Edição 423 - de 7 a 13 de abril de 2011

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Reprodução

Argentina

Punições aos genocidas da ditadura

Págs. 10 e 11

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Circulação Nacional Ano 9 • Número 423

R$ 2,80

São Paulo, de 7 a 13 de abril de 2011

www.brasildefato.com.br Reprodução

A direita perdida Sem rumo, desesperada, preconceituosa. Sem projeto. A crise “existencial” da oposição partidária conservadora após oito anos de governo Lula vem mostrando seus sintomas nos últimos meses: criação de um novo partido, possibilidade de fusão de outros e, inclusive, manifestações públicas racistas e homofóbicas de uma extrema direita residual, mas que segue representada em figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ). Págs. 4 e 5

ISSN 1978-5134

Hondurenhos sob crise e repressão

Pág. 9

O cangaço além dos mitos

Pág. 8

Silvio Mieli

Beto Almeida

Miguel Urbano Rodrigues

Universidade do Desastre

Manipulação dos EUA

Portugal e o abismo

Acusado de pessimista, apocalíptico e retrógrado, o filósofo e arquiteto francês Paul Virilio não é um profeta. Apenas revela, com antecedência, os acidentes da tecnologia para entender o outro lado do progresso. Pág. 3

O Brasil votou a favor do envio de vistoria especial da Organização das Nações Unidas sobre violação de direitos humanos no Irã. Com isso, alinha-se, injustificadamente, à manipulação dos EUA. Pág. 3

Sócrates acusa a direita partidária de pretender destruir o Estado social. Na realidade, durante os seus dois governos, desencadeou uma ofensiva brutal contra o que resta da herança da Revolução de Abril. Pág. 3


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de 7 a 13 de abril de 2011

editorial

Grandes projetos e trabalhadores em greve DE UM LADO ANÚNCIOS de mega projetos, grandes investimentos e a pavimentação da infraestrutura de um Brasil do futuro. Do outro, obras com condições de trabalho fora dos padrões mínimos da legislação, defasagem salarial e canteiros que são verdadeiros campos de concentração à noite e nos finais de semana. Essa combinação é a explicação das inúmeras mobilizações de operários em todo país, com paralisações, greves e motins. Segundo o Dieese foram mais de 170 mil trabalhadores parados no mês de março. Um volume histórico comparável aos tempos das grandes greves do ABC paulista. E este mês de abril chega com boas promessas de lutas, da continuidade das mobilizações dos operários nas obras e outras lutas que se somam na construção de um outro Brasil. A luta pela redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais sem redução dos salários, o fim do fator previdenciário, a redução da taxa de juros e a reforma agrária são pontos unitários de mobilizações construídas com as centrais sindicais e os movimentos sociais para este mês. O tema da redução da jornada promete ser o eixo articulador

opinião

das lutas e mobilizações unitárias neste ano. Abril também será marcado pelas mobilizações, marchas, ocupações e outras formas de luta pela reforma agrária. O “abril vermelho” do MST – denominação da mídia burguesa às lutas do movimento em abril - terá como tema a memória dos 15 anos do massacre de Eldorado dos Carajás (PA), ocorrido em 17 de abril de 1996, onde 19 trabalhadores rurais foram covardemente assassinados pela PM do Pará e outras dezenas ficaram feridos. Essa data marca o Dia Mundial de Luta pela Terra. Nos próximos dias teremos o lançamento nacional de uma campanha e luta de combate ao uso dos agrotóxicos. Essa batalha do campo envolve a cidade, a saúde pública, nossa soberania alimentar e o enfrentamento com as grandes transnacionais que controlam o mercado de venenos e impõem seu modelo de produção baseado na dependência da semente, na sua forma de produzir e com uso intensivo de agrotóxicos. Isso resulta num dado absurdo: somos campeões de consumo de veneno, um bilhão de litros por ano. Portanto, essa luta promete envolver amplos setores

Inúmeras mobilizações de operários em todo país, com paralisações, greves e motins. Segundo o Dieese foram mais de 170 mil

mantém atual. As forças sociais envolvidas nesse tema terão novo encontro para debater as pautas unitárias, os métodos e instrumentos dessa luta. Além disso, terão o desafio de envolver outros setores da sociedade e ampliar o trabalho popular. Bandeiras como o fim dos leilões, a luta por uma Petrobras 100% pública e estatal, a não exportação de óleo cru, a redução do consumo e investimento em fontes limpas, renováveis e de baixo impacto social, dentre outras são bandeiras que unificam a campanha “O petróleo tem que ser nosso”.

para propor um novo modelo para o campo. Um modelo popular e ambientalmente sustentável.

Passe livre Outras lutas, como as mobilizações em defesa do passe livre, que alcançaram diversas capitais do nosso país, com volumosas mobilizações também seguem sua marcha. Essa luta, que envolve principalmente setores da juventude urbana, em especial os secundaristas, vem se mantendo firme na capacidade de mobilizar e pressionar governos e prefeituras. Em São Paulo essa luta vem ganhando as ruas com atos massivos e exercendo forte pressão para que a prefeitura explique as razões do aumento recente, demonstre com as planilhas e justifique o que é injus-

Defesa do petróleo A batalha em defesa do petróleo será outro tema importante. Uma luta que marca a memória do povo brasileiro - com a campanha “O petróleo é nosso” - com vitórias históricas, se

crônica

Frei Betto

tificável. Aumentos de passagem limitam a locomoção e vem ganhando a pauta das lutas a cada ano, com maiores mobilizações. Esse ano já são três meses de luta, o que é uma importante sinalização da capacidade de mobilização e disposição da juventude brasileira. Seguir lutando As elites e suas articulações, como sempre, usam das mesmas ações para combater as mobilizações da classe trabalhadora. Ou seja, criminalização e repressão. E, para isso, contam com o apoio dos grandes meios de comunicação, que primeiro silenciam ante às lutas e mobilizações e depois, quando não podem mais omitir os fatos, fazem coro criminalizando e difamando essas lutas. Portando, não se iludam. O Brasil do povo, que luta, que marcha, que briga, não se vê nos grandes meios de comunicação. Nesse sentido, temos uma grande tarefa pela frente. Seguir lutando para transformar esse país de injustiças históricas em um Brasil popular, democrático, soberano, solidário internacionalmente e voltado para os grandes e justos interesses do povo. Assim, iremos construir um Projeto Popular para o Brasil.

Luiz Ricardo Leitão

Gama

Brasil e Irã: um passo atrás Ao visitar nosso país, Obama pediu à presidenta Dilma que o Brasil assinasse, como coautor, a resolução para o Conselho de Direitos Humanos da ONU investigar inúmeras denúncias de violações no Irã, atribuídas ao governo de Mahmoud Ahmadinejad. Proposta pela Casa Branca, a resolução foi aprovada em Genebra, dia 24 de março, por 22 votos – inclusive o do Brasil -, 7 contra e 14 abstenções. A posição do governo Dilma contraria a do governo Lula. Este jamais se submeteu a Washington em matéria de política externa. Em novembro do ano passado, o Brasil se absteve ao votar resolução da Assembleia Geral da ONU condenando desrespeito aos direitos humanos no Irã. A embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo, representante do nosso país no Conselho de Direitos Humanos da ONU, justificou seu voto, em nome do governo Dilma, alegando não se tratar de posição contrária ao Irã, e sim a favor dos direitos humanos. E negou ter sido barganha para o Brasil obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU – o que Dilma pediu a Obama e este respondeu apenas que ouvira com “apreço” e mais não disse... Lula tinha duas razões para se abster de condenar o Irã. Entre os países árabes, é com a antiga Pérsia que o Brasil mantém maior fluxo comercial. Nos próximos cinco anos o intercâmbio entre os dois países pode atingir a elevada soma de 10 bilhões de dólares. A segunda razão é que Lula não vê moral no governo dos EUA para cobrar do Irã respeito aos direitos humanos e tentar impedir que o governo de Ahmadinejad faça uso pacífico da energia nuclear. Por que EUA, Europa ocidental e Brasil podem fazê-lo e o Irã não? Porque as intenções deste país, diz a Casa Branca, são bélicas. Ao que Lula respondeu: Por que EUA, Israel, Índia, Paquistão e tantos países europeus podem ter armas nucleares e o Irã não? Ou se promove o desarmamento geral ou basta de cinismo... Sou inteiramente a favor de se condenar violações de direitos humanos no Irã, onde os adeptos da religião Bahá’i são duramente perseguidos e a pena de morte por apedrejamento é legal. Porém, o Brasil não pode adotar posições dúbias em sua política internacional. Se o governo Dilma pretende pautar sua política externa pelo tema

Há algo de podre em Bruzundanga

Se o governo Dilma pretende pautar sua política externa pelo tema dos direitos humanos, deve exigir da ONU investigar o país que mais comete violações: os EUA

dos direitos humanos, deve exigir da ONU investigar o país que mais comete violações: os EUA. Que o digam os iraquianos e os afegãos. Obama perdeu uma rara oportunidade de, em sua visita ao Brasil, Chile e El Salvador, pedir desculpas a essas nações pelas ditaduras nelas implantadas, graças à Casa Branca, nas décadas de 1960 e 1970. Todas patrocinadas pela CIA e armadas pelo Pentágono. Foram milhares de presos, exilados, mortos e desaparecidos, sem que o governo dos EUA dissesse uma única palavra de censura aos generais brasileiros, a Pinochet e aos Esquadrões da Morte que, em El Salvador, assassinaram, em março de 1980, monsenhor Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, e seis padres jesuítas, em novembro de 1989. A presidenta Dilma teria falado com Obama – que usou o Brasil como púlpito para decretar guerra contra a Líbia – sobre os cinco cubanos injustamente presos nos EUA desde 1998? Antonio Guerrero, Fernando González, Gerardo Hernández, Ramon Labañino e René González viviam nos EUA para evitar atos ter-

roristas contra Cuba, planejados em Miami. Graças aos cinco – cuja saga Fernando Morais descreve em livro a ser lançado nos próximos meses - cerca de 200 ações terroristas foram abortadas. No entanto, continuam em liberdade nos EUA os terroristas treinados pela CIA e que, nas últimas décadas, cometeram 681 ações contra Cuba, causando a morte de 3.478 crianças, mulheres e homens, e lesões irreparáveis em 2.099 pessoas. Usar a base naval de Guantánamo em Cuba como cárcere clandestino de supostos terroristas muçulmanos não é violar os direitos humanos? Cadê a promessa de Obama de fechar aquele antro de perversidades? Obama haverá de incriminar Bush que, em sua autobiografia, admite ter autorizado torturas contra suspeitos de terrorismo? (Ver denúncia do Washington Post de 15/ 10/2008). Obama destituirá das Forças Armadas os militares responsáveis por sequestros de muçulmanos suspeitos de terrorismo, transportados em voos clandestinos através de aeroportos europeus? Obama levará ao banco dos réus os culpados, nos EUA, pela prática de “waterboarding”, que consiste em submeter prisioneiros à simulação de afogamento? E com que cara o Brasil fala em direitos humanos em outros países se aqui ocorrem cerca de 40 mil assassinatos por ano; a Polícia Civil de São Paulo acusa grupos de extermínio formados por PMs de matar 150 pessoas entre 2006 e 2010 (61% sem antecedentes criminais); e o Ministério do Trabalho divulga que há cerca de 25 mil pessoas em regime de trabalho escravo. Bem questiona Jesus: “Como você se atreve a dizer ao irmão: ‘Deixeme tirar o cisco de seu olho’, quando você mesmo tem uma trave no seu?” (Mateus 7, 4). Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira (Rocco), entre outros livros.

Não, meu caro leitor, eu não me ocuparei nesta semana das histéricas declarações do ‘nobre’ deputado Bolsonaro. Não digo que seja muita vela para pouco defunto, pois sei que ele vocaliza posições de um segmento nada invisível de nossa conservadora sociedade. Seu racismo e homofobia, porém, são tão caricatos, que fizeram até levantar do sarcófago o colega Jarbas Passarinho, que, após décadas de serviços prestados à ditadura, disse à mídia que odeia “radicais”, sejam “de direita ou de esquerda” (!). Há, de fato, outros processos em curso – menos estridentes, mas bem mais poderosos e letais – a merecer a atenção de todos nós. Eles vão muito além de discursos ou embates ideológicos e avançam ainda mais rápido do que os aviões da OTAN sobre os céus da Líbia e da África. Como advertiu há pouco o economista José Luís Fiori, existe uma nova corrida imperialista no planeta e o continente africano, assim como o Oriente Médio, é, sem dúvida, um dos palcos centrais deste movimento. Desde o fim da Guerra Fria e o fiasco dos EUA na Somália (1993), Tio Sam passou a empunhar a bandeira da “globalização e democracia” para a Mãe África, preocupando-se apenas com as reservas de petróleo e o controle de grupos islâmicos e dos ‘terroristas’ em áreas ao norte do continente. Mas a roda do mundo girou e não foi possível deter a invasão econômica dos países do BRIC, cuja presença em solo africano é mais efetiva do que os mísseis da OTAN. Por isso, pondera Fiori, não é improvável que as potências envolvidas nessa disputa geopolítica voltem a pensar na recolonização de algumas nações que elas um dia já ocuparam e dizimaram. São as metamorfoses infindas do capital, que não pressupõem, contudo, o fim do império ianque – afinal de contas, a desregulação dos mercados e a flexibilização do dólar (que continua a ser a moeda chave do sistema) conferem aos EUA “um poder monetário e financeiro sem precedente na história”. Por outro lado, o imbróglio entre o capital e a política nesta era ‘pós-moderna’ assume ainda novas facetas mais cínicas e sórdidas: os aviões franceses e as bases aéreas italianas estão a postos para os ataques à Líbia, mas como se resolverão os negócios firmados entre Sarkozy, Berlusconi e Kadhafi?

Mafiosos e empresários, hoje, são as duas faces de uma única e aparentemente sólida moeda Mafiosos e empresários, hoje, são as duas faces de uma única e aparentemente sólida (prestes, portanto, a desmanchar-se no ar...) moeda. Como escreveu o italiano Roberto Saviano, em obra recém-lançada no Brasil, “a política é súdita dos negócios” – e, por isso, também se curva aos negócios da máfia nos quatro cantos da Itália e mais além... Assim, já não importa se o comércio é ‘legal’ ou ‘ilegal’: cocaína, cimento, armas, construção civil e coleta de lixo se tornaram ramos de atividades controlados pelos clãs corporativos da Camorra napolitana, da Ndrangheta calabresa e da Cosa Nostra siciliana. De fato, os novos grupos empresariais mafiosos são capazes não só de obter vultosos contratos públicos para erguer prédios ao sul e ao norte da Itália, como também de prestar serviços à OTAN, como fez o clã Zagaria, que construiu a central de radar instalada nas imediações do lago Patria, um ponto estratégico para as operações militares da organização no Mediterrâneo. Em suma, se a guerra nada mais é do que uma condução da política com outros meios (apud Von Clausewitz) e a política vem a ser a guerra dirigida com outros meios (segundo Foucault), Saviano conclui que os clãs empresariais da Itália “não são outra coisa senão economias que usam todos os expedientes para vencer a guerra econômica”. Quando vejo um posto de gasolina de um vereador de Bruzundanga vender cocaína com cartão de crédito a caminhoneiros, dou-me conta de que até nessa área os malandros da pátria ainda são meros aprendizes dos mestres de além-mar. Os nossos executivos decerto aprenderão muito com a velha bota, mas não custa nada indagar que negócios cá estão a promover esses dublês de políticos & empresários... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda • Subeditores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Miguel Urbano Rodrigues

instantâneo Dahmer – www.malvados.com.br

Portugal e o abismo O POVO PORTUGUÊS elegerá os 230 deputados de uma nova Assembleia da República a 5 de Junho. O presidente Cavaco Silva dissolveu o Parlamento após a demissão do governo de José Sócrates, tornada inevitável pela rejeição do seu IV Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC). O nome é enganador porque as medidas previstas pelo PEC, reforçando cortes salariais e ferindo conquistas históricas dos trabalhadores, tinham suscitado indignação popular. Na sua crítica aos partidos da direita, Sócrates acusaos de pretenderem destruir o Estado social. Na realidade, durante os seus dois governos desencadeou uma ofensiva brutal contra o que resta da herança da Revolução de Abril. O Serviço Nacional de Saúde, considerado o 10º do mundo pela OMS, foi duramente golpeado. Os professores foram também permanentemente hostilizados com grave prejuízo do ensino público. A legislação do trabalho foi praticamente desmantelada através de uma revisão imposta pelo patronato. A política exterior refletiu uma submissão total ao imperialismo estadunidense e a exigências dos grandes da União Europeia, sobretudo da Alemanha e da França. O Partido Socialista aplicou durante os últimos seis anos uma política de neoliberalismo ortodoxo. As agências de rathing americanas colocam Portugal à beira da situação que definem como “lixo”. Sócrates alega que a sua “política de austeridade” visava evitar o pedido de “ajuda” à União Europeia e ao FMI. Mente. As medidas selvagens do PEC IV foram-lhe ditadas em Berlim pela chanceler Merkel. Na prática o FMI já está em Portugal.

Silvio Mieli

Universidade do Desastre ELE PREVIU OS ATAQUES de 11 de setembro, alertou que o acidente de Chernobyl iria se repetir, chama Barack Obama de “Top model do discurso político” e define a internet como um instrumento de controle social. Acusado de pessimista, apocalíptico e retrógrado, o filósofo e arquiteto francês Paul Virilio não é um profeta, já que não anuncia desígnios divinos, nem prediz acontecimentos por dedução ou intuição. Quase octogenário, sua missão urgente é a de revelar os acidentes da tecnologia para entender o outro lado do progresso. A militarização do cotidiano, a prevalência do tempo sobre o espaço, as consequências das tecnologias ditas interativas e um poder cada vez mais baseado na imagem são alguns dos temas caros a este pensador fundamental. Segundo ele, deixamos de nos agregar em torno de uma “sociedade de opinião”, transformando-nos numa “sociedade da emoção”. Considera assustador o mundo inteiro suspirar diante da mesma imagem em tempo real, ainda que seja a do tsunami do Japão. Virilio define-se um dromólogo: estudioso da velocidade (do grego dromos, corrida) e da aceleração da técnica contemporânea. Para ele, ao lado da desigualdade social surge a necessidade de se compreender a vio-

lência baseada no excesso de velocidade. Considera a riqueza como a face oculta da velocidade e a velocidade como a outra dimensão da riqueza. “A velocidade é tão importante quanto a riqueza na fundação do político. Se tempo é dinheiro, a velocidade é poder”, conclui. Virilio não acredita no fim do mundo. Acha, ao contrário, que iremos inventar um pensamento universal e até mesmo um novo modelo de universidade, responsável pelo estudo do desempenho do progresso. Assim como a ideia de universidade nasceu a partir da barbárie e das catástrofes dos sécs. 11 e 12, encontramo-nos agora diante de uma crise ecológica e econômica sem precedentes. Portanto temos que desenvolver um novo modelo universal para lidar com essa situação, em torno de uma espécie de “Universidade do Desastre”, conforme define seu projeto. Fica uma lição prática, clara e direta da pedagogia de Paul Virilio ao Brasil de hoje. Antes que vingue algum projeto para implantar a obrigatoriedade do ensino de “educação financeira” para os níveis fundamental e médio, chegou a hora de concentrar esforços por uma educação para a mídia e a tecnologia. Até para nos prevenir de futuros desastres.

Beto Almeida

Manipulação de bandeira O BRASIL VOTOU a favor do envio de vistoria especial da ONU sobre violação de direitos humanos no Irã. Alinha-se, injustificadamente, à manipulação dos EUA. Na verdade, os Estados Unidos pretendem usar todos os recursos para pressionar a nação persa a não seguir com seu programa nuclear, com seu impressionante salto nas tecnologias aeroespacial, farmacêutica (o Irã encontra-se entre os principais fabricantes mundiais de remédios contra a AIDS e câncer) e também aquelas aplicadas à indústria bélica. Quando se argumenta que o Brasil não vai votar a favor do envio de inspetores de direitos humanos para os EUA, há sempre uma ingênua observação, “ mas uma coisa não justifica a outra”. A realidade é que sequer passa pela cabeça da Comissão de Direitos Humanos da ONU investigar o país que mais ditaduras sanguinárias patrocinou, mais guerra provoca, mais invasões militares realiza para rapinar as riquezas dos países em desenvolvimento. Há uma evidente campanha da mídia de capacete boletins de guerra, não mais reportagens - para desestabilizar o governo iraniano, inclusive pela agitação hipócrita da bandeira dos direitos humanos. Enquanto o ca-

so da Sakineh é repercutido e repetido inúmeras vezes, nada se fala do jornalista Mumia Abu Jamal, dos Panteras Negras, que está preso há 19 anos no corredor da morte na Pensilvânvia, num julgamento forjado, repleto de ilegalidades, sob o comando do juiz que mais condena negros, hispânicos e asiáticos à cadeira elétrica, que jamais teve divulgação relevante no Brasil. Enquanto Barack Obomba deu a ordem de ataque nas dependências do Palácio do Planalto - desrespeito e também ameaça ao povo brasileiro - inaugurando a nova chuva de mísseis sobre a Líbia, prisioneiros continuam sendo torturados em Abu Graid, em Guantánamo, crianças executadas no Afeganistão, palestinos fuzilados em Gaza, com apoio dos EUA. Isso também é pena de morte, coletiva. Toda pena de morte deve ser abolida! Admitir a manipulação criminosa e hipócrita da bandeira dos direitos humanos pelo carrasco da humanidade é uma concessão que mais tarde pode voltar-se contra nós. Não apenas por culpa dos direitos humanos que, no Brasil, registram índices de violação insuportáveis nos impedindo de dar lições de moral a outros povos. Mas, também, pelo programa nuclear que o Brasil tem a zelar.

A dívida pública ultrapassa 92% do Produto Nacional Bruto. Este atingiu em 2008 aproximadamente 232 bilhões de dólares A dívida pública ultrapassa 92% do Produto Nacional Bruto. Este atingiu em 2008 aproximadamente 232 bilhões de dólares segundo a Comissão Europeia (um pouco mais do que 20 mil dólares per capita). O governo Sócrates enganou o país ao informar que cumprira no ano passado o compromisso de reduzir o déficit do Orçamento para 7,3%. Acaba de ser desmentido pela União Europeia. O déficit real foi de 8,6% O governo não incluíra nas suas contas a verba de 1 bilhão e 800 milhões de euros relativos à estatização do Banco Português de Negócios, no contexto de gigantescas fraudes desse banco. Omitiu também os déficits de três importantes empresas de serviços públicos. No endividamento galopante, os juros nos empréstimos pedidos atingiram o patamar dos 9%. A campanha eleitoral será de baixo nível, marcada por troca de acusações entre o PS e o PSD, responsabilizandose mutuamente pelo agravamento da crise. O mais provável é que no futuro Parlamento o Partido Social Democrata (PSD) e o CDS - Partido Popular – ambos de direita –obtenham em conjunto maioria e se coliguem para formar governo. A avaliar pelo discurso dos seus líderes, propõem-se a impor uma política ainda mais reacionária do que a de Sócrates. O Partido Comunista defende uma mudança radical que rompa com a política de direita imposta há décadas ao país. Mas, no âmbito do sistema, o seu justo projeto de mudança esbarra com o funcionamento da engrenagem institucional. Cabe sublinhar que a comunicação social, totalmente controlada por poderosos grupos financeiros, promove a alienação das camadas médias. O Bloco de Esquerda é um partido de pequenos burgueses enraivecidos cujo radicalismo verbal esconde mal a ambição de obter migalhas de poder. Neste panorama sombrio, a onda de protestos da classe trabalhadora expressa a condenação firme da política que levou o país à beira da bancarrota e a sua disponibilidade para lutar por uma ruptura orientada para a satisfação de aspirações profundas do povo. Ao longo dos últimos meses sucederam-se greves e gigantescos protestos populares. Em 12 de março, em Lisboa e no Porto manifestaram-se 300 mil pessoas em desfiles promovidos por jovens desempregados. No dia 19, em Lisboa uma manifestação da grande central sindical CGTP reuniu 200 mil trabalhadores. Somente a mobilização das massas pode abalar as bases da ditadura da burguesia de fachada democrática que oprime o povo português. Miguel Urbano Rodrigues escreve uma vez por mês neste espaço.

comentários do leitor Obama

Lúcidos os comentários de Alípio Freire, “Week-end em Pindorama”, e o trecho do Editorial, que se reportam à visita de Obama. Comungo com o mesmo ponto de vista de que houve, na verdade, uma agressão ao povo brasileiro, por parte do mandatário norteamericano. A mídia alternativa, como faz o Brasil de Fato, é necessária para sobrevivência da democracia. Inocêncio Nóbrega Filho, por correio eletrônico

Era Lula

Ainda não vi apreciação mais sistematizada do período Lula. A comparação com FHC é insuficiente e desviacionista. O poder de compra popular subiu, empregos aumentaram, o PAC está funcionando e as privatizações foram estancadas. Neste sentido, a conjuntura requer análise muito acurada e não meras

apostas aventureiras com as alianças, a valorização do jogo parlamentar em detrimento da politização popular, partidária, sindical e associativa. Apesar de altos ibopes, PT e Lula legam alguns desserviços. A Lula não cabia usurpar do partido a escolha da candidata à presidência. A melhor candidata, Dilma, foi escolhida da pior forma, como mera caricatura de Lula.

Ernesto Cassol, de Erechim (RS), por carta

Divulgação

Tenho divulgado o jornal com os educandos e educandas com que trabalho. São jovens e adultos de baixa renda que estão em cursos de qualificação profissional em busca de autonomia e geração de renda. Sou educadora em Cidadania e Economia Solidária e neste trabalho faço uma jornada de leitura (crítica) sobre a influência da mídia dominante e insiro

como bons exemplos jornais de visão popular como o Brasil de Fato. As pessoas o recebem muito bem! Outro fator que poderia ser interessante apurar nas reportagens é o curso de alvenaria só para mulheres. Sim, só mulheres, de vários perfis, que estão se qualificando para serem pedreiras e pintoras (viva a diversidade com igualdade!). Débora Orellana, por correio eletrônico

McDonald’s

Acompanhei com grande alegria as pautas (e, principalmente, a capa com matéria de página dupla dentro) do Brasil de Fato sobre relações trabalhistas e o McDonald’s. Acho fundamental a cobertura sistemática desses assuntos por parte da imprensa de esquerda - infelizmente, ainda é raro ver esse tipo de matéria na Caros Amigos, Fórum, e mesmo no Brasil de Fato (sou assinante de todos há anos).

Bom, o que tenho a dizer é que nas instituições privadas de ensino superior o tipo de relação trabalhista é muito semelhante. Inclusive o regime de remuneração da maioria delas é idêntico ao do McDonalds, ou seja, por hora, com os mesmos reflexos/problemas para os trabalhadores e suas famílias. Trabalhei durante 4 anos e meio na Estácio (a maior universidade privada do país, com ações à venda na bolsa de valores e tudo) e conheço casos do arco da velha, ocorridos comigo e com colegas. Aproveito para parabenizá-los pelo excelente jornal que vocês têm produzido a cada semana. Rafael Fortes, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br


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brasil

Por onde anda a oposição de direita? Marlene Bergamo/Folhapress

POLÍTICA Em crise, setores que apoiaram a candidatura tucana buscam alternativas para sobreviver na política brasileira que “convergiu para o centro” Vinicius Mansur de Brasília (DF) COMO CONSEQUÊNCIA dos pouco mais de oito anos longe do governo federal e, especialmente, da última derrota eleitoral, as forças que compuseram a candidatura de José Serra (PSDB) nas eleições à Presidência do ano passado parecem atingir, neste começo de governo Dilma Rousseff, o estágio mais profundo de sua crise “existencial”. O PSDB — cuja divisão interna entre serristas e aecistas segue insolúvel — estuda a fusão com DEM e PPS como saída para a sobrevivência. Palavras do ex-senador tucano Tasso Jereissati. O DEM — que já elegeu 105 deputados federais e 14 senadores em 1998 e, agora, tem 44 e 2, respectivamente — dissolveu seu diretório regional de São Paulo, como retaliação às articulações do prefeito da cidade, Gilberto Kassab, que leva outros democratas e opositores do governo federal — descontentes com a oposição — para a fundação do “coringa” Partido Social Democrático (PSD). No Congresso Nacional, a oposição de direita dividiu-se ao enfrentar o governo na votação do salário mínimo, a mais importante até então. Nas demais pautas, a postura da oposição, via de regra, segue em baixo perfil. Na mídia, alguns veículos que aberta ou veladamente apoiaram Serra, dizendo que Dilma Roussef era “uma invenção do Lula”, “política inexperiente” ou “terrorista” agora a tratam como “uma mulher de estilo próprio”, “gestora competente” e “defensora dos direitos humanos”. Afinal, o que acontece com essa oposição?

“Diante de um aprofundamento das políticas anteriores, a grande dificuldade da oposição de fazer crítica ao governo é que ela o via como um filho abdicado seu” A hegemonia do centro

Para o professor de ciência política da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Cláudio Couto, a atual crise dos setores que encamparam a candidatura Serra começa

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, cujo novo partido pode ser base do governo

com a continuidade dada pelo governo Lula ao grosso das políticas do governo Fernando Henrique Cardoso. “Diante de um aprofundamento das políticas anteriores, a grande dificuldade da oposição de fazer crítica ao governo é que ela o via como um filho abdicado seu. Se você não tem políticas alternativas, como você vai apresentar discurso alternativo?”, questiona. O sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) Chico de Oliveira explica que o Brasil passou por um grande processo de convergência para o centro, sendo o PT a força mais importante desse movimento, liderado por José Dirceu e conduzido por Lula. “Não à toa, sem nenhum oportunismo, o ex-vice-presidente José de Alencar ganhou muito destaque. Não que ele tivesse muita força política, mas ele simbolizou essa conversão”, aponta. Com essa transição do partido que estava mais à esquerda, a oposição perdeu o discurso. Entretanto, Oliveira ressalta que tal convergência para o centro não é mera decisão partidária, mas “um movimento em geral da sociedade: as pessoas estão com posições mais de centro, há certa euforia econômica e nenhuma proposta radical tem muita viabilidade sobre essa base social”. Por isso, o professor considera que “não existe oposição no Brasil, assim como não existe posição”. “Note que as oposições, não só o PSDB, têm muita dificuldade. Se a gente mudar de nível, do federal para o estadual, o que é que o PT tem a dizer sobre São Paulo? Nada. São Paulo está sobre controle tucano há 16 anos e o PT não tem nada a dizer. Isso não significa que as diferenças de desigualdades sociais estão diminuin-

esse é o caminho’, colocando limites na agenda. Daqui a pouco, vão cobrar medidas contra Venezuela, Bolívia, Mercosul, dizer para não mexer na mídia, no capital financeiro etc.”, aponta. No que diz respeito à organização partidária, Fonseca crê que, de fato, um rearranjo das forças de oposição está próximo, uma vez que elas estão cientes da sistemática perda de votos e da iminência de um quarto mandato da base Lula, seja com ele próprio, seja com Dilma.

do, isso é ilusório. O que há é uma certa homogeneização, que retirou a percepção das desigualdades sociais como uma coisa que dividia a sociedade.” Dissociação do Lula

Aprisionada no espectro centrista, a disputa política feita pela oposição de direita é rebaixada às diferenças de estilo e postura, apelando-se, muitas vezes, como se viu durante o governo Lula, para o preconceito. Na opinião do professor Cláudio Couto, os elogios de setores da mídia a Dilma são a continuidade dessa oposição preconceituosa ao Lula, agora com o intuito de criar um contraste entre os dois. “A figura do ex-presidente era muito questionada por seu estilo e origem social, por ser muito distinto do que é típico na política brasileira. Dilma vem de classe média, filha de imigrante, com universidade, com perfil muito mais tecnocrático do que de liderança política com identificação popular. O que acaba agradando setores da mídia, da classe média e até mesmo da oposição. É uma atração pela semelhança. E a herança positiva de imagem e transferência de carisma que pode ser colocado para o governo Dilma incomoda muito a oposição”, afirma.

“A oposição atual é muito revanchista e elitista. O exemplo mais simbólico disso foi o PSDB, no programa eleitoral, fazer uma favela dentro do estúdio”

Enquadramento

Francisco Fonseca, também professor da FGV, vê uma outra explicação para esse apoio inicial da mídia: a tática de enquadrar o governo. “A ideia é a de que se perdeu a batalha da eleição, mas a guerra da formulação da agenda continua. Este é um governo de continuidade, mas com ajustes, como a posição contra a violação dos direitos humanos no Irã. E eles dizem ‘olha, essa é uma medida positiva,

“A oposição atual é muito revanchista e elitista. O exemplo mais simbólico disso foi o PSDB, no programa eleitoral, fazer uma favela dentro do estúdio. Associaram-se com o que há de mais reacionário no Brasil. O DEM tentou mudar o discurso, mas é o velho partido da oligarquia. O PPS tem um discurso udenista, moralista. O Brasil já é um país complexo, com comportamentos diversos, estética cultural diversa, eles vão ter que mudar”, opina. Segundo Fonseca, as principais alterações devem ser a fusão de DEM, PSDB e PPS, uma provável modificação nos quadros de partidos menores, como PP e PTB, além do já anunciado PSD, de Gilberto Kassab.

“Não será de direita, não será de esquerda, nem de centro” Professor Chico de Oliveira vê frase de Kassab como reflexo da crise da oposição de Brasília (DF) O que esperar do PSD, partido criado pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, até então no DEM? Resultado de uma nova leitura da direita brasileira para fazer oposição? Ou de uma releitura crítica que o colocará na base aliada do governo Dilma? Ou apenas mais uma sigla fisiológica para disputar cargos no Estado? Dada a diversidade de declarações feitas por Kassab, todas essas possibilidades são plausíveis. Em uma entrevista à rádio Estadão, Kassab disse que a legenda “não será de direita, não será de esquerda, nem de centro”. Ilustração fiel da sentença do sociólogo Chico de Oliveira: “não existe oposição no Brasil, assim como não existe posição”. Para o professor, o surgimento do PSD é simplesmente a confirmação da “convergência ao centro” e “do uso do mandato para fazer fisiologia”. “Ele [o PSD] não é nada. Dizer que não é nem de direita nem de esquerda nem de centro reflete isso. Não sabem o que fazer,

a não ser uma coisa: quem tem mandato, negocia. Então, o Kassab quer ter um mandato sui generis para poder negociar cargos, prebendas e até uma posição dentro do jogo político”. Base aliada

O professor Francisco Fonseca, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que o PSD pode até nascer com uma propaganda de direita, mas não nasce como oposição. “É uma direita que adere a qualquer governo, um partido conservador que faz qualquer negócio”, avalia.

“O Kassab quer ter um mandato sui generis para poder negociar cargos, prebendas e até uma posição dentro do jogo político”

Na prática, explica Fonseca, o partido do Kassab vai ser base do governo, só atuando como uma força de veto, ali dentro, quando questões mais fundamentais de seus interesses estiverem realmente sob ameaça. Entretanto, tanto Francisco Fonseca como Chico de Oliveira não acreditam no boato de que a fusão de PSD e PSB, num futu-

ro próximo, já está acertada. “Isso é um blefe que ele mesmo [Kassab] inventou com a anuência de alguns para convencer outros parlamentares. E ver se alguém topa entrar no barco dele. O PSB, se fizer isso, dá um tiro no pé”, sentencia Oliveira. Abandonando o barco

Para Francisco Fonseca, Kassab criou o PSD para se dissociar de figuras como Agripino Maia, César Maia e Antônio Carlos Magalhães e por saber que o DEM “faz água”. “O DEM pode sucumbir. Hoje tem só dois governadores, uma bancada diminuta de senadores e deputados e é um partido satélite do PSDB, sem candidatos fortes. A ideia do Kassab é ocupar esse campo de centro-direita, lendo que o DEM faz água. Óbvio que não renova uma vírgula da vida política brasileira; é um partido a mais, conservador, com um programa conservador, um partido liberal, quase neoliberal, com políticos conservadores”, avalia. Até o fechamento desta edição (no dia 5), Kassab já havia anunciado adesões ao PSD na Bahia, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro. Os nomes de maior peso são o ex-candidato a vice de José Serra, Índio da Costa (DEM-RJ), o vice-governador de São Paulo, Guilherme Afif Domingos (DEM), a senadora Kátia Abreu (DEM-TO) e o deputado federal Paulo

Magalhães (DEM-BA). O governador de Santa Catarina, Raimundo Colombo (DEM), poderá entrar na lista. A esmagadora maioria dos quadros já anunciados pelo PSD surge da sangria dos democratas que, por conta disso, já iniciaram uma guerra pública contra Kassab. Entretanto, o presidente do PSDB, Sérgio Guerra, também partiu para o ataque, considerando a criação do partido como retrocesso.

Na prática, explica Fonseca, o partido do Kassab vai ser base do governo, só atuando como uma força de veto, ali dentro, quando questões mais fundamentais de seus interesses estiverem realmente sob ameaça Caso perca dois parlamentares, o PSDB, que conta hoje com 53 deputados na Câmara, perderá as condições regimentais de exigir verificação de quórum mínimo ou obstruir votações na Casa. (VM)


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Direita residual, mas presente Dorivan Marinho/Folhapress

BOLSONARO Caricato, o deputado federal pelo PP do Rio de Janeiro representa uma minoria obscurantista da sociedade brasileira

Apesar de folclórico ou caricato, no final das contas, o deputado federal não deixa de representar uma minoria real, que, de fato, tem ideias semelhantes às dele. “Há um conjunto de brasileiros que lamentavelmente possuem um pensamento que já não se expressa, mas que é real”, defende o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Hédio Silva Jr. Segundo ele, Bolsonaro está dialogando com o que há de mais conservador, atrasado, com o “rebotalho [escória] da política brasileira”, e com sua dimensão mais obscurantista. Com um histórico de afirmações fascistas, é possível dizer que o deputado se esconde atrás de uma farda que nem usa mais? “Ele sabe que a sociedade civil tem medo dos militares, que, a meu ver, são dignos de respeito, não de medo”, pontua o ex-preso político e jornalista Ivan Seixas.

Eduardo Sales de Lima da Redação O DEPUTADO federal Jair Bolsonaro (PP/RJ) notabilizou-se, nos últimos anos, por exercer práticas bem-sucedidas de autopropaganda. Isso porque, apesar de suas recorrentes declarações fascistas provocarem na sociedade brasileira mais desaprovação do que o contrário, ele ainda angaria votos suficientes para ser eleito. Suas últimas declarações o colocaram novamente em evidência. A postura de extrema direita deixou transbordar homofobia e racismo, juntos e em plena rede nacional de TV, na noite de uma segunda-feira. Ao responder à artista Preta Gil o que ele faria se um de seus filhos tivesse relações amorosas com uma mulher negra, Bolsonaro afirmou que não iria “discutir promiscuidade com quem quer que seja”, e acrescentou: “eu não corro esse risco porque meus filhos foram muito bem educados, não viveram em ambiente como lamentavelmente foi o seu”. No programa, ele também criticou de forma grosseira a política de cotas em universidades ao declarar que não entraria num avião pilotado por um cotista, nem aceitaria ser operado por um médico cotista.

A falta de projeto políticosocial do deputado refletese na prática persecutória traduzida em seu constante ataque a homossexuais, negros (nesse caso, disfarçado) e militantes de esquerda Histórico

“É uma figura patética, um personagem em busca de autor. Está na mesma categoria do Tiririca, só que muito mais nefasto” Caricatura?

“Ele é um fascista em todos os sentidos”, afirma Cecília Coimbra, presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais do estado do Rio de Janeiro. Ela acredita que o deputado federal obtém êxito ao realizar a propaganda de si mesmo, mas também avalia que, sustentando esse mesmo discurso, existe uma força política residual levada a cabo pelos chamados “militares de pijama”, que continuam a comemorar datas como a “revolução” de 1964. O sociólogo Chico de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo (USP), reduz a importância dada às declarações de Bolsonaro. Não nega, entretanto, que o mesmo se insere dentro de um segmento político no mínimo retrógrado.“É uma figura patética, um personagem em busca de autor. Está na mesma categoria do Tiririca, só que muito mais nefasto. Ele representa essa midiatização da política, que virou, na verdade, palco onde vários existem em suas qualidades ou na falta delas.”

O deputado Jair Bolsonaro

Racista com “máscara” de homofóbico? Para se livrar de crime de racismo, deputado federal ataca homossexuais da Redação “Não existe nenhuma dúvida de que ali está configurado um crime de incitação ao racismo”. É o que pontua o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Hédio Silva Jr, sobre as declarações do deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ) a um programa de TV. Ao ser questionado sobre uma possível relação amorosa entre qualquer um de seus filhos com uma mulher negra, disse que não corria o “risco” disso acontecer porque sua prole fora muito bemeducada. “Ao sacar aquele tipo de ofensa, ele está encorajando outras pessoas a fazerem o mesmo, o que a gente chama de incitação ou indução ao racismo, à discriminação e ao preconceito”, afirma Hédio. Segundo ele, não resta dúvidas de que está configurado crime de racismo. A ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Luiza Bairros, apontou, publicamente, para a necessidade de não se confundir liberdade de expressão com o cometimento de crimes que, como o racismo, estão previstos na Constituição. E é na Carta Magna do Brasil que o artigo 53 diz que deputados e senadores não podem ser processados na Jus-

tiça por suas opiniões. Entretanto, para o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, nesse caso, a imunidade parlamentar não deve ser utilizada para fazer apologia ao crime, incitar brasileiros uns contra os outros, enxovalhar a dignidade da mulher brasileira, e, especialmente, da mulher negra. “Imunidade não pode ser sinônimo de impunidade parlamentar”, critica.

“Ao sacar aquele tipo de ofensa, ele está encorajando outras pessoas a fazerem o mesmo, o que a gente chama de incitação ou indução ao racismo, à discriminação e ao preconceito” Portanto, segundo ele, além de caber a cassação dos direitos políticos de Bolsonaro por quebra de decoro, ainda é possível levar a cabo uma ação penal, por incitação ao racismo. A prática de racismo é crime inafiançável desde junho de 1989.

Homofobia

Bolsonaro sabe que pode ser levado à Justiça e, para se livrar da acusação de racismo, vem afirmando que durante o programa de TV compreendeu mal a pergunta e pensou que se referia à possibilidade de um de seus filhos ter um caso homossexual, não com um mulher negra. À Rede Brasil Atual, o deputado Jean Willys (Psol/RJ) destacou que o deputado do Partido Progressista está utilizando da homofobia para fugir de condenação legal. Homofobia, no Brasil, ainda não é crime. Enquanto isso, o Projeto de Lei 122, que propõe a criminalização da homofobia, vem sendo discutido desde 2006 no Congresso Nacional. O texto foi aprovado na Câmara em 2006, mas ainda espera a análise dos senadores e conta com extrema oposição da bancada evangélica da Casa. Quatro representações contra o deputado Jair Bolsonaro já foram protocoladas na Corregedoria da Câmara dos Deputados até o fechamento desta edição (no dia 5). A seção do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OABRJ) encaminhará um pedido de cassação do mandato de Bolsonaro por quebra de decoro parlamentar, justificando que suas declarações possuem cunho racista e homofóbico. (ESL)

A atuação política de Bolsonaro sempre foi bastante corporativista e reduzida. Ainda como militar, assumiu a bandeira das reivindicações salariais e, após se desligar das Forças Armadas, transformou-se em candidato das famílias dos militares. “Com o passar do tempo e com as reivindicações sendo atendidas e os salários melhorando, ele se alia à extrema direita militar, fazendo a pregação em favor das torturas na ditadura”, lembra Seixas. Seu conjunto de frases bisonhas ao longo da vida parlamentar significa muito mais do que parece. A falta de projeto político-social do deputado reflete-se na prática persecutória traduzida em seu constante ataque a homossexuais, negros (nesse caso, disfarçado) e militantes de esquerda. Dessa forma, para Seixas, seu discurso homofóbico e a favor da tortura funciona bem e se mantém por ser uma importante estratégia para captar votos. Durante bate-boca com manifestantes do Grupo Tortura Nunca Mais de Goiás e da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 2008, ele declarou: “O grande erro foi ter torturado e não matado”, fazendo uma alusão aos militantes políticos que sofreram tortura no período da ditadura civil-militar brasileira. Em 2009, o deputado colou um cartaz na porta de seu gabinete, em que dizia: “Quem procura osso é cachorro”, referindo-se aos militantes de esquerda mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. Em 2010, foi a vez de escancarar frases homofóbicas. Ele declarou ser a favor de dar surras em crianças e adolescentes que tenham tendências homossexuais. (Colaborou Vinicius Mansur)

Março racista da Redação Nos últimos dias do mês de março, três deputados federais fizeram declarações com viés racista. As que ganharam maior repercussão foram a de Jair Bolsonaro (PP/RJ), dadas em 28 de março. Mas o deputado federal evangélico Marco Feliciano (PSC/SP) também deu o ar de sua graça. Ele escreveu, na página de uma rede social da internet, no dia 31 de março, que os africanos são descendentes de um “ancestral amaldiçoado por Noé” e que sobre a África repousa maldições como o paganismo, misérias, doenças e a fome. Dias antes, em 22 de março, o exgovernador e deputado Júlio Campos (DEM-MT) se referiu ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, como “moreno escuro” durante uma reunião da bancada do partido, o que causou mal-estar entre alguns presentes. Fatos isolados? Não. Segundo o ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Hédio Silva Jr, tais manifestações indicam que o país precisa enfrentar de forma definitiva a problemática do racismo no Brasil. “Quanto mais avançam as conquistas de direitos da população negra, mais isso provoca determinados tipos de reações que ficaram latentes e submersas durante séculos, e que começam a vir à tona”, analisa. (ESL)


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Interesses privados na escola pública

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

PROPAGANDA O educador e filósofo da UERJ Gaudêncio Frigotto critica projetos extra-curriculares desenvolvidos por empresas na educação pública Levy Ferreira/SECS-PR

Eduardo Sales de Lima da Redação O ENSINO do agronegócio avança dentro da escola pública. Como foi denunciado na edição passada do Brasil de Fato, três grandes projetos pedagógicos orientados sob os desígnios de grupos empresariais transnacionais funcionam com o aval do poder público. O “Projeto Agora”, de responsabilidade da União da Indústria de Cana-deAçúcar (Unica), atinge educandos da 7ª e 8ª séries. Cerca de 100 municípios da região centro-sul contam com o projeto. A apostila usada em sala de aula foca o desenvolvimento do setor canavieiro no Brasil e o empreendedorismo dos grandes latifundiários sob a ótica do progresso, sem apresentar aos alunos qualquer exemplo que venha desvelar contradições trabalhistas ou ambientais. O “Agronegócio na Escola”, vigente em Ribeirão Preto (SP), e o “Escola no Campo”, funcionam nessa mesma lógica, para formar um “exército industrial de reserva consciente de sua necessidade de inclusão dentro da ordem”, como lembrou a economista e educadora Roberta Traspadini. Os projetos são impulsionados por empresas como o banco Itaú, a transnacional do ramo de sementes Syngenta, a Monsanto e a Basf. Em entrevista concedida por correio eletrônico, o professor Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Gaudêncio Frigotto amplia o debate e denuncia outras formas de ação do chamado grande capital dentro das escolas públicas, como a implantação da disciplina “educação financeira” em 450 escolas do ensino médio. Para ele, um dos principais resultados dessas experiências nas quais o capital, em parceira com o poder público das três esferas (municipal, estadual e federal), se insere dentro da educação pública, é “formar gerações de ‘deficientes cívicos’, mutilados em sua capacidade de uma cidadania ativa”. Confira a entrevista. Brasil de Fato – Do ponto de vista pedagógico, qual o prejuízo que esses projetos extracurriculares que “glorificam” o agronegócio e o empreendedorismo causam aos jovens estudantes do ensino público que residem nessas regiões com já forte presença das monoculturas e do latifúndio?

Gaudêncio Frigotto – Os projetos extracurriculares que glorificam o agronegócio e o empreendedorismo são parte de um projeto maior de educar na visão unidimensional do mercado e se inserem na lógica de preparar consumidores e acionistas. Com efeito, o movimento dos empresários em torno do projeto Todos pela Educação e sua adesão ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), contrastada com a história de resistência ativa de seus aparelhos de hegemonia e de seus intelectuais contra as teses da educação pública, gratuita, universal, laica e unitária, revela, a um tempo, o caráter cínico do movimento e a disputa ativa pela hegemonia do pensamento educacional mercantil no seio das escolas públicas. Assim, na mesma lógica das cartilhas do agronegócio, a busca por impor a visão financista e mercantil na educação básica é a iniciativa do mercado de capitais que, desde agosto de 2010, implantou um projeto-piloto de educação financeira, com supervisão do Ministério da Educação, em 450 escolas do ensino médio, não por acaso, de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Distrito Federal e Tocantins.

Teste político O Congresso Nacional tem pela frente um bom teste sobre as verdadeiras intenções de deputados e senadores, já que retorna ao debate a chamada reforma política – que tem sido protelada desde os anos de 1990. Será mesmo que os parlamentares vão moralizar o financiamento de campanhas eleitorais, regular a publicidade e a fidelidade partidária, aprovar voto distrital e a indicação de nomes por lista fechada? Quem acredita? Idade moderna O governo do Ceará e o Ministério da Justiça lançaram, em Fortaleza, campanha publicitária para coibir o tráfico de pessoas, com a distribuição de cartazes e folhetos nas rodoviárias, aeroportos e locais de circulação de turistas. Para se ter ideia da dimensão do problema, de 2008 a 2010 foram registradas 1.171 denúncias no estado, geralmente de pessoas enganadas por quadrilhas interessadas na exploração sexual. Banho-maria Relatório da Polícia Federal encaminhado ao ministro Joaquim Barbosa, relator do “caso do mensalão” no Supremo Tribunal Federal, confirma que parte do dinheiro distribuído pelo governo Lula a políticos da base aliada, em 2005, saiu dos cofres públicos, o que desmonta a versão das contribuições privadas (caixa dois) para a campanha eleitoral. O que o PT e as forças de esquerda pretendem fazer diante dessas informações?

Para o professor Gaudêncio Frigotto, privatização visa educar o que interessa e serve ao mercado

Esta privatização visa educar no estrito interesse daquilo que, no conteúdo, método e forma, interessa e serve ao mercado. O prejuízo fundamental é a negação do direito de uma educação básica que desenvolva na criança e no jovem todas as suas dimensões e lhes dê base tanto para entender os processos e relações sociais e intervir neles de forma ativa, quanto para situar-se no mundo da produção.

“Essa irresponsabilidade gera a formação de ‘deficientes cívicos’, mutilados em sua capacidade de uma cidadania ativa, capaz de afirmar e ampliar a esfera efetivamente pública e a garantia dos direitos universais” Qual o grau de responsabilidade de cada instância do poder público (prefeituras, estados e governo federal) em relação à permissão dessas aulaspropagandas?

As diferentes esferas do Estado brasileiro, executivo, parlamento e judiciário e nos diferentes níveis da federação, na sua grande maioria são os porta-vozes do mercado e de grupos econômicos e produzem uma normatização que mascara como púbico o que são as famosas parcerias público e privado. O significado concreto desta relação é a privatização do público, pois esta é a logica do mercado. Os serviços para serem públicos devem lidar no âmbito de direitos que são universais, ainda que perante a desigualdade social possa adotar políticas públicas que busquem priorizar grupos historicamente injustiçados. O mercado lida com o interesse privado do dono do negócio, por isso é de sua natureza excluir, como lembra o historiador Eric Hobsbawm, assim como a do gás carbônico é poluir. Hoje as escolas públicas de grande parReprodução

te dos municípios e estados estão infestadas dessas parcerias com bancos, e entidades como o Instituto Ayrton Senna, Instituto Qualidade da Educação, Fundação Roberto Marinho, Positivo, Pitágoras, entre outros, quando não verdadeiros escritórios montados para vender pacotes (des)educativos. Há, pois, uma irresponsabilidade consentida de grande parte das esferas de poder. Qual a gravidade disso?

Essa irresponsabilidade dessas esferas de poder geram uma dupla consequência. A formação de gerações de “deficientes cívicos”, na expressão de Milton Santos, mutilados em sua capacidade de uma cidadania ativa, capaz de afirmar e ampliar a esfera efetivamente pública e a garantia dos direitos universais individuais, econômicos, sociais e culturais. E, por outra parte, os incapacita de ver que os dois pilares associados que ameaçam as bases da vida no planeta para multidões são exatamente o agronegócio e o capital financeiro. O primeiro destruindo a fertilidade da terra, o ecossistema, poluindo a atmosfera e os mananciais de água pelo uso dos agrotóxicos e, ao mesmo tempo, excluindo milhões de pessoas ao direito à terra e a sementes não modificadas, ameaçando a segurança e soberania alimentar. O segundo centrado na especulação parasitária e lidando com a mentira do capital fictício, arruinando setores produtivos e empregos.

“O prejuízo fundamental é a negação do direito de uma educação básica que desenvolva na criança e no jovem todas as suas dimensões e lhes dê base tanto para entender os processos e relações sociais e intervir neles de forma ativa” Como questionar a legalidade dessa intromissão do agronegócio na educação formal de jovens?

Por certo trata-se de algo que pode ser arguido mediante o Ministério Público e os conselhos de educação. A dificuldade está justamente no fato de que quem deveria fazer essa interpelação, muitas vezes, está implicado. Assim só a organização e pressão dos movimentos sociais, sindicatos e setores da comunidade científica e cultural conscientes do significado desta intromissão pode alterar este quadro.

Como os professores que recebem os materiais didáticos devem se posicionar?

Reprodução de página de cartilha patrocinada pela Unica

Em relação aos professores, há dois caminhos que percebo para resistir ativamente. O mais adequado e de efeito mais amplo é, através dos sindicatos, garantir que o professor não seja obrigado a adotar estas cartilhas. O segundo, na medida em que isso não ocorra, é o professor fazer o papel de mostrar ao aluno o significado deste processo de alienação e o que o agronegócio representa.

Greve global No último dia 4, funcionários da emissora afiliada da TV Globo em Sergipe paralisaram suas atividades, por algumas horas, para protestar contra cortes salariais, cancelamento de programas regionais e 42 demissões. Com a paralisação, a emissora não colocou no ar o telejornal “Bom Dia Sergipe”, que foi substituído pelo “Bom Dia Pernambuco”. Não apenas nas obras de hidrelétricas existe superexploração do trabalho! Ser de esquerda “É de esquerda quem se opõe ao capital especulativo, quem luta pelos direitos do mundo do trabalho, pela distribuição de renda, pela universalização dos direitos. De direita é quem defende os interesses do capital financeiro, quem privilegia os critérios de mercado em detrimento dos direitos da grande massa da população, que vive do seu trabalho.” Lembra o cientista político Emir Sader – em 29/08/2003. Não faz muito tempo! Ameaça mortal A Rede Brasileira de Justiça Ambiental encaminhou carta às autoridades estaduais e federais para denunciar que a auditora fiscal Fernanda Giannasi, do Ministério do Trabalho em São Paulo, tem sido ameaçada por suas denúncias contra a indústria do amianto, substância comprovadamente cancerígena. Primeiro, a Eternit fez pressões para afastá-la de suas funções; agora ela está recebendo cartas com ameaças de morte. Até onde vai isso? Privatização Criadas em 1998, no auge do neoliberalismo do governo FHC, as Organizações Sociais (OS) têm sido utilizadas para terceirizar os serviços públicos de saúde, educação, assistência social e cultura – sem a necessidade de licitação e de respeito às normas da administração pública. Agora, em 31 de março, o AdvogadoGeral da União Luís Inácio Adams defendeu no STF a constitucionalidade dessa forma de privatização. Pode? Sem limpeza No dia 1º de abril, o líder da bancada do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo, Enio Tatto, protocolou na Procuradoria Geral da Justiça representação em que solicita a adoção de “medidas de conduta ilegal e de improbidade do governador Geraldo Alckmin, do ex-governador José Serra e do superintendente do DAEE, Amauri Pastorello, por ilegalidade nos contratos de desassoreamento do rio Tietê, motivo das enchentes de São Paulo”. Novo cronista O ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, inaugurou coluna na revista Carta Capital com comentário sobre o voto do Brasil contra o Irã no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Para ele, a defesa de relator para inspecionar aquele país é decisão dura, significativa, deve alterar as relações com o Irã e tira do Brasil a condição de mediador privilegiado em casos de ameaça dos direitos humanos. Enfim, uma crítica ao governo Dilma.


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“Não se acaba com a miséria sem acabar com a desigualdade de gênero” ENTREVISTA Ministra Iriny Lopes expõe projeto para sua pasta e vê pauta das mulheres no centro do governo Dilma Renato Araújo/ABr

Vinicius Mansur de Brasília (DF) NO PRIMEIRO mês de março do primeiro ano de governo da primeira mulher a presidir o país, o Brasil de Fato entrevistou a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Iriny Lopes, para saber quais os planos do Executivo para combater a desigualdade de gênero. Apesar da grande dependência em relação a variados órgãos de Estado e do baixo orçamento, a ministra – ex-deputada federal (PT-ES) por três mandatos – projeta um amplo leque de ações e aposta na convergência de duas prioridades já elencadas pela presidenta Dilma Roussef: política para as mulheres e combate à miséria. Porém, o debate sobre aborto segue “de acordo com a lei”. Confira. Brasil de Fato – A eleição da primeira mulher para a Presidência da República traz quais impactos para a vida das mulheres e para a luta feminista no Brasil?

Iriny Lopes – A eleição da presidenta Dilma é um marco simbólico, político e histórico que põe luz sobre a força da mulher brasileira e sua capacidade para acabar com as práticas discriminatórias, a começar com a pobreza, violência, ausência de participação política e autonomia econômica, política e social das mulheres. Uma mulher na Presidência muda a forma de entender e de operar as políticas, pois ela terá um olhar mais atento para promover a igualdade como um valor necessário. Mas as feministas querem mais e preconizam uma sociedade igualitária, com a erradicação de valores e práticas expressas no sexismo, no machismo, na homofobia e lesbofobia, no racismo e tantas outras formas de intolerância que têm raízes no patriarcado e no capitalismo. Nesse sentido, a presidenta Dilma já apontou que as mulheres terão prioridade no seu governo, o que já é de importância histórica por dois aspectos: ser a primeira presidenta do Brasil e determinar a erradicação da pobreza. Tanto as estratégias de erradicação da pobreza, priorizando as ações de autonomia das mulheres, quanto às bandeiras de luta das feministas têm convergência. Mais do que isso: complementam-se. E quem tem a ganhar são as mulheres.

“Uma mulher na Presidência muda a forma de entender e de operar as políticas, pois ela terá um olhar mais atento para promover a igualdade como um valor necessário” Durante a campanha, pesquisas indicavam que Dilma Rousseff tinha menos votos entre as mulheres. A bancada feminina no Congresso Nacional também não cresceu. Há uma resistência ao voto nas mulheres por parte delas próprias?

A questão é complexa e está relacionada aos papéis que ainda hoje são atribuídos a homens e mulheres na sociedade. Pesquisa de 2009 do Ibope/ Instituto Patrícia Galvão/Cultura Data com o apoio da SPM revelou que 83% dos entrevistados acreditam que a presença de mulheres no poder melhora a política e 73% afirmam que a população ganha com a eleição de mulheres. Embora haja esse reconhecimento, as mulheres ainda não têm as condições para que isso aconteça. No Parlamento, a representação feminina é de apenas 10%; no Judiciário, 15%. Uma das causas, entre tantas outras que dificultam a participação das mulheres na política, é a legislação eleitoral vigente, em que a escolha de candidatos é determinada pelo poder econômico e não possui mecanismos para garantir a equidade de gênero nos partidos e na escolha de suas representações. Outro aspecto é a quase ausência de oportunidades para a educação cidadã e formação política com perspectivas de gênero. Sabemos que as mulheres são intelectualmente mais qualificadas que os homens por possuírem mais tempo de estudos, mas, na hora de decidir quem ocupa os espaços de poder, o critério é machista.

Iriny Lopes, ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres

A Secretaria de Políticas para as Mulheres entrará no debate da reforma política? Há previsão de intervir em algum outro grande debate nacional?

Nós já estamos atuando nesse sentido, e começamos por articular a bancada feminina no Congresso Nacional para debater a reforma eleitoral e a participação das mulheres na Comissão de Orçamento da Câmara, que vai debater o PPA [Plano Plurianual]. Em nível internacional estivemos, em fevereiro, na criação da ONU Mulheres, em Nova York. Estivemos também com a Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe] para tratar da implementação do Consenso de Brasília, documento aprovado pelos países da região durante a XI Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e Caribe, em julho do ano passado. Atuar nessas áreas é ampliar a nossa perspectiva de combate às desigualdades, em diálogo, especialmente, com países e movimentos sociais da América Latina e África.

O governo estendeu o dia da mulher, 8 de março, para o mês da mulher. O que a SPM fez nesse mês?

Uma extensa pauta de compromissos nos estados para dialogar especialmente com governadores e prefeitos na perspectiva de repactuar as políticas públicas para as mulheres e aplicá-las de forma transversal e articulada. Pois é no município que elas repercutem na vida concreta das mulheres.

“A pobreza tem sexo e cor. Do contingente da população que vive nessas condições, as mulheres são a maioria, e, entre elas, as negras” Em termos de políticas concretas, o que isso significará?

Quando a presidenta Dilma Rousseff determina como eixo central de seu governo a erradicação da miséria, ela aponta para a SPM a sua prioridade, pois não se acaba com a miséria sem acabar com a desigualdade de gênero. A pobreza tem sexo e cor. Do contingente da população que vive nessas condições, as mulheres são a maioria, e, entre elas, as negras, considerando seus filhos e filhas. Já estamos trabalhando para construir as condições para a autonomia econômica e política das mulheres, efetivando medidas para a ampliação do trabalho formal e prevendo ampliar em 2 milhões o número de mulheres empregadas. Nesse sentido, a capacitação e formação profissional é parte dessa estratégia, além do acesso às linhas de cré-

ditos diferenciados e apoio às cooperativas, associações e outras formas de cooperação e de trabalho entre mulheres. Vamos também ampliar e melhorar os equipamentos sociais como creches, restaurantes, cozinhas e lavanderias comunitárias, especialmente nas regiões onde há alto índice de população em situação vulnerável. Essas são algumas das ações que já estão em curso. Vamos dar escala a programas como o “Gênero e Diversidade na Escola” para capacitar meio milhão de professores e professoras da rede pública para lidar com as temáticas de gênero, raça, etnia e orientação sexual. Na área da saúde, ampliaremos a cobertura do programa nacional de atenção à saúde integral da mulher, criaremos a rede de atendimento ao parto [Rede Cegonha] para diminuir a mortalidade materna, e ampliaremos os recursos para tratamento de câncer de mama e colo uterino e o número de equipamentos de exames de mamografia.

“A SPM é um ministério-meio, articula e promove a transversalidade das políticas para as mulheres” Mas o orçamento da SPM é reduzido, provavelmente o menor de todos os ministérios [R$ 114,4 milhões para este ano]. Como levar a cabo essas políticas?

Estamos debatendo a matriz de governo para a transversalidade e institucionalidade das políticas, o que significa garantir que elas sejam políticas de Estado. A SPM é um ministério-meio, articula e promove a transversalidade das políticas para as mulheres. São políticas que só podem ser aplicadas de forma articulada entre todas as áreas de governo. É preciso uma mudança na operação dessas políticas, mas, também, na postura dos operadores e gestores públicos, modificando o olhar fragmentado sobre questões que envolvem a perspectiva de gênero. Com a determinação da presidenta Dilma de priorizar as mulheres, isso forçosamente deve ocorrer, o que promoverá uma espécie de aceleração da aplicação dessas políticas e das conquistas das mulheres.

Como a senhora vê a tentativa, por parte do Judiciário, de flexibilizar a Lei Maria da Penha?

A presidenta Dilma afirmou que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada com rigor e é assim que o governo federal está tratando a questão. A tentativa de revisão de alguns dos artigos e o questionamento da lei podem representar um retrocesso. Mas contamos com grande apoio dos Ministérios Públicos Federal e Estaduais, que têm defendido a

aplicabilidade da lei. Por isso, firmamos uma parceria com o Ministério Público Federal, o Ministério da Justiça e o Colégio dos Procuradores Gerais da Justiça, através de um Protocolo de Cooperação, para aprimorar a proteção às mulheres que são vítimas de violência doméstica e para efetivar a punição dos seus ofensores. Uma pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo mostra que a cada dois minutos cinco mulheres são agredidas. A cada dia, dez mulheres são assassinadas. Somente nos últimos 12 meses, 1,3 milhão de mulheres acima de 15 anos foi agredida. Modificar essa lei ou negá-la é negar a condição de igualdade e a integridade das mulheres. Quais serão as políticas da SPM para as mulheres do campo?

Os direitos à aposentadoria, à nota de produtora e ao acesso diferenciado a créditos são ainda grandes necessidades e motivos de uma campanha permanente de orientação sobre esses direitos e como acessá-los. Da mesma forma, uma campanha de enfrentamento à violência contra as camponesas vem sendo desenvolvida. Os créditos diferenciados como o Pronaf [Programa Nacional da Agricultura Familiar] são instrumentos importantes para a sua autonomia econômica, mas precisamos ampliar a escala de acesso, aumentar os valores e desenvolver outros mecanismos de apoio à produção coletiva e cooperada das camponesas. Elas também precisam ser contempladas com equidade na titulação das suas terras, na economia da produção familiar e decisão dessa produção. E isso implica em construir o protagonismo das mulheres, o que só é possível com a participação delas.

“Por orientação da presidenta Dilma Rousseff, o aborto será tratado de acordo com a lei. E nenhuma mulher deve correr o risco de morte por falta de atendimento” Que trabalho a SPM pretende fazer com relação ao aborto?

Estamos tratando com serenidade essa questão. Por orientação da presidenta Dilma Rousseff, o aborto será tratado de acordo com a lei. E nenhuma mulher deve correr o risco de morte por falta de atendimento. Para isso, a rede de atenção à saúde integral da mulher tem a atribuição de acolher e atender as mulheres que necessitam de atendimento nesses casos. Ampliar e defender os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres não é só atribuição do Estado. Toda a sociedade deve debater a questão, ouvindo as diversidades e a pluralidade de opiniões, opções e culturas de forma a contemplar todos os setores.


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cultura

O cangaço desmistificado Benjamin Abrahão Botto

HISTÓRIA Livro analisa a história do fenômeno do banditismo que assolou o Nordeste brasileiro Aldo Gama da Redação SEJA NAS xilogravuras dos cordéis, nas canções populares, no cinema ou na literatura, os cangaceiros habitam o imaginário dos brasileiros até os dias de hoje. Histórias de revolta contra os desmandos das oligarquias e as péssimas condições de vida dos pobres do sertão nordestino costumam caminhar lado a lado com relatos de crimes de extrema crueldade. Lampião, o cangaceiro mais famoso, é, por vezes, descrito como um tipo de Robin Hood ou como aquele “que invade os lares, levando a toda parte sofrimento e morte”, como dizia um anúncio da época. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o historiador Luiz Bernardo Pericás, autor de Os Cangaceiros, apresenta uma série de argumentos que buscam desmistificar o fenômeno que atingiu seu apogeu nas décadas de 1920 e 1930, durante o reinado lampiônico. Brasil de Fato – O contexto de injustiça social, com o controle do aparato policial e judiciário pelas oligarquias, não justificaria a leitura de que o cangaço foi uma espécie de guerrilha popular? Luiz Bernardo Pericás – A forma de luta dos cangaceiros era, certamente, baseada em técnicas de guerrilha. Na década de 1930, jornalistas e oficiais das volantes chegaram a chamar os cangaceiros de “bandidos-guerrilheiros”, o que mostra que a associação é factível. Boa parte dos bandos era certamente de origem popular. Mas temos de nos perguntar o que significaria dizer “guerrilha popular”. Ou seja, os bandos tinham estrutura hierárquica, nos quais as lideranças, por vezes, eram de estratos mais altos da sociedade sertaneja e davam a tônica da atuação do grupo. Esses chefes de grupos não tinham nenhum objetivo de mudar a situação social da região, nem de aliar-se às camadas mais pobres do sertão nordestino. Alguns líderes do cangaço eram coronéis, descendentes de membros da Guarda Nacional e de latifundiários, e aliados de parte da elite local. Eles viam a massa anônima do cangaço como seus empregados. E estes consideravam as lideranças como patrões. Houve muitas diferentes motivações para o ingresso no cangaço, mas é possível que nenhuma destas tivesse como objetivo lutar por mudanças revolucionárias. Nunca houve qualquer intenção de mudança social por parte dos cangaceiros. Só no cinema e literatura, ou seja, em obras de ficção. Obras, em geral, produzidas a posteriori, e utilizando o cangaceiro como símbolo de luta política, como metáfora da insurreição do homem do povo contra o regime vigente. Na verdade, os cangaceiros praticavam crimes hediondos, repetidamente. Seus crimes, em geral, não eram circunstanciais. Ou seja, o cangaço acabava tornando-se um meio de vida, no qual, por anos seguidos, indivíduos cometiam crimes como torturas, sequestros, roubos e assassinatos.

“Esses chefes de grupos não tinham nenhum objetivo de mudar a situação social da região, nem de aliar-se às camadas mais pobres do sertão nordestino” E cometiam essas atrocidades indistintamente, tanto contra alguns “coronéis”, como também contra policiais e contra o próprio “povo” pobre local. Há muitos relatos de torturas e assassinatos cometidos por Lampião, Zé Baiano e outros contra trabalhadores, “cassacos”, agricultores, gente comum do povo, sem nenhuma piedade ou remorso. Não havia identidade de classe entre os cangaceiros e a população mais pobre. Na prática, Lampião preferia se relacionar com coronéis e políticos do que com o povo sertanejo. A violência das tropas oficiais e das volantes não justificaria a simpatia da população pelos cangaceiros? As tropas volantes eram, em grande medida, mal preparadas e mal treinadas. Recebiam pagamentos irrisórios.

Foto do bando do cangaceiro Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco, que também era conhecido como Diabo Louro

Seus soldados, em boa parte, eram homens da mesma região e da mesma origem étnica e social dos cangaceiros. Ou seja, gente da mesma “massa e encarnadura”, como disse, certa vez, um conhecido comentarista do tema. Se um jovem cometia algum crime contra outra família e entrava no cangaço, era muito provável que algum parente daquele atacado ou assassinado ingressasse nas volantes para perseguir e punir seu rival. E vice-versa. Há casos de cangaceiros que abandonaram o cangaço e se tornaram policiais, assim como soldados das volantes que largaram a polícia e se fizeram bandoleiros.

“Na prática, Lampião preferia se relacionar com coronéis e políticos do que com o povo sertanejo” A situação, ali, era relativamente fluida quando se tratava especificamente da atuação de cangaceiros e volantes. As tropas volantes, de fato, podiam ser tão ou mais violentas que os cangaceiros, agindo com extrema agressividade e arbitrariedade, e isso quiçá fizesse com que parte da sociedade sertaneja se voltasse para os bandoleiros como símbolos da luta contra as autoridades. Por outro lado, os cangaceiros eram tão violentos que a população, em geral, tinha pavor deles. Várias vezes ocorria que, ao ouvir o boato da aproximação de cangaceiros em algum lugarejo, os moradores locais saíam correndo em disparada, desesperados. A maior parte da população sertaneja, na verdade, não se tornou nem parte das volantes, nem integrante de bandos de cangaceiros. Em realidade, o povo ficava num fogo cruzado entre esses dois grupos. A população era de trabalhadores e, em geral, não tinha interesse em ingressar no banditismo ou na polícia, a não ser que tivesse de se proteger dentro de uma dessas organizações ou que as utilizasse como meio de vingança contra entreveros, normalmente, familiares. O PCB tentou, de fato, recrutar os cangaceiros? Na década de 1930, o PCB e o Comintern [Internacional Comunista] iriam discutir a possibilidade de cooptação e utilização dos cangaceiros na luta revolucionária no Brasil. Um documento do escritório sul-americano do Comintern de 1931, por exemplo, já mencionava os cangaceiros nesse sentido, e outro, do Comitê Executivo da Internacional Comunista, indicava mais explicitamente que “o PCB deve empenhar-se na tarefa de estabelecer contatos mais estritos com as massas de grupos de cangaceiros, postar-se à frente de sua luta, dando-lhe o caráter de luta de classes, e em seguida, vinculá-los ao movimento geral revolucionário do proletariado e do campesinato no Brasil”. Na 3ª Conferência de Partidos Comunistas da América Latina e Caribe, em Moscou, em 1934, o chefe da delegação brasileira, Antônio Maciel Bonfim (o Miranda), faria um relatório completamente irreal da situação no campo brasileiro, insistindo que “os partisans cangaceiros estão chamando à luta, estão unindo os camponeses pobres na sua luta por pão e pela vida... Na província da Bahia, somente, os partisans representam um destacamento de aproximadamente 1,5 mil homens, armados com metralhadoras, equipados com caminhões”. Tudo isso, como se sabe, não correspondia à realidade. Alguns acreditavam que os cangaceiros poderiam, inclusive, adotar

o programa da ANL (Aliança Nacional Libertadora), e há até mesmo documentos da ANL sugerindo a cooptação de cangaceiros. Mas isso não ocorreu. Ao que consta, apenas um cangaceiro teria se filiado ao PCB, ou seja, não houve sucesso do partido em arregimentar os bandoleiros para a luta revolucionária. Por que Lampião tornou-se o símbolo do cangaço? Se não fosse por Lampião, provavelmente não estaríamos falando, hoje em dia, do cangaço da mesma forma. Ele foi o mais importante de todos os bandoleiros, sem dúvida nenhuma. É só recordarmos dos outros líderes do cangaço. Quem se lembra, na atualidade, de Jesuíno Brilhante? Ou de Sinhô Pereira, o primeiro chefe de Lampião? Em geral, apenas os estudiosos do tema. Sinhô Pereira, por exemplo, teve uma atuação mais limitada, uma carreira episódica de crimes. Abandonou definitivamente o cangaço em 1922, foi para Goiás e depois, para Minas Gerais, onde mudou de vida. Antônio Silvino, o primeiro “rei dos cangaceiros”, foi ferido no tórax em 1914, se entregou à polícia e foi preso. Já Lampião nunca abandonou o cangaço, nem se rendeu. Nunca foi preso. Acabou a vida como líder cangaceiro. Seu bando, no auge, em meados da década de 1920, chegou a contar com 120 homens. Chegou a ter vários subgrupos, que se uniam ao bando principal quando requisitados, uma espécie de confederação de cangaceiros, da qual ele era o chefe inconteste. Lampião atuou por mais de duas décadas, num território enorme, em sete estados nordestinos. Em seu bando, a partir da década de 1930, também havia mulheres, crianças e animais de estimação, o que deu outra aura para o cangaço. Toda a estética associada ao cangaço nas artes plásticas e no cinema vem principalmente do período lampiônico, especialmente nos anos de 1930, com uniformes e chapéus extremamente adornados (verdadeiros trabalhos artísticos). É bom lembrar que nos anos de 1920 e 1930 a mídia estava mais desenvolvida, o rádio, as revistas, os jornais e o cinema divulgavam fotos e histórias de Lampião e seus asseclas. Benjamin Abrahão chegou a filmar Lampião e seu grupo. Ou seja, há até mesmo imagens em movimento do “rei dos cangaceiros”. Os bandos lampiônicos tinham uma vida social que incluía música, danças, esportes e festas com muita bebida, o que também ampliou a imagem daqueles bandoleiros.

“A maior parte da população sertaneja, na verdade, não se tornou nem parte das volantes, nem integrante de bandos de cangaceiros. Em realidade, o povo ficava num fogo cruzado” A ferocidade e agressividade dos bandidos dos grupo de Lampião eram notórias, e as práticas de torturas, sangramentos e assassinatos com requinte de crueldade eram muito mais significativos do que nos períodos anteriores, certamente. Não houve um cangaceiro tão inteligente e hábil politicamente como Lampião, alguém que conseguisse construir uma rede de apoio de coiteiros tão eficiente, que teve relações com tantos coronéis importantes e que atuou num território tão dilatado, por tanto tempo. Por estes e outros motivos, Lampião foi, incontestavelmente, o rei dos cangaceiros.

É correto afirmar que a morte de Corisco determina o fim do cangaço? Desde 1935 (ano do Levante Comunista) até 1938 (massacre do Angico), vários cangaceiros conhecidos foram assassinados. Em 1938, Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros são assassinados e decapitados após o Massacre da Grota do Angico. Ou seja, a partir de 1935 a intensidade do combate ao banditismo sertanejo aumenta, e após 1937, pode-se dizer que seria decretado o fim do cangaço. Na prática, o assassinato de Lampião em 1938 representou, de fato, a eliminação do cangaço como fenômeno social, como um elemento de forte presença cultural e criminológica no ambiente sertanejo. A partir daí, muitos bandos se rendem, se entregam às forças policiais. Foi assim com os bandos de Pancada e de Vila Nova, em Alagoas. O próprio Corisco iria se decidir por abandonar o cangaço. Mas, em sua fuga, perderia a vida pelas mãos do tenente Zé Rufino. Corisco era um dos mais importantes chefes de subgrupos, se autodenominava “Chefe dos Grandes Cangaceiros”. Por isso, simbolicamente, muitos consideram seu assassinato, em 25 de maio de 1940, o fim do cangaço, já que ele foi o último líder importante a perder a vida.

“Ao que consta, apenas um cangaceiro teria se filiado ao PCB, ou seja, não houve sucesso do partido em arregimentar os bandoleiros para a luta revolucionária” O avanço tecnológico foi determinante para o fim dos cangaceiros? São muitos os motivos para o fim do cangaço. Entre as diferentes variáveis, o fator tecnológico certamente conta, ainda que seu peso seja relativo. O cangaço iria terminar mesmo sem a superioridade dos equipamentos da polícia. Mas, de fato, o armamento utilizado pelas forças policiais nos anos de 1930, e principalmente após o Estado Novo, fez alguma diferença. Vale lembrar também que as tropas começaram a utilizar o rádio para se comunicar. E que muitos soldados das volantes transitavam no sertão em caminhões, o que lhes dava maior velocidade e mobilidade na região.

“Toda a estética associada ao cangaço nas artes plásticas e no cinema vem principalmente do período lampiônico, com uniformes e chapéus extremamente adornados” É possível traçar algum paralelo entre a atuação dos cangaceiros com os jagunços e pistoleiros que atuam nos dias de hoje? Os jagunços e pistoleiros são contratados de políticos e potentados rurais, são assassinos a soldo, por vezes, solitários, que matam, em geral, de tocaia. São, normalmente, desprezados pela população, vistos como “paus mandados”, como covardes. Já os cangaceiros andavam em bandos, eram nômades e, mesmo que pudessem receber apoio e proteção de coiteros poderosos, não eram assalariados de ninguém. Podiam até fazer serviços para coronéis, mas eram, em geral, autônomos, não tinham patrão. Eles também não matavam pelas costas, de tocaia, escondidos. Enfrentavam os inimigos frente a frente, combatiam forças policiais, mostravam bravura. Assim, enquanto os pistoleiros até hoje são vistos como indivíduos desprezíveis no meio sertanejo, os cangaceiros gozam de maior prestígio. Como diria Câmara Cascudo, “o sertanejo não admira o criminoso, mas o homem valente”. Na visão de muitos, os crimes daqueles bandoleiros seriam algo secundário se comparados à valentia, bravura e coragem dos cangaceiros diante das adversidades, das agruras do sertão, das perseguições e dos combates. Por isso, há uma distância muito grande entre esses tipos de indivíduos. Além disso, o cangaço apresentava uma organização social muito peculiar.

Serviço Título: Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica Autor: Luiz Bernardo Pericás Editora: Boitempo Número de páginas: 322


américa latina

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Ingovernabilidade e repressão Angel Rama

HONDURAS Em crise, governo responde com violência aos protestos da população em resistência

Fotos: Angel Rama

Pilar Rodríguez correspondente em Tegucigalpa (Honduras) ERA NOITE DE domingo, 27 de março. O atual presidente de Honduras, Porfírio Lobo Sosa, interrompeu a programação de horário nobre de todas as cadeias de rádio e televisão para declarar ilegal a greve do setor magisterial. Dizia que, a partir de então, aqueles docentes que não fossem dar aulas seriam suspensos por um período de dois meses a um ano, sem salário. Apesar da ameaça, no dia seguinte, centenas de professores, estudantes e demais setores que integram a resistência hondurenha foram novamente às ruas, dando início a uma semana intensa de protestos que culminou num dia de Paralisação Cívica Nacional em 30 de março. “O processo de privatização da educação tem avançado em toda a América Latina. Aqui em Honduras não vamos permitir, mesmo que nos ameacem e nos reprimam. Estamos sendo despedidos, mas não podem nos tirar o amor pelo povo e pela carreira de educadores”, afirmou Edgardo Casaña, dirigente magisterial, durante uma manifestação em Tegucigalpa. A aparente estabilidade do governo, que chegou ao poder através de eleições fraudulentas após um golpe de Estado em 2009, foi estremecida pela mobilização dos professores. Eles estiveram em greve durante mais de um mês contra as políticas neoliberais na educação e sofreram repressão jurídica, financeira e, principalmente, física. O saldo da política das forças de segurança do Estado conta com duas mortes, centenas de feridos - principalmente pelas bombas de gás que são lançadas diretamente ao corpo das pessoas - e com centenas de manifestantes que passaram pelo menos uma noite na prisão. No dia 4 de abril, uma assembleia extraordinária do setor magisterial decidiu por um “recuo tático” da greve. Casaña deixou claro que não se trata de abandonar a luta. “Temos que nos fortalecer para voltar às ruas e continuar lutando pela educação pública e pelos direitos dos docentes”, declarou o dirigente.

Professores, estudantes e membros da resistência hondurenha participam de mobilização em defesa do ensino público

com maior desenvolvimento organizacional do país. São cerca de 65 mil docentes organizados em seis sindicatos ou colégios magisteriais. “São 48 anos de história vinculada à luta política e anti-imperialista”, ressaltou. Este mesmo setor esteve mobilizado em agosto do ano passado e, apesar da repressão, conseguiu estabelecer acordos com o governo como, por exemplo, o pagamento dos salários atrasados e a realização de uma auditoria para investigar a corrupção que atinge o Inprema (Instituto de Previdência Magisterial). Nenhum acordo foi cumprido.

“O processo de privatização da educação tem avançado em toda a América Latina. Aqui em Honduras não vamos permitir, mesmo que nos ameacem e nos reprimam”

Privatização da educação

Ignorando os protestos e as mortes, o governo aprovou, em 1º de abril, a lei de fortalecimento da educação pública e da participação comunitária, que prevê a descentralização da responsabilidade sobre a educação por meio da criação de conselhos municipais, nos quais participariam os pais das crianças e jovens em idade escolar. Durante as manifestações, os professores alertaram para o risco de privatização a partir desta lei. “Os municípios não têm dinheiro nem para pagar os salários dos professores, quanto mais para ficar responsáveis pela educação. Vai ser um fracasso e uma desculpa para privatizar as escolas”, explicou a docente Dirian Pereira.

Segundo informações da imprensa local, 6 mil professores estão com salários atrasados e 9 mil não podem se aposentar por falta de recursos O professor de economia Marcelino Borjas, um dos fundadores do Colégio Profissional Superação Magisteral Hondurenho (Colprosumah, na sigla em espanhol), explica que a mobilização dos professores de Honduras está ligada à crise do sistema educacional na América Latina. “Essa crise se agudiza mais com o golpe civil-militar, que aprofunda o modelo neoliberal em Honduras, diminuindo a participação do Estado na gestão de recursos financeiros sociais e estabelecendo a desarticulação de sujeitos coletivos”, afirmou. Segundo Borjas, o magistério é o setor

Desgoverno

Os docentes também denunciam que o atual governo roubou 7 milhões de lempiras (equivalente a 370 mil dólares), de um patrimônio de 20 milhões, do Inprema. “Aí entra um elemento importante que é a crise financeira. O regime golpista, como não é reconhecido internacionalmente, pela OEA, por exemplo, não tem acesso a recurso financeiro. Se tem, é em pequena quantidade, que não resolve o problema. Por isso, pegou dinheiro do Inprema. Exigimos o pagamento dessa dívida”, afirmou Borjas. Segundo informações da imprensa local, 6 mil pro-

fessores estão com salários atrasados e 9 mil não podem se aposentar por falta de recursos do Inprema. Para Bertha Oliva, defensora de direitos humanos e coordenadora do Cofadeh (Comitê de Familiares de Presos e Desaparecidos de Honduras), a alta do preço do combustível e o consequente aumento do preço dos alimentos no mundo contribuem para a ingovernabilidade do mandato de Porfírio Lobo Sosa. “É evidente que o regime está em crise. A ingovernabilidade aumenta cada vez mais. Não nos estão asfixiando só com gases, mas também com a falta de comida”, afirmou.

Angel Rama

Cinegrafista equipado com máscara contra gases anda em meio à nuvem de gás lacrimogênio

Greve nacional é reprimida a base de gás Lacrimogênio é tão usado que criou comércio de itens para minimizar os seus efeitos de Tegucigalpa (Honduras) Foi também para lutar contra o alto custo de vida em Honduras que a Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) - que agrega várias organizações de esquerda do país - convocou um dia de Greve Cívica Nacional, sob o lema “Desculpe o incômodo, estamos lutando para construir a Nova Pátria”. Ocupação de estradas, ruas e universidades aconteceram em diversas regiões do país. Em todos os pontos houve repressão e, em Tegucigalpa, a sede de um dos principais sindicatos organizados do país, o Sindicato de Trabalhadores da Indústria da Bebida e Similares (Stibys), foi bombardeada com gás lacrimogêneo. São tantas as bombas de gás lacrimogêneo lançadas sobre os manifestantes que se criou um pequeno comércio de artefatos que minimizam os efeitos dos gases. Um pano molhado com vinagre custa 50 lempiras (equivalente a R$ 4,50) e um par de óculos de natação custam 40 (R$3,50). Além disso, a imprensa anda equipada com máscara anti-gás e capacete, já que os jornalistas também são agredidos durante as manifestações. Um cinegrafista do canal local Cholusat teve o nariz quebrado após ser atingido por uma bomba. Muriel Rodríguez, do canal Globo, levou tiros de bala de borracha no pé. “Por sorte não me machuquei muito, mas isso é uma falta de respeito, um atentado à livre expressão” desabafou o jornalista. Mesma sorte não teve a estudante Lisa Aguilar, que foi atacada com bombas dentro do edifício do Colégio de Profes-

sores de Educação Média de Honduras. A estudante explica que a polícia perseguiu os manifestantes após os protestos, gaseificando o prédio onde eles se refugiaram. “Começaram a bombardear o edifício. Havia cerca de 200 pessoas e criou-se automaticamente uma câmara de gás lá dentro. Não tínhamos oxigênio suficiente para respirar. Quando deixaram de atirar as bombas, saímos ao pátio para respirar melhor. Nem sequer tinham saído umas 30 pessoas, começaram a bombardear de novo. Dessa vez, as bombas eram atiradas diretamente no corpo das pessoas. No meu caso, me acertaram duas bombas, uma na perna outra no braço. Ao inalar o conteúdo tive uma crise de asma e desmaiei. Quando acordei estava no hospital”, relatou Aguilar, que exibia duas marcas roxas onde foi atingida pelas bombas.

“No meu caso, me acertaram duas bombas, uma na perna outra no braço. Ao inalar o conteúdo tive uma crise de asma e desmaiei. Quando acordei estava no hospital”

Carlos Leyes, da ONG de direitos humanos Comissão de Verdade, denuncia que a polícia está usando as bombas em quantidades absurdas. “Só em uma

ocasião, na mobilização de estudantes na Universidade Autônoma de Honduras, a força repressiva usou mais de 200 bombas de gás lacrimogêneo. Os danos de imediato e a longo prazo podem ser terríveis para as pessoas que receberam os gases, inclusive para a polícia e o exército”, alertou. Repressão “baixo perfil”

No período que antecedeu os conflitos a partir da greve dos professores o clima era de aparente calmaria. Berta Oliva explica que a repressão teve várias etapas desde o golpe e que, preocupado com a legitimidade internacional, Pepe Lobo procurou intimidar a resistência “por baixo dos panos”. No início do golpe, relata Oliva, “todo mundo viu que a repressão era massiva. Porque o plano era que o povo se cansasse, como havia acontecido nos golpes anteriores, em décadas passadas”. Depois, completou, “começaram com as ações sistemáticas e seletivas, que eram silenciadas”. Nesse período, que compreende o primeiro ano do governo de Porfírio Lobo, de janeiro a dezembro de 2010, a Cofadeh contabilizou 463 mortos. Entre eles estão 10 jornalistas, 32 da comunidade LGTB, cerca de 30 camponeses e 30 professores. Outra tática utilizada pelo regime é a aplicação de ações ditas legais contra organizações. Berta Oliva dá o exemplo do próprio Cofadeh, que sofreu uma ordem de sequestro de documentos. Segundo a militante dos direitos humanos, também nesse período foram inúmeros os registros de denúncias de ameaças de morte por telefone a membros da resistência hondurenha. (PR)




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áfrica

O grande negócio da Líbia Reprodução

WIKILEAKS Telegramas enviados pela embaixada dos Estados Unidos em Trípoli entre 2006 e 2010 mostram obsessão pelos poços de petróleo Pere Rusiñol de Madri (Espanha) PASSOU DE PÁRIA a amigo do Ocidente e acumulava mostras públicas de amizade dos mais variados mandatários, de Silvio Berlusconi a Tony Blair, passando por José María Aznar, José Luis Rodríguez Zapatero e o rei espanhol Juan Carlos. Mas, mesmo durante essa lua de mel, Muamar Kadafi punha os diplomatas dos Estados Unidos em Trípoli de cabelos em pé, segundo revelam dezenas de telegramas secretos da embaixada estadunidense vazados pelo Wikileaks. Os documentos mostram uma autêntica obsessão pelos poços de petróleo e pelas dificuldades que as empresas ocidentais encontravam para operar no país. “Na Líbia, o negócio é a política, e Kadafi controla ambos”, dizia um informe confidencial de fevereiro de 2009. Os telegramas dos diplomatas dos EUA lamentam reiteradamente as interferências da família Kadafi, que controlava os setores econômicos mais lucrativos. Mas o assunto “estrela” dos documentos vazados, que gerou rios de tinta muito superiores à preocupação pelos direitos humanos, era o endurecimento das condições exigidas da dúzia de companhias petrolíferas ocidentais que opera no país, o que provocava um grande malestar na embaixada estadunidense. A Líbia é o primeiro país africano em reservas de petróleo, com 46 bilhões de barris estimados, o dobro dos EUA. Em 2010, alcançou os 1,8 milhões por dia – 80% deles procedentes da zona de Sirte –, cuja venda significou 95% da receita do Estado. Os principais clientes são Itália (28%), França (15%), China (11%), Alemanha (10%) e Espanha (10%).

Os telegramas dos diplomatas dos EUA lamentam reiteradamente as interferências da família Kadafi, que controlava os setores econômicos mais lucrativos Fácil de extrair

O petróleo líbio não apenas é abundante, como também é de grande qualidade e fácil de extrair, o que o faz especialmente rentável: em algumas regiões, o custo de extração mal chega a um dólar o barril. Quando, entre 2003 e 2004, as Nações Unidas e os EUA levantaram as sanções contra o país, após a renúncia do regime à produção de armas de destruição em massa, as grandes petroleiras ocidentais voltaram massivamente. As companhias internacionais que dominam o mercado líbio são Eni, Repsol, YPF e o consórcio estadunidense Oasis, que integra, na Líbia, a CoconoPhillips, Marathon Oil e Ameranda Hess. Mas estão também solidamente instaladas a PetroCanadá, a TNK e Gazprom (Rússia), Total (França), Saga Petroleum (Noruega), Wintershall e RWE (Alemanha), OMV (Áustria), BP (Reino Unido), Occidental, Halliburton, Exxon (EUA) – a Chevron saiu em 2010 porque suas explorações não davam resultados –, Woodside (Austrália) e Japan Exploration Company, entre outros.

A embaixada dos EUA seguiu com lupa as condições do setor petrolífero e refletiu sua crescente indignação nos telegramas que enviava a Washington Indignação

A embaixada dos EUA seguiu com lupa as condições do setor e refletiu sua crescente indignação nos telegramas que enviava a Washington. A partir de 2006, o regime líbio iniciou uma rodada de contatos com as transnacionais para estender as licenças e endurecer suas condições: exigia ampliar a cota de benefícios que corresponde ao Estado e o pagamento de um bônus milionário adicional, entre outras novidades, embora os contra-

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da receita do Estado líbio é garantida pela venda de petróleo

tos haviam sido assinando havia menos de três anos e faltasse muito para que expirassem. Isso provocou grande mal-estar à embaixada. E, quando a maioria das petroleiras aceitava as condições e assinava os novos contratos, os funcionários estadunidenses não ocultavam sua indignação. O alerta se acendeu para os EUA no fim de 2007, quando a Eni assinou o novo contrato: “Embora a Eni o venda como um êxito, o acordo traz aspectos negativos e pode facilitar o caminho para que se imponham exigências similares a outras concessionárias de petróleo e gás estrangeiras”, lamenta um telegrama de 26 de outubro. “O resultado é que a Líbia fica com uma parte maior do petróleo produzido e, nas contas da Eni, constarão menos reservas.” Em telegramas posteriores, os diplomatas dos EUA aprofundam sua preocupação: “Executivos de empresas ocidentais mostraram reservas muito sérias. Um deles diz que o acordo assusta e há uma preocupação generalizada de que agora buscarão acordos similares com o resto”. E mais: “A crescente avareza da NOC [empresa pública petroleira da Líbia] pode fazer diminuir o interesse dos principais operadores na Líbia.” As petroleiras foram assinando as novas condições, mas isso não aplacou o mal-estar da embaixada dos EUA que, em novembro de 2007, redige outro informe: “A Líbia é um lugar excepcionalmente difícil para as petroleiras internacionais, que têm que afrontar numerosos e bizantinos problemas e cujas margens de lucros são comparativamente menores. A situação ficará pior nos próximos anos, pois o governo busca concessões adicionais para maximizar seus lucros”. Quando, em junho de 2008, a PetroCanadá assinou um novo contrato, que, segundo a embaixada dos EUA, supunha um respaldo aos “esforços líbios para impor termos mais duros às petroleiras estrangeiras”, os diplomatas dos EUA já mostraram resignação: “Diante dos altos preços do petróleo e as limitadas possibilidades para novas explorações e produção, as petroleiras engoliram [as novas condições] e assinaram”.

Nuvem de fumaça sobe de linha condutora de petróleo perto de Ben Jawad

Fundo “voluntário”

A única alegria é dada pela Chevron, que, em julho do mesmo ano, explica que sua intenção de deixar o país se dá porque não encontra jazidas na zona destinada a ela. O funcionário da embaixada registra tal fato assim: “São pessimistas diante das perspectivas negativas de encontrar algo. Além disso, são contrários a essa mentalidade de leilão [do governo líbio] e reticentes em cumprir os termos draconianos exigidos pela NOC”. Em janeiro de 2009, a embaixada estadunidense aponta o dedo diretamente para o chefe da NOC, Shukri Ghanem, e organiza várias reuniões com executivos do setor que o criticam. Segundo os informes da embaixada, entre os executivos ocidentais havia um “mal-estar extenso” contra ele por sua “falta de experiência técnica” e por sua “reticência em se reunir com os executivos das petroleiras estrangeiras”. “Seu enfoque e estilo alienaram as petroleiras estrangeiras e prejudica a cooperação potencial. Outros executivos nos contam que, em determinados aspectos, é um regresso ao estilo da década de 1970, quando se via as companhias estrangeiras sob um ponto de vista nacionalista, que as considerava entidades depredadoras”, acrescenta o informe, concluindo: “95% da economia depende do petróleo. O fato de que a NOC esteja em mãos de um indivíduo autocrata mal visto por seus subordinados e pelos profissionais internacionais do petróleo não augura nada de bom para o objetivo líbio de incrementar a produção de 1,7 a 3 milhões de barris por dia”.

“Diante dos altos preços do petróleo e as limitadas possibilidades para novas explorações e produção, as petroleiras engoliram [as novas condições] e assinaram” Pouco depois, o governo líbio convocou as petroleiras para pedir-lhes que contribuíssem para um fundo “voluntário” que lhe permitiria compensar as indenizações pagas por ações terroristas do passado. “Há mal-estar. O governo lhes disse que receberão melhor trato se fizerem contribuições ‘voluntárias’. Depois da reunião, os managers se mostraram firmes em não pagar, mas há o rumor de que a Gazprom e pequenas firmas já contribuíram”.

Onda de privatizações

Esse mal-estar se estendeu a todos os nichos de negócio que foram aparecendo como consequência da onda privatizadora empreendida pelo regime. Os telegramas da embaixada tentaram sistematicamente esfriar o interesse das empresas dos EUA que queriam investir na Líbia. Quando a gigante Bechtel desistiu de construir um porto comercial em Sirte que tinha apalavrado, a embaixada alertou: “O fracasso da Bechtel mostra como se tomam as decisões diante dos investimentos estrangeiros importantes. Depois de um ano de esforço e apesar do desembolso de um milhão de dólares, numerosas visitas de alto nível e supostos compromissos formais do governo, foi impossível. O fato de que um operador com os conhecimentos e a potência econômica da Bechtel não tenha conseguido deveria servir como lição para a grande quantidade de empresas ocidentais que quer entrar no florescente mercado líbio.” A embaixada também esfriou o entusiasmo levantado pelo ambicioso plano de privatizações posto em marcha por Kadafi. Em um telegrama de novembro de 2009, advertiu que o governo líbio exigia que os novos proprietários privados mantivessem os postos de trabalho: “Isso frequentemente torna pouco atrativo para um investidor estrangeiro, na medida em que a produtividade das empresas públicas líbias é infame e tem excesso de pessoal, como consequência das generosas leis trabalhistas líbias”.

“Outros executivos nos contam que, em determinados aspectos, é um regresso ao estilo da década de 1970, quando se via as companhias estrangeiras sob um ponto de vista nacionalista, que as considerava entidades depredadoras” Pelos telegramas, desfilam todo tipo de negócios, alguns patrocinados ou abençoados por governos: gestões da Itália para que a empresa Sipsa ganhe um contrato para destruir químicos; a tentativa fracassada da empresa britânica York Guns de enviar 130 mil rifles automáticos, que os diplomatas suspeitavam que acabariam no Chade ou no Sudão, operação vetada pelo governo britânico; a mediação de um diplomata espanhol em nome da Espidesa (Técnicas Reunidas), que buscava o aval dos EUA para construir uma fábrica de ácido nítrico; ou as sugestões de Tony Blair para que a Líbia investisse na Serra Leoa e em Ruanda, países que o ex-primeiro-ministro britânico dizia serem prioritários para sua organização de caridade. Os diplomatas dos EUA descrevem também a tensão entre as autoridades líbias e francesas: destacam a feroz oposição de Kadafi ao projeto chamado de União pelo Mediterrâneo e os comentários “sarcásticos” do mandatário líbio sobre Sarkozy. E, em sentido inverso, preveem uma aproximação com a Espanha depois da visita do rei Juan Carlos a Trípoli, em 2009: “Entendendo que na Líbia o negócio é a política e que Kadafi controla ambos, a Espanha provavelmente se beneficiará da cálida relação entre Kadafi e o rei”. (Público) Tradução: Igor Ojeda

Pacto nuclear com França, Rússia e EUA de Madri (Espanha) Segundo os telegramas vazados pelo Wikileaks, Muamar Kadafi buscou acordos simultâneos com França, EUA e Rússia para iniciar um programa nuclear civil. Todos mostraram predisposição, mas nenhum passou das boas palavras. O primeiro passo foi dado durante a visita de Nicolas Sarkozy a Trípoli em julho de 2007, quando ambos países subscreveram um memorando para cooperar nas “aplicações pacíficas da energia nuclear”. A embaixada dos EUA considerou o pacto como “vago programa de cooperação que não compromete nada”. Em abril de 2008, durante uma visita do russo Vladimir Putin e “diante da insistência líbia” – destaca um telegrama vazado – Trípoli assinou outro memorando de cooperação nuclear igualmente vago. E, em maio de 2008, a embaixada dá conta de que uma alta autoridade sondou os EUA com o mesmo fim e tampouco houve avanços. (PR, do Público)


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