Divulgação
Dolores Boca Aberta
O teatro popular versus a arte de mercado
Pág. 8
Uma visão popular do Brasil e do mundo
Circulação Nacional Ano 9 • Número 422
São Paulo, de 31 de março a 6 de abril de 2011
R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Gama
O Brasil precisa da energia nuclear? O acidente na usina nuclear de Fukushima, no Japão, trouxe ao Brasil uma reflexão acerca da construção de quatro usinas no Nordeste e a retomada do projeto Angra 3. O preço alto, o lobby da indústria nuclear internacional e o perigo gerado pela tecnologia atômica deu força ao debate sobre novas matrizes energéticas. Págs. 2 e 5
O agronegócio avança sobre o ensino público
Pág. 6
Direto do corredor da morte, Mumia Abu-Jamal Em MG, o direito à moradia ameaçado
Pág. 12
Págs. 2 e 4
ISSN 1978-5134
Vito Giannotti
Leandro Konder
Roberto Malvezzi (Gogó)
Peão ainda é explosivo
Obama no Brasil
Dilma e o modelo
No fim de março, as notícias das revoltas dos peões de obra de grandes construtoras, no Norte e Nordeste do país, repercutiram até na mídia empresarial. A classe operária ainda existe. Ainda se revolta. Pág. 3
O homem que superou mil preconceitos fez por aqui declarações em defesa da democracia. Infelizmente, a pregação dessas duas ideias ficou um tanto prejudicada pelo fato de ter assinado no Brasil a ordem de invasão da Líbia. Pág. 3
“Precisamos rever o modelo de desenvolvimento”. Essa frase, atribuída pelo ministro Gilberto Carvalho a Dilma, talvez seja a mais importante pronunciada por um presidente nos últimos 60 anos. Pág. 3
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de 31 de março a 6 de abril de 2011
editorial
Não se pode confiar no imperialismo “NO SE PUEDE confiar em el imperialismo, ni tantito así... Nada!” A famosa frase do Comandante Che Guevara em seu discurso na Organização das Nações Unidas (ONU) segue sendo um alerta, cada vez mais atual, que não podemos desprezar. Serve tanto para as ilusões de Muamar Kadafi de que sua aproximação do império poderia poupá-lo do mesmo destino do Iraque, quanto para os governos dos países que integram o Conselho de Segurança da ONU e acreditaram que os Estados Unidos apenas iriam “assegurar o controle do espaço aéreo da Líbia”. A trajetória histórica do regime de Muamar Kadafi é a prova do perigo em se confiar no imperialismo. Kadafi chegou ao poder em 1969, com um projeto nacionalista inspirado na liderança do egípcio Gamal Abdel Nasser (1918-1970), disposto a unificar os países árabes em torno de um projeto autônomo, nacional e terceiro-mundista. Com a derrubada do Rei Idris I que era extremamente vinculado às empresas estadunidenses de petróleo, substitui a monarquia por uma república, determina a retirada da base aérea dos Esta-
opinião
dos Unidos de Wheelus, território líbio, e inicia um intenso programa de nacionalizações. A nova correlação de forças inaugurada pelo fim da União Soviética demarca o início das ilusões de Kadafi de que uma aproximação com o império poderia poupá-lo de um destino semelhante ao do Iraque. A partir de outubro de 2002, iniciouse uma maratona de visitas a Trípoli: Berlusconi (Itália), em outubro de 2002; Aznar (Espanha), em setembro de 2003; Berlusconi de novo em fevereiro, agosto e outubro de 2004; Blair (Inglaterra), em março de 2004; Schröeder (Alemanha), em outubro de 2004; Chirac (França), em novembro de 2004. Em 2003, anuncia sua intenção de aliar-se à guerra ao terror. Abre a economia para as grandes transnacionais do petróleo. A British Petroleum, Exxon, Halliburton, Chevron, Conoco e Marathon Oil associam-se aos gigantes da industria bélica Raytheon e Nortroph Grumman e com a Dow Chemical para formar a US-Libia Business Association, em 2005. Desde então, declara-se um colaborador dos Estados Unidos - os quais
É preciso mobilizar-se contra a intervenção dos EUA e seus aliados da OTAN na Líbia
ele ajudou em sua “guerra ao terror” - e da Itália, com quem ele colaborou na deportação de imigrantes que tentavam chegar à Europa a partir da África. Tal “guinada política” de aproximação do imperialismo abalou sua base social, retirando-lhe o discurso de defesa dos interesses nacionais e colocando seu regime como um aliado do império que havia combatido por tanto tempo.
Muamar Kadafi está pagando caro o preço desta ilusão. Ao enfrentar uma revolta social com bases legítimas, seus aliados imperialistas o abandonaram sem qualquer vacilação e prontamente aproveitamse da situação para abocanhar as riquezas naturais da Líbia. Já não resta qualquer dúvida. Os Estados Unidos estão usando o pretexto da intervenção humanitária para proteção dos civis, com o objetivo claro de tomar o controle dos recursos energéticos do país e impor um novo regime, de acordo com seus interesses. Indagada pelos bombardeios efetuados pelos aviões da OTAN, a Secretária de Estado Hillary Clinton justificou os ataques através da “legalidade” das Resoluções 1970 e 1973 do Conselho de Segurança da ONU, que “autorizaram todas as medidas necessárias” para proteger os civis líbios da repressão do regime comandado por Kadafi. Aqui nos deparamos com outra grave “ilusão” ante o imperialismo. Ao aprovar ou se abster na reunião do Conselho de Segurança da ONU, os países, inclusive o Brasil, permiti-
crônica
Frederico Lisbôa Romão
ram aos Estados Unidos manipular a resolução e promover uma intervenção militar onde claramente pretende consolidar suas posições e aliados em território líbio. Jamais houve qualquer intenção humanitária na proposta dos EUA. Basta comparar com a situação do Bahrein, onde recentemente 160 blindados e mais de mil soldados da chamada Liga Árabe, em especial da Arábia Saudita, invadiram o pequeno emirado, sufocando com mortes e feridos a revolta popular, ante o silêncio das grandes agências internacionais de informação e total cumplicidade dos Estados Unidos. Neste caso, a preocupação estadunidense é assegurar o regime que lhe permite sediar a estratégica 5ª Frota Naval, que controla a passagem pelo golfo pérsico. É preciso mobilizar-se contra a intervenção dos EUA e seus aliados da OTAN na Líbia. A presença militar imperialista manipula a legítima revolta popular, fortalecendo representantes e líderes tribais aliados. Mais uma vez o alerta de Che Guevara se confirma: “Não se pode confiar no imperialismo...”
Frei Gilvander Luís Moreira
Gama
Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy
O acidente nuclear do Japão O ESPECTRO RADIOATIVO envolve em seus tentáculos cancerígenos e mutantes, mais uma vez, grandes populações humanas. Desde o anúncio das explosões ocorridas na central nuclear de Fukushima, no Japão, que o mundo acompanha, em meio ao desencontro de informações, o potencial remake da “síndrome da China”, desta feita, em preto e branco. E, ora, como ficam os defensores de que a energia nuclear seria fonte limpa e segura? Segundo a Energy Information Administration/Monthly Energy (2008), de 1975 a 1990, houve um crescimento de 116,7 % no número de usinas nucleares construídas no mundo. Em meados da década de 1970 existiam 42 usinas, em 1990 já são 112. Após o desastre nuclear ocorrido em 1986, na cidade de Chernobyl, praticamente cessam as construções de novas usinas. Entretanto no início da década de 2000, a busca por crescimento econômico, associada à patente constatação do esgotamento ambiental, a partir principalmente dos dados que evidenciaram o aquecimento global, o uso nuclear para produção de energia torna-se fenômeno retumbante entre governos, agências e competentes pesquisadores pelo mundo afora. Mesmo que nos atenhamos apenas aos argumentos nacionais, é possível encontrá-los às escâncaras: “É fonte limpa quando comparada com os combustíveis fósseis, hidroelétricas e/ou carvão”; “não há chances de ocorrer outro acidente como Chernobyl”; “a fiscalização fica a cargo de organismos internacionais idôneos”; “um país e/ou região (Nordeste) pobre não pode prescindir de tamanho investimento”... Esquecem-se os doutos de que não existe fonte de energia absolutamen-
Acreditar na idoneidade das agências internacionais de energia nuclear é tapar olhos e ouvidos para os gritos e estampidos que ecoam das guerras do Golfo
te limpa; menos ainda a energia nuclear, que, mesmo não se considerando os seus derivados acidentes, gera lixo que por séculos poderá destruir vida. A impossibilidade científica de acidentes só é possível nas mentes iluministas do século XVIII; o século XX sepultou de há muito essa tese. Acreditar na idoneidade das agências internacionais de energia nuclear é tapar olhos e ouvidos para os gritos e estampidos que ecoam das guerras do Golfo. Se royalties e investimentos das usinas nucleares por si só trouxessem prosperidade, desenvolvimento e também progresso, diversos municípios brasileiros produtores de petróleo não estariam imersos em agressiva miséria. Em verdade, a energia nuclear, desde sempre, tem sido uma questão geopolítica. É degradante saber da disputa travada por governadores nordesti-
nos em busca do urânio enriquecido para os seus territórios, em nome do que promovem “tour heurístico”, financiando tais evoluções obviamente com dinheiro público, para o deleite de empresários, políticos e cientistas, que vão conhecer in loco as usinas nas praias de Angra. Como o registrado na recente tragédia no estado do Rio de Janeiro, em que mais uma vez se adjetiva de “natural” um desastre absolutamente construído e previsível. Como não responsabilizar o homem pelo adensamento populacional, associado à armazenagem e ao processamento de material radioativo em áreas inseridas no círculo de fogo do Pacífico? Resolver o problema de produção de energia através da construção de usina nuclear traduz-se em mais uma “fuga para frente”. A imperiosa exigência de sobrevivência do capital busca continuadamente alternativas que preservem a sua metabólica necessidade de realização de lucros, mesmo quando o fluido propulsor da engrenagem é o sangue humano (Marx, 1983). O planeta dá reiteradas demonstração do seu depauperamento ambiental. A questão não é mais se buscarem novas formas de energia, mas precipuamente se construírem novas relações sociais, nas quais o consumo exacerbado não seja o fio condutor das sociabilizações. Têm-se, pois, sob a névoa, por conseguinte, relevantes tarefas pedagógicas e políticas que haverão de arrebatar das mãos monetárias do mercado o timão do desenvolvimento social. Frederico Lisbôa Romão é doutor em Ciências Sociais/Unicamp, Prof. voluntário do Departamento de Serviço Social/UFS
EM BELO HORIZONTE, 13ª cidade mais desigual do mundo (segundo a ONU), três comunidades sem teto estão ameaçadas de despejo: comunidades Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy. Acompanho de perto, desde o início, a luta das 1.200 famílias dessas três comunidades. Por isso, digo que são exemplos de luta por inclusão social e por dignidade humana. Na Camilo Torres moram 142 famílias; na Dandara 887, e na Irmã Dorothy 135 famílias estão vivendo em comunidade. Quase todas as famílias, antes, estavam na cruz do aluguel, vivendo de favor, nas ruas ou em áreas de riscos. Muitas delas cansaram de esperar na ilusória fila da política habitacional de Belo Horizonte, que é insuficiente. Colocaram o pé na estrada e estão lutando por dignidade, moradia popular e por uma reforma urbana estrutural e efetiva. Dandara está no Céu Azul, na região da Nova Pampulha. Ocupa um “latifúndio urbano” de 360 mil metros quadrados (36 hectares) que estava abandonado, com milhões em dívida de IPTU e sem cumprir sua função social há décadas. Mesmo assim, a construtora Apesar luta judicialmente pela reintegração da posse. Não mantinha a posse antes. Para espanto nosso, o Judiciário mineiro concedeu a liminar de reintegração de posse à construtora. As 887 famílias de Dandara estão sendo organizadas pelas Brigadas Populares e por uma ampla rede de apoio. Está organizada em 9 grandes grupos,s coordenados por moradores eleitos nas semanais “reuniões de grupo”. Há assembleia geral semanal. Foi elaborado um projeto urbanístico por profissionais e estudantes de arquitetura da PUC-Minas em conjunto com a comunidade, garantindo uma apropriação racional do terreno e o respeito à legislação urbanística e ambiental. Há áreas comunitárias reservadas para horta comunitária e para construção de equipamentos públicos (creche, posto de saúde e praças). Uma Igreja Ecumênica e um centro comunitário estão sendo erguidos em mutirão. Mais de 90% das moradias já são casas de alvenaria, construídas com muito suor, inclusive com empréstimo bancário feito por aposentados. Nas comunidades há coletivos de saúde e de educação formados por moradores e apoiadores. Há projeto MOVA de alfabetização do Instituto Paulo Freire. Os conflitos internos são dirimidos e mediados pelas lideranças locais, quase sempre sem intervenção da força policial. Tratam-se de comunidades pacíficas em que a organização popular permitiu o estabelecimento de fortes vínculos de solidariedade, conscientização, disciplina e compromisso social. Dandara é a maior ocupação organizada de Minas Gerais.
Essas três comunidades têm sido um importante exemplo de resistência e organização popular Camilo Torres e Irmã Dorothy estão em terrenos que até 1992 pertenciam ao Governo de Minas. Foram repassados por baixo preço para empresas que não cumpriram cláusulas contratuais, tal como a obrigação de construir empreendimento industrial na área dentro de 24 meses. Após 16 anos, os terrenos continuavam ociosos. Pelas três comunidades já passaram dezenas de turmas de estudantes, professores, religiosos de diversas congregações, ativistas brasileiros e estrangeiros. Enfim, essas três comunidades têm sido um importante exemplo de resistência e organização popular. Receberam nomes eloquentes: Dandara, companheira de Zumbi; Camilo Torres, padre guerrilheiro da Colômbia; e Irmã Dorothy, freira estadunidense que doou sua vida na defesa da Amazônia, lutando por reforma agrária e contra o trabalho escravo. Despejá-las jamais será a solução. Vamos continuar plantando caqui, a planta que resistiu no território de Yroshima, após a bomba atômica. O caminho é dialogar. É o que esperamos. A presidenta Dilma, em reunião comigo e com o bispo dom Joaquim Mol nos assegurou que se o governo de Minas e o prefeito de Belo Horizonte desapropriarem os terrenos, o governo federal financiará a melhoria das casas de alvenaria já construídas e construirão o que falta. O governo do Estado, em reunião com uma comissão de alto nível afirmou que é preciso dialogar. A bola está com o prefeito da capital mineira, que continua intransigente. Frei Gilvander Luís Moreira é mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica e assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 31 de março a 6 de abril de 2011
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Leandro Konder
instantâneo
Obama no Brasil
Gama
Roberto Malvezzi (Gogó)
Dilma e o modelo “PRECISAMOS REVER o modelo de desenvolvimento”. Essa frase, atribuída pelo ministro Gilberto Carvalho à presidenta Dilma, no encontro do governo com o Fórum de Mudanças Climáticas da CNBB e parceiros, talvez seja a mais importante pronunciada por um presidente nos últimos 60 anos no Brasil. Ela faz contraponto com outra frase famosa de Juscelino Kubitschek: “precisamos crescer 50 anos em cinco”. Será que fatos tão aterradores oferecidos pela natureza todos os dias realmente fizeram a presidenta repensar os rumos que o Brasil está enrascado? Afinal, para onde vamos com essas hidroelétricas gigantescas, com transposições, com atômicas, com a devastação da riqueza natural que temos? Vamos continuar com essa agricultura, consumindo bilhões de litros de veneno, exatamente para contaminar as mães que amamentam seus filhos, como no Mato Grosso? Nossa economia já é a sétima do mundo e nos dizem que em breve será a quinta. Pode ser até a primeira, mas, se não mudarmos a qualidade de nosso desen-
volvimento, ele continuará predatório e injusto como só o Brasil sabe ser. Dependemos cada vez mais de quatro ou cinco commodities para gerar divisas e agora vamos arrancar até a última pedra com minério para gerar recursos com exportações. Porém, precisamos exportar três ou quatro toneladas de ferro para comprar um soft do Bill Gates. Voltamos a uma economia primária que, para ser tal, precisa devorar solos, água, vegetação e agora o subsolo. Assim fica fácil avançar no pódio das economias, depredando as bases naturais de nossas riquezas, mas sem poder tecnológico, sem educação, sem saneamento, com a renda mais concentrada do planeta, à frente apenas de alguns países africanos e do Haiti. Decididamente, se Dilma for mesmo uma intelectual como dizem, deve estar perguntando se é esse mesmo o caminho. Curioso, no referido encontro o ministro reafirmou que o governo vai fazer Belo Monte. Se quiser rever o modelo, então poderemos começar uma era efetivamente diferenciada para esse gigante cada vez mais exaurido.
Vito Giannotti
Peão ainda é explosivo NO FIM DE MARÇO, as notícias das revoltas dos peões de obra de grandes construtoras, no norte e nordeste do país, repercutiram até na mídia empresarial. Dia 23 de março, lemos em vários jornais notícias da greve de mais de 25 mil trabalhadores, na construtora da refinaria Abreu e Lima, em Suape (PE). A reivindicação chocou por sua crueza: pagamento de 100% das horas extras, aos sábados, aumento do vale-alimentação de R$ 80 mensais para a soma astronômica de R$ 160! Imaginem só. E o consórcio formado pela Camargo Corrêa e pela OAS aceitando só R$ 130. Enquanto isso, a refinaria Abreu e Lima recebeu R$ 13, 3 bilhões de investimentos da Petrobras. No dia 24, os jornais noticiaram que havia uma greve nas usinas de Jirau e Santo Antônio (RO), obras das grandes empresas como a Camargo Corrêa e Odebrecht, que trabalham com recursos do PAC. Neste dia, calculava-se que houvesse quase 100 mil trabalhadores da grande construção civil parados, entre Suape (PE), Por-
to de Pecém (CE) e nas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Em todos os casos, reivindicações básicas: respeito aos direitos mínimos como aumento do adicional das horas extras, melhor atendimento de saúde, melhora da alimentação e do valor do vale-refeição. A revolta dos trabalhadores ao total desrespeito pelas empresas às suas reivindicações explodiu, sobretudo, na usina de Jirau. Mais de 45 ônibus e várias instalações da usina foram incendiados. Logo, a lorota da mídia, das empreiteiras e dos seus lambe-botas foi que tudo começou por causa de uma briga pessoal entre peões. A realidade é bem outra. A classe operária ainda existe. Ainda se revolta. Ainda sabe incendiar ônibus, enquanto as empresas se protegem com a Guarda Nacional e recebem gordos financiamentos públicos. Mas a mídia empresarial e ex-militantes de esquerda e intelectuais arrependidos repetem que a classe operária acabou e que a luta de classes é coisa do passado.
A PASSAGEM DO PRESIDENTE dos Estados Unidos por aqui despertou intensa admiração. Muita gente se emocionou com a imagem do negro estadunidense que se formou, superando mil preconceitos, e fez declarações em defesa da democracia. Infelizmente, a pregação dessas duas ideias ficou um tanto prejudicada pelo fato de Barack Obama ter assinado no Brasil a ordem de invasão da Líbia. Qualquer que seja a nossa opinião sobre o velho ditador, é muito difícil formar uma aliança entre um Estado em crise, negociantes de petróleo e a superpotência dirigida por Obama. Não se pode negar sua simpatia pessoal (que desempenha um importante papel nas relações entre as empresas e os Estados). Muitos jornalistas acharam que não bastava negar os defeitos de Obama; era preciso transformá-los em qualidades. O presidente foi chamado de elegante pelas damas da Corte. Uma delas chegou mesmo ao superlativo: elegantérrimo. Um cronista observou entusiasmado que Obama era capaz de chutar com ambos os pés, competência que o autorizava a pleitear uma vaga na seleção brasileira, enfrentando Ronaldinho gaúcho. Para confirmar essa tese, o presidente se dispôs a fazer uma exibição de embaixadinhas, que, no entanto, não foi bem sucedida: a bola se recusava a sair do chão. Obama encarou essas pequenas derrotas com naturalidade. Mostrou que é de boa cepa na política e na diplomacia. Conviveu pacificamente com cerca de 3 mil seguranças e uma multidão agitada de políticos brasileiros.
De fato, Obama mostra uma razão da sua simpatia. Ele tem medo de errar e isso o humaniza A vida política entre nós vem assumindo formas surpreendentes na sociedade que herdamos do século 20. O fascismo fracassou sob a ditadura de Mussolini, mas está muito presente nas ideias e na ação de Berlusconi. Na Alemanha, fixou-se no poder uma senhora bastante conservadora, Ângela Merkel. No Japão, um terremoto gigantesco devastou o país. Na França, Sarkozy vai levando sua contradição com os emigrantes estrangeiros, fortalecendo sinais de racismo. E agora todos têm de se ocupar com a crise árabe e a ameaça de sofrermos graves danos materiais e culturais. O quadro não é animador para ninguém. Do Oriente nos chega o risco do envenenamento nuclear. É esse o panorama com que se defronta o presidente dos Estados Unidos, quando olha o mundo pelas janelas da Casa Branca. De fato, Obama mostra uma razão da sua simpatia. Ele tem medo de errar e isso o humaniza. Contudo, ele confia na força dos políticos mais “realistas” do Partido Republicano (seus adversários) e na disciplina militar, apoiada em alta tecnologia. Seu projeto é sustentado por uma aliança que envolve uma poderosa mobilização reacionária. Imagino que essa aliança custa muito trabalho. Não ouvi os atores dessa peça teatral penosa, não sei o que se disseram nas condições em que se encontravam. Entretanto, às vezes desconfio que perderam bastante tempo com questões chatas. O encontro entre os dois presidentes, Obama e Dilma, não foi tão rico como os brasileiros esperavam. Houve exibições de capoeira e promessas (inclusive relativas à participação no Conselho de Segurança da ONU). A presidenta Dilma cumpriu seu papel de maneira razoável. O caminho seguido por ela, porém, vai levá-la, em breve, a se defrontar politicamente com o desafio colossal inevitável de uma ação programática nítida, cujo conteúdo tenderá a ultrapassar as fronteiras estritas da perspectiva da burguesia brasileira. Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.
comentários do leitor Leitores Sou assinante deste jornal há anos e fiquei pasmo ao ler, na edição 421, dois comentários de leitoras (de extrema esquerda ou de ultradireita? não dá para discernir em qual espectro político elas se inserem!). Um deles tem como título “Governo Dilma”, o outro, “Mal menor”. Em relação a esses comentários, nem vou perder muito tempo em delongas, mas farei meus os pensamentos de dois filósofos. John Locke: “não há uma opinião tão absurda que não possa ser admitida por algum homem”. E Voltaire: “não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo”. Concluo dizendo que se o Brasil de Fato não fosse, de fato, tão democrático, os comentários dessas leitoras nem deveriam ser publicados, tamanha visão política esdrúxula.
Tarcizo Christofoletti, por correio eletrônico
Líbia Então, Zine Abedine Al Ben Ali e Mubarak caíram porque o povo foi às ruas, cansado de décadas de ditadura, mas, na Líbia, é diferente, não é o povo, é gente “manobrada” pelos Es-
tados Unidos. Vocês acham que os outros são idiotas? Kadafi, um ditador há 42 anos no poder, revelando-se agora, mais sanguinário que nunca, com visíveis sinais de paranoia senil, é, pra vocês, exemplo de resistência na “luta contra o imperialismo”. Mais um sátrapa que concentra o poder no estreito círculo familiar. Luiz Mello, por correio eletrônico
McDonald’s Atualmente, as empresas investem muito em desenvolvimento social e sustentável. As propagandas de seus produtos passam a mensagem de que agora não precisamos nos preocupar com mais nada, afinal, a solução já foi dada pelo mercado: é só comprar mais produtos que ajudaremos o meio ambiente. Propagandas do tipo, desresponsabilizando as pessoas, tiram o caráter político de suas escolhas. Deixam todas as soluções nas mãos do mercado. A propaganda não só encobre a exploração, mas também a financia. É o que podemos perceber na matéria publicada sobre o McDonald’s (edição 417). Fugindo da multa milionária, a empresa deverá destinar o mesmo valor a propagandas contra o trabalho infantil e à divulgação
dos direitos da criança e do adolescente durante 9 anos, por decisão do Ministério Público (privatizado não seria melhor?). Punição? O Sr. McDonald’s deve estar é comemorando. Além de se livrar da multa e dos encargos trabalhistas, a empresa tem um grande apoio para livrar a sua imagem da exploração: passará a imagem de favorável aos direitos da criança e adolescente, enquanto continuará explorando adolescentes. Tão irônico quanto o Mc Dia Feliz, cuja renda do Big Mac (somente) é destinada às instituições de combate ao câncer infanto-juvenil, enquanto a alimentação que a rede promove é uma das grandes causas do câncer. Afinal, carne proveniente de animais tratados com muito hormônio, inseticidas, resquícios de fezes, carregadas de colesterol e outros ingredientes nada agradáveis poderiam provocar o que mais em nossas crianças?
Tânia Regina Vizachri e Flávio Nenflídio de Carvalho, por correio eletrônico
ambientais que hoje afligem o mundo, reforçando nossa espiritualidade e nossa consciência sobre as consequências dos nossos atos. Ou seja, tudo o que foi dito por Leonardo Boff (edição 419). Mas concordo com o entrevistador quando questiona toda essa movimentação sobre as questões ambientais quando o ser humano está sendo deixado de lado. A diminuição dos empregos formais e aumento dos informais tem feito com que muitas pessoas tenham que se submeter a situações precárias de trabalho e, consequentemente, de vida. A acumulação de capital, principal motivo da ânsia pelo crescimento econômico, tem consequências negativas sobre o meio ambiente, o que tem incomodado a opinião pública. Mas não nos esqueçamos de que a base desse sistema é a exploração do trabalho humano, sendo este o cerne do problema. A organização da população é a única forma de se obter modificações benéficas na sociedade!
Leonardo Reis
Leonardo Boff As decisões que tomamos e tudo o que fazemos influencia a vida dos outros, e vice-versa. Por isso, devemos nos ater aos problemas
Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br
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brasil
Lar ameaçado em Belo Horizonte João Zinclar
MORADIA Cerca de 1.200 famílias sem-teto de três ocupações de Belo Horizonte veem cada vez mais perto a possibilidade de perderem suas casas
Segundo ela, aqueles que querem criticar a ocupação falam que está se criando mais uma favela, mas, na verdade, na comunidade há organização, divisão dos lotes, ruas e busca do espaço comum. “O poder público tinha que estar no nosso lado e não contra a gente. Mas o poder que fala mais alto é o do dinheiro. Sabem que aqui é muito lucrativo para eles e, por isso, querem nos tirar daqui. Por isso, é necessário resistir com organização”. Para dona Leila, é revoltante pensar que uma decisão pode jogar tantas famílias na rua. “Me preocupo com o futuro dos jovens daqui. É triste pensar que de um dia para o outro eles podem chegar e destruir tudo que construímos com tanto sacrifício”, lamenta.
Carina Santos de Belo Horizonte (MG) CAMILO TORRES foi um padre guerrilheiro que lutou pela libertação da Colômbia. Morreu em combate contra o poder do conservadorismo e da desigualdade social. Dandara é lembrada como uma das primeiras mulheres a se rebelar contra o sistema escravocrata no Brasil. Guerreira do Quilombo de Palmares, ao lado de seu companheiro Zumbi dedicou-se a sustentar e planejar estratégias de defesa diante da investida do Estado. Irmã Dorothy era uma religiosa estadunidense que ajudou a despertar a consciência de vários trabalhadores rurais, criticando a pobreza e a exploração. Foi assassinada no estado do Pará em 2005. Hoje, os três simbolizam a força e a resistência de 6 mil sem-teto: dão nome às três ocupações ameaçadas de despejo em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. A situação é delicada: de acordo com o advogado e professor Fábio Alves, que atua nos três casos, foi feito de tudo, dentro dos limites da Justiça, para poder adiar o despejo. No entanto, ele explica que judicialmente as ocupações estão “perdendo no jogo”, já que todas as decisões, até agora, garantem a reintegração de posse. Segundo o advogado, essas decisões muitas vezes atropelam critérios da própria lei, como no caso do processo da ocupação Camilo Torres, na região do Barreiro: “Na petição inicial da Vitor Pneus, empresa que reivindica a propriedade do terreno, a referência à área é vaga. Não se atende aos requisitos legais de perfeita individualização da área a ser reintegrada na posse. Não há sequer seu croqui. Impossível, pois, o cumprimento do Mandado de Reintegração de Posse sem a presença desse requisito”, detalha.
Assim como no caso da ocupação Camilo Torres, o terreno referente à ocupação Irmã Dorothy também pertencia ao Estado de Minas Gerais Terrenos públicos
Alves considera “lamentável” que essas decisões estejam sendo tomadas por meio de liminares; o correto, segundo ele, seria a realização de uma audiência de justificação de posse, para que as provas sejam, de fato, apresentadas. “Mas o Judiciário age com preconceito em relação aos pobres”, denuncia. Assim como no caso da ocupação Camilo Torres, o terreno referente à ocupação Irmã Dorothy também pertencia ao Estado de Minas Gerais, por meio da Companhia de Distritos Industriais, atual Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig). Ambos imóveis foram transferidos para proprietários particulares, o que faz aumentar a indignação dos moradores. No caso da Dandara, Fábio Alves conta que a liminar de reintegração de posse em favor da Construtora Modelo (empresa que a reivindica) ainda não foi cumprida em decorrência de providências jurídicas tomadas pela defesa. A perspectiva, porém, é de que, mais cedo ou mais tarde, haja a expedição do mandado reintegratório de posse. Em comunicado, as Brigadas Populares, organização que fez parte da construção das três ocupações, critica o tratamento de um problema social por meio de “soluções jurídicas artificiais”. “Nem o Judiciário nem o comando da Polícia Militar de Minas Gerais têm o dever constitucional de promover massacres em nome da propriedade que, aliás, violava o princípio da função social”, diz a nota, que responsabiliza o governador mineiro, Antônio Anastasia (PSDB), e o prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda (PSB), “pelo destino das centenas de famílias prestes a serem despejadas, em razão de decisões judiciais sem amparo constitucional”. Déficit habitacional
Segundo pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, a cidade de Belo Horizonte tem um déficit de 55 mil uni-
“É triste pensar que de um dia para o outro eles podem chegar e destruir tudo que construímos com tanto sacrifício”
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Crianças caminham em rua sem asfalto da comunidade Camilo Torres
mil moradias é o déficit habitacional de Belo Horizonte, cidade que tem 70 mil imóveis abandonados
dades habitacionais. O número aumenta para 173 mil quando se fala da região metropolitana. A mesma pesquisa aponta um dado preocupante: na mesma cidade, há mais de 70 mil imóveis abandonados, que não cumprem a função social, conforme prevê a Constituição. “A política habitacional adotada pelo município de Belo Horizonte jamais alcançou essas famílias. Igualmente se pode dizer da política habitacional do Estado de Minas Gerais, que, nos últimos 20 anos, jamais construiu uma só casa para população de baixa renda em Belo Horizonte”, pontua Fábio Alves. Assim, não restou outra saída às centenas de famílias que hoje vivem nas três ocupações. É o caso da soldadora Joelma Pereira da Rocha, moradora da ocupação Camilo Torres. Ela afirma que não tinha condições financeiras de sustentar o alto valor do aluguel e que percebeu na ocupação uma possibilida-
de de ter acesso à moradia. “Só quando saí do aluguel pude dar uma alimentação decente para meus filhos. É aqui que conseguimos construir um teto e viver dignamente. E a ocupação também é um lugar onde nós aprendemos outros valores de vida: mudou minha forma de agir, de enxergar a luta, de educar meus filhos. Busco conhecer mais o dia a dia da sociedade e pensar como coletivo”, conta. Joelma critica a forma como o poder público enxerga a ocupação e age em relação aos moradores. “Aqui era um terreno baldio, que não servia a nada. A função social está na Constituição e, hoje, quem a está cumprindo somos nós. Porque hoje este terreno tem uma verdadeira função, e isso o governo não pode negar”.
“A política habitacional adotada pelo município de Belo Horizonte jamais alcançou essas famílias” Revolta
Moradora da comunidade Dandara, ocupação da região da Pampulha onde vivem quase mil famílias em um terreno de cerca de 40 hectares, a dona de casa Leila Maria de Carvalho fala à reportagem da porta de seu barracão de dois cômodos.
A guerreira dona Célia Moradora da ocupação Dandara, a dona de casa recebeu, recentemente, um prêmio de direitos humanos do Estado de Minas de Gerais de Belo Horizonte (MG) Dona Célia recebe a reportagem na manhã de um domingo de muito sol. A luz entrava forte em seu barracão de um cômodo, construído com a ajuda do filho e do cunhado. Estava vestida com a blusa que traz um apelo: “Negociação sim, despejo não”.
“Esse prêmio representa a luta das ocupações. Foi mais um espaço, mesmo que dentro do Estado, para mostrar o quanto é digna e necessária nossa resistência” A moradora, que faz parte da comunidade Dandara desde seu início, em abril de 2009, é a perfeita representação da realidade brasileira: mulher, negra, sem-teto e por muitos anos sobrevivendo na informalidade. Ela senta para relatar o prêmio que recebeu por representantes do Estado de Minas Gerais, mas não alivia sua fala quando o assunto é a luta pelos reais direitos da população. “Quem é essa mulher? A maioria não deve conhecê-la, mas, se perguntarem
num certo Céu Azul, na comunidade Dandara, em Belo Horizonte, MG, certamente vão logo responder: Dona Célia Maria dos Santos Pereira? Mora ali no barraco da frente, bem na entrada da comunidade Dandara, na Rua Zélia Arns, segundo barraco da esquerda de quem desce, grudado no barraco da filha Ideslaine, casada com o Zezinho”. Questionamento
Foram com essas palavras que os apoiadores das ocupações Frei Gilvander Moreira e a educadora social “Sãozinha” iniciaram uma carta para apresentar dona Célia à Comissão da Comenda da Paz Chico Xavier, premiação do governo estadual que homenageia pessoas que se destacam na promoção da paz por meio de movimentos de combate à fome e à miséria, políticas voltadas para o desenvolvimento da educação, do fortalecimento da família, entre outras contribuições. Dona Célia Maria recebeu a medalha em 25 de março, na cidade de Uberaba, região do Triângulo Mineiro. “Esse prêmio representa a luta das ocupações. Foi mais um espaço, mesmo que dentro do Estado, para mostrar o quanto é digna e necessária nossa resistência”, explica. Ela conta que, durante a cerimônia, procurou questionar as autoridades presentes: “Se eu dever anos e mais anos de imposto ao Estado será que eu teria direito à propriedade, assim como a construtora dona do terreno está [devendo]? É muita injustiça.” Para dona Célia, esse momento ajudou para sensibilizar as autoridades mineiras em relação ao problema habitacional. “Somos tratados como insetos pelo Estado, eles passam por cima dos nossos direitos e necessidades. Por isso, é preciso a união: as pessoas juntas e organizadas jamais serão vencidas”, ressalta. (CS)
É o mesmo sentimento de Joelma: “Tudo foi levantado graças à ação dos moradores. Nós que construímos nossas casas, mantemos a limpeza, a organização da rua, a ligação de água e luz. Enfrentamos sol, chuva, polícia. Às vezes, chego do trabalho e penso que no dia seguinte eu e meus filhos poderemos estar na rua. É triste. Por isso, a necessidade de a gente buscar levar essa luta até o fim, para termos o direito à nossa casa”. A hora é de dar a maior visibilidade possível ao caso e reivindicar uma saída para o conflito que não passe pela arbitrariedade do despejo, opina o advogado Fábio Alves. Segundo ele, a rede de apoio às ocupações tem um papel fundamental neste momento. Na própria capital, foi organizado, no ano passado, o “Fórum de Solidariedade às Ocupações”, espaço que aglutina movimentos, entidades e cidadãos que apoiam a luta e acompanham as ações das comunidades e as campanhas “antidespejo”. No dia 28 de março, a presidenta Dilma Rousseff se reuniu com representantes das três ocupações e afirmou que se o governador de Minas Gerais e o prefeito de Belo Horizonte desapropriarem as áreas, ela garantirá recursos federais para a urbanização e melhoramento das 1,1 mil casas já construídas. Anastasia afirmou que é favorável que as áreas sejam desapropriadas e entregues definitivamente às famílias. No entanto, ressaltou que, para isso ocorrer, é preciso uma negociação e participação da prefeitura.
Pequeno Raio-X das ocupações Camilo Torres Surgimento: fevereiro de 2008. Fruto da articulação entre as organizações Brigadas Populares e Fórum de Moradia do Barreiro. Número de famílias: 142. Área: 12.230 m². Situação Jurídica: Mandado de despejo já expedido. O terreno pertencia ao Estado de Minas Gerais e foi irregularmente transferido a empresa particular, na década de 1990, para realização de empreendimento industrial.
Dandara Surgimento: abril de 2009. Fruto da articulação entre Brigadas Populares, Fórum de Moradia do Barreiro e MST. Número de famílias: 887. Área: 400 mil m². Situação jurídica: Mandado de Segurança impetrado em favor das famílias está pendente de Recurso Ordinário no STJ.
Irmã Dorothy Surgimento: massiva em março de 2010, pois já havia algumas famílias ocupando a área. Fruto da articulação entre Brigadas Populares e Fórum de Moradia do Barreiro. Número de famílias: 135. Área: 15 mil m². Situação jurídica: Mandado de reintegração de posse já expedido. Em julho de 2010, a comunidade entrou com uma representação junto ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais, noticiando a irregularidade na transferência do bem público para particular. O Ministério Público ajuizou Ação Civil Pública, ainda em trâmite no Tribunal de Justiça, questionando as transferências irregulares.
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Energia nuclear: cara, perigosa e lucrativa MATRIZ ENERGÉTICA Acidente no Japão gera debate sobre consequências do projeto de desenvolvimento energético brasileiro Reprodução
Renato Godoy de Toledo da Redação O ACIDENTE na usina de Fukushima, no Japão, alertou o mundo sobre o potencial devastador da energia nuclear. O debate atingiu o Brasil, país que planeja investir mais nesse tipo de energia. Segundo o Plano Nacional de Desenvolvimento Energético (PNDE), estão previstas as construções de quatro usinas nucleares de 1 mil megawatts até 2030. Porém, os próprios estados que receberiam os empreendimentos já estão receosos em relação a sua construção. Mesmo com valores que trariam investimentos de bilhões de reais e empregos, governadores já sinalizam que não pretendem abrigar usinas em seus territórios. Até mesmo governadores da base aliada, como Eduardo Campos (PSBPE) e Marcelo Déda (PT-SE), já afirmaram que os seus estados vão repensar a viabilidade da construção de parques nucleares. Na Europa, a desconfiança em relação a essa matriz energética ampliou a rejeição da população à abertura de mais usinas atômicas. A situação em países como a França, que têm na energia nuclear sua maior fonte de energia, chegando a 70%, deve forçar a uma imediata substituição de matriz energética. As inaugurações de Angra 1 e Angra 2, em 1982 e 2000, respectivamente, causaram protestos de ambientalistas e tiveram sua eficácia questionada. Os recursos hídricos, eólicos e solares do país são apontados como os principais motivos para recusar a energia atômica. No entanto, as quatro usinas previstas no PNDE teriam 40 anos de vantagem sobre a usina de Fukushima, que hoje tem essa idade. A usina japonesa já possui equipamentos considerados obsoletos por especialistas.
“Até 2040, 2050, quando tivermos 200 milhões de habitantes, mesmo dobrando o consumo da população, será preciso usar apenas 70% do nosso potencial hidráulico” Situação confortável
O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão (PMDB), afirma que o Brasil possui capacidade para construir as quatro usinas, além de Angra 3, com o máximo de segurança possível. Para Ildo Sauer, doutor em engenharia nuclear e professor da Universidade de São Paulo (USP), o desenvolvimento da energia atômica no Brasil não deve ser analisado apenas pelos eventuais riscos, mas também pelos interesses financeiros por trás dela. “O Brasil dispõe de um potencial hidráulico, eólico e de recursos a partir da biomassa. Até 2040, 2050, quando tivermos 200 milhões de habitantes, mesmo dobrando o consumo da população, será preciso usar apenas 70% do nosso potencial hidráulico, ainda sobra energia. O Brasil está numa posição muito confortável”, afirma. Sauer, que foi diretor de gás e energia da Petrobras no primeiro governo Lula, critica as gestões do ex-presidente e de Dilma Rousseff na área de energia. “No Brasil, o governo Lula resolveu voltar com o projeto de construir Angra 3, que deve custar R$ 8 bilhões de reais e gerar 1.345 megawatts. Essa energia poderia ser produzida pela matriz hidráulica, eólica ou de outra fonte. As usinas nucleares previstas para o entorno do rio São Francisco teriam um custo de R$ 80 bilhões, sendo que a energia que elas gerariam poderiam ser substituídas por investimentos na ordem de R$ 20 bilhões, usando outras matrizes. Do ponto de vista tecnológico, essas usinas não trariam avanços ao país”, explica. Apesar de crítico da política nuclear do governo federal, Sauer afirma não ser contrário a essa fonte de energia e aponta que o seu uso é de suma importância na medicina diagnóstica. “Do ponto de vista científico-tecnológico, seria mais inteligente montar um reator que a Marinha pudesse utilizar para fazer ensaios”, sugere. Para Sauer, o principal motivo para o Brasil manter a sua política favorável à energia atômica, mesmo depois da comoção internacional em torno de Fukushima, é o lobby das grandes em-
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usinas nucleares de 1 mil megawatts cada serão construídas até 2030, segundo o Plano Nacional de Desenvolvimento Energético (PNDE)
presas internacionais que pretendem lucrar com a tecnologia no país. “A política se submeteu ao lobby da indústria nuclear internacional. É uma opção por uma fonte mais cara que vai exigir cuidados elevadíssimos por 2 mil anos”, aponta. Sauer também lembra que os equipamentos para a construção de Angra 3 já estão estocados há 20 anos e podem apresentar defasagem. Novas fontes
Mesmo antes da tragédia japonesa, o debate central no campo da energia já era a busca da conciliação entre desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente. No caso da usina de Fukushima, nenhum dos dois elementos mostraram-se viáveis, diante do imenso dano ambiental e o prejuízo financeiro causado pela radiação.
“As usinas nucleares previstas para o Nordeste teriam um custo de R$ 80 bilhões, sendo que a energia que elas gerariam poderiam ser substituídas por investimentos de R$ 20 bilhões, com outras matrizes”
Moradores dos arredores da usina de Fukushima têm níveis de radioatividade testados
“Tecnologia atômica é imprevisível” Mesmo com estudos há mais de 50 anos, energia nuclear ainda não é segura da Redação Se o Japão, um dos países que mais exporta tecnologia de ponta, não foi capaz de se precaver diante de um acidente de dimensões ainda desconhecidas, não é possível prever o impacto a longo prazo da energia nucelar. Essa é a visão de especialistas ouvidos pela reportagem do Brasil de Fato. Paulo Metri, diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, aponta, no entanto, que todas as tecnologias para geração de energia estão sujeitas a acidentes. “Não é possível construir uma unidade de geração elétrica, qualquer que seja a fonte geradora, totalmente segura. Nunca existirá a tecnologia 100% segura. O acidente nuclear do Japão foi causado por um terremoto de grau 9 na escala Richter, seguido por um tsunami com ondas de até dez metros de altura. Tenho dúvida se a barragem da hidrelé-
Plebiscito
Metri afirma que as populações deveriam ter o direito de decidir via plebiscito se querem ou não correr os riscos da energia nuclear. “Acho que deve existir um plebiscito bem coordenado, com ambos os lados expondo seus argumentos, antes da votação, via horários requisitados das televisões. O povo tem o direito de ter medo, mesmo que seja considerado um medo irracional”, defende. Ildo Sauer, professor da Universidade de São Paulo (USP), aponta que o terremoto seguido de tsunami no Japão foram acontecimentos extraordinários e que a ciência não conseguiu evitar nem criar mecanismos de proteção infalíveis às usinas atômicas. “Apesar de mais de meio século de estudos para evitar danos, houve mais uma surpresa: falta de energia elétrica e uma carga altamente radioativa concentrada deixou de ser resfriada. Agora, a pergunta é se há tecnologia capaz de evitar os impactos de um evento tão extremo como um tsunami. Parece que não”, aponta. (RGT)
Belo Monte ganha fôlego Defensores apontam usina como mal menor; opositores negam da Redação
Para Paulo Metri, diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, o uso de fontes limpas e renováveis deve ser feito, mas é necessário medir o impacto financeiro dessas escolhas. Segundo Metri, se a energia alternativa for mais cara do que a convencional, o produto brasileiro pode tornar-se mais caro no mercado internacional, gerando empregos com má remuneração no país. “A [energia] solar só será competitiva em preço depois de alguns desenvolvimentos tecnológicos, que eu espero que ocorram, pois será a redenção do Nordeste brasileiro, além de ser bom para o Brasil como um todo, devido ao alto grau de insolação. A eólica pode também vir a ter alguns novos desenvolvimentos. Mas já deve ser utilizada nas regiões onde houver vento, pois, nestas, ela já é competitiva”, avalia.
trica de Itaipu, com 100 metros de altura, resistiria a um terremoto dessa magnitude”, opina.
Com o debate em torno dos danos da energia nuclear, o controverso projeto da usina de Belo Monte foi ainda mais endossado pelos seus defensores. Para estes, a hidrelétrica apresenta-se como uma solução menos perigosa e com danos ao meio ambiente que não extrapolam a área submersa. Porém, na visão de Ildo Sauer, professor da Universidade de São Paulo (USP), o dano de Fukushima não pode servir como justificativa para o desastre ambiental que seria Belo Monte. “Não tem nada a ver uma coisa com a outra. O projeto de Belo Monte é um desastre ambiental e político. O tratamento dado aos assentados não foi diferente dos governos militares. Havia outra alternativa de rios que seriam melhores do ponto de vista social e ambiental. O governo Lula não fez estudo social, ambiental e não negociou
com as comunidades. Enfiaram Belo Monte goela abaixo. Não precisamos utilizar todo nosso potencial hídrico. Precisamos usar apenas 70%; os 30% restantes podem ser destinados às comunidades indígenas e camponesas”, defende.
“O governo Lula não fez estudo social, ambiental e não negociou com as comunidades. Enfiaram Belo Monte goela abaixo” Já Paulo Metri, do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, aponta que o impacto ambiental de Belo Monte já foi calculado. “No caso da geração nuclear, o dano em potencial trata-se de uma eventual radiação. No caso das hidrelétricas, é a área inundada. No caso de Belo Monte, sou favorável à construção, pois a área inundada já foi minimizada e, além disso, como falei, não há alternativas melhores”, diz. (RGT)
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fatos em foco
Hamilton Octavio de Souza
Serviçal vip O que todo mundo desconfiava há anos, acabou confirmado pelos documentos dos embaixadores dos Estados Unidos divulgados pelo site Wikileaks: o ex-presidente do Banco Central do Brasil, o tucano-peemedebista Henrique Meirelles, não passa de um subserviente lobista das empresas estadunidenses, acima de quaisquer interesses brasileiros. E o quinta-coluna continua prestigiado pelos governos petistas! Violência estatal Em nome da especulação imobiliária, as autoridades de Belo Horizonte e do Estado de Minas Gerais estão usando todas as armas, inclusive a ameaça de repressão policial, para despejar um total de 1.200 famílias sem-teto, que desde 2008 constituíram a Comunidade Camilo Torres, depois a Comunidade Dandara e a Comunidade Irmã Dorothy, em áreas desocupadas da capital mineira. Chega de violência, pelo direito à moradia! Reprodução de páginas das apostilas utilizadas em sala de aula
O ensino do agronegócio na escola pública PROPAGANDA Setor aposta na educação para manter sua influência, ou alienação, sobre a futura geração de trabalhadores Eduardo Sales de Lima da Redação O CANTOR e compositor Alceu Valença é um ilustre admirador da cana-de-açúcar. A pequena Quirinópolis, no sul de Goiás, nunca mais foi a mesma depois da chegada de duas usinas de açúcar e etanol. O etanol não compete com os alimentos. A cana-de-açúcar já é segunda maior fonte de energia limpa do país. Essas e outras informações positivas sobre setor sucroalcooleiro estão compiladas numa cartilha. O problema é que essa propaganda está sendo trabalhada como disciplina em escolas públicas no interior do Brasil. O Projeto “Agora” é de responsabilidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e atinge educandos da 7ª e 8ª séries, com idade entre 12 a 15 anos, em uma parceria público-privada entre instituições governamentais, sindicatos e empresas como Itaú, Monsanto e Basf. Cem municípios da região centro-sul, espalhados por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás, contam com o projeto. Resumidamente, a apostila usada em sala de aula foca o desenvolvimento do setor canavieiro no Brasil e o empreendedorismo dos grandes latifundiários sob a ótica do progresso, sem apresentar aos alunos qualquer exemplo que venha desvelar contradições trabalhistas ou ambientais. A apostila não pondera, por exemplo, as contradições do trabalho escravo e a superexploração dos cortadores de cana-deaçúcar em tempos atuais. E que a monocultura e o latifúndio sempre foram avessos à diversidade produtiva. No mínimo, um problema pedagógico, aponta a economista e educadora Roberta Traspadini. “Não aparecem as lutas ocorridas nos territórios, as disputas reais vividas pelos diversos sujeitos sociais, e a produção de processos políticos antagônicos sobre a apropriação do trabalho”, critica, em recente artigo. Ela reforça ainda que o ensino do agronegócio dentro da escola pública passa por uma “validação da lógica dominante voltada para os grandes projetos, para a incorporação de um ser pertencente à vantagem competitiva do grande capital, ou um ser excluído desta possibilidade”. Não só isso, denuncia-o como um processo de construção da intencionalidade “educativa” do capital que objetiva formar um “exército industrial de reserva consciente de sua necessidade de inclusão dentro da ordem”.
Naturalização Não é apenas a Unica que tem seguido essa estratégia de propaganda dentro do ensino público. Em Ribeirão Preto (SP), as concepções do agronegócio estão sendo repassadas aos estudantes por meio do projeto “Agronegócio na Escola” e têm gerado polêmica na cidade. O Conselho Municipal de Educação entrou na briga e pediu detalhes sobre o projeto pedagógico. Desenvolvido em parceria com a Associação Brasileira do Agronegócio da região
de Ribeirão Preto (Abag-RP), o programa é utilizado nas aulas a alunos do 8º e do 9º ano desde 2009. Anteriormente, o projeto foi aplicado por dez anos na rede estadual. Cerca de 112 mil estudantes da região já passaram pelo curso. A Abag-RP oferece cartilhas aos estudantes e um vídeo, que é utilizado por professores nas aulas. A cartilha aborda temas como o surgimento da agricultura e sua modernização. Professores são levados para conhecer usinas e são capacitados pela entidade.
“Esse material ajuda a naturalizar as desigualdades, as relações de propriedade e de dominação” A Secretaria da Educação do município e a entidade patronal defendem que o conteúdo aborda temas regionais importantes, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista social, e que trabalham simplesmente com a realidade em que os alunos estão imersos. Mas não é assim que enxerga a integrante do Conselho Municipal de Educação de Ribeirão Preto Ana Paula Soares da Silva. Na visão dela, é importante que as crianças e adolescentes conheçam o agronegócio; o problema ocorre quando o material auxilia na naturalização dos problemas gerados nesse meio. “Esse material ajuda a naturalizar as desigualdades, as relações de propriedade e de dominação”, argumenta. Mesmo
dentro da linha da educação contextualizada, segundo ela, outras práticas deveriam ser abordadas, como a agroecologia, por exemplo.
“Dominação” Outro programa pedagógico polêmico, o Projeto Escola no Campo, a exemplo dos já mencionados, nasceu em 1991, por meio de uma parceria da Syngenta, transnacional do ramo de sementes, com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Ampliou-se para outros estados e até 2007 já havia atingido cerca de 405 mil crianças de comunidades rurais do país. Maria Cristina Vargas, do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), relata o quão grave é a transmissão dessas ideias à população jovem do campo. Segundo ela, por meio desse projeto tenta-se convencer os estudantes, por exemplo, da positividade da relação entre sustentabilidade e utilização dos agrotóxicos. “Eles trabalham que o saudável é o bonito, é a plantação limpa, sem ter a diferenciação de outras espécies, a diversidade de culturas”, denuncia a educadora. Segundo Ana Paula Soares da Silva, não é necessário ir muito a fundo no debate para concluir que os materiais pedagógicos distribuídos pelo agronegócio tentam esconder diferenças e intenções de “classe”. “A intenção é que as pessoas vão aceitando isso, deixando de ser o sujeito histórico, com a possibilidade de mudar a história. Não são projetos que incluem, não são projetos de justiça social; mas de dominação”, arremata. O Brasil de Fato entrou em contato com assessoria de imprensa da Unica, que afirmou ainda não haver um posicionamento sobre as críticas ao Projeto Agora.
Estado conivente Para especialistas, agronegócio na escola tem apoio do poder público da Redação Para as educadoras Ana Paula Soares da Silva e Maria Cristina Vargas, tão grave quanto a presença do agronegócio na escola pública é a carta branca concedida pelo poder público para que tais projetos sigam em frente. No caso de Ribeirão Preto (SP), é o próprio município que mantém o programa desenvolvido pela Abag nas escolas do ensino médio. Há cerca de dois anos, a prefeita Dárcy da Silva Vera (DEM) chegou a dizer que para a cidade, por ser considerada capital do agronegócio no Brasil, seria fundamental haver uma disciplina que trabalhasse o tema. Mas, segundo Ana Paula Soares da Silva, para além do município, tanto o estado como governo federal também devem ser responsabilizados pelo que está ocorrendo nas escolas do interior do país. “Esses níveis [de poder] têm plena responsabilidade na divulgação de ideias e na pro-
posta do que se quer de formação para os alunos”, critica Ana Paula Soares da Silva, do Conselho Municipal de Educação do município. “Não cabe sermos ingênuos achando que o poder público não sabe o que a escola transmite. Reflete o próprio reconhecimento das instituições na disputa desse projeto de sociedade. Existem várias formas, hoje, de repassar um ideologia. Agora, a escola pública assumir esse papel é bastante complicado”, salienta.
O MEC, ao abrir espaço para o capital no ensino, garante a sua rentabilidade e terceiriza tarefa específica do Estado A educadora Maria Cristina Vargas acrescenta que o Ministério da Educação (MEC), ao abrir a brecha para que o capital oriente as diretrizes educacionais de crianças e adultos, não apenas permite a entrada de recursos financeiros ao processo, mas terceiriza uma tarefa que é específica do Estado. “Isso reflete o tamanho da influência do setor , que tem como representantes no Congresso Nacional a bancada dos ruralistas”, critica. (ESL)
Belo Monte Sob o título “Belo Monte: o diálogo que não houve”, Dom Erwin Krautler, presidente do Conselho Indigenista Missionário, distribuiu carta aberta na qual reafirma que “até o presente momento os índios não foram ouvidos” sobre a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Ele responsabiliza o governo federal pela falta de diálogo e termina com a seguinte declaração: “Jamais aceitaremos esse projeto de morte”. A luta continua! Reação firme Convocada por sindicatos de trabalhadores, manifestação de protesto reuniu mais de 250 mil pessoas nas ruas. Foi no dia 26 de março, em Londres, Inglaterra. Eles reclamam do corte de investimentos públicos (6% do PIB) e do alto índice de desemprego (7,9% da PEA). Aqui no Brasil a situação é agravada pelo arrocho salarial e a brutal informalidade, mas as centrais sindicais continuam dormindo em berço esplêndido. Até quando? Guerra cultural Bombardeada por desafetos e concorrentes desde antes de assumir o Ministério da Cultura, a ministra Ana de Hollanda desabafou para o jornal O Estado de S.Paulo (27.03.2011): “Confesso que o jogo é mais violento do que eu imaginava. Porque esses movimentos organizados agiram com uma agressividade muito grande. E estão agindo ainda”. Tem tudo a ver com regulação dos direitos autorais e sustentação dos pontos de cultura. Luta judicial A 17ª Vara Judiciária do Distrito Federal julgou procedentes as multas aplicadas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres na empresa de alimentos Sadia S.A., por não ter pagado aos caminhoneiros autônomos os valores dos pedágios. A empresa tentou burlar a Lei nº 10.029/ 01 – que considera as despesas com pedágio por conta de quem contrata o transporte – mas se deu mal. Ponto para os caminhoneiros! Valor irreal Parece piada, mas não é: o Tribunal Superior do Trabalho tem uma espécie de tabela de valores para aplicação nas ações indenizatórias movidas por trabalhadores. No caso dos canavieiros que trabalham em propriedades sem as mínimas condições de higiene (ausência de local para guardar e aquecer a comida, falta de banheiros, falta de água potável etc.), a tabela indica indenização de R$3.000, não importa o tempo de trabalho. Pode? Ameaça mortal A irmã Henriqueta Cavalcante, da Comissão de Justiça e Paz no Pará e Amapá, faz novo apelo às autoridades sobre pessoas ameaçadas de morte. “Estou em situação de vulnerabilidade total. Trabalho contra as redes de pedofilia, tráfico de seres humanos e de drogas, trabalho escravo e piratarias nos rios do Pará. Já me reuni com o Secretário de Segurança do Pará duas vezes, e ele alega falta de policiais”, explicou a irmã. Tro-ló-ló Dominada por deputados estaduais governistas, a Assembleia Legislativa de São Paulo está há muitos anos totalmente omissa diante dos problemas mais sérios do Estado. Agora, para comprovar a inexpressividade, aprovou cinco CPIs de assuntos genéricos como o consumo abusivo de álcool, a remuneração dos médicos, a situação do ensino superior privado etc. É só para ocupar espaço e impedir a investigação de denúncias reais contra o governo.
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Liberdade e a história, lições que aprendi com Comblin Reprodução
MEMÓRIA Morreu na Bahia aos 88 anos o padre José Comblin, um dos pioneiros da Teologia da Libertação Jung Mo Sung O FALECIMENTO do padre José Comblin, no dia 27 de março, nos faz enfrentar uma realidade inevitável: a primeira geração (provavelmente a mais criativa e rigorosa) da Teologia da Libertação está aos poucos chegando ao limite da vida. Uma forma de homenagear pessoas como Comblin é continuar a tarefa de uma reflexão crítica séria e comprometida com a causa dos pobres e também de divulgar o seu pensamento para novas gerações de estudantes de teologia ou de agentes pastorais. Pensando nisso é que resolvi escrever este pequeno texto. Mas é uma tarefa muito difícil escrever em uma página o que significou a pessoa e a obra de padre Comblin para as igrejas cristãs na América Latina e também para muitos não cristãos que conheceram, por exemplo, seu livro A ideologia de segurança nacional. Por isso, eu quero simplesmente compartilhar algumas ideias de Comblin que me marcaram nos últimos 30 anos. Se há uma palavra que marcou a minha leitura da vastíssima obra de Comblin, é a liberdade. Ele disse: “Segundo a Bíblia, a liberdade é mais do que uma qualidade, um atributo de ser humano: é a própria razão de ser da humanidade.” E a afirmação de Paulo de Tarso – “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gal 5,1)” – pode ser vista como o mote que guiou a sua obra. Esta busca de liberdade, que impulsiona a luta pela libertação, não pode ser confundida com uma visão moderna burguesa da liberdade. “Não é livre aquele que diz que faz o que quer, mas, na realidade, não sabe resistir à pressão dos desejos, tornando-se escravo dos objetos que excitam o seu desejo.” Nestes casos, a liber-
O padre José Comblin, que fez parte da primeira geração de religiosos adeptos da Teologia da Libertação
dade pressupõe a libertação dos desejos individuais e a sua realização no assumir o serviço e a causa em favor dos mais pobres.
A visão de que após a ‘revolução final’ iniciaria a verdadeira história humana é um mito que desqualifica a história humana como uma pré-história A sua reflexão crítica não era direcionada somente à visão burguesa da vida e da liberdade, mas também a outras teses presentes no nosso meio. Já na década de 1960, quando muitos do cristianismo de libertação estavam descobrindo o marxismo e o utilizando nas análises sociais e nas propostas políticas, Comblin criticava filosofias da história que anunciam um caminhar necessário da história humana para a erupção do
Reino da Liberdade (marxismo) ou para “cristificação do universo” (inspirado em Teilhard de Chardin), quando começaria a verdade história humana, plena de harmonia. A sua crítica constituíase em duas ideias centrais: a) a liberdade não pode nascer da necessidade; isto é, se a história caminha necessariamente para um ponto, este não é liberdade, porque processos históricos necessários não podem gerar a liberdade, pois não haveria a opção de não chegar; b) esta visão de que após a “revolução final” iniciaria a verdadeira história humana é um mito que qualifica a história humana como uma pré-história. A sua reflexão a partir da liberdade se aplica também sobre a noção de Deus. Para ele, a tradição bíblica difere da tradição greco-ocidental que busca em Deus o fundamento da ordem atual ou da nova ordem a surgir necessariamente (Deus como motor criador da nova ordem). “Na Bíblia, todavia, tudo é diferente porque Deus é amor. O amor não funda ordem, mas desordem. O amor que-
bra toda estrutura de ordem. O amor funda a liberdade e, por conseguinte, a desordem. O pecado é consequência do amor de Deus.” “Que Deus é amor e que a vocação humana é a liberdade são as duas faces da mesma realidade, as duas vertentes do mesmo movimento”. Segundo esta forma de ver Deus e o sentido da existência humana, Deus, não é mais um ser todo-poderoso que impõe sobre o mundo a sua vontade conduzindo a história para um fim já pré-estabelecido. Uma visão presente não somente em setores conservadores, mas também em diversos setores considerados “progressistas” e eco-socialmente engajados. Deus vem ao mundo como alguém que se fez impotente diante do ser humano livre: “esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana” (Fl 2,7). Para Comblin, lutar pela libertação e uma vida de liberdade não é lutar por um mundo sem mal, pois não é possível vivermos a liberdade sem a possibilidade do mal e do pecado. Deus fez o mundo tal que o pecado é uma possibilidade inevitável. Por isso, ele retoma um texto bíblico muito citado por Juan Luis Segundo – “Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo” (Ap 3,20) – e diz: “se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar.” Essas palavras mostram uma característica de Comblin que sempre admirei: a sua coragem profética de dizer coisas que podem contrariar nossos desejos românticos, desejos que nos levam para fora da história humana e do ser humano real. Assim, ele cumpriu com a sua obra um dos propósitos da Teologia da Libertação: ser uma reflexão crítica sobre o mundo idolátrico e também sobre a nossa religiosidade e experiência de fé a serviço da liberdade-libertação dos mais pobres. Jung Mo Sung é teólogo e professor da Universidade Metodista de São Paulo
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cultura
Teatro popular contra a privatização da cultura Divulgação
PRODUÇÃO CULTURAL Grupos populares de teatro lutam para sobreviver em meio a circuito restrito e que privilegia o teatro para as elites Michelle Amaral da Reportagem
NA CERIMÔNIA de entrega de um dos principais prêmios do teatro brasileiro uma surpresa: um grupo popular é premiado e, ao invés de agradecer, realiza um protesto contra a patrocinadora do evento, a companhia petrolífera Shell. No momento do recebimento do troféu, a atriz Nica Maria, do Coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, jogou óleo queimado, simulando petróleo, sobre a cabeça do ator Tita Reis, que em seu discurso ironizava o patrocínio da Shell. “Nosso coração artista palpita com mais força do que qualquer golpe de Estado patrocinado por empresas petroleiras”, diz o ator. O Coletivo Dolores foi premiado com o espetáculo A Saga do Menino Diamante, uma Obra Periférica, no último dia 15, na categoria Especial do 23º Prêmio Shell de Teatro, tradicional premiação que acontece em São Paulo e no Rio de Janeiro. Apesar de aplaudida por parte do público, a cena espantou muitos presentes no local, entre eles, conhecidos nomes do meio artístico paulista. A atriz Beth Goulart, que apresentou o prêmio, indignou-se com a atitude do Coletivo. “Receberam um carinho e deram um tapa”, disse. De acordo com Luciano Carvalho, integrante do Coletivo, a reação desencadeada já era esperada. “Se fosse significativo [o protesto], a gente sabia que iam nos criticar”, conta. O ator explica que a oposição do Coletivo não é somente ao fato de ser a Shell a financiadora do prêmio, mas à lógica onde se insere a produção artística brasileira, em que os grandes conglomerados econômicos passam a financiar e dizer o que é ou não é arte. “As grandes empresas tornam-se reis dos Estados absolutistas de hoje e dizem o que é bom e o que é ruim. É como se fosse um polvo com todos os seus tentáculos infindáveis que estão, inclusive, na cultura, porque também é espaço de construção de ideologia”, afirma Carvalho.
Cena do espetáculo A Saga do Menino Diamante, uma Obra Periférica
Texto lido pelo Coletivo Dolores na entrega do Prêmio Shell: “Para nós do coletivo artístico Dolores é uma honra participar deste evento e ainda ser agraciado com uma premiação. Nosso corpo de artista explode numa proporção maior do que qualquer bomba jogada em crianças iraquianas. Nosso coração artista palpita com mais força do que qualquer golpe de Estado patrocinado por empresas petroleiras. Nossa alegria é tão nossa que nenhum cartel será capaz de monopolizar. É muito bom saber que a arte, a poesia e a beleza são patrocinadas por empresas tão bacanas, ecológicas e pacíficas. Obrigado gente, por essa oportunidade de falar com vocês. Até o próximo bombardeio... ...quer dizer, até a próxima premiação!!!”
Privatização O protesto foi realizado para marcar a posição contrária do grupo teatral a este tipo de premiação que, segundo o ator, promove a hierarquização e gera a exclusão daqueles que não atendem aos padrões impostos pelos que controlam o prêmio. Tal visão não é defendida somente pelo Coletivo Dolores. Grupos de teatro popular e comunitário alertam para a forma como está estruturada a política cultural no Brasil. “Esse tipo de prêmio expõe a maneira como essa área cultural e artística do nosso país está privatizada”, alerta Jorge Peloso, do Impulso Coletivo, grupo teatral de São Paulo. A privatização do fazer artístico e a consequente exclusão gerada por ela são apontadas pelos atores como resultado da Lei Rouanet, instrumento do Ministério da Cultura (MinC) criado em dezembro de 1991 durante o governo Collor, que possibilita o financiamento das atividades culturais pela iniciativa privada em troca de incentivos fiscais. “É evidente que essas empresas vão escolher para financiar o espetáculo que lhes convém. Ganham muito mais, porque além de ter desconto no imposto de renda, ainda promovem suas marcas através de prêmios como este”, descreve Tita Reis, ator do Coletivo Dolores. Para Carvalho, é necessário “tirar das mãos dos gerentes de marketing das empresas” o controle sobre o financiamento das produções artísticas
e criar políticas públicas que contemplem todos os grupos. Tramita no Congresso desde dezembro de 2009 a proposta de remodelação da Lei Rouanet. Trata-se do projeto de lei para criação do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura) que, segundo defende o MinC, democratizará o acesso a financiamentos, prevendo o repasse direto de recursos públicos para projetos que não interessam ao marketing das empresas. Nos últimos dois anos houve intenso debate sobre o projeto. Grupos populares alertam que não adianta fazer modificações na lei se não for corrigido o seu erro de concepção: conceder dinheiro público a empresas privadas. Na visão deles, para além de aumentar os recursos públicos, é necessário acabar com a renúncia fiscal. Circulação das artes Segundo Peloso, enquanto os financiadores da arte destinam seus recursos em prol de seus interesses econômicos, os coletivos que trabalham com linguagem social e nas periferias têm de enfrentar inúmeras dificuldades para sobreviver e realizar o trabalho artístico. Um exemplo é o Movimento Popular Escambo Livre de Rua, que reúne vários grupos artísticos e realiza espetáculos em comunidades do Ceará e Rio Grande do Norte. O ator Mac Thiago, do Coletivo Cabeça de Papelão, que integra o Escambo, explica que o movimento é feito por grupos autônomos que não têm financiamento de governos. “A gente tenta ao máximo possível viver da rotina do teatro de rua, através de artes circenses e rodadas de chapéu”, relata. No entanto, o ator pondera a necessidade da distribuição do orçamento destinado à cultura de forma igualitária. “Hoje existem alguns editais das secretarias de cultura e do MinC, mas contemplam poucos grupos. Muitos coletivos de teatro acabam falindo, porque não têm incentivo suficiente para se manter”, descreve. Jorge Peloso também defende que sejam criadas políticas públicas de difusão cultural que, além de fomentar os espetáculos e os trabalhos dos grupos populares, viabilizem a circulação das artes de modo a chegarem às periferias das cidades, no contrafluxo da atual lógica cultural, em que o fazer artístico está localizado nos centros urbanos. Apesar de ser contrário a este tipo de premiação, o Coletivo Dolores decidiu receber o prêmio que, além de um troféu, lhe conferiu R$ 8 mil. De acordo com nota do grupo, “esta é uma forma de restituição de uma ínfima parte do dinheiro expropriado da classe trabalhadora”.
Não existem heróis Espetáculo premiado retrata a saga humana e se opõem à eleição dos melhores da Reportagem O espetáculo A Saga do Menino Diamante, uma Obra Periférica, com o qual o Coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes foi premiado na 23ª edição do Prêmio Shell de Teatro, se opõe justamente a este tipo de premiação, em que se elegem os melhores de determinada categoria. Em entrevista ao Brasil de Fato, dois integrantes do Coletivo Dolores, Luciano Carvalho e Tita Reis, falam sobre a trajetória do grupo, os objetivos da peça e o fato de terem sido premiados. De acordo com eles, o espetáculo defende que a eleição dos melhores em todos os setores da sociedade serve como instrumento de perpetuação do capitalismo, porque cria hierarquias e gera exclusão. Os atores contam que a decisão de receber o prêmio veio após um longo debate, que demandou também a necessidade de marcar a posição contrária a este tipo de eleição. Por isso, realizaram o protesto em que a atriz Nica Maria jogou óleo queimado, simulando
petróleo, no ator Tita Reis, que segurava o prêmio e fazia um discurso contra a patrocinadora do evento, a companhia petrolífera Shell. Brasil de Fato – Do que trata o espetáculo A Saga do Menino Diamante, com o qual vocês foram premiados? Luciano Carvalho – O espetáculo A Saga do Menino Diamante é a saga da aventura humana, tendo a humanidade como o principal construtor de histórias. É uma tese materialista dialética que vai pegar como recorte histórico a construção das cidades em um período de aproximadamente 50 anos e geograficamente o Brasil. Praticamente a construção de São Paulo, a construção de Brasília, a construção das grandes cidades brasileiras. Nós defendemos a tese de que o indivíduo é uma criação social. Não é o indivíduo que cria a sociedade, é o contrário. A gente inaugura a cidade no indivíduo e apresenta também que a cidade é o capital em movimento, o capital a construiu, não é só a expressão do capital, ela é o capital. E vendemos esse capitalismo em uma relação social. São 33 pessoas em cena. Realizamos a migração de trabalhadores, operamos a construção de uma favela, junto com o surgimento da indústria automobilística, e temos um paralelo importantíssimo no Menino Diamante, que está embutido no nome A Saga do Menino Diamante. É um título heróico, o
menino diamante, o indivíduo que brilha. E a Saga é justamente o contrário. A gente coloca um título falso, queremos mostrar justamente o oposto disso. Não há herói, não existe menino diamante. Isso não só na Saga, estamos dizendo que não há na vida, os heróis são eleitos por uma estruturação sócio-cultural e hierárquica. E isso é importante, principalmente na cultura do capital e fundamental na estrutura dos dois últimos atos da Saga, onde uma classe domina a outra, criam-se hierarquias e ter os melhores em todos os setores acaba sendo muito importante. Se a Saga mostra exatamente que não existem os melhores e critica esse tipo de eleição, por que vocês acham que foram premiados? Tita Reis – Isso é até esquisito para a gente. Fomos indicados em dois prêmios: um da Cooperativa [Paulista de Teatro], em cinco categorias, e o Prêmio Shell. A gente tem uma posição contrária à meritocracia, a medir a arte, premiar certa arte e recusar outra. E agora, o que a gente faz? No da Cooperativa a gente foi receber com o Armando Boas Praças, que é o nosso político fictício. É um espaço onde vários outros grupos se impunham, então a gente acha que tinha que fazer esse debate com eles. Agora, o Shell para a gente era incabível ir lá simplesmente receber o prêmio. Não tinha como receber esse prêmio com esse
espetáculo. E o que a gente ia falar para as pessoas? Ao mesmo tempo que para nós é bom saber que agora estão olhando para isso, se a gente falasse simplesmente que não ia, dariam o prêmio para outro grupo. Não marcaria uma posição referente a esse tipo de premiação e à Shell, então, resolvemos ir, mas tínhamos que chegar lá e dar um recado. E como nasceu a ideia do protesto? Tita Reis – De um longo debate de um mês ou mais. O que fazer? Como fazer? E pensar o que ia gerar depois, se vale a pena. A gente teve várias ideias: ir com o macacão da peça, espalhar óleo no lugar. Até chegar a construir essa cena que era de alguém ir receber o prêmio, congelar, outro derrubar óleo sobre a cabeça e falar o texto que a gente elaborou coletivamente. E a gente não sabia no que isso daria. E como foi a reação dos presentes na premiação? Tita Reis – Foi engraçada. Teve gente que criticou a gente ter dado uma paulada na burguesia, apesar de nem ter sido um tapa. Mas é engraçado, porque a gente vive na periferia recebendo porrada e ninguém fala disso. Luciano Carvalho – A reação desencadeada já era esperada. Se [o protesto] fosse significativo, a gente sabia que iam bater. Mas teve gente para caramba que aplaudiu.
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Olmo Calvo Rodríguez/CC
Homem caminha em rua alagada da comunidade 17 de Noviembre, localizada perto do centro de Buenos Aires
Por trás do crescimento econômico ARGENTINA País mantém altas taxas de aumento do PIB na última década, mas não consegue dar resposta aos mais pobres Dafne Melo de Buenos Aires (Argentina) NO FINAL DESTE ano, a Argentina completará dez anos da crise de 2001. A julgar pelas taxas de crescimento econômico desde então, o país parece ter deixado para trás os períodos difíceis. Para 2011, a estimativa é de que mantenha os índices de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) dos últimos oito anos, todos entre 7 e 9% (veja tabela nesta página) – com uma leve queda em 2008, como efeito da crise internacional. É um dos maiores da América Latina, juntamente com a Venezuela que, entretanto, tem diminuído seu ritmo nos últimos anos. A grande contradição, porém, é que ainda que nosso país vizinho esteja produzindo riqueza como nunca, os índices sociais deixam a desejar e mostram que o fantasma de 2001 não ficou totalmente para trás. Mariano Féliz, economista do Centro de Estudos para a Mudança Social e militante da Frente Popular Darío Santillán, afirma que o poder de compra dos trabalhadores, com raras exceções de alguns setores, é menor do que o da década de 1990. “Há categorias vinculadas ao setor industrial que conseguiram mantêlo, mas são exceções. Os trabalhadores do setor estatal e os precarizados não recuperaram o poder de compra que possuíam”. Hoje, por exemplo, continua Féliz, os trabalhadores do serviço público têm, em média, um salário com poder de compra 25% mais baixo do que em 2001. A desigualdade social também diminuiu pouco, apesar das políticas assistencialistas.
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%
menor, em média, é o poder de compra dos funcionários públicos hoje, comparado com 2001
ve com até um salário mínimo ou se encontra na informalidade. “A pobreza e o trabalho informal diminuíram, mas ainda mantêm níveis altos, com 30% e 35,5% respectivamente. Atualmente, 45% da força de trabalho têm sérias dificuldades para se relacionar com o mercado de trabalho”, afirma Lucita.
Ainda que nosso país vizinho esteja produzindo riqueza como nunca, os índices sociais deixam a desejar e mostram que o fantasma de 2001 não ficou totalmente para trás De acordo com o economista da Universidade de Buenos Aires, Eduardo Lucita, “entre o que é apropriado pelos 10% mais ricos da população e o que recebe os 10% mais pobres, praticamente se mantêm os níveis de 2001”. Outro indicativo, aponta Mariano Féliz, é que de acordo com um censo oficial de 2001, cerca de 25% das residências eram inadequadas. Passados dez anos, o número se mantêm. “Houve investimento em moradias, mas também cresceu o número de pessoas que vivem em más condições e tudo ficou igual”. Pobre com trabalho
Para Féliz, uma forma de resumir a diferença entre a década neoliberal de 1990 e hoje é que antes “a pessoa não tinha trabalho e, por isso, era pobre; hoje, ela tem um trabalho, mas ainda assim é pobre”. Ou seja, a Argentina, como o Brasil, tem conseguido diminuir o índice de desocupação, mas grande parte desses trabalhadores vi-
De acordo com dados oficiais do governo, o índice de desemprego hoje está em torno de 8%, bem abaixo dos 25% em que a Argentina chegou em 2002. Para Féliz, porém, boa parte dos postos criados é precária. “Além disso, os salários são baixos e não conseguem se recuperar das perdas históricas e da inflação atual”.
“A pessoa não tinha trabalho e, por isso, era pobre; hoje, ela tem um trabalho, mas ainda assim é pobre” O governo federal admite uma inflação anual por volta dos 10%. Entretanto, institutos privados e economistas trabalham com um número de até 30%.
O fato é que a maquiagem dos números da inflação dificulta ainda mais a valorização dos salários. Segundo Lucita, um dos elementos que contribuem para a alta da inflação é que esta tem sido usada pelo setor industrial como uma forma de desvalorizar os salários e maximizar os lucros. “Esta é uma economia muito concentrada, com taxas de lucro muito altas e onde 100 empresas são as formadoras dos preços”, analisa. Para Lucita, apesar dos indicadores sociais terem apresentado uma melhora em relação ao início da década, a atual política econômica é incapaz de resolver o problema de boa parte da população. “O modelo atual é fortemente concentrador da riqueza e também da pobreza. Podemos afirmar que nos últimos anos a pobreza não se expande, até diminui, mas há um núcleo duro em que ela se aprofunda”, avalia.
A receita do crescimento Governo realiza transferência massiva de recursos ao setor privado, mas economiza em gastos sociais de Buenos Aires (Argentina) Um dos alicerces da política econômica argentina são os subsídios ao setor privado. De acordo com Mariano Féliz, economista do Centro de Estudos para a Mudança Social e militante da Frente Popular Darío Santillán, essa tem sido uma prática bastante usada nos últimos dez anos. “A maioria dos recursos é transferida sem nenhuma contrapartida do setor privado. Nos últimos quatro anos, ou seja, no governo de Cristina Kirchner, houve um aumento de duas ou três vezes da quantidade de subsídios”. Os setores beneficiados são basicamente quatro: transporte, energia, agroindústria e empresas públicas. A origem do subsídio remonta à crise do início da década, quando o objetivo foi manter as tarifas básicas e o preço dos alimentos sob controle. No ano passado, os gastos comprometeram 15% do orçamento, 47% a mais do que no ano anterior. Além dos subsídios, o Estado argentino paga até hoje juros da dívida pública, boa parte dela adquirida devido à transferência da dívida de empresas ao Estado após a crise. De acordo com Féliz, cerca de 10% do orçamento é usado para pagamento da dívida. Para o orçamento deste ano, há uma previsão de aumentar a quantidade de recursos destinados a este fim em 28%. Para o economista, é necessário rediscutir a forma em que se dá o desenvolvimento do capitalismo na Argentina e a serviço de quem está o aclamado
crescimento econômico a ritmo chinês. “O volume de dinheiro aplicado em políticas sociais é muito pequeno se comparado ao subsídio em outros setores da economia. Não tira as pessoas da pobreza, não sana o problema”.
Para Féliz, é necessário rediscutir a forma em que se dá o desenvolvimento do capitalismo na Argentina e a serviço de quem está o aclamado crescimento econômico a ritmo chinês Programas assistencialistas
Uma novidade na última década tem sido a aposta em programas assistencialistas, a exemplo do que também ocorre no Brasil. “Não existiam programas massivos de distribuição de renda nas décadas anteriores”, aponta Féliz. Na Argentina, elas surgem após a crise de 2001, como uma forma de conter a queda nos indicadores sociais, mas também para tentar frear as mobilizações sociais. “Os programas de transferência de renda começam a partir de 2002. O governo tem uma política de conter o conflito social com o assistencialismo, passando pela cooptação de organizações sociais e a manutenção de setores sociais não organizados tranquilos”. Um deles é o Plano Argentina Trabalha, projeto que concede verbas a cooperativas de trabalho que podem tanto desempenhar tarefas em pequenas unidades produtivas como prestar serviços de limpeza urbana, construção de praças etc. Muitos apontam, porém, que o governo federal beneficia com mais frequência e volume de recursos organizações e movimentos sociais alinhados ao kirch-
nerismo, em detrimento das mais combativas. Além disso, organizações denunciam que são feitos descontos arbitrários e sem aviso prévio no pagamento dos trabalhadores cadastrados. Outro programa do governo é a Bolsa Universal por Filho, que concede um benefício por filho matriculado na escola a famílias em que os pais não possuem contrato formal de trabalho ou que ganhem menos de um salário mínimo. Para Féliz, as medidas ainda possuem um volume muito pequeno de recursos. O benefício, hoje, contempla 3,8 milhões de crianças e, para 2011, está previsto um aumento de mais 200 mil crianças. “O que o Estado gasta para pagar juros da dívida é três vezes o valor da Bolsa Universal por Filho e o Plano Argentina Trabalha juntos”, conclui. (DM) Taxa de Crescimento Real (%) 2000
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Em 2010, o crescimento econômico se concentrou em alguns setores da indústria manufatureira. Produção automotriz: 25%; metal-mecânicos: 28%; produtos do tabaco: 14,5%; minerais não metálicos: 10%; alimentos e bebidas: 9,4%. A produção agrícola registrou, na safra 2009/2010, um amento de 70% na produção de soja, 94% da produção de algodão e 73% na de milho.
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O labirinto neoliberal White House/Pete Souza
CHILE Reconstrução das lutas da classe trabalhadora é ainda um desafio frente à hegemonia do Consenso de Washington no país Pedro Carrano de Santiago (Chile) COMO SE FOSSE uma passagem da mitologia grega, em um labirinto, os militantes chilenos buscam hoje se guiar pelos fios dispersos do movimento popular e operário, passados quase 40 anos do golpe de Estado e da instauração da ditadura do general Augusto Pinochet, em 1973, ação que atingiu a Unidade Popular do presidente Salvador Allende e debilitou a organização popular dos bairros do entorno de Santiago do Chile. Matou o senso de pertencimento de classe. Instaurou o neoliberalismo com toda força. Mesmo quando a ditadura dá lugar às eleições e o período Pinochet se encerra, em 1988, ainda assim os 23 anos de governo da Concertação que se sucederam não conduziram o país à saída desse labirinto neoliberal. Os recursos e a matéria-prima do solo foram entregues às empresas transnacionais. Mas isso ainda diz pouco: foi a resistência e a organização proletária, fermentadas no período de substituição de importações, durante o século 20, o alvo principal da política de Pinochet. Essa é a avaliação de Carlos Torres, assessor do Fórum Social Mundial.
Foi a resistência e a organização proletária, fermentadas no período de substituição de importações, durante o século 20, o alvo principal da política de Pinochet “Nos centros industriais, existia o que podemos chamar de cultura proletária, que, no caso de Chile, Brasil e México, construiu-se através de quase um século de vida das pessoas em torno dos lugares de trabalho. Os trabalhadores viviam nos bairros distantes, industriais, seus filhos iam às mesmas escolas, suas mulheres estavam na mesma junta de vizinhos, sofriam os mesmos problemas, liam os mesmos jornais, jogavam nos mesmos times de futebol, tomavam cerveja nos mesmos bares, os religiosos iam à mesma igreja. A força do movimento sindical não estava somente nos sindicatos. Estava também, porque se sentia a exploração, mas eles a viviam diariamente e não só em relação à máquina, mas em todos os escalões da vida”, reflete. Movimentações recentes
Os ataques aos trabalhadores permanecem. De acordo com o raciocínio de Torres, no Chile, eles não têm encontrado forças e soluções coletivas para uma reação. “As políticas neoliberais vêm justamente atacar o nó central da força e da organização popular, destruindo o que se havia construído, que era a cultura proletária, que se rompe com toda a sua força orgânica e de consciência, porque já não tem a força de enfrentar os problemas coletivamente. Aqui, tudo se dispersa. O que faz com que o trabalhador não chegue sequer a ler o boletim do sindicato”, reflete.
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%
é a taxa de sindicalização hoje no Chile
dã contra a alta dos preços do gás – produzidos na própria região, centro energético chileno. Como resultado, mais de 200 presos políticos, repressão que também se manifesta contra a luta em defesa do território mapuche e de coletivos de esquerda da capital Santiago. A gestão do direitista Sebastián Piñera – também ele individualista e refratário ao trabalho em equipe, de acordo com editorial do periódico Punto Final – equilibra-se entre a chance de promover um retorno ao Estado policial chileno, dos tempos de Pinochet, e a manutenção de políticas compensatórias, ao estilo neoliberal.
“Com os impostos, o trabalhador perde 60% do poder aquisitivo. São impostos que não se notam” O governo, que recebeu recentemente a visita do presidente estadunidense Barack Obama ao Palácio de la Moneda, de onde Allende foi retirado morto, em 1973, volta-se para o campo de países que segue diretamente a política determinada por Washington. “Acentua-se a repressão. Há uma mudança no posicionamento latino-americano, e Piñera se alinha com o uribismo, com Alan García, do Peru”, informa Ernesto Pérez, militante do canal comunitário Umbrales TV.
Obama e Piñera: governo chileno segue diretamente a política determinada por Washington
A retomada de antigas tradições, como o baile cueca, que leva centenas de jovens de volta às praças da capital, é um pequeno sinal de que há uma movimentação popular à margem da lógica neoliberal e dos partidos engessados na formalidade – na qual a própria esquerda ainda apresenta pouca inserção. Uma crise na oposição conformada pela Concertação e pelo Partido Comunista, que até o momento não deram resposta efetiva ao governo Piñera e à política da Alianza, pode ser substituída por ferramentas novas da classe trabalhadora? Na realidade, não parece haver elementos nesse sentido, de acordo com Ernesto Pérez, da Umbrales TV. “Duvidamos disso. A esquerda revolucionária vive uma crise profunda que não logra sair, há que ser franco com a verdade. Sabemos que o modelo de esquerda sectária está habitando um esquema do passado, assim como amadurece um movimento social por fora da esquerda”, descreve.
Enquanto isso, a conjuntura aponta para projetos de reforma educacional e da saúde. Esta última se daria por meio da implantação de um bônus à população mais pobre que transferiria o atendimento da saúde pública para o âmbito privado. Com ingressos mensais médios de 229 dólares, para uma jornada de 45 horas semanais, um trabalhador ainda deve pagar todos os serviços.
“Sabemos que o modelo de esquerda sectária está habitando um esquema do passado, assim como amadurece um movimento social por fora da esquerda” O economista José Manuel Flores, professor da Universidade de Santiago de Chile, agrega que, além de tudo, os impostos são mais um mecanismo de exploração da já endividada classe trabalhadora chilena. “Com os impostos, o trabalhador perde 60% do poder aquisitivo. São impostos que não se notam”, comenta.
Para poucos
Em um país de 16 milhões de habitantes, 6,5 milhões de trabalhadores estão no mercado de trabalho formal, 800 mil na informalidade e 2,5 milhões de pessoas se situam na pobreza extrema, de acordo com dados citados pelo economista José Manuel Flores; dados não oficiais e/ou defasados, aponta.
Por fora da esquerda
Tudo se resume a um modelo hegemônico que, no Chile, há décadas não conhece contraposição. “Vivemos um momento político em que não há uma alternativa de modelo. Inclusive o Partido Comunista está dentro dele, buscando reformas não antagônicas, apoio dos setores do Partido Democrata-Cristão (PDC), alternativas de administração do modelo”, analisa Carlos Torres. Na juventude, reside a esperança de confrontação ao projeto de reforma educacional. “Em 2006, houve uma manifestação dos famosos ‘pinguinos’ [pinguins], estudantes de ensino médio de 13, 14, até 16 anos. A reação em cadeia dos escolares evidenciou que o modelo de controle de dominação era ineficiente”, analisa José Manuel Flores.
As águas do Pacífico para a pesca foram privatizadas. Suas donas são empresas concessionárias abertas ao capital financeiro
Reprodução
De acordo com o raciocínio de Torres, no Chile, os trabalhadores não têm encontrado forças e soluções coletivas para uma reação A taxa de sindicalização hoje no país está em torno de 11% da força de trabalho, o que dá à Central Unitaria de Trabajadores (CUT) pouca presença na agenda política do país. Apesar da fragmentação e um longo período de descenso da luta de massas, movimentações recentes e à margem dos partidos institucionais despertam a atenção para a realidade chilena. Os povoadores da província de Magallanes, no sul do país, organizaram no começo deste ano a chamada Assembleia Cida-
Manifestação dos “pinguinos”, estudantes do ensino médio, em Santiago
As 6 mil grandes empresas controlam os mercados externo e interno e deixam uma fatia pequena deles às 27 mil médias e 51 mil pequenas empresas formais. Não há articulação entre esses ramos industriais, de acordo com Flores. “São grandes empresas que não criam sinergias com as médias e pequenas e contam com carga tributária reduzida”, diz. Nesse cenário, de acordo com o economista, os salários são rebaixados. A pauta de exportações, formada pelo cobre e pelo salmão, entre outros itens, são apropriadas pelas transnacionais. Por absurdo que pareça, as águas do Pacífico para a pesca foram privatizadas. Suas donas são empresas concessionárias abertas ao capital financeiro, que já receberam do Estado chileno 450 milhões de dólares. Como resultado, a produção caiu, entre 1985 e 2002, de 1.200 para 331 toneladas, segundo a revista Punto Final. Junto a esse cenário, 60% das fontes fluviais são controladas pela empresa Endesa, da Espanha. Estamos falando de uma das águas potáveis mais caras da América do Sul, de acordo com o periódico quinzenal El Ciudadano. Igualmente à conjuntura que também atinge a economia brasileira, a desvalorização do dólar e o consequente fortalecimento do peso chileno reforçam na mídia local o discurso de necessidade de “adaptação trabalhista” e corte de direitos, argumentando que a força de trabalho estaria muito cara no país.
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internacional
Do corredor da morte ao mundo MUMIA ABU-JAMAL “Porque é preciso muita gente para fazer a revolução, e muita gente para preservá-la” Reprodução
Glória Muñoz Ramírez, Desinformemonos.org DURANTE UM ANO tentamos uma entrevista com Mumia, um dos presos políticos mais conhecidos do mundo. Enviamos cartas e pedidos através de todos os contatos possíveis que tivemos à mão, entre eles os membros do coletivo Amigos de Mumia México, os quais se ofereceram amavelmente para nos apoiar com uma gestão que tinha como destino o corredor da morte da prisão de Waynesburg, Pensilvânia, onde Mumia permanece preso há 29 anos. Até que, certo dia, deslizou por baixo da porta um envelope com o nome de M. A. Jamal como remetente. Chegava a nós a primeira entrevista que concede a um meio mexicano o ativista da causa afroamericana nos Estados Unidos, ex-membro do Black Panthers Party, o Partido dos Panteras Negras. Na carta de duas páginas escrita a máquina, Mumia fala da necessidade de organização social, dos partidos políticos “servos do capital”, da pertinência dos movimentos autônomos e a transcendência das reivindicações do EZLN, do movimento afroamericano nos Estados Unidos, dos Panteras Negras na atualidade, das contradições entre o discurso e a prática do governo dos Estados Unidos, do pensamento de Frantz Fanon e das expectativas que despertou Obama com sua chegada à presidência, em um país em que “os negros ocupam postos, mas têm pouco poder”. “A luta segue”, conclui Mumia, na entrevista que se apresenta a seguir, no formato escolhido por ele.
EUA: contradições entre discurso e prática Parece-me muito atinada sua leitura das contradições nos EUA, que se projetam como avatar dos direitos humanos quando são a nação mais repleta de prisões no mundo. A contradição é crua e irrefutável. Temos muitas coisas neste país, mas a democracia certamente não é uma delas. Temos formas democráticas, mas não temos verdadeiras normas democráticas. Quando milhões de cidadãos saíram às ruas na primavera de 2002 pedindo que o país não fosse à guerra, a “democracia” ignorou o povo, e o resultado foi um desastre social, humanitário, ecológico, arqueológico e militar. George Bush descreveu essas milhões de pessoas nas ruas como um “grupo de pressão” - que ele prontamente ignorou. Como pode ser que este país, que fala com tanta doçura de liberdade, tenha mais presos políticos que qualquer outra nação do mundo, a maioria sendo negros? Os EUA têm cerca de 5% da população do mundo, mas 25% dos seus presos. Que mais dizer sobre direitos humanos?
“Parece-me muito atinada sua leitura das contradições nos EUA, que se projetam como avatar dos direitos humanos quando são a nação mais repleta de prisões no mundo. A contradição é crua e irrefutável”
Olá! Tentarei responder a algumas de suas perguntas no seguinte formato. Vamos lá! Organizando-nos Não há uma única maneira de fazê-lo, tampouco um só tipo de evento que impulsione essas coisas. Porque as pessoas são complexas e, claro, as condições mudam. Segundo o grande C.L.R. James (escritor e ativista social trinitáriotobagense), a organização começa quando duas pessoas concordam em trabalhar juntas. Mao [Tse-Tung] disse que “uma só faísca pode incendiar toda a campina”, e esse certamente parece ser o caso quando você observa o que aconteceu no Egito e na Tunísia nas últimas semanas [N.T.: a entrevista foi respondida no início de fevereiro]. Mas também é verdade que a organização esteve se processando por um bom tempo (especialmente no Egito), e parece que muitas pessoas simplesmente chegaram a um ponto-limite.
“Estou totalmente de acordo com a ideia de nos organizarmos à margem dos partidos políticos e da classe política. De fato, essa pode ser a única maneira de manter os movimentos sociais frescos e livres das armadilhas da corrupção” Os partidos políticos Muitos, de fato a maioria dos partidos políticos, especialmente nas metrópoles, se tornaram descarados servos do capital. Por isso, competem entre si a serviço da riqueza sem sequer fingir que representam o povo. Como disse acertadamente o historiador francês Toqueville: “O cidadão americano não conhece uma profissão mais alta que a política – porque é a mais lucrativa”. Ele escreveu isso há 150 anos! Os partidos são, na verdade, um obstáculo às necessidades e interesses do povo. Isso fica especialmente claro no chamado mundo desenvolvido, onde vemos que os políticos prometem uma coisa para serem eleitos, mas, uma vez que ocupam o cargo, rompem todas as suas promessas. Autonomia Se entendo bem (é que há poucos movimentos autônomos nos Estados Unidos), estamos falando de movimentos que são “autônomos” em relação aos partidos políticos. Nesse caso, estou totalmente a favor. Além de serem mecanismos para acumular fortunas pessoais, os partidos políticos são máquinas feitas para dar ao povo a ilusão da democracia. As propostas do EZLN Estou totalmente de acordo [com a ideia de nos organizarmos à margem dos partidos políticos e da classe política]. De fato, essa pode ser a única ma-
quer cor, gênero, classe etc. Creio que esse fator inclusivo é, no fundo, seu aspecto mais humanista e que atrai os setores mais amplos da família humana. Porque é preciso muita gente para fazer a revolução, e muita gente para preservá-la.
Mumia Abu-Jamal, preso político e ex-membro do Partido dos Panteras Negras
neira de manter os movimentos sociais frescos e livres das armadilhas da corrupção, tão comuns na vida política em todo o mundo. Durante vários anos, tenho estado conversando sobre isso com um amigo meu, mais velho, que também é um estudioso do EZLN. Creio que devemos explorar, experimentar e, se parece possível, utilizar essa maneira de nos organizarmos. Os africano-americanos Para ser sincero, a situação é alarmante. Para milhões de crianças, nos guetos das cidades dos Estados Unidos, o índice de abandono dos estudos é de 50%. Em algumas cidades, como Baltimore, me dizem que chega a 75%. E, em muitos casos, os que chegam ao fim do ensino médio não conseguem entrar na universidade porque receberam uma educação fraca. Estamos falando de crianças! E, enquanto o índice oficial de desemprego, em nível nacional, está ao redor de 7%, para a América negra, é de quase 35% e, para os jovens, mais de 60%. Além disso, os jovens negros estão sujeitos a uma violência policial aberta, brutal e mortal, e é raro que um policial seja castigado por esse tipo de ação. A eleição de Obama tem despertado e enfurecido as forças direitistas e racistas, muitas das quais se encontram no movimento Tea Party. Há políticos que tecem elogios à Guerra Civil (1860-1865), do ponto de vista sulista. Faz uns dias, o governador do Mississipi estava disposto a honrar com uma placa de automóveis um dos fundadores da Ku Klux Klan, o general Nathan Bedford Forrest, que foi responsável pela tortura e assassinato de centenas de soldados negros em um lugar chamado Forte Pillow. Partido Panteras Negras Há bastante interesse sobre o BPP [da sigla em inglês] entre os jovens negros, mas poucos conhecem os detalhes históricos. Isso porque eles são ensinados por professores e por uma mídia que enfatizam o triunfo do movimento de Direitos Civis, que tornou possível a eleição de políticos negros. O movimento nacionalista negro está em declínio. O que o movimento de Direitos Civis conseguiu foi a separação dos negros da classe trabalhadora dos negros burgueses, resultando na separação dos negros prósperos de seus primos pobres nas áreas centrais e degradadas das cidades. Isso se reflete em praticamente todos os níveis entre os negros americanos. E isso explica como (e por que) as
escolas para milhões de crianças negras e latinas podem ser tão pobres, em tantas comunidades. EUA: negros e indígenas As diferenças são reais porque raramente os espaços vitais são compartilhados (a maioria das comunidades indígenas está em áreas rurais ou no Oeste, enquanto a maioria dos negros vive em áreas urbanas). Dito isto, certamente há uma interação ideológica entre os dois grupos, e o Movimento Índio Americano [AIM, da sigla em inglês] foi com certeza influenciado pelos Panteras Negras e o Movimento Black Power. As lutas pela independência e a liberdade dos negros e dos indígenas se reforçaram e se influenciaram mutuamente.
“O que o movimento de Direitos Civis conseguiu foi a separação dos negros da classe trabalhadora dos negros burgueses, resultando na separação dos negros prósperos de seus primos pobres nas áreas centrais e degradadas das cidades” Migrantes Como o capitalismo enfrenta uma crise, ele obriga o povo a pensar de maneira menos holística e mais egoísta. Esse impulso, alimentado pelo medo (e propagado pela mídia corporativa), reforça o sentimento de separação entre as pessoas e dissipa a comunalidade, o senso de comunidade e a própria coesão social. A menos que os ativistas sejam capazes de construir um sentimento de solidariedade entre os povos, esses impulsos levarão a verdadeiros desastres sociais e históricos. EZLN e Panteras Negras Creio que o fator que une as duas formações é sua insistência em que TODAS as pessoas, de todas as condições sociais, podem jogar um papel importante nos movimentos sociais pela mudança. Muitos dos movimentos nacionalistas negros dos anos de 1960 eram bastante críticos em relação aos Panteras Negras por trabalharmos com gente branca (também se trabalhava com ativistas chicanos, portorriquenhos, japoneses e chineses). A convocação zapatista sempre foi ao mundo inteiro, às pessoas de qual-
Franz Fanon e Obama Os africano-americanos não tomaram o poder quando elegeram Obama, ainda que eu possa entender por que alguns pensam que eles o fizeram. Isso porque o que se fez foi um certo tipo de história. Pela primeira vez uma pessoa negra foi eleita presidente (interessante, isso ocorreu quase um século e meio depois que um homem negro foi eleito presidente do México [N.T.: Mumia provavelmente se refere a Benito Juárez, que era indígena de origem zapoteca]. Mas, como Fanon nos ensinou, no contexto do continente africano, o colonialismo foi sucedido pelo neocolonialismo. Os negros ocupam os cargos, mas, na realidade, têm pouco poder. Eles estão em dívida com os mesmos interesses que controlam os políticos brancos. De fato, a triste realidade é que os negros têm menos poder que antes, porque os políticos negros são menos capazes de tratar dos assuntos relevantes para a população negra, por medo de serem tachados de “racistas” pela mídia corporativa. Lembremos o exemplo de quando Obama chamou de “estúpido” o policial que perseguiu e prendeu seu amigo e antigo professor universitário Henry Louis Gates. A mídia enlouqueceu. O incidente também demonstrou que alguém da elite negra (e, se um professor de Harvard não é da elite, ninguém é), o professor Gates, foi tratado como um negro pobre do bairro – detido em casa, humilhado e preso por atrever-se a falar com dignidade com um policial branco. A mídia obrigou Obama a calar-se. Eu Como diziam os moçambicanos, “a luta continua”. Temos que construir, ampliar, aprofundar e fortalecer nossa luta onde quer que seja, porque, como dizia Frederick Douglas, “sem luta, não há progresso”. Pode não ser fácil, mas é necessário. Adiós, mis amigos, y gracias por todo! Mumia Tradução: Spensy Pimentel
Quem é? O jornalista Mumia Abu-Jamal (nome recebido ao se converter ao islamismo), ou Wesley Cook, ficou conhecido por seu programa de rádio “A voz dos sem-voz”. Militante negro antirracista e ex-integrante do Partido dos Panteras Negras, Jamal foi condenado à morte por, supostamente, matar um policial que espancava seu irmão, no início dos anos de 1980. Ao longo de mais de 20 anos de uma incessante batalha judicial em um processo cheio de falhas, Jamal é considerado um prisioneiro político dos Estados Unidos condenado à morte.