Edição 424 - de 14 a 20 de abril de 2011

Page 1

Igor Ojeda

Saara Ocidental

A luta de um povo por liberdade

Encarte especial

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Circulação Nacional Ano 9 • Número 424

R$ 2,80

São Paulo, de 14 a 20 de abril de 2011

www.brasildefato.com.br Bia Pasqualino

Carajás 15 anos de impunidade

O massacre permanece Após 15 anos do maior crime contra trabalhadores rurais organizados pelo MST, continua a impunidade dos assassinos dos 21 sem-terra mortos em Eldorado dos Carajás (PA). No Assentamento 17 de abril, a lembrança do massacre é presente, tal como o desamparo do Estado às famílias das vítimas. No entanto, a escola e o assentamento coordenados pelos sobreviventes dão exemplo de educação e agroecologia. Págs. 4 e 5

ISSN 1978-5134

Código Florestal, jogo Trabalho escravo na pesado dos ruralistas Pág. 7 pecuária argentina Pág. 9 João Brant

Igor Fuser

Frei Betto

Um passo à frente

Retrocesso diplomático

Crianças, entre livros e TV

Mudanças na comunicação, como a regulamentação dos artigos da Constituição, a universalização da banda larga e a defesa dos direitos de grupos vulneráveis, estarão na pauta de nova Frente Parlamentar. Pág. 3

A atitude do Brasil de condenar o golpe de junho de 2009 em Honduras foi o melhor momento da política externa de Lula. Mas, e se o golpe tivesse ocorrido hoje? Como Dilma Rousseff agiria? Pág. 3

A vantagem da leitura sobre a TV é que a criança permanece inteiramente receptiva, sem condições de interagir com o filme ou o desenho animado. A TV “rouba” a capacidade onírica dela, como se sonhasse por ela. Pág. 3


2

de 14 a 20 de abril de 2011

editorial

O país em luto e no banco dos réus O ASSASSINATO de 12 crianças da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste do Rio, dia 7, chocou a todos. A monstruosidade cometida, friamente, contra vidas inocentes e indefesas, protagonizada por um jovem esquizofrênico, coloca nossa sociedade sentada no banco dos réus. O acontecimento explicita as incertezas do futuro que queremos legar às gerações posteriores. Mas, sobretudo, põe em xeque o presente. É contundente o questionamento do jornalista Mauro Santayana, ao indagar “se vale a pena continuar sepultando crianças, e, com elas, os sentimentos de solidariedade, de humanismo, de civilidade e de justiça”. Valores que a sociedade capitalista fragiliza todo dia. A brutalidade do ato nos impõe questionamentos que vão além dos de responsabilizar o assassino, já morto. Até quando manteremos uma sociedade estruturada e promotora de uma das maiores desigualdades sociais do planeta? Como conviver numa sociedade em que a disseminação do medo tornou-se um negócio lucrativo? Espalha-se o medo e logo surge uma empresa vendendo proteção e segurança, seja na área da saúde, investimentos financeiros, propriedades materiais, educação,

opinião

moradia e, até mesmo, do seu futuro. Será mera coincidência que a sociedade estadunidense, tida como modelo para a burguesia daqui, é justamente onde ocorre o maior número de lamentáveis acontecimentos como o ocorrido em Realengo? Os EUA - que se vangloriam de ser a polícia do mundo, que constroem imagem de ser uma sociedade soberba e bem armada, que possui uma população carcerária superior a da agricultura, que tem a maior indústria cinematográfica disseminadora da violência, que não hesita em prover guerras para dominar, se apropriar de riquezas naturais e incrementar sua economia, que sustenta seu luxo empobrecendo outros povos - pode servir de exemplos a outras sociedades? Em busca de ganhos pessoais e de maior visibilidade, há políticos que não hesitam em promover ataques e espalhar preconceitos contra homossexuais e negros, como fez recentemente o deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ) em programa de televisão. Sempre com um discurso agressivo, racista e sexista, esse parlamentar destila ódio em busca dos holofotes da mídia e de cativar uma parcela da sociedade que lhe garante sucessivos mandatos. Não diferente fez o candidato tucano José Ser-

A monstruosidade cometida, friamente, contra vidas inocentes e indefesas, protagonizada por um jovem esquizofrênico, coloca nossa sociedade sentada no banco dos réus ra, nas eleições passadas, quando espalhou mentiras, preconceitos e intolerância, em busca dos votos que pudessem alimentar seu esquizofrênico sonho de ser presidente do Brasil. Sempre com a conivência da mídia burguesa e com a impunidade assegurada por setores do Poder Judiciário. Não hesitou nem mesmo em usar sua mulher, Mônica Serra, pa-

artigo

Roberta Traspadini

Reprimarização e dependência O ECONOMISTA Reinaldo Gonçalves tem sustentado a volta ao passado da política econômica do governo Lula, quando o Brasil era primárioexportador. Especialização retrógrada é o conceito utilizado por ele para mostrar dito retorno à produção primária voltada para fora, centrada especialmente na exportação de bens com baixa tecnologia incorporada. Para explicar este processo, o professor criou o conceito de vulnerabilidade externa, entendida como a capacidade do país enfrentar com mais êxito, ou não, as pressões internacionais. Para ele, o período Lula foi marcado por um cenário internacional favorável que permitiu um controle conjuntural da vulnerabilidade, mas estruturalmente não mexeu nas condições internas que permitiriam outra condução no processo de desenvolvimento. O jornal Valor Econômico mostra que de 2004 a 2010 o Brasil viu seu processo industrial, de incorporação tecnológica, perder força, enquanto as commodities ganharam. Neste período, as cinco principais commodities concentraram 43.36% das exportações, enquanto os automóveis tiveram uma queda de 3,5% para 2,2%, a venda de aviões caiu de 3,4% para 2%. Outro destaque é a composição tecnológica destas commodities. Dos 17 bilhões de dólares exportados de soja, 64,5% foram em grãos e dos 12 bilhões de dólares do açúcar, apenas 29% se referem ao refino. Vulnerabilidade Temos algumas diferenças centrais com os períodos anteriores, dado o prévio impacto no cenário nacional do processo neoliberal vivido no período FHC. 1) O período neoliberal conformou uma situação no Brasil de privatizações, abertura econômica e mudanças legislativas que fortaleceram, no cenário nacional, a participação do capital internacional. 2) As terceirizações, com as quebras de contratos e a implementação dos trabalhos temporários - em especial estágios e designações temporárias da educação - modificaram o padrão de emprego e renda no Brasil e formalizaram a precarização do trabalho como critério fundamental da extração de valor em território nacional. 3) A soberania nacional - alimentar, territorial, democrática e popular - foi substituída pela aberta campanha publicitária sobre o Brasil, agora na condição de credor do FMI. 4) O mercado interno passou a ser o celeiro das novidades internacionais eletro-eletrônicas – cujas sedes principais das marcas industriais estão no G-7 - desde os telefones celu-

lares ate os aparelhos de televisão. Agrega-se a isto o tema da suposta comodidade dos lares, o que nos dá um intenso culto ao consumo, diretamente atrelado ao endividamento das famílias e dos indivíduos. Estes quatro elementos juntos mostram a acentuação dos vínculos de dependência do país no período Lula às economias centrais, e relatam uma faceta nova da reprimarização da economia brasileira. A dependência, entendida como vulnerabilidade externa estrutural traz, para a classe trabalhadora brasileira, novos dilemas dos velhos paradigmas da disputa do poder. Estes dilemas reforçam a lógica de banir do imaginário coletivo brasileiro três questões chaves: a soberania nacional; a democracia participativa, casada com o projeto popular; e a situação da classe que vive do trabalho, a partir deste processo de reprimarização. Dependência De 2004 a 2010 a classe trabalhadora viveu a reconfiguração do mun-

to menos mexer com os interesses das indústrias bélicas. Uma mídia coerente, hoje, com a postura que adotou em 2005 quando ficou do lado da bancada das armas, defendendo esse comércio no país. Há sinais, no entanto, que mostram que o acontecimento explicitou outros valores e comportamentos contrários à cultura da violência, do medo, da mentira, do individualismo e de ganhar a quaisquer custos. Além da solidariedade prestada às vitimas da tragédia, nada mais valoroso do que o grupo de moradores que se reuniu para apagar as pichações feitas na parede da casa do assassino, contra ele e seus familiares. Buscaram dar um basta, com aquele gesto simbólico, às ideias de violência e preconceitos que, na maioria das vezes, fazem de vítimas a população mais pobre e desassistida de políticas públicas. Também é louvável a iniciativa, no Senado Federal, de um projeto de decreto legislativo convocando um plebiscito para que o povo brasileiro decida se o comércio de armas e munição deve ser proibido no Brasil. Esperamos que a indústria da morte e da violência, juntamente com a bancada das armas, seja derrotada dessa vez.

Guilherme C. Delgado

Inflação e salário mínimo

Gama

A dependência, entendida como vulnerabilidade externa estrutural traz, para a classe trabalhadora brasileira, novos dilemas dos velhos paradigmas da disputa do poder

ra acusar irresponsavelmente a candidata Dilma Rousseff de ser a favor de matar criancinhas. Resta-nos a esperança de que as tradicionais olheiras desse tucano são consequentes de noites mal-dormidas pelo desserviço que prestou à política brasileira e pelo incentivo que deu aos grupos mais direitistas do país. Ter a coragem de encarar de frente a tragédia de Realengo exige, da sociedade brasileira, determinação e firmeza para enfrentar o modelo de comunicação em nosso país. Acabar com o monopólio é apenas a ponta desse iceberg. Trata-se de definir o papel da comunicação numa sociedade que busca consolidar a democracia, ser socialmente justa, culturalmente instruída e desenvolvida. É deplorável a forma como a mídia cobriu a tragédia da Escola Municipal Tasso da Silveira. Em busca de elevar seus índices de audiência promoveram acusações infundadas e irresponsáveis, como o de tentar vincular o acontecimento ao fundamentalismo islâmico. Não pouparam nem mesmos os alunos sobreviventes da tragédia e seus familiares, com insistentes e desrespeitosas entrevistas. Em nenhum momento houve disposição de promover um debate sério e aprofundado sobre a questão. E mui-

do do trabalho em que a indústria perdeu peso e o agronegócio, de baixa incorporação tecnológica e laboral, ganhou força. Além disto, a juventude deste período - criança que se desenvolveu nos moldes neoliberais dos anos de 1990 - viu a possibilidade de se empregar pela primeira vez como estagiária, cuja aparência de ganho real acima do salário mínimo brasileiro foi conformando uma nova ideologia do trabalho, avessa ao debate da intensa exploração vivida. A sociedade do consumo tecnológico e dos ganhos da especulação financeira, associada ao endividamento pessoal sem precedentes na história do mercado interno brasileiro, abriu as portas ao fortalecimento renovado da cultura estadunidense do consumo, do desperdício, da ampliação do desejo mercadológico de criação de necessidades e escolhas externas à realidade concreta destes sujeitos. As cruéis implicações desta política neoliberal combinada com a reprimarização dizem respeito à intenção formal do poder institucional, de impor, na aparência dos números da economia, de enterrar de vez do imaginário coletivo brasileiro, os elementos que garantiriam a força da nação e a capacidade decisória da sociedade (primazia do público sobre o privado; retomada da soberania nacional; democracia participativa, para além da suposta democracia do consumo, via endividamento individual). Até quando? Até sermos capazes, enquanto classe, de dar unidade aos levantes, de retomar o debate popular sobre os grandes processos que vivemos – como a campanha contra os agrotóxicos – e de reconstruir o projeto popular para o Brasil. Roberta Traspadini é economista, educadora popular e militante da organização Consulta Popular/ES.

AS PRESSÕES INFLACIONÁRIAS de origem externa – “commodities agrícolas” e agora também o petróleo, rearticulam de outra forma a “banda da música” conservadora, para um retorno mais duro à política fiscal e monetária contencionista – leia-se corte de gastos correntes do Orçamento e elevação de juros. Na esteira dessas pressões, o salário mínimo de 2012, já definido em lei pelo critério do incremento real do PIB de 2009 e 2010 mais a inflação de 2011, passa a ser visado como bola da vez a ser abatida, por vias políticas ou judiciárias. O governo Dilma conseguiu aparentemente conter a ânsia dos juros altos que caracterizou o Banco Central dos dois mandatos do governo Lula, exceto apenas o ano eleitoral de 2010. Isto teria sido substituído por política monetária clássica – do tipo elevação dos depósitos compulsórios dos bancos e outras restrições ao crédito, hoje meio pomposamente denominadas medidas macro-prudenciais. Do lado fiscal, o governo aviou alguns cortes no custeio orçamentário; mas foi certamente o não incremento de cerca de dois pontos percentuais do salário mínimo (PIB de 2008 a 2009), o fator isolado mais relevante de contenção orçamentária. Mas aqui está exatamente o perigo de retrocesso na vertente distributiva do conjunto da política social. O vínculo de salário mínimo a benefícios sociais monetários é hoje muito potente para mover quase 5% do PIB (Previdência, Assistência, Seguros Desemprego e Folhas Salariais de Estados e Municípios) e cerca de 25 milhões de beneficiários - famílias de consumidores e produtores de bens-salário, diretamente afetados por esta política. Isto tudo, sem falar no mercado de trabalho, hoje fortemente afetado por esta política de piso salarial. Observe-se que o tamanho econômico, apenas no setor público, da política do salário mínimo, vinculada a benefícios sociais, é no mínimo 12 vezes maior que o Programa Bolsa Família. O fato de o campo conservador ter escolhido a política do salário mínimo como “bola da vez” a ser descartada, sob o pretexto da política anti-inflacionária é mais ou menos aquilo que se poderia esperar desse perfil ideológico, que, diga-se de passagem, não tem nenhum compromisso com igualdade social.

A velha teoria do bolo – primeiro crescer e somente depois distribuir - continua vigente em salas estratégicas do Palácio do Planalto Por outro lado, os compromissos de crescimento econômico e o estilo de acumulação de capital que o governo Dilma herdou do governo Lula contêm um componente distributivo, pela via do consumo, para a qual a política social cumpre um papel virtuoso. A batalha ideológica em torno da política econômica do governo Dilma compreende e continua uma disputa ideológica com três vertentes: 1) o retorno à política pura e simples das metas de inflação, sem compromisso necessário com crescimento econômico e sem nenhum compromisso com melhorias distributivas; 2) a política de condução do crescimento econômico, apoiada em investimentos protagonizados pelo setor público; 3) o compromisso de repartição de parcela do excedente econômico, preferencialmente com crescimento, que o sistema de direitos sociais institucionalizou depois de 1988. As políticas conjunturais – de caráter monetário e fiscal – não são neutras do ponto de vista distributivo. Também não o são do ponto de vista do crescimento. É difícil para o governo se situar no embate das três correntes que o dividem, daí certa paralisia de ações estratégicas para afirmar o compromisso das vertentes dois e três (crescimento e distribuição). Mas a ortodoxia do conservadorismo seria fatal às metas de crescimento que a presidenta Dilma tem pela frente. O grande risco que temos pela frente não é propriamente uma recaída pura e dura ao receituário conservador, que hoje não tem mais o prestígio de outrora nos chamados mercados organizados. Mas sim uma aliança ao estilo modernizante e conservador, que, a pretexto das questões conjunturais, abandone de vez a vertente distributiva, para o que a política do salário mínimo é crucial. A velha teoria do bolo – primeiro crescer e somente depois distribuir – continua vigente em salas estratégicas do Palácio do Planalto. Guilherme C Delgado é doutor em economia pela Unicamp e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda • Subeditores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Joana Tavares• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


de 14 a 20 de abril de 2011

3

Frei Betto Dahmer – www.malvados.com.br

instantâneo

Igor Fuser

Retrocesso diplomático A CORAJOSA ATITUDE do Brasil ao condenar o golpe de junho de 2009 em Honduras e, mais tarde, abrigar na sua embaixada o presidente deposto Manuel Zelaya, em desafio aos EUA e à direita brasileira, foi o melhor momento da política externa de Lula. Agora, quando se discute a diplomacia do novo governo, pode-se abordar o tema com uma pergunta: se o golpe em Honduras tivesse ocorrido hoje, será que a dupla Dilma Roussef e Antonio Patriota agiria do mesmo modo que Lula e Celso Amorim? A julgar pelos sinais emitidos por Brasília, a resposta é: “provavelmente, não”. O episódio mais expressivo do contraste entre as duas gestões foi o apoio do Brasil, em março, à resolução que instituiu um relator especial da ONU para investigar a situação dos direitos humanos no Irã. Essa foi uma decisão importante, pois colocou o Irã na berlinda entre os vilões humanitários do mundo, abrindo caminho para a adoção de medidas mais agressivas contra o regime de Teerã. Como se sabe, o interesse do chamado “Ocidente” nada tem a ver com a proteção dos cidadãos iranianos. Trata-se, ao contrário, do uso oportunista da retórica

dos direitos humanos para hostilizar os governos nacionalistas no Oriente Médio, em benefício dos planos dos EUA de dominar aquela região estratégica. O próprio Amorim rompeu seu silêncio para criticar a nova posição do Itamaraty, que, segundo ele, “fará a alegria daqueles que desejam ver o Brasil pequeno e sem projeção internacional”. Com a mudança, argumenta o ex-chanceler, ficará mais difícil o nosso país exercer o papel de mediador e até interceder junto ao governo iraniano em casos específicos, como o da mulher ameaçada de apedrejamento – um castigo bárbaro cuja concretização o Brasil ajudou a evitar. Enquanto isso, a direita aplaude. Uma colunista tucana chegou a qualificar a política externa de Lula como “um ponto fora da curva”. Há algo de verdade em dizer isso de um governo que sempre se mostrou generoso com os banqueiros e o agronegócio, ao mesmo tempo em que se exagera o alcance da mudança. Prova disso é a recusa brasileira em endossar a intervenção na Líbia, atitude que demarca os limites da guinada no Itamaraty. Nada indica um retorno à posição submissa dos tempos de FHC. Mas o retrocesso é inegável.

João Brant

Parlamentares dão um passo à frente NO DIA 19 ACONTECE o lançamento da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação. Encabeçada pelos deputados Luiza Erundina (PSB-SP) e Emiliano José (PT-BA), a Frente tem participação de parlamentares de vários partidos, como PSOL e PCdoB. A iniciativa será aberta à participação popular, com entidades da sociedade civil integrando sua coordenação. É uma ótima notícia, especialmente se considerado o quão pouco tem sido feito pelo Congresso Nacional nos últimos anos em favor da democratização da comunicação. De fato, o Congresso está devendo. Até hoje não foram regulamentados os principais artigos sobre o tema na Constituição Federal. Uma das tentativas, um projeto da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) sobre regionalização da produção de rádio e TV, está há 20 anos tramitando. Depois de muitas voltas, foi aprovado na Câmara em 2003, mas até hoje espera a manifestação do Senado. Até agora, as melhores movimentações na casa haviam sido feitas por Luiza Erundina (PSB-SP) e Maria

do Carmo Lara (PT-MG). Entre 2006 e 2008, elas criaram uma subcomissão que analisou todos os problemas nas concessões de rádio e TV, e fizeram dois relatórios que são uma ótima referência para quem quer entender as causas e as consequências desse sistema carente de transparência e democracia. A iniciativa da Frente vem pautada por temas chave na agenda de mudanças na comunicação, como a regulamentação dos artigos da Constituição, a universalização da banda larga e defesa dos direitos de grupos vulneráveis como crianças e adolescentes, mulheres, negros e negras, indígenas, população LGBTT e pessoas com deficiência no tocante às questões de comunicação. Para a sociedade civil, o lançamento será a oportunidade de deflagrar uma agenda de mobilizações por um marco regulatório democrático para as comunicações. Quem tiver a oportunidade, vá a Brasília neste dia. A importância desse ato de lançamento só será dimensionada daqui a algum tempo. Tomara que haja bons motivos para ele ser lembrado.

Criança, entre livros e TV FOI O PSICANALISTA José Ângelo Gaiarsa, um dos mestres de meu irmão Léo, também terapeuta, que me despertou para as obras de Glenn e Janet Doman, do Instituto de Desenvolvimento Humano de Filadélfia. O casal é especialista no aprimoramento do cérebro humano. Os bichos homem e mulher nascem com cérebros incompletos. Graças ao aleitamento, em três meses as proteínas dão acabamento a este órgão que controla os nossos mínimos movimentos e faz o nosso organismo secretar substâncias químicas que asseguram o nosso bem-estar. Ele é a base de nossa mente e dele emana a nossa consciência. Todo o nosso conhecimento, consciente e inconsciente, fica arquivado no cérebro. Ao nascer, nossa malha cerebral é tecida por cerca de 100 bilhões de neurônios. Aos seis anos, metade desses neurônios desaparecem como folhas que, no outono, se desprendem dos galhos. Por isso, a fase entre zero e 6 anos é chamada de “idade do gênio”. Não há exagero na expressão, basta constatar que 90% de tudo que sabemos de importante à nossa condição humana foram aprendidos até os 6 anos: andar, falar, discernir relações de parentesco, distância e proporção; intuir situações de conforto ou risco, distinguir sabores etc. Ninguém precisa insistir para que seu bebê se torne um novo Mozart que, aos 5 anos, já compunha. Mas é bom saber que a inteligência de uma pessoa pode ser ampliada desde a vida intrauterina. Alimentos que a mãe ingere ou rejeita na fase da gestação tendem a influir, mais tarde, na preferência nutricional do filho. O mais importante, contudo, é suscitar as sinapses cerebrais. E um excelente recurso chama-se leitura. Ler para o bebê acelera seu desenvolvimento cognitivo, ainda que se tenha a sensação de perda de tempo. Mas é importante fazê-lo interagindo com a criança: deixar que manipule o livro, desenhe e colora as figuras, complete a história e responda a indagações. Uma criança familiarizada desde cedo com livros terá, sem dúvida, linguagem mais enriquecida, mais facilidade de alfabetização e melhor desempenho escolar.

De certa forma, a TV “rouba” a capacidade onírica dela, como se sonhasse por ela A vantagem da leitura sobre a TV é que, frente ao monitor, a criança permanece inteiramente receptiva, sem condições de interagir com o filme ou o desenho animado. De certa forma, a TV “rouba” a capacidade onírica dela, como se sonhasse por ela. A leitura suscita a participação da criança, obedece ao ritmo dela e, sobretudo, fortalece os vínculos afetivos entre o leitor adulto e a criança ouvinte. Quem de nós não guarda afetuosa recordação de avós, pais e babás que nos contavam fantásticas histórias? Enquanto a família e a escola querem fazer da criança uma cidadã, a TV tende a domesticá-la como consumista. O Instituto Alana, de São Paulo, do qual sou conselheiro, constatou que num período de 10 horas, das 8h às 18h de 1º de outubro de 2010, foram exibidos 1.077 comerciais voltados ao público infantil; média de 60 por hora ou 1 por minuto! Foram anunciados 390 produtos, dos quais 295 brinquedos, 30 de vestuário, 25 de alimentos e 40 de mercadorias diversas. Média de preço: R$ 160! Ora, a criança é visada pelo mercado como consumista prioritária, seja por não possuir discernimento de valor e qualidade do produto, como também por ser capaz de envolver afetivamente o adulto na aquisição do objeto cobiçado. Há no Congresso mais de 200 projetos de lei propondo restrições e até proibições de propaganda ao público infantil. Nada avança, pois o lobby do Lobo Mau insiste em não poupar Chapeuzinho Vermelho. E quando se fala em restrição ao uso da criança em anúncios (observe como se multiplica!) logo os atingidos em seus lucros fazem coro: “Censura!” Concordo com Gabriel Priolli: só há um caminho razoável e democrático a seguir, o da regulação legal, aprovada pelo Legislativo, fiscalizada pelo Executivo e arbitrada pelo Judiciário. E isso nada tem a ver com censura, trata-se de proteger a saúde psíquica de nossas crianças. O mais importante, contudo, é que pais e responsáveis iniciem a regulação dentro da própria casa. De que adianta reduzir publicidade se as crianças ficam expostas a programas de adultos nocivos à sua formação? Erotização precoce, ambição consumista, obesidade excessiva e mais tempo frente à TV e ao computador que na escola, nos estudos e em brincadeiras com amigos, são sintomas de que seu ou sua querido(a) filho(a) pode se tornar, amanhã, um amargo problema. Frei Betto escreve uma vez por mês neste espaço.

comentários do leitor Mumia Abu-Jamal

Parabéns pela publicação da entrevista com Mumia Abu-Jamal. Um registro histórico da verdade. Aquela história que não se ensinam nos livros das escolas de nossas crianças, negras, indígenas e brancas. Bruna Vazficanstt, por correio eletrônico

Mumia Abu-Jamal (2)

Interessante notar como nossa realidade nacional guarda similaridades com a realidade de lá. As diferenças sociais e de oportunidades que temos são parecidas com as de lá.

Luiz Mussio, por correio eletrônico

Ditadura militar

Já passou da hora da ditadura no Brasil entrar no discurso, no debate, para entendermos o que se passou, não pode ser uma lacuna onde cada versão é uma versão e nunca uma verdade. Devemos discutir porque as pessoas que sofreram, que perderam pessoas queridas e que simplesmente viveram a ditadura carregam chagas. Quando um cidadão comete um crime ele é julgado e condena-

do, porque quando acontece um crime de Estado ele merece ser acobertado e escondido? É necessário pensar a questão da ditadura, sim.

Kely Chagas de Araújo, por correio eletrônico

Ditadura Militar (2)

Os militares sempre querem a ocultação de seus crimes - que não foram poucos. O que me irrita é a conivência que, de uma forma ou de outra, ainda temos para com eles. Conheço um homem que foi censor no regime militar, que dá aulas numa universidade no Paraná. O cara relata com orgulho as bestialidades que fez ou mandou fazer. E os alunos batem palmas. Ser conivente é tão grave quanto cometer um crime. Fiz um abaixo-assinado para tirarem o professor. A duras custas tiramos, depois de muito debate e muito medo da parte da moçada. Quando nós vamos baixar o dedo pra essa gente? Quando vamos mandá-los para onde merecem estar? O que mais me preocupa, em atitudes como essa, é que se hoje houvesse um golpe talvez não houvesse resistência. Enfim, meu Brasil!

Maygon André Molinari, por correio eletrônico

Agrotóxico

Fico muito feliz em ler a cobertura do Brasil de Fato sobre a agricultura famliar e a luta dos movimentos sociais contra o agrotóxico e a mudança dos latifundiários para o Código Florestal. A grande imprensa dá a informação alarmante sobre o Brasil campeão no uso de agrotóxico, mas não dá uma linha sobre a luta daqueles que pensam no futuro dos nossos filhos e netos. Arcelina Helena, por correio eletrônico

Código Florestal

Os ruralistas estão querendo se utilizar dos pequenos agricultores, responsabilizando-os pelo desmatamento para depois as comprar propriedades vítimas “da irresponsabilidade dos pequenos”. Como foi dito pela Fetraf (Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar), imagine a extensão de terras que eles vão adquirir no norte do país. Depois vão aos bancos, apresentam um projeto de recuperação ambiental, levantam dinheiro e a agricultura familiar fica carimbada como devastadora de floresta. Depois, ainda vai ser usada como mão

de obra barata. A aliança do leão com o cordeiro nunca foi favorável ao cordeiro.

Edelcio Vigna, por correio eletrônico

Sem contra-movimento o risco é grande...

Acho que a resposta deve ser à altura por parte dos movimentos contrários ao projeto do anti-comunista Aldo Rebelo. Que se articule também um “consórcio”, ou qualquer coisa mais eficaz, das organizações e movimentos sociais para viabilizar os recursos mínimos para um grande ato em Brasília. Se não houver um tensionamento político radical, corre-se o risco deste projeto ser aprovado ou “maquiado” por meio de acordos e concessões “apoiadas” pelo Governo Federal. Esta questão é mais séria do que acho que está sendo mostrada. Mais força na resistência, ou o projeto pega, morde e vai machucar muito. Bruna Vazficanstt, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br




6

de 14 a 20 de abril de 2011

brasil

Oito anos depois, livre

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza Andreson Brabosa/Folhapress

ENTREVISTA com Gegê absolvido, líder do movimento de moradia fala de perseguição, cárcere e futuro Patrícia Benvenuti da Redação O FIM DE UM processo, mas não o fim de uma prisão. Para Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, não há sentença que apague as recordações dos oito anos em que foi acusado de um crime que não cometeu. Um dos líderes do Movimento de Moradia do Centro (MMC), Gegê foi absolvido em um julgamento realizado nos dias 4 e 5 de abril, no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. Ele era acusado de ser mandante do assassinato de José Alberto dos Santos Pereira Mendes, morto em agosto de 2002 em um acampamento do MMC na capital paulista. De 2002 até o dia de seu julgamento, Gegê foi preso, enfrentou rebeliões e chegou a ser considerado foragido da Justiça. Para o militante, o período representou um corte em sua vida. “Foram oito anos sem ter o direito de viver”, resume. A sessão permaneceu lotada durante os dois dias de julgamento. Políticos e representantes de várias entidades prestavam solidariedade ao líder e denunciavam perseguição política contra Gegê e criminalização contra os movimentos sociais. Gegê tem um longo histórico de militância social e sindical. O militante participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de movimentos de moradia. Além disso, integrou entidades como Unificação das Lutas de Cortiço (ULC), Movimento de Moradia do Centro (MMC), União dos Movimentos de Moradia, Fórum Nacional de Reforma Urbana e Central de Movimentos Populares (CMP). Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Gegê fala sobre a criminalização das lutas políticas e afirma que pretende processar o Estado. “Não vou descansar enquanto o Estado não for para o banco dos réus”, garante. Brasil de Fato – Qual era sua expectativa em relação ao julgamento?

Gegê – Eu vou ser sincero, não tinha nenhuma esperança. Não falava isso, mas minha esperança era a mínima possível. Mataram alguém, há um assassino, o sistema penitenciário sabe quem foi, sabe o nome, mas não o procurou. Com isso posso dizer que eu me sentia completamente vulnerável, exposto a sair dali com, no mínimo, 12 anos de prisão. Era o mínimo que eu esperava.

“Os movimentos têm que ir para a rua mostrar os problemas que vão ser gerados por conta dos megaeventos e dos megaprojetos. As pessoas não sabem qual será o impacto ambiental da construção do estádio do Corinthians, em Itaquera. O povo não sabe que não poderá chegar nem perto do estádio, vai ficar sabendo disso na hora H” O resultado te surpreendeu então?

O resultado final não me surpreendeu na medida em que o júri foi acontecendo, os interrogatórios, e a discriminação foi vindo mais à tona. “Eu discrimino porque você é um negro, pobre, um sujeito abusado na sociedade e, ao mesmo, eu criminalizo a sua luta política”. Foi caindo essa máscara, como um tabuleiro de xadrez em que você vai desmontando peça por peça, até chegar ao ponto em que um dos promotores mais duros do Brasil [Roberto Tardelli, promotor responsável pela acusação] ser obrigado a pedir minha absolvição. Ele pediu porque se sentiu um homem impotente diante dos fatos e dos acontecimentos nesses dois dias [de julgamento], aquele plenário cheio o tempo todo. Eles perceberam, ali, que estavam lidan-

Cinismo superior Todo mundo sabe que as altas cortes do Judiciário atuam politicamente para defender os interesses das classes dominantes. Mas a decisão do Superior Tribunal de Justiça em anular as provas da Polícia Federal contra executivos da construtora Camargo Corrêa (criação de empresas fictícias, remessa ilegal para o exterior, sobrevalorização de obras públicas, pagamento de propinas etc), ultrapassa todos os limites do abuso de poder. Risco alimentar Reportagem do jornal The New York Times alerta que muitos agricultores que plantaram milho, soja e trigo na safra do ano passado, nos Estados Unidos e em outros países, estão destinando suas terras para o plantio de algodão neste ano – o que pode acarretar em escassez e novos aumentos nos preços dos alimentos. A mudança de cultivo acontece porque os preços do algodão dispararam no mercado internacional. Corrosão salarial O aumento do custo de vida já começa incomodar a “nova classe C” promovida pela elevação do salário mínimo desde 2003. Segundo o Dieese, em março de 2010 o gasto com alimentação consumiu 46% do salário mínimo e, agora, em março de 2011, a cesta básica representou 47,5% do salário mínimo. Se o custo de vida continuar subindo, em pouco tempo a maior parte do salário será destinada para a alimentação. Durou pouco!

O líder do Movimento de Moradia do Centro (MMC) Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê

do com um movimento social, que não estavam julgando a pessoa do Gegê. Como foi esse período de oito anos em que o processo se arrastou?

Foram oito anos sem ter o direito de viver, pagando por uma pena, julgado e condenado já. Penalização total, sem emprego, sem vida familiar, sem vida pública, sem uma vida digna como qualquer cidadão tem direito. Um dia eu estava aqui, no outro dia não sabia onde podia amanhecer. Foram oito anos que, para mim, por conta de uma tragédia e de uma irresponsabilidade de um ser humano, fui acusado de um crime do qual jamais seria cúmplice. E paguei por esses oito anos, e aliás eu continuo pagando. Mesmo que no dia 5 tenha sido dito: “você está livre”, eu continuo pagando. E mais caro inclusive, porque agora vem a censura, “você não pode falar isso”, “você não pode falar aquilo”. Terminou uma fase, um processo no dia 5, mas vem outra fase mais dura, que são as preocupações que eu vou ter na minha vida. Eu vou ter que sair em busca de uma forma de sobrevivência. Esses oito anos foram anos que me impediram de fazer o que eu queria, era um direito meu, viver minha vida. Convivi com tentativas de fuga em DP, com três rebeliões. Não posso esquecer essas coisas.

Sua segurança também te preocupa daqui pra frente?

Eu estou inseguro. Continuo preso, em prisão domiciliar. Estou livre, mas muito longe de ter liberdade. Eu não sei se na hora em que eu sair desta casa e puser o pé na rua o que estará por trás, nas minhas costas. Quem fez o que fez para me obrigar a viver oito anos como eu vivi pode estar insatisfeito e dizer “agora sim eu posso tirar a vida dele”. Não tenho medo de nada, mas me preocupa a traição. Em 2001, nós [do Movimento de Moradia do Centro] chegamos a pedir segurança para o Estado, procuramos a Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do [secretário] Saulo Ramos, e ele nos negou. Eu tentei mostrar várias mensagens que tinha recebido, ameaças de morte gravadas, e ele não ouviu uma mensagem sequer. Só disse que era impossível dar segurança para o Gegê ocupar prédios públicos. Se o Estado tivesse me oferecido segurança, talvez hoje eu estivesse livre disso.

Na sua avaliação, quem e que interesses estão por trás desta perseguição?

Não sei. Se eu soubesse, já teria resolvido esse caso. Mas o que posso dizer é que por trás de tudo isso está o Estado burguês em que vivo, que me perseguiu, me pondo na prisão domiciliar. E por isso esse Estado não está livre de sofrer sanções.

Você pretende processar o Estado?

Eu vou processar. Vou ainda fazer uma reunião com meu advogado. Quero processar o Estado por aquelas pessoas que

tentaram me condenar e pôr essas pessoas na cadeia. E não quero pouca coisa, quero arrancar o que eu puder do Estado, porque não se paga oito anos como vivi simplesmente com a palavra e um pedaço de papel dizendo que estou livre. Quero dizer para o Estado “você está pagando pelo seu erro, pela sua incompetência”. Nunca se foi atrás da pessoa que cometeu o crime, nunca se soube quem foram as outras duas pessoas que entraram no acampamento. O Estado tinha a obrigação de procurá-los, mas não foi atrás porque não teve vontade. Não foi feito um trabalho investigativo mínimo nesse processo. Teve uma morte, teve um criminoso, mas o que interessa é a criminalização dos movimentos sociais. O único trabalho foi o de me condenar. Um investigador responsável pelo processo foi me procurar com a arma na mão, apontada para minha cabeça. Não vou descansar enquanto o Estado não for para o banco dos réus.

“Eu não sei se na hora em que eu sair desta casa e puser o pé na rua o que estará por trás, nas minhas costas. Quem fez o que fez para me obrigar a viver oito anos como eu vivi pode estar insatisfeito e dizer ‘agora sim eu posso tirar a vida dele’” E qual deve ser o papel dos movimentos de moradia em relação aos megaeventos que se aproximam como a realização da Copa do Mundo?

Os movimentos têm que ir para a rua mostrar os problemas que vão ser gerados por conta dos megaeventos e dos megaprojetos. As pessoas não sabem qual será o impacto ambiental da construção do estádio do Corinthians, em Itaquera [na zona leste de São Paulo]. O povo não sabe que não poderá chegar nem perto do estádio, vai ficar sabendo disso na hora H. A lei de exceção vai ser imposta em cada estado, em cada hotel em que estiver uma delegação. E será que, depois que passar a Copa, essa lei de exceção não vai permanecer? Só na ditadura militar a gente vê isso. A gente lutou tanto, morreu tanta gente para pôr fim à lei de exceção e agora ela está aqui, de volta. Vem aqui um Obama da vida e ninguém pode abrir uma faixa contra a presença dele que vai pra cadeia. Quantos milhões vão ser gastos com a Copa aqui no Brasil? Não vou ser contra a Copa, mas por que se gasta tanto dinheiro com a Copa e não se gasta com a miséria e a violência? Para fazer um estádio para 65 mil pessoas, eles vão mexer com dezenas de milhares de famílias, e vão para onde essas famílias? E aí vem o prefeito dizer que esse povo vai ser colocado na região central. Vai poder onde? Só se for na rua. Mais mendigos morando embaixo das pontes e das marquises.

Jogo pesado Depois que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária decidiu proibir a comercialização de alguns produtos químicos inibidores de apetite, os chamados emagrecedores, os laboratórios farmacêuticos mobilizaram seus lobistas na categoria médica e no Congresso Nacional, e passaram a jogar pesado para a liberação dessas drogas que estão proibidas em muitos países. Até ameaças de morte foram feitas aos diretores da Anvisa. Tudo pelo lucro! Estatalização Em seminário sobre políticas públicas realizado em São Paulo, dia 8, o sociólogo Rudá Ricci, autor de livro sobre o fenômeno do “Lulismo”, criticou duramente o Estado brasileiro patrimonialista e centralizador. Para ele, existe hoje uma falsa ideia de participação, que não é participação porque a sociedade não tem controle social do que é deliberado nos conselhos de gestão e nas conferências. Perde-se a oportunidade de democratizar o Brasil! Veneno diário Com o apoio de movimentos sociais, entidades e institutos de pesquisas do setor da saúde, foi lançada dia 7 a Campanha Permanente Contra o Uso de Agrotóxicos e Pela Vida, que tem por objetivo alertar a sociedade e as autoridades para os danos causados pelos agrotóxicos nos alimentos consumidos pelo povo brasileiro. Espera-se que os ministérios da Agricultura e da Saúde deixem de ser omissos! Lutas sociais Acontece de 22 a 24 de abril, na Ocupação Quilombo das Guerreiras, no bairro de Leopoldina, no Rio de Janeiro (RJ), a 3ª Confederação Tamoia dos Povos Originários e Sem Teto, que vai debater, entre outros temas, o avanço do capital nas terras indígenas, os despejos e remoções, o terrorismo de Estado, a criminalização dos movimentos e a unificação das lutas sociais. A organização é do Acampamento Revolucionário Indígena. Impunidade Só após a imprensa ter revelado a existência de testemunha do crime de execução praticado por policiais militares de São Paulo, é que a Secretaria da Segurança Pública anunciou que, de agora em diante, a Polícia Civil vai investigar os casos registrados como “resistência seguida de morte” – usados para esconder os assassinatos da Polícia Militar. Será mesmo que os investigadores vão denunciar seus colegas? Monopolização A patronal e retrógrada Sociedade Interamericana de Imprensa, que representa 1.300 jornais do continente americano – desde o Canadá até o Uruguai – acaba de se manifestar contra o projeto de lei que tramita no Congresso brasileiro e que restabelece a exigência de diploma de curso superior para o exercício profissional do jornalismo. Os donos dos jornais querem para si o direito de definir quem é jornalista. É direito da sociedade e do Estado.


brasil

de 14 a 20 de abril de 2011

7

“Código Florestal é porta de entrada para ruralistas destruírem mais leis” Marcello Casal Jr/ABr

MEIO AMBIENTE Especialista analisa momento da luta em torno do Código Florestal, seu valor estratégico para os ruralistas e cobra posição do governo federal Vinícius Mansur de Brasília (DF) EM JUNHO de 2010, a Comissão Especial sobre Mudanças no Código Florestal aprovou o relatório do deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Com as eleições batendo à porta, o governo segurou a votação do relatório pelo plenário da Câmara, temendo um desgaste eleitoral – especialmente pelo fator Marina Silva (PV). A então candidata Dilma Rousseff assumiu o compromisso de vetar qualquer mudança que autorizasse novos desmatamentos. Passadas as eleições, a bancada ruralista tensionou a disputa, aprovou um pedido de urgência e tentou, até a última sessão de 2010, colocar o relatório em votação. Apesar de fracassarem, o debate acerca do Código impactou fortemente as articulações para a presidência da Câmara. O atual presidente da Casa, Marco Maia (PT-RS), ganhou apoio da forte bancada ruralista prometendo a votação até fevereiro. O difícil consenso dentro do governo e sua base, especialmente entre os ministérios de Meio Ambiente e Agricultura, travaram o avanço da pauta e, como alternativa, Maia criou, em março, uma Câmara de Negociação que, até então, pouco caminhou. No dia 5 de abril, entidades do lobby ruralista, infelizes com a demora nos bastidores, financiaram um evento milionário em Brasília, trazendo milhares de pessoas para defender o relatório de Rebelo. Tentaram demonstrar força ao Palácio do Planalto e dar um verniz popular ao projeto. No dia 7 de abril, outra mobilização, esta em oposição ao projeto, convocada por movimentos do campo e ambientalistas, ocupou a Esplanada. Para avaliar o estágio atual da disputa em torno do Código, o Brasil de Fato entrevistou o mestre em Agroecologia pela UFSC e dirigente do MST, Luiz Zarref. Brasil de Fato – O que esperar dessa Câmara de Negociação?

Luiz Zarref – A Câmara de Negociação não é regimental, nunca tinha acontecido em nenhuma outra votação da Câmara. Inicialmente tinha uma conjuntura boa, com quatro ruralistas e quatro ambientalistas. Hoje são seis de cada lado e mais dois representantes da liderança do governo e dois da minoria. No início, a Câmara ficou cerca de um mês e meio sem fazer nada. Com a pressão nessas últimas semanas, o governo se movimentou mais e o espaço começou a funcionar. Mas ainda não se tem claro qual é o papel dessa Câmara. Foram três reuniões e todas só serviram para deliberar sobre o recebimento de notas técnicas. Não se sabe se a Câmara servirá só para listar os pontos divergentes ou se serão feitas emendas ao relatório do Aldo Rebelo.

“Está em jogo uma demarcação de posição muito importante para eles, porque o Código é uma lei que historicamente tentam destruir e ainda não conseguiram” O evento milionário organizado pelos ruralistas fez a balança das negociações pender para o lado deles?

O tiro saiu pela culatra. Eles queriam trazer essa mobilização e garantir a votação, só que não contavam com a morte do [ex-vice-presidente] José Alencar, que atrasou a pauta em uma semana. Também não contavam que o PT ficaria firme. O Paulo Teixeira [líder do PT na Câmara] disse que o PT não fechará acordo enquanto a proposta do governo não chegar. Já o Marco Maia disse que o texto só entra em votação quando a Câmara de Negociação terminar os trabalhos. Entretanto, mesmo que não tenham alcançado o impacto esperado, o peso que eles jogaram nesta mobilização, a maior que eles já fizeram, demonstra o interesse deles nessa pauta.

A presidente da CNA, senadora Kátia Abreu, e o deputado Aldo Rebelo participam de manifestação em defesa da aprovação do novo Código Florestal Brasileiro

O que explica tamanho interesse?

Na nossa leitura, o Código é a porta de entrada para os ruralistas iniciarem a destruição das leis agrárias e ambientais, aquilo que lá em 2009 a Abag [Associação Brasileira do Agronegócio] definiu como prioridade: rever todas as leis do setor para garantir “segurança jurídica”. Na realidade, a segurança jurídica significa limpar toda a sujeira que fizeram até agora, passar uma borracha no desmatamento, no uso irregular de agrotóxicos e de transgênicos, entre outras. Além de permitir o avanço da propriedade privada e do lucro dos ruralistas. O Código Florestal tem um apelo muito grande na sociedade urbana. Se eles o destroem, dão uma sinalização de poder muito grande.

“O Código Florestal, apesar de aprovado no primeiro ano da ditadura, foi concebido em um ambiente progressista” As outras pautas, que não estão na sociedade, seriam derrubadas com muito mais facilidade. Quem é que vai defender o Estatuto da Terra, a Política Nacional de Meio Ambiente, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a Lei de Águas, ou Código de Águas, sobre recursos hídricos? Está em jogo uma demarcação na guerra de posição muito importante para eles, porque o Código é uma lei que historicamente eles tentam destruir e ainda não conseguiram. O Código Florestal lhe parece uma legislação adequada?

Ele já é fruto de uma avaliação de algo que não deu certo, o Código de 1934. Ele surge em 1965 e, apesar de aprovado no primeiro ano da ditadura, foi concebido em um ambiente progressista. Uma sociedade que não discutia meio ambiente sem discutir questão agrária. E ele é discutido em cima de uma disputa mundial entre socialismo e capitalismo. Então, havia uma tendência de se discutir a função social da propriedade. O Código criou a figura da Reserva Legal (RL), que não existia em lugar nenhum do mundo e que recentemente criaram no Paraguai. Com a RL, uma parcela da propriedade privada tem que ser destinada ao interesse público. O primeiro artigo do Código Florestal diz que “as florestas são bem de interesse comum da sociedade brasileira”. Ou seja, estão acima dos interesses privados. Poderíamos ter adotado o ambientalismo conservador, que foi adotado depois da década de 70 pela ditadura, que era o modelo dos EUA, do parque Yellowstone. Ou seja, tirar a área da propriedade privada, isolá-la dos seres humanos e pronto. Porém, nosso Código traz para dentro da propriedade privada uma imposição da sociedade brasileira: uma parcela daquela propriedade deve ser utilizada sustentavelmente. Ele já colocava o conceito sustentável, um discurso bem avançado para época.

De que maneira as mudanças propostas por Aldo Rebelo prejudicam a agricultura de menor porte e beneficiam o agronegócio?

O agronegócio artificializa o meio ambiente. Ele mexe com a terra toda, usa o pacote da revolução verde, degrada e depois de 10 anos vai embora para outra região. Não é à toa que agora estamos vendo a expansão da fronteira agrícola no Maranhão, Piauí e Tocantins, um pouco da Bahia também. Destruíram as terras do Sul, destruíram as terras na região Centro-Oeste e na fronteira com a Amazônia e agora estão indo para esta outra área que se estima ter 30 a 40 milhões de hectares. O agronegócio tem essa relação ecossistêmica de destruição. A agricultura camponesa não. Se você tira a RL dessas propriedades, diminui-se a Área de Preservação Permanente (APP), se você não trabalha com a recuperação dessas áreas, no médio prazo, esses agricultores terão suas terras inviabilizadas. A RL é interessante naquele microclima, naquele microespaço, porque ela impacta na polinização de várias culturas, impacta sobre predadores naturais, então veremos um aumento dos índices de pragas, ela impacta na adubação da terra, impacta no fornecimento de água, muda o clima daquele espaço, impacta no agricultor que terá que comprar madeira para qualquer coisa que queira fazer.

“O relatório não aponta para o centro da questão: o problema não é a lei, mas a falta de regulamentação por parte do Estado” O relatório do Aldo não aponta para o centro do problema: o problema não é a lei, mas a falta de regulamentação e implementação por parte do Estado brasileiro. Se você for ao campo, verá que os agricultores têm o seu pedaço de floresta. Dali ele tira as plantas medicinais, as ferramentas, os palanques para os galpões, ele gosta de ver aquilo. O que ele não gosta é da polícia ambiental ir fazer repressão. Faltam recursos para o agricultor recuperar as áreas que ele tem de passivo. E mesmo que o projeto do Aldo libere propriedades com menos de quatro módulos fiscais das RLs, as APPs terão que ser recuperadas. De onde que ele vai tirar esse dinheiro? Não tem nada no relatório prevendo isso. E o que explica a adesão de entidades da agricultura familiar a este projeto?

A Contag está indo para o discurso imediato, reacionário, que só leva ao fracasso da agricultura familiar, um desserviço histórico. Para a agricultura familiar, a solução é de longo prazo. Porque é quem tem relação com a terra. Para o agronegócio há solução imediata, porque daqui a dez anos eles fazem um tratoraço e vêm limpar as lam-

banças deles de novo. A agricultura familiar não, mesmo que se mude a lei, as terras vão ficar inviabilizadas. A Contag renegou o debate político com a sua base. Preferiu se submeter à pressão do imediatismo. Há também uma disputa interna na Contag, entre as federações que têm ligação com PT e CUT e federações que têm ligação com o PCdoB e CTB. Então, muito provavelmente houve uma ingerência do PCdoB dentro da Contag para pressioná-los. O pior é que nem emendas ao relatório fizeram, basicamente aderiram, sem enfrentamentos com o agronegócio.

“O Código Florestal tem um apelo muito grande na sociedade urbana. Se eles o destroem, dão uma sinalização de poder muito grande” Reforçaram a polarização benéfica aos ruralistas dos produtores versus ambientalistas?

Isso. Essa posição deles é funcional ao agronegócio. Diferente da década de 1980 e 1990, nessa primeira década do século 21 há a hegemonia do agronegócio, que conseguiu passar por propaganda que é ele quem produz para o Brasil. E nessa disputa do Código, eles usaram dessa imagem para dizer que quem quer as mudanças são os verdadeiros produtores, quem não quer são os ambientalistas, que ganham muito bem e não têm nada a ver com quem produz no campo. E a mídia comprou muito isso. Porque os movimentos sociais como a Fetraf, o MST, o MPA, a Via Campesina e outros vêm discutindo o tema, mas suas posições não ganham a mesma reverberação. Não aparece que os pequenos agricultores estão de um lado e os grandes de outro, que nós somos produtores e temos uma posição diferente. Somente produtores versus ambientalistas.

“O indicativo do presidente da Câmara é que a votação vá para maio. Mas dificilmente haverá votação sem indicação clara do governo” Quais os próximos passos dessa luta?

Intensificar o debate na sociedade e pressionar o governo para tirar uma posição que altere a correlação de forças. O indicativo do presidente da Câmara é que a votação vá para maio, depois de finalizados os trabalhos da Câmara de Negociação. Mas dificilmente haverá votação sem indicação clara do governo.


8

de 14 a 20 de abril de 2011

brasil

Sergipe, “progresso” e contradições NORDESTE Menor estado da federação apresenta índices de desenvolvimento positivos, mas ainda tem estatísticas questionáveis Lucio Telles/ASN

Charles Souto de Aracaju (SE) OS RECENTES indicativos econômicos e sociais de Sergipe parecem confirmar o êxito dos investimentos do Programa Sergipano de Desenvolvimento Industrial (PSDI), que tem por objetivo incentivar e estimular o desenvolvimento sócio-econômico estadual. Menor estado da federação, Sergipe conta com o melhor IDH e o melhor índice de Desenvolvimento Socioeconômico da região Nordeste. A taxa de mortalidade infantil caiu de 21,13 por mil nascidos vivos em 2006, para 14,94 em 2010. Nos últimos três anos, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho, foram criados 54.778 empregos com carteira de trabalho na economia sergipana. Nesse período, foram implantadas 110 novas indústrias no estado. Além disso, seu PIB per capita, que representa a riqueza média gerada no ano por pessoa residente no estado, somou R$ 9.778,96 em 2008. Com isso, Sergipe manteve o 1º lugar no ranking do Nordeste, seguido pelos estados da Bahia e de Pernambuco. Esses resultados excepcionais não impedem, entretanto, a importação de trabalho infantil alagoano para os canaviais sergipanos, como comprova a presença de três menores dentre as vítimas de um acidente em Capela, no dia 27 de março, que resultou na morte de um lavrador de 17 anos (ver matéria abaixo).

“Eu não posso dizer que o estado de Sergipe, por ter o melhor IDH do Nordeste, é mais desenvolvido que Bahia, Pernambuco e Ceará” Portanto, antes de afirmar que Sergipe seja um novo Eldorado, seria prudente ir mais além dos dados e estatísticas e buscar na recente conformação sócio-econômica do estado as causas – e fissuras – desse modelo de desenvolvimento. Pilares da dependência Ao analisar a economia sergipana, Ricardo Lacerda, professor de economia da UFS (Universidade Federal de Sergipe) e assessor econômico do governo estadu-

Obras no interior sergipano: índices de desenvolvimento escondem desigualdade social

24,5

%

da riqueza gerada no estado é fruto da atuação estatal

al. revela que a “participação tão expressiva do setor industrial na riqueza gerada em Sergipe deve-se, essencialmente, à presença de dois subsetores que têm peso muito maior no estado do que na média do Brasil e, em particular, do que nos demais estados nordestinos: a indústria extrativa mineral, que conta com a produção de petróleo e gás e a extração de sais de potássio, e a produção e distribuição de energia, em que se inclui a usina hidrelétrica de Xingó.” Desde a entrada em operação, em 1963, do campo terrestre de Carmópolis, a exploração do petróleo tem sido um dos principais vetores de desenvolvimento da economia sergipana. De acordo com Lacerda, “em 2007, último ano com dados disponíveis para as contas regionais, a indústria extrativa mineral, que abrange a atividade de exploração de petróleo e gás, respondia por 6,22 % do PIB sergi-

pano. O peso da cadeia de petróleo e gás ultrapassa muito essa porcentagem, considerando-se os efeitos multiplicadores da massa de salário paga e dos contratos de fornecimentos de bens e serviços e dos tributos e royalties.” Sobre a hidrelétrica de Xingó, instalada na divisa com Alagoas, o economista sergipano lembra que “na divisão das atividades, Alagoas ficou com as moradias, mas as turbinas ficaram do lado de cá. Isso quer dizer que toda energia de Xingó é contabilizada pelo lado de Sergipe. Então, não só os royalties são nossos, como a atribuição da riqueza gerada no PIB, que é expressiva, conta para Sergipe”.

“Em 2007, a atividade de exploração de petróleo e gás, respondia por 6,22 % do PIB sergipano” Estado presente Fechando esse quadro, some-se a atuação do setor público na economia sergipana, que em 2008 respondia por 24,5% da riqueza gerada no estado. Ou seja, cerca de um em cada quatro reais gerados na economia sergipana são originados no setor público, contando com os

gastos dos governos federal, estadual e dos municípios e as aposentadorias, pensões e outras transferências de recursos. Revela-se, dessa forma, uma economia essencialmente dependente da atuação estatal. Pode-se argumentar que Sergipe possui maior taxa de urbanização, menor faixa de região semi-árida e menor concentração relativa de terra da região, mas o fato preponderante para que o estado apresente indicadores sociais e econômicos significativamente superiores à maioria dos estados da região é a forte atuação do Estado – seja diretamente por seus entes de administração pública, seja indiretamente através do setor produtivo estatal (Petrobras e Xingó). As estatísticas mentem “Eu não posso dizer que o estado de Sergipe, por ter o melhor IDH do Nordeste, é mais desenvolvido que Bahia, Pernambuco e Ceará”, assegura Luiz Moura, economista do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos). Para ele, é preciso ter cuidado com algumas distorções estatísticas que esses indicadores podem causar. “Sergipe tem os melhores indicadores sociais do Nordeste por um motivo só: o peso da capital Aracaju dentro do estado. Por se tratar de um território pequeno em que a capital representa 38% da economia sergipana, os indicadores positivos de Aracaju puxam os dos outros municípios. Se você tira a capital, a maioria dos municípios sergipanos fica na vala comum de qualquer indicador nordestino. Basta lembrar que 20 dos 75 municípios de Sergipe estão entre os piores IDHs da região”, aponta Moura. Para reforçar seu ponto de vista, e demonstrar a fragilidade desses indicadores, Moura cita como exemplo o município de Canindé de São Francisco. Por ser a sede da hidrelétrica de Xingó, Canindé possui o maior PIB do interior do estado devido aos royalties que recebe, “no entanto é um município extremamente complicado do ponto de vista de serviços e políticas públicas”, alerta o economista do Dieese. O PIB per capita de Canindé é o maior de Sergipe, quatro vezes o de Aracaju, mas 42% de seus habitantes ainda são analfabetos. Não se pode negar que Sergipe possui os melhores índices de desenvolvimento social do Nordeste, mas certas distorções existentes nesses indicadores podem camuflar a permanência, e até mesmo o fortalecimento, da desigualdade social no estado.

Martírio da cana conta com financiamento público Investimento estatal em usinas sucroalcooleiras financiam desenvolvimento do setor no Sergipe João Zinclar

de Coruripe/AL e Aracaju/SE “Não tem foto dele não. Ele não gostava de foto. Mas se você quiser, tem uma que a gente tirou do celular no velório. Dá pra ver bem o rosto dele no caixão”, afirma Benedita Alves. De gravata preta, camisa de linho branca, envolto por pétalas amareladas, o bigode ralo é uma tentativa inútil de disfarçar os 17 anos de Diego Alves dos Santos, morto na manhã de terça-feira, 29 de março, quando o ônibus que o transportava para o corte de cana na usina Taquarí colidiu com uma carreta nas imediações do município sergipano de Capela. Na varanda de sua casa, à beira dos canaviais que rodeiam o pequeno povoado de Bota Fogo, divisa dos municípios de Coruripe e Pindorama, no sul de Alagoas, Benedita lembra que aquela não fora a primeira vez que seu sobrinho viajou para cortar cana no estado vizinho. “Sempre que termina a moagem nas usinas daqui, o José Cícero empreiteiro convoca o pessoal do povoado para trabalhar em Sergipe. Antes do acidente, o Diego já tinha passado uma semana inteira cortando cana por aquelas bandas”, revelou Benedita.

“Boa parte dos R$ 68 milhões investidos na construção da Taquarí foram financiados pelo governo de Sergipe” Na madrugada daquela terça, Diego e mais 24 conterrâneos partiram de Bota Fogo rumo a mais uma jornada de trabalho. A poucos quilômetros de seu destino final, o motorista do ônibus perdeu o controle do veículo e bateu de frente com um caminhão carregado de coque, um derivado do petróleo utilizado na fabricação de cimento. Além de Diego, os dois motoristas e mais um cortador morreram. Ma-

Investimento público não impede o trabalho clandestino nos canaviais das usinas

xwell Santos, de 17 anos, teve um dos braços amputado e continua internado no Hospital de Urgência de Sergipe (Huse). “Até agora ninguém da usina procurou a gente”, informou Benedita. Por tratarse de um menor de idade sem carteira assinada, ela não tem esperanças de que a Usina Taquarí assuma a responsabilidade sobre o acidente – o que em outras palavras significaria admitir que possui trabalho clandestino em seus canaviais. Novas usinas Diego Alves começou a trabalhar nos canaviais em 2008, mesmo ano de inauguração da Usina Taquarí. Enquanto o jovem alagoano desferia seus primeiros golpes de facão, recebendo menos de R$ 4 por tonelada de cana cortada, o Grupo Samam investia R$ 68 milhões para pôr em funcionamento no povoado Miranda, município de Capela, “das mais modernas usinas de álcool do Nordeste, com 10 mil tarefas de terra tomadas pelo plantio de cana-de-açúcar, tendo capacidade de moagem de 500 mil toneladas e produção de 30 milhões de litros de álcool por sa-

fra”, segundo informações do site oficial da empresa. A Sociedade Anônima Aguiar Menezes (Samam) foi criada há mais de 80 anos pelo empresário Manuel Aguiar Menezes. Ao longo do século passado, o Senhor Manelito, como ficou conhecido na sociedade sergipana, transformou pequena empresa de ferragens, louças e vidros em uma holding com faturamento anual de mais de R$ 360 milhões e que abrange mais de 20 empresas atuantes nas áreas de de carros, caminhões e tratores, agronegócio, indústria, clínicas hospitalares e serviços em geral. O grupo é comandado por seus netos Henrique e Manelito Menezes e tem na caçula Taquarí a sua mais nova galinha dos ovos de ouro. A expectativa é que já em 2012 a usina alcance seu ápice de funcionamento, chegando à marca de 40 milhões de litros de álcool por safra. Dinheiro público O que poucos sabem, todavia, é que boa parte dos R$ 68 milhões investidos na construção da Taquarí não saíram efetivamente dos bolsos dos presidentes da

Samam. Na verdade, a empreitada foi financiada pelo governo de Sergipe, através do Banese – Banco Estadual de Sergipe. Além do financiamento público, a Taquarí foi contemplada com uma redução de 90% no recolhimento do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) durante um prazo de 15 anos. “Meu otimismo é ancorado não só na forte demanda pelo álcool combustível, mas também na certeza de incentivos fiscais concedidos pelo governo do estado. O incentivo fiscal do governo foi crucial. Caso não recebêssemos esse apoio, seria completamente inviável criar o empreendimento”, afirmou o presidente Manelito Menezes, quando da inauguração da usina. Mesma vantagem foi dada a Carlos Vasconcelos, presidente da Agroindustrial Campo Lindo. Instalada no município de Nossa Senhora das Dores no mesmo ano de 2008 e com capacidade para produzir 700 mil litros de etanol por dia, 80% dos R$ 120 milhões gastos na construção da Usina Campo Lindo foram financiados pelo BNB – Banco do Nordeste do Brasil. A instalação das usinas de Campo Lindo e Taquarí são exemplos concretos de um novo ciclo de recuperação da atividade canavieira em Sergipe, segundo Ricardo Lacerda, professor de economia da UFS e assessor econômico do governo estadual. “Desde 2004, impulsionada pela expansão da frota nacional de veículos bicombustíveis e pela trajetória ascendente do preço do açúcar no mundo, a atividade canavieira de Sergipe iniciou um ciclo de recuperação que veio a ser consolidado nos últimos anos com a implantação das usinas de Campo Lindo e Taquarí. Ainda que a produção de cana-de-açúcar de Sergipe represente apenas 3,7% do total do Nordeste, esse ciclo recente confirmou um novo espaço para atividade canavieira no estado”, opina Lacerda. Em 2009, por exemplo, a produção sergipana atingiu 2,7 milhões de toneladas, 98% maior que a safra de 1996. (CS)


américa latina

de 14 a 20 de abril de 2011

9

Os velhos grilhões da moderna agropecuária Reprodução

ARGENTINA Desde o começo do ano, operativos em todo país resultaram na descoberta de mais de 500 trabalhadores em condições análogas à escravidão em zonas rurais Dafne Melo de Buenos Aires (Argentina) DE UM LADO, trabalhadores rurais vivendo em condições subumanas, sem água potável e condições de higiene básicas ou alimentação adequada, com pouca ou nenhuma remuneração e, quase sempre, impedidos de ir e vir. Do outro, grandes empresas do agronegócio, como a transnacional estadunidense Dupont e a argentina Nidera, uma das maiores exportadoras de grãos do país. Essas são as duas faces da moeda do trabalho escravo na Argentina. Somente neste ano, o órgão responsável pela fiscalização, a Administração Federal de Ingressos Públicos (Afip), já encontrou mais de 500 trabalhadores em condições análogas à escravidão em pouco mais de nove operativos. Contando os trabalhadores urbanos mantidos em condições de escravidão, o número chega a pouco mais de 1.200. E as denúncias não param de aparecer. A Afip acredita que hoje há cerca de 1,3 milhão de trabalhadores rurais no país: pelo menos três quartos desse total são mantidos na ilegalidade; parte deles, como escravos.

Acredita-se que hoje há cerca de 1,3 milhão de trabalhadores rurais no país: pelo menos três quartos desse total são mantidos na ilegalidade; parte deles, como escravos “Manter trabalhadores em condições de escravidão é inerente ao modelo agropecuário e agrícola existente”, explica Diego Montón, militante do Movimento Nacional Camponês e Indígena (Mnci), entidade ligada à Via Campesina. Para Montón, o principal motivo para a persistência desse tipo de exploração da mão de obra no campo é a lógica de “lucratividade máxima” das empresas do agronegócio.

ram cerca de 25 barracos e oito trabalhadores no local. Em depoimento, afirmaram que o lugar chegou a abrigar 100 pessoas que se dedicavam à colheita de milho. A atividade era feita de segunda a segunda, cerca de nove horas por dia e a remuneração era de 3,50 pesos por hora. Já em Córdoba, foram detectados 140 trabalhadores. Eles eram mantidos na fazenda em condições precárias, sem água potável, energia elétrica e banheiro adequado, e dormiam em cubículos. Eram impossibilitados de deixar o local até o fim da colheita do milho. A empresa pagava 97 pesos por dia e descontava danos causados às plantas. Os trabalhadores apontaram que como não havia forma de medir tais danos, nunca sabiam ao certo quanto iam receber de verdade. Condições-padrão

500

Crianças trabalham em fazenda de produção de erva-mate em Missiones, Argentina

trabalhadores em condições análogas à escravidão foram encontrados neste ano na Argentina

Guillermo Neiman, professor da Universidade de Buenos Aires e da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), concorda: “As empresas querem maximizar sua rentabilidade. E isso não só por meio de salários baixos e uso de trabalho escravo, mas muito frequentemente evadindo suas obrigações fiscais também”. Grandes empresas

Na província de Catamarca, uma fazenda de oliveiras pertencente a um grupo que possui como um de seus acionistas uma empresa de transporte urbano mantinha 296 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, em condições subumanas, todos juntos em um mesmo galpão, sem água potável e com os documentos retidos. Podiam ganhar

até 9 pesos por cada caixa de azeitona colhida – podendo, no máximo, colher nove caixas – e eram obrigados a comprar comida de uma mulher que cobrava 25 pesos por dia. Outra descoberta foi feita em 10 de março em uma fazenda de erva-mate pertencente a uma empresa que, de acordo com a Afip, declarou lucro de 16 milhões de pesos em 2010. Trinta trabalhadores foram encontrados.

Em sua página na internet, a empresa Nidera afirma aplicar “as condições de trabalho padrão” do agronegócio. Não deixa de ser verdade, já que o uso de mão de obra precarizada ou escrava é algo comum no campo argentino Já no caso da transnacional estadunidense Dupont, foram descobertos “acampamentos” de trabalhadores rurais em terras pertencentes a sua subsidiária no país, a Pioneer, no interior das províncias de Córdoba e de Buenos Aires. Neste último local, na cidade de Salto, os funcionários da Afip encontra-

No caso da Nidera, pouco antes do fim de 2010, os funcionários da Afip encontraram 180 pessoas, sendo 60 crianças. Na prática, não recebiam nenhuma remuneração, pois eram proibidas de sair do local e a comida fornecida era vendida pelos donos a preços altos, que “consumiam toda a remuneração”, segundo os trabalhadores. Em todos os episódios, as empresas negam o uso de trabalho escravo. Em sua página na internet, a empresa Nidera afirma aplicar “as condições de trabalho padrão” do agronegócio. Não deixa de ser verdade, já que o uso de mão de obra precarizada ou escrava é algo comum no campo argentino. “No campo, a presença de trabalho escravo é histórica e o que chama a atenção é que ele está presente em países que passaram por processos de modernização do campo, ou seja, com emprego de novas técnicas e de tecnologia. Apesar disso, os trabalhadores rurais continuam mal pagos e vulneráveis a altos índices de ocorrência de acidentes”, analisa Guillermo Neiman. Diego Montón afirma que muitos dos trabalhadores são temporários e viajam pelo país para trabalhar nas colheitas de milho, erva-mate, cana-de-açúcar, alho e assim por diante. “Normalmente, são homens, de origem indígena, e, muitas vezes, de países limítrofes como Paraguai e Bolívia”, aponta. Para Neiman, um dos primeiros passos para erradicar o problema está na fiscalização, que foi retomada no país há pouco tempo. Durante todo o período da ditadura, houve total conivência com a exploração da mão de obra no campo. Nas décadas neoliberais, idem. “Na década de 1990, quase não se fez controle. A partir de 2003 é que essa atribuição volta ao governo nacional e a fiscalização volta a ser feita”, explica. Dados oficiais do Ministério do Trabalho apontam que em 2003 haviam 21 fiscais, menos de um por estado, enquanto hoje há quase 500.

Lei arcaica e sindicatos pelegos No campo, lei trabalhista data da ditadura, que buscou enfraquecer e cooptar sindicatos rurais de Buenos Aires (Argentina) Na Argentina há uma combinação fatal que dificulta imensamente o combate ao trabalho escravo no campo: uma lei trabalhista abusiva e uma burocracia sindical que atua de acordo com os interesses do agronegócio e que coíbe a formação de sindicatos e organizações combativas. De acordo com Diego Montón, militante do Movimento Nacional Camponês e Indígena (Mnci), a última ditadura militar argentina (1976-1983) teve uma grande preocupação de cooptar e destruir a organização dos trabalhadores. Para isso, criou uma lei trabalhista abusiva no setor agrícola e fomentou a burocracia sindical, que tem como principal expoente a União Argentina de Trabalhadores Rurais e Estivadores (Uatre). Seu secretário-geral, Gerónimo Venegas, foi recentemente acusado de comandar uma máfia de falsificação de medicamentos e é aliado político do ex-presidente e possível candidato à presidência este ano, Eduardo Duhalde (acusado de ser o mandante político do assassinato dos piqueteiros Darío Santillán e Maximiliano Koteski, em junho de 2002, na estação de trem de Avellaneda). Montón conta que era comum a Uatre avisar os fazendeiros de que haveria inspeções em suas propriedades, o que possibilitava retirar os trabalhadores mantidos como escravos.

Lei de Videla

Outro grande entrave é a atual lei que rege as relações de trabalho no campo, assinada pelo ditador Jorge Rafael Videla em 1980. “Ainda que a lei fosse cumprida, não adiantaria porque ela não é adequada”, afirma Guillermo Neiman, professor da Universidade de Buenos Aires.

A ditadura militar argentina teve uma grande preocupação de cooptar e destruir a organização dos trabalhadores. Criou uma lei trabalhista abusiva no setor agrícola e fomentou a burocracia sindical

rural persista. Neiman aponta que os proprietários se sentem à vontade para nem mesmo cumprir essa lei e que essas práticas do empresariado agrícola devem ser vistas como algo inerente ao modelo de produção hoje. Nos países da América Latina, aponta, não há política de valorização de salários para esses trabalhadores. Ela cita como exemplo uma recente pesquisa conduzida pela FAO, divisão das Organizações Unidas para agricultura e alimentação, sobre a diminuição da pobreza no campo. Em países que mostraram alguma redução, como Brasil e Chile, isso se deveu a políticas públicas – como Fome Zero e Bolsa Família no caso do Brasil – e não devido à valorização do trabalho. Nova lei

A lei criou um regime especial para o trabalhador rural. Na prática, não fixa uma jornada, apenas afirma que entre uma e outra deverá haver uma pausa de pelo menos 10 horas – e flexibiliza essa pausa em casos em que “necessidades impostergáveis da produção ou manutenção justificarem sua redução”. Além disso, o salário mínimo não é o mesmo que o definido para o restante dos trabalhadores. Dessa forma, ainda que haja fiscalização e punições, com aplicações de multas e fechamento de fazendas, a lei permite que a precarização do trabalho

O governo federal argentino de Cristina Kirchner apresentou em junho do ano passado uma nova lei para regulamentar o trabalho rural. De acordo com Diego Montón, há avanços no texto, mas uma mudança real só ocorreria se a medida viesse acompanhada de outras. “A lei avança em pontos concretos, mas ela deve vir junto com outros esforços na área da educação no campo, financiamento à agricultura familiar e distribuição de terras”, propõe o militante. Guillermo Neiman afirma que dentre os pontos positivos, a lei define a jornada de oito horas e reconhece o salário mínimo. A lei também fixa a hora-extra

e aumenta o tempo de férias. Dentre os negativos, mantém e reconhece o trabalho temporário. Entretanto, a lei foi rechaçada pelos sindicatos patronais e pela Uatre, que ameaçaram a realização de uma greve patronal caso a lei fosse aprovada. Para Montón, hoje o “governo não tem a correlação de força necessária para aprovar o projeto de mudança na legislação”, sobretudo neste ano, em que novas eleições presidenciais acontecem em setembro e a oposição deverá acirrar os ânimos frente a qualquer oportunidade. O projeto foi encaminhado ao Congresso e aguarda votação.

O governo federal argentino de Cristina Kirchner apresentou em junho do ano passado uma nova lei para regulamentar o trabalho rural Outro ponto importante da nova lei é passar o Registro dos Trabalhadores Rurais (Renatre) para o Ministério do Trabalho, que se dedicaria às atividades de registro trabalhista e combate ao trabalho informal. Hoje, o órgão funciona como uma autarquia, e quem comanda a entidade são as quatro entidades patronais e a Uatre. (DM)


10

de 14 a 20 de abril de 2011

américa latina

Humala sai na frente no Peru ENTREVISTA No entanto, disputará o segundo turno com a deputada Keiko Fujimori, representante das forças políticas de direita Reprodução

Eduardo Sales de Lima da Redação O EX-MILITAR Ollanta Humala, do Partido Nacionalista Peruano (PNP), apoiado pelas forças de centro-esquerda e esquerda, venceu o primeiro turno das eleições presidenciais, realizado no dia 10 de abril. O que não garantiu sua imediata ascensão à presidência. Isso porque Keiko Fujimori estará na disputa com ele no segundo turno. Keiko é filha do ex-presidente Alberto Fujimori, preso por atos corrupção. Segundo analistas, as forças de direita vão se unir e contam com o apoio da grande imprensa local, que alardeia Humala como apoiador político dos presidentes da Venezuela e da Bolívia, Hugo Chávez e Evo Morales, respectivamente. O dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), Valter Pomar, está no Peru para acompanhar as eleições em nome da secretaria executiva do Foro de São Paulo (organização formada por partidos políticos, movimentos sociais e organizações não governamentais da América Latina e Caribe). Segundo ele, existe uma grande chance de Ollanta Humala ser eleito presidente do Peru, no segundo turno, marcado para o dia 5 de junho. O que não quer dizer que a eleição esteja garantida, considerando que as forças de direita, aglutinadas, se empenharam no processo eleitoral para eleger a filha do ex-presidente Alberto Fujimori. Brasil de Fato – A grande imprensa tem dito que o Partido dos Trabalhadores (PT) está encampando um forte apoio à candidatura de Ollanta Humala desde o Brasil. Isso está ocorrendo de fato? Por que?

Valter Pomar – O Partido dos Trabalhadores e o Partido Nacionalista Peruano participamos juntos do Foro de SP. É ótimo que o povo peruano tenha contado com Ollanta Humala como alternativa nesta e na anterior disputa eleitoral. E, evidentemente, o PT mantém total distância do “fujimorismo”. Humala cresceu nas pesquisas de intenção de voto por assumir uma postura mais moderada? Você concorda com essa análise?

O candidato á presidência do Peru Ollanta Humala

Aqui [no Peru] e aí [no Brasil], a grande imprensa trabalha com caricaturas. A verdade é: as candidaturas e os partidos apoiados pela mídia que diziam isto perderam a disputa. Perderam feio.

“É ótimo que o povo peruano tenha contado com Ollanta Humala como alternativa nesta e na anterior disputa eleitoral” A única coisa em comum entre Keiko Fujimori e Ollanta Humala é que o eleitorado de ambos está concentrado nos setores populares. E o povo que votou em Ollanta Humala tem a esperança de que seu governo contribua para mudar para melhor a vida do povo peruano, através de medidas como saúde pública,

escola pública, defesa dos interesses nacionais, democratizar o país, fortalecer o Estado, defender os direitos humanos e combater a corrupção.

vés de uma ditadura corrupta, agressora dos direitos humanos e submissa aos interesses dos EUA.

Se eleito, Humalla tende a se aproximar do projeto da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), implementando um modelo semelhante ao de Chávez e ao de Evo Morales?

Ollanta Humala vai implementar um projeto peruano.

“O povo que votou em Humala tem a esperança de que seu governo contribua para mudar para melhor a vida do povo peruano”

Por outro lado, uma vitória de Keiko Fujimori nessas eleições poderá significar uma política de continuidade em relação àquela implementada pelo governo Alan Garcia?

Se vencer, qual será o papel de um possível governo de Humala em relação à integração da América Latina?

É pior do que isto. Uma eventual vitória de Keiko Fujimori seria a volta de um grupo que implementou o neoliberalismo no Peru, nos anos de 1990, atra-

Ele já disse várias vezes que vai apostar nos projetos de integrar a área andino-amazônica e no projeto da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

ÁFRICA

“Gbagbo não é um golpista” COSTA DO MARFIM Segundo o intelectual marfinense Sylvain Poosson, políticas do presidente recém-deposto contrariava interesses franceses Ailín Bullentini de Buenos Aires (Argentina) SYLVAIN POOSSON é professor de literatura hispano-americana e diretor de Estudos Internacionais da Universidade de Hampton, nos EUA. Nasceu na Costa do Marfim, onde estudou, exerceu o jornalismo e participou da chegada da democracia, no princípio da década de 1990. Ainda que esteja longe, sabe analisar e conhece com detalhes a realidade de seu país, que nos últimos anos lhe tirou seu sono. “O presidente Laurent Gbagbo cometeu muitos erros. Mas é o pai da democracia, militou mais de 20 anos na política de seu país e esperou por um processo eleitoral democrático para chegar à presidência. Não é golpista, respeita os direitos de seu povo. Alassane Ouattara, ao contrário, é um assassino sem piedade e ambicioso que faria qualquer coisa para se sentar na cadeira do poder”, comparou, em conversa telefônica sobre seu ponto de vista a respeito da crise no país africano. No dia 12, Gbagbo foi detido e colocado sob custódia das forças leais a Ouattara após tropas francesas terem cercado o bunker onde permanecia escondido. Os meios ocidentais contavam as horas para que as tropas de Ouattara, ajudados pela França e pela ONU, o arrancassem do poder. O que está certo nisso?

Sylvain Poosson – A informação que chega sobre o conflito está filtrada, em

Reprodução

sua maioria, pela imprensa francesa, que conta a história oficial. Mas é preciso ter cuidado, sobretudo em relação a temas internacionais nos quais a França tem interesses em jogo. Nesses casos, a imprensa francesa joga em favor do governo, quase como se fosse sua empregada.

O mandado presidencial de Gbagbo venceu em 2005. Por que as eleições atrasaram cinco anos?

Ele cometeu milhares de erros como presidente. O primeiro foi ter permitido que a corrupção contaminasse cada canto de seu gabinete. Mas não foi ele que não quis realizar as eleições: foi Soro, através da ameaça permanente de violência e suas contribuições para manter o país dividido, o que não permitiu a instauração de um ambiente propício para as eleições. Convinha a Soro e aos rebeldes do norte se manterem no poder devido aos negócios ilegais do tráfico de cacau. Inclusive, em novembro de 2010, Gbagbo alertou sobre a inconveniência de levar a cabo eleições democráticas, com tanta violência nas ruas.

“Um dos principais pontos da plataforma de Gbagbo para as eleições de novembro baseou-se em um redesenho da política econômica do país, que inevitavelmente afetava a França”

“Convinha a Soro e aos rebeldes do norte se manterem no poder devido aos negócios ilegais do tráfico de cacau”

Por que a França interferiu na Costa do Marfim?

Um dos principais pontos da plataforma de Gbagbo para as eleições de novembro baseou-se em um redesenho da política econômica do país, que inevitavelmente afetava a França e os negócios que o país tem na nação africana. Oitenta e cinco por cento das divisas que sustentam a economia da Costa do Marfim estão depositadas nos bancos franceses. A França tem 2.500 empresas na Costa do Marfim e divide com a Inglaterra a compra da produção de petróleo e cacau – base da economia da Costa Marfim – do meu país. A Costa do Marfim ganha, pela venda desses produtos, 12% dos lucros que a França gera com sua revenda. Essa é a ameaça que a França enfrenta se Gbagbo seguir na presidência. Quando foi ministro da Economia – entre 1990 e 1993 – Ouattara se encarregou de vender todas as empresas estatais a capitais privados, em sua maioria estrangeiros. Paris se beneficiou enormemente. O que Gbagbo fez para mudar essa realidade, durante os dez anos que exerceu a presidência?

Cartaz da campanha eleitoral de Laurent Gbagbo

Não pôde fazer muito. Assumiu a presidência em 2000 e, três anos depois, as milícias rebeldes do norte do país, com armas e mercenários de Burkina Faso e o apoio oculto da França, tentaram derrubar seu governo, planejando matá-lo. Ouattara apoiou esse golpe. Deixaramno vivo, mas iniciaram uma guerra civil e verteram sangue de centenas de inocentes nas ruas. O país ficou dividido em dois: o norte, sob o comando dos rebeldes, e o sul, com Gbagbo, que acabou negociando o poder completo. Ficou na presidência, mas nomeou o líder dos rebeldes, Guilliame Soro, como primeiroministro. Desde então, nunca mais pôde avançar dois passos sem a ameaça de colocar o país em guerra. Perdeu toda a condução.

Por que não se pôde definir ainda o processo eleitoral de novembro?

Outtara teria ganho as eleições presidenciais se não tivesse maltratado tanto a população. As tropas rebeldes mataram e disseminaram o medo para que ele se alçasse à presidência. Mulheres foram violadas, milhares de marfinenses foram assassinados por essas bestas, com o apoio da França, para atemorizar e ganhar votos. As eleições não foram livres nem democráticas. A Comissão Eleitoral Independente, que deu vitória a Ouattara, tem 22 membros, dos quais 20 são vinculados a Outtara. Quando esses resultados preliminares chegaram à Corte Suprema, a autoridade considerou que havia sinais de fraude, mas não ordenou a anulação das eleições e a realização de um novo processo. (Página 12) Tradução: Tatiana Merlino


internacional

de 14 a 20 de abril de 2011

11

Reprodução

Síria, um país cindido Cartaz com o rosto do presidente sírio Bashar al-Assad nos arredores de Damasco

OPINIÃO Sob influência da Irmandade Islâmica, Sul e Leste do país pedem saída do presidente Assad; protestos na capital Damasco defendem regime Achille Lollo de Roma (Itália) AO CITAR O SITE israelense Filkka Israel, a rede árabe Al-Alam lembra que em 2008 o ex-embaixador dos EUA no Líbano, Jeffrey Feltman, e o ministro do interior da Arábia Saudita, Bandar Bem Sultan, planejaram a derrubada do governo sírio de Bashar al-Assad com a criação de fundos secretos sauditas para financiar a “revolta social” a um custo de 2 bilhões de dólares. Por “mera casualidade” no último dia 15 de março, em ocasião do “dia do orgulho das tribos”, os fundamentalistas islâmicos da Síria voltaram a liderar as reivindicações econômicas dos camponeses de Deraa no sul do país, enquanto no Facebook emergiu a palavra de ordem “revolta popular no dia 25 de Março”. Em seguida, a TV árabe Al Jazeera passou a divulgar somente as manifestações da oposição, fazendo com que a imprensa ocidental e os governos ocidentais sentenciassem o fim do regime sírio, como fizeram com a Líbia. Os acontecimentos recentes praticamente dividiram a Síria em duas. No sul e no leste, predominaram os protestos contra o regime de Bashar al-Assad. Enquanto a capital, Damasco, e todas as regiões da costa oeste foram palcos de manifestações em favor do governo, que recebeu o apoio dos 500 mil palestinos que estão refugiados na Síria desde 1948.

Como na Líbia e Egito, a Irmandade Islâmica síria está de olho nas possíveis mudanças políticas que possam levar seus homens à esfera governamental O jovem presidente, Bashar al-Assad, aproveitou-se dessa crise para promover algumas reformas que, na realidade, já haviam sido anunciadas em 2006, porém nunca foram implementadas em função do estado de guerra que o país vive há 43 anos. Antes de entrar no cenário dos protestos que explodiram nas cidades sírias de Deraa, Homs, Latakya e Sueida, é necessário esclarecer que com Bashar alAssad as orientações políticas do regime mudaram bastante, para favorecer a abertura política ao Ocidente e à chegada dos capitais das multinacionais. Um contexto que recebeu o apoio da Irmandade Islâmica, cujo líder, Riyadh al-Shafqa, assinou uma trégua que acabou em agosto de 2010, isto é, quando o money dos fundos secretos da Arábia Saudita chegaram aos caixas da Irmandade. Com a abertura ao Ocidente, o governo liderado por Muhammad al-Utri tentou uma aproximação política com os EUA e com Israel para entabular ne-

gociações que definissem o fim do estado de guerra com Israel e finalizassem acordos sobre a fronteira com o Iraque. Nem a Casa Branca e tampouco o governo sionista de Tel Aviv aceitaram negociar com a Síria o seu status estratégico na região, tanto que o então Secretário da Defesa do governo Bush, Donald Rumsfeld, vetou a participação da delegação síria na conferência – realizada na capital da Jordânia, Aman - sobre o controle das fronteiras do Iraque. Além disso, o lobby dos banqueiros sionistas pressionou o governo estadunidense para vetar até a venda de projetos de modernização do sistema bancário sírio, com a justificativa de que o banco central da Síria realizava financiamentos ocultos em favor da resistência iraquiana.

A TV Al Jazeera passou a divulgar somente as manifestações da oposição, fazendo com que a imprensa ocidental sentenciasse o fim do regime sírio Abertura problemática

O presidente Bashar al-Assad pediu que o primeiro-ministro Muhammad al Utri implementasse as reformas econômicas em todas as regiões da Síria para modernizar a produção industrial e desenvolver a agricultura. Na realidade, quase nada foi feito, visto que foram priorizadas, apenas, as privatizações das empresas estatais mais lucrativas, deixando – sobretudo no setor agrícola - um esqueleto incompleto de empresas alimentares que aumentaram bastante o desemprego e o descontentamento das faixas populares rurais mais pobres. “No fim da década de 1960, a esquerda do partido Baath [pan-arabista] tornouse majoritária e com nosso apoio realizou uma reforma agrária que visava desarticular o sistema de exploração feudal no campo e criar um sistema cooperativista, que visava produzir alimentos para todos os sírios. E foi assim que o vale de Deraa se tornou um grande centro de produção de trigo, que alimentava importantes indústrias estatais. Setores e projetos que o governo de Muhammad al Utri abandonou, visto que a nova burguesia estava mais interessada em importar alimentos ou transformar as cooperativas em empresas para exportar produtos agrícola nos circuitos comerciais das multinacionais. Assim, muitas regiões empobreceram de um dia para outro”, explica Ammaar Bagdache, membro da Secretaria Política do Partido Comunista Sírio De fato, o líder da Irmandade islâmica, Riyadh al-Shafqa, logo após ter quebrado a trégua com o governo do primeiro-ministro Muhammad al-Utri, centralizou sua agitação em Deera, tentando unificar as reivindicações dos camponeses com a prática político-assistencialista da Ir-

mandade Islâmica. De fato, a Irmandade conseguiu exercer uma forte influência política sobre os setores mais pobres, graças à rede de ajuda solidária que é representada pelo auxílio financeiro aos pobres e à construção do gerenciamento de infraestruturas comunitárias, tais como escolas para crianças, creches, pequenos hospitais e, evidentemente, mesquitas e centros de cultura islâmica. Realizações que ganharam os corações dos camponeses e, sobretudo, dos desempregados, no momento em que o governo central ficou cada vez mais ausente e ligado ao apoio político dessa nova burguesia. De fato, quando se fala em dinastia dos Assad, não se pode esquecer que o pai de Bashar, o general Hafez, para fazer frente ao estado de guerra permanente com Israel e os EUA, instituiu o sistema de um único partido único: o Baath, totalmente nacionalista, anti-imperialista, antissionista, aplicando no país projetos sócio-econômicos de matriz socialista, além de abrir as portas do governo aos homens do PC Sírio, o que permitiu legitimar o conceito de Estado Leigo, totalmente independente dos conflitos do mundo islâmico entre sunitas e xiitas. É evidente que neste contexto a defesa do regime tornou-se prioritária, com a introdução de uma lei de segurança muito severa, que, somente agora, após 43 anos, foi definitivamente retirada. Os protestos

A Irmandade Islâmica foi o “inimigo interno numero um” do pai Hafez al-Assad, tanto que em 1982 o velho presidente não hesitou em bombardear a cidade de Hama, onde os homens da Irmandade haviam conseguido organizar uma rebelião que contou com milhares de mortos. O filho Bashar também não tem muita simpatia em relação aos fundamentalistas, porém, conseguiu manter com eles relações de convivência política logo depois de ter implementado a abertura ao Ocidente com o governo de Muhammad al Utri. A ruptura deu-se não só em função do plano subversivo saudita-estadunidense, mas, sobretudo, em função do crescimento do poder político da nova burguesia. Como na Líbia ou no Egito, a Irmandade Islâmica da Síria está de olho nas possíveis mudanças políticas que possam determinar a participação de seus homens na esfera governamental.

Atacar a Síria significa também atacar o Irã, determinando um cenário bélico praticamente inimaginável para os estrategistas do Pentágono Não é por acaso, evidentemente, que enquanto cerca de 50 mil moradores de Deera atacavam as dependências do partido Baath, destruindo os principais monumentos do velho líder Hafez al-Assad, em Damasco, 15 mil viaturas paralisavam as ruas da capital gritando “Viva Bashar! Abaixo Al Jazeera mentirosa!”. Um contexto que – diferentemente da Líbia – encontrou o exército e a polícia preparados e dispostos a reprimir os protestos, sobretudo nas localidades onde os homens da Irmandade Islâmica tentavam criar uma explosão insurrecional. Os analistas admitem que neste mo-

mento prevaleceu a rígida formação do exército, que encarna o espírito nacionalista e anti-imperialista do partido Baath, de forma que o sonho do ministro do interior da Arábia Saudita, Bandar Bem Sultan, de provocar um golpe de Estado palaciano, a partir de protestos sociais, não teve nenhum efeito prático. Por sua parte, o presidente Bashar alAssad, após ter demitido Muhammad al Utri, nunca perdeu sua postura institucional e logo voltou a ter o controle do país, após ter libertado 250 presos políticos e ter, também, anunciado aumentos salariais, um maior controle sobre a corrupção e a realização de reformas sócio-econômicas. EUA e Arábia Saudita

Apesar dos 150 manifestantes mortos pela polícia síria durante os protestos de Deera, Homs, Latakya e Sueida, a secretária do Departamento de Estado dos EUA, Hillary Clinton, pouco falou da Síria e nada disse contra a legitimidade do presidente Bashar al-Assad. Também o rei da Arábia Saudita, Abdullah, permaneceu em silêncio amargando a derrota de não poder impor nenhuma zona de exclusão aérea contra a Síria.

Apesar dos 150 manifestantes mortos pela polícia síria durante os protestos, a secretária do Departamento de Estado dos EUA, Hillary Clinton, pouco falou da Síria Este silêncio é significativo. Se a Arábia Saudita fizesse contra a Síria o mesmo que fizera na Liga Árabe contra a Líbia e se os EUA obrigassem o Conselho de Segurança das Nações Unidas a votar uma resolução belicista contra o regime sírio, as consequências seriam desastrosas para os EUA. E o Oriente Médio seria ainda mais incendiado do que está hoje. De fato, a Síria, mesmo produzindo muito pouco petróleo, é estrategicamente importante porque no seu território estão a maior parte dos oleodutos e gasodutos que transportam petróleo e gás destinados aos países europeus a partir de seus terminais petrolíferos no mar Mediterrâneo. Em segundo lugar, atacar a Síria implica, também, a ruptura do acordo para a estabilidade em Beirute e, sobretudo, no sul do Líbano, onde os homens do Hizbollah podem atacar o norte de Israel com foguetes a qualquer momento. Além disso, se o exército sírio fosse obrigado a deslocar para o interior os 10 mil soldados que mantém ao longo da fronteira com o Iraque, cerca de 15 mil combatentes poderiam entrar no Iraque e recomeçar uma guerrilha que custou aos EUA a vida de 20 mil soldados. Enfim, atacar a Síria significa também atacar o Irã, determinando um cenário bélico praticamente inimaginável para os estrategistas do Pentágono, que neste momento não sabem mais o que fazer para garantir estabilidade e segurança a Israel e, ao mesmo tempo, sair ilesos do Iraque e, sobretudo, do Afeganistão. Achille Lollo é jornalista italiano, editor do programa TV “Quadrante Informativo”.


12

de 14 a 20 de abril de 2011

internacional

Muitos deveres e nenhum direito SIONISMO Palestinos moradores de Jerusalém são tratados como cidadãos de segunda classe e forçados a mudar-se Reprodução

Bruno Huberman Jerusalém (Palestina) “MINHA MÃE plantou esse limoeiro há 50 anos”, aponta Nassar Ghawi enquanto caminhávamos em frente de onde costumava ser a sua casa, em Sheikh Jarrah, bairro árabe de Jerusalém Oriental. Hoje a casa está decorada com bandeirolas israelenses e uma gigante menorah (espécie de candelabro judaico) em seu topo. Famílias judias ocupam os sete cômodos antes habitados pelos Ghawi, muçulmanos. Este é um dos vários assentamentos judeus que se espalham pelos bairros árabes do lado leste da cidade sagrada, que deveria vir a ser a capital do futuro Estado Palestino. Hoje, Nassar sequer tem permissão para andar em frente ao muro do sobrado que seus país construíram em 1948, após a Guerra de Independência de Israel, quando toda a família Ghawi foi expulsa do vilarejo onde morava, próximo a Tel Aviv. Deslocados, os Ghawi decidiram erguer uma casa provisória no campo de refugiados na parte jordaniana de Jerusalém, à espera de um acordo que lhes garantissem o direito de retorno ao vilarejo de origem, previsto em resolução da ONU. O que era para ser provisório tornou-se definitivo e o campo de refugiados virou um bairro: Sheikh Jarrah. Em 2009, a Justiça israelense determinou que toda a família de Nassar deveria deixar a casa para dar lugar ao assentamento judeu. Desde 1967, quando Jerusalém Oriental passou ao domínio de Israel após a Guerra dos Seis Dias, o pai de Nassar, e depois ele próprio, enfrentaram três diferentes litígios jurídicos com associações de assentamentos judias. O derradeiro processo que determinou a expulsão da família de Nassar durou quase dez anos e foi movido pela Nahalat Shimon International, financiada por judeus milionários americanos.

“Os palestinos pagam a mesma quantidade de impostos que os judeus, mas recebem apenas 10% dos serviços públicos” Prova em vão

Nassar chegou a provar, com documentos israelenses, que o terreno era de uma família palestina, enquanto a organização afirmava que pertencia a uma família judia. “Quando apresentei a prova de que tínhamos o direito de continuar em nossa casa, a Corte israelense disse que era ‘tarde demais’ e fomos expulsos à força por mais de 100 policiais israelenses na semana seguinte”. Nassar, em protesto, montou uma tenda em frente à casa, de onde também acabou expulso, agora pela segurança particular do assentamento. Hoje, ele e sua família vivem ao norte de Jerusalém, próximo a Ramallah. “O governo de Israel quer expulsar todos os palestinos de Jerusalém para não ter que dividir a cidade com a Palestina”. “Judaização”

A administração do milionário Nir Barkat, prefeito de Jerusalém, não esconde de ninguém o desejo de “judaizar” a cidade com o intuito de não dividi-la com os palestinos. Desde a unificação de cidade em 1967, a prefeitura e o governo de Israel realizam ações sistemáticas para sufocar os bairros árabes e converter o maior número de residências. “Essa é uma questão demográfica e não apenas habitacional”, afirma o vereador de Jerusalém Meir Margalit, membro do Meretz, partido de esquerda judeu que defende os direitos dos palestinos na cidade. “Dos 31 representantes no Conselho Municipal, nenhum é árabe, portanto cabe a nós garantir os seus direitos.” Quanto ao “nós”, Margalit refere-se a ele e o outro representante do Meretz, Yosef Alalu, uma vez que o Conselho é dominado por partidos de direita e ortodoxos. “Há uma previsão de que dentro de dez anos os árabes serão maioria em Jerusalém”, diz o vereador. “Por conta disso, Israel está ampliando a pressão em Jerusalém Oriental para tornar a situação insustentável, forçar os palestinos a mudarem-se para os bairros mais periféricos e, unilateralmente, ceder estes bairros para a Autoridade Palestina.” Os 250 mil árabes que vivem em Jerusalém não são israelenses plenos. Alguns direitos fundamentais, como votar para o Knesset (o parlamento), lhes são negados. Estes são conhecidos como “araboisraelenses”. Estima-se que eles representem 36% da população local e que entre 2015 e 2020 se tornarão maioria.

Tratores derrubam construção em Sheikh Jarrah, bairro árabe de Jerusalém Oriental

“Os palestinos pagam a mesma quantidade de impostos que os judeus, mas recebem apenas 10% dos serviços públicos”, relata Margalit. “Isso está acabando com a educação, a saúde e a segurança em Jerusalém Oriental”. Um relatório do Centro de Pesquisa do Knesset mostra que faltam 1.354 salas de aulas nos bairros árabes. “A justiça chegou a ordenar que a prefeitura fizesse algo a respeito algumas vezes. No entanto, essa história é antiga, nunca acontece nada”, completa o vereador.

lativa por Israel que mude o caráter e o status de Jerusalém”. No entanto, em fevereiro, o presidente americano, Barack Obama, vetou uma resolução na ONU que condenava e tornava ilegal os assentamentos israelenses em territórios ocupados.

“Israel amplia a pressão em Jerusalém Oriental para tornar a situação insustentável”

Histórico

O maior problema enfrentado pelos palestinos em Jerusalém é histórico. Desde 1967, mais de 24 mil casas foram demolidas na Cisjordânia, em Gaza e em Jerusalém Oriental, estima o Comitê Israelense Contra a Demolição de Casas (ICAHD, no original em inglês). Apenas em Jerusalém Oriental, entre 2004 e 2008, 3.753 lares foram destruídos. “Isso acontece porque o governo não concede aos palestinos o direito de erguerem suas casas, obrigando-os a construírem ilegalmente”, afirma a ativista Angela Goldfrey-Goldstein, integrante do Comitê desde a sua criação, em 1997. “A prefeitura de Jerusalém demarcou inúmeras ‘zonas verdes’ nos bairros árabes, o que proíbe os palestinos de construírem novas residências.”

“O governo de Israel quer expulsar todos os palestinos de Jerusalém para não ter que dividir a cidade com a Palestina” Em fevereiro, conforme a política local de “judaização” dos bairros árabes, o Comitê Municipal de Planejamento e Construções de Jerusalém aprovou a instalação de dois edifícios, com 13 apartamentos, para residentes judeus em Sheikh Jarrah, em uma área até então considerada “verde”, próximo ao assentamento onde antigamente era a casa de Nassar. Mais recentemente, no início de abril, a mesma comissão aprovou a construção de 950 novas casas no bairro judeu de Giló. “Os terrenos estão por trás da Linha Verde e foram desapropriados dos palestinos por leis israelenses”, disse o vereador pelo Meretz, Yousef Alalo. “Este projeto nos afasta um pouco mais de uma possível reconciliação entre os dois povos.” A resolução do Comitê segue a decisão de 2001 da Suprema Corte israelense que deu permissão aos judeus de requererem propriedades privadas em bairros da parte oriental da cidade. Até mesmo a ONU, na resolução 478 de seu Conselho de Segurança, “proíbe qualquer alteração administrativa ou legis-

“Deus quem mandou”

A justificativa utilizada para estes novos assentamentos em Sheikh Jarrah, como no processo de Nassar, é que em 1948, ou seja, antes da criação de Israel e a divisão da cidade, judeus moravam no bairro. “Quando fui falar com a organização que tomou a minha casa, eles disseram que foi Deus quem mandou”, relata Nassar. “Eu reconheço o direito dos judeus viverem nesta área, pelo que sofreram no Holocausto, mas o que estão fazendo neste bairro é muito errado”. Sheikh Jarrah é um bairro muito bem localizado em Jerusalém, a poucos minutos do portão de Damasco, a principal entrada do bairro muçulmano na Cidade Velha. Muitos palestinos de classe média, embaixadas e organizações internacionais, como a ONU e a Cruz Vermelha, o escolheram para estabelecer-se. Até 1967, lá passava a fronteira entre Israel e Jordânia, a divisa entre o lado oriental e ocidental da cidade. Desde 2001 assentamentos judeus, ortodoxos em sua maioria, se espalharam pelas suas ruas empoeiradas. Justificável, uma vez que a apenas cinco minutos de caminhada está Mea She’Arim, bairro ortodoxo, onde até mesmo judeus não religiosos não são bem vindos. A convivência entre os colonos judeus e os palestinos é amistosa, mas não é raro ver uma discussão ininteligível em hebraico e árabe . “Aqui é tranquilo, acontecem problemas uma vez por mês em média, mas apenas brigas de vizinhos, nada com caráter religioso”, relata o segurança dos assentamentos Netaniel Swissa, judeu, cuja família veio do Iêmen. “O negócio é que eles não gostam de nós e não nos querem aqui”. Para Mohamad Nabulsi, frentista e cuja família também se estabeleceu no bairro após a Guerra da Independência, não há problemas com os judeus. “Às vezes até jogamos bola juntos.” Nenhum colono quis falar com a reportagem. Cidade pobre

Para Dawood Hamoudeh, pesquisador do The Grassroots Palestinian Anti-Apartheid Wall Campaign, o plano para Jerusalém é maior do que a imposição de assentamentos em bairros ára-

bes. “A cidade chegou a um ponto em que um terço é árabe, portanto, inimigo, outro terço é ortodoxo, ou seja, improdutivo e bancado pelo governo. Jerusalém tornou-se uma das cidades mais pobres de Israel e não é atraente para os não religiosos”, afirma o palestino, residente em Ramallah, na Palestina, contudo nascido em Jerusalém. A solução encontrada pelo governo foi ocupar os espaços vazios na porção oriental da cidade com pontos turísticos e comerciais, vide Sheikh Jarrah. “Querem transformar Jerusalém em uma cidade essencialmente turística e que o capital estrangeiro banque essa transformação”. Prova disso é o monotrilho que ligará a parte ocidental da cidade aos primeiros assentamentos judeus na Cisjordânia. A companhia que o construiu e que manterá seu funcionamento é a francesa Veolia. “Fica mais difícil para os palestinos lutarem contra o lobby de corporações internacionais do que contra empresas israelenses”, afirma Hamoudeh. “Os governos estrangeiros ficam com o rabo preso na hora de pressionar Israel uma vez que ali tem grandes empresas do seu país”.

“O que os judeus não entendem é que nunca cansaremos de lutar e não abandonaremos Jerusalém. Isso daqui também é nosso” A ampliação do território israelense por meio da ocupação de territórios antigamente árabes mostrou-se eficaz, como revelou os denominados “papéis palestinos”, vazados pela rede de televisão do Qatar, Al-Jazeera, em janeiro deste ano. Alguns documentos mostram o relaxamento da Autoridade Palestina nas frustradas tratativas de paz com Israel acerca de algumas áreas de Jerusalém Oriental que já estão sob o domínio judeu. “Com os atuais governantes que temos, nunca conseguiremos chegar em uma solução sobre Jerusalém”, avalia o conselheiro municipal Meir Margalit. “Um dia o consenso terá de ser uma divisão funcional da cidade e não física, assim como o previsto por Clinton em Oslo”. A proposta apresentada pelo expresidente dos EUA nas negociações de paz de 1993 com o israelense Yitzhak Rabin e o palestino Yasser Arafat previa que os bairros árabes de Jerusalém Oriental ficassem sob o auspício da Palestina, enquanto os bairros judeus sob a tutela israelense. “O que os judeus não entendem é que nunca cansaremos de lutar e não abandonaremos Jerusalém. Isso daqui também é nosso”, afirma Nassar ao entrar em seu carro e partir para o norte, rumo a sua nova, e provisória, casa.


especial

de 14 a 20 de abril de 2011

1

Igor Ojeda

Por já existirem há 35 anos, os campos de refugiados saarauis já não estão mergulhados no caos característico de um acampamento recém-estabelecido. A organização impressiona. Governados pela Rasd, funcionam como um país “normal”, com escolas, hospitais e divisões administrativas. No entanto, as condições de moradia ainda são bastante precárias. As ruas, de maneira geral, não são asfaltadas. Só há luz elétrica em um dos acampamentos (27 de Febrero). Não há rede de esgotos ou água encanada. As casas, em sua maioria, são erguidas com tijolos de barro (adobe) e telhados de zinco. A impressão que se tem é a de que, para além da falta de recursos que possam ser utilizados em melhorias, os saarauis que esperam voltar para casa temem que tais avanços deem um aspecto permanente a um local que deve ser sempre provisório.

Igor Ojeda de Dakhla, 27 de Febrero, Smara e Tifariti (Saara Ocidental) VENCIDA A TIMIDEZ, Salka levanta do colchão onde está sentada e caminha ao outro lado do cômodo. Senta-se ao nosso lado. “Oi”, diz. “Qual o nome de vocês?”. Estamos dentro de uma grande tenda verde de pano, sustentada por dois grossos bambus, cada um medindo cerca de quatro metros. Não há móveis, apenas tapetes e pequenos colchões estendidos no piso. Alta, pele curtida, olhos grandes, castanhos, cabelo longo e preto, dividido em duas tranças, Salka, apesar de árabe, fala castelhano perfeitamente. Tem 12 anos, dos quais dois e meio viveu na Espanha. A menina conta gostar muito de livros. “Gosto de ler quadrinhos, não os livros que têm muitas letras. Leio um inteiro em dois dias”. Espera um sinal de aprovação. Mas onde vive atualmente não há bibliotecas, lamenta. Então, não lê tanto. “Aqui não tem muito o que fazer. Há poucos lugares para brincar.” Onde Salka vive não há playgrounds para ir, piscinas para mergulhar, árvores para trepar. Pudera. Ela não está em sua terra. “Queria muito conhecer meu povo. Porque nasci aqui e não o conheço. Queria ir para lá, porque tem mais lugares para brincar”. Salka, assim como milhares de jovens conterrâneos seus, já nasceu no exílio.

Por já existirem há 35 anos, os campos de refugiados saarauis já não estão mergulhados no caos característico de um acampamento recémestabelecido Famílias divididas

“Aqui não tem muito o que fazer. Há poucos lugares para brincar”. Onde Salka vive não há playgrounds para ir, piscinas para mergulhar, árvores para trepar Ao todo, na região onde Salka vive, no sudoeste da Argélia, em pleno deserto do Saara, habitam cerca de 170 mil refugiados do Saara Ocidental, país do noroeste africano ocupado pelo Marrocos há 35 anos. Todos na esperança de, algum dia, voltar a sua terra, mesmo que nunca a tenham conhecido. “É difícil esperar. Sem estar em sua terra natal, enquanto os marroquinos se aproveitam dela, dos recursos naturais, de sua pesca. E nós aqui. É um inferno”, define Saleh Habub, cuja idade é a mesma da ocupação marroquina. A palavra inferno, usada para se referir ao local dos cinco campos de refugiados saarauis – como é chamado o originário do Saara Ocidental – em território argelino, não é mera força de expressão. Estamos no deserto de Hamada, a parte mais seca, inóspita e hostil do maior deserto do mundo, o Saara. É neste ambiente insalubre que um povo exilado e “esquecido” pela comunidade internacional luta e espera pela independência de seu país. Saleh nos leva a um morro de não mais que 20 metros de altura nos arredores de um dos acampamentos – como os campos de refugiados também são chamados –, o 27 de Febrero. Seu topo é o único lugar onde há o sinal de celular que buscávamos para poder fazer uma ligação, garante. Do alto, pode-se ter uma boa ideia da geografia local: o nada. Ou quase nada. Vê-se, de um lado, as precárias casas do 27 de Febrero. Ladeando-o e afastandose, uma estrada de asfalto parece rumar ao infinito. Alguém acende uma fogueira ao longe. Duas mulheres caminham lentamente em outra direção. Até onde a vista alcança, só há areia e pedra. O deserto de Hamada é o horizonte contínuo. Praticamente 360 graus de nada. Saleh conta que existe uma maldição árabe que resume o habitat dos refugiados saarauis: “Que Deus te mande ao Hamada!” Dois colonizadores

Não foi o par de anos vivido na Espanha que fez com que a menina Salka aprendesse castelhano. Assim como todas as crianças dos campos de refugiados, todos os dias ela tem aulas do idioma na escola. Isso porque, depois do árabe e do hassanya – uma variação do árabe introduzida pelas antigas tribos beduínas da Mauritânia e do Saara Ocidental – o castelhano é a língua mais usualmente falada pelos saarauis. Pois o reino espanhol foi o colonizador do Saara Ocidental por nove décadas. Entre 1884 e 1976, manteve o domínio sobre o território quase todo desértico, mas banhado pelo oceano Atlântico.

A saaraui Marian Zega: “quero o Saara livre!”

Uma luta invisível “Esquecido” pelo mundo em pleno deserto do Saara, um povo árabe e muçulmano busca sua independência do Marrocos. A partir desta edição, o Brasil de Fato publica uma série de reportagens sobre o Saara Ocidental, a última colônia da África Em fins de 1975, quando muitos países da África já haviam conquistado sua independência ou estavam a caminho, e o ditador espanhol Francisco Franco estava prestes a morrer, a Espanha anunciou sua retirada. Aproveitando-se desse momento, e invocando supostos direitos ancestrais, o então rei marroquino Hassan II ordenou o deslocamento de 350 mil soldados ao território saaraui. Foi a chamada Marcha Verde. “Estavam todos em sua casa, com tranquilidade, quando, no meio da noite, o exército marroquino entrou e expulsou nossas mães, irmãos e familiares à força”, conta Saleh. Segundo ele, seus quatro avós, que não conseguiram fugir, foram mortos pelos bombardeios do Marrocos. “Os que podiam correr, fugiram, os que não podiam, ficaram lá e os marroquinos os mataram”. O governo espanhol até esboçou uma tentativa de impedir a ocupação, chegando a fazer tal promessa aos saarauis. No entanto, em 14 de novembro do mesmo ano, por baixo dos panos, assinou, em Madri, o que ficou conhecido como Acordo Tripartite, por meio do qual cedia o Saara Ocidental ao Marrocos e à Mauritânia, país localizado na fronteira sul, em troca de participação na exploração dos recursos naturais.

A palavra inferno, usada para se referir ao local dos cinco campos de refugiados em território argelino, não é mera força de expressão A população do Saara Ocidental reagiu imediatamente e iniciou a defesa de seu território, organizada em torno da Frente Polisario (Frente Popular de Libertação de Saguia el Hamra e Río del Oro), movimento que desde 1973 lutava

pela independência. A tarefa não era fácil. Os saarauis eram obrigados a guerrear com o Marrocos no flanco norte, com a Mauritânia ao sul e, ao mesmo tempo, garantir a segurança de seus cidadãos, que fugiam em massa rumo à Argélia. Em 26 de fevereiro de 1976, a Espanha saía oficialmente do território. No dia seguinte, para que não ficasse nenhum vazio legal que “legitimasse” a nova ocupação, a Frente Polisario, baseada em pleno deserto, na parte oriental do país, para onde havia sido “empurrada” pelo exército marroquino, decidiu proclamar a República Árabe Saaraui Democrática, conhecida simplesmente como Rasd. Era o grito de independência saaraui.

“Estavam todos em sua casa, com tranquilidade, quando, no meio da noite, o exército marroquino entrou e expulsou nossas mães, irmãos e familiares à força” República no exílio

Reconhecida atualmente por 82 países e membro da União Africana, a Rasd é o governo do Saara Ocidental no exílio. Tem jurisdição sobre o território saaraui liberado durante a guerra – que durou até 1991 – no leste do país, e sobre os campos de refugiados do sudoeste da Argélia, localizados nos arredores da cidade de Tindouf, principal cidade da região que abriga bases militares do país. A população exilada no deserto argelino, estimada em 170 mil, divide-se basicamente em cinco acampamentos: Smara, Layounne, Auserd, 27 de Febrero e Dakhla, onde vive a menina Salka. Outro campo, Rabouni, abriga a sede da Rasd – presidência, ministérios, parlamento, tribunais e outras instituições – e poucos habitantes.

Além da espera, os refugiados, principalmente os mais velhos, são obrigados a conviver com a dor da separação. No deserto de Hamada, não há uma única família saaraui completa. Todos, sem exceção, têm parentes no território ocupado pelo Marrocos. Parentes às vezes distantes, mas, muito frequentemente, próximos, como pais, irmãos, avós, tios e primos. “Tenho muitos familiares no território ocupado. Meus tios e tias ficaram lá, e nunca os vi. Não sei a cara das minhas tias”, conta Saleh Habub. A tristeza vem também por saber que os que ficaram sofrem com a forte repressão marroquina. “Muita gente teve a família morta lá. E matam a gente olhando no olho. Eles estão lá sob o colonialismo, sem liberdade para dizer ‘Saara livre’”. A Organização das Nações Unidas (ONU), que mediou o cessar-fogo de 1991, mantém um programa de encontro entre familiares saarauis divididos pela ocupação. Os que vivem nos campos de refugiados vão ao território ocupado e vice-versa. No entanto, os “beneficiados” reclamam que são apenas cinco dias de visita para quem espera décadas para rever um parente. Na prática, cada saaraui é contemplado pelo programa da ONU apenas uma vez na vida, já que é preciso esperar que todos sejam atendidos para que se inicie uma segunda “rodada”.

A diáspora

O trajeto entre o inferno da invasão do Marrocos e o inferno do ambiente do deserto de Hamada que separou as famílias saarauis foi particularmente dramático. Mais de 100 mil pessoas tiveram que percorrer centenas de quilômetros pelo Saara, durante dias, em meio a bombardeios da Força Aérea marroquina. Parte da população subiu nos poucos carros e caminhões que havia. Outros tiveram que vencer a distância a pé. Muitos sequer puderam fugir. “Eu saí caminhando. Era jovem, podia andar bastante. Mas algumas mulheres de idade avançada ficaram, muita gente ficou por falta de transporte”, lembra Mohamed Saleh, hoje motorista da presidência saaraui. “Muita gente fechou suas tendas com o que tinha e fugiu. Vieram com muito pouco”, conta o senhor de 63 anos. Já o artista plástico Saleh Brahim Mohamed tinha apenas três anos na ocasião da invasão marroquina, mas recorda de detalhes da fuga de sua família. “Lembro que subimos em um caminhão, que não sabíamos de quem era e nem para onde ia. Era um Mercedes grande, de dez rodas. Éramos um grupo de seis ou sete famílias”. Por sorte, ele e seus parentes viviam a apenas 80 quilômetros do local onde hoje estão instalados os campos de refugiados. A viagem durou cerca de 11 horas. “Meu pai ficou lá com as milícias que estavam sendo organizadas para enfrentar a ocupação marroquina”, conta. Saleh Habub, por sua vez, pode ser considerado um “filho da diáspora”. Ele nasceu durante a fuga de seus pais da cidade de Boucraa, a sudeste da capital, El Aaiún. Veio ao mundo pouco antes de chegarem aos campos de refugiados, em 1976.




4

de 14 a 20 de abril de 2011

especial Fotos: Igor Ojeda

Calcula-se que haja cerca de 80 mil militares no exército saaraui

Guerra no deserto Talvez por isso mesmo que o Marrocos tenha angariado tanto apoio durante a guerra contra a Frente Polisario, entre 1976 e 1991. No período, as forças marroquinas receberam armamentos, recursos financeiros e assessoramento tático de potências como Estados Unidos, França, Espanha, Grã-Bretanha e Itália, entre outras. Em tempos de Guerra Fria, o regime monárquico do então rei Hassan II era considerado um satélite do bloco capitalista no norte da África. Além disso, os interesses sobre os recursos naturais saarauis despertaram a atenção do Ocidente. O Saara Ocidental possui uma das maiores reservas mundiais do fosfato – mineral utilizado, principalmente, na fabricação de fertilizantes para a agricultura – e um dos mais cobiçados bancos de pesca do planeta. Foi uma guerra desigual. O Marrocos tinha arsenal bélico, quantidade de soldados e recursos financeiros muito superiores. “Mas havia algo que o Marrocos não tinha: a disposição, a vontade e a fé dos combatentes saarauis”, relembra Bucharaya Beyun, delegado da Frente Polisario na Espanha, ele próprio um ex-combatente. “Conhecíamos o terreno. Sabíamos como e onde atacar. Atacávamos ao meio dia, com 50 graus de temperatura. Os soldados marroquinos, meninos de 20 anos, nascidos no mar Mediterrâneo, não conseguiam combater num deserto, a 50 graus. Preferiam se entregar. Com poucos homens e armas, conseguimos infringir grandes derrotas ao Marrocos”, explica.

Como alternativa à falta de profissionais da saúde e medicamentos, trabalha-se sempre em conjunto com a medicina tradicional Por perceber que não conseguiria dominar todo o território militarmente e devido ao fato de que a guerra estava custando muito dinheiro, o Marrocos acabou aceitando o cessar-fogo mediado pela ONU, opina Bucharaya. Mas a Frente Polisario tampouco estava sozinha. Foi apoiada por alguns países africanos, principalmente, a Argélia. De Cuba, recebeu ajuda em saúde e educação. “Na verdade, foram os marroquinos que mais nos ajudaram”, conta o delegado saaraui na Espanha. “Em todos os combates em que havia marroquinos mortos, pegávamos blindados, metralhadoras, morteiros. Grande parte do nosso arsenal de guerra era marroquino”. O museu militar localizado no campo de Rabouni é bastante didático para se entender a realidade descrita por Bucharaya. É lá onde estão expostos os armamentos e equipamentos bélicos capturados das forças marroquinas durante os 15 anos de conflito. Jipes militares estadunidenses, tanques e lançamorteiros de vários países e destroços de aviões Mirage franceses – dois de-

les estampando a bandeira marroquina em vermelho – preenchem o pátio do edifício. Em um galpão ao lado, pode-se observar restos de mísseis, morteiros, bombas de fragmentação e minas antipessoais ainda sem explodir, de origem italiana, belga, estadunidense e israelense.

A Rasd é uma espécie de governo no exílio: controla o território cedido pela Argélia para a instalação dos refugiados e o território liberado durante a guerra contra o Marrocos No mesmo galpão, o guia do museu nos leva até uma maquete onde estão representados os cinco enormes muros construídos pela monarquia marroquina ao longo da década de 1980 para impedir a passagem dos combatentes da Frente Polisario à parte ocidental do país. Segundo ele, as construções foram idealizadas por Israel e erguidas em seis anos. Feitos de terra e pedra, eles são vigiados por 180 mil soldados marroquinos, divididos em tropas estáticas e de intervenção. São auxiliados por radares, tanques de guerra e cinco milhões de minas terrestres colocadas a sua frente – desde o cessar-fogo, quatro milhões já foram retiradas pela organização Land Mine Action, em parceria com a Frente Polisario. Mais impressionante do que ver a maquete do muro é observá-lo “ao vivo”. Saindo de Rabouni, pelo meio do deserto de Hamada, o trajeto até a parte mais ao leste do muro mais oriental – o maior deles, com 2.400 quilômetros de extensão – leva cerca de uma hora. O jipe chega a no máximo 100 metros de distância, o suficiente para despertar a atenção dos soldados marroquinos, que

surgem sobre a construção de cerca de quatro metros de altura. O motorista queima a embreagem para provocá-los. Mais militares surgem do nada. Durante os aproximadamente seis quilômetros que percorremos, pudemos constatar a presença de seis bases, uma média de uma a cada quilômetro de muro. Estima-se que o Marrocos gaste, diariamente, 4 milhões de dólares com ele. Volta às armas? Do lado saaraui, nos territórios liberados, sete regiões militares “vigiam” a edificação. Ao todo, segundo números da Rasd, são 80 mil soldados preparados para um eventual retorno da guerra. A principal região é Tifariti, onde se costuma comemorar o aniversário da proclamação da República Saaraui. Dos campos de refugiados do sudoeste da Argélia, leva-se cerca de sete horas de uma exaustiva viagem pelo deserto. Aos poucos, a dura – porém bonita – paisagem do Hamada vai dando lugar a um ambiente menos hostil. A terra fica mais avermelhada, e árvores maiores e mais frondosas aparecem com mais frequência.

A Frente Polisario tampouco estava sozinha. Foi apoiada por alguns países africanos, principalmente, a Argélia. De Cuba, recebeu ajuda em saúde e educação Após algumas horas de trajeto, uma visão no mínimo surreal. Depois de quilômetros de paisagem sem casas ou pessoas, surge uma espécie de entreposto, repleto de carcaças de carros, ônibus e contâineres enferrujados. Funciona como uma espécie de estação de conveniência, com tanques de gasolina e pequenas vendinhas. O comboio de militantes estrangeiros pró-Saara e jornalistas chega em Tifa-

Estrada rumo ao infinito: um povo isolado pelo deserto

riti ao cair da noite. O clima é de festa, embora a sensação seja a de se estar chegando a um campo de guerra, com suas tendas militares e homens jovens de coturnos e uniformes militares caminhando de um lado para o outro. É na manhã seguinte, como em todo 27 de fevereiro, que ocorre a celebração militar oficial da proclamação da Rasd. É no meio do deserto que milhares de pessoas assistem e aplaudem efusivamente ao desfile dos diversos pelotões das sete regiões militares saarauis.

“Os jovens dizem: ‘é melhor morrer lutando do que de medo, ajoelhado’ Eles querem lutar para defender sua pátria, seu povo, que vive mal-tratado, sem direitos” Famílias inteiras empunham a bandeira do país, e homens mais velhos vestidos com a roupa tradicional saaraui e usando turbantes desfilam sobre enormes camelos, que correm, levantando a poeira. Os saarauis sabem fazer festa. Mas, se necessário, estão prontos para a guerra. Que o digam os jovens, os mais impacientes com a espera de 20 anos por uma solução pacífica para a ocupação marroquina do Saara Ocidental. “Os jovens dizem: ‘é melhor morrer lutando do que de medo, ajoelhado’ Eles querem lutar para defender sua pátria, seu povo, que vive mal-tratado, sem direitos”, alerta Saleh Habub. Em novembro do ano passado, após o Marrocos ter desmantelado com extrema violência – deixando mortos, presos e desaparecidos – um acampamento saaraui que reivindicava melhores condições de vida em El Aaiún, no território ocupado, centenas de jovens dos campos de refugiados foram até a sede da presidência da Rasd em Rabouni para pedir que a Frente Polisario considerasse a opção da volta às armas. Autoridade saarauis dizem entender a angústia dos jovens e lembram que no próximo congresso da frente, no fim deste ano, esse será o principal tema em debate. Se a situação não avançar até lá, o retorno das hostilidades é uma hipótese bastante plausível. “É uma vergonha. Não se pode esperar mais. Não é que não conseguimos resistir. O problema é: até quando? Se você me diz que daqui a 20 anos haverá uma solução, eu espero. Mas sem data, até o infinito, não dá. A solução é a guerra, é morrer, mas morrer por uma causa, pela dignidade do povo saaraui”, desabafa o artista plástico Saleh Brahim Mohamed. (Colaborou Tatiana Merlino). Na próxima edição, a dura vida dos saarauis nos territórios ocupados e a história de Mohamed Mohud, fotógrafo de guerra da Frente Polisario


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.