT”, lamentou a Geneton, que o entrevistava na sede carioca do Clube da Aeronáutica. E prosseguiu: “estão guardando o VT não sei para quê. Quero ver o VT. Lá na sua estação [Rede Globo] devem ter. Procure lá. Consegue o VT para eu ver!” Geneton procurou o registro da participação de Vandré no FIC 1968 (Festival Internacional da Canção) com muito empenho. E procurou não só as imagens do imenso coro que entoou os versos de “Caminhando” com Vandré, mas também o registro de depoimento que o compositor prestou “por sugestão” da Polícia Federal (e que foi retransmitido por emissoras de TV de todo país) quando de seu regresso do exílio, em 1973. O autor de “Vandré – Dossiê Globonews”, apresentado no canal a cabo, no final do ano passado, procurou no arquivo da Rede Globo, no Arquivo Nacional, nos arquivos da Polícia Federal e nada. Além de Geneton, outros cineastas e caçadores de imagens buscaram, e continuam buscando, há anos, filmes e VTs do autor de “Disparada”. Por enquanto, uma constatação se impõe: não resta praticamente nada pelo menos em solo brasileiro - dos registros cinematográficos ou televisivos da curta (1961-1968) carreira de Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, que primeiro se chamou Carlos Dias (um cantor de acento bossanovista) e depois optou, em homenagem ao pai, o médico José Vandregísilo, pelo nome artístico de Geraldo Vandré.

Antônio Venâncio garante, depois de buscas infindáveis, que “não existe” registro do Vandré cantando ‘Prá Não Dizer que Não Falei das Flores’ no FIC de 1968 Paranoia?

Teria a paranoia dos anos Médici levado emissoras de TV a destruir as imagens em movimento do artista paraibano? Onde estão as imagens de Vandré cantando nos festivais das TVs Excelsior, Record e Globo? Onde estão as imagens gravadas pela produtora de Dino Cazzola, no Aeroporto de Brasília, quando o artista regressou de seu exílio no Chile (com breves passagens por Peru, Argélia, Alemanha e França)? Onde estão as sobras do longa-metragem “Quelé do Pajeú”, lançado em 1969, de Ancelmo Duarte (1920-2000), que teve o cantor como ator secundário (interpretando um cangaceiro)? Ricardo Duarte, filho de Ancelmo, está empenhado em resgatar a obra completa do pai. Por enquanto, não encontrou nem uma cópia inteira do filme. Que dirá de suas sobras. O documentarista Cleisson Vidal, da produtora Terra Firme, está preparando documentário de longa-metragem sobre o cinegrafista ítalo-brasileiro Dino Cazzola (que chegou a Brasília em 1959 e lá faleceu em 1998). Cazzola integrou a geração de pioneiros dos cinejornais brasilienses e produziu o registro de histórico depoimento de Vandré, exigido pela Polícia Federal, em troca da permissão de seu regresso. O compositor já não suportava o exílio, estava deprimido e Santiago do Chile vivia os

Marcelo Machado buscou ajuda de dois grandes “caçadores de imagens”, Antonio Venâncio e Eloá Chouzal, ele no Rio, ela em São Paulo. Antônio Venâncio garante, depois de buscas infindáveis, que “não existe” registro do Vandré cantando ‘Prá Não Dizer que Não Falei das Flores’ no FIC de 1968. “Já vasculhei em diversas direções e não há um traço deste material”. “A TV Globo tem uma gravação dele já no começo dos anos de 1970, num estúdio na Alemanha, cantando esta música” (material mostrado no “Dossiê GloboNews”, de Geneton Moraes Neto).

“Incêndios, enchentes, falta de cuidados e de interesse reduziram nossa memória televisiva dos anos de 1960 a poucas horas de material”

derradeiros (e conturbadíssimos) dias do governo Allende. Vandré prestou seu depoimento à equipe de Dino Cazzola em julho de 1973. Menos de dois meses depois, em 11 de setembro, o general Pinochet depunha Salvador Allende. “Busco incansavelmente, nos últimos anos” – conta Cleisson Vidal – “os registros do depoimento que Vandré deu à equipe de Dino Cazzola, pois este é um dos momentos mais importantes da trajetória da produtora”. Apesar das buscas, Vidal não conseguiu encontrar nenhuma imagem. “Nestas alturas”, diz ele, “eu me daria por satisfeito se conseguisse ao menos o áudio para usar no documentário sobre o acervo de Dino Cazzola”. Jornais da época transcreveram trechos da fala do autor da “Marselhesa brasileira” (assim Millôr Fernandes definiu “Prá Não Dizer que Não Falei das Flores”): Vandré: “Olha, em primeiro lugar, eu acho que minhas canções de hoje são mais enunciativas que denunciativas. E eu espero integrá-las à realidade nova do Brasil, que espero encontrar em um clima de paz e tranquilidade. Mesmo porque a vinculação do meu trabalho, até hoje, com a utilização por qualquer grupo político, ocorreu sempre contra a minha vontade. Eu tratei que esses trabalhos estivessem sempre vinculados à realidade brasileira, em termos de melhor representar a cultura nacional”. Memória apagada?

Marília Santos, viúva do cineasta Roberto Santos, autor do longa “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (trilha sonora de Vandré), lembra que foram realizados “três programas com o compositor paraibano e o Quarteto Novo, na TV Record”. Coube a Vandré “interpretar um personagem chamado Zezinho Disparada, pois o programa nasceu do imenso êxito da toada nordestina “Disparada”, que dividiu o primeiro lugar, no Festival da Record (1966), com “A Banda”, de Chico Buarque”. Marília, que cuida do resgate da obra de Roberto Santos, não acredita que os programas tenham sido preservados no acervo da emissora. Não tem notícias nem de fragmentos do material. A mesma opinião tem o cineasta Marcelo Machado, que está finalizando documentário em longa-metragem sobre a Tropicália. “Não encontrei imagens em movimento de Vandré” – testemunha – “no material que acessei nos arquivos da TV Record, em especial trechos da final do Festival de 1966, uma eliminatória e as finais de 1967 e 1968”. O realizador lembra que “não existe muito material nas matrizes quadruplex (video-tape de duas polegadas) dos festivais”. E mais: “os rolinhos de filmes em 16 milímetros dos cinejornais de 1968 desapareceram todos”. Marcelo encontrou, “no Youtube, esta fonte inesgotável e informal, imagens de Vandré cantando “Arueira” em 1967, com o selo da Record”. Já as imagens em movimento de “Prá Não Dizer que Não Falei das Flores”, feitas para o Festival Internacional da Canção de 1968,

pela Rede Globo, “parecem não existir mais”. Até onde foram minhas pesquisas” – arremata - “só vi fotos fixas”. Por isto, “para ‘Proibido Proibir’, de Caetano Veloso, apresentada no mesmo festival, estou animando fotos”.

Venâncio observa “a recorrência/ repetição dos mesmos materiais em toda produção cinematográfica que se propõe a mostrar a repressão em 1968 Caçadores de imagens

Para levantar os registros audiovisuais do filme “Tropicália” (Vandré, se entrasse na narrativa, o faria na condição de antagonista do grupo tropicalista, já que filiava-se ao núcleo duro da MPB, aquele ligado às raízes nordestinas),

“Perdemos a maioria dos arquivos de TVs registrados nos anos de 1960”, lamenta o pesquisador. “O curioso é que a Globo tem o registro de ‘Sabiá’, de Tom Jobim e Chico Buarque, vencedora do FIC 1968. Na minha opinião, a perda da música favorita do público da badalada edição do FIC tem ligação direta com a ditadura militar. É possível que o medo tenha levado a emissora a apagar o registro”, diz Antônio Venâncio. O pesquisador conta que “uma outra emissora de TV (que não a Globo) em operação nos dias atuais dispõe de arquivo em película, no qual estão filmetes de 1963, 64, 65, 66, 67, ... 1969, etc. Mas do ano de 1968 não há um único rolinho de filme. Isto é sintomático, não?” Venâncio observa “a recorrência/ repetição dos mesmos materiais em toda produção cinematográfica que se propõe a mostrar a repressão em 1968. Notamos em todos os documentários, sejam de cinema ou TV, sempre com as mesmas imagens. No exterior – e isto demanda novas pesquisas e custos – existem algumas imagens diferentes e com qualidade muito melhor do que estas que vemos sempre nas produções nacionais”. O “caçador de imagens” lembra que “a culpa pela calamidade de nossos arquivos audiovisuais não é só da repressão dos governos militares”. “Incêndios, enchentes, falta de cuidados e de interesse reduziram nossa memória televisiva dos anos de 1960 a poucas horas de material”.

Poema sinfônico para a FAB Geraldo Vandré garante, desde que regressou do exílio, em 1973, nada ter contra as Forças Armadas de São Paulo (SP), especial para o Brasil de Fato Geraldo Vandré aperfeiçoa, há anos, composição de um poema sinfônico dedicado à Força Aérea Brasileira (FAB). Uma de suas versões foi mostrada, nos anos de 1990, no Memorial da América Latina, em São Paulo. O compositor garante, desde que regressou do exílio, em 1973, nada ter contra as Forças Armadas. Para comprovar esta avaliação, lembra que, na data de assinatura do AI-5 (13/12/1968), encontrava-se em excursão com o Quarteto Livre (não confundir com o Quarteto Novo, com o qual estava rompido), indo de Goiânia a Brasília, de carro. Depois de cancelar o show brasiliense, ele e os músicos (entre eles, Geraldinho Azevedo) regressaram, em automóvel particular, para São Paulo. “Se as Forças Armadas quisessem me prender, elas contariam com inúmeras barreiras na estrada para fazê-lo”, repete, há anos.

“Nem Caetano, nem Gilberto Gil, nem Chico Buarque conseguiu convergir/ canalizar tanto ódio no meio militar em torno de si quanto o Vandré” Caetano Veloso e Gilberto Gil, que foram presos no pós-AI-5, testemunham que as forças de repressão caçavam Vandré, sem descanso. O Coronel Octávio Costa (depois diretor da AERP – As-

sessoria de Relações Públicas da Presidência da República) publicou texto no Jornal do Brasil em que analisava o “teor subversivo” de cada verso de “Caminhando”. Seu “ensaio litero-musical” serviu para exacerbar os já exaltados ânimos da caserna. O jornalista Enock Byron de Quevedo, radicado em Brasília, testemunhou “o ódio” que o meio militar da época cultivava por Vandré. Seu testemunho: “servi ao Exército em 1970. Os versos de ‘Prá Não Dizer Que Não Falei das Flores’, totalmente antagônicos ao espírito ditatorial dominante, eram citados como exemplos da “conduta execrável de um brasileiro”. Servi à 3ª. Brigada de Infantaria, que ficava próximo do PIC (Plantão de Investigação Criminal). Na época o PIC era comandado pelo general Bandeira, um integrante da linha dura. Nem Caetano, nem Gilberto Gil, nem Chico Buarque conseguiu convergir/canalizar tanto ódio no meio militar em torno de si quanto o Vandré”. (MRC)

Busca de imagens Quem souber da existência de acervos com imagens de Geraldo Vandré poderá contatar o jornal Brasil de Fato, que repassará as informações aos cineastas e produtores empenhados em utilizá-las em seus filmes. Nossos contatos: (11) 2131 0800 ou pelo correio eletrônico: agencia@brasildefato.com.br


áfrica

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O mundo em processo de partilha LÍBIA Ataques ao país norte-africano dão força ao conceito clássico de imperialismo US Air Force

Renato Godoy de Toledo da Redação ENQUANTO ANALISTAS previam uma intervenção militar no Irã como a próxima jogada do imperialismo no xadrez geopolítico, uma onda de manifestações surpreendeu todas as expectativas. Hoje, as forças dos EUA, França e Reino Unido atacam militarmente a Líbia de Muamar Kadafi, após ganhar o respaldo do Conselho de Segurança da ONU. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) também entrou na ação militar. Sob o pretexto de proteger os civis contra os massacres promovidos por Kadafi, o “ocidente” vem tomando medidas drásticas e iguala-se a ele em termos de desrespeito aos direitos humanos da população líbia. Até o fechamento desta edição (no dia 22), cerca de 100 civis haviam sido assassinados pelas ações militares. Como era esperado, Kadafi não deixaria por menos. Assim que soube da resolução do Conselho de Segurança, tentou negociar uma trégua com os rebeldes, em troca de garantias de que não seria bombardeado por tropas estrangeiras. As forças de coalizão ignoraram seu pedido e iniciaram os bombardeios em 19 de março, um dia depois da resolução da ONU. O líder líbio convocou uma marcha até Benghazi, reduto dos rebeldes, colocando a população civil como escudo diante das aeronaves das forças de coalizão. O Brasil e a Alemanha, membros rotativos do Conselho de Segurança, abstiveram-se da votação acerca da intervenção militar na Líbia. Mesmo assim, o presidente dos EUA, Barack Obama, ordenou a deflagração da guerra contra a Líbia em território brasileiro. A atitude tem sido considerada acintosa pela esquerda brasileira. O Brasil já solicitou o cessar-fogo das tropas aliadas contra a Líbia. A diplomacia brasileira alega que pode haver massacre de civis no país.

Por trás dos interesses humanitários alegados pela coalizão, escondemse a grandeza econômica e geopolítica da Líbia

Militares da Força Aérea estadunidense verificam armamento antes de decolar em missão de ataque

mo um reflexo da crise econômica mundial, iniciada em 2008. “Os EUA estão numa ofensiva. Em especial no Oriente Médio. Quando entra em crise econômica, o imperialismo é mais agressivo”, aponta. “Cinismo”

Ouriques também considera “cínica” a atitude da coalizão contra a Líbia, já que boa parte desses países, como Itália e França, davam respaldo a Kadafi, em função de interesses financeiros. Aliás, o filho de Kadafi, Seïf Al-Islam, afirmou que a campanha presidencial de Nicolas Sarkozy foi financiada pelo governo líbio. O presidente francês silenciou so-

Petróleo e poder

Por trás dos interesses humanitários alegados pela coalizão, escondemse a grandeza econômica e geopolítica da Líbia. Ainda é cedo para dizer qual deve ser a inclinação política dos países do Norte da África, mas na configuração “pré-rebeliões” a Líbia é praticamente um enclave anti-EUA na região. O país faz fronteira com o Egito e com a Tunísia – países que recentemente fizeram suas revoluções, mas que, nos últimos anos, foram fiéis aliados dos estadunidenses. Para a Líbia somar-se ao grupo de países pró-EUA, Barack Obama já teria até o nome para substituir Kadafi: Mustafa Abdul Jalil, ex-ministro da Justiça, atualmente dirigente do Conselho Transitório Nacional Líbio, que controla rebeldes em Al Bayda. Jalil e seus homens armados não escondem que recebem apoio militar e financeiro dos EUA, via Egito. O opositor líbio já conta com a “simpatia” dos governos das forças de coalizão e promete despontar como um favorito para liderar uma “nova Líbia”, mais leal aos interesses econômicos estadunidenses.

Para a Líbia somar-se ao grupo de países pró-EUA, Barack Obama já teria até o nome para substituir Kadafi: Mustafa Abdul Jalil, ex-ministro da Justiça Para o professor de economia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Nildo Ouriques, o conceito de imperialismo – muitas vezes apontado como ultrapassado – é fundamental para entender a agressão militar à Líbia. “O que há é um conflito interno no país, entre um grupo opositor e outro governista. É uma agressão imperialista que ainda faz parte do processo de partilha do mundo. O respaldo do Conselho de Segurança da ONU não muda o caráter imperialista da agressão. Aliás, o Conselho de Segurança tem uma importância muito maior do que a própria Assembleia Geral”, analisa. Do ponto de vista econômico, a ação militar na Líbia pode ser vista ainda co-

bre o assunto. Já Al-Islam afirmou que vai revelar detalhes do assunto caso a agressão militar continue.

“Se amanhã um governo que tenha soberania popular assumir a Líbia após a queda de Kadafi, o governo dos EUA farão uma oposição violenta a este” “Todos os países da coalizão tiveram relações com os países da região – Líbia, Tunísia e Egito. E apoiavam esses regimes até dois meses atrás. Se amanhã

um governo que tenha soberania popular assumir a Líbia, após a queda de Kadafi, o governo dos EUA farão uma oposição violenta a este”, aponta Ouriques. O economista considera que o governo de Kadafi, apesar de tirano e déspota, possui uma soberania política em relação aos interesses dos EUA. Osvaldo Coggiola, professor de história da Universidade de São Paulo (USP), salienta que há poucos meses ninguém tinha coragem de chamar o tunisiano BenAli e o egípcio Mubarak de “ditadores”. “Agora, virou moda, todo mundo chama. Por que, há quatro meses atrás, a Folha de S. Paulo, por exemplo, não chamava eles de ‘ditadores’?”, questiona.

Presença militar deve ser duradoura US Navy

Para historiador, região será palco de divergências entre potências da Redação O historiador da Universidade de São Paulo (USP), Osvaldo Coggiola, aponta que a oposição ao líder líbio Muamar Kadafi tornou-se uma unanimidade no cenário internacional, com algumas exceções, como o presidente venezuelano Hugo Chávez. No entanto, está presente na região uma ampla diversidade de interesses que pode acirrar as disputas no local. Coggiola relata que já existe um movimento da Itália de Silvio Berlusconi, por exemplo, de expatriar para outros países europeus a imensa quantidade de refugiados líbios que chegam às suas bases militares. A França, do presidente Nicolas Sarkozy, com avaliação em franca decadência, promete cercar a Líbia com submarinos nucleares. Enquanto isso, países como a Alemanha e o Brasil reprovam a ação militar no país norte-africano. E China e Rússia, apesar de contrários a Kadafi, têm outros interesses na região. Soma-se a esse cenário a praticamente vizinha Israel, com setores internos defendendo abertamente um ataque nuclear ao Irã. Crise militar

Esses fatores, segundo o historiador, levam a crer que a crise financeira internacional tornou-se uma crise militar que não deve ter curto prazo de duração. Para Coggiola, Barack Obama assumiu o governo estadunidense com uma opinião pública contrária à excessiva presença militar dos EUA no mundo. Porém, o presidente não conseguiu livrar-se dos “abacaxis” e ampliou sua presença no Afeganistão e agora pode até desembarcar na Líbia. “Os ataques contra a Líbia são o primeiro capítulo de uma nova etapa de crise e de conflagração militar no Oriente Médio. Não se trata de um con-

EUA ampliaram presença no Afeganistão e podem desembarcar na Líbia

flito periférico. Ele está se dando numa região que não é o centro econômico do mundo, mas as principais potências estão envolvidas”, aponta.

O caráter político pró-EUA da resolução do Conselho de Segurança fica mais evidente quando este não discute uma intervenção no Bahrein O fato de a diplomacia estadunidense ter vencido a batalha pró-intervenção no Conselho de Segurança da ONU, segundo Coggiola, não significa que esta seja mais habilidosa do que a da era Bush – que não conseguiu apoio para a invasão do Iraque, em 2003. “Não dá pra considerar como habilidosa uma diplomacia que manifestou apoio a Mubarak quatro dias antes de sua queda. Podemos dizer que a política externa de Obama tem sido mais ‘inteligente’, que tenta fazer mais política com governos que Bush não tinha diálogo. E isso, de certa forma, até favoreceu as manifestações nos países árabes. O povo acreditava que os EUA não iriam in-

tervir contra as manifestações no Egito, por exemplo. E isso favoreceu as mobilizações”, avalia. E o Bahrein

O caráter político pró-EUA da resolução do Conselho de Segurança fica mais evidente quando este não discute uma intervenção no Bahrein, monarquia do Oriente Médio que vem massacrando civis que exigem o fim do governo local, controlado há mais de 40 anos pela mesma família. O Bahrein, farto em petróleo, possui forte alinhamento com os EUA. Outro fator que não foi condenado pelo Conselho de Segurança foi a invasão da Arábia Saudita ao país – a mando da própria monarquia local, a fim de reprimir ainda mais os protestos. A Arábia Saudita, que também vive uma ditadura, é o principal aliado econômico e político dos estadunidenses no Oriente Médio. Para Osvaldo Coggiola, o principal motivo do envio de tropas ao Bahrein é evitar que as manifestações nos países vizinhos contagiem a Arábia Saudita. “A Arábia Saudita é o país mais retrógrado da região, mas que possui a maior economia e importância geopolítica, por conta do petróleo. Se as tropas aliadas vierem a desembarcar na Líbia, o principal motivo dessa ação seria preservar o regime saudita”, aponta. (RGT)


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áfrica

Guerra “humanitária” para o controle do petróleo e do urânio WEF/CC

OPINIÃO Aos olhos dos estrategistas franceses, algo deveria ser feito para impedir a concretização de mais acordos entre as estatais petrolíferas líbias e chinesas Achille Lollo A DESASTROSA performance das centrais nucleares no Japão e a subida dos preços do petróleo reacendeu, nos Estados Unidos, Grã Bretanha e, sobretudo, França, a cobiça em relação ao controle geoestratégico dos países árabes e africanos produtores de gás, petróleo e urânio. Uma cobiça que visa, também, impor modelos institucionais ocidentais, no momento em que a maior parte dos países árabes “amigos” (Tunísia, Egito, Iêmen, Bahrein, Jordânia) entrou em crise devido às revoltas populares. Uma ocasião de ouro para os serviços de inteligência franceses e britânicos que, nesse contexto, garantiram aos chefes das 12 tribos da Cirenaica [região oriental da Líbia, sob controle dos rebeldes] que os países da Otan e alguns árabes apoiavam a revolta contra Kadafi e que – logo após o Conselho de Segurança das Nações Unidas assinar a declaração para criar uma “no fly zone” na Líbia – os exércitos do Ocidente se juntariam para destituir militarmente o regime do coronel. O presidente francês, Nicolas Sarkozy

O imperialismo de Sarkozy

Os recentes sucessos dos diretores da estatal petrolífera chinesa CNPC (China National Petroleum Corp.) nas negociações com os dirigentes da estatal petrolífera líbia NOC (National Oil Corp.) fizeram com que, em janeiro, o número de técnicos da empresa chinesa no país norte-africano chegasse a 30 mil, enquanto os funcionários da British Petroleum (britânica) e das francesas Total e ELF não eram nem 100. Essa realidade abria caminho para a assinatura, entre chineses e líbios, de novos acordos não só no campo das infraestruturas petrolíferas, mas também na mineração do urânio nas areias do deserto da Cirenaica.

Em termos geoestratégicos, eles [os acordos entre as estatais chinesas e líbias de petróleo] favoreciam o reforço do regime de Kadafi Portanto, aos olhos dos estrategistas do Quai D’Orsay [Ministério das Relações Exteriores da França], algo deveria ser feito para impedir a concretização de mais acordos entre a NOC e a CNPC. Em termos geoestratégicos, eles favoreciam o reforço do regime de Kadafi, sobretudo se a mineração do urânio e o refino do petróleo fossem realizados diretamente na Líbia, com as novas refinarias construídas pelos chineses – algo que abalaria fortemente a imagem tecnológica das multinacionais francesas e britânicas no país e em todo o mundo árabe e africano, e enalteceria, por outro lado, a seriedade e a capacidade dos chineses. Foi nesse contexto que Sarkozy – diante da incredulidade do mundo inteiro – recebeu dois emissários do desconhecido Conselho Provisório Líbio para confirmar que “a França reconhecia o comitê dos insurrectos como o novo governo da Líbia, retirando a Kadafi e seu governo a legitimidade da soberania exercida durante 42 anos”. David Cameron, primeiro-ministro britânico, logo apoiava a iniciativa de Sarkozy e autorizava o envio de “especialistas” da SAS [Serviço Aéreo Especial, na sigla em inglês] para treinar os insurrectos, além de organizar – juntamente aos homens da CIA – uma rede local de agentes aptos a dar todas as informações sobre as instalações militares do exército de Kadafi e suas movimentações. Uma rede que seria fundamental para comunicar aos navios da Otan a localização dos objetivos a serem atingidos pelos foguetes tomahawk e as bombas “inteligentes” dos caças F16 e dos Eurofighter 200 Typhoon. É necessário dizer que para manter sua liderança sobre os revoltosos de Benghazi e, assim, apresentar-se nas próximas eleições como o herói da “grandeur de la France” (grandeza imperial da França), o presidente Sarkozy, às 15h de 19 de março – isto é, antes da

decisão dos chefes de estados – reunidos na Cúpula de Paris para definir as características da operação “Odisseia na madrugada” contra a Líbia – ordenava a seu Estado-Maior iniciar o ataque unilateralmente. Logo, 20 caças-bombardeiros Eurofighter 200 Typhoon deixavam suas bases na Córsega rumo a Trípoli. Às 17h45, o coronel Thierry Burkhard avisava o ministro das Relações Exteriores, Alain Juppé, que várias bombas haviam atingido a residência de Kadafi em Trípoli, enquanto em Benghazi os bombardeios haviam conseguido bloquear o ataque do exército de Kadafi contra a última fortaleza dos insurrectos. Às 18h30, contrariado pela decisão unilateral de Sarkozy – que, em termos de direito internacional, pode desqualificar a resolução 1973 do Conselho de Segurança – o Pentágono exigiu o comando das operações. Teve início a movimentação, nas águas territoriais líbias, de cinco submarinos a propulsão nuclear e do britânico Trafalgar. Estes, com a cobertura de mais 25 navios de guerra dos países da Otan, lançaram, às 21h45, a primeira bateria dos 112 foguetes tomahawk preparados para alvejar 20 objetivos militares. Quase ao mesmo tempo, 60 caçasbombardeiros britânicos, canadenses, belgas, espanhóis e dinamarqueses partiam das bases italianas de Sigonella, Pantelleria, Trapani e Decimomannu rumo à Líbia. Outros 60 aviões estadunidenses decolavam das porta-aviões Barry e Stout e bombardeavam Trípoli.

É preciso sublinhar que a tentativa do general Abdul Fattah Younis de provocar um motim das tropas no momento em que havia manifestações contra o regime de Kadafi em Trípoli falhou clamorosamente A resistência de Kadafi

Diferentemente do que pensava a secretária de Estado estadunidense Hillary Clinton – que, com sua reconhecida arrogância imperial, havia afirmado: “Kadafi perdeu a legitimidade, ele tem que ir embora e vamos apoiar todos aqueles que se manifestarem contra ele” – Kadafi não fugiu nem se exilou. A posição firme e desafiadora do coronel dá mostras de duas realidades políticas que ela e Sarkozy ignoraram: 1) o apoio a Kadafi do Conselho Tribal, que reúne a maioria das tribos líbias; 2) o fato de que o exército permaneceu, em sua maioria, fiel ao governo. Aliás, é preciso sublinhar que a tentativa do general Abdul Fattah Younis de provocar um motim das tropas no momento em que havia manifestações contra o regime de Kadafi em Trípoli falhou

clamorosamente. Por isso, monitorado por agentes franceses e britânicos, ele se juntou aos homens do Conselho Provisório Líbio, onde agora exerce o cargo de “comandante militar dos insurrectos”. Outro elemento que favoreceu a resistência de Kadafi é a própria história étnica da Líbia. Na verdade, a concentração demográfica é relevante apenas nas regiões banhadas pelo mar Mediterrâneo, isto é, onde se encontram as grandes cidades e os mais importantes portos, terminais e refinarias petrolíferas (Trípoli, Benghazi, Sirte, Misurata, Rãs Lanuf, Brega e Ajdabiya). Além disso, são determinantes, do ponto de vista político, as profundas divisões étnicas que permanecem intactas há quase um século. Por isso, há, ainda, 100 tribos, das quais as mais numerosas e influentes são as 30 da região de Tripolitânia que, desde 1959, apoiam a revolução de Kadafi, a criação dos Conselhos Populares (parlamentos regionais e municipais) e o Estado Jamairya Socialista Árabe.

de “cruzados colonialistas que serão esmagados pelo povo, como aconteceu a Mussolini e a Hitler”.

Há, ainda, 100 tribos, das quais as mais numerosas e influentes são as 30 da região de Tripolitânia que, desde 1959, apoiam a revolução de Kadafi

É preciso lembrar que Kadafi repassou aos 6 milhões de líbios parte dos lucros provenientes da venda de petróleo e gás, implementando uma real distribuição de renda Por sua parte, a Cirenaica ficou controlada por 12 grandes tribos, saudosistas do rei Idris – contra o qual Kadafi fez o golpe de Estado em 1959 – e que sempre se mantiveram hostis ao governo de Trípoli, sonhando constituir um Estado próprio, uma vez que 60% das reservas de petróleo e de gás estão localizadas no deserto da região. Nesse contexto, é preciso lembrar que Kadafi gastou muito dinheiro na defesa e na ajuda aos movimentos revolucionários palestinos e repassou aos 6 milhões de líbios parte dos lucros provenientes da venda de petróleo e gás, implementando uma real distribuição de renda. Além disso, criou um sistema completo de infraestruturas que elevou bastante os padrões de vida da população, tanto que, em janeiro de 2011, não havia desempregados entre os líbios, enquanto no Departamento de Imigração estavam registrados 1,8 milhão de trabalhadores estrangeiros, legalmente empregados, e outros 800 mil eram considerados temporários. Tudo isso fez com que Kadafi pudesse passar à ofensiva, reconquistando em pouco tempo os terminais petrolíferos de Rãs Lanuf, Brega e Ajdabiya e as importantes cidades de Zentam, Sirte, Misurata, além de estabelecer um cerco à cidade de Benghazi. Enfim, se considerarmos que as bombas e os foguetes estadunidenses “ainda” não mataram Kadafi, é claro que se fala em “vitória” na TV Líbia, que transmite a cada dez minutos seus apelos contra os invasores, a quem chamou

O papel da China

Neste momento, a severa condenação formulada pela China, por meio do editorial do jornal do Partido Comunista, e as críticas, em Moscou, do primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, estremeceram as posições unilaterais do bloco imperial. Por isso, a proposta de mediação apresentada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, e, sobretudo, a figura internacionalmente reconhecida de Lula começam a receber uma maior atenção por parte da Liga Árabe. De fato, seu secretário-geral, Amr Moussas, pediu que o cessar-fogo fosse geral, isto é, não só para o exército de Kadafi, mas também para as tropas do Conselho Provisório Líbio e, sobretudo, para os ocidentais. As primeiras indiscrições apontam que na próxima reunião extraordinária da Liga Árabe será pedida a retirada do apoio à resolução 1973 da ONU caso Estados Unidos, França, Grã Bretanha e Itália decidam continuar a guerra, como aconteceu no Iraque e em Kosovo, até o esmagamento físico do regime e do próprio Kadafi. Por isso, espera-se um novo posicionamento da China que, depois de ter sublinhado sua abstenção negativa no Conselho de Segurança das Nações Unidas (quando foi votada a resolução 1973 para uma “no fly zone” na Líbia), sempre criticou a “pressa” dos Estados Unidos e de seus aliados contra Kadafi, enquanto nada fizeram para salvar os civis de Gaza.

A proposta de mediação apresentada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, e, sobretudo, a figura internacionalmente reconhecida de Lula começam a receber uma maior atenção por parte da Liga Árabe Além disso, poucas agências divulgaram que a China enviou ao secretáriogeral da ONU, Ban Ki Moon, um alerta sobre o risco de que a operação “Odisseia na madrugada” venha a desqualificar a imagem do organismo e de seu Conselho de Segurança perante o mundo árabe e o Terceiro Mundo em geral. Achille Lollo é jornalista italiano, editor do programa TV “Quadrante Informativo”


américa latina

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Memórias da guerra Felipe Canova

EL SALVADOR Às vésperas da visita de Barack Obama ao país, comunidade relembrou massacre perpetrado por forças militares financiadas pelos Estados Unidos Sílvia Alvarez de Santa Marta (el Salvador) CHE GUEVARA, Jesus Cristo e mártires da guerra civil dividiam o mesmo altar, na comunidade de Santa Marta, departamento de Cabañas, em El Salvador. Ao redor deles, concentravam-se centenas de pessoas cujas histórias de vida estão intensamente ligada a esses ícones. A data era 18 de março de 2011, dia de relembrar, pelo 30°ano, o massacre do Rio Lempa. Dina Cabrera, com a ajuda de um simples megafone, convocava os homens, mulheres, crianças e idosos a formarem filas. Ia começar a via crúcis que, entre rezas e músicas, contaria a história da luta de uma comunidade camponesa que era base de apoio da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) durante a guerrilha. “Povo que esquece sua história, está condenado a repeti-la” era o lema da procissão. Santa Marta foi vítima da brutal repressão do exército salvadorenho, apoiado e treinado pelos Estados Unidos. Nos anos 1980, o país norte-americano aprovou um programa de assistência militar à nação da América Central que alcançava 5,7 milhões de dólares, segundo dados do livro El Salvador, suas histórias e suas lutas, de ílcar Figueroa Salazar.

5mil soldados invadiram a comunidade Santa Marta em 16 de março de 1981

Invasão

Não havia muitos espectadores nem imprensa nacional acompanhando a via crúcis. Eles eram bem-vindos, mas o evento era mesmo para a própria comunidade. “É para que nossos filhos e netos, que nasceram depois do massacre e da guerra, conheçam as razões pelas quais seus familiares foram assassinados. Foi por defender um povo, foi para que hoje tenhamos onde viver e onde cultivar a terra”, explicou Dina.

Estados Unidos. Mas precisávamos lutar. Havia um povo dependendo da gente, nossos familiares também”, relatou, enquanto mostrava uma coleção de relíquias da guerra que reúne em sua casa: fragmentos de bombas, granadas e armas. Seu objetivo é, um dia, montar um museu da comunidade.

Santa Marta foi vítima da brutal repressão do exército salvadorenho, apoiado e treinado pelos Estados Unidos Conta a via crúcis que em 16 de março de 1981 um batalhão do Exército salvadorenho, com 5 mil soldados, sob o comando do coronel Ochoa Pérez, invadiu a comunidade para dar início a uma operação do tipo “terra arrasada”. Tal operação, ensinada pela cartilha da CIA, fazia parte da estratégia do governo de dizimar a população civil que apoiava e sustentava a guerrilha, promovendo um clima de medo e terror. “O objetivo era não deixar vivo um animal, uma pessoa, uma casa, um grão. Era para destruir tudo”, contou Gerardo Arturo, que, na época, tinha 25 anos e desde 1977 participava do movimento guerrilheiro. “Depois de três dias de combates, na linha de defesa, nos vimos obrigados a levar a população a um lugar chamado La Peña. Ali nos concentramos, milhares de pessoas”, contou. Nessa linha de defesa, também combateu Alexandro Laines, mais conhecido por Gualter, sua identidade de guerrilheiro. “Estávamos no início da guerrilha, não tínhamos muita experiência. Só contávamos com 40 armas, para lutar contra um batalhão treinado na Escola das Américas e financiado pelos

Luta desigual

Segundo o ex-combatente, cada guerrilheiro tinha que lutar contra 30 soldados. “Possuíamos somente armas semiautomáticas. Não podíamos atirar sem pensar, cada tiro tinha que ser certeiro, enquanto eles atiravam até para o céu. Em três dias, as tropas do governo sofreram cerca de 650 baixas. E conseguimos pegar sete armas deles. Não parece muita coisa, mas para a gente que estava começando era muito”, lembrou.

“O objetivo era não deixar vivo um animal, uma pessoa, uma casa, um grão. Era para destruir tudo”, contou Gerardo Arturo Rompido o cerco, a população seguiu para a fronteira com o propósito de refugiar-se em Honduras. Ao chegar ao Rio Lempa, na fronteira dos dois países, o Exército salvadorenho, que esperava as famílias no local, abriu fogo, iniciando o massacre. “E quando viram que as pessoas estavam cruzando o rio, deram uma ordem ao chefe da represa 5 de Novembro para que abrisse as comportas, subindo o nível da água e dificultando a travessia. Aí morreu muita gente, principalmente crianças e idosos”, recordou Gualter.

Edital de Convocação Assembleia Geral Ordinária e Extraordinária Convocamos, nos termos do Estatuto em vigor, os sócios da COOPERATIVA DE TRABALHO EM ASSESSORIA A EMPRESAS SOCIAIS DE ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA – COOPERAR, sociedade cooperativa de natureza civil, inscrita no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda sob o n.º 07.899.001/0001-00, com endereço na Alameda Eduardo Prado, 676, Campos Elíseos, São Paulo, Estado de São Paulo, para participarem da ASSEMBLÉIA GERAL ORDINÁRIA e EXTRAORDINÁRIA, que se realizará em sua sede, no dia 07 de abril de 2011, às 9:00 horas, para tratar dos seguintes pontos de pauta: ORDEM DO DIA: 1º) Admissão, demissão de cooperados; 2º) Eleição da diretoria colegiada; 3º) Eleição do Conselho Fiscal; 4º) Avaliação do exercício de 2009, 2010; 5º) Análise dos balanços anuais de 2009, 2010; 6º) Parecer do Conselho Fiscal dos exercícios 2009, 2010; 7º) Destinação das sobras ou rateio das perdas dos exercícios de 2009, 2010; 8º) Análise do Plano de Metas para o novo período; 9º) Análise do Orçamento para o novo período; 10º) Fixação de honorários; e 11º) Outros assuntos de interesse dos cooperados. – Número de associados aptos a votar:58 Elenar José Ferreira Coordenador Geral Moacyr Urbano Villela Coordenador de Finanças Edivar Turossi Coordenador Secretário São Paulo, 22 de março de 2011.

Procissão caminha rumo a comunidade de Santa Marta em memória do massacre do Rio Lempa

No meio da batalha, um dia antes de atravessarem o Rio Lempa, nasceu o primeiro filho de Dina Cabrera. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram durante a travessia, mas Dina perdeu quatro parentes, entre eles o filho recémnascido, intoxicado pelos gases das bombas que eram lançadas de helicópteros contra a população. Apesar da forte repressão, a comunidade de Santa Marta conseguiu atravessar o rio, deixando para trás centenas de mortos. “Eu estive passando gente [ajudando a atravessar] das cinco da manhã até às cinco da tarde. Usávamos tocos de bananeira. Tive que parar porque me davam cãibras”, contou o ex-guerrilheiro Gerardo.

Ao chegar ao Rio Lempa, na fronteira dos dois países, o Exército salvadorenho, que esperava as famílias no local, abriu fogo, iniciando o massacre Solidariedade e repressão

Ao chegar a Honduras, seguiu o massacre. O Exército hondurenho, combinado com o salvadorenho, abriu fogo contra a população exausta, causando mais mortes. “Mas o povo hondurenho nos recebeu muito bem. Com a ajuda deles e da solidariedade internacional, principalmente das igrejas, conseguimos nos recuperar” relatou Gerardo. Dina também é grata e solidária à população de Honduras. “Quando a gente mais necessitou, eles nos deram a mão. Por isso, a gente sente muito por esta ditadura pela qual está passando este povo. Esperamos que sejam fortes. E, se precisarem, nem que seja com tortilhas e feijão, vamos recebê-los e dar apoio”, afirmou, referindo-se ao processo em que vive o país vizinho desde o golpe civil-militar de 2009, que depôs o presidente Manuel Zelaya. No entanto, os seis anos que passaram lá não foram fáceis. Acampados na região de Mesa Grande, viviam, nas pa-

lavras de Gerardo, numa prisão sem paredes. Estavam cercados pelo Exército hondurenho, sem poder voltar para seu país de origem. Porém, com a ajuda das igrejas, desenvolveram um processo de educação popular e também aprenderam alguns ofícios, como mecânica e primeiros-socorros. Nenhuma das opções de regresso oferecida pelo ONU – migrar para um terceiro país, pedir a nacionalidade hondurenha ou aceitar a repatriação individual – satisfazia os acampados. Os salvadorenhos, apesar da guerra, queriam voltar a Santa Marta do jeito que saíram: em comunidade. Regressaram em 10 de outubro de 1987. A repressão continuava, mas, dessa vez, contavam com uma guerrilha mais preparada e com a comunidade internacional atenta. Santa Marta hoje

“Quando a gente saiu daqui, os milhos e grãos que plantávamos e colhíamos era para os latifundiários. Para a gente, só restava o trabalho, o suor. Então, essa revolução, essa guerra serviram para que não vivêssemos mais sob os pés dos ricos”, comemora Dina. Com a ajuda de doações internacionais, a comunidade Santa Marta é, hoje, dona de suas terras, em um título coletivo. Com o esforço e a organização comunitária, construíram escolas, posto de saúde e uma rádio com alcance em todo o departamento de Cabañas.

Com a ajuda de doações internacionais, a comunidade Santa Marta é, hoje, dona de suas terras, em um título coletivo Hoje, são 5 mil habitantes, que compartilham a terra nessa comunidade camponesa cheia de histórias. E ainda cheia de luta. Além do esforço de manter viva sua memória e seus mártires, Santa Marta trava agora uma guerra contra empresas estadunidenses que querem extrair minérios em Cabañas. Os inimigos são os mesmos, armados com bombas ou com dólares.

Mártir da mesma luta de Santa Marta (El Salvador) Conhecer a presença dos elementos religiosos na celebração do massacre do Rio Lempa é essencial para entender a formação política do povo salvadorenho. Essa religiosidade mobilizadora tem sua origem nas transformações do pensamento social da Igreja Católica, expressas pela Teologia da Libertação que, nos anos de 1960, teve bastante incidência na comunidade Santa Marta e em várias outras do país, convertendo-se num dos principais elementos da organização dos camponeses. No dia seguinte à via crúcis, um ônibus saiu de Santa Marta rumo à capital San Salvador. Agora, era hora de se juntarem às milhares de pessoas que celebravam, em procissão, um grande mártir salvadorenho, o arcebispo monsenhor Oscar Arnulfo Romero. Em mo-

mentos de acirramento da luta de massas, o religioso chegou a defender o “direito legítimo à violência insurrecional”.

“Deus, o que quer Obama aqui?”, questionava um seguidor de Romero Monsenhor Romero foi assassinado por um atirador de elite do Exército salvadorenho, treinado na Escola das Américas, enquanto celebrava uma missa, em 24 de março de 1980. O presidente estadunidense Barack Obama, quando falou da passagem por El Salvador, prevista para os dias 22 e 23, havia manifestado publicamente a intenção de visitar o túmulo do arcebispo. “Deus, o que quer Obama aqui?”, questionava um seguidor de Romero, durante a procissão. (SA)


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internacional

Fukushima: ganância e negligência OPINIÃO O governo japonês atrasou as medidas de emergência nuclear para proteger os lucros da Tepco, a proprietária da usina Fotos: Reprodução

Mike Head AGORA ESTÁ CLARO que o o governo do primeiro-ministro japonês Naoto Kan e a Tokyo Electric Power Company (Tepco), proprietária da danificada usina nuclear de Fukushima, demoraram a tomar medidas essenciais para debelar a emergência no local com o objetivo de proteger os investimentos da empresa. Há, também, muitas evidências de que o abafamento de informações levado adiante pela dobradinha governo-Tepco vem continuando ao longo da crise em curso. Mais de uma semana depois do terremoto e do tsunami que atingiram o país, a situação na usina continua grave, apesar de dias de bombeamento de água e outras atividades que expuseram os trabalhadores da unidade e os bombeiros a níveis extremos de radioatividade. Especialistas em energia nuclear alertaram que a restauração da força em algumas unidades de Fukushima no dia 20 e a colocação de dois outros reatores em “cold shutdown” [em que o líquido refrigerante está a pressão atmosférica e a temperatura está abaixo de 90º C] não cessou necessariamente o perigo. “A situação continua muito séria”, afirmou a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) em uma coletiva de imprensa no dia 20. Proteger o investimento

No mesmo fim de semana, o Wall Street Journal relatou que a Tepco considerou utilizar a água do mar para resfriar um dos seis reatores da usina na manhã do dia 12, o dia posterior ao terremoto, mas demorou até o período da noite para fazê-lo e só utilizou o mesmo procedimento em outros reatores depois de um dia. A preocupação da empresa era proteger seu investimento de longo prazo no complexo de Fukushima, pois a água do mar pode corroer uma reator nuclear, deixando-o permanentemente inoperável. A Tepco “hesitou porque tentou proteger seus ativos”, disse à publicação Akira Omoto, um ex-executivo da empresa e membro da Comissão de Energia Atômica do Japão. Uma autoridade governamental declarou: “esse desastre é 60% causado pelo homem. Eles falharam na sua reação inicial. É como se a Tepco tivesse derrubado e perdido uma moeda de 100 ienes enquanto tentava pegar uma moeda de 10 ienes.”

A preocupação da empresa era proteger seu investimento de longo prazo no complexo de Fukushima, pois a água do mar pode corroer uma reator nuclear, deixando-o permanentemente inoperável Devido ao fato de o governo ter deixado a responsabilidade de dar uma resposta à emergência nas mãos de uma empresa privada – a quarta maior empresa de energia do mundo – os esforços oficiais também vieram com atraso. Bombeiros e recursos militares não foram utilizados nas operações de resfriamento de maneira substancial até o dia 16, depois que quatro dos seis reatores já haviam sofrido danos e quando os outros dois mostravam sinais de aquecimento. Um porta-voz militar afirmou que as Forças Armadas não agiram porque não tinham sido requisitadas pela Tepco. Outra evidência indica que o complexo de Fukushima já havia sido danificado pelo terremoto de magnitude 9, antes que o tsunami tivesse inundado os geradores de emergência.

Vista aérea das plantas nucleares de Fukushima

taram que tal liberação seria maior do que a das explosões anteriores porque mais combustível nuclear havia se degradado. Elas disseram que o processo envolveria a emissão de uma densa nuvem com iodo, krypton e xênon. No mesmo dia, mais tarde, a Tepco suspendeu temporariamente tal plano. Hikaru Kuroda, um gerente da empresa, disse que a temperatura no interior do reator atingiu 300º Celsius, mas se estabilizou depois do contínuo bombeamento de água do mar. Contaminação

No dia 19, os riscos à saúde humana vieram à tona quando o ministro da Saúde japonês informou que quantidades anormais de material radioativo haviam sido detectadas em espinafre cultivado a cerca de 110 quilômetros ao nordeste de Tóquio. O material, iodo131, também foi detectado no leite de uma fazenda de gado a cerca de 50 quilômetros da usina. Mais tarde, o ministro da Ciência afirmou que uma substância radioativa havia sido detectada na água de torneira de cinco municípios vizinhos. O porta-voz do governo Yukio Edano insistiu que a quantidade de material detectado não afetaria imediatamente a saúde humana, mas especialistas alertaram que mesmo traços de radiação podem causar danos a crianças. Um oficial da AIEA, Gerhard Proehl, afirmou à imprensa que os níveis de iodo-131 no leite eram até 15 vezes maiores que o nível adequado para crianças. Notícias sobre a contaminação geraram preocupações entre a população, de que o governo tinha falhado em fornecer informações imediatas e completas sobre o início do desastre nuclear. “O maior problema é que o governo e a mídia não nos dão uma visão geral sobre os acontecimentos”, disse Takamasa Edogawa, 76, ao Los Angeles Times enquanto esperava na fila do lado de fora de um supermercado de Tóquio.

Garantias falsas

Kazuma Yokota, um inspetor de segurança da Agência Japonesa de Segurança Nuclear e Industrial (Nisa) que estava na usina no momento do terremoto, disse ao Wall Street Journal que ele se enfiou debaixo de uma mesa quando o choque inicial quebrou as paredes. Depois, o inspetor se dirigiu a seu escritório de monitoramento, distante 15 minutos de carro. “Não havia energia, telefone, fax, internet”, disse. Essa perda de energia e de comunicação mostra que a usina não foi construída para aguentar um terremoto de grandes proporções, apesar dos anos em que a Tepco e sucessivos governos japoneses deram garantias do contrário. Mesmo assim, a empresa continua no controle da resposta à emergência, exatamente como a British Petroleum no desastre do derramamento de óleo no golfo do México no último ano. No dia 20, a Tepco informou um aumento de pressão em torno do reator 3 – que contém plutônio altamente tóxico – forçando os engenheiros a considerar a liberação de mais material radioativo na atmosfera. As autoridades aler-

Mayumi Mizutani, que estava à procura de água engarrafada, disse ao Associated Press que estava preocupada com o neto de dois anos que a visitava após a descoberta de iodo radiativo na água de torneira de Tóquio. Ela disse temer que a criança possa ter câncer. “É por isso que usarei esta água o máximo que puder.”

Essa perda de energia e de comunicação mostra que a usina não foi construída para aguentar um terremoto de grandes proporções Negligência

Mais evidências da responsabilidade da Tepco e do governo nessa catástrofe emergiram. Autoridades admitiram ter dado iodeto de potássio – que ajuda a reduzir o risco de câncer na garganta – a pessoas que vivem no raio de 20 quilômetros de Fukushima somente três dias depois de uma explosão que deveria ter desencadeado uma distribuição imediata. Kazuma Yokota, uma autoridade da área de segurança, afirmou: “Deveríamos ter tomado e anunciado essa decisão mais cedo. É verdade que não avaliamos que o desastre teria essas proporções.” Dez dias antes do terremoto, a Tepco submeteu um relatório da Nisa, o órgão regulador do setor, admitindo ter falhado na inspeção de 33 peças de equipamentos nos seus seis reatores de Fukushima. Inspetores vinham falsificando registros por pelo menos 11 anos, fingindo ter feito inspeções minuciosas enquanto, na verdade, as haviam realizado apenas superficialmente, disse a Tepco. Além disso, as inspeções, que foram voluntárias, tampouco cobriram outros dispositivos relacionados aos sistemas de resfriamento, incluindo os motores de bombeamento de água e geradores a diesel. “Planos de inspeção de longo prazo e controles de manutenção foram inadequadas”, concluiu a Nisa em um relatório divulgado dois dias depois. Mesmo assim, a agência deu à Tepco até 2 de junho para elaborar um plano corretivo. Um oficial da Nisa que não quis se identificar disse à Agência France-Presse: “Não podemos dizer que os lapsos listados no relatório [de 28 de fevereiro] não tiveram influência sobre a cadeia de eventos que levou à atual crise.”

Histórico comprometedor

Técnicos testam níveis de radioatividade em criança

Está evidente agora que o histórico da Tepco em desprezar exigências mínimas de segurança, falsificar relatórios destinados aos órgãos reguladores e abafar os potenciais desastres nucleares, com a ajuda de um governo atrás do outro, continuou o mesmo até a catástrofe de Fukushima. Isso apesar da suposta intervenção governamental em ocasiões anteriores, incluindo em 2002, quando a Tepco admitiu fabricar mais de 200 relatórios de segurança com retroatividade até 1993, e em 2007, quando um terremoto de menor intensidade – 6.8 graus – desligou a usina nuclear de Kashiwazaki-Kariwa, a maior do mundo, causando mais

vazamento de radiação do que a Tepco inicialmente sabia. As sucessivas tentativas da Tepco e do governo de Naoto Kan de minimizarem a amplitude da crise em Fukushima se demonstraram igualmente equivocadas. Três explosões durante três dias nos reatores 1, 2 e 3 foram seguidas por dois incêndios na piscina de combustível do reator 4. No meio da mesma semana, a Tepco e o governo foram forçados a lançar mão de métodos nunca testados, mandando helicópteros para jogar água nos reatores e caminhões de bombeiros para ajudar a bombear água do mar até eles. Trabalhadores em risco

O caráter desorganizado e negligenciador da resposta oficial ficou ainda mais evidente com as informações de que a empresa concordou com Kan de que 180 trabalhadores permaneceriam na usina, trabalhando em turnos, para prevenir um derretimento. A Tepco é famosa por empregar trabalhadores não qualificados, que ganham apenas 9 mil ienes (113 dólares) por dia e possuem poucos conhecimentos sobre a tecnologia e os riscos da usina. Todos os 180 receberam significativas doses de radiação que inevitavelmente danificarão suas saúdes a longo prazo. Dois já estão desaparecidos, possivelmente mortos, 21 foram feridos ou levados ao hospital e 19 foram tratados no local por exposição à radiação. De acordo com o jornal Mainichi Shimbun, a Tepco solicitou ao governo a retirada total dos últimos trabalhadores na usina devido aos altos níveis de radiação. Kan, no entanto, disse à Tepco: “A retirada é impossível. A questão não é se a Tepco irá entrar em colapso, mas sim se o Japão irá para o caminho errado.”

Tais revelações ilustram a prontidão da elite japonesa em sacrificar as vidas, a saúde e a segurança dos trabalhadores Tais revelações ilustram a prontidão da elite japonesa em sacrificar as vidas, a saúde e a segurança dos trabalhadores, não apenas para salvar seus gigantes lucros e investimentos, mas também para manter um eixo central de sua estratégia econômica: a busca pela energia nuclear. Mesmo levando-se em conta que o Japão está em uma das áreas mais suscetíveis a terremotos e tsunamis do mundo, mais de 55 reatores nucleares foram construídos no país desde 1970, incluindo sete novos abertos em 2008. Tais reatores, que hoje fornecem 34,5% da eletricidade japonesa, são considerados como uma “tábua de salvação” para proteger a elite econômica e militar japonesa da falta de acesso às fontes globais de petróleo e gás. (World Socialist Web Site) Mike Head é membro do Partido Socialista da Igualdade (SEP), da Austrália, correspondente do World Socialist Web Site e professor de Direito da University of Western Sidney Tradução: Igor Ojeda


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