Edição 430 - de 26 de maio a 1º de junho de 2011

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Felipe Canova

México

OAnanegócio da violência Págs. 10 e 11 Esther Ceceña faz radiografia da situação em seu país

Uma visão popular do Brasil e do mundo

Circulação Nacional Ano 9 • Número 430

São Paulo, de 26 de maio a 1º de junho de 2011

R$ 2,80 www.brasildefato.com.br Flávio Cannalonga

O prejuízo social do etanol O mercado internacional pouco se abriu ao etanol brasileiro. pMesmo assim, a demanda interna impulsionou a ampliação de fusões entre empresas com capital nacional e estrangeiro e o crescimento da área plantada e da produção. Péssima notícia para os pequenos agricultores que produzem alimentos, que se tornam cada vez mais reféns do controle econômico dos usineiros, sobretudo no estado de São Paulo. Págs. 4 e 5

ISSN 1978-5134

A Espanha também se “revoluciona”

Pág. 9

O projeto de Rebelo e os grandes interesses

Pág. 6

Frei Betto

Vito Giannotti

Roberto Malvezzi (Gogó)

Os gays e a Bíblia

O trabalho acabou?

Código da desertificação

É surpreendente constatar as pressões sobre o Senado para evitar a lei que criminaliza a homofobia. Sofrem de amnésia os que insistem em discriminar e satanizar os casais homoafetivos. Pág. 3

Desde a falência das experiências socialistas do século 20, seladas pela queda do muro de Berlim, em 1989, muitos perderam a esperança num futuro livre, justo e solidário. Pág. 3

A desertificação avança no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Novas notícias dizem que o norte de Minas pode transformar-se num deserto em 20 anos. Pág. 3


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de 26 de maio a 1º de junho de 2011

editorial

“Se não nos deixam sonhar, não deixaremos que durmam” AS LUTAS POPULARES propagamse pelo exemplo, como ondas que estimulam a criatividade e produzem novas experiências. É o que assistimos neste momento. As revoltas do norte da África inspiram milhares de jovens em diversas partes do mundo. O acampamento da “Porta do Sol” em Madri se alastra por todas as grandes cidades da Europa e já começam a surgir iniciativas em Washington e Moscou. Como explica o jornalista português Miguel Urbano, seria um erro concluir que os jovens que criaram o movimento “Democracia Real Já” são revolucionários e o seu objetivo é a destruição do regime. O Movimento 15 de Maio (M-15) atraiu gente muito diferente. Alguns nem sequer rejeitam a obsoleta e corrupta monarquia dos Bourbon. Mas rapidamente a contestação popular excedeu as previsões. O movimento, após a repressão do primeiro dia, foi olhado quase com benevolência pelo PP e pelo PSOE, os dois grandes partidos da burguesia. Mas, ao assumir proporções torrenciais, o protesto adquiriu os contornos de uma condenação do regime na qual as massas emergiam como sujeito histórico.

opinião

O movimento foi capaz de construir uma plataforma democrática e popular para apresentar ao governo e à sociedade, possibilitando uma rápida adesão de entidades da classe trabalhadora e movimentos populares. Lutam por uma democracia real, com a eliminação dos privilégios dos parlamentares e governantes e a equiparação do salário dos representantes eleitos ao salário médio espanhol. Também lutam contra o desemprego, exigindo redução da jornada de trabalho e aposentadoria aos 65 anos. Além disso, o programa inclui o direito à habitação e serviços públicos de qualidade. Expressão da luta pelo direito à democracia participativa é a exigência de uma legislação que facilite a convocação popular de referendos e plebiscitos. Outras três bandeiras merecem destaque: o controle das instituições bancárias, incluindo a devolução de todos os investimentos públicos para o capital financeiro; o aumento de impostos para as grandes fortunas e bancos e a redução dos gastos militares. A retomada de bandeiras democráticas nos países europeus é a cla-

Que o exemplo dos jovens espanhóis, inspirados na juventude do norte da África siga se alastrando, retomando as ruas é demonstrando que um outro mundo é possível

ra denuncia de um sistema político alicerçado nos interesses econômicos que impossibilita a efetiva participação da maioria da população. Não há democracia autêntica sem participação decisiva do povo. Atílio Bóron, importante pensador das lutas populares escreveu o artigo

“Os Indignados e a Comuna de Paris”, relacionando o crescente movimento da juventude europeia com o episódio fundamental da história da classe trabalhadora que completa 140 anos. Ele nos lembra que aquilo que a democracia espanhola, nascida do famigerado Pacto de Moncloa, propõe para enfrentar a crise “é o despotismo do mercado, irreconciliável com qualquer projeto democrático”. Realmente, diante do agravamento da crise econômica, volta a entrar em cena a receita neoliberal: diminuição dos salários e dos benefícios para os trabalhadores, cortes de gastos públicos, aumento dos juros. Neste contexto, as forças de direita intensificam sua propaganda, transformando os trabalhadores estrangeiros em bode expiatório, alimentando a insegurança da classe média e estimulando o avanço de forças reacionárias, nacionalistas de direita e até fascistas, como na Itália. Exemplo significativo é o bom desempenho eleitoral nas pesquisas francesas da candidatura da filha do fascista Le Pen. O que caracteriza essa segunda fase da crise econômica na Europa é o fim da generosidade dos Estados. Num

crônica

Sérgio Bertoni

primeiro momento, os governos europeus seguiram o exemplo dos EUA e emitiram dinheiro para estimular a recuperação da economia. Agora estão endividados e a economia continua parada. Não podem fabricar mais dinheiro. Este é o contexto em que a juventude se mobiliza, multiplica seus acampamentos e reivindica uma verdadeira democracia. Retrata o alto nível de indignação e raiva de uma juventude que não tem qualquer esperança de chegar a ter os direitos básicos que a Constituição pomposamente proclama: direito ao trabalho, à habitação, a educação e saúde pública de qualidade, a uma pensão digna. Como afirma o cartaz na porta do acampamento: “se não nos deixam sonhar, não deixaremos que durmam”. A construção de um programa mínimo, unificador das forças populares, tem um papel decisivo na organização e perspectiva de crescimento desta experiência que se alastra pela juventude em todo o mundo. Que o exemplo dos jovens espanhóis, inspirados na juventude do norte da África siga se alastrando, retomando as ruas e demonstrando que um outro mundo é possível.

Ana Carolina Gebrim

Gama

Sobre o ‘dito e o não dito’

Uma mulher “encomendada” NILCILENE MIGUEL de Lima, agricultora familiar, assentada pelo Incra e presidente da ADP - Associação “Deus Proverá” de agricultores familiares do sul de Lábrea, Amazonas, está jurada de morte, encomendada pelos madeireiros que atuam na devastação da região. Os conflitos na região de Lábrea, na divisa dos estados do Acre, Rondônia e Amazonas, existem há décadas, e a cada ano que passa parecem ficar cada vez mais insolúveis. Terras, madeira, águas, riquezas naturais, biodiversidade, são objetos de cobiça que geram todo tipo de crime e destruição. Nilcilene está assentada na região há sete anos, onde conseguiu desenvolver suas atividades de cultivo familiar ligadas à conservação do meio ambiente, da floresta e ao ativismo social e laboral. Nestes anos ela e seus familiares conseguiram cultivar uma lavoura de café, bananeiras, abacaxizeiros, além de mudas para reflorestamento da área. Em agosto de 2010, toda esta riqueza produtiva, assim como sua a casa e a de um vizinho próximo foram destruídas pelas chamas ateadas, por jagunços contratados pelos madeireiros que atuam na região. Nilcilene começou sofrer ameaças depois que uma denúncia anônima levou o Ibama a investigar, encontrar e apreender três motosserras e vários mognos derrubados e prontos para serem despachados em uma das grandes propriedades próximas à de Nilcilene. O sossego dela, de seus parentes e vizinhos terminou aí. Os madeireiros enfurecidos com as apreensões de “suas” propriedades acusaram a líder sindical, social e comunitária de ter formulado a denúncia ao Ibama e decidiram intimida-la para que “confessasse” a autoria. Não sendo autora da denúncia, Nilcilene jamais poderia assumir algo que não fez ou que tampouco sabia quem havia feito. Foi espancada de tal forma que um de seus companheiros na luta em defesa da floresta chegou a dizer: “ela apanhou tanto que dava para ver as manchas rochas em sua pele cor de jambo”. A associação de agricultores familiares liderada por Nilcilene entrou com vários processos na justiça estadual, mas até agora pouca coisa foi

Porém, até o momento, não houve prisão alguma, indiciamento algum

feita, levando os agricultores à sensação de que no Amazonas o estado é completamente ausente e omisso. Depois de recorrer à CPT e a órgãos federais, Nilcilene, acompanhada do assistente-técnico da Ouvidoria Agrária Nacional, João Batista Caetano, foi ouvida pelo delegado de Polícia Civil de Lábrea, designado para o caso pela Delegacia-Geral de Polícia Civil de Manaus, quando finalmente pode relatar as agressões e ameaças de morte que vem sofrendo pelo fato de ser uma militante. O mencionado delegado assumiu compromisso de pedir a prisão preventiva dos responsáveis pelas ameaças e agressões físicas. Porém, até o momento, não houve prisão alguma, indiciamento algum. Nem o delegado, nem o promotor público da Comarca de Lábrea, que compunham à época o grupo de acompanhamento desses conflitos na região, foram até à localidade, justificando o sentimento dos agricultores familiares em relação à morosidade e a impunidade do Estado. Os criminosos não se intimidaram e no último dia 10 de maio, quando suas cunhada e sobrinha deixavam a casa de Nilcilene após ali pernoitarem, um pistoleiro armado as abordou para comunicar que iria matar Nilcilene e que as mataria também caso contassem algo para a líder da ADP. O pistoleiro chegou a dar detalhes de como seria o assassinato. “Ela não vai morrer rápido! Vou torturála, quebrar suas pernas, braços e depois esquartejá-la”, teria dito ele. Cunhada e sobrinha ficaram aterrorizadas, mas a sobrinha resolveu

contar tudo à tia. Ao saber do ocorrido o marido de Nilcilene saiu em busca do apoio dos vizinhos e todo um esquema de segurança e fuga foi armado. As pessoas que possuem veículos na região não podiam saber que Nilcilene precisava sair dali por estar jurada de morte. Então, optaram por “engravidar” a “cunhada” e levar Nilcilene disfarçada para fora da região. Chegando à sede do município de Califórnia (AM), Nilcilene não pôde registrar a ocorrência, sendo encaminhada ao município de Extrema, em Rondônia. Ali, ao tentar registrar a queixa, a polícia local lhe informou não ser possível abrir um Boletim de Ocorrência, pois as ameaças estariam ocorrendo em outro estado da federação, já que Lábrea encontra-se no estado do Amazonas. Depois de muita insistência, finalmente Nilcilene conseguiu registrar um B.O., mas as autoridades locais não registraram no mesmo se tratar de ameaças e agressões por parte dos madeireiros, nem fizeram menção alguma ao conflito rural e ambiental. Desde então, Nilcilene está escondida sob a proteção de organizações humanitárias, pois se voltar para sua casa corre perigo. E o que mais Nilcilene quer neste momento é poder voltar para seu cantinho de terra e continuar seu trabalho de agricultura e líder social. Não pode! Há dois pistoleiros a sua espera. Eles se revezam na “guarda” da propriedade de Nilcilene. Um deles é conhecido matador de aluguel que há três meses, vestido de policial, matou um camponês na Bolívia. Para receber o contratado o matador trouxe ao Brasil a orelha de sua vítima boliviana. Ela quer ainda que as autoridades competentes lembrem-se que os agricultores familiares do Amazonas são cidadãos iguais aos outros, eleitores e pagadores de impostos como qualquer outro brasileiro, mas que são lembrados apenas na época das eleições. “A justiça é rápida para defender os grandes, mas nada faz para proteger os pequenos e tirar os bandidos da área para que eu possa voltar ao meu lar e produzir dignamente como sempre fiz”, desabafa Nilcilene. Sérgio Bertoni é jornalista.

MEU PRIMEIRO ESPANTO foi em torno da polêmica sobre as declarações do deputado Bolsonaro. Notei que a reação das pessoas frente as suas falas era de profundo horror e rechaço. As declarações reacionárias e ultradireitistas de ‘bolsonaros’ expressam um pensamento de uma época, que infelizmente ainda tem fortes resquícios em nossa sociedade atual. Bolsonaro é a expressão viva da mentalidade policialesca e direitista, também da impunidade dos crimes da ditadura militar e da composição anacrônica do cenário político brasileiro atual. Bolsonaro fala com propriedade de um pensamento que graças a muita luta não é mais vigente nem hegemônico no país. Como sei dessa realidade sobre a figura de Bolsonaro e tantas outras figuras públicas ainda presentes não me choco com o que eles dizem. Não pretendo abordar o conteúdo político das declarações de Bolsonaro nessa polêmica, e de antemão, adianto que para mim, sem sombra de dúvida são detestáveis e absolutamente contestáveis. O que me intriga nessa história é a reação quase que de desespero de determinadas opiniões (públicas e privadas) frente a algum conteúdo proferido, proclamado. No dia seguinte às declarações do deputado em um programa televisivo, a grande maioria das opiniões que vi, li e ouvi (rádios, entrevistas, jornais, twitter, facebook) não eram de enfrentamento político frente ao conteúdo racista e homofóbico proferido pelo oficial do exército e sim ataques histéricos descontrolados. A imagem que me veio à cabeça na época foi da figura dos três macacos, em que um cobre os olhos com as mãos, o outro os ouvidos e o terceiro a boca. Me parece que são os “três macacos sábios”, esses que não veem o mal, não falam o mal e não ouvem o mal. Penso que não são nada sábios. O mal existe e nos habita, no mundo e em nós, todos. Tendo em vista essa realidade, não se trata de calá-lo, de não ouvi-lo e tampouco de não vê-lo. Vi reações e opiniões histéricas que demonstravam que ‘aquilo que não pode ser dito’ foi falado. Nesse caso, há que calá-lo, rápido. De que ordem é o calar senão do recalcado? E o que vem a ser o recalcamento senão o movimento de manter um conteúdo pulsional latente na esfera do inconsciente?

Vi reações e opiniões histéricas que demonstravam que ‘aquilo que não pode ser dito’ foi falado Não se trata de calar seja o Bolsonaro, ou não importa que pessoas tenham ‘x’ ou ‘y’ declarações, e sim de debater, enfrentar, compreender, situar histórica e politicamente seus posicionamentos e atitudes. Há de se ganhar a discussão, sim, mas no enfrentamento de ideias e não no silenciamento. Pois silenciar o outro é acima de tudo um ato de silenciar a si mesmo. O que vem a ser então o conteúdo recalcado nesse caso? Em outras palavras, o que seria o silenciamento de si mesmo? Tenho a impressão de que estamos vivendo em um lugar comum em que coisas não podem ser ditas. Não podem ser ditas para não serem lembradas que existem? É minha hipótese. Talvez essas reações sejam sintomas do discurso que a cada dia vem sendo disseminado, o do politicamente correto. O termo ‘politicamente correto’, penso, diz mais do termo ‘correto’ do que do ‘politicamente’. Ou seja, é a política do correto, e nesse sentido é normativo e regula a expressão de determinados pensamentos. Mas o problema que enxergo é que essa política do correto é da ordem do ‘abafamento’, ou do silenciamento, como dito anteriormente. Outro episódio, bastante estarrecedor, que dá origem a esse texto, foi o das reações pelas declarações do cineasta dinamarquês Lars von Trier no festival de Cannes. Lars von Trier não é Jair Bolsonaro, nem de longe. Bolsonaro é um fascista, von Trier não. Mas as reações em torno de suas falas foram semelhantes. E é sobre as reações que quero me ater e não aos conteúdos. Pois, diga-se de passagem, as frases de von Trier não são nem de longe expressões de algum pensamento nazista. Se queremos realmente evitar que a história das barbáries humanas se repita, não devemos calar e silenciar as lembranças incômodas que as evocam. Há de se enfrentá-las, combatê-las (mais pela conduta do político e menos pela do correto). Ana Carolina Gebrim é socióloga

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda • Subeditores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Jade Percassi • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: FolhaGráfica • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Camila Dinat, Cleyton W. Borges, Delci Maria Franzen, Dora Martins, Edmilson Costa, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, José Antônio Moroni,Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800


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Frei Betto

www.malvados.com.br

instantâneo

É NO MÍNIMO surpreendente constatar as pressões sobre o Senado para evitar a lei que criminaliza a homofobia. Sofrem de amnésia os que insistem em segregar, discriminar, satanizar e condenar os casais homoafetivos. No tempo de Jesus, os segregados eram os pagãos, os doentes, os que exerciam determinadas atividades profissionais, como açougueiros e fiscais de renda. Com todos esses Jesus teve uma atitude inclusiva. Mais tarde, vitimizaram indígenas, negros, hereges e judeus. Hoje, homossexuais, muçulmanos e migrantes pobres (incluídas as “pessoas diferenciadas”...). Relações entre pessoas do mesmo sexo ainda são ilegais em mais de 80 nações. Em alguns países islâmicos elas são punidas com castigos físicos ou pena de morte (Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Nigéria etc). No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 2008, 27 países membros da União Europeia assinaram resolução à ONU pela “despenalização universal da homossexualidade”. A Igreja Católica deu um pequeno passo adiante ao incluir no seu Catecismo a exigência de se evitar qualquer discriminação a homossexuais. No entanto, silenciam as autoridades eclesiásticas quando se trata de se pronunciar contra a homofobia. E, no entanto, se escutou sua discordância à decisão do STF ao aprovar o direito de união civil dos homoafetivos.

Vito Giannotti

O trabalho acabou DESDE A FALÊNCIA das experiências socialistas do século 20, seladas pela queda do muro de Berlim, em 1989, muitos perderam a esperança num futuro livre, justo e solidário. Muitos teóricos intelectuais, chefes de partido ou aguerridos militantes de esquerda se apressaram em dizer que o socialismo acabou, que a história chegou ao fim. E, com isso, as classes e a luta de classes teriam acabado. Nesta toada, quase todos os partidos comunistas esqueceram suas raízes e logo mudaram até de nome. O mesmo aconteceu com os partidos socialistas. A visão de muitos ex-esquerdas sejam estes professores-doutores, burocratas da esquerda bem comportada ou antigos militantes radicais, pode se resumir a três “adeus”: adeus ao trabalho, adeus à luta de classes, adeus ao socialismo. Mas o trabalho continua e com ele a luta de classes. A realidade mostra isso. Aumento da exploração, dos acidentes com mortes e resposta com revoltas e greves. Como acabou o trabalho no Brasil? Em cada obra das grandes usinas há mais de 50 mil peões. Só na construção da refinaria Abreu e Lima, em Suape/PE trabalham 24 mil homens. E os automóveis, quem os constroem? São 6 mil operários na Volks de Taubaté/ SP, 8,5 mil na Ford de Camaçari/BA, quase 17 mil na Fiat de Betim/MG e 13 mil na Mercedes de São Ber-

nardo, além de outras centenas de milhares de operários de todo tipo. Esses trabalhadores são explorados como 30, 40 ou 60 anos atrás e além do mais perderam direitos conquistados com décadas de lutas. As mortes por acidentes de trabalho continuam no país inteiro. Somente na Cemig, em Minas Gerais, em 2011, o Sindieletro/MG denunciou cinco acidentes fatais. Em Pernambuco, informações do INSS revelam que no triênio 2007/2009, houve 51 mil acidentes com 241 mortes de operários. Na construção civil do Espírito Santo, em 2010, foram 12 acidentes fatais. E por que estas mortes? Pela mesma razão que as empreiteiras amontoam “seus” trabalhadores em chiqueiros chamados de alojamentos e pagam salários de miséria. Esses números e essas mortes derrubam aqueles três “adeus”. A exploração continua e a luta de classes vai continuar. É só olhar as greves que pipocam no Brasil inteiro, as greves e revoltas na Espanha, no Egito e no mundo todo. O que falta, hoje, mundialmente, é a retomada da proposta do socialismo, como única saída deste tipo de sociedade construída por trabalhadores e trabalhadoras, mas que está a serviço de um punhado de beneficiados deste sistema.

Roberto Malvezzi (Gogó)

Código da desertificação A DESERTIFICAÇÃO AVANÇA no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Aqui na região Nordeste temos manchas de desertificação no Piauí, Pernambuco e Ceará. Esses dias novas notícias dizem que o norte de Minas pode transformar-se num deserto em 20 anos. As perspectivas do aquecimento global para a região semiárida projetam a inviabilização de toda a região para a agricultura até o final do século, caso a temperatura da Terra suba entre dois e sete graus. O cálculo é que, para cada grau de aumento da temperatura, há uma perda de 10% na produção de certos produtos. Dessa forma, fala-se que o Ceará pode perder até 70% de sua fertilidade caso a temperatura suba mesmo sete graus. Cenário tão terrível como esse é também pintado para a região amazônica, na já rotineira afirmação de que a região pode transformar-se de uma floresta tropical em uma rala savana. Some-se a esses cenários o macabro legado do agronegócio no Brasil, que deixou por onde passou cerca de 80 milhões de hectares inviabilizados para qualquer produção. Alguns falam em recuperar es-

Os gays e a Bíblia

sas áreas, mas os que cometeram o crime querem desmatar ainda mais. Talvez seja esse o ângulo mais cruel do código da desertificação proposto agora pelos ruralistas. Insatisfeitos com os danos que já causaram, querem mudar a lei para destruir ainda mais. Mas, agora querem fazê-lo legalmente, dentro da lei. Certamente o planeta Terra vai saber distinguir entre seus danos legais e ilegais. Afinal, na cabeça desse povo, se a queimada e o desmatamento forem legais, certamente não contribuirão para o efeito estufa, não degradarão os solos, não eliminarão os mananciais, não comprometerão a galinha dos ovos de ouro. Parece que os ruralistas estão encontrando um osso duro de roer chamado Dilma. A presidenta já garantiu que, se o código da desertificação for aprovado, ela veta. Não parece que esteja brincando. Mas, brasileiros que somos, só acreditaremos vendo. Mas vamos dar um crédito a essa postura. Afinal, está na hora de alguém pensar mais no país que nesses parceiros eleitorais de terceira categoria.

Por que fingir ignorar que o amor exige união e querer que essa união permaneça à margem da lei? Ninguém escolhe ser homo ou heterossexual. A pessoa nasce assim. E, à luz do Evangelho, a Igreja não tem o direito de encarar ninguém como homo ou hétero, e sim como filho de Deus, chamado à comunhão com Ele e com o próximo, destinatário da graça divina. São alarmantes os índices de agressões e assassinatos de homossexuais no Brasil. A urgência de uma lei contra a homofobia não se justifica apenas pela violência física sofrida por travestis, transexuais, lésbicas etc. Mais grave é a violência simbólica, que instaura procedimento social e fomenta a cultura da satanização. A Igreja Católica já não condena homossexuais, mas impede que eles manifestem o seu amor por pessoas do mesmo sexo. Ora, todo amor não decorre de Deus? Não diz a Carta de João (I,7) que “quem ama conhece a Deus” (observe que João não diz que quem conhece a Deus ama...). Por que fingir ignorar que o amor exige união e querer que essa união permaneça à margem da lei? No matrimônio são os noivos os verdadeiros ministros. E não o padre, como muitos imaginam. Pode a teologia negar a essencial sacramentalidade da união de duas pessoas que se amam, ainda que do mesmo sexo? Ora, direis ouvir a Bíblia! Sim, no contexto patriarcal em que foi escrita seria estranho aprovar o homossexualismo. Mas muitas passagens o subentendem, como o amor entre Davi por Jônatas (I Samuel 18), o centurião romano interessado na cura de seu servo (Lucas 7) e os “eunucos de nascença” (Mateus 19). E ao tomar a Bíblia literalmente, teríamos que passar ao fio da espada todos que professam crenças diferentes da nossa e odiar pai e mãe para verdadeiramente seguir a Jesus. Há que passar da hermenêutica singularizadora para a hermenêutica pluralizadora. Ontem, a Igreja Católica acusava os judeus de assassinos de Jesus; condenava ao limbo crianças mortas sem batismo; considerava legítima a escravidão e censurava o empréstimo a juros. Por que excluir casais homoafetivos de direitos civis e religiosos? Pecado é aceitar os mecanismos de exclusão e selecionar seres humanos por fatores biológicos, raciais, étnicos ou sexuais. Todos são filhos amados por Deus. Todos têm como vocação essencial amar e ser amados. A lei é feita para a pessoa, insiste Jesus, e não a pessoa para a lei. Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de Um homem chamado Jesus (Rocco), entre outros livros.

comentários do leitor União estável homoafetiva

A decisão do STF reconhecendo a união estável homoafetiva realmente foi um grande passo para combater a homofobia no Brasil. Mas cabe a nós analisarmos que muitos projetos, inclusive o proposto pela senadora Marta Suplicy, estão sendo defendidos somente agora devido ao grande índice de violência contra os homossexuais e a declarações polêmicas de pessoas como Jair Bolsonaro. É explicitamente oportuno para a senadora defender essa causa agora. No entanto, mesmo com intenções propositais, será ótimo se conseguirmos acabar, ou pelo menos amenizar, o preconceito no Brasil. Mas fiquemos atento após a poeira abaixar, é preciso cobrar sempre!

Priscila Freiria, na Agência Brasil de Fato

União estável homoafetiva 2

Sou heterossexual, casado e tenho dois filhos maravilhosos com quem compartilho a dinâmica da vida com os momentos mais varia-

dos entre alegrias e tristezas. É fato que saber qual caminho trará essa dinâmica vital depende da posição particular de cada um. Poder sentir livremente a forma com a qual se é acolhido em suas necessidades afetivas e emocionais é de fundamental importância para o bem-estar e equilíbrio de todo ser humano. Somos capazes de definir uma posição que nos trará a paz e um convívio harmonioso, sem que esse Deus intolerante a sua própria criação condene qualquer movimento em direção à verdadeira paz humana.

Luiz Gustavo G S Rocha, na Agência Brasil de Fato

Marcha da Maconha

Parabéns Júlio Delmanto, pelo seu artigo (“Marcharemos, queiram ou não”, edição 429). Tanto a direita como a esquerda sabem que a maconha é problema social, mas veja o álcool: será que se a Ambev não financiasse campanha políticas ainda veríamos tantos comerciais de morenas seminuas com cervejas na mão? Tenho muito orgulho por ver

que existem ainda na USP pessoas que lutam por uma sociedade socialista e plural – embora seja quase só no prédio de humanas.

Miguel Angelo Sena da Silva Junior, na Agência Brasil de Fato

Marcha da Maconha 2

Caro Júlio, como um texto de um militante que se preze, o seu está muito bom, mas é no mínimo simplista querer rebaixar o debate sobre as drogas à defesa única de uma marcha como expressão da democracia. Ou fazer ilações de que a simples regulamentação desse “comércio” livra os pobres da criminalização ou da seletividade criminosa da corrupção; o tráfico ou o comércio legal já o fazem como estratégia de dominação político/econômica. É do caráter ideológico dos EUA serem intervencionistas, e não será com a “liberação” da maconha que essa prática acabará. Apologia à violência é ver todos os dias os operários da droga aliciando, viciando e seviciando as crianças nas favelas como mão de obra barata, como toda mão de

obra deste sistema capitalista, para capitalizar cada vez mais fortunas ao mundo do crime, o qual sustenta toda a corrupção no Brasil e no mundo. A corrupção tão presente em nosso meio é financiada pelo tráfico de drogas e não será a “liberação” que fará com que isso deixe de existir. Acabando com as drogas é que acabaremos com a corrupção e aí sim teremos um “outro mundo possível, sem droga e politizado”. Não quero ver os meus netos alienados pelo vício e a serviço do crime organizado dos capitalistas bacanas. Todo drogado é um doente desde antes de ser viciado e, por isso, é dever do Estado e da sociedade cuidá-lo e curá-lo. E, finalmente, por favor, não se utilize da Constituição brasileira para tentar ludibriar os mais desatentos com a facilidade de se reivindicar democrata só quando lhe convém.

Itamar Santos, de Viamão (RS), na Agência Brasil de Fato

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico comentariosdoleitor@brasildefato.com.br




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brasil Renato Araújo/ABr

fatos em foco

Hamilton Octavio de Souza

Incongruência Dez entre dez empresários não querem a saída de Antonio Palocci da Casa Civil, pois entendem que a confiança do mercado no governo poderia ser abalada. Só resta então satisfazer a curiosidade da imprensa empresarial em querer saber quem comprou e quais foram os serviços prestados pela “consultoria” do ministro. Afinal, o que um deputado federal do PT teria a vender para grandes empresas ao ponto de ter faturado R$ 20 milhões em 2010?

Membros da bancada ruralista manifestam-se a favor da votação do novo Código Florestal

Código Florestal: negócio dos grandes POLÍTICA AMBIENTAL Propostas de Aldo Rebelo são benéficas ao grande capital e não oferecem benefícios aos pequenos agricultores, como alegam ruralistas Vinicius Mansur de Brasília (DF) NA TENTATIVA de dar um ar popular à reforma do Código Florestal, os ruralistas e o deputado Aldo Rebelo (PCdoBSP) fizeram enorme esforço retórico para caracterizar seu projeto como necessário aos agricultores familiares. Rebelo chegou a afirmar que o governo propõe o “extermínio” da agricultura familiar ao pedir que os pequenos produtores tenham área de reserva legal dentro de suas propriedades. Já a senadora Kátia Abreu (PSD-TO) declarou que os grandes produtores não precisam deste projeto porque estão com “a vida arrumada”. “Os verdadeiramente aflitos são os pequenos e médios produtores, que não sabem nem por onde começar, só têm a multa em cima da cabeça, o impedimento de produção e o desespero total de não poder financiar”, diz ela.

Entretanto, uma análise do engenheiro florestal e militante da Via Campesina, Luiz Zarref, sobre a proposta de Rebelo mostra que é o interesse dos grandes que move o projeto.

“É um texto complexo, que reúne os interesses de considerável espectro de frações do capital nacional e internacional”

“Um estudo do documento – aquele entregue de forma sorrateira no minuto anterior à votação em plenário [11/05] – permite uma radiografia das benesses que o deputado garante aos seus novos aliados. É um texto complexo, que reú-

ne os interesses de considerável espectro de frações do capital nacional e internacional”, aponta. Este espectro é capaz de aglutinar antigos latifundiários, a indústria do camarão, do agrocombustível, das papeleiras e até mesmo “o novo flanco de expansão do capital, a economia verde”, com a financeirização das florestas (veja o quadro). Para Zarref, inclusive, esta forte presença “de considerável espectro de frações do capital” explica a desconfiguração da base de governo e da oposição quando o assunto é Código Florestal. “Após anos de votações marcadas exclusivamente pelo jogo da governabilidade e do fisiologismo, o parlamento novamente é palco de uma disputa de caráter ideológico, que reaglutina setores à esquerda acima das disputas partidárias, ao mesmo tempo que reúne os setores conservadores que estão dentro ou fora da famosa ‘base governista’. Essa polarização não se dá por um acaso”, ressalta.

Os interesses envolvidos no projeto Aldo Rebelo de Brasília Confira abaixo os pontos centrais do projeto de reforma do Código Florestal apresentado por Aldo Rebelo (PCdoBSP). O relatório defendido pelos ruralistas e enfrentado por ambientalistas estava previsto para ser votado na noite do dia 24 de maio, após o fechamento desta edição. 1º Área consolidada – este conceito é introduzido pelo projeto para designar as áreas, sejam elas relativas à Área de Preservação Permanente (APP) ou à Reserva Legal (RL), que já foram desmatadas até 22 de julho de 2008 e não precisam ser recuperadas. Este é o coração do projeto ruralista, pois significa passar uma borracha nos crimes já cometidos pelo agronegócio. Além disto, a dificuldade de se comprovar o que foi desmatado até a data especificada pode ser outro trunfo para os ruralistas. Não por acaso, os últimos dados divulgados pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o desmatamento na Amazônia Legal cresceu 26% entre agosto do ano passado e abril de 2011, quando comparado com o mesmo período em 2009/2010. Entre março e abril de 2011, quase 60% do desmatamento foram de corte raso – processo de remoção total da cobertura florestal em um curto intervalo de tempo. Somente no dia 18/5, cinco tratores de grande porte, utilizados para operar os correntões que devastam grandes áreas de uma só vez, foram apreendidos. Também não por acaso, a ruralista Kátia Abreu afirmou que os dados do Inpe podem ter sido “manipulados ou distorcidos”. Ou seja, uma vez aprovada a proposta de Rebelo, o agronegócio poderá promover uma batalha judicial para caracterizar suas áreas como consolidadas. 2º Recuperação RL – o projeto dos ruralistas estipula que propriedades com até quatro módulos fiscais não precisarão recompor o que já desmataram de sua RL. Assim, fazendas de até 400 hectares na Amazônia, por exemplo, estarão isen-

tas da recuperação de sua RL. E não há nada que impeça o desmembramento de grandes propriedades. O projeto do governo propôs uma trava que impedia mexer na reserva legal em caso de desmembramento. Assim como previa a isenção de recuperação de RL somente para a agricultura familiar. Ao não aceitar estas propostas do Planalto, o discurso ruralista que defende, de forma oportunista, a reforma do Código Florestal em nome dos pequenos agricultores cai por terra. Ademais, caso apenas a agricultura familiar fosse isenta de recuperar a RL já desmatada, o impacto ambiental seria muito menor. Afinal, de acordo com o Censo Agropecuário 2006 do IBGE, as terras da agricultura familiar representam cerca 25% das terras agricultáveis do país. 3º Computo da APP como RL – Na proposta do governo, isso só seria possível para a agricultura familiar. A proposta de Rebelo estende esse benefício para todos. Em áreas de agricultura familiar, relativamente pequenas, o espaço das APPs ocupa um espaço proporcionalmente grande, por exemplo, caso passe um córrego dentro desta propriedade. As grandes propriedades não têm porque receber o mesmo tratamento das pequenas. 4° Suspensão de multas e crimes ambientais – Prevista para aqueles que se cadastrarem em um programa de recomposição ambiental. Estes terão suas multas revertidas em ‘serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente’. Como os grandes proprietários são os detentores das maiores multas, são eles os maiores beneficiários da suspensão. 5º Aquisição de áreas no mesmo bioma para compensar RL – Permite ao desmatador compensar o que falta de RL em sua propriedade com a compra ou arrendamento de outras áreas no mesmo bioma. Esta medida não tem sentido ambiental, já que o efeito do desmatamento em uma região não será equilibrado caso a compensação seja feita em

área muito distante. E não tem sentido social, já que o agronegócio, já detentor das terras mais valorizadas, fará grande pressão para adquirir terras menos valorizadas de pequenos agricultores, reforçando a tendência ao êxodo rural. 6º Lobby dos carcinicultores – tira das APPs as áreas salgadas – que são fundamentais para sobrevivência do mangue – para atender aos interesses da indústria do camarão. 7º Papeleiras – o projeto de Rebelo garante a criação de “culturas lenhosas perenes”em topos de morro, áreas acima de 1,8 mil metros e áreas inclinadas acima de 45 graus. Alegam que isto beneficia produtores de maçã e uva, por exemplo. Se o interesse fosse este, o termo poderia ser “culturas frutíferas”, entretanto, isto não garantiria as plantações de eucalipto. 8º Recomposição da RL com até 50% de espécies exóticas – além de contemplar o interesse das papeleiras, esta medida permite o cultivo de plantas para produção de agrocombustível, como a palma africana. 9º Madeireiros – a civicultura (madeira) é equiparada pelo projeto de Rebelo à atividade agrícola. Portanto, estará apta a receber todos os benefícios da política agrícola brasileira, como o acesso a créditos e outros incentivos. 10º Falso controle – a proposta de Rebelo inviabiliza, na prática, o capítulo sobre controle do desmatamento porque retira: a participação do Ministério Público, a possibilidade de embargo de terras desmatadas ilegalmente e o bloqueio de repasse de crédito. 11° Cota de Reserva Florestal – o projeto de Rebelo transforma a Cota de Reserva Florestal em um título ambiental, tornando porções de florestas em título nominativos negociáveis, dando assim os primeiros passos para a financeirização do meio ambiente. (VM)

Mais lucro Sob a denominação de “desoneração”, conhecido jargão neoliberal, o governo federal caminha para reduzir impostos e contribuições sociais recolhidos com base na folha de pagamentos das empresas. Estima-se a perda de receita do INSS em R$ 50 bilhões no ano. Questão básica: quem vai arcar com a reposição desses recursos públicos? As empresas vão aumentar seus lucros – mas como fica o sistema público de saúde e aposentadoria? Só dinheiro A mídia burguesa tem enaltecido a siderúrgica CSA, montada com capital estrangeiro associado com a Vale, que opera há pouco tempo e já aparece como a segunda maior exportadora de aço do Brasil. Omitem que a população de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, está sofrendo terrivelmente com a poluição da empresa. É mais uma prova de que o poder valoriza o econômico e ignora o ser humano e o meio ambiente. Destruição O avanço do agronegócio e da monocultura da soja acelerou o desmatamento no estado de Mato Grosso: só em abril a área destruída atingiu 243 quilômetros quadrados, aumento de 537% em relação ao ano passado. O Instituto Centro de Vida identificou dezenas de novos focos de desmatamento em Nova Ubiratã, Santa Carmem, Cláudia, entre outros. O Ibama alega que não dispõe de pessoal para fazer a fiscalização. Desmatamento Deu no site Tapajós Livre: “A presidenta Dilma Rousseff deve assinar Medida Provisória autorizando a desafetação das áreas atingidas por três usinas do Complexo Tapajós pertencentes a cinco Unidades de Conservação. Com essa canetada, e contra a opinião dos técnicos responsáveis da área, a União abrirá mão da proteção de 140 mil hectares de floresta numa região considerada de capital importância na luta contra o desmatamento e a perda de biodiversidade da Amazônia”. É o fim da picada! Ato violento Mais de 500 famílias foram violentamente despejadas de suas casas, dia 18 de maio, em Barra do Riacho, município de Aracruz (ES), pela tropa de choque da Polícia Militar. Tiveram suas casas destruídas para que a área fosse entregue à especulação imobiliária de grandes empresas. Em nota, a Associação Brasileira dos Advogados do Povo pede a interferência de autoridades para assegurar moradia e respeito aos direitos humanos. Concentração Segundo a Advocacia-Geral da União, a presidenta Dilma Rousseff ajuizou, dia 20, no Supremo Tribunal Federal, ação de inconstitucionalidade contra a lei municipal 416/2008, de Augustinópolis, no Tocantins, que permite à prefeitura conceder alvará de rádio comunitária no âmbito daquele município. É claro que a Constituição concentra esse poder na União, mas bem que poderia deixar isso livre para cada município. Por que não? Discriminação Mobilizados em campanha salarial, os trabalhadores da Nestlé em Feira de Santana, na Bahia, reivindicam equiparação salarial aos trabalhadores de São Paulo, já que o piso na capital paulista é de R$ 980 e o nas unidades do Nordeste é de R$ 750; a ajuda alimentação é de R$ 330 em São Paulo e de R$ 260 em Feira de Santana; além de outras diferenças em hora-extra, adicional noturno etc. Eles pedem o fim da discriminação. Mobilização já Reunida no dia 18 de maio, a executiva nacional da CUT aprovou resolução em que critica o discurso dominante – do governo, empresariado e mídia – sobre a inflação. A central conclama sua base a realizar “as mais ousadas mobilizações e a desenvolver as mais arrojadas e exigentes pautas de reivindicações”. E adverte que a agenda recessiva penaliza a classe trabalhadora. Resta saber se as direções sindicais vão acatar a orientação!


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cultura

Werner Herzog e o Brasil Reprodução

CINEMA O alemão que ama Garrincha, Glauber Rocha, Macunaíma, Grande Otelo e José Lewgoy fala sobre sua relação com o Brasil e sua carreira Maria do Rosário Caetano de São Paulo (SP) CINEASTAS, quando visitam países “cinematograficamente periféricos” (como o Brasil), costumam citar, sempre que instados pela imprensa, dois ou três filmes da região. E tais citações se fazem acompanhar de pedido de desculpas. Afinal – avisam -- “poucos filmes brasileiros circulam pela Europa (ou EUA)”. No caso de Werner Herzog, 68 anos, diretor dos clássicos “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, “O Enigma de Kaspar Hauser”, “FitzCarraldo” e “Meu Inimigo Íntimo” tal não acontece. O Brasil, suas paisagens físicas (em especial a Amazônia), seus cineastas e atores e até grandes nomes do futebol fazem parte das vivências herzoguianas. De passagem por São Paulo, para participar do III Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, promovido pela revista Cult e pelo Sesc , Werner Herzog falou com carinho de Glauber Rocha e do Cinema Novo, de Grande Otelo e José Lewgoy (atores que ele dirigiu em seus filmes “FitzCarraldo” e/ou “Cobra Verde”), de Garrincha, “alma alegre na tragédia”, do filme “Macunaíma” e de seu diretor, Joaquim Pedro de Andrade. Herzog conviveu com Glauber nos EUA, durante um mês, em 1975. A Joaquim Pedro, ele deve o subtítulo de “O Enigma de Kaspar Hauser” (Cada Um Por Si e Deus Contra Todos). Cinco atores brasileiros estiveram com ele em dois de seus mais de 60 filmes. Ruy Guerra interpretou papel importante em “Aguirre” (o aventureiro Dom Pedro Ursua). Ruy Pollanah esteve em “Aguirre” e “FitzCarraldo”. O cantor Milton Nascimento também atuou em “FitzCarraldo”. Este épico teve a Amazônia peruana e brasileira como cenário. Em Manaus, Herzog filmou no centenário Theatro Amazonas, tendo Claudia Cardinale e Klaus Kinski comandando grande figuração. Para completar, em breve assistiremos a belo e comovido depoimento do próprio Herzog ao filme “Eu, Eu, Eu”, documentário que o paulista Cláudio Kahns dedicou ao mais internacional dos gaúchos, José Lewgoy. Abaixo, trechos da conversa que Werner Herzog manteve, no Sesc Vila Mariana, com centenas de participantes do III Seminário Internacional de Jornalismo Cultural. É verdade que você deu a “O Enigma de Kaspar Hauser” (1972) o subtítulo de “Cada Um Por Si e Deus Contra Todos” por causa do filme “Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade?

Werner Herzog – Sim. Eu escrevi o roteiro do filme em quatro ou cinco dias e não havia um título. Cansado de tanto escrever, resolvi sair para tomar uma cerveja e ver um filme. Acabei vendo “Macunaíma”, do Joaquim Pedro. Fiquei louco pelo Grande Otelo e mais louco ainda por uma frase que ouvi num certo ponto do filme: “Cada um Por Si e Deus Contra Todos”. Congelei na cadeira. Isto que acabei de ouvir é tão lindo que não consigo acreditar. Aí está o título do meu filme. Só que, depois, trocando ideias com várias pessoas, ninguém guardava a frase. Quando eu pedia para que a repetissem, diziam “Cada um Por Deus, Todos pelo Homem”. Ou “Cada Homem por Deus”. Nunca acertavam. Então acabei optando por “O Enigma de Kaspar Hauser – Cada Um Por si e Deus Contra Todos”. Mas, tão importante quanto o subtítulo foi a descoberta de Grande Otelo. Que ator maravilhoso. Nove anos depois eu estava com ele na Amazônia, filmando “FitzCarraldo”. Tomei estas duas riquezas de “Macunaíma”. Não tenho vergonha de assumir, como um pirata, esta troca. E Glauber Rocha? Você conhece os filmes dele?

Conheço muitos dos filmes dele e tive o prazer de conviver com ele, durante um mês, em Berkeley, na Califórnia . Éramos cineastas-convidados da Pacific Film Archive, uma cinemateca muito importante. Como eu não tinha hotel para me hospedar em San Francisco, a Cinemateca do Pacific me ofereceu um quarto ao lado do de Glauber. Me lembro que, em 1975, quando chegou a hora de Glauber, que era bastante desorganizado, regressar ao Brasil, a saída dele nos impressionou a todos, pois tinha milhares de papéis que não cabiam nas malas e iam se

O ator Klaus Kinski em cena do filme FitzCarraldo, filmado na Amazônia

espalhando por todos os lados. Glauber morreu jovem, mas os filmes dele são eternos. Para mim, ele é a alma do Brasil, assim como Garrincha. Glauber é a alma intelectual e visionária e Garrincha é a alma alegre na tragédia deste país.

“Glauber é a alma visionária do Brasil e Garricha é a alma alegre na tragédia” Você, que escalou dois moçambicanos-brasileiros para o elenco de “Aguirre” (Ruy Guerra e Ruy Pollanah) e filmou “FitzCarraldo”, com Lewgoy, Grande Otelo e Milton Nascimento, conhece o cinema brasileiro contemporâneo?

Não costumo mais ver muitos filmes. Só uns dois ou três por ano. Ano passado, vi vinte longas-metragens, porque integrei o juri do Festival de Berlim. Como jurado, fui obrigado a ver todos os concorrentes (risos). De filmes brasileiros recentes, vi um de Walter Salles. Creio que, graças às facilidades das novas tecnologias, uma nova geração está se firmando no Brasil. Quando comecei, filmar era muito complicado. As câmeras eram inacessíveis, o celuloide caro e os laboratórios caríssimos. Hoje, os que querem fazer cinema podem recorrer a ferramentas simples, câmeras digitais muito baratas, pode editar o material no lap-top. É possível fazer um filme com 10 mil dólares. O importante é querer trabalhar e fazê-lo onde há vida pulsando. E há que andar a pé. Andar muito. Este é conselho que lhes dou. Eu abri o cadeado (de uma sala da Universidade de Munique) e roubei a câmera. Com ela fiz meus onze primeiros filmes. Então, só posso lhes ensinar a assaltar e a falsificar documentos. Quando estava na Amazônia peruana e tinha que subir com o navio rio acima, indo atrás num barco a motor, deparei-me várias vezes com acampamentos militares. Eles sempre tentavam me impedir de trabalhar. Um coronel, que guardava a selva com seus soldados, mandou que atirassem em mim. Exigiu que eu apresentasse licenças de filmagem. Sabe o que eu fiz? Regressei a Lima e falsifiquei documentos. Forjei papeis que, em nome da Chancelaria, da Secretaria de Estado e do presidente Belaunde me autorizavam a filmar. Copiei as assinaturas deles com muito zelo e enchi os documentos de carimbos. Nos papeis, havia uma frase em alemão que dizia mais ou menos assim: “quem quiser comprar uma câmera...”. Os que me paravam, ao me ver de volta, olhavam aquelas assinaturas, aqueles carimbos e aqueles escritos, inclusive em alemão, e diziam “pode passar”. Sua relação com [o ator alemão] Klaus Kinski (19261991) foi muito tumultuada e mesmo assim, você o dirigiu em vários filmes...

Minha relação com Kinski, como mostro no documentário “Meu Inimigo Íntimo” foi intensa, mas fiz mais de 60 filmes, e ele está em apenas cinco deles. Havia vida, para ele e para mim, antes, durante e depois destes cinco filmes. Ele atuou em 210 produções. Portanto, esteve separado profissionalmen-

te de mim em 205 filmes. Mas não posso negar que nossa relação foi muito forte. Eu sempre soube que ele era extraordinário e que trabalhar com ele era como domesticar uma fera selvagem. Era preciso fazer a agressividade dele ser produtiva na tela. Kinski tinha momentos de muita coragem e carinho. Nas sequências do navio rio acima, em “FitzCarraldo”, perigosíssimas, ele quis correr todos os riscos, desde que eu estivesse perto dele. Se o navio afundasse, afundaríamos juntos. Para outras coisas ele era covarde. Tivemos confrontos perigosos. A imprensa chegou a dizer que eu só não atirei nele, porque ele deu um passo atrás. Isto não é verdade. Nunca o ameacei com arma de fogo. Mas brigamos muito. Nossa relação foi para um terreno perigoso. Ele tinha oscilações que iam do amor ao ódio, gritava com os extras. Os índios peruanos que trabalharam conosco em “FitzCarraldo” não tinham medo dele e até me disseram que, se eu quisesse, eles o matavam para mim. Como eu ficava calado, eles me disseram que não tinham medo de Kinski, que era um “gritador”. Temiam mais o meu silêncio.

vão viver mais longamente que meus filmes. Ultimamente me exercitei até como ator (risos). Sim, interpretei um cientista-farmacêutico alemão em “Os Simpsons”. Minha função era criar pílulas capazes de curar o mau-humor de Homer Simpson.

“Tenho estima pelos [críticos] franceses, mas confesso que falar com eles é muito problemático para mim”

“A imprensa chegou a dizer que eu só não atirei em Klaus Kinski, porque ele deu um passo atrás. Isto não é verdade” Mas ele foi o maior ator de seus filmes, não?

Ele foi um grande ator, mas o maior de todos, para mim, foi um “não-ator”, Bruno S., com quem fiz “O Enigma de Kaspar Hauser” e “Stroszek”. Que grande presença em cena tinha Bruno S. Ele me tocou mais que qualquer outro. Morreu há alguns meses, estou de luto pela perda dele. Dirigi, mais recentemente, grandes atores como Christian Bale (“O Sobrevivente”) e Nicolas Cage (“Vício Frenético”). Mas tenho que incluir Kinski e sua insanidade entre os melhores. Tenho consciência de que, sem bons atores, não se faz filme narrativo. Aprendemos com eles e também andando a pé de Boston à Guatemala, sendo encarcerado numa prisão da República Centro-Africana, como eu fui. Há que se aprender a conhecer o coração do ser humano. E há que se ler muito, mas muito mesmo.

“Tenho consciência de que, sem bons atores, não se faz filme narrativo. Aprendemos com eles” Como você vê a relação da crítica cinematográfica com seus filmes?

A crítica em geral decaiu muito. O discurso inteligente sobre os filmes foi abolido em favor das celebridades. Nos EUA quase não há mais críticos. Em compensação, multiplicam-se os repórteres de celebridades. Na França, por outro lado, ainda há muitos críticos, mas eles são muito intelectuais, esotéricos. Tenho estima pelos franceses, mas confesso que falar com eles é muito problemático para mim. Tenho me dedicado muito à escrita. Penso até que meus textos

Você tem produzido muito, mas nem todos os seus filmes têm chegado ao Brasil. Por quê?

Este ano fiz quatro ou cinco filmes nos EUA, com produtores norte-americanos. Esta realidade tem um lado positivo. Ao invés de me ocupar em levantar fundos ou armar contratos com redes de TV, eu filmo. Estou, neste momento, realizando cinco novos filmes. Por isto passo com tamanha rapidez pelo Brasil. Mas há um lado negativo nesta situação. Meus filmes tornaramse muito mal distribuídos no mundo. Os produtores americanos se preocupam com o mercado nos EUA e Canadá. Por isto, meu propósito, agora, é ficar com 50% dos meus filmes, ou seja, com a carreira deles nos mercados fora EUA-Canadá. Estou fazendo assim com o novo documentário que finalizo no Texas e na Flórida (“Corredor da Morte”) que tem condenados à pena capital como tema. Sou, como alemão, contra a pena de morte. Não por razões ou argumentos teóricos, mas sim pela experiência de ter nascido num país que, durante o nazismo, matou milhares de pessoas. Nenhum país pode ser habilitado a matar pessoas. Você devotou imensa amizade à grande crítica e historiadora alemã, Lotte Eisner (1896-1983), autora de um clássico sobre o Expressionismo Alemão (“A Tela Demoníaca”). Até dedicou a ela um livro, “Caminhado no Gelo”, diário de sua viagem, a pé, de Munique a Paris. Um sacrifício pela recuperação dela?

Lotte foi muito importante para as novas gerações de cineastas do PósGuerra. Ela, que teve que se refugiar na França, quando Hitler assumiu o poder, reconheceu que depois da grande barbárie, novas gerações de músicos, escritores e cineastas alemães se firmavam. Quando eu tinha 22 anos, ela mandou um filme meu para Fritz Lang [cineasta do expressionismo alemão] e me ajudou muito. Por isto, me dispus, sempre, a fazer todo e qualquer sacrifício por ela. Fui a pé de Munique até Paris, ao encontro dela. Quando cheguei, ela, que mentia a idade desde que fizera 70 anos, tinha quase 80. Ela sabia que fora para mim e para as novas gerações uma grande fonte de inspiração. Quando, novamente, fui ao encontro dela em Paris, ela estava cega e se aproximava dos 90 anos. Não podia mais ler, nem ver filmes, duas de suas maiores paixões. Nem podia caminhar. Lotte me disse que não podia “nem morrer”, pois eu a enfeitiçara para que vivesse para sempre. Retirei, então, o feitiço. Dez dias depois, após um golinho de chá, ela morreu.


internacional

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Puerta del Sol, o grande alto-falante Engel Serón

ESPANHA Em uma das principais praças de Madri, pessoas de todas as idades compartilham o entusiasmo pelo debate Olga Rodríguez de Madrid (Espanha) RUA PRECIADOS, seis da tarde. Ao longe, a massa humana que abarrota a praça Puerta del Sol, em Madri, se levanta. Um grupo de garotas, ao ver a cena, corre em direção à multidão. Milhares de pessoas fazem ressoar o slogan: “Que não, que não, que não nos representem”. Vários amigos de meia idade fazem soar suas panelas e se unem ao cântico dos jovens que estão a seu lado. “Não vamos pagar esta crise”, gritam. É a hora das reuniões de algumas comissões: Arte, Cultura, Ação, Meio Ambiente, Alimentação, Sociedade e Economia. Esta última se situa junto à vitrine de uma livraria na rua do Carmen. Nela, pessoas de todas as idades compartilham o entusiasmo pelo debate. Pegam o megafone para se expressar, propor, ensinar, sugerir. “As preocupações que antes compartilhávamos em solidão, em nossas casas ou com nossos amigos, agora saem à luz. Acontece que ao mesmo tempo muitos de nós estávamos nos dando conta de que isso era uma fraude”, comenta uma mulher de meia idade. Um garoto fala pelo megafone: “Propomos um mundo em que o trabalho seja uma forma de realização pessoal, e que através dele deixemos uma pegada neste mundo”. Aplausos. Outro continua: “Demandamos submeter a referendo o resgate bancário, fazendo uma convocação aos cidadãos europeus para que em seus países também exijam um referendo”. Mais aplausos.

Diversidade

Questão de gênero

Em outra assembleia, perto das barracas, decidiram falar durante todo o dia em feminino, para que eles possam comprovar como elas se sentem. “Todas nós...”, começa um jovem de barba espessa diante de um foro majoritariamente masculino. Cristina, 25 anos, sorri sem parar. “Não posso evitar, é uma iniciativa fantástica. Igual a esta”, afirma, apontando para um enorme cartaz pendurado no alto de um edifício. “Sem feminismo não haverá revolução”, lê-se. Em cima de uma cerca, vários jovens repassam o calendário com a data das provas da faculdade. “Hoje levantei às seis para poder estudar algo”, diz um. “Pois eu fiquei grudada tão gostoso na almofada”, responde outra. No meio da praça, sob a estátua do cavalo, um garoto desenvolto, de vez em quando, se dirige ao público, microfone à mão: “Chegou o momento, a rua

ativismo e a solidariedade confluem com atividades culturais e artísticas. Sob as barracas, dezenas de pessoas fazem fila para se oferecer como voluntárias na organização. “Precisamos de mais água”, grita alguém em um megafone, acrescentando: “Lembremos que alguns moradores da região nos cederam seu wifi [rede de internet sem fio], nos trouxeram cobertores, comida, desparafusadores, fita adesiva... um aplauso para eles, por sua solidariedade!”. “Este é o quilômetro zero de Madri e este é o minuto zero da mudança!”, grita um rapaz. Entardece. Um grupo de homens e mulheres agitam uns cartazes nos quais se lê: “Não se rendam, os pais os estão seguindo!”. Alguns jovens, ao passar e vêlos, acenam e, inclusive, param para falar com eles. Não é preciso apresentações. “Aqui está instalada uma predisposição ao bom ambiente. As pessoas fazem novos amigos”, diz Daniel, engenheiro industrial, 28 anos, desempregado. Ele é acompanhado por outro jovem, que vai distribuindo papéis com propostas por uma economia mais justa e equitativa.

Manifestantes se reúnem na praça Porta do Sol, em Madrid

é nossa, unidos podemos!”. As pessoas gritam emocionadas: “O povo, unido, jamais será vencido”. “Não nos vão calar!”, continua ele.

Em outra assembleia, perto das barracas, decidiram falar durante todo o dia em feminino, para que eles possam comprovar como elas se sentem “Movimento global”

“People of Europe, rise up” (Povo da Europa, levante-se), diz uma enorme fai-

xa pendurada na fachada de um dos prédios centrais. “Claro que sim, que toda Europa se levante contra os resgates, contra os mercados”, grita Manuel, um professor de 47 anos. A seu lado, sua sobrinha, de 19 anos, diz: “Este é um movimento global, as pessoas não sabem o quão fartos estamos de escutar sempre os mesmos, as mesmas cantilenas, as mesmas coisas chatas”. “Desligue a TV, ligue sua mente”, lê-se em um cartaz. “Televisão, manipulação”, diz um coro no lado oeste. “Os meios dão voz aos governantes e se esquecem do povo. Assim que, entre e a invisibilidade e a rua, não nos resta outra opção”, comenta Pablo, frequentador do Patio Maravillas, um lugar de encontro de jovens onde o

Como ele, cada um desta praça busca um modo de expressar suas ideias, frustrações, sentimentos. Fazem isso através de faixas, cartazes, slogans, canções, desenhos, de sisudos textos impressos em papel onde repassam os abusos da política atual, onde oferecem alternativas estudadas. Os transeuntes, os acampados, formam um grupo heterogêneo que, no entanto, encontrou um ponto de encontro eficaz em demandas maximalistas, baseadas no desejo real de uma mudança profunda. “Há propostas que podem ser próprias de uma ou outra ideologia política, mas preferimos não etiquetá-las. Assim, cabemos todos”, afirma, quase afônica de cansaço, Montse, uma sevilhana de 28 anos. Passadas as nove da noite, anunciam ao megafone o apoio da Comissão de Jovens da Revolução do Egito ao movimento 15 de Mayo na Espanha. Novamente, explode um prolongado aplauso acompanhado de gritos: “Egitoooo, Egitoooo”. Cai a noite sem que caiba nem uma alma a mais nem na Puerta del Sol nem nas ruas próximas. Jovens e não tão jovens, famílias inteiras, conversam animadamente, observam, debatem, se fotografam. De vez em quando, diante da instalação de alguma grande faixa, do anúncio de apoio, de um cântico reivindicativo, um sutil calafrio percorre a praça com se fosse um sopro de irmandade e futuro. Quando a lua aparece, um dos cartazes mais passeados durante o dia se carrega de sentido: “Já temos Sol, agora vamos buscar a Lua”. (Periodismo Humano) Tradução: Igor Ojeda

O necessário passo adiante ANÁLISE É importante superar a fase de entusiasmo e autocomplacência para iniciar a estratégia e a operatividade Pascual Serrano No domingo, 22 de maio, os mobilizados ao longo do território espanhol que exigem uma democracia real viveram – ou vivemos – a primeira lição de humildade. Enquanto se realizavam assembleias, levantavam-se as mãos para intervir, escreviam-se frases originais em papéis que eram pendurados de modo que não aparecesse nenhum logotipo de organização, os que sim estavam organizados ganhavam as eleições e tomavam o poder. Na realidade, não tomaram nada do que já não tivessem. É verdade que todos sabíamos que essas concentrações não afetariam de modo importante o resultado eleitoral, mas nos darmos conta de que, enquanto nos mobilizávamos, outros seguiam o protocolo para que nada mude, deve fazer-nos pensar em como avançar mais além do que se está fazendo. Por isso é importante superar a fase de entusiasmo e autocomplacência para iniciar a estratégia e a operatividade. Observando os documentos e propostas aprovadas na assembleia dos indignados se comprova que, efetivamente, são radicais. No entanto, é preciso definir qual é o nível mínimo que será exi-

gido do poder e quais medidas de pressão e durante quanto tempo se está disposto a lutar. Contradições

Se entre os pontos aprovados aparece a nacionalização do sistema bancário mas não se concretiza de quem isso se exige, se há a disposição de se aceitar uma proposta intermediária e com quais medidas se pressionará, é evidente que nenhum poder vai levar a sério essa demanda. O movimento viveu uma lua-de-mel midiática e inclusive em suas relações com o poder. Por outro lado, os poderes político e econômico por enquanto não se sentiram minimamente ameaçados. Inclusive se permitiram o cinismo de dizer que eles também compartilhavam o sentimento dos manifestantes e se sentiam igualmente indignados. Quanto ao ideário dos mobilizados, segundo se comprova em intervenções nas assembleias e nos slogans de seus cartazes, é verdade que aparecem contundentes expressões com precisa posição política, mas também existem muitos casos de apoliticismo e desideologização que lembram mais o populismo e o fascismo. Expressões como “não somos de esquerda ou de direita” ou “todos os políticos são iguais” não ajudam muito a definir a luta. É verdade que em termos de política econômica mal existe diferença entre Psoe e PP, mas a maioria das propostas aprovadas nas assembleias há anos, e, inclusive, décadas, saíram de partidos políticos de esquerda que não recebem nem receberam o apoio desses manifestantes. Não teria sentido pedir a alteração da lei eleitoral se está se dizendo que todos os políticos são iguais.

Partidos políticos

Por outro lado, se durante a campanha eleitoral se considerou saudável que não aparecessem siglas de partidos ou organizações na concentrações, uma vez passadas as eleições, na minha opinião, não vejo razão para estejam proscritos partidos – em sua maioria, extraparlamentares – que mantiveram em seus programas as propostas que agora pedem os manifestantes. Eu, pelo menos, não me sinto cômodo em uma concentração que diz que todos os políticos são iguais e proíbe uma bandeira republicana, uma com uma foice e um martelo, uma anarquista ou uma com a imagem do Che. Os indignados não querem irromper no panorama político, se situam como se fossem imaculados, acreditam estar acima das ideologias, se limitam a protestar e pedir que lhes resolvam os problemas.

Observando os documentos e propostas aprovadas na assembleia dos indignados se comprova que, efetivamente, são radicais Quem os resolverá? Quem elaborará as leis que garantam os direitos que estão exigindo? Quem garantirá o que já está nas leis mas não se aplica? Quem porá limites aos bancos? O caso argentino durante a crise de 2001 deveria nos servir de exemplo. Toda a cidadania mobilizada, indignada, reunindo-se contra as medidas econômicas de seu governo, sob o lema “que partam todos” não conduziu a nada. Não foram capazes de criar uma or-

ganização operativa, de desenvolver estruturas representativas; se afogaram no discurso da antipolítica e na fobia aos partidos e líderes. No fim, o discurso de “que partam todos” acabou em que ninguém partiu. Propostas concretas

Por outro lado, com o passar dos dias, a atenção midiática aos manifestantes certamente cairá, as câmeras de televisão desaparecerão das praças, as primeiras páginas dos jornais esquecerão as mobilizações. Portanto, é preciso avançar em propostas concretas. A explosão de indignação que tomou as ruas das cidades espanholas supôs uma ruptura com o nível de resignação que tem dominado a sociedade espanhola nos últimos anos. Mostrou que muitos dos métodos tradicionais de mobilização ficaram obsoletos, que muitas organizações que acreditavam ser a vanguarda não tinham capacidade alguma de ação. Sem dúvida, existe um tremendo potencial em um movimento que levou para as ruas das principais cidades espanholas uma geração que as organizações tradicionais não haviam conseguido conquistar, organizações que têm a obrigação de se incorporar com humildade mas contribuindo com sua experiência e elaboração de alternativas. Despertou também em muitos de nós uma euforia e uma esperança na cidadania e nos jovens que nunca esqueceremos, mas não devemos deixar que essa ebriedade nos paralise e acordemos somente com a ressaca e a frustração de que tudo continua igual. Pascual Serrano, um dos fundadores do portal Rebelión, é jornalista espanhol Tradução: Igor Ojeda




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de 26 de maio a 1ยบ de junho de 2011


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