Edição 428 - de 12 a 18 de maio de 2011

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Reprodução

Pilar Oliva

Cultura Afro

A festa dos arturos de MG

Pág. 8

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Circulação Nacional Ano 9 • Número 428

R$ 2,80

São Paulo, de 12 a 18 de maio de 2011

www.brasildefato.com.br Pete Souza/White House

EUA, a “Justiça” do mundo A ação estadunidense que resultou no assassinato de Osama Bin Laden tem sido alvo de duras críticas internacionais. Segundo analistas, o governo de Barack Obama cometeu graves erros sob o ponto de vista das leis internacionais. De acordo com o juiz de direito Marcelo Semer, o presidente dos EUA acabou por legitimar inúmeros preceitos da doutrina Bush da “guerra ao terror” que antes criticava. Págs. 2 e 9

União homoafetiva: agora faltam as leis Pág. Pág. 55

Honduras, um país à venda Pág. Pág.11 11

Combustíveis, o motor da inflação? Pág. Pág.44 ISSN 1978-5134

João Brant

Guilherme C. Delgado

Igor Fuser

Globo, a dona da bola

O pacto do agronegócio

Primavera palestina

Acabou como esperado o episódio da negociação das emissoras de televisão com os clubes pelos direitos de transmissão do campeonatos brasileiros de futebol de 2012 e 2013. A Globo se deu bem. Pág. 3

A principal discussão do Código Florestal é o controle público-privado do território, onde os direitos de propriedade fundiária não podem ignorar o caráter social e público dos recursos naturais. Pág. 3

A “primavera árabe” foi recebida no mundo inteiro com um forte sentimento de entusiasmo, despertado pela queda dos ditadores na Tunísia e no Egito e pelas gigantescas manifestações por democracia. Pág. 3


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de 12 a 18 de maio de 2011

editorial

A morte de Bin Laden a mando do Prêmio Nobel da Paz APÓS DEZ ANOS de procura, Osama Bin Laden, líder da rede Al Qaeda, finalmente foi assassinado pelo governo estadunidense. Encontrado numa mansão a 70 km da capital paquistanesa, foi executado com um tiro na cabeça por uma tropa de elite do exército dos EUA, treinada para promover ações encobertas em qualquer parte do planeta. Restava, para concluir a missão, livrar-se do corpo. Jogá-lo em alto-mar, de um helicóptero, na tentativa de desaparecer com os vestígios do cadáver, repetiu a prática dos militares da ditadura Argentina, na década de 1970. Todo o acontecimento ainda está cercado de dúvidas, afirmações que são desmentidas imediatamente e questões que certamente ficarão sem respostas por muito tempo. O próprio governo dos EUA não hesitou em mentir, vergonhosamente, ao transmitir as primeiras informações sobre o assassinato. Não há nenhuma defesa a Bin Laden ao se questionar e se indignar com o seu assassinato. Identificado como responsável por inúmeras ações que causaram a morte de milhares de civis, ele deveria ir a julgamento e, caso condenado, pagar pelos seus atos. Certamente, num processo de julgamento seriam identificados outros parceiros, financiado-

res e mandantes das ações criminosas. Todos merecedores de acompanhá-lo no banco dos réus. Por isso, era conveniente assassiná-lo, não prendê-lo. O jornalista inglês Robert Fisk lembra que o mesmo aconteceu com Saddam Hussein: foi enforcado antes que tivesse oportunidade de falar sobre os componentes do gás fornecido pelos EUA e usado contra os curdos ou sobre a ajuda militar que recebeu de Washington quando invadiu o Irã em 1980. Não faltaram os aplausos de inúmeros governos à ação militar ordenada por Barack Obama. Desse modo, foram coniventes com a prática da tortura para obter informações, como fizeram e reconheceram autoridades estadunidenses. Ignoraram a violação da soberania nacional do Paquistão, caso se confirme que a ação militar foi feita sem o conhecimento daquele país. Deram respaldo para que os EUA enviem uma tropa de elite para qualquer país para assassinar pessoas que julgam serem suas inimigas. Jogaram na lata do lixo o princípio de justiça que exige um processo legal, um tribunal, uma audiência, um defensor, um julgamento para condenar ou inocentar qualquer ser humano. É trágico como a maioria

A principal causa das guerras e mortes de civis permanece: a insaciável ganância de acumular riqueza e poder

bardeia o território líbio. Mesmo depois de Bin Laden ter sido sepultado no mar, centenas de civis continuam sendo mortos, não por serem islâmicos, e sim porque moram nos territórios ricos em reservas petrolíferas. A euforia do assassinato propagada pelo governo Obama e a conivência da mídia ocidental esconderam da opinião pública que Bin Laden foi um “inimigo”, no mínimo, conveniente para o imperialismo estadunidense. No Afeganistão, foi o principal aliado do EUA contra a ocupação da URSS àquele país. Após o fim da URSS e, consequentemente, o desaparecimento do medo do comunismo, o terrorismo de Bin Laden assumiu o papel de inimigo número 1 da pax americana. Os atentados de 11 de setembro de 2001 serviram para que o governo de George W. Bush instituísse a “guerra global contra o terror”, declarasse guerra e ocupasse o Iraque e o Afeganistão e, posteriormente, internalizasse esse conflito no território paquistanês. Uma estratégia que lhe assegurou o controle sobre as reservas de petróleo e dos oleodutos desses países e lhe permitiu instalar bases militares próximas a países como China, Irã e Rússia. Guerras que deram à indústria bélica dos EUA lucros fabulosos e que amenizaram os efei-

dos governos se comporta como vassalos frente aos interesses dos EUA. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, chegou a afirmar que Bin Laden foi o iniciador de uma ideologia do ódio e causador de milhares de vítimas em todo o mundo, principalmente nos países islâmicos. Sarkozy é o mesmo presidente que lidera uma coalizão de países ocidentais que diariamente bom-

tos da crise econômica instalada naquele país. Um inimigo tão conveniente que a própria secretaria de Estado dos EUA, Hillary Clinton, reconheceu, em memorando, que a Arábia Saudita – um dos principais aliados do seu país no Oriente Médio – garantia o apoio financeiro essencial à Al Qaeda. Da mesma forma, não deixa de ser instigante que o Paquistão, aliado dos EUA na guerra contra o Afeganistão, abrigou Bin Laden por seis anos, sem que em nenhum momento fosse ameaçado pelo exército e pelo serviço secreto de inteligência da maior potência militar do planeta. Primeiro, não era conveniente prendê-lo porque servia aos interesses do império. Depois, esgotada sua serventia, tornou-se inconveniente sua prisão pelo que sabia e poderia revelar. Morto, ainda serviu para elevar os índices de aprovação do governo do Prêmio Nobel da Paz, Barack Obama, visando a reeleição em 2012. Enquanto continuarem as políticas imperialistas das grandes potências capitalistas, de pouco adiantará ter jogado o cadáver de Bin Laden no fundo do mar. A principal causa das guerras e mortes de civis permanece: a insaciável ganância de acumular riqueza e poder.

opinião Frei Betto

artigo

Brasil à venda. E há quem compre

Jerônimo vive!

Mário Maestri

Reprodução

QUEM COSTUMA ir à feira, ao mercado ou ao supermercado para comprar alimentos sabe muito bem que eles têm subido de preços. A inflação começa a ficar fora de controle. O governo Dilma está consciente de que este é o seu calcanhar de Aquiles. Os juros tendem a subir e a União anunciou um corte de R$ 50 bilhões no orçamento federal. (Espero que programas sociais, Saúde e Educação escapem da tesoura). Tudo para impedir que o dragão desperte e abocanhe o pouco que o brasileiro ganhou a mais de renda nos oito anos de governo Lula. Lá fora, há uma crise financeira, uma hemorragia especulativa difícil de estancar. Grécia, Irlanda e Portugal andam de pires nas mãos. Na Europa, apenas a Alemanha tem crescimento significativo. Nos EUA, o índice de crescimento é pífio, três vezes inferior ao do Brasil. Por que a alta do preço dos alimentos? Devido à crise financeira, os especuladores preferem, agora, aplicar seu dinheiro em algo mais seguro que papéis voláteis. Assim, investem em compra de terras. Outro fator de alta dos preços dos alimentos é a expansão do agrocombustível. Mais terras para plantar vegetais que resultam em etanol, menos áreas para cultivar o que necessitamos no prato. Produzem-se alimentos para quem pode comprá-los, e não para quem tem fome (é a lógica perversa do capitalismo). Agora se planta também o que serve para abastecer carros. O petróleo já não é tão abundante como outrora. Nas grandes extensões latifundiárias adota-se a monocultura. Plantam-se soja, trigo, milho... para exportar. O Brasil tem, hoje, o maior rebanho do mundo e, no entanto, a carne virou artigo de luxo. Soma-se a isso o aumento dos preços dos fertilizantes e dos combustíveis, e a demanda por alimento na superpopulosa Ásia. Mais procura significa oferta mais cara. A China desbancou os EUA como principal parceiro comercial do Brasil. Soma-se a essa conjuntura a desnacionalização do território brasileiro. Já não se pode comprar um país, como no período colonial. Ou melhor, pode, desde que de baixo para cima, pedaço a pedaço de suas terras. Há décadas o Congresso está para estabelecer limites à compra de terras por estrangeiros. Enquanto nossos deputados e senadores engavetam projetos, o Brasil vai sendo literalmente comido pelo solo. Em 2010, a NAI Commercial Properties, transnacional do ramo imobiliário presente em 55 países, adquiriu no Brasil, para estrangeiros, 30 fazendas nos estados de GO, MT, SP, PR, BA e TO. Ao todo, 96 mil hectares! Muitas compradas por fundos de investimentos sediados fora do nosso país, como duas fazendas de Pedro Afonso, no Tocantins, somando 40 mil hectares, adquiridas por R$ 240 milhões. Pagou-se R$ 6 por hec-

TALVEZ SE DEVEU à pele escura de ambos ou a terem feito a cavalaria yankee de bobo por longos anos. O certo é que o codinome dado a Bin Laden, quando da operação para assassiná-lo, terminou prestando-lhe uma enorme homenagem - além de registrar o racismo da administração de Barack Hussein Obama II. Em 1851, Goyaalé, Jerônimo, teve sua família massacrada pelo exército estadunidense. A seguir, por vinte anos, protagonizou resistência heróica, criativa e legendária à ocupação das terras apaches. Em 1886, após render-se com os poucos e últimos seguidores, viveu o resto da vida como semi-prisioneiro, ditando a um funcionário estadunidense um fulgurante relato de sua vida. Osama bin Mohammed bin Awad bin Laden foi filho de uma das mais ricas famílias sauditas. Integralista fervoroso, partiu em jihad contra a revolução socialista, laica e democrática afegã, no que foi apoiado pelos Estados Unidos. A vitória das forças integralistas sustidas pela Arábia Saudita, pelo Paquistão e sobretudo pelos grandes estados imperialistas originou a reinado talibã na região. Sobretudo desde os anos 1950, o fundamentalismo foi apoiado pelo grande capital mundial, com destaque para a Inglaterra e os Estados Unidos, na luta contra o pan-nacionalismo e o socialismo árabe. A partir de 1989, com a dissolução da URSS e reconversão capitalista dos Estados socialistas, o integralismo acolheu fortemente os anseios confusos de libertação nacional e social de vastas populações muçulmanas.

Devido à crise financeira, os especuladores preferem, agora, aplicar seu dinheiro em algo mais seguro que papéis voláteis. Assim, investem em compra de terras tare. Hoje, um hectare no estado de São Paulo vale de R$ 30 mil a R$ 40 mil. É mais negócio aplicar em terras que em ações da Bolsa. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ano passado cerca de US$ 14 bilhões foram destinados, no mundo, a compras de terras para a agricultura. As brasileiras constaram do pacote. Estima-se que a NAI detenha no Brasil mais de 20% das áreas de commodities para a exportação. O escritório da NAI no Brasil conta com cerca de 200 fundos de investimen-

tos cadastrados, todos na fila para comprar terras brasileiras e destiná-las à produção agrícola. O alimento é, hoje, a mais sofisticada arma de guerra. A maioria dos países gasta de 60 a 70% de seu orçamento na compra de alimentos. Não é à toa que grandes empresas alimentícias investem pesado na formação de oligopólios, culminando com as sementes transgênicas que tornam a lavoura dependente de duas ou três grandes empresas transnacionais. O governo Lula falou muito em soberania alimentar. O de Dilma adota como lema “Brasil: país rico é país sem pobreza”. Para tornar reais tais anseios é preciso tomar medidas mais drásticas do que apertar o cinto das contas públicas. Sem evitar a desnacionalização de nosso território (e, portanto, de nossa agricultura), promover a reforma agrária, priorizar a agricultura familiar e combater com rigor o desmatamento e o trabalho escravo, o Brasil parecerá despensa de fazenda colonial: o povo faminto na senzala, enquanto, lá fora, a Casa Grande se farta à mesa às nossas custas. Frei Betto é escritor, autor de Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca (José Olympio), entre outros livros.

Jerônimo, o verdadeiro, dormia com o fuzil ao lado e jamais foi surpreendido. Mesmo na derrota, mostrou-se o mais digno braço armado do povo apache na luta contra os seus algozes Com o fim da primeira guerra do Afeganistão, Bin Laden envolveu-se com grupos que se esforçavam para ocupar o vazio político-ideológico árabe e muçulmano, propondo ordem assentada no integralismo. Estranhos e refratários a qualquer visão social de mundo, esses grupos orientaram-se para a luta terrorista, despreocupados, opostos e incapazes de impulsionar a organização popular, sobretudo independente. Ao financiar os ataques às embaixadas dos EUA na África, em 1998; a navio de guerra estadunidense, em 2000, e, sobretudo, ao reivindicar politicamente o ataque às Torres Gêmeas, em 2001, Bin Laden tornou-se o mais célebre terrorista e a grande justificativa imperialista para a “guerra ao terror” que impulsionaria a apropriação das grandes reservas petrolíferas. Em 2003, fortalecido junto à população estadunidense pelo ataque terrorista, Bush II lançou seus exércitos na carnificina que conquistaria os campos petrolíferos iraquianos. Após o 11 de setembro de 2001, consagrados pela grande mídia, Bin Laden e sua organização entrariam em crescente eclipse que levaria ao seu assassinato, em mansão fortificada, em 1º de maio, nas proximidades de Abbottabad, praticamente desarmado, cercado quase apenas por familiares. Sobrevivia então devido à quase certa proteção do exército e dos serviços de inteligência paquistaneses. Portanto, uma confusão ofensiva. Jerônimo, o verdadeiro, dormia com o fuzil ao lado e jamais foi surpreendido. Mesmo na derrota, mostrou-se o mais digno braço armado do povo apache na luta contra os seus algozes. Mário Maestri é professor do Curso e do Programa de Pós-graduação em História da UPF.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda • Subeditores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Guilherme C. Delgado

instantâneo

O pacto do agronegócio

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UMA CONSEQUÊNCIA indireta da articulação ruralistaparlamentar para afrouxamento na legislação ambiental florestal é um tácito relançamento da questão agrária ao debate público dos grandes meios de comunicação, mesmo que os publicistas que tratam desses problemas não se deem conta. Na verdade o que está em jogo na discussão do Código Florestal é o controle público- privado do território, onde os direitos de propriedade fundiária não podem ignorar o caráter social e público dos recursos naturais que integram continuamente esse território. Por seu turno, ao reduzir em geral as áreas de mata ciliar (no entorno dos rios) e dispensar as propriedades com até quatro módulos rurais das chamadas Áreas de Preservação Permanente (topos e encostas de morros e mata ciliar), ao mesmo tempo em que propõe forte descentralização estadual e municipal para cuidar de biomas nacionais – Amazonia, Cerrados, Caatinga, Pantanal etc (ou plurinacionais), o Relatório de Aldo Rebelo conseguiu a proeza desunir partes e peças do agronegócio, até bem pouco coesas e omissas na política agrária da função social da propriedade rural. A Embrapa por intermédio de suas unidades de meio ambiente subsidiou fortemente a SBPC e a Academia Brasileira de Ciências, alertando e contestando as pretensões do Relatório de Rebelo, fazendo inclusive previsões nada lisonjeiras sobre a perda de biodiversidade e as consequências desastrosas sobre hidrologia e aumento do efeito estufa, das ações propostas pelos ruralistas. A própria mídia televisiva, à frente a Rede Globo de Televisão, deu destaque e cobertura jornalística informativa profissional às questões levantadas pelo Relatório Rebelo, algo que já vinha sendo feito pela grande mídia impressa, permitindo aos telespectadores e leitores formar juízos sobre ação pública em curso na esfera parlamentar.

Igor Fuser

Primavera palestina A “PRIMAVERA ÁRABE” foi recebida no mundo inteiro com um forte sentimento de entusiasmo, despertado pela queda dos ditadores na Tunísia e no Egito e pelas gigantescas manifestações por democracia e justiça em todo o Oriente Médio. No momento seguinte, muitos dos que aplaudiam aquelas rebeliões populares se viram perplexos em face do complicado cenário político da região. De fato, para quem pensa e age a partir de valores socialistas, é difícil adotar alguma atitude diante de situações como o conflito na Líbia, em que um levante contra a tirania de Kadafi abriu espaço para uma intervenção militar imperialista. Ainda assim, o vendaval de rebeldia que sopra no mundo árabe continua a produzir bons frutos. O mais recente deles acaba de brotar na Palestina, com a reconciliação entre os grupos políticos Al Fatah e Hamas e, em seguida, a decisão do governo provisório do Egito de abrir sua fronteira com a Faixa de Gaza, fechada há quatro anos. O acordo entre as duas facções se deve, em grande parte, à pressão do próprio povo palestino, mas tem a ver também com o enfraquecimento da posição inter-

nacional de Israel. A queda de Mubarak privou os sionistas do seu maior aliado na região, ao mesmo tempo em que deixou em apuros os governos conservadores árabes, sempre coniventes com os abusos de Israel. Se quiserem ficar no poder, esses dirigentes serão obrigados a levar em conta os anseios dos seus povos, intensamente pró-palestinos. Tudo isso reduz bastante a margem de manobra de Israel. É difícil imaginar, agora, a repetição de agressões na mesma escala da genocida ação militar israelense na Faixa de Gaza, em 2009, que deixou o trágico saldo de 1.400 mortos, na imensa maioria civis. Neste cenário, mais favorável à luta pela libertação da Palestina, a solidariedade internacional pode fazer uma enorme diferença. Ganham importância iniciativas como a campanha Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), para a qual o Brasil teria muito a contribuir. A brutal ocupação da Palestina é uma injustiça gritante, uma indignidade que provoca revolta em qualquer pessoa decente. É hora, mais do que nunca, de pressionar a diplomacia de Brasília a adotar posições mais assertivas em favor da causa palestina.

João Brant

Globo, a dona da bola ACABOU COMO ESPERADO o episódio da negociação das emissoras de TV com os clubes pelos direitos de transmissão do campeonatos brasileiros de futebol de 2012 e 2013 – a Globo se deu bem. Foi como um filme de Hollywood: você não sabe bem o que vai acontecer no meio do caminho, mas o final é bem previsível. A trama começou no ano passado, quando o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) exigiu que fosse extinta a cláusula que dava à Globo a preferência na renovação dos contratos com o Clube dos 13 para transmissão do campeonato. A tentativa era de impor condições iguais para a concorrência. Mas como a Globo não gosta de capitalismo concorrencial, pôs a bola embaixo do braço e se recusou a participar da licitação. Ela sabia que, com o poder de mercado que tem, poderia resolver tudo sozinha. E foi o que aconteceu. Não adiantou a RedeTV! ter ganho a licitação feita pelo Clube dos 13 com uma oferta de R$ 1,5 bi, porque a Globo ignorou e negociou individualmente com os clubes. O episódio mostra que o problema é maior do que o Cade havia detectado. O mercado de TV, pelas suas ca-

racterísticas específicas, tem uma tendência à concentração muito maior que outros setores da economia. Neste caso, isso fica evidente se você pensar que não faz nenhum sentido que os clubes assinem cada um com uma emissora. Nesse tipo de negociação, o vencedor leva tudo. Essa estrutura faz com que haja uma tendência permanente de aumento da concentração. Sem regras específicas, a empresa líder fica cada vez mais líder. Por isso é que vários países europeus estabeleceram leis para diminuir esse efeito nocivo. Em alguns deles, os pacotes são quebrados, com jogos de meio de semana sendo transmitidos por uma emissora e jogos de final de semana em outra. Outros dividiram a venda dos pacotes de TV aberta e TV paga. O problema no Brasil é que enquanto a Globo for a emissora com maior alcance e líder de audiência, ela sempre vai conseguir oferecer as melhores condições aos clubes. E isso faz com que eles dependam mais da emissora do que o contrário. Enquanto não for feito nada, os finais desses filmes seguirão sendo bastante previsíveis.

Infelizmente o que não está em discussão é a frouxidão das políticas fundiária e ambiental de cumprir e fazer cumprir as regras de direito agrário e ambiental Ora, com o tratamento democrático da informação, num campo em que se lida com interesses classistas muito arraigados – o do agronegócio – produziu-se um curioso processo de formação de opinião pública, que de certa forma ameaça a estratégia ruralista original, que é de eliminar qualquer restrição social e ambiental aos direitos privados absolutos. O governo federal, que até o presente se manteve na sombra, tem ou teria uma oportunidade de ouro para alterar as bases de sua aliança conservadora com os ruralistas, não estivesse ele próprio envolvido nas tratativas da “reforma” do Código Florestal, urdidas no governo Lula, sob a égide do então Ministro da Agricultura, Reynold Stephanes. O que está ficando cada vez mais claro é uma pequena fratura no pacto do agronegócio, no qual a questão ambiental, seja por pressão urbana, oriunda da intuição dos riscos climáticos associados, seja pela legítima pressão externa, ligada aos impactos do efeito estufa, estariam recolocando na agenda política os novos componentes da velha questão agrária. Mas não tenhamos ilusões com a elite do poder, incluindo os novos sócios, agregados no último decênio. Não está em pauta reverter a aliança das cadeias agroindustriais, grandes proprietários fundiários e o Estado brasileiro para exportar commodities a qualquer custo, que é em essência a estratégia do agronegócio brasileiro. Mas talvez não se deixar engolir pelas extravagâncias deste pacto conservador. De qualquer forma é muito didática a discussão do Código Florestal ora em curso, porque ela trata indiretamente mas essencialmente dos direitos de propriedade fundiária, aflorando até mesmo um conceito praticamente em desuso – o do minifúndio, que é utilizado pelos ruralistas como argumento para isenção de pequenos imóveis rurais de cumprir a exigência de Áreas de Preservação Permanente (APPs), tese inteiramente resolvida há 55 anos no Estatuto da Terra. Infelizmente o que não está em discussão é a absoluta frouxidão das políticas fundiária e ambiental de cumprir e fazer cumprir as regras de direito agrário e ambiental, que são ponto de partida para se conviver civilizadamente no presente e muito mais ainda no futuro. Mesmo assim, o Relatório Rebelo pretende afrouxar ainda mais, aplicando provavelmente a estratégia de “por e tirar o bode da sala principal” Guilherme C. Delgado escreve uma vez por mês neste espaço.

comentários do leitor União homossexual estável

A decisão do STF de reconhecer a união homossexual estável foi uma vitoria digna de milhões de brasileiros e brasileiras. Sabemos bem que os conservadores têm cara e classe social, assim como querem manter seu status. Tudo o que venha ameaçá-los é repudiado, porém, eles não sabem que deveriam repudiar seus pré-conceitos, pois o povo não teme mais seus governantes e muito menos um grupo que se fundamenta em elemento abstrato para lucrar, alienando e reprimindo seres humanos. Deixem o amor viver em paz, chega de cercas. Vamos à luta.

Agnaldo Cordeiro, na Agência Brasil de Fato

Espiritualidade

Gostei de Frei Beto ter citado Guimarães Rosa, que mostra todo o sofrimento do ser humano de forma leve, espiritualizada e espirituosa (“Espiritualidade pós-moderna”, edição 426). Seria bom se cada um de

nós fôssemos mais assertivos e nos ativéssemos aos fatos e não ao julgamento. Cada um é o que é neste mundão nosso. Precisamos de tantas coisas e tantas bençãos que não faz mal nenhum rezar algumas avesmarias por dia pedindo seja lá o que for. Quanto mais culparmos o outro de todas as injustiças sociais, mais nos distanciaremos das soluções. Quanto mais agressão, maior estagnação. Gosto do lema do Projeto Desenrola Brasil: “O Brasil que você quer precisa da sua ajuda”.

Camila Mattoso Violani, por correio eletrônico

Privatização dos aeroportos

Gozado, esses caras que se consideram grandes empreendedores, em vez de investirem o dinheiro deles (não do BNDES) em áreas produtivas, querem “investir” em áreas de prestação de serviços onde foi colocado um bocado de dinheiro público, e aí, eles vem para mamar (“Voo raso, entre a pressa e a privatização”, edição 425). Muito espertos eles, não? O mesmo que fi-

zeram nas rodovias de São Paulo querem fazer nos aeroportos: o Estado (governo) coloca toda a infraestrutura e depois vem um espertalhão usufruir e tirar benefícios particulares.

Enio José, na Agência Brasil de Fato

Vale e prostituição

Quer dizer que a culpa da prostituição infantil é da mineradora Vale (“Efeitos nefastos da mineração”, edição 425)? Não há relação entre um e outro. A prostituição infantil está espalhada em todo território, não é privilégio de Bom Jesus das Selvas. O problema é a “aceitação” da sociedade e a conivência das autoridades. O melhor controle é o social, porém, o brasileiro, inerte, assiste a tudo e nada faz. Melhorem o título da matéria, pois é enganador. E o fato das meninas estarem se prostituindo não é culpa da Vale, mas sim do caos que está se tornando o Brasil.

Ronner Luís Pinheiro Maciel, na Agência Brasil de Fato

Vale e prostituição – 2

O amigo Ronner Luís Pinheiro Maciel não conhece os valores éticos, humanos e morais de empresas como a Vale, e parece acreditar que ela não tem nada a ver com o caos brasileiro, assim como outras empresas, políticos e cidadãos mal-informados ou intencionados. A Vale não promove a prostituição infantil, mas muitos empreendimentos dela criam situações que agridem o social. Muitos dos políticos que ela apoia financeiramente nas respectivas campanhas eleitorais não fazem nada para mudar essa realidade, contribuindo, dessa forma, para os lucros dos acionistas da empresa e para a propaganda parcial, e, portanto, mentirosa, que ela veicula no horário nobre da TV.

Gustavo T. Gazzinelli, na Agência Brasil de Fato

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br


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brasil

Gasolina ameaça acelerar inflação ECONOMIA Mercado internacional pressiona para aumento do preço de combustíveis, mas governo federal promete evitá-lo Leandro Uchoas do Rio de Janeiro (RJ) UM FANTASMA supostamente voltou a assombrar o governo federal: a inflação. Como tem sido usual, há mais de uma década, o comportamento dos “analistas” oficiais, fartos na mídia corporativa, se repete. Alimentam o terrorismo financeiro, com o objetivo de forçar o governo a elevar a taxa de juros e tomar outras medidas conservadoras. Nesses períodos de alta inflacionária, uma commodity destaca-se pelo protagonismo que sempre teve na elevação de preços: o petróleo. Por gerar mais de 80 mil produtos, o mineral, quando encarece, naturalmente alavanca toda a economia. Principalmente por resultar numa natural elevação no valor dos combustíveis, com consequência no crescimento do preço do transporte de qualquer produto. O governo federal tem dado garantias de que quer evitar, ao máximo, o crescimento da cobrança nas bombas. O ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, disse que a intenção é resistir a um aumento dos combustíveis “até não aguentar mais”. As pressões do mercado internacional para a alta são intensas, mas a ordem é utilizar todos os mecanismos de contenção dos preços que estiverem à mão. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, reconheceu que as cotações internacionais tensionam para o aumento dos preços de combustíveis. Ele disse que, mesmo se a Petrobras for obrigada a elevar os valores, o governo vai reduzir o valor da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) – imposto embutido na cobrança dos combustíveis, para que a elevação não chegue ao consumidor final.

Nesses períodos de alta inflacionária, uma commodity destaca-se pelo protagonismo que sempre teve na elevação de preços: o petróleo Mantega considera que o valor final, nas bombas, subiu ligeiramente, devido ao aumento do preço do etanol. Isso porque a gasolina vendida no Brasil tem de 20% a 25% do produto, na mistura final. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) havia divulgado informações de que o preço da gasolina na bomba subiu, em média, 2,05% na última semana. O litro de gasolina apresentou seu maior avanço em abril, desde setembro de 2005, para R$ 2,825 (6,16% no último mês). Durante a semana, o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Esalq/USP, divulgou a diminuição do preço do etanol utilizado, o anidro, nas usinas paulistas, pela primeira vez após 13 semanas de alta. Entressafra do álcool

No dia 9 de maio, Lobão passou a defender que o preço da gasolina tende a cair. Ele considera que as pressões do mercado internacional vão ceder, e que o problema da entressafra de cana-deaçúcar – que alavancou o preço do álcool – será solucionado. “Precisamos agora elevar drasticamente a produção para que, com o excesso de oferta, se possa ter a redução do preço”, disse, em sessão solene realizada na Câmara dos Deputa-

ABr

dos. Lobão também admitiu que em alguns estados há cartel nos postos de gasolina, e que vai recorrer ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para combatê-lo. O Cade é uma autarquia ligada ao Ministério da Justiça responsável pela regulação da concorrência no país.

O governo federal tem dado garantias de que quer evitar, ao máximo, o crescimento da cobrança nas bombas De fato, a expectativa é a de que, com o início de nova safra da cana-de-açúcar, o preço do etanol diminua, e os donos de carros flex voltem a utilizar álcool. Lobão já havia declarado, durante a semana, que enxerga uma leve queda no preço internacional do petróleo. Ele afirma que a presidenta Dilma Rousseff pretende segurar o valor dos combustíveis no mercado doméstico. No dia 2 de maio, Lobão e Dilma reuniram-se no Palácio da Alvorada para tratar do assunto. Na ocasião, também foi abordada a provável prorrogação do Luz Para Todos, programa que visa universalizar o acesso à energia elétrica. Numa outra vertente, a Petrobras anunciou que vai importar cerca de 1 milhão de barris de gasolina ainda em maio. O objetivo seria reforçar os estoques de combustível. No mês passado, a empresa já havia adquirido 1,5 milhão, aproximadamente. Para fins de comparação, em todo o ano de 2010, foram importados 3 milhões. O diretor de abastecimento e refino, Paulo Roberto Costa, que divulgou as informações, garantiu que não há risco de desabastecimento no país. A produção atual de gasolina nas refinarias do Brasil ficaria, segundo ele, entre 380 mil e 480 mil barris por dia. No primeiro trimestre do ano, o consumo teria subido 4,5%. O levantamento da ANP revelou, ainda, outros dados. Na média nacional, o preço do combustível, que era de R$ 2,832 na semana entre 1º e 8 de maio, passou para R$ 2,890. O álcool seguiu movimento inverso, num fluxo de recuo, nos últimos 15 dias.

Governo promete impedir que aumento chegue ao consumidor final

A hora da energia eólica Capacidade instalada deverá aumentar quase 500%, de 900 megawatts para 5,25 gigawatts do Rio de Janeiro (RJ)

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, reconheceu que as cotações internacionais tensionam para o aumento dos preços de combustíveis

A tragédia japonesa recente, em Fukushima, pode ter resultados “positivos”. Afetada pelo terremoto seguido de tsunami, a usina nuclear da cidade provocou grande contaminação na região. Gerou, por consequência, um debate mundial sobre as formas tradicionais de produção energética. O Brasil, país de grande riqueza em possibilidades de geração, já planejava erguer quatro usinas nucleares, projetos momentaneamente parados. Considerada uma das fontes mais limpas, a energia eólica tem tudo para ganhar grande estímulo no Brasil. Os cálculos são de que passe dos atuais 0,5% para 4,3% do sistema elétrico brasileiro. A capacidade instalada deve subir de 900 megawatts para 5,25 gigawatts – quase 500%. A crise na Europa e nos EUA alimentou esse processo. Os fabricantes de aerogeradores passaram a visar o Brasil, estimulados pela valorização do real, que torna mais baratos os investimentos em dólar. O montante de recursos a ser aplicado é da ordem de R$ 16 bilhões. Nos

O valor médio, segundo os dados, seria agora de R$ 2,325 – queda de 0,56% na semana. Entretanto, como ele corresponde a apenas uma porcentagem da gasolina, a trajetória do preço do combustível continua em ameaça de elevação. Principalmente levando em consideração que os donos de carros flex têm preferido abastecer com gasolina desde que o preço do álcool apresentou contínuo crescimento, há alguns meses. Após oito semanas de alta, a previsão de inflação – Índice Nacional de Preços do Consumidor Amplo (IPCA) – caiu de 6,37% a 6,33%, em 2011.

próximos dois anos, 141 novos empreendimentos já estavam previstos para serem instalados no país, contratados pelo governo federal. Em operação, atualmente, já existem 44 parques eólicos em diferentes estados brasileiros. O setor também reivindica um centro de pesquisa e tecnologia, e um campo de testes para aerogeradores.

Tanto a franco-suíça Alstom quanto a estadunidense General Eletric anunciaram investimentos no Brasil Tanto a franco-suíça Alstom quanto a estadunidense General Eletric anunciaram investimentos no Brasil. O aumento previsto para a geração de energia eólica ainda é pequeno, se comparado com o que o país gera em termoelétricas. Entretanto, tem sido considerado um avanço, uma vez que a energia eólica ainda é interpretada como uma fonte cara para a quantidade de eletricidade que produz. A dependência que os moinhos têm da intensidade dos ventos também é vista como um problema. Nos últimos cinco anos, os parques eólicos entregaram menos de 80% da energia com que se comprometeram, em leilões de que participaram. (LU)

Espetáculo em dose tripla Ibase lança site de monitoramento do setor do petróleo, junto a palestra de Gudynas e curta sobre Tkcsa do Rio de Janeiro (RJ) O lançamento do site Observatório do Pré-sal, no Rio de Janeiro, pelo Instituto Brasileiro de Análise Social e Econômica (Ibase), terminou marcado pela riqueza das duas atividades correlatas. Além da apresentação dos recursos do site, uma palestra de Eduardo Gudynas, e o lançamento do curta-documentário “Desenvolvimento a Ferro e Fogo”, deixaram tomado e atento o auditório do instituto. O pesquisador uruguaio Eduardo Gudynas é o maior especialista em extração mineral da América Latina. Diretor do Centro Latino-americano de

Ecologia Social, aproveitou o evento para também lançar seu livro, Mineração Transnacional e Resistências Sociais na África e na América Latina, no Brasil. O filme trata dos efeitos nocivos da instalação da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (Tkcsa) no Rio de Janeiro. “Desenvolvimento a Ferro e Fogo” talvez tenha sido o grande destaque da tarde de lançamentos. Narrado pelo ator Wagner Moura e dirigido por Felipe Siston, dura menos de oito minutos. O suficiente para abordar os absurdos dos acordos políticos para instalação da empresa, seus efeitos nocivos na saúde da população local, sua reprovação até pelo prefeito da cidade, e a opção de modelo de desenvolvimento dos governos. “A empresa foi recusada em seu próprio país. O Chile e outros estados brasileiros não aceitaram o empreendimento por causa dos riscos ambientais e sociais”, relata o narrador. Logo depois de ser exibido, foi disponibilizado no site Youtube, para estimular a divulgação. Durante essa semana, o presidente alemão

da ThyssenKrupp chegou a marcar visita ao Brasil, devido ao acirramento das denúncias, mas desistiu por problemas de demissões na Alemanha.

O Observatório do Pré-sal pretende ser um espaço virtual de monitoramento dos investimentos de empresas e negócios de extração mineral no país Dois modelos

Gudynas fez uma ampla exposição do quadro da extração mineral nos países da América do Sul. Ele considera que há duas correntes principais, entre os países do subcontinente. A primeira delas é classificada como “clássica”, tendo uma pequena presença do Estado, e grande das multinacionais. Chile, Peru e Colômbia, países de governos conservadores, estariam aplicando esse modelo. A segunda é o que Gudynas chama

de “neo-extrativismo progressista”, adotada pelos governos de esquerda e centro-esquerda. Teriam esse padrão a Argentina, a Venezuela, a Bolívia, o Uruguai, parte do Chile, e o Brasil, recordista na atividade de extração. A principal crítica que o pesquisador fez a esse modelo foi a despreocupação com os impactos ambientais. O Observatório do Pré-sal pretende ser um espaço virtual de monitoramento dos investimentos de empresas e negócios de extração mineral no país. Evidentemente, o setor do petróleo será priorizado – e em especial, o do présal, até pela sua centralidade crescente na economia brasileira. “Nosso objetivo também é questionar o modelo de desenvolvimento”, esclareceu Natália Gaspar, pesquisadora do Ibase. Dois estudos de caso serão priorizados pelo Observatório: a Tkcsa e o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). A proposta do espaço é ser construído de forma colaborativa. (LU) Acesse: http://www.observatoriodopresal.com.br/


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Agora, faltam as leis Walter Alves/Folhapress

UNIÃO HOMOAFETIVA Movimento LGBT considera decisão do STF uma vitória, mas aponta que há muito a avançar para garantir a igualdade em relação aos casais heterossexuais Joana Tavares da Redação “SE MINHA LOURA voltar, eu caso com ela!”, diz Angela Maria dos Santos Lima, comerciante de São Paulo. “Sempre disse que, fosse lei, eu casava”. Angela já teve várias relações estáveis com parceiras. Ela ficou feliz com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de reconhecer as uniões homoafetivas como relações estáveis, mas não acha que isso vai resolver todos os problemas dos casais. José Neri, de Salvador, já ficou dez anos com um parceiro. “Se for pra casar, quero que seja do meu jeito, todo montado”. Ele diz que sempre assumiu suas relações publicamente. Nunca tentou adotar filhos, porque é um “processo muito trabalhoso”. “A sociedade fica com preconceito, a não ser que seja uma família de homossexuais ricos. Aí num instante fica fácil”.

ção de crianças, não foram contempladas (leia a entrevista abaixo).

“Ninguém pode ser discriminado por ser pobre, gordo, gay. Precisamos de uma lei que criminalize todas as formas de preconceito” Toni Reis estava ansioso para o casamento com seu companheiro. Após 21 anos juntos, eles puderam oficializar a união no dia 9, em um cartório de Curitiba (PR). “Estamos felizes, acreditamos no país. Tem muita coisa errada, mas estamos mais cidadãos. Muita gente ganhou, e ninguém perdeu”. Toni, que é presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), acrescenta: “ninguém pode ser discriminado por ser pobre, gordo, gay. Precisamos de uma lei que criminalize todas as formas de preconceito.” As declarações de Angela, José e Toni estão relacionadas com o reconhecimento, por unanimidade, pelos ministros do STF, da equiparação da união homossexual à heterossexual, no dia 5. Isso quer dizer que todos os direitos – 112, ao todo, como pensão alimentícia, comunhão parcial de bens, inclusão de parceiros/as no plano de saúde, recebimento de pensão do INSS em caso de morte do parceiro e herança – já garantidos aos casais hétero são agora estendidos aos casais homoafetivos. A decisão reconhece, no entanto, a união estável, não o casamento, civil ou religioso. Outras questões, como a ado-

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Toni Reis e David Harrad que, após 21 anos juntos, oficializaram a união em um cartório de Curitiba

Igualdade

Considerado histórico, o reconhecimento garante a compreensão constitucional da igualdade. Apesar de não ser uma lei, estabelece, na prática, que não sejam aprovadas novas legislações que restrinjam os direitos dos homossexuais. A partir de agora, as ações passam a ter efeitos vinculantes, ou seja, a decisão do STF deve se estender a todos os tribunais e órgãos administrativos da União. Apesar de considerar a decisão uma vitória, o movimento LGBT aponta que ainda falta um longo caminho para a igualdade plena. “A gente continua penalizado com a ausência da lei. O que o STF julgou era uma tarefa do Congresso, para aprovar um projeto de lei engavetado há 16 anos”, aponta Carlos Magno, secretário de comunicação da ABGLT. Fundada em 1995, a entidade é uma rede nacional com 237 organizações afiliadas. Carlos aponta várias bandeiras de luta para este ano. A principal é a aprovação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122, que torna crime a homofobia, com pena de reclusão de um a três anos para quem cometer discriminação ou preconceito de “raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero”. O PLC prevê também penalizar quem impedir ou restringir a liberdade de expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos. Para pressionar a aprovação da lei, está prevista a realização de uma mar-

é o número de direitos aos quais os homossexuais passarão a ter acesso após a decisão do STF

cha nacional no dia 18 de maio, em Brasília. Segundo Carlos, caravanas de todos os estados e de outros movimentos sociais e sindicais são esperados no ato. “No ano passado, na primeira marcha, participaram 10 mil pessoas. Para este ano, esperamos chegar a 20 mil. Esse ato tem um caráter diferente das paradas, é um ato de protesto, de reivindicação e afirmação de direitos”, explica. Políticas oficiais

Outra frente de luta é por políticas públicas para a questão LGBT. “Todas as cidades e estados precisam ter políticas públicas, com um conselho e uma coordenadoria LGBT, um plano de políticas que garanta a cidadania”, destaca Carlos. Ele aponta que a luta avançou no Judiciário, mas precisa avançar no Executivo e no Legislativo. Pelo menos 60 mil casais do mesmo sexo moram juntos no Brasil, segundo o Censo Demográfico 2010 divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pela primeira vez, a son-

dagem nacional incluiu a pergunta sobre “cônjuge do mesmo sexo”. No entanto, segundo Carlos Magno, como a pesquisa pergunta apenas de união estável, não traz dados sobre a quantidade de homossexuais no país. “É muito difícil saber quantos somos. Como nossa comunidade sofre preconceito, muitos homossexuais não têm visibilidade”.

Carlos aponta várias bandeiras de luta para este ano. A principal é a aprovação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122, que torna crime a homofobia Os ministros do Supremo analisaram duas ações, que pediam o reconhecimento da união para casais homossexuais. A união estável está prevista no artigo 1.723 do Código Civil, que preconiza: “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Agora, vale não só para “homem e mulher”, mas os requisitos de convivência se mantêm. A Advocacia-Geral da União e a Procuradoria Geral da República defenderam o fim da discriminação. Já a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), representada por seu advogado, alegou que “pluralidade tem limite”.

“A decisão é paradigmática e revolucionária” Para especialista em direito civil, é injusto que pessoas ainda não tenham garantida a possibilidade legal de constituírem família apenas por sua preferência sexual da Redação “É preciso romper com esses discursos morais estigmatizantes para que o Estado pare de expropriar cidadanias”, afirma Rodrigo da Cunha Pereira, doutor em Direito Civil, presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e autor de vários livros sobre o tema, como Direito de Família – uma abordagem psicanalítica. Segundo ele, no último século a família deixou de ser um núcleo essencialmente econômico e de reprodução para ser um espaço de construção do amor. “Consequentemente, os paradigmas estruturadores da família se desatrelaram, ou seja, sexo, casamento e reprodução já não estão mais, necessariamente, vinculados um ao outro. É possível reprodução sem sexo e no casamento não está mais a única forma legítima de sexualidade”. Confira a entrevista a seguir. Brasil de Fato – O que a decisão do STF representa concretamente para

os casais homossexuais? Como fica a questão da adoção, por exemplo?

Rodrigo da Cunha Pereira – Representa que o direito é também um importante instrumento ideológico de inclusão ou exclusão do laço social, podendo legitimá-lo ou não dependendo das concepções morais-sexuais, como foi até há pouquíssimo tempo com os filhos havidos fora do casamento, que eram considerados ilegítimos. A decisão do STF é paradigmática e revolucionária na medida em que não é justo que cidadãos cumpridores de suas obrigações legais, inclusive com o pagamento de tributos, continuem excluídos e alijados do reconhecimento e do direito de constituírem famílias apenas e tão somente porque têm uma preferência sexual diferente da maioria. Afinal, o que as escolhas e preferências sexuais têm a ver com a conduta ética dos sujeitos? É preciso romper com esses discursos morais estigmatizantes para que o Estado pare de expropriar cidadanias. Quanto à adoção, o próprio Superior Tribunal de Justiça, em 2010, através de um de seus julgados, autorizou a adoção por pares homoafetivos. A própria decisão do STF reafirmou essa pretensão. Há possibilidade de ser garantido o direito de casamento aos casais homossexuais no Brasil? Como está essa discussão hoje?

Embora não exista no Brasil casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, como já é lei na Argentina, Portugal, Espanha e tantos outros países, os tribunais brasileiros há muito tempo reconhecem tais uniões como en-

tidade familiar, inclusive com o direito de adotar filhos. Também tem sido comum a realização de contratos e escrituras públicas selando as uniões homoafetivas, já que das relações de afeto decorrem consequências patrimoniais e a necessidade de deixar claras as regras de herança, partilha de bens, entre outras. Acredita-se que a sociedade caminha para essa possibilidade. Alguns parlamentares repudiam o reconhecimento de tais uniões com base no discurso religioso, outros por medo de não serem eleitos em razão da causa que defendem, ou mesmo pelo pavor de serem identificados como homossexuais. Seja lá qual for o motivo, o certo é que assuntos da sexualidade ainda trazem à tona os fantasmas e desejos mais recalcados. Assim, utilizam o Regimento Interno para obstar o seguimento natural das propostas legislativas com essa pretensão.

“Diante das novas representações sociais da família (…) o compromisso ético é ordenar juridicamente as relações de família, considerando mais a essência que a forma” Como a decisão do STF impacta no Direito de Família?

A principal mudança da família no último século é que ela deixou de ser essencialmente um núcleo econômico e de reprodução para ser muito mais o es-

paço de companheirismo, troca de afetos e construção de amor. Consequentemente, os paradigmas estruturadores da família se desatrelaram, ou seja, sexo, casamento e reprodução já não estão mais, necessariamente, vinculados um ao outro. É possível reprodução sem sexo e no casamento não está mais a única forma legítima de sexualidade. O impacto maior é a mudança na vertente do raciocínio jurídico, pois as relações homoafetivas deixam definitivamente o campo do Direito das Obrigações (comerciais) e passam a ser tratadas no do Direito de Família. O que a decisão representa para a consolidação do Estado como entidade laica?

Representa uma tentativa da organização das relações de afeto e das consequências patrimoniais daí decorrentes, deparando-se com respostas a duas questões. Primeiro, qual é o limite de intervenção do Estado nas relações de família? Segundo, como trabalharemos a subjetividade na objetividade dos atos e fatos jurídicos? Diante das novas representações sociais da família, da evolução do conhecimento, da mudança na concepção de família, o compromisso ético é ordenar juridicamente as relações de família, considerando mais a essência que a forma, para que, assim, o direito possa ter a sustentação em um de seus principais pilares, que é a liberdade, e possa, então, ser libertador dos sujeitos. Foi um passo importante. É muito mais que uma atribuição e distribuição de direitos e obrigações, é o valor simbólico de tal decisão. Ela foi a vitória da ética sobre a moral estigmatizante. (JT)


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Governo frustra anseios do Terra Livre

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

POVOS ORIGINÁRIOS Acampamento com 700 lideranças indígenas recebe promessa de novas demarcações, mas outras reivindicações não são contempladas Renato Santana

Renato Santana Brasília (DF) POVOS INDÍGENAS de todo o país, representados por 700 lideranças organizadas no Acampamento Terra Livre (ATL) instalado na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF), não esperavam tamanho desdém do governo federal. Mesmo com a promessa de que seis demarcações de territórios serão assinadas pela presidente Dilma Rousseff -- terras há mais de três anos com processos parados no Ministério da Justiça -- nenhuma outra pauta do movimento foi atendida durante a mobilização realizada entre os dias 2 e 5 de maio. As dificuldades da atual conjuntura são consensos perturbadores entre os indígenas. As demais pautas do ATL levadas ao Planalto não foram atendidas. Entre elas, medidas contra invasões de terras das populações originárias e a punição dos assassinatos de lideranças e integrantes dos povos (499 entre 2003 e 2010). O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, organizou um encontro com outros quatro ministros de (Saúde, Minas e Energia, Meio Ambiente e Justiça), presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, e uma comissão de indígenas nomeada pelo ATL. A reunião no Palácio do Planalto só ocorreu depois que todo o acampamento tomou as vias da Esplanada dos Ministérios e bateu na porta dos ministros para terem suas reivindicações ouvidas.

“Estamos morrendo nas aldeias vítimas da violação de direitos que conquistamos. Não viemos pedir favor nenhum” “Queremos mostrar o que está acontecendo com nossas comunidades. Estamos morrendo nas aldeias vítimas da violação de direitos que conquistamos. Não viemos pedir favor nenhum”, disse Neguinho Truká. A liderança indígena vive com seu povo em Pernambuco. A transposição do Rio São Francisco, grande empreendimento do PAC, levou o Exército para dentro das terras dos Truká e a destruição de mais de 300 mil hectares de caatinga. No encontro com os indígenas, o ministro de Minas e Energia Edison Lobão ouviu tudo isso. Inclusive que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, se construída, afetará ao menos três comunidades indígenas na Volta Grande do Xingu porque o braço do rio secará, influindo no ecossistema local. Não deu nenhuma declaração e tampouco se pronunciou a favor da obra. Porém, menos de 48 horas depois comunicou que prevê a saída da licença definitiva para Belo Monte até mês que vem e afirmou para a presidente Dilma que a construção da usina não afetará nenhuma aldeia indígena. Governo desmentido O diretor-presidente da Eletronorte, Josias Matos de Araújo, comandante da empresa que operará Belo Monte caso

Debate Livre Vários políticos importantes já se manifestaram publicamente a favor da descriminalização das drogas e pela liberalização da maconha. Mas as polícias estaduais e os juízes de várias capitais continuam impedindo e reprimindo a realização de marchas e debates sobre a legalização do uso da maconha. Essas medidas não são antidemocráticas, na medida em que cerceiam a liberdade de expressão?

Lideranças indígenas de todo o país se encontraram no Acampamento Terra Livre, instalado em Brasília

o empreendimento seja erguido, garantiu que a obra afetará comunidades indígenas. Informação que vai de encontro à constatação feita pelo ministro Lobão e pela presidente Dilma Rousseff. Durante o ATL, a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, presidida pelo parlamentar Paulo Paim (PTRS) recebeu o relatório feito pela senadora Marinor Brito (Psol-PA) sobre a construção da usina no Rio Xingu. Além do constatado pelo grupo, foi anexado ao documento estudo desenvolvido por mais de 40 professores de universidades de todo país, integrantes do Painel de Especialistas de Belo Monte. “Chegamos a duas conclusões: o Estudo de Impacto Ambiental – Relatório de Impacto Ambiental (EIA – Rima, licença ambiental fornecida pelo Ibama) não inclui populações que serão atingidas pela usina; também não inclui todos os impactos ambientais. São 100 condicionantes que o Ibama teve que corroborar”, explicou Sônia Magalhães, integrante do painel e antropóloga da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mesmo assim, o Ibama, em 26 de janeiro deste ano, concedeu aos gestores da obra uma licença prévia. O Ministério Público (MP) a cassou por constatar que não existe essa categoria de licença. O Judiciário, por sua vez, derrubou a opinião do MP e por isso o ministro Lobão espera que até mês que vem a licença definitiva seja expedida. Impacto cultural No estudo do painel, a Volta Grande do Xingu receberá uma casa de força e uma barragem. Seja no inverno ou verão, a redução do nível de vazão será de 80%. Isso significa que a região secará. Com isso, pelo menos três povos indígenas serão afetados diretamente: sem a água do rio, muda-se o ecossistema e a cultura do local se esgotará com o tempo. No EIARima, o impacto não foi relatado. “Temos ali três povos: os Arara, Juruna e Xikrim. São quatro troncos linguísticos diferentes: o Tupi, o Arara, o Caribe e o Jê. Representam a riqueza cultural da Amazônia e do Brasil”, enfatizou Sônia. Para as lideranças dos povos afetados, presentes no ATL, a saída é lutar contra a usina até a morte. “Nossos antepassados estão ali, na Volta Grande. Vivemos com base na floresta e no que o rio nos oferece. Teremos que

sair dali se a usina for construída. Sem nossa terra, não somos nada”, destacou Josinei Arara. “O governo pensa que vai nos fazer de besta com essas mentiras. Acha que será fácil nos derrotar. A gente só sai dali morto”, bradou Osimar Juruna. De acordo com o professor da Universidade de São Paulo (USP) Célio Bermann, também integrante do painel, serão desmatados 5 mil quilômetros de floresta para a construção do complexo Belo Monte – cinco barragens, dois vertedouros, 30 diques de contenção, 52 quilômetros de canais e escavações de 150 milhões de metros cúbicos de terras e 50 milhões de rochas (equivalentes a construção do Canal do Panamá).

A Volta Grande do Xingu receberá uma casa de força e uma barragem. Com isso, pelo menos três povos indígenas serão afetados diretamente Valor Bermann destaca o valor investido: conforme o Tribunal de Contas da União (TCU), R$ 19 bilhões; já o mercado prevê R$ 30 bilhões. Seja qual for o total, o governo entrará com 80% captados junto ao BNDES. “O que a iniciativa privada tem dito é que o investimento não terá retorno. Belo Monte garante apenas de 3 a 4 meses de energia para o Brasil, conforme o regime hidrológico do Xingu. Por isso, o caráter irreversível da construção de outros reservatórios para viabilizar o empreendimento”, revelou o professor. “O projeto é criminoso. Existem 12 ações contra irregularidades tocadas pelo Ministério Público Federal. Estão distribuindo brinquedos e doces para as comunidades saírem de suas terras. Isso é um insulto”, afirmou a líder do movimento Xingu Vivo Para Sempre, Antônia Melo Silva. A promotora do Ministério Público do Pará, Maria da Graça Azevedo Silva, antecipa-se: apesar de ter postura contrária à viabilidade do projeto, atua preventivamente para estabelecer diretrizes e estratégias aos impactos da usina na região. Estima-se que cerca de 60 mil indivíduos se deslocarão para a região de Altamira por conta da obra.

Povo Guarani: problemas e dimensões nacionais Indígenas, com ou sem terra homologada, enfrentam problemas parecidos em todo o país de Brasília (DF) Grandes empreendimentos, que envolvem também a passagem de estradas no meio de territórios indígenas, envolvem necessariamente a questão da terra. Para a liderança Maurício Guarani, “o Acampamento Terra Livre serve para mobilizarmos os povos em torno daquilo que mais nos afeta: a falta de demarcação das terras. Nela se desenvolve nossa cultura, o nosso jeito de viver”. O povo Guarani possui dimensão nacional. As dificuldades são as mesmas para os grupos, mas no Rio Grande do Sul os Guarani vivem sob lonas, nas bei-

Crise profunda Está cada dia mais violento o tiroteio entre os grupos políticos que disputam o Ministério da Cultura. Na última semana, vários desafetos da ministra Ana de Hollanda defenderam abertamente a substituição dela. Por sua vez, a presidente Dilma Rousseff mandou recado aos descontentes para que reduzam a artilharia. Afinal, como explicar a demissão da ministra em tão pouco tempo, foi uma escolha errada ou ela não conseguiu articular o setor?

ras das rodovias federais, à espera da demarcação de suas terras. Os indígenas vivem sem saneamento, educação indígena, saúde de qualidade e água potável.

O cacique Babau, Tupinambá da Serra do Padeiro, relatou que teve um irmão indiciado, mesmo tendo apenas oito meses de vida As comunidades que possuem terras acabam tendo que ir para a guerra contra os invasores. Pistoleiros são contratados para assassinar lideranças e via Poder Judiciário, territórios ocupados de maneira tradicional tentam ser retoma-

dos dos índios com a ajuda da Polícia Federal (PF). Nesse caso, as lideranças são criminalizadas e presas. Tupinambás O povo Tupinambá da Bahia tem sofrido sistemática perseguição.“Quem não tem terra, briga por ela; quem tem, briga para manter porque o governo e os fazendeiros querem tomar. Na resistência, somos criminalizados. A PF invadiu minha casa de madrugada e me levou preso por cinco meses. Para o meu povo isso não é motivo de tristeza porque sabemos que a cadeia veio por uma causa de direito nosso”, relatou o cacique Babau, tupinambá da Serra do Padeiro. Ele relatou que teve um irmão indiciado mesmo sendo apenas um bebê de oito meses. Há algumas semanas, em Olivença, outra aldeia Tupinambá foi vítima da PF: dois caciques e mais quatro indígenas estão presos. Outro tupinambá levou um tiro dos policias a menos de um metro e teve a perna amputada. (RS)

Luta urbana Integrada pelos principais movimentos sociais de sem teto e de luta por moradia, a Frente Nacional de Resistência Urbana ocupou parcialmente o prédio do Ministério das Cidades, no dia 6 de maio, em Brasília; agendou nova reunião com o ministro Mario Negromonte para o dia 27 de maio e promete intensificar ações em pelo menos 14 estados. A frente reivindica a reforma urbana, o fim dos despejos e moradia digna. Já! Cinco anos Em maio de 2006, depois que membros de organizações criminosas atacaram postos da Polícia Militar no estado de São Paulo, policiais e “grupos de extermínio” mataram, entre 12 e 20 de maio, 493 pessoas, a maioria jovens moradores das periferias sem ficha criminal. Esses crimes de maio foram denunciados pelas mães e parentes das vítimas e por inúmeras entidades civis e de direitos humanos. Até hoje ninguém foi a julgamento! Só repressão Indiferente às lutas pela liberdade de expressão e o direito à comunicação, o governo continua reprimindo os serviços de radiodifusão vinculados às comunidades. No dia 3 de maio, agentes da Polícia Federal e da Anatel invadiram a Rádio Comunitária Santa Marta, no Rio de Janeiro (RJ), sequestraram o transmissor FM e detiveram os radialistas Emerson Fiell e Antonio Peixe. Só porque a rádio expressa a voz do povo. Proteção já Por unanimidade, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal considerou legal o critério de demarcação da Terra Indígena Yvy-Katu, no município de Japorã, no Mato Grosso do Sul, e que havia sido contestado por grileiros e fazendeiros da região. Agora só falta garantir que a reserva seja respeitada e que os índios tenham segurança e assistência contra ataques de jagunços e de doenças. Chega de genocídio! Observatório O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase – lançou, dia 9, o site do Observatório do Pré-Sal e da Indústria Extrativa Mineral (www.observatoriodopre sal.com.br), que tem por objetivo denunciar a insustentabilidade econômica e ambiental do modelo atual de desenvolvimento e reorientar esse padrão para outro que respeite os direitos humanos e da natureza, com justiça social. Que tenha sucesso! Voto democrático Em plebiscito, no dia 7, a população do Equador aprovou maior controle social do Judiciário e do sistema de comunicação social, com a criação de um conselho de regulação midiática e a definição de normas de responsabilidade para a imprensa. Além disso, os controladores dos meios de comunicação não podem ser proprietários de empresas em outros setores econômicos, de maneira a evitar o conflito de interesses. Grande avanço! Código florestal “A aprovação da reforma – para pior – no Código Florestal coloca a nu a subordinação da agenda ambiental à agenda econômica. Nos quase três anos em que esse tema é pautado pela bancada ruralista, o governo pouco fez para impedir o avanço das teses do agronegócio. Mais do que omissão, o governo acabou sendo conivente com o desfecho da flexibilização do Código Florestal.” Extraído da análise de conjuntura do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat) e Instituto Humanitas Unisinos (IHU).


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Agronegócio e Rebelo com mais força MEIO AMBIENTE PT, Psol e PV ficam isolados no Congresso como únicas legendas contrárias às alterações no Código Florestal Saulo Cruz/SEFOT-SECOM

Igor Felippe dos Santos de São Paulo (SP) O DEPUTADO federal Paulo Teixeira, líder do PT na Câmara dos Deputados, avalia que a correlação de forças beneficiaria Aldo Rebelo na votação da reforma do Código Florestal, prevista para o dia 11, depois do fechamento desta edição (dia 10). Dos 21 partidos com representação na Câmara, apenas o PT, PV e Psol defendem a necessidade de mais tempo para a discussão com a sociedade. Segundo ele, a bancada do PT votou favorável ao regime de urgência para não se isolar do conjunto da base do governo e manter influência sobre a discussão. “O debate é o governo centralizar a base, não a base centralizar o governo”, avalia. “Temos recursos ainda pela frente”, disse o deputado, em referência à possibilidade de mudanças na proposta no Senado e de veto da presidenta Dilma. “Precisamos de mobilização da nossa sociedade” completou. Teixeira reforça que não se pode abrir mão das medidas que protegem o meio ambiente “Nós temos que continuar com as exigências ambientais, para o Brasil continuar sendo a potência ambiental que é. Queremos que a mudança no Código não comprometa esse ativo que temos.” O deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) apontou que “Nós precisamos não votar o relatório”. Ele disse que é contra o relatório de Aldo Rebelo e avalia que as mudanças pontuais no projeto original, propostas pelo governo, não têm condições de resolver os problemas do relatório. Valente acredita que é necessário uma discussão maior da sociedade, porque esse tema não está relacionado apenas aos atores do meio rural, mas é de interesse nacional e da sociedade brasileira, que está contra mudanças que contribuem com a ampliação do desmatamento. “O Aldo Rebelo deu o verniz que o agronegócio precisava”, atacou Valente. Um dos pontos problemáticos, de acordo com Valente, é tirar do governo federal a exclusividade da atribuição de operar a legislação ambiental, que passaria

a ser responsabilidade também dos estados e municípios, onde a pressão do agronegócio é mais forte. Reserva legal e APPs Luiz Antonio de Carvalho, assessor especial do Ministério do Meio Ambiente, acredita que o desafio do governo é resolver os problemas dos pequenos produtores, tirar a base de apoio do projeto de Rebelo, barrando os pontos que aumentam o desmatamento e beneficiam o agronegócio.

“Nós temos que continuar com as exigências ambientais, para o Brasil continuar sendo a potência ambiental que é” Carvalho disse que o governo não aceita a diminuição da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a anistia aos desmatadores Para isso, ele coloca a necessidade da discussão dos casos pontuais em que as APPs inviabilizam o pequeno agricultor para evitar que as exceções se tornem uma regra. “A presidente Dilma vai manter sua posição que foi defendida, inclusive no período eleitoral, de não aceitar a anistia dos desmatadores”, disse Carvalho. “O governo defende que a Reserva Legal deve ser mantida em todas as áreas, sem exceção, e é totalmente contra a diminuição de áreas de APPs”. Segundo ele, o maior problema é a apresentação de emendas ao projeto, que abrirá uma porta para que a bancada ruralista imponha medidas de interesse do agronegócio. “É o pior que pode acontecer, porque as emendas não virão a nosso favor. Elas virão em favor da anistia para a área rural consolidada, para massacrar, digamos assim, para demolir o conceito de reserva legal, e por aí vai”. “Estamos otimistas, vamos brigar até o último momento para que se construa um consenso, inclusive com o deputado Aldo Rebelo, para que o projeto entre sem sofrer emendas lá dentro”, disse Carvalho.

O deputado federal Paulo Teixeira

Ministério Público promete entrar com Adin Psol e PV também recorrem à Justiça Danilo Augusto de São Paulo (SP) A procuradora-chefe do Ministério Público Federal, Adriana Melo, afirma que se o texto apresentado na semana passada por Aldo Rebelo (PCdoB – SP) for aprovado na sua versão atual, o órgão entrará com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF). “Se o Código for aprovado, sancionado e entrar em vigor nos termos em que está sendo proposto, o Procurador Geral vai avaliar o texto da lei, e, havendo possibilidade, vai entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade”, disse Melo. A procuradora também reforça que o MPF está atento ao tema e que adotará medidas judiciais se o desfecho não estiver de acordo com os interesses da socie-

dade. “Não vamos permitir que a Constituição seja contrariada”, garantiu. “A Câmara de Coordenação e Revisão na área ambiental está acompanhando [este processo]. Com isso, ela passa todos os elementos e informações para o Procurador Geral, que poderá adotar as medidas necessárias.” Marcelo Goulart, promotor de Justiça de SP e membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, denunciou que forças reacionárias têm interesse em desmontar a legislação ambiental e as obrigações legais previstas na Constituição de 1988, a lei da Política Nacional do Meio Ambiente e o Código Florestal. Segundo ele, o modelo de produção do agronegócio não consegue se adequar para cumprir a legislação. “O direito ambiental é subversivo e traz princípios e normas que questionam o modelo imposto”, avalia. O PV já protocolou no STF um mandado de segurança para impedir a votação do relatório de Aldo Rebelo. O Psol promete entrar com uma Adin caso o relatório seja votado nos termos atuais.


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cultura Pilar Oliva

CULTURA AFRO Família quilombola de Minas Gerais reúne mais de duas mil pessoas em tradicional congada de 13 de maio Bernardete Toneto de Contagem (MG) UM PROVÉRBIO angolano diz que “andar sozinho é quase não andar. Cantar sozinho é quase murmurar e dançar sozinho é quase se arrastar”. Essa lição foi aprendida há 123 anos pela grande e unida família dos Arturos, de Contagem (MG). E, respeitando as tradições ancestrais africanas, os 548 parentes que hoje vivem no Quilombo dos Arturos se juntam em maio para a congada da Festa da Libertação. Durante dois dias, rezam, dançam, cantam e caminham em procissão, louvando Nossa Senhora do Rosário e em lembrança da assinatura da Lei Áurea. O Quilombo dos Arturos é reconhecido por suas festas e pela religiosidade católica com matriz africana, representada pela congada e a dança de Moçambique. Neste ano, a festa aconteceu nos dias 7 e 8, com participação de 14 guardas (grupos) da Grande Belo Horizonte. Nesses dias, desde a madrugada, o cortejo percorreu várias vezes as casas da comunidade – com especial atenção às moradias dos “reis” e “rainhas” e dos patriarcas da família – e as ruas do bairro, até a Igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Os “antigos” ainda consideram a princesa Isabel como redentora dos escravos. A opinião dos patriarcas é respeitada como fruto de uma vivência transmitida oralmente pelos ancestrais Titulação

A riqueza cultural da dança e música dos arturos mantém a família unida. Mas não só, pois a comunidade está unida para preservar a terra. Apesar da documentação de propriedade da terra datada de 18 de março de 1888 e do certificado de reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, desde 2005 os arturos aguardam a titulação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A documentação completa, em nome da Irmandade Nossa Senhora do Rosário de Contagem, foi protocolada em abril, dando início ao processo de levantamento antropológico para certificação como quilombo urbano. Os líderes da comunidade reivindicam urgência na titulação das terras, compradas no ano da assinatura da Lei Áu-

Arturos

rezam, dançam e cantam pela

libertação

Gungas, chocalhos de calcanhar, representam correntes e grilhões da escravidão

rea pelo casal Camilo Silvério e Felisbina Rita Cândida, escravos angolanos que trabalharam no garimpo de pedras preciosas da então Vila Santa Quitéria, hoje município de Esmeralda. São 126 mil metros quadrados, registrados no nome de Artur Camilo Silvério, um dos quatro filhos de Camilo e Felisbina e o personagem que deu vida e nome à comunidade. A documentação comprobatória de propriedade, em nome de Artur e seus descendentes, não impede a pressão imobiliária. Os arturos já foram procu-

rados por construtoras interessadas em construir um conjunto habitacional no local, oferecendo apartamentos em troca da área de mata e das 86 casas. “Somos uma família e estamos unidos. Mas precisamos ter respaldo legal e a titulação da nossa área pelo Incra, para impedir essa especulação imobiária”, diz João Batista da Luz, da sexta geração de arturos. Preservação da terra

Hoje a terra está subdidivida entre filhos e netos de Carmelinda Maria da Sil-

va e Artur Camilo Silvério, o patriarca que mesmo tendo nascido na Lei do Ventre Livre sofreu torturas e maus tratos de fazendeiros. Fugido da violência, foi ele quem ocupou definitivamente a terra, para constituir a família que tem como principais características o respeito às tradições, os laços de parentesco, as ações coletivas, a transmissão oral dos ensinamentos e a fé em Nossa Senhora do Rosário. Os “antigos” ainda consideram a princesa Isabel como redentora dos escravos. A opinião dos patriarcas é respeitada como fruto de uma vivência transmitida oralmente pelos ancestrais. Mas a nova geração começa a debater a “libertação dos escravos” sob a ótica da autonomia. Um exemplo está no grupo de teatro Filhos de Zambi, constituído por jovens arturos que propõem celebrações em torno de Zumbi dos Palmares. Nas peças, surgem as temáticas das cotas, diversidade cultural e direito ao trabalho. O patriarca da comunidade é o “capitão-mor” Mario Braz da Luz, o “tio Mario”, de 78 anos. Ex-agricultor e trabalhador de ronda por 29 anos, ele é respeitado como o “pai de todos” e reconhecido como autoridade máxima da comunidade. Em sua casa de tijolos de adobe, construída pela primeira geração de arturos, ele recebe a família, abençoa doentes com rezas tradicionais, vistoria a capela e coordena as decisões que envolvem a comunidade. Tio Mario foi reconhecido como mestre griô pelo Ministério da Cultura em 2011. Recebeu o certificado em Brasília e ainda espera o prêmio, que direcionará para a comunidade. Mas afirma que a honraria pouco importa, pois prefere coordenar a festa, marcada pelas procissões e pela dança, em que reis e rainhas e as simbolizações da corte da princesa Isabel representam a coroação de um reinado congolês. Cortejos de fé

As guardas seguem em cortejo vestidas de cores e adereços diferentes. Cabe ao congo, em “fardas” branco e rosa, ir na frente para abrir os caminhos. A guarda de moçambique, vestida de branco e azul e com as tradicionais gungas nos tornozelos, conduz os reis e rainhas e guarda e protege o Reinado, em que se sobressai o rei e a rainha conga, postos que são transmitidos de pais para filhos. A tradição – que inclui a recepção e acolhida aos visitantes, o almoço coletivo feito com recursos da própria comunidade e a proibição de comercialização durante os festejos – está registrada em dois CDs com 52 músicas rituais e depoimentos dos antigos (alguns deles já mortos) e em um livro da história do local. O material foi totalmente organizado pelos arturos, que se preocupam agora em garantir a transmissão dos conhecimentos para as novas gerações. “Há muita pressão de fora, a violência que ameaça chegar e o processo de desenvolvimento dos jovens. Antes éramos uma área rural, hoje estamos a dois quilômetros do centro de uma cidade que é pólo industrial. Temos de preservar a cultura e a devoção aqui, trabalhar com as crianças e os jovens para que tenham orgulho de ser arturos”, diz João Batista.

Tambores marcam vida do quilombo Pilar Oliva

Instrumento de percussão é usado em ritos de passagens e nas celebrações da vida e da morte de Contagem (MG) A vida dos arturos é marcada pelos tambores. Rústicos e construídos na própria comunidade, eles soam nas festas e nos momentos que antecedem os rituais. Os toques acompanham as pessoas nos momentos de alegria e de tristeza, com refinamento musical passado de pai para filho. O tambor (Ngoma, nas línguas banto) é provavelmente o mais importante instrumento musical africano. O som ritmado anuncia a chegada ou partida dos líderes, mantem o estado de ânimo no trabalho, celebra a vida e a morte, convoca as pessoas para reuniões e chama para a guerra e para a paz. No Brasil, se tornou uma voz de contestação das senzalas.

“Os sinhôs não entendiam que os tambores são nosso laço de união, de comunicação e de ajuntamento” “Quando as famílias negras chegavam escravizadas ao Brasil, eram separadas pelos brancos, que temiam a organização e a revolta. Mas os sinhôs não entendiam que os tambores são nosso laço de união, de comunicação e de ajuntamento”, diz João Batista da Luz.

Festa diante da capela de Nossa Senhora do Rosário, ponto central da comunidade

Toque proibido

O som forte e incisivo dos tambores foi uma arma decisiva da resistência negra no período da escravidão, a ponto de seu toque ser proibido pelos brancos. Não adiantou, porque o batuque cerimonial e festivo se espalhou por todo o país, em diversas versões e manifestações. Uma das tradições mantida pelos arturos é o candombe, um ritual de origem banto feito sob o som de três tambores sagrados, em que se evoca a força dos ancestrais. O ritual interno tem a responsabilidade de abrir as festas mais importantes da comunidade. A primeira é o reisado, em 6 de janeiro. A seguir vem os congos e moçambiques da Festa da Libertação, na segunda semana de maio, e a comemoração em louvor a Nossa Senhora do Rosário, celebrada em 8 de outubro e que mobiliza mais de 20 guar-

das (grupos) de congos da região durante três dias. A última celebração de tambores é a festa do João do Mato, realizada em 15 de dezembro. Também conhecida como “festa da capina”, a comemoração, com a dança das enxadas e os batuques, marca simbolicamente o início do ano agrícola em uma comunidade atualmente com poucas plantações. Sons e danças

“É um erro achar que Arturos faz folclore, que é uma cultura morta. Nós temos uma cultura viva, vibrante, que se renova a cada dia, com as crianças, os jovens e o ensinamento cotidiano dos antigos”, defende Jorge Antonio dos Santos, capitão da guarda de Moçambique. No centro do cortejo, é ele quem tem a responsabilidade de puxar os cânticos e

conduzir o grupo, protegendo os membros do império. Jorge deixou o trabalho como operador de máquinas pesadas para atuar como gestor cultural junto à Secretaria de Cultura de Contagem. Na comunidade, tem a função de passar os ensinamentos do canto, instrumentalização e da dança às novas gerações. Assim como aprendeu do avô, do pai e dos tios, ensina os três filhos e as crianças da comunidade as origens, os momentos e os significados dos instrumentos, passos, cerimoniais, vestimentas e alimentos. Na comunidade, os jovens estão aprendendo a criação de gungas, chocalhos sempre em números ímpares, feitos em metal com reaproveitamento de latinhas de tinta ou extrato de tomate, contendo bolinhas de aço ou ferro. Lembrança dos grilhões

Presas por correias de couro (passadeiras) nos tornozelos ou abaixo dos joelhos, as gungas dialogam com os tambores e dão maior agilidade à dança. Nos passos do moçambique lembram os grilhões e argolas de ferro dos tornozelos dos escravos, que marcavam o ritmo do trabalho com os pés. Para ajudar a manter a rica tradição cultural dos arturos, está sendo desenvolvido o projeto “Preservação das raízes do Pai Artur”, com apoio do Ministério da Cultura. A primeira das seis oficinas foi concluída em abril, com o estudo aprofundado da origem e função ritual de tambores, baquetas e gungas e a produção de instrumentos, entregues aos representantes de quatro guardas congadeiras. Em junho começam as oficinas de danças tradicionais, percussão, instrumentos, vestimentas, culinária tradicional e informática. (BT)


internacional

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A Justiça, segundo os Estados Unidos Pete Souza/White House

BIN LADEN Circunstâncias do assassinato do exlíder da Al Qaeda desvela, mais uma vez, como os EUA “se lixam” para as leis internacionais

Soberania

Por fim, a operação dos marines no Paquistão violou o princípio da territorialidade, da soberania de cada país, visto que a operação que culminou no assassinato do terrorista ocorreu sem consentimento do governo local. De acordo com Igor Fuser, as autoridades estadunidenses sequer se deram ao trabalho de manter as aparências de uma operação legal: “Simplesmente invadiram e pronto”, destaca. Um argumento plausível, mas que não valida a invasão estadunidense, segundo Fuser, seria o de que o aparelho de Estado paquistanês estaria profundamente infiltrado pelo terrorismo e os Estados Unidos não queriam correr o risco de pôr a perder o sigilo da operação.

Eduardo Sales de Lima da Redação A EXECUÇÃO do terrorista saudita Osama Bin Laden em território paquistanês significou uma vitória maiúscula para Barack Obama, pelo menos sob seu próprio ponto de vista. A ação estadunidense, entretanto, tem sido alvo de duras críticas ao redor do mundo. Segundo especialistas, se fosse respeitada a legislação internacional, um dos caminhos mais corretos seria o de requerer ao Paquistão a extradição do ex-líder da Al Qaeda para ser julgado nos Estados Unidos. Não foi o que aconteceu. Há quem diga, como o escritor Tom Engelhardt afirmou em recente artigo, que Bin Laden ajudou os Estados Unidos a desencadearem seus próprios pesadelos, que vão da “tortura à criação de um arquipélago exterior à Justiça”. Sobretudo se considerarmos o fato de o terrorista ter sido executado sumariamente e a violabilidade da soberania do Estado paquistanês. As ilusões em relação a Obama se perderam. De acordo com o juiz de direito Marcelo Semer, o presidente dos Estados Unidos acabou por legitimar inúmeros preceitos da doutrina Bush da “guerra ao terror” que criticava. “A ideia fundamental é a de que os fins justificam os meios. Mas, dentro da democracia, tanto fins quanto meios devem ser legítimos. O assassinato de Estado, como preparado, realizado e propagandeado, simplesmente esvaziou a ideia de justiça internacional”, conclui Semer, que também é membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Obama, por seu lado, está com a consciência tranquila, sem sonhos ruins. De acordo com ele, Bin Laden teve o que merecia. “Apesar de estar muito nervoso em relação a todo o processo, a única coisa pela qual não perdi meu sono foi a possibilidade de matar Bin Laden”, disse, orgulhoso, no dia 8 de maio, em entrevista a um programa de TV dos Estados Unidos.

De acordo com o juiz de direito Marcelo Semer, o presidente dos EUA acabou por legitimar inúmeros preceitos da doutrina Bush da “guerra ao terror” que criticava Tortura

Um Estado vingativo? Com o depoimento de Obama, é possível compreender como a própria CIA (Agência Central de Inteligência) se sentiu legitimada para afirmar a todo o mundo que chegou até o ex-líder da Al Qaeda por meio de uma confissão obtida sob tortura. “Agora, os Estados Unidos se aproveitam da euforia criada pelo assassinato de Bin Laden para legalizar essa prática, sobretudo em Abu Ghraib [complexo penitenciário a 30 km de Bagdá, no Iraque] e em Guantânamo [base estadunidense no sudeste de Cuba]”, critica o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), Osvaldo Coggiola. O jornalista Igor Fuser destaca que o fato realmente preocupante é que a repressão ao terrorismo de radicais islâmicos está servindo de pretexto para que as autoridades dos Estados Unidos passem a justificar o uso da tortura, até mesmo contra seus cidadãos. Fuser joga luz sobre o caso do soldado estadunidense Brad Manning, preso por seu papel nos vazamentos de informações pelo Wikileaks. Segundo o jornalista, o soldado foi torturado pelas Forças Armadas dos Estados Unidos. “Manning não é um terrorista. Ao contrário, é uma herói na luta pela transparência no comportamento de todos os governos e pelo direito universal à livre informação”, argumenta Fuser, que também é doutorando em ciência política na USP e autor do livro Petróleo e poder – o envolvimento militar dos Estados Unidos no Golfo Pérsico (Editora Unesp, 2008). Execução

Um dos motivos para a execução do terrorista pelos marines estadunidenses seria o de que um tribunal preocuparia muito mais a outras pessoas do que ao próprio Bin Laden. Como escreve o jornalista Robert Fisk em recente artigo, haveria o perigo de o terrorista desnudar as

chmann foi julgado em tribunal aberto, em Israel, com inúmeras testemunhas internacionais. “Se Bin Laden assassinou, no máximo, 4 mil pessoas, Eichmann foi responsável pela morte de 6 milhões”, salienta (leia mais na matéria abaixo).

“Com o corpo de Bin Laden, vai ao mar, ainda, a vantagem moral que a civilização impõe à barbárie”

O presidente estadunidense Barack Obama em sua sala na Casa Branca

identidades de seus contatos com a CIA durante a ocupação soviética do Afeganistão ou relatar “suas acolhedoras reuniões em Islamabad [no Paquistão] com o príncipe Turki, chefe da Inteligência da Arábia Saudita”. Mas, de acordo com as convenções internacionais, Bin Laden deveria ter sido detido e respondido por seus crimes perante um tribunal internacional, como ocorreu com o sérvio Slobodan Milosevic, por ter capitaneado crimes contra a humanidade na guerra da antiga Iugoslávia.

De acordo com as convenções internacionais, Bin Laden deveria ter sido detido e respondido por seus crimes perante um tribunal internacional A execução do terrorista soa relativamente contraditória se considerarmos a história das relações internacionais dos Estados Unidos no período pós-guerra. Segundo afirma Marcelo Semer, findada a Segunda Guerra Mundial, foi extremamente importante o papel dos Estados Unidos de exigirem julgamentos a criminosos nazistas, quando outros países se dispunham simplesmente a fuzilá-los. “[O Tribunal de] Nuremberg [com a condenação de inúmeros nazistas] foi o embrião de tribunais internacionais, como o específico para a ex-Iugoslávia e, atualmente, o Tribunal Penal Internacional”, lembra. Por isso, Semer questiona: “se aqueles crimes contra a humanidade (como as máquinas de matar de Hitler, as limpezas étnicas de Milosevic e na África) foram ainda mais graves que os atos terroristas, por que motivo um ato terrorista dessa magnitude também não poderia ser julgado?” Ainda de acordo com o juiz, existe uma previsão expressa no Estatuto de Roma – tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional – para julgamentos de crimes contra a humanidade praticados

por organizações contra massas de civis. Desse modo, não há motivos, dentro da legalidade, para a simples execução. Dentro desse viés, o professor de história da USP Osvaldo Coggiola lembra que o tenente-coronel nazista Karl Adolf Ei-

Aliás, para ele, o governo do Paquistão abriu mão até mesmo do direito de protestar, por se portar como “um governo fantoche, destituído de qualquer respaldo social significativo e que só se mantém no poder graças ao apoio financeiro e militar dos EUA”, elucida. A relação entre o governo dos Estados Unidos e o respeito às leis internacionais, mais uma vez, ilustra o termo “dois pesos e duas medidas”. “Eles cobram dos outros, e especialmente dos governos com os quais se encontram em conflito, um respeito absoluto aos mais altos padrões de direitos humanos e o cumprimento a todas as normas e acordos internacionais. E, ao mesmo tempo, consideramse autorizados a violar esses mesmos direitos, normas e acordos, sempre que isso convém aos seus interesses”, destaca Fuser. Ultrapassaram os limites do bom senso? “Com o corpo de Bin Laden, vão ao mar, ainda, a vantagem moral que a civilização impõe à barbárie, e a evolução de séculos que enquadrou a vingança dentro dos conceitos e dos limites do direito, estabelecendo as noções de pena e processo”, arremata Semer. Segundo Osvaldo Coggiola, se Obama vencer as próximas eleições presidenciais porque acabou com a vida de Bin Laden, será porque seus eleitores não terão sido os milhões de estadunidenses, mas os três mil mortos do ato terrorista de 11 de setembro de 2001. Para ele, “nenhum governo eleito por mortos foi estável em toda a história humana”. (Com informações da Agência Carta Maior)

“Perto de Eichmann, Osama é engraxate” Para historiador, caso de nazista aponta incoerência de países como o Brasil e Argentina quanto a apoio a Obama da Redação “Osama Bin Laden, perto de [Karl] Adolf Eichmann [ex-coronel nazista], é um engraxate”. Essa é a conclusão de Osvaldo Coggiola, professor de história da Universidade de São Paulo (USP). Ao se comparar o caso de Eichmann com o de Bin Laden, criou-se uma contradição histórica e jurídica. O coronel nazista foi sequestrado pelo serviço secreto israelense (a Mossad), em maio de 1960, na Argentina, o que gerou uma crise diplomática na OEA (Organização dos Estados Americanos) e na ONU (Organização das Nações Unidas).

Cinquenta anos depois, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota, posicionou-se de forma acrítica em relação às circunstâncias ilegais da execução do terrorista Karl Adolf Eichmann foi um tenentecoronel da SS (abreviação de Schutzstaffel, uma organização paramilitar ligada ao então partido nazista alemão na pri-

meira metade do século 20). Foi um dos principais responsáveis pelo assassinato de milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo judeus. Tempos distintos

Segundo Coggiola, além de o governo argentino da época, administrado pelo então presidente Arturo Frondizi Ercoli, o próprio Brasil (dirigido por Juscelino Kubitschek) reclamou da captura de Eichmann por considerá-la uma violação à soberania do país vizinho. Cinquenta anos depois, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota, posicionou-se de forma acrítica em relação às circunstâncias ilegais da execução do terrorista. Em nota, ele apenas afirmou: “só podemos nos solidarizar com as vítimas desses atos [terroristas] e com aqueles que buscam justiça”. “Esses mesmos países que apoiaram o assassinato de Bin Laden, responsável por 3 mil mortes, criticaram, em 1960, a ação das potências por consentirem com o sequestro de Eichmann, responsável por 6 milhões de mortos, em território sul-americano”, lembra Coggiola. Eichmann recebeu a sentença de morte em 15 de dezembro de 1961 e foi enforcado em 1º de junho de 1962, na prisão de Ramla, perto de Tel Aviv, em Israel. (ESL)


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américa latina

O fracasso anunciado do Plano América Central U.S. Embassy Bogotá

OPINIÃO Na luta contra as drogas, os EUA insistem na sua solução “ideal”, aquela mesma fórmula que serve para achar armas nucleares, acabar com vilões terroristas e derrubar ditadores sanguinários: as guerras

Apesar desse resultado, a administração Obama anunciou planos de estender indefinidamente a Iniciativa Mérida com um orçamento de 1,6 bilhão de dólares. O Executivo solicitou um valor extra de 282 milhões de dólares para o plano no orçamento de 2012. Do Carsi ao Plano América Central

A América Central recebeu mais assistência em segurança dos Estados Unidos a partir da Iniciativa Mérida. No entanto, apenas 260 milhões de dólares do valor destinado a esse plano, entre 2008 e 2010, foram alocados para os países do istmo. A parte centro-americana do Mérida foi estabelecida separadamente, através da Iniciativa de Segurança Regional para a América Central (Carsi, por sua sigla em inglês), em 2010. De acordo com o documento do Serviço de Pesquisas do Congresso Estadunidense, os líderes centro-americanos agora esperam da Iniciativa Mérida/Carsi uma resposta mais incisiva ao problema da segurança no istmo. De fato, o presidente da Guatemala, Álvaro Colom, reiterou a importância de se definir um plano de segurança para a América Central. E o presidente de El Salvador, Mauricio Funes, afirmou à imprensa que a capacidade de operação das organizações criminosas, bem como sua capacidade financeira de comprar instituições ou de permeá-las é tal que se faz necessária uma ação internacional coordenada para combatê-las, utilizando-se das “experiências exitosas que países como México e Colômbia têm tido”.

Aleksander Aguilar AGORA JÁ NÃO SE pode dizer que são especulações. Durante a 28ª Conferência Internacional para o Controle de Drogas, realizada no México no início de abril, o principal responsável pela guerra antidrogas dos Estados Unidos, William Brownfield, subsecretário do Departamento de Estado, admitiu que a estratégia contra o narcotráfico que há décadas tem sido empregada pelo seu país está errada. Mesmo com essa declaração, e por mais contraditório que soe, os Estados Unidos, que têm se aventurado na luta contra as drogas com estratégias militarizadas de pressão contra a oferta enfocadas na Colômbia e no México, insistem na sua solução “ideal”, aquela mesma fórmula que serve para achar armas nucleares, acabar com vilões terroristas e derrubar ditadores sanguinários: as guerras. E guerra se faz a partir de planos. Primeiro, foi o Plano Colômbia, depois a Iniciativa Mérida, ambos oficialmente fracassados e, agora, erroneamente propagados sob uma nova investida, o Plano América Central. Durante a visita do presidente dos EUA Barack Obama à América Latina em março passado, a pequena república de El Salvador foi uma parada considerada inusitada em sua agenda. Mas é precisamente o tema da segurança que a justifica. Obama anunciou o repasse de 200 milhões de dólares para o combate ao narcotráfico no país – um tímido sinal de planos maiores em gestação.

Primeiro, foi o Plano Colômbia, depois a Iniciativa Mérida, ambos oficialmente fracassados e, agora, erroneamente propagados sob um uma nova investida, o Plano América Central Instabilidade

Em um contexto de persistente pobreza, desigualdade e desemprego, somado a um sistema político-jurídico frágil e ao dilema das imigrações, favorecem-se na América Central o aumento do crime e das ameaças contra a segurança nacional – que se faz regional –, que deteriora o tecido social dos países do istmo. Grupos narcotraficantes armados e bem financiados ameaçam a estabilidade desses governos e vão mais além. “Dado o caráter transnacional das organizações criminais e suas habilidades de explorar espaços político-institucionais fracos, alguns analistas são assertivos em afirmar que a insegurança na América Central representa um risco potencial para os Estados Unidos”, afirmou o Serviço de Pesquisas do Congresso Estadunidense, através do informe de março deste ano, intitulado “Central America Regional Security Initiative: background and policy issues for Congress” (Iniciativa de Segurança Regional da América Central: contextualização e questões políticas para o Congresso, em tradução livre). Os Estados Unidos sabem que sua demanda pelo consumo de drogas é determinante para a insegurança cidadã regional e que as consequências dessa situação na América Central lhes afetam intensamente. “Em 1979, avaliamos o problema do uso e do tráfico de drogas como algo que poderia ser resolvido rapidamente com uma campanha agressiva e com grandes esforços. Passaram-se 32 anos, bilhões de dólares, muitas ações e lhes posso afirmar que estávamos errados”, declarou Brownfield. Contudo, ao reconhecer o equívoco de tentar combater o narcotráfico país por país, o governo dos Estados Unidos quer também justificar seus planos para investir cada vez mais em uma estratégia regional baseada na tática militar. Na implementação da Iniciativa Mérida, a secretária de Estado Hillary Clinton se esforçava para provar que o Plano Co-

A inflexível aplicação da política de “cultivo ilícito zero” é um obstáculo para o desenvolvimento socioeconômico em zonas afetadas pela coca William Brownfield e Hillary Clinton: admissão de erro não muda estratégia

lômbia, iniciado dez anos antes, era um modelo para o México. Ambos os planos são citados agora como modelos para a possível oficialização de um Plano América Central. Todavia, nem o Colômbia nem o Mérida conseguiram fazer com que os problemas de segurança regional fossem resolvidos ou a guerra contra o tráfico de drogas vencida. O Plano Colômbia

De acordo com o informe da organização Insight Crime, até agora, o governo estadunidense repassou 7 bilhões de dólares à Colômbia como parte do plano concebido no governo Bill Clinton para combater o narcotráfico e a insurgência na nação andina. A maior parte desse montante foi em ajuda militar: treinamentos e equipamentos bélicos, como helicópteros e navios. A Colômbia fez sua parte e triplicou o orçamento militar, quase dobrando o tamanho de suas Forças Armadas. A produção de drogas na Colômbia, no entanto, permanece alta, mesmo com o êxito do plano em localizar e eliminar as plantações de coca. Segundo o informe de abril de 2009 da Agência Estadunidense para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), intitulado “Assessment of the implementation of the United States Government’s support for Plan Colombia’s illicit crop reduction” (Avaliação da implementação do apoio do governo dos Estados Unidos para o projeto de redução de plantações ilícitas do Plano Colômbia, em tradução livre), a área de produção de coca foi reduzida em 24%. Porém, desde 2004, algumas áreas de cultivos têm sido parcialmente retomadas, pois os camponeses produtores da coca buscaram minimizar a interdição das plantações em áreas menores.

Na implementação da Iniciativa Mérida, Hillary Clinton se esforçava para provar que o Plano Colômbia, iniciado dez anos antes, era um modelo para o México A inflexível aplicação da política de “cultivo ilícito zero” é um obstáculo para o desenvolvimento socioeconômico em zonas afetadas pela coca porque, apesar de estar desenhada para promover uma cultura de legalidade, acaba impedindo o governo de brindar uma ajuda que per-

mitiria aos camponeses mudarem para uma atividade legal. O Estado não oferece alternativas viáveis aos cocaleiros: os programas disponíveis não chegam nem a 10% das famílias que se dedicam ao plantio da coca. E, ainda que a ajuda estadunidense seja utilizada abertamente, também, para desmantelar grupos rebeldes armados, paradoxalmente existe um crescimento de grupos paramilitares de direita, que estão substituindo os grandes cartéis do narcotráfico. A credibilidade do governo foi afetada pela corrupção e por comprovadas ligações desses grupos com autoridades estatais.

No México, a militarização da segurança pública levou mais de 90 mil soldados às ruas e resultou, até agora, em uma cifra recorde de 37 mil homicídios relacionados ao narcotráfico A Iniciativa Mérida

No México, a militarização da segurança pública, iniciada em 2006 e intensificada com a implementação da Iniciativa Mérida em 2008, levou mais de 90 mil soldados às ruas e resultou, até agora, em uma cifra recorde de 37 mil homicídios relacionados ao narcotráfico e milhares de denúncias de violações dos direitos humanos perpetradas pela polícia e pelas Forças Armadas, de acordo com os dados divulgados no ano passado pelo America’s Programe of the Center for International Policy in Mexico City. (Programa Estadunidense do Centro para Politíca Internacional da Cidade do México, tradução livre) O assassinato de políticos, a ameaça a civis e as conturbações da vida cotidiana no México aprofundaram-se. A questão é particularmente alarmante no que tange aos imigrantes. Estima-se que mais de 400 mil cruzam o território mexicano todos os anos. Segundo dados do Instituto Nacional de Imigração do México, somente 150 mil conseguem chegar até o outro lado. A Comissão Nacional de Direitos Humanos revela que, entre setembro de 2008 e fevereiro de 2009, mais de 100 mil imigrantes foram sequestrados no México. Os grupos criminosos que atuam na região, como os Zetas e o Cartel do Golfo, praticam sequestros para cobrar entre mil e dois mil dólares de resgate às famílias dos imigrantes que, muitas vezes, já estão instaladas nos Estados Unidos.

Mas, uma das principais tragédias na guerra contra o narcotráfico é que ela, em si, impede que sejam pensadas e estabelecidas outras estratégias mais efetivas, pois se apresenta como a única opção possível. Enquanto o governo estadunidense gasta centenas de milhões de dólares do dinheiro público para “arrumar” o México, pouco tem sido feito para solucionar os problemas do crime transnacional dentro de suas fronteiras, como, por exemplo, a demanda por drogas, a logística de transporte e a distribuição do produto, as autoridades corruptas, o tráfico de armas e a lavagem de dinheiro. Alternativas

Ainda que as Forças Armadas indiscutivelmente tenham um importante papel, ainda não está claro até que ponto elas devem ser utilizadas em uma estratégia de longo prazo. Mais de 50% dos guatemaltecos, hondurenhos e salvadorenhos não confiam nas suas instituições de defesa, como mostram os resultados da pesquisa de 2009 da Universidade Vanderbilt, publicado pelo Latin American Public Opinion Project, cujo título é “Do you trust your Armed Forces?” (Você confia nas suas Forças Armadas?). Qualquer aumento da violência ou percepção de arbitrariedades, como já acontece como resultado das operações da Carsi, levarão a um aumento da degradação da confiança. Se no âmbito regional deve-se apostar na prevenção e na depuração da polícia e das Forças Armadas, outras estratégias que incluem ações no território estadunidense também devem ser realizadas. Rastrear o dinheiro ilegal, por exemplo, no lugar de promover tiroteios nas ruas do México e da América Central, teria mais eficácia. Nesses países e nos Estados Unidos, deveriam ser atacadas as estruturas financeiras das organizações criminosas: milhões de dólares são lavados no mercado financeiro. Para debilitar o crime organizado de maneira séria, é necessário desmantelar o fluxo ilegal de dinheiro, ainda que isso afete a interesses poderosos. Sem dar atenção à prevenção e sem atacar a infraestrutura do crime organizado, a estratégia para intensificar a guerra ao narcotráfico, através de um novo plano que alcance as nações centroamericanas, levará a uma nova era de relações militarizadas entre a América Latina e os Estados Unidos e abrirá passagem para conflitos cada vez mais violentos no continente. Aleksander Aguilar é jornalista, master em Estudos Internacionais e pesquisador de temas como cooperação sul-sul latinoamericana e transformação de conflitos


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Vende-se um país HONDURAS Em busca de investimento privado, governo flexibiliza leis laborais e coloca bens naturais na vitrine Angel Rama

Pilar Rodríguez de San Pedro Sula (Honduras) NOS DIAS 5 E 6 de maio, o clima era aparentemente de festa em Honduras. Todos os meios de comunicação publicizavam exaustivamente o Fórum Internacional Honduras is Open for Business (Honduras está aberta aos negócios) e anunciavam o “relançamento” da nação centro-americana “como o mais atrativo destino para o investimento na América Latina”. “Nós, hondurenhos, que adoramos nosso país, estamos sumamente de acordo com esse evento, senhor chanceler Mario Canahuati. Quando terá a segunda edição?”, perguntou o repórter da HRN, uma das principais emissoras de rádio do país, durante a coletiva de imprensa de encerramento. Enquanto a grande mídia fazia coro ao colega, o cinegrafista da Globo TV, destacado para cobrir os protestos que aconteciam do lado de fora, era violentamente agredido por policiais e foi hospitalizado em estado de inconsciência. A emissora foi um dos poucos meios do país que não aderiu ao golpe de Estado contra o então presidente Manuel Zelaya, em 28 de junho de 2009.

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Em coletiva de imprensa, o chanceler Mario Canahuati disse que Honduras não será vendida, mas emprestada

“Produtos”

Os bens naturais desse país centroamericano de localização geográfica estratégica foram oferecidos a 1.400 investidores vindos de 55 países, entre eles o empresário mexicano Carlos Slim, considerado pela revista Forbes o homem mais rico do mundo. Os 154 projetos consolidados, à espera somente de investimento privado, custam cerca de 15 bilhões de dólares, montante aproximado ao PIB do país em 2010, que foi de 16,288 milhões de dólares. Entre os projetos, estão a construção de grandes hidrelétricas e rodovias; a expansão do Porto Cortés, com o objetivo de torná-lo o terceiro maior do mundo; complexos turísticos; e produção de agrocombustível através da palma africana (equivalente ao dendê).

bilhões de dólares é o valor total dos projetos oferecidos aos investidores estrangeiros pelo governo de Honduras, número aproximado ao de seu PIB de 2010

de quase toda a produção bananeira do país. “Em todos esses anos de liberalismo, nos disseram que o investimento estrangeiro direto nos levaria ao desenvolvimento e sairíamos do atraso e da dependência. Mas não foi assim”, escreveu. Desigualdade

Os bens naturais desse país centroamericano de localização geográfica estratégica foram oferecidos a 1.400 investidores vindos de 55 países Em artigo publicado no sítio da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), o economista e dirigente sindical, Carlos H. Reyes, afirmou que o desenvolvimento de Honduras não depende dos negócios. Reyes relata que em 1924 os Estados Unidos, ao invadirem Honduras e imporem uma ditadura, apoderaram-se

De fato, uma visita ao país revela o verdadeiro grau de desenvolvimento desencadeado pelo modelo neoliberal agudizado depois do golpe de Estado. Complexos turísticos no litoral contrastam com a miséria e a fome no interior. Segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), os 10% mais ricos da população concentram 42% da renda nacional, enquanto que os 10% mais pobres, somente 0,9%. No campo é onde a população está mais vulnerável: de acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em Honduras existem mais de quatro milhões de camponeses, indígenas e afrodescendentes. Desses, mais de dois milhões vivem em extrema pobreza. A situação está se agravando com a crescente alta do preço do

combustível e o consequente aumento da cesta básica. Carlos Reyes explica que um dos fatores que levaram ao golpe de Estado foi justamente o fato de o presidente deposto ter adotado medidas que frearam algumas concessões a empresas estrangeiras. “Quando um governo quis nos tirar desse esquema e deu passos iniciais para buscar a integração natural e histórica com os países do sul, o império deu um novo golpe de Estado, montou mais duas bases militares e instalou um exército de ocupação, apoderando-se praticamente de Honduras”. Seca de recursos

Ao contrário de Manuel Zelaya, o atual mandatário, Porfirio Lobo Sosa – eleito em novembro do mesmo ano em um pleito organizado pelos golpistas e considerado fraudulento –, tenta de todas as maneiras atrair investimento estrangeiro para a região. Depois do golpe de Estado, o país foi expulso, por unanimidade, da Organização dos Estados Americanos (OEA), o que impediu o acesso a alguns empréstimos e doações internacionais. Além disso, a crise política interna e as denúncias de violações de direitos humanos afastaram alguns credores. O Banco Alemão DEG (Associação para Investimentos e Desenvolvimento), por exemplo, suspendeu crédito de 20 milhões de dólares para a Corporação Dinant, empresa do hondurenho Miguel Facussé, alegando preocupação com os conflitos agrários da região do Baixo Aguán. Facussé é o principal implantador do monocultivo de palma africana nessa região.

Segundo dados do Banco Central Hondurenho, o fluxo de investimento estrangeiro caiu pela metade depois do golpe. Em 2008, a cifra chegava a 1 bilhão de dólares; em 2009, foi de somente 523 milhões de dólares. Outro dado que comprova a crise financeira é o aumento da dívida externa. Em 2008, ela era de 160 milhões de dólares; dois anos depois, alcançou os 700 milhões. Atualmente, o principal ingresso econômico do país são as remessas de hondurenhos que vivem nos Estados Unidos. De janeiro a março de 2011, elas atingiram 650 milhões de dólares.

“Em todos esses anos de liberalismo, nos disseram que o investimento estrangeiro direto nos levaria ao desenvolvimento e sairíamos do atraso e da dependência. Mas não foi assim” Abertura

Acossado por tal realidade, poucos dias antes do evento Honduras is Open for Business, o Congresso Nacional aprovou a “Lei de Proteção e Promoção de Investimento”, que inclui pontos como a flexibilização laboral e a intervenção estrangeira no sistema jurídico nacional. Não só. O governo aprovou reformas na Constituição que, segundo o atual presidente, “modernizam o Estado hondurenho” a fim de permitir a construção de Regiões Especiais de Desenvolvimento, também conhecidas como Cidades Modelo. “Assaltaram o Estado para assegurar o benefício e a realização do capital estrangeiro. Para eles, pouco importa se para isso é preciso violar direitos humanos e cometer delitos inconstitucionais contra a nação”, enfatizou Carlos Reyes. “Essas leis desregulam o mercado laboral, deixam nulo o Código do Trabalho e atentam contra os convênios da Organização Internacional do Trabalho”, completou. As cidades modelos são regiões autônomas, ou seja, terrenos onde vigoram leis independentes da legislação oficial do país, permitindo uma flexibilização para o investimento privado. As críticas a esse tipo de projeto dizem que isso significaria uma grande perda de soberania. Hong Kong é o exemplo mais famoso desse tipo de cidade, sendo uma das economias mais liberais do mundo. Segundo o governo, nessas regiões circularão o lempira (moeda hondurenha), o dólar e o euro.

Fé no investimento privado

Honduras “emprestada” Angel Rama

Integrante do governo admite que as riquezas do país ficarão nas mãos de investidores “por certo tempo”

de San Pedro Sula (Honduras)

de San Pedro Sula (Honduras) Enquanto os empresários participavam de “rodas de negócio” e de visitas ao porto e ao parque industriais de San Pedro Sula, a capital econômica do país centro-americano, centenas de pessoas organizadas na Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP) protestavam a poucas quadras do Fórum Internacional Honduras is Open for Business contra o que chamavam de “venda de Honduras”. O evento, denunciou Salvador Zuñiga, dirigente do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas (Copinh), “é parte da estratégia da venda de Honduras. Por meio dela, pretende-se oferecer a água, a terra, a floresta, os minerais, a propriedade intelectual dos povos indígenas e a beleza de nossas paisagens às transnacionais, fundamentalmente aos grandes oligarcas. Em uma vitrine, estão oferecendo o país à empresas estrangeiras que cometem violações aos direitos humanos e ao direito do trabalhador”. Como vem acontecendo nos últimos protestos da resistência hondurenha, um forte contingente policial e militar reprimiu a manifestação com gás lacrimogêneo, agressão física direta e até disparos de arma de fogo. No primeiro dia de manifestação, oito militantes foram detidos, entre eles, um menor.

Manifestante escreve na rua diante de policiais

Disputa no campo

Ao responder às críticas, o ministro de Relações Exteriores e principal empresário da indústria de confecção do país, Mario Canahuati, afirmou que Honduras não está à venda, e sim emprestada. “Nossa Honduras pode ser emprestada por certo tempo, para benefício de nossa gente. Os projetos, ao final, permitirão, através de investimento privado, fomentar ou estimular projetos que são sumamente necessários para desenvolver a infraestrutura, o turismo e o agronegócio. Este último, particularmente, vai ajudar os pequenos produtores”, afirmou. No entanto, dias antes do Honduras is Open for Business, a Via Campesina do país entregou uma proposta de Lei de Transformação Agrária que, segundo o coordenador dessa entidade, Rafael Ale-

gría, é justamente uma resposta das organizações camponesas ao agronegócio, protegido pela Lei de Modernização Agrícola, em vigor desde 1990.

“Em uma vitrine, estão oferecendo o país à empresas estrangeiras que cometem violações aos direitos humanos e ao direito do trabalhador” Segundo as organizações do campo, essa lei freou a reforma agrária que estava em curso na época e fomentou a abertura do livre mercado, afetando os pequenos produtores e aumentando a pobreza a nível nacional. (PR)

Ao mesmo tempo que atrai investimento privado ao país, o atual mandatário hondurenho, Porfirio Lobo Sosa, tenta consolidar um bloco de direita na América Latina que apoie o golpe de Estado de junho de 2009 e defenda o regresso de Honduras à Organização dos Estados Americanos (OEA), organismo da qual foi expulsa logo depois da deposição do então presidente Manuel Zelaya. Não por acaso, o evento Honduras is Open for Business contou com a presença do ex-presidente da Colômbia e grande ideólogo do neoliberalismo Álvaro Uribe. Em seu discurso, ele defendeu o investimento privado e atacou o governo da Venezuela. “Alegra-me muito o que está ocorrendo em Honduras. Enquanto outros países da região estão nisso que chamam de ‘novo socialismo’, aqui estão fazendo um voto de fé no investimento privado para resolver a pobreza e construir equidade. Qual socialismo triunfou? Nenhum! Me dizem que o governo da Venezuela faz grandes programas em matéria social. Minha pergunta é: são sustentáveis? Sem investimento privado é impossível sustentar este tipo de política”. Semanas antes do evento, Porfírio Lobo Sosa procurou o presidente venezuelano Hugo Chávez para servir de mediador num processo de reconciliação política das forças políticas de Honduras. Além disso, empresários hondurenhos exigiram a volta do país ao convênio do Petrocaribe, que proporcionava petróleo a baixos custos. A crise política, a pobreza e a alta do petróleo já não se sustentam mais. (PR)


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américa latina

“Os indígenas na Venezuela não eram nem reconhecidos como parte da sociedade” ENTREVISTA Vice-ministra venezuelana fala sobre avanços na questão dos povos originários na chamada Revolução Bolivariana Reprodução

Vinicius Mansur de Brasília (DF) DE PASSAGEM pelo Brasil para a reunião da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), a vice-ministra do Poder Popular para os Povos Indígenas da Venezuela, Aloha Núñez, falou ao Brasil de Fato sobre as conquistas e os desafios dos povos indígenas de seu país durante o governo de Hugo Chávez, presidente desde 1999. Indígena da etnia wayúu, 27 anos, nascida em La Guarija – no estado de Zulia, cerca de 900 quilômetros a oeste de Caracas, Núñez foi coordenadora de uma associação de estudantes indígenas da Universidade de Zulia, em Maracaibo, e trabalhou para uma das “missões” empreendidas pelo governo Chávez, antes de chegar ao ministério. Brasil de Fato – Qual a população indígena da Venezuela?

Aloha Núñez – Segundo o censo de 2001, somos entre 2 e 3% da população, pouco mais de 500 mil indígenas. O que não representa a realidade, porque o censo em 2001 não conseguiu chegar a todas as comunidades. E nem todo mundo que era indígena se identificava assim. Era o início da revolução e, antes dela, não havia direito e reconhecimento alguns. Dizer que era indígena gerava um rechaço. Não é como neste momento, quando há uma lei orgânica de povos indígenas, há direitos. O censo aponta 36 povos indígenas; agora, já temos 44 reconhecidos e mais de 2.800 comunidades indígenas. Naquele momento, eram só 2.400. Há um movimento indígena organizado na Venezuela?

Há diferentes organizações indígenas tanto em nível nacional como regional. Cada povo indígena, ou, pelo menos, cada região, tem organizações que representam um estado. Há, também, organizações nacionais como o Conselho Nacional Indígena da Venezuela, a Frente Indígena Waike’puru e a Conbive, Confederação Bolivariana Indígena da Venezuela.

“O comandante Chávez, antes de ganhar a presidência, assumiu o compromisso com os povos indígenas de fazer todo o possível para pagar a dívida histórica acumulada” Qual a relação desses movimentos com a Revolução Bolivariana?

A luta dos povos indígenas na Venezuela começou há muito tempo. Quando houve essa manifestação indígena em toda a América, quando começou a luta pelos direitos indígenas na ONU, quando o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho [que garante os direitos indígenas] foi conquistado, as organizações indígenas conseguiram se visibilizar. Logo depois, veio a revolução. O comandante Chávez, antes de ganhar a presidência, assumiu o compromisso com os povos indígenas de fazer todo o possível para pagar a dívida histórica acumulada. A relação de abertura do presidente com as comunidades indígenas aconteceu desde o início da revolução. E isso se viu manifestado não só nesse compromisso, mas com sua chegada ao poder: quando, imediatamente, ele convoca a Constituinte, ele incorpora a população indígena.

Como foi isso?

A Constituinte teve deputados indígenas e a nova Constituição tem um capítulo especial para povos e comunidades indígenas, direito que nunca tiveram. A única coisa que existia na Constituição era um artigo que prometia a “incorporação indígena progressiva à vida da Nação”. Os indígenas não eram nem reconhecidos como parte da sociedade! Então, a Constituição de 1999 representou uma grande porta. Ela estabelece que, para a Assembleia Nacional, três indígenas devem ser eleitos. Eleitos por região: sul, oriente e ocidente. Além disso, em todos os municípios indígenas, temos vereadores indígenas. Em todos estados com população indígena, temos legisladores indígenas. Os indígenas têm, pelo menos, uma vaga garantida nesses espaços. Depois, criou-se a lei de demarcação de povos e comunidades indígenas. Em seguida, criou-se a missão Guaicaipuro, para atender, na parte social, esses povos. Depois, criou-se a Lei Orgânica de Povos e

Principal reivindicação indígena ainda é a demarcação de terras

Comunidades Indígenas. Não conheço outro país que tenha uma lei que abarque tantos direitos, que vá além do Convênio 169. E, posteriormente, criou-se o Ministério de Poder Popular para os Povos Indígenas, dirigido por Nicia Maldonado, uma indígena yekuana, amazônica, o que representa uma vontade política total. Em outros países, não vemos ministérios indígenas; em geral, são fundações do Estado que, muitas vezes, não são dirigidas por indígenas. Então, notase profundamente o compromisso político do comandante Chávez com o empoderamento do povo indígena. Como se encontra o processo de demarcação de terras?

Ainda estamos nele. Na Venezuela, a demarcação se inicia de duas formas: uma por solicitação da comunidade e outra por ofício da Comissão Presidencial Nacional de Demarcação, que se encarrega, juntamente com uma comissão regional, de estudar todas essas questões. Já entregamos 40 títulos de terra, mas nos faltam muitos. São títulos coletivos que vão acompanhados de um plano integral de apoio a esses povos, para que eles tenham todas as ferramentas para levar adiante seu território, para que seja autossustentável e, em algum momento, ajudar o país também.

“Posteriormente, criou-se o Ministério de Poder Popular para os Povos Indígenas, dirigido por Nicia Maldonado, uma indígena yekuana, amazônica” Há alguma política para a promoção da cultura indígena?

A lei estabelece de forma oficial os idiomas indígenas. Nas escolas desses povos, as aulas devem partir em idioma indígena. Antes, só se falava castelhano. Nas cidades onde há população indígena também deve haver pelo menos um professor para dar o conteúdo indígena, o que se chama de educação intercultural bilíngue. Ainda temos uma lei de artesãos e artesãs indígenas. Hoje, quais são as principais reivindicações indígenas ao Estado?

Terminar o processo de demarcação, essa é a demanda em toda a América. Para nós, é uma prioridade, e nosso comandante Chávez foi muito insistente nisso. Por outra parte, não podemos negar que temos comunidades em alta vulnerabilidade que reivindicam uma assistência permanente do governo. Então, criamos uma corresponsabilidade entre as comu-

nidades indígenas e o Estado, para que o povo se empodere, seja protagonista na superação de seus problemas e, assim, se livre da miséria e do analfabetismo e consiga a suprema felicidade social, como já disse nosso libertador Simón Bolívar. Uma grande quantidade de comunidades ainda não conseguiu essa libertação. Algumas poucas, sim. Vivemos um processo de revolução, mas não podemos consertar um problema de mais de 500 anos de invasão, abandono, extermínio, de uma educação penetrante, invasiva, que te diz que o indígena é o bruto, o bêbado, o preguiçoso. Estamos nesse processo de tirar esse “chip” e meter outro.

“Já entregamos 40 títulos de terra, mas nos faltam muitos. São títulos coletivos que vão acompanhados de um plano integral de apoio a esses povos” Há conflitos com comunidades indígenas por conta de megaprojetos implementados pelo governo?

Sim. Mas nós respeitamos o Convênio 169 da OIT, que estabelece o consentimento prévio, livre e informado. Então, cada vez que um projeto vai ser executado em alguma comunidade indígena, deve-se consultá-la, apresentar o projeto, informar com antecipação. Se há dúvidas, é preciso esclarecer e, inclusive, se as comunidades não estão de acordo com o projeto, ele não é levado adiante.

“Por outra parte, não podemos negar que temos comunidades em alta vulnerabilidade que reivindicam uma assistência permanente do governo” Alguma vez o governo deixou de fazer algum projeto?

Uma vez, faz tempo, já. Eram umas concessões para explorar carvão em território yukpa. Os indígenas eram contra e a denúncia chegou ao presidente, que convocou um ato público com 2 mil trabalhadores petroleiros e disse que não haveria concessões. E até hoje não há. Isso foi muito manipulado, porque algumas ONGs diziam que nós não queríamos demarcar o território. Pensam que, com a demarcação, podem ganhar alguma autonomia. Nesse caso, fizeram a comunidade discutir e, inclusive, expulsar o companheiro Sabino Romero, um líder. As ONGs o utilizaram como único porta-voz indígena, transformaram a luta de uma comunidade numa luta pessoal. Diziam que ele era o cacique dos caciques, o mais lutador de todos, mas, quan-

do você vai à comunidade, te dizem que não é bem assim, que faziam assembleias com um só cacique, não com todos. Em assembleia, chegaram até a dizer que essa ONG era persona non grata.

“Cada vez que um projeto vai ser executado em alguma comunidade indígena, deve-se consultála, apresentar o projeto, informar com antecipação” Qual é a situação desse cacique agora?

Com todo esse conflito que se criou, houve um enfrentamento entre duas comunidades indígenas. O companheiro Sabino Romero e outro companheiro se enfrentaram. Houve um tiroteio entre duas comunidades que resultou em três pessoas mortas. Depois desses assassinatos, tanto Sabino Romero como Alexander Romero estão presos. Então, logo as ONGs começaram a dizer que eram presos políticos, que a ministra os prendeu, um montão de coisas... Há um processo judicial em averiguação. Mas é preciso ficar claro que quem decidiu que Sabino deve ser julgado pela Justiça ordinária foi o mesmo povo yukpa. E, se fosse pela lei yukpa, talvez o tivessem matado. Porque isso acontece quando você chega a matar dentro de uma comunidade indígena. Nós estamos num processo de formação para não chegar a esses níveis. Para não chegar a esse extremo, a comunidade decidiu entregálo à Justiça ordinária, em uma assembleia que, inclusive, foi televisionada. Isso ajudou a tratar o tema, porque todo mundo vitimizava Sabino Romero. Agora, ele está em liberdade condicional, mas a comunidade foi muito determinante, disse que não quer Sabino. Mas ele nos disse que não pode ser proibido de voltar, senão, podem haver mortos. Então, há uma preocupação do Estado, porque não queremos um enfrentamento entre o povo yukpa.

A Justiça comunitária indígena é reconhecida pelo Estado na Venezuela?

Sim. A Constituição e a Lei Orgânica de Povos e Comunidades Indígenas reconhecem a justiça própria. Mas há uma dívida aí, em relação à regulamentação da lei, que deve ser feita pela Assembleia. Porque há coisas que devem ser normatizadas. Nós não temos pena de morte e jamais apoiaríamos isso. Cada comunidade tem suas particularidades e está se estudando tudo isso, para que ninguém aplique penas que violem os direitos humanos.


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