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Ano I ■ Número 2 ■ São Paulo ■ 16 a 22 de março de 2003

Circulação Nacional

R$2,00

Mark J. Terrill/AP

Povos resistem ao terror de Bush e provocam crise no império presidente George Bush foi obrigado a adiar novamente o ataque ao Iraque. Sob o impacto das mobilizações, França e Rússia anunciaram a decisão de vetar qualquer resolução da ONU autorizando o ataque. Mesmo o premiê britânico Tony Blair, confrontado ao risco de ver sua carreira política desabar, foi obrigado a distanciar-se da Casa Branca. Mas Bush tem que atacar, se não quiser pagar o preço da desmoralização. A crise na cúpula do imperialismo é sem precedentes no pós-guerra. A Coordenação Internacional contra a Guerra, impulsionada pelo Fórum Social Mundial, convocou novas manifestações em todo o mundo, incluindo Washington (em frente da Casa Branca) e várias cidades da Grécia, para onde foi convocada uma reunião dos ministros da Defesa da União Européia. Bush e a direita estadunidense respondem com a criminalização dos movimentos pacifistas, organizando uma terrível “caça às bruxas”. Págs. 8 e 9

Na Argentina, dez mil operários ocupam fábricas Pág.11

Fundos do INSS vão para os banqueiros Dizem os “especialistas” que a Previdência faliu e que por isso deve ser privatizada. Falso. O dinheiro do INSS é desviado para pagar os serviços da dívida e engordam os cofres dos banqueiros. Ironia das ironias: empresas que fazem parte do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, criado para “moralizar” o país – incluindo o sistema previdenciário – devem R$ 1,4 bilhão ao INSS. Pág. 4 ■ Los Angeles e outras metrópoles estadunidenses pararam em 15 de fevereiro

Fazendeiros criam milícia no Paraná

Graciliano do sertão

Fazendeiros da região centro-oeste do Paraná anunciaram a criação de milícias armadas batizadas como Primeiro Comando Rural (PCR), nome diretamente inspirado no Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que age nos presídios paulistas. O governador Roberto Requião, também secretário de Segurança Pública, disse que não pretende tolerar a formação de bandos. Pág. 3

O escritor Graciliano Ramos morreu há 50 anos, em 20 de março. Sua obra, uma pungente denúncia do latifúndio e da alienação capitalista, continua mais atual do que nunca. Pág. 14

E mais: TRANSGÊNICOS – Soja modificada gaúcha ainda divide o Governo Federal. Pág. 3 FOME – Não falta comida no Brasil. O problema é a concentração de renda. Pág. 6 CAOS URBANO – As favelas crescem mais rapidamente do que as populações. Pág. 7 ÁGUA – No século 21, privatização do “ouro azul” será motivo de guerras. Pág. 12 RÁDIOS COMUNITÁRIAS – Elas são uma alternativa para a democratização da comunicação. Mas, aparentemente, há quem discorde no Governo Federal. Pág. 13

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Os Estados Unidos multiplicam a instalação de bases e operações militares em toda a América Latina. A sua estratégia prevê a utilização da Base de Alcântara, no Maranhão, rejeitada por dez milhões de brasileiros, em plebiscito realizado no ano passado. O que decidirá o governo Lula? Pág. 10

Aumentam as pressões sobre o poder Executivo pela concessão de autonomia ao BC. Na prática, a medida implica restringir a ação do governo na economia e entregar a política econômica a “técnicos” que contam com a simpatia do FMI e dos especuladores. Pág. 5

Clayton R. Mota

Estados Unidos apertam o cerco à América Latina

Especuladores querem autonomia do Banco Central

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Ilustração: Ohi

NOSSA OPINIÃO

BC: a marca de Caim “Veja, por exemplo, o drama que foi o Banco Central no governo anterior. Entregou-se o Banco Central ao grande capital, quando todo mundo sabe que isso é uma aventura, que pode levar a vários impasses. O Brasil é um país de construção imperfeita, e hoje em dia está se desintegrando. Hoje, a capacidade de comando que temos sobre a economia é muito menor do que em épocas passadas.” A advertência, feita pelo professor Celso Furtado em entrevista publicada na Edição Zero de Brasil de Fato (janeiro de 2003), deveria ao menos ser cuidadosamente analisada pelos políticos e governantes, justamente quando está em pauta a decisão, pelo Congresso Nacional, quanto à “autonomia” da instituição que determina a política econômica e financeira do país. Não se trata, em absoluto, de uma questão meramente “técnica” ou secundária. Ao contrário. É uma das alternativas decisivas que o governo Lula terá que assumir. Da escolha dependerá, em grande parte, as relações que Brasília manterá com o FMI e o capital financeiro internacional. Sinteticamente, trata-se de saber a quem os dirigentes do Banco Central deverão prestar contas, por exemplo ao decidir a política sobre a taxa de juros interbancários: ao governo democraticamente eleito pelos brasileiros, ou ao FMI, aos especuladores e aos assim chamados “mecanismos reguladores” do mercado globalizado internacional. Conceder “autonomia” ao Banco Central significa, necessariamente, limitar a ação do poder Executivo na condução da economia nacional, incluindo a sua capacidade de adotar estratégias de crescimento econômico de longo prazo, investimentos em pesquisa fundamental, estímulos à criação do mercado interno e outras medidas fundamentais à construção da efetiva soberania de uma nação. Ainda mais no caso concreto brasileiro, em que o Banco Central é presidido por um homem de absoluta confiança do capital financeiro internacional, a proposta de “autonomia” equivale à pura e simples submissão aos ditames do FMI e dos banqueiros, sem qualquer mediação. Trata-se, aliás, de uma perspectiva perfeitamente coerente com a daqueles que apóiam a eventual adesão do Brasil à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), com tudo o que ela implicaria em termos de perda de soberania, em proveito das megacorporações transnacionais. Nessa perspectiva, a proposta de “autonomia” do Banco Central é a dimensão financeira do processo de “Alcanexação” da América Latina pelos Estados Unidos, tanto quanto a proliferação de bases militares estadunidenses pelos países latino-americanos é a sua dimensão militar. Não há como tergiversar: aqueles que apoiarem a proposta de “autonomia” do Banco Central deverão portar para sempre, em suas testas, a marca de Caim dos vende-pátria.

CONSELHO POLÍTICO: ■ Alípio Freire ■ Ari Alberti ■ Ariovaldo Umbelino ■ Assunção Ernandes ■ Aton Fon Filho ■ Augusto Boal ■ Áurea Lopes ■ Beto Almeida ■ Cácia Cortez ■ Carlos Marés ■ Carlos Nelson Coutinho ■ Celso Membrides Sávio ■ César Benjamim ■ César Sansson ■ Francisco de Oliveira ■ Claus Germer ■ Dom Demétrio Valentini ■ Dom Mauro Morelli ■ Dom Tomás Balduíno ■ Douglas Mansur ■ Edmilson Costa ■ Elena Vettorazzo ■ Emir Sader ■ Ergon Krakek ■ Erick Schunig Fernandes ■ Fábio de Barros Pereira ■ Fernando Altemeyer ■ Fernando Morais ■ Flávio Cannalonga ■ Frederico Santana Rick ■ Frei Sérgio Gorgen ■ Hamilton Octávio de Souza ■ Horácio Martins ■ Ivan Valente ■ Jasper Lopes Bastos ■ João Capibaribe ■ João José Reis ■ João José Sady ■ João Pedro Stedile ■ João Roberto Ripper ■ João Zinclar ■ José Arbex Jr. ■ Kenarik Boujikian Felippe ■ Laurindo Lalo Leal Filho ■ Leandro Konder ■ Leonardo Melgarejo ■ Luís Alberto ■ Luís Arnaldo ■ Luís Carlos Guedes Pinto ■ Luís Eduardo Greenhalg ■ Luís Fernandes ■ Luiz Bassegio ■ Luis Gonzaga (Gegê) ■ Marcelo Goulart ■ Marcos Arruda ■ Maria Dirlene Marques ■ Maria Luisa Mendonça ■ Mário Augusto Jakobskind ■ Mário Maestri ■ Milton Viário ■ Neuri Rosseto ■ Nilmário Miranda ■ Nilo Batista ■ Oscar Niemeyer ■ Pastor Werner Fuchs ■ Paulo Arantes ■ Paulo Pereira Lima ■ Paulo Ramos Barbosa ■ Pedro Ivo ■ Plínio de Arruda Sampaio Jr. ■ Reinaldo Gonçalves ■ Renato Tapajós ■ Ricardo Antunes ■ Ricardo Gebrim ■ Ricardo Rezende Figueira ■ Roberto Romano ■ Rodolfo Salmo ■ Samuel Yavelberg ■ Sebastião Salgado ■ Sérgio Barbosa de Almeida ■ Sérgio Carvalho ■ Sérgio Haddad ■ Tatau Godinho ■ Tiago Rodrigo Dória ■ Valério Arcari ■ Valter Uzzo ■ Vito Gianotti ■ Vladimir Araújo ■ Zilda Cosme Ferreira CONSELHO EDITORIAL: Alípio Freire ■ César Benjamim ■ Hamilton Octávio de Souza ■ Kenarik Boujikian Felippe ■ Luiiz Antônio Magalhães ■ Luís Eduardo Greenhalg ■ Luiz Bassegio ■ Maria Luísa Mendonça ■ Milton Viário ■ Neuri Rosseto ■ Plínio de Arruda Sampaio Jr. ■ Ricardo Gebrim ■ César Sanson

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■ Editor-chefe: José Arbex Jr. ■ Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Nilton Viana, Paulo Pereira Lima, Marilene Felinto, Renato Pompeu ■ Repórteres: Beto Almeida, Eunice Nunes, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho ■ Projeto gráfico e diagramação: Wladimir Senise ■ Tratamento de imagem: Maurício Valente Senise ■ Revisão: Geraldo Martins Filho ■ Jornalista responsável: José Arbex Jr. Mtb 14.779 Administração: Silvio Sampaio Secretaria de redação: Tatiana Merlino Sistemas: Sérgio Moreira Programação: André de Castro Zorzo Assinaturas: (11) 3333-6244 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – São Paulo/SP

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á está no ar a página da Internet do jornal Brasil de Fato. Esse espaço virtual foi criado para ser o canal de comunicação direta entre os leitores, dos colaboradores e a redação. Ao clicar o botão SUGESTÕES DE REPORTAGEM, você pode enviar suas propostas, denúncias e temas que gostaria de ver abordados nas´páginas do jornal. No botão SEJA UM COLABORADOR, você se cadastra para fazer parte da rede nacional de colaboradores. A página do Brasil de Fato também traz as principais manchetes do jornal na semana, a agenda completa de eventos sociais e culturais e todos os contatos dos comitês regionais de apoio do jornal. Entre e conheça: www.brasilde.fato.com.br

CARTA DE LEITORES Caros jornalistas, meus parabéns por esta bela iniciativa. Todos os que almejam notícias de FATO esperavam há muito por um jornal como esse. No entanto, nem tudo são flores... A matéria sobre o hip-hop é extremamente válida e interessante mas me faz refletir sobre o que pensam os jornalistas, especializados ou designados a cobrir o assunto, a respeito da música: sua função social, seus elementos materiais, seus conteúdos e formas, enfim, seu processo de trabalho. (...) Para se falar sobre música ou qualquer outra forma de manifestação artística é preciso conhecer seu processo de elaboração e não ficar chovendo-no-molhado, só fazendo apologia à música popular e se esquecendo que há musica que

ERRAMOS Na edição anterior, deixamos de registrar alguns créditos: o jornalista João Peschansky é o autor do texto de abertura da reportagem “A disputa global pelo ‘ouro azul’” (pág. 8); Maurício Senise faz parte da nossa equipe de diagramação; Ohi é o autor do cartoon que aparece à pág. 2.

não se baseia apenas na inspiração do momento e nem se apega à clichês. Marcelo Carneiro de Lima, Rio de Janeiro (RJ) O projeto BRASIL DE FATO está vindo para ficar, pelo menos se depender de uma imensa massa de pessoas ávidas por leitura, sem aquele negócio de ter que interpretar as entrelinhas.Gostei muito do que vi e li. Confio em todos que estão envolvidos nesse brilhante projeto. Sucesso e contem com esse leitor, que já pode ser considerado fiel. Henrique Perazzi de Aquino, Bauru (SP) É estimulante ler um jornal que noticia os problemas sócio-políticos do Brasil e do mundo de uma maneira sér ia e ao mesmo tempo

envolvente. Sendo assim, o leitor se vê como um agente transformador da realidade, e não apenas um espectador. A abordagem dos assuntos revela paixão, elemento que está em falta no jornalismo brasileiro. Adriana Tintori, São Paulo (SP) É a alternativa nacional que - de fato - o Brasil precisava. Que o ousado projeto dos senhores tenha longa vida e sirva aos propósitos para o qual foi criado, com competência técnica, valorizando os assuntos do povo e abrindo um campo de trabalho para os idôneos profissionais que também vêm do povo. Enfim, desejo que o Brasil De Fato também seja um exemplo para que os municípios desenvolvam o jornalismo regional de QualidadeQue delícia a democracia! Deise Marques

Quem somos Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores. A redação, integrada por uma equipe de jornalistas profissionais, trabalha em sintonia com um comitê editorial composto por doze representantes de diversos segmentos democráticos da sociedade, que se reúne a cada quinze dias. A linha política estratégica da publicação é definida por um amplo conselho político nacional. Começamos com edições semanais de 16 páginas, a partir de março. Mas almejamos aumentar o número de páginas, com notícias que expliquem e contextualizem fatos habitual e estrategicamente ignorados pela imprensa comprometida com o poder capitalista. O jornal, como qualquer publicação do gênero, será financiado por venda em banca, assinaturas e anúncios publicitários. Como participar Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br. Nesse endereço, que futuramente abrigará a agência de notícias virtual do Brasil de Fato, também haverá a lista de temas que estarão sendo apurados para a edição semanal do jornal. Comitês de apoio Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados, e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilidade a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jjornal ficaria restrito ao chamado “eixo Rio-São Paulo”, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também, do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato. Quanto custa O jornal Brasil de Fato será vendido por R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00. Para assinar, ligue (11) 3333-6244 ou mande uma mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Sorteio O Brasil de Fato vai sortear uma viagem a Cuba e 4 coleções de livros da editora Expressão Popular. Para participar, basta contribuir com R$ 10,00 (com direito a receber os 5 primeiros números do jornal). No dia 1º de maio, vamos conhecer os vencedores. Ainda há tempo, é só entrar em contato!


REFORMA AGRÁRIA

João Zinclar

Fazendeiros do Paraná criam milícia contra MST Dimitri Stein Valle, de Curitiba

João Pedro Stedile, de São Paulo

■ Manifestação de sem terrra em Brasília ganização criminosa. O surgimento do PCR nada mais é do que crime de formação de bando e quadrilha.” O superintendente regional do Incra, Celso Lisboa de Lacerda, entende que o surgimento do PCR é uma demonstração de desespero dos latifundiários. “Os ruralistas estão acuados por causa da vitória do presidente Lula e do seu programa de reforma agrária. Agora, eles querem dar uma resposta da pior maneira possível”, afirmou Lacerda. O secretário do Trabalho, Emprego e Promoção Social do Paraná, padre Roque Zimmermann, disse que o aparecimento do PCR é uma afronta ao estado de direito. Zimmermann é um dos integrantes da Comissão Especial de Mediação das Questões da Terra do Estado do Paraná, criado pelo governo Requião para mediar conflitos entre trabalhadores semterra e ruralistas. A comissão começa na próxima semana um trabalho de aproximação com representantes dos dois lados. A direção da União Democrática Ruralista (UDR), que representa os produtores rurais será procurada pela comissão, que ainda tem como integrantes o bispo auxiliar de Curitiba, Dom Ladislau Biernaski, o major Mauro Pirolo, assessor militar da Secretaria de

Segurança e Benjamin Zanlorenci, assessor comunitário da mesma secretaria. JAGUNÇOS ATACAM Trabalhadores sem-terra foram atacados a tiros, entre os dias 8 e 9, perto de um acampamento montado às margens de uma rodovia em Laranjal, centro-oeste do estado. Cerca de 600 famílias aguardam uma manifestação do Incra sobre desapropriações na região. Laranjal fica ao lado de Palmital (a 360 km de Curitiba), onde ocorreu, há uma semana, a reunião de fazendeiros que decidiram criar o PCR. Para chegar ao trabalho, os acampados às margens da PR 456, em Laranjal, são obrigados a usar atalhos que passam pelas fazendas Legendária, Bandeirante, Santa Catarina e Pedra Branca.Todas são guardadas por seguranças armados. Um caminhão que transportava trabalhadores rurais chegou a ser alvo de tiros por volta das 18 horas de 9 de março. O veículo foi cercado por seguranças que ameaçaram os viajantes de morte. Eles apontaram armas em direção a mulheres ecrianças. Três veículos da prefeitura de Laranjal que transportavam doentes também foram alvejados.

TRANSGÊNICOS

nquanto o governo federal demora em encontrar uma saída para a soja contaminada por transgênicos no Rio Grande do Sul, entidades contrárias e também as defensoras de organismos geneticamente modificados (OGMs) colocam em movimento suas máquinas de pressão. O objetivo de ambas as partes com evidentes diferenças no acesso à imprensa é pressionar a comissão de nove ministros que vai definir a posição final do governo no problema dos OGMs. Há uma semana circula um manifesto entre várias entidades que integram o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea).“As organizações da sociedade civil abaixo-assinadas vêm manifestar ao governo Lula e ao público em geral a sua preocupação com notícias veiculadas por várias fontes indicando que o governo se prepara para admitir a liberação da comercialização no mercado interno da safra de soja contaminada por transgênicos do Rio Grande do Sul”, diz o texto proposto pela Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos.

Nos últimos dias, a “grande imprensa” voltou a dar grandes espaços ao MST – como sempre, para nos atacar. Irados editoriais contra uma suposta “campanha de invasões” de sedes do Incra, manchetes, fotos provocadoras e notícias exageradas procuram criar um clima de “guerra no campo”. Mas, afinal, o que aconteceu? Na semana do carnaval aconteceram três ocupações de fazendas. Desde janeiro, todas as semanas ocorrem novas ocupações de fazendas, aqui e acolá. Algumas são articuladas por grupos locais ou até divergentes do MST. Nada de novo, portanto, nenhuma novidade para “alarmar a segurança nacional”, no fato de que tenham ocorrido três ocupações em uma semana! Aconteceram também manifestações de sem-terras em duas sedes do Incra, em Cuiabá e Goiânia. Nos dois casos, as manifestações foram realizadas em conjunto com os próprios servidores do órgão. No caso de Cuiabá, o episódio chegou a ser cômico: militantes do MST postaram-se diante do prédio, para evitar a ocupação do prédio por um certo grupo denominado MTA (movimento de assentados), criado pelos comerciantes de terra interessados em sumir com processos de desapropriação. Eles, do MTA, quebraram alguns vidros do prédio. Em Goiânia, a manifestação pacífica, feita com apoio dos servidores do Incra, foi para pedir - pasmem! - que o governo nomeasse logo um superintendente, pois faz três meses que os trabalhadores não tem com quem negociar. Foi exatamente isso que aconteceu. Agora, qualquer cidadão que tenha lido os jornais e acompanhado o noticiário da Rede Globo ficou com a sensação que o MST havia declarado guerra ao governo Lula, e exigia em troca a reforma agrária num só dia. Essa manipulação que a grande imprensa está acostumada a fazer de movimentos sociais já foi tema de muitas teses de mestrado e doutorado, na área do jornalismo. Agora, os editores poderiam ser motivo para teses de psicologia. Mas não é disso que se trata, e sim da luta de classes. As elites não estão conformadas com a derrota eleitoral de outubro. Sabem que o povo votou contra seu modelo neoliberal, pela reforma agrária. Sabem que os sem-terra votaram em Lula. E sabem que Lula tem compromisso com a reforma agrária. Afinal, o governo Lula é fruto da luta social de vinte anos do povo brasileiro. As elites querem impedir que o resultado eleitoral se materialize no governo, e usam sua principal arma de luta ideológica, os meios de comunicação. Querem criar uma imagem de falso radicalismo, para isolar os movimentos sociais e a esquerda no governo. Esse é o motivo da ira incontrolável desses senhores oligarcas. Nossos inimigos são o latifúndio e o modelo neoliberal. Contra eles, lutaremos com todas as forças. Somos parceiros do governo popular, mantendo nossa autonomia. O cenário da verdadeira guerra não é o campo, mas o Planalto Central. João Pedro Stedile é membro da direção nacional do MST

GOVERNO PODE LIBERAR O TRANSGÊNICO O documento foi motivado pela preocupação dessas organizações com a possibilidade de o governo federal procurar alguma brecha jurídica que permita a venda da soja suja no mercado brasileiro em flagrante desrespeito à decisão em segunda instância da Justiça federal, que proíbe a comercialização de OGMs no Brasil. As entidades têm dúvidas sobre os próximos passos do governo, devido à falta de abertura para a sociedade civil participar dos debates ministeriais. Dessa falta de transparência tem emergido toda sorte de boatos. O principal, que se origina de várias fontes, seria o de que a Presidência da República, acionada pela Casa Civil, editaria dentro de poucos dias uma Medida Provisória que tentaria liberar a soja transgênica no País. Segundo os defensores da soja “Frankenstein”, a liberação atenderia à necessidade de ressarcir os 140 mil pequenos agricultores gaúchos que utilizaram ilegalmente a semente da morte. Mas especialistas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), do Ministério da Agricultura, afirmam

Quem quer ser cobaia da soja transgênica?

que o mercado internacional tem plenas condições de absorver os quase cinco milhões de soja suja produzida no Rio Grande. Esses técnicos, que pediram anonimato, vão mais longe: afirmam que a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento colocaria esse montante de grãos com extrema facilidade no mercado internacional, devido à experiência e aos contatos nos sistemas de comércio em todas as regiões do mundo. Só a China, observam, vai comprar 16 milhões de toneladas de soja em 2003 e ainda não fechou completamente seu mercado aos transgênicos.

Em outro alerta ao governo, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) colocou em sua página na internet (www.idec.org.br) um modelo de carta a ser enviada ao Presidente Lula e aos Ministros que integram a comissão.“ Eu não quero ser cobaia da soja transgênica plantada ilegalmente no país. Não acho justo que a sociedade seja obrigada a consumir alimentos contendo a soja transgênica. Essa soja não pode ser comercializada no país, sob nenhuma hipótese, seja para consumo humano ou animal”, diz a carta. Do outro lado, os defensores da soja Frankenstein começaram uma ofensiva na mídia em pleno Carnaval. Representantes das multinacionais produtoras de transgênicos teriam passado esse período em Brasília, preparando a saraivada de artigos e entrevistas que têm aparecido nos maiores jornais do País. Na terça, dia 11, reuniram em São Paulo 24 associações de grandes produtores, que divulgaram uma carta defendendo a liberação dos transgênicos. Liderados pela Associação Brasileira de Agribusiness (Abag), já foi presidida pelo Ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, o documento vai ajudar na pressão sobre o Congresso Nacional que vem analisando há cerca de quatro anos vários projetos de lei sobre OGMs.

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

Carlos Tautz, do Rio de Janeiro

Mídia faz jogo de intrigas para dividir a esquerda

Tadeu Vilani

s quase 12 mil famílias de trabalhadores sem-terra do Paraná vão conviver com um novo adversário: o Primeiro Comando Rural (PCR), milícia criada no último sábado por 50 fazendeiros do centro-oeste do estado. Ele poderá contar com até 80 pistoleiros. A sigla foi inspirada no Primeiro Comando da Capital (PCC), facção que age nos presídios paulistas. O PCR teria a missão de “proteger” as propriedades contra as ocupações visando a reforma agrária. Em comunicado às autoridades, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) denunciou a “tentativa dos fazendeiros de iniciar um clima de medo, terror e violência, com o fim de intimidar os trabalhadores/as e impedir que o processo de reforma agrária”. A CPT teme uma reedição da escalada de violência contra camponeses no Paraná. Entre 1996 e 2002, foram registrados 16 assassinatos de agricultores, 31 tentativas de homicídio, 324 pessoas feridas, 502 prisões de trabalhadores e 47 ameaças de morte. Grande parte dos crimes tinham ligação com bandos armados por fazendeiros. O gover nador Roberto Requião (PMDB), também secretário da Segurança Pública, disse que não vai tolerar perseguições aos agricultores. Ameaçou os responsáveis com prisão. “Temos 24 membros do PCC presos em penitenciárias do estado. Se o PCR transgredir a lei, vai fazer companhia para seus supostos inspiradores”. Os serviços de inteligência das polícias civil e militar já estariam monitorando a movimentação do PCR. Para o advogado Darci Frigo, da entidade Terra de Direitos, com sede em Curitiba, o governo precisa ser mais rigoroso. “Quem faz esse tipo de ameaça deve ser tratado pela polícia como uma or-

NACIONAL

Latifundiários do Oeste paranaense criam milícias inspiradas no grupo criminoso Primeiro Comando da Capital e contam com a benevolência da “grande mídia“, interessada em atacar o MST; soja transgênica gaúcha ainda divide o governo

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PREVIDÊNCIA

INSS tem dinheiro. Pergunte aos banqueiros Itamar Miranda/AE

NACIONAL

O suposto “buraco” da seguridade não existe: boa parte da receita arrecadada vai para o orçamento da União, para pagar os juros e amortização da dívida; nos Estados Unidos, o modelo de previdência privada rola ladeira abaixo

Anamárcia Vainsencher, da Redação

■ Aposentados em fila do Instituto Nacional de Seguridade Social, em São Paulo mente ao financiamento da seguridade social (saúde, assistência e previdência social) – excluídos os benefícios aos servidores públicos, regidos por um sistema próprio – não é isso que acontece. As contribuições sociais – Cofins (cobrada sobre o faturamento das empresas), CSSL (sobre o lucro líquido das empresas), CPMF (sobre movimentação financeira), e as contribuições pagas por empregados e empregadores sobre a folha salarial – vêm sendo sistematicamente desviadas pelo governo para pagar o serviço (juros e amortizações) da dívida. Além disso, milhares de empresas privadas simplesmente não recolhem a sua parte (veja quadro com alguns devedores), porque sonegam ou

A Seguridade Social não é deficitária Receitas Despesas Resultado (superávit)

2000

2001

134 120 14

136,9 105,4 31,5

(Em R$ bilhões) 2002 171,9 149,6 22,3

Fontes: SIAFI (dados preliminares), Secretaria da Receita Federal (dados de arrecadação das contribuições sociais) e Fluxo de Caixa do INSS (dados de Previdência Social).

Conselheiros em dívida O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e a Previdência Social

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

Um dos temas centrais da agenda do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social é a Reforma da Previdência. Segundo o seu secretário, o ministro Tarso Genro, há uma quase unanimidade entre os membros do Conselho sobre a necessidade de acabar com o “rombo” da Previdência. Para isso, estão dispostos a “reformála”, já que o suposto “déficit” ameaça as contas públicas e a própria estabilidade do país. As empresas que representam alguns desses conselheiros tão interessados no saneamento das contas públicas, são, porém, grandes devedores do INSS, como mostra o quadro abaixo:

4

Conselheiro

Empresa

Dívida com o INSS em 2000 (em R$ milhões *)

Roger Agnelli Roberto Egydio Setúbal Fernando Xavier Ferreira Miguel João Jorge Filho Márcio Artur Cypriano Daniel Feffer

Cia.Vale do Rio Doce Banco Itaú Telefônica/Telesp Santander/Banespa Bradesco Cia.Suzano de Papel e Celulose ABN Amro Bank/ Banco Real Sucocítrico Cutrale Alcoa

392,1 380,6 291,0 162,1 103,6

Fábio Colleti Barbosa José Cutrale Alain Juan Pablo Beldi Total

OS RALOS DO INSS Os governos, porém, criam atalhos para desviar todos os recursos para pagar os serviços de uma dívida cada dia mais difícil de ser quitada. Um minucioso trabalho feito pela Anfip – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência (www.anfip.org.br) – “Seguridade e Desenvolvimento: Um Projeto para o Brasil” – , dos economistas M. Milko e J.O.L. Ribeiro faz uma radiografia completa da seguridade social no Brasil. Eles mostram que argumento usado em defesa de mais reformas é falacioso do começo ao fim.

O “conto” do jardim de rosas Há muito tempo se fala sobre as maravilhas da “previdência complementar” para os trabalhadores que, ao se aposentar, queiram ganhar mais do que lhes proporcionaria os regimes básicos privados ou públicos. Mas não é tão simples. Habitualmente, a gestão da previdência complementar fica a cargo de fundos de pensão, que, geralmente, aplicam os valores arrecadados nas bolsas de valores, ou em outros tipos de títulos. Mas todo mundo sabe que o mercado de capitais é instável. Quando as bolsas (e os juros) estão em alta, a rentabilidade dos fundos aumenta. Caso contrário, despenca. O “ pequeno problema” é que há quase dois anos, as bolsas vêm rolando ladeira abaixo. Resultado: nos Estados Unidos, o déficit dos planos de pensão chegou a US$ 300 bilhões em 2002, de acordo com informações oficiais. Trocando em miúdos: saiu muito mais do que aquilo que entrou. Motivo: o mercado de ações está em queda e os resgates em alta, resultantes do aumento do desemprego (quer dizer: o trabalhador desempregado é obrigado a retirar o seu dinheiro, para poder tocar a vida). Em função do crescimento do número de desempregados, no ano passado, o programa de seguro-desemprego patrocinado pelo governo dos Estados Unidos (criado para proteger os empregados de empresas falidas, como a Enron ou a WorldCom, controladora da Embratel) desembolsou cerca de US$ 11,3 bilhões. Com isso, o superávit existente, de US$ 7,7 bilhões se transformou em déficit de US$ 3,6 bilhões. Hoje, esse programa dispõe de recursos de US$ 25 bilhões, ao passo que as obrigações devidas são de US$ 35 bilhões. No Reino Unido, da mesma forma, a rentabilidade dos planos de pensão foi severamente prejudicada pela queda das bolsas e pelo declínio das taxas de juros.

23,8 15,9 13,6 10,4 1.393,1

Nota 1: Quando o empresário Luiz Fernando Furlan deixou a presidência da Sadia para assumir o Ministério do Desenvolvimento, a empresa que comandava devia R$ 71,833 milhões ao INSS. Nota 2: Em 2002, os bancos devedores acima mencionados apuraram o seguinte lucro líquido: Bradesco, R$ 2,022 bilhões; Itaú, R$ 2,377 bilhões; ABN-Amro, R$ 1,208 bilhão; Banespa, R$ 2,818 bilhões. Fonte: Ministério da Previdência. (*) Números arredondados

porque são beneficiadas por leis especiais. Somadas, as contribuições da Cofins, CSSL e CPMF atingiram R$ 71,8 bilhões em 2001, o que representou 52,4% da receita total da Seguridade Social. Isto quer dizer que, consideradas essas contribuições, a seguridade não é deficitária.

Heitor Hui/AE

ntra governo, sai governo, a toada é a mesma: a Previdência Social, do jeito que está, vai quebrar o Brasil. A conclusão: é necessário alterar a Seguridade Social, ou melhor, privatizá-la. Entregar de bandeja ao sistema financeiro (fundos de pensão e seguradoras) uma montanha de dinheiro para fins especulativos. Mas, se a medida de falência de um país é a saúde econômica de seu sistema previdenciário (regimes público e privado), o Brasil vai bem, obrigado. Surpresa? É fácil explicar. Todos os governos, sucessivamente inclusive o atual - acenam com meias verdades, que ganham as manchetes da grande imprensa. Mas a verdade inteira, quase nunca explicitada, está nos próprios números do Ministério da Previdência. É só analisar com cuidado. Em 2002, o saldo da Seguridade foi positivo, isto é, as receitas menos as despesas resultaram em superávit de R$ 22,3 bilhões. Em 2001, o saldo positivo foi ainda maior, de R$ 31,5 bilhões (veja quadro). Só que esse saldo Orçamento fiscal – foi inteiramente repassado Previsão de despesas e para o Orçamento Fiscal da receitas do governo para União para produzir o sudeterminado período perávit primário exigido Superávit primário – pelo FMI. Acontece quando o governo arrecada mais Os números do goverdo que gasta, descontado no são muito diferentes, por os gastos com juros e uma razão simples. Apesar correção monetária das dívidas de a carta magna do país, a Constituição de 1988, determinar que as contribuições sociais devem se destinar exclusiva-

O déficit (saldo negativo) do INSS, equivalente a cerca de 1% do Produto Interno Bruto (PIB, a soma de todas as riquezas produzidas no país), seria a causa principal da crise financeira do Estado. Por isso, amarrado a compromissos previdenciários crescentes, o Estado seria cada vez menos capaz de investir e tomar medidas que possibilitassem o crescimento. Mas não há déficit, e sim desvio dos recursos das contribuições sociais. Somamse a isso as renúncias fiscais, as perdas de arrecadação, as dívidas com o INSS (R$ 125 bilhões, em dezembro de 2001, de acordo com o Tribunal de Contas da União). Para não enumerar outros fatores que afetam a seguridade como relações de trabalho cada vez mais precárias, queda da massa salarial, base reduzida de contribuintes regulares para a previdência. O governo tenta esconder o desvio de uso das contribuições sociais. A exceção foram as contribuições sobre a folha salarial de empregadores e empregados, explicitamente vinculadas ao financiamento dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social. O estudo da Anfip ilustra bem o que fez o governo FHC, e que continua sendo feito até hoje.A criação do Fundo Social de Emergência (FSE), depois denominado de Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, mais recentemente, de Desvinculação de Recursos da União (DRU) foi uma clara tentativa de regularizar uma prática antiga, de desvio de recursos da área social para a área fiscal. O desmonte dos preceitos originais da seguridade social, estabelecidos na Constituição de 1988, foi reforçado com a emenda constitucional nº20, de 1998, que, vinculando explicitamente as contribuições sobre folha de salários exclusivamente para a previdência social, implicitamente, por princípio jurídico, permite a interpretação de que as demais fontes de receitas da seguridade podem ser desviadas de sua destinação original.

Crime sem castigo No Brasil, as várias instâncias de governo cultivam o hábito de perdoar as dívidas de grandes devedores privados. Um bom exemplo é a renúncia fiscal, a isenção que o Estado concede a determinados segmentos econômicos, ou categoria de segurados – entre eles, entidades ditas filantrópicas, times de futebol, produtores rurais. A renúncia fiscal significa perda de arrecadação. Segundo estimativas do Ministério da Previdência, as perdas de arrecadação por essas vias foram de R$ 8,4 bilhões em 2001, e de R$ 9,2 bilhões em 2002. A prática criminosa de sonegação, ou o subfaturamento da folha salarial, também representam perdas elevadas, revela o estudo da Anfip. Em 1998, de acordo com o INSS, chegaram a cerca de R$ 11 bilhões. Somando esse valor ao montante de renúncia fiscal estimado para 2001 e 2002 (cerca de R$ 9 bilhões entre 2001 e 2002), chega-se a uma perda aproximada de R$ 19 bilhões anuais, uma arrecadação suficiente para reverter o “déficit” atual do RGPS, considerando-se apenas os recursos de contribuição sobre a folha de pagamentos e os gastos com os benefícios previdenciários. (AMV)


BANCO CENTRAL

Perdas astronômicas Como exemplo, ele cita que as perdas realizadas pelo BC na compra e venda de títulos públicos e nas transações com dólares são cobertas imediata e automaticamente pelo Tesouro Nacional, segundo a Medida Provisória 1.789, de 1998, depois transformada em lei. Na prática, o Tesouro é obrigado a emitir títulos, aumentando sua dívida, para cobrir aqueles rombos. Apenas em 2002, o BC apropriou-se de R$ 30 bilhões em recursos do Tesouro. “Este foi o custo da independência do BC, que representou mais do que toda a despesa da União com servidores inativos”. Munhoz estima que aqueles R$ 30 bilhões seriam suficientes para manter programas de criação de empregos para 3 milhões de trbalhadores, ao longo de três anos. Em janeiro, acrescenta o professor, o BC registrou um prejuízo de R$ 3,7 bilhões, “causado, fundamentalmente, pela especulação com o dólar”.Todo esse dinheiro não é submetido a qual-

■ Alca Parlamentares formam frente de resistência

■ Manifestação de sindicalistas em frente ao Banco Central, em Brasília: projeto de autonomia do BC, desenhado no governo de Fernando Henrique Cardoso, se prestaria aos mesmos objetivos: transferir o poder de decisão do governo para as mãos de técnicos e economistas “indicados” pelo mercado financeiro

quer forma pública de controle. As decisões são tomadas no âmbito do Conselho Monetário Nacional (CMN), que reúne os ministros da Fazenda e do Planejamento e o presidente do BC. “Esse controle não passa pelo Congresso e nem pelo Tribunal de Contas da União”, insiste Munhoz.

Uma peça-chave para o destino do país Você sabe para que serve um banco central? Não? Aparentemente, nem mesmo o governo se dá conta plenamente de sua importância e serventia, já que pretende “terceirizá-lo”, para usar uma expressão do economista e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Paulo Nogueira Batista Júnior, entregando seu comando a pessoas da confiança do mercado financeiro nacional e internacional. O tal mercado - FMI, banqueiros e governos dos países ricos – sabe. Por isso, alardeiam a necessidade de o governo brasileiro torná-lo “independente”, colocando sua administração nas mãos de “técnicos confiáveis” a pretexto de angariar a boa vontade dos donos do dinheiro, para que continuem injetando dólares no país. Mas por que essa discussão é tão importante? Exatamente porque o Banco Central é uma peça-chave na política econômica, na definição dos rumos futuros do país. O presidente do BC e seus diretores, indicados pelo presidente da República e sancionados pelo Senado, definem se os juros vão subir ou cair, têm o poder de influir diretamente no mercado do dólar. E muito mais. A diretoria do BC administra ainda as reservas internacionais do país, ou seja, os dólares depositados em bancos estrangeiros ou no próprio BC. Também fiscaliza o mercado financeiro, bancos, corretoras, financeiras, consórcios.Tem a missão de coibir fraudes cambiais, combatendo desvios ilegais de dólares para o exterior. Controla a moeda e sua circulação, vendendo reais quando a economia precisa ou comprando reais quando há sobra de dinheiro. Controla, ou deveria controlar a entrada e saída de capital estrangeiro. Pode, por exemplo, obrigar que especuladores internacionais mantenham seus dólares aqui dentro durante certo período, o que poderia evitar a fuga de divisas que, nos últimos anos, tem gerado crises freqüentes, desemprego e inflação. (LVF)

Dia 20 de março, diversos parlamentares se reúnem, em Brasília, para discutir os perigos da adesão do Brasil à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). O objetivo do grupo é formar uma Frente Parlamentar para transformar o Congresso Nacional em um espaço de resistência às propostas dos Estados Unidos. Participam do encontro senadores e deputados de diferentes partidos, entre os quais Eduardo Suplicy , Heloísa Helena, João Capibaribe, Luís Eduardo Greenhalg, María José da Conceiçao Maninha, Ivan Valente, Luísa Erundina, Lucy Choenask e Jamil Murad. Antes da reunião haverá uma reunião com o secretário geral do ministério de Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães, para que essa frente parlamentar tenha acesso às propostas brasileiras e dos demais países sobre a ALCA.

A versão de Meirelles Em seu discurso de posse, em 8 de janeiro, o atual presidente do BC, Henr ique Meirelles, ex-presidente mundial do BankBoston, referiu-se ao projeto de autonomia da instituição como uma “proposta de governo, não do BC”. Segundo ele, o assunto não teria entrado na pauta das discussões travadas com o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e com o presidente Lula. “A autonomia do BC proposta pelo ministro Palocci visa a uma institucionalização da função do BC como guardião da moeda e sinaliza o compromisso permanente do Brasil com a estabilidade de preços. Os bancos centrais modernos contam com regras claras quanto ao seu papel, à composição e à renovação de sua diretoria”, discursou Meirelles. O assunto pode não ter feito parte da agenda estabelecida entre o chefe do Executivo o então presidente indicado para o BC, mas faz parte da pauta do governo e do FMI. Na carta de intenções firmada entre o governo, ainda na administração de FHC, e o fundo, a autonomia é mencionada com um objetivo geral, conforme aponta o economista Paulo Nogueira Batista Júnior. Como este ponto não constitui critério de desempenho, lembra ele, o Brasil não estaria obrigado a seguir a recomendação e poderia desconsiderá-la sem correr o risco de perder os dólares do FMI. O próprio fundo, diz ele, não teria argumentos para contrapor a uma decisão contrária do Brasil, já que seus diretores também não têm autonomia e nem estabilidade no emprego, além de suas decisões dependerem “estritamente” dos interesses dos governos que controlam o FMI (leia-se Estados Unidos e es ricos).

■ Carajás OEA põe governo no banco dos réus A Organização dos Estados Americanos aceitou a denúncia de diversos movimentos sociais contra o governo brasileiro no caso do massacre de Eldorado dos Carajás (PA). Em 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores rurais sem terra foram assassinados pela polícia militar. Em um relatório apresentado no final de fevereiro, a comissão de direitos humanos da OEA concluiu que as investigações e o julgamento realizados no Brasil não ofereceram garantias de independência e imparcialidade e que, por isso, pretende dar seguimento ao caso.

■ Terra Juiz expulsa índios e favorece posseiro Cerca de 50 índios da aldeia de Kaxirimã, em Roraima, foram expulsos de suas terras para dar lugar ao posseiro Manoel Rufino, por determinação do juiz Helder Girão Barreto, no inicio do mês. A Terra Raposa do Sol, de 1,6 milhão de hectares, onde está a aldeia Kaxirimã, foi demarcada em 1998 para os povos Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang e Patamora. Há mais de trinta anos os indígenas lutam pela demarcação definitiva da área, que se caracteriza pela violência — na primeira semana deste ano, o índio Aldo da Silva Mota foi assassinado na região. O Conselho Indígena de Roraima acredita que os indígenas não devem sair do local e teme conflitos com os moradores do vilarejo de Uiramutã que estariam sendo incitados pelo posseiro Manoel Rufino.

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endividamento crescente do Brasil e a sua posição de delicada vulnerabilidade externa, resultado das políticas adotadas nos últimos oito anos, transformaram o Banco Central (BC) numa espécie de refém de credores/especuladores internos e externos, afirma o economista Décio Garcia Munhoz, professor da Universidade de Brasília (UnB) e ex-presidente do Conselho Federal de Economia. A sua autonomia serviria para que “as elites assumissem o poder, sem o voto”, diz Munhoz. A receita não é nova. Aventura semelhante foi tentada nos anos pré-golpe militar, quando João Goulart presidia o Brasil. Em 1963, num projeto do ex-ministro Roberto Campos, a lei da reforma bancária, definiu a criação de um banco central independente. Seus diretores teriam mandatos fixos e não coincidentes com o do presidente da República. “Foi uma tentativa das elites de reduzir a área de decisão do Executivo e imobilizar Goulart”, diz Munhoz. O projeto de autonomia do BC, desenhado no governo de FHC, se prestaria aos mesmos objetivos: transferir o poder de decisão do governo para as mãos de técnicos e economistas “indicados” pelo mercado financeiro. Há 40 anos, o projeto só não prosperou porque o ministro da Fazenda do governo seguinte, o hoje deputado federal Delfim Netto, revogou a independência outorgada ao BC. O motivo? Campos havia colocado o economista Dênio Nogueira na presidência do BC, um auxiliar próximo a ele e fora da órbita de influência de Delfim. Para retomar as rédeas do BC, o novo ministro

acabou com a festa dos liberalizantes da época. “O projeto (de autonomia) aprofundaria a crise geral da economia, consolidando um modelo de achatamento da renda, agravando as dificuldades para as empresas diante de um mercado consumidor ainda mais encolhido”, prevê Munhoz. A tendência, nesse caso, é a de que se mantenha a política de juros altos e arrocho ao crédito, impedindo que a economia retome o crescimento. O economista propõe o caminho oposto. Para ele, o Brasil deveria discutir a criação de mecanismos institucionais para reforçar o controle sobre o BC, que já desfruta, hoje, de “um grau absurdo de autonomia”.

Radiobras

Lauro Veiga Filho, de Goiânia

João Zinclar

Autonomia do BC entrega a economia do Brasil aos especuladores

NACIONAL

Projeto de “independência” do BC tem por objetivo limitar a atuação do poder Executivo e entregar a direção da entidade nas mãos de “técnicos” e “especialistas” indicados pelo FMI e banqueiros; manobra já foi tentada durante o governo de João Goulart, nos anos 60

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FOME

Não falta comida. Falta renda. César Diniz

NACIONAL

Um resumo do Projeto Fome Zero mostra que a fome tem crescido no país, sobretudo nas regiões metropolitanas. São 44 milhões de pessoas, ou 9,3 milhões de famílias, vulneráveis à fome. Mas o Brasil produz alimentos suficientes. Não falta comida.

Lizete Teles, de São Paulo

Programa Fome Zero é nobre, porém, a constatação de que a fome e a miséria no Brasil são produtos da falta de dinheiro, leia-se, da má distribuição de renda, não constitui nenhuma novidade. No mapa da miséria brasileira, os números divergem, mas são escandalosos: o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) aponta 23 milhões de miseráveis; o Banco Mundial, 14 milhões; a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), 20 milhões; a Fundação Getúlio Vargas (FGV), 50 milhões, e o Programa Fome Zero, 44 milhões. Divergências à parte, é inconcebível que um país como o Brasil, com terras, água, mão-de-obra e disposição do povo para o trabalho, sustente esse quadro degradante de milhões de famintos. Quadro que se explica quando se sabe que milhões de pessoas ganham menos de R$ 80 por mês nos Estados mais pobres e que nem mesmo São Paulo, a cidade mais rica do País, foge à regra, com mais de 250 mil cidadãos na mesma situação.

demais ministérios no programa significa um acréscimo de R$ 3,2 bilhões. Além disso, a iniciativa privada participará com muitas doações e acreditamos que a mobilização da sociedade civil, vital para a implementação do programa, também será significativa”. Ele lembra que o Fome Zero foi idealizado em 1990, quando o então candidato Lula, derrotado por Fernando Collor, organizou o Governo Paralelo junto ao Instituto Cidadania, em São Paulo. A política de segurança alimentar elaborada naquela época permitiu que Lula indicasse duas figuras de destaque para implementá-la: Betinho e dom Mauro Morelli. Betinho acabou fundando a Ação da Cidadania para o Combate à Fome e à Miséria, e dom Mauro tornou-se presidente do Conselho de Segurança Alimentar (Consea) no Governo Itamar. No Governo Lula, o Consea virou Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, tem 62 conselheiros, 13 ministros, 11 observadores e 38 personalidades da sociedade organizada, e é presidido pelo sindicalista Luis Marinho.

Aplausos e críticas acompanham o programa desde seu lançamento. Aplausos porque supõe-se que ninguém é contra o combate à fome. As críticas vão desde o suposto caráter propagandístico e assistencialista do Fome Zero, até o absurdo de dizer que não existe fome no Brasil, como o fizeram o presidente Fernando Henrique Cardoso e o empresário Antonio Ermírio de Moraes. As mais sérias referem-se à falta de políticas estruturantes que combatam as causas da fome; e de dinheiro para execução do Fome Zero. MOBILIZAÇÃO A estas últimas, Carlos Alberto Libanio Christo, o Frei Beto, assessor especial do presidente Luís Ignácio Lula da Silva no Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional (Mesa), responde: o programa não é marqueteiro, vem sendo gestado desde 1990, e conta com uma dotação orçamentária prevista pelo governo anterior de R$ 1,8 bilhão. “Considerando que é o carro-chefe do governo Lula, a participação dos

César Diniz

Vera Jursys

Vera Jursys

Retratos da fome

Fotógrafos revelam uma São Paulo diferente e que padece da fome tanto quanto as primeiras cidades assistidas pelo programa Fome Zero no Nordeste ou no Sul de Minas

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Paulo Pereira Lima, da Redação

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s fotografias que ilustram esta página fazem parte do livro A Fome em São Paulo – Fotografias e revelam em preto e branco um aspecto pouco abordado da cidade mais rica do país e coração financeiro da América Latina: o dia-a-dia de milhares de famintos. Durante três meses, os fotógrafosVera Jursys, Cesar Diniz, Euler Paixão e Paulo Pampolin percorreram os diversos pontos da cidade. Entre as dificuldades que encontraram, o fato de ninguém admitir passar fome. No entanto, testemunhos e pesquisas reportados na obra afirmam o contrário. A fome crônica é um grave problema de saúde pública que atinge milhares de adultos e crianças.

Dados colhidos pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo em junho de 2002, nos atendimentos de crianças de 0 a 5 anos no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, demonstram que dos 118.554 atendimentos no mês de maio, 4,6% apresentavam quadro de desnutrição e 14,1%, risco de desnutrição. Entre os adultos a fome também se manifesta. É o que revelam estudos realizados pelos médicos Telma de Cássia dos Santos, Hegles Rosa de Oliveira e Tito César Nery, da ONG Organização Nacional de Saúde. Em São Paulo, 32% dos passageiros (entre 21 e 30 anos) que sofreram mal-estar nos trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos tinham fome ou estavam mal ali-

mentados. Nos canteiros de obras da construção civil, são comuns os desmaios motivados pela falta de alimentação ou pela alimentação inadequada durante a jornada de trabalho. “A cidade produz uma das maiores riquezas do mundo. Mas, em suas entranhas, gera um rastro sinistro de destruição humana”, resume na apresentação Manoel Del Rio, advogado e coordenador da entidade que idealizou o livro, a Associação de Auxílio Mútuo da Região Leste (Apoio). Pedidos e informações APOIO Rua Ipanema nº 225 - Brás 03164-200 – São Paulo/SP Tel./fax: (11) 6692-6079 Sítio: www.afomeemsaopaulo.com.br


CAOS URBANO

Euller Paixão

A expansão das favelas supera o crescimento populacional Jorge Pereira, da redação elas estatísticas: de 1991 a 2000, o contingente de favelados no Brasil cresceu 46,7%, enquanto a população do país aumentou 15%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A dura realidade do empobrecimento: em 2001, o eletricista Carlos Marcelo Sêvulo tinha carteira assinada, morava com a mulher e quatro filhos por R$ 500 de aluguel; em 2002, foi demitido e mudou para uma área ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). “Não dava mais para pagar aluguel e manter meus filhos na escola”, diz Sêvulo. Como ele, milhares de brasileiros passaram pela mesma situação, nos últimos anos. Mas ninguém sabe exatamente quantos. “Os censos do IBGE são uma pista, mas subdimensionam os números”, diz a pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Gisele Tanaka, explicando que o IBGE não ouve, por exemplo, moradores de rua; tampouco considera favelas aglomerados com menos de 51 domicílios. “A favelização é um fenômeno nacional. Os centros estão sendo esvaziados”, constata o urbanista Renato Cymbalista, do Instituto Pólis. Segundo ele, a expansão das periferias é um fenômeno ligado ao modelo econômico brasileiro.“O problema não é falta de casa, mas falta de renda”, constata. Cymbalista explica que as pessoas são expulsas dos bairros em que vivem à medida que as áreas recebem melhorias. “Quando o Estado investe em escolas, hospitais, em um bairro, há uma valorização do preço do imóvel naquela região. Como a renda média da população está em queda, os moradores vão para áreas periféricas”, explica. Um estudo da Fundação João Pinheiro, feito em 2000, mostra que o governo precisaria construir 5,4 milhões de moradias para atender a população nacional sem condições dignas de habitação. A mesma pesquisa estima que havia, ainda, 10 milhões de habitações em condições precárias. Cerca de 83% dessas famílias tinham renda mensal menor do que três salários mínimos. Durante a década de 90, a recessão econômica piorou a condição econômica do brasileiro. Enquanto os preços dos aluguéis se mantiveram praticamente estáveis, o custo de vida aumentou e a renda média do trabalhador caiu — sem falar no desemprego. O rendimento médio do trabalhador acumulou diminuição de 28,3%, de 1999 a 2002, segundo relatório do Dieese. Em 2002, o desemprego atingiu 19% da população economicamente ativa na região da Grande São Paulo e o Índice de Custo deVida do Trabalhador (ICV) teve variação acumulada de 16,23%. “A tara por superávits impedia que se conseguisse um ambiente digno de desenvolvimento urbano”, avalia Edmilson Rodrigues, atual prefeito de Belém. O município apresenta uma das maiores taxas de favelização do Brasil. Cerca de metade dos 1,3 milhões de habitantes moram em áreas alagadiças ou em terrenos alagados. Em São Paulo, uma pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole constatou que a população das favelas cresceu, de 1991 a 2000, num ritmo quatro vezes superior ao crescimento da população da metrópole. Além disso, aumentou também o número de pessoas que divide o mesmo espaço. “Houve uma migração interna na cidade por causa do modelo de juros altos. As pessoas deixam de morar em regiões com infraestrutura e vão para a periferia viver em condições inadequadas”, diz o secretário da Habitação do município, Paulo Teixeira.

NACIONAL

Número de favelados brasileiros cresceu 46,7%, entre 1991 e 2000, ao passo que a população aumentou 15%, como resultado do modelo concentrador de renda; sistema tributário incentiva a especulação

■ No Morumbi, um dos bairros mais ricos de São Paulo, o luxo dos apartamentos contrasta com os maiores problemas do Brasil: a desigualdade social e a concentração de renda

REFORMA TRIBUTÁRIA

s que sobrevivem do trabalho e da produção no Brasil pagam impostos de primeiro mundo. Já para os que vivem do capital especulativo e do patrimônio, a tributação é a de um paraíso fiscal. Os números mostram claramente essa injustiça. Dos R$ 476,57 bilhões arrecadados em 2002 no país, 75,7% vieram de impostos sobre a produção de bens, serviços e salários, enquanto a taxação sobre capital e patrimônio não chegou a 20% (veja tabela). Os dados constam de um estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), que será entregue a 1.500 pessoas e entidades, incluindo deputados, senadores, sindicatos patronais, de trabalhadores, associações, etc, como uma contribuição às discussões da reforma tributária. “No Brasil, é melhor especular do que produzir e trabalhar”, diz Gilberto Luiz do Amaral, presidente do IBPT. A forma atual de cobrar impostos sobre o faturamento das empresas e sobre o salário bruto dos trabalhadores gera profundas distorções, provo-

ca concentração de renda e desestimula investimentos produtivos. No caso dos trabalhadores, a carga tributária sobre salários atinge uma média de 41,7%, aí incluídos os tributos pagos pelos empregados (Imposto de Renda e recolhimento para o INSS) e pelos empregadores (INSS, FGTS, salário educação, etc). Com essa taxação, o Brasil é o segundo país do mundo que mais tributa salários. Está atrás apenas da Dinamarca (43,1%), supera a Bélgica e Alemanha, com 41,4% e 41,2% respectivamente. Mas é bom lembrar que, se nos países desenvolvidos os impostos são altos, as respectivas sociedades têm retorno do que pagam, em termos de qualidade de educação, saúde, assistência, etc. Isso não acontece no Brasil. IMPACTO NAS COMPRAS A carga tributária pesa muito ainda sobre o consumo. Isso quer dizer que também pagamos impostos quando compramos qualquer produto de primeira necessidade. Por exemplo, a tributação média sobre alimentos industrializados é de 21,75%, a mais alta do mundo. Nos produtos da cesta básica, a carga média de impostos nos países

■ Bolsa de Valores, em São Paulo: para quem vive do capital especulativo, a tributação é a de um paraíso fiscal

Impostos: salários e produção “pagam o pato” Incidência dos Tributos

% da arrecadação total % sobre o PIB

Sobre bens e serviços Sobre salários Sobre o capital e demais rendas Sobre o patrimônio Sobre o comércio exterior Outros tributos

48,32 27,42 16,48 3,41 1,67 2,70

Fonte: IBPT

17,61 9,99 6,01 1,24 0,61 0,98

pesquisados é de 8%. No Brasil, é de 18%. Quando adquirimos roupas, temos que arcar com uma taxação média de 30,7%. Os grandes beneficiados da injusta política tributária são os que vivem do capital, como os bancos, especuladores e investidores. No ano passado, os tributos sobre o capital e demais rendas ficou em R$ 78,5 bilhões, apenas 16,5% do total arrecadado no país. Também se beneficiam os que vivem do patrimônio, como os grandes fazendeiros e latifundiários. A arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR) alcançou irrisórios R$ 250 milhões, o que corresponde a 0,05% do total. Para corrigir esse quadro perverso, a reforma tributária não pode ser uma “meia sola”. Ela precisa ser ampla e profunda, e não fatiada como alguns estão propondo, porque provocará um emaranhado de privilégios e as contas nunca fechariam. Para Amaral, a reforma deve ser aprovada de forma global, mas pode ser implementada de forma paulatina a exemplo do que ocorre na União Européia, onde as mudanças tributárias estão sendo implantadas há 10 anos.

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Cândida Vieira, de São Paulo

Paulo Pinto/AE

“Especular é melhor do que trabalhar e produzir”

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AGRESSÃO IMPERIALISTA

Milhões nas ruas provocam crise no coração do império Steve Yeater/AP

INTERNACIONAL

Mobilizações contra o ataque ao Iraque provoca crise sem precedentes desde a II Guerra, no “clube” dos países imperialistas; para Noam Chomsky, um eventual ataque desencadeará ondas de terror; e historiadores temem a destruição de sítios arqueológicos

Paulo Pereira Lima, da Redação fechado “clube” dos países imperialistas foi “rachado” , sob o impacto das mobilizações internacionais contra o cerco ao Iraque, que levaram milhões às ruas, em 15 de fevereiro e, novamente, em 15 de março. França e Rússia anunciaram o veto a qualquer resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CS-ONU) autorizando o ataque ao Iraque. A AlemaCS-ONU: Espécia de órgão executivo nha deixou igualintegrado por quinze mente claro o seu países-membros, cinco repúdio.Temendo dos quais permanentes e com poder de veto a derrota no CS(Estados Unidos, França, ONU, os Estados Grã-Bretanha, China e Rússia) e outros dez com Unidos tiveram assento temporário que novamente adiar o início dos ataques e multiplicar ameaças, chantagens, extorsões e ofertas de suborno aos integrantes daquele organismo. Dentro da ONU, começa um movimento para levar Bush a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional, recentemente formado, caso ele desobedeça às resoluções do CS. O desafio lançado à Casa Branca evidenciou o poder do povo nas ruas. Mesmo o vassalo Tony Blair, o primeiro ministro britânico, hoje qualificado como “poodle” de George Bush filho até mesmo pela imprensa de seu próprio país, foi obrigado a distanciar-se da Casa Branca. O seu apoio incondicional à Casa Branca ameaça levar ao buraco a sua própria carreira política. Diante da reação da opinião pública, dois dos ministros de Blair anunciaram que pretendem se demitir, em caso de um ataque não autorizado pela ONU. Bush tem que atacar o Iraque, se não quiser pagar o preço de uma irreversível desmoralização em seu próprio país. Mas, para atacar o Iraque, terá que deixar claro para o mundo que está pouco ligando para a ONU, para a opinião de seus parceiros europeus, para as mobilizações e até

Segundo o professor e ativista Noam Chomsky, em entrevista concedida à jornalista Cynthia Peters, o mais provável é que aconteça um ataque devastador ao Iraque. A conseqüência, nesse caso, será o aumento do terror e do uso de armas de destruição em massa, em todo o mundo. Cynthia Peters: O que se pode esperar para as próximas semanas?

Noam Chomsky: Meu palpite é que haverá um ataque devastador, e a sociedade iraquiana entrará em colapso. O que vai acontecer depois qualquer um pode adivinhar. Não há razão para duvidar de que um ataque ao Iraque fará crescer a ameaça do terror, do desenvolvimento e do uso de armas de destruição em massa. CP: Há alguma chance de que Blair recue a esta altura? Se há, o senhor acha que Bush prosseguiria sozinho?

■ Manifestação em Los Angeles, no dia 15 de fevereiro mesmo para o apelo de historiadores e arqueólogos que alertam, horrorizados, para o fato de que qualquer ataque ao Iraque significará a destruição de uma parte fundamental da memória histórica da civilização ocidental. As organizações e movimentos sociais intensificam a luta antiimperialista. A Coordenação Internacional contra a Guerra – formada a partir do Fórum Social Mundial – convocou novas jornadas, com manifestações em frente à Casa Branca, em Washington, e em várias cidades da Grécia, para onde foi convocada uma reunião dos ministros da Defesa da União Européia. Os protestos também prevêem ações diretas nas instalações militares estadunidenses situadas na Europa e bloqueio do transporte militar, além de pressões “massivas” sobre parlamentares e representantes da ONU.

Nos Estados Unidos, a oposição a Bush ganha fôlego, após alguns meses da perplexidade causada pelo atentado de 11 de setembro de 2001. Aumenta até mesmo o número de lideranças populares antiguerra. Bispos evangélicos mais próximos a Bush, cristão metodista, aconselham-no a abandonar a idéia do ataque. Na quinta-feira, dia 13, a Câmara Municipal de NovaYork aprovou resolução, por 31 votos contra 17, afirmando que a guerra contra o Iraque deve ser a “última alternativa” . Outras cidades, como Los Angeles, Portland e Chicago, aprovaram resoluções semelhantes. Bush e o seu governo fundamentalista, em contrapartida, respondem com a criminalização dos movimentos pacifistas e a perseguição política, organizando uma terrível “caça às bruxas” (leia reportagem na página ao lado). O império mostra o máximo de seus músculos. Sinal de prolongada agonia.

SÍTIO ARQUEOLÓGICO

Guerra causará catástrofe cultural

NC: Se for deixado nas mãos de Washington, o melhor que se pode esperar realisticamente é aquele tipo de “democracia” que a liderança política atual – basicamente de reaganistas reciclados – e outros no poder instituíram em outros lugares sob seu domínio: a América Central e o Caribe, para citar a região que fornece a mostra mais substancial da última vez que eles controlaram o governo, durante os anos 80, e, na verdade, ao longo de um século. CP: Que mudanças podem ocorrer no alinhamento de poder entre as nações se os EUA mantiverem sua posição unilateral? O que vai significar para o futuro da Otan?

NC: Os Estados Unidos sempre foram ambivalentes quanto à unificação européia. Traz óbvias vantagens para a economia dos EUA e para seu poder estratégico, mas sempre houve a preocupação de que a Europa pudesse seguir em direção a um rumo independente. Além disso, o sistema de mercado social da Europa sempre foi visto como uma ameaça, muito semelhante ao modo como o sistema de saúde pública do Canadá sempre foi temido: esses são “vírus” que podem “infectar” a população estadunidense, para usar a terminologia dos planejadores estrategistas dos EUA, quando eles começaram a esmagar o desenvolvimento social e econômico independente por todo o Terceiro Mundo. Essas preocupações nortearam as políticas estadunidenses para a Europa desde a II Guerra Mundial. A Otan foi concebida, em parte, como uma forma de assegurar o controle dos EUA sobre a Europa – e não sem o apoio de setores das elites européias, que desprezam o sistema de mercado social e temem a independência européia pelas mesmas razões que suas contrapartes daqui. Os EUA são fortemente favoráveis à entrada dos países do Leste europeu na UE por essas razões.Washington espera ter sobre eles bastante controle, a ponto de eles diluírem tendências rumo à independência na Europa. CP: Se a administração Bush prosseguir com seus planos de guerra, o que isso significará para o futuro da ONU?

NC: Especular sobre isso é perda de tempo, simplesmente porque as repostas dependerão muito do que nós fizermos dentro do mais poderoso país da história mundial. A ONU nunca foi capaz de agir para além dos limites impostos pelas grandes potências, o que significa, em primeiro lugar, os EUA. A atual administração, na sua fase reaganista, anunciou, muito clara e explicitamente, que a ONU, a Corte Internacional, a Lei Internacional e outras instituições da ordem mundial são irrelevantes, a menos que apóiem que Washington recorra à violência. Tradução: Marilene Felinto RÚSSIA

MAR NEGRO

GEÓRGIA ARMÊNIA

AZERBAIJÃO

TURQUIA

MAR CÁSPIO

SÍRIA

MAR MEDITERRÂNEO

IRAQUE

ISRAEL

IRÃ

Bagdá JORDÂNIA KUWAIT

O LF O G

ARÁBIA SAUDITA

O IC RS PÉ

EGITO

RM EL HO

ros abandonaram as escavações no Iraque e nos países vizinhos, especialmente na Jordânia, na Síria e no Irã.“A maioria dos trabalhos está parada no Oriente Médio porque não há como garantir a segurança das equipes”, comenta Gibson. Os sítios, por isso, ficam expostos aos saqueadores. Durante a guerra do Golfo, em 1991, quando o trabalho dos arqueólogos ficou parado, 3 mil sítios foram pilhados e a maioria dos objetos foi vendida ilegalmente para colecionadores. Segundo Gibson, os bombardeios autorizados por George Bush, pai do atual presidente dos Estados Unidos, destruíram os principais sítios arqueológicos e monumentos da região do Ur (no Sul do país, fronteira com o Kuwait). Como a atual ofensiva pode ter proporções muito maiores, os danos serão infinitamente superiores.

CP: A agenda dos EUA inclui a “democratização” do Iraque…

E RV

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único meio de impedir uma catástrofe cultural é evitar a guerra”, avalia o arqueólogo McGuire Gibson, da Universidade de Chicago (Estados Unidos). Segundo ele, o Iraque tem mais de 100 mil sítios arqueológicos, muitos deles próximos a alvos militares. Sua destruição não seria uma perda apenas para a cultura iraquiana, mas para a do mundo todo. No início do mês, diversos pesquisadores estadunidenses reuniram-se com integrantes do Pentágono (sede das Forças Armadas dos Estados Unidos) para indicar os milhares de locais onde existem escavações e ruínas, numa tentativa de evitar que haja bombardeios nessas áreas. Segundo Gibson, que participou do encontro, o país inteiro é um sítio arqueológico .

Em 1954, na Convenção de Haia, diversos países assinaram um acordo proibindo ataques a locais culturais e religiosos. Mas os Estados Unidos nunca ratificaram esse acordo. Essa postura preocupante, diz Gibson, libera as forças militares de prestar contas. Berço da civilização ocidental, a Mesopotâmia, região onde se localiza o Iraque, testemunhou a origem da vida urbana e o nascimento da escrita, há 5.500 anos. De acordo com o arqueólogo Roger Matthews, da Universidade de Londres (Inglaterra), foi no Iraque que surgiram as formas atuais de governo, literatura e astronomia. Matthews acredita que o bombardeio de monumentos e, principalmente, do Museu Nacional do Iraque, em Bagdá, seria a destruição de uma parte da memória do mundo. Com o clima de guerra, todos os pesquisadores estrangei-

NC: Blair está sob muita pressão interna; e o mesmo acontece com outros membros da “aliança da boa vontade”. As enormes manifestações de fevereiro alcançaram sua maior escala e intensidade ali onde os governos estavam alinhados com Washington: Espanha, Itália e Inglaterra. Na Itália, a oposição à guerra já atinge quase 90%; e está próxima disso na Espanha. Na pesquisa Gallup internacional divulgada em janeiro, o apoio à guerra Bush-Powell mal atingia 10% em qualquer lugar. Mesmo os governos totalitários têm de prestar atenção à opinião pública; as sociedades democráticas, muito mais. Se a Inglaterra recuar, o que é improvável mas não inconcebível, a administração Bush enfrentará algumas escolhas difíceis, que eles tentaram esvaziar antecipadamente ao tornarem quase impossível sua não entrada na guerra.

MA

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

João Alexandre Peschanski, da Redação

Ataque aumentará o terror no mundo


MACARTISMO

EUA revivem clima de “caça às bruxas” Baraldi

Silvio Mieli, de São Paulo

INTERNACIONAL

O governo Bush orquestra campanhas de perseguição e difamação de seus adversários , como no auge da histeria anticomunista dos anos 50; o secretário de Estado Colin Powell faz ares de “bom moço”, auxiliado pela cumplicidade de uma mídia subserviente

ossiê de artistas que se pronunciam contra a guerra, ordem de prisão a cidadãos que vestem camisetas pela paz; ameaças de corte de bolsas a intelectuais. Desde os ataques de 11 de setembro, a sociedade estadunidense assiste à volta prog ressiva do macartismo, um dos períodos mais obscuros da história dos Estados Unidos, marcado pelo clima de delação, suspeição e terror, que agora volta turbinado pela “doutrina Bush”. Em Los Angeles, o Sindicato de Atores de Cinema dos Estados Unidos denunciou que está sendo feita uma dossiê com nomes de artistas que têm se pronunciado contra a guerra (casos de Susan Sarandon, Sean Penn, Martin Sheen, Penelope Cruz, Edward Norton, Alec Baldwin, Mike Farrell e Madonna ).Também segundo o sindicato, os atores que manifestam publicamente o seu pacifismo podem ser preteridos nas novas produções de Hollywood. retirada imediata das camisetas. Stephen se recusou. Resultado: foi preso, algemado e detido por pelo menos duas semanas. No último dia 5 de março, 150 pessoas, trajando camisetas com os mesmos dizeres, protestaram no mesmo shopping. Ninguém foi preso. UNIVERSIDADE É O ALVO A ponta de lança do neomacartismo surgiu logo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Uma lista de 117 professores e alunos, com seus respectivos comentários sobre os ataques terroristas, foi divulgada como “uma evidência da hostilidade das universidades estadunidenses em relação à postura assu-

mida pelo governo dos EUA”. A acusação consta do documento “Defendendo a Civilização”, lançado pela ACTA, American Council of Trustees and Alumni (Conselho Americano de Curadores e exAlunos), organização fundada em 1995 por Lynne V. Cheney – mulher do vice-presidente Dick Cheney, do Partido Republicano. A ACTA passou a financiar estudos cívicos, de história dos Estados Unidos da civilização ocidental. Só que o primeiro projeto para a “Defesa da Civilização” caracteriza uma agressão às liberdades fundamentais. O documento – “Defendendo a Civilização: como as universidades estão enfraquecendo os Estados Unidos e

o que pode ser feito” – acusa as universidades de serem o elo mais frágil nas reações contra os ataques.Além disso, afirma que “professores e estudantes têm mantido uma postura comedida em re-

lação ao seu patriotismo e exagerada quanto à auto-flagelação”. O que se segue é a tal lista dos 117 professores e alunos, dentre os quais não podia faltar o nome do lingüista Noam Chomsky. Shizuo Kanbayashi/Ap Photo

PRESOS NO SHOPPING Na costa leste, Stephen Downs e o filho Roger Downs foram fazer compras no Guilderland Shopping Mall, em Albany, capital do Estado de Nova York, no último dia 3 de março. Saíram de uma das lojas vestindo duas camisetas, respectivamente, com os seguintes dizeres: “Give Peace a Chance” (Dê uma chance à paz) e “Peace on Earth” e “Let Inspections Work” (Paz na Terra e Deixem os inspetores trabalhar, uma menção aos inspetores da ONU que estão encarregados de desarmar o Iraque). A intenção dos Downs era jantar na praça de alimentação. Mas foram interceptados por um segurança do shopping, que ordenou a

Questões que Colin Powell não pode responder Norman Solomon

Norman Solomon é jornalista Tradução de Renato Pompeu

■ Secretário de Estado Colin Powell, um eficiente “relações públicas” de George Bush

O terror macartista Ataques à autonomia do pensamento acadêmico não são novidade nos Estados Unidos. Em 1949, o reitor da Universidade de Washington argumentou que os comunistas não deveriam ser tolerados nas universidades americanas. Na mesma época, um filme de propaganda chamado “Ele deve ser um comunista” ensinava a reconhecer os “comedores de criancinhas” nas suas próprias comunidades. Era o começo da “Guerra Fria”, cujo período mais intolerante receberia o nome de “macartismo”, oriundo do senador Joseph Mc Carthy, de Wisconsin, que em 1950 saiu do anonimato acusando mais de 200 funcionários públicos de serem comunistas. Em 1953, o já todo-poderoso Mc Carthy se tornou presidente da “Comissão para as atividades antiamericanas” (instituída pelo Congresso dos Estados Unidos em 1938). O objetivo da comissão era investigar a “infiltração” e a “influência” dos comunistas nas instituições estatais. Entre 1950 e 1954, a comissão criou um clima de terror, que afetou escritores, intelectuais e artistas. Dashiell Hammett, Waldo Salt, Lillian Hellman, Lena Horne, Paul Robeson, Arthur Miller, Aaron Copland, Leonard Bernstein, Hanns Eisler, Charlie Chaplin, Clifford Odets, Elia Kazan, Stella Adler W.Wyler, J. Houston, A. Litvak, H. Bogart, K. Hepburn, J. Losey, Mort Sahl, Edward R. Murrow, dentre muitos outros, tiveram suas reputações vilipendiadas e seus direitos básicos pisoteados em sessões kafkianas transmitidas pela televisão. Pontificavam os inquisidores Mac Carthy e J. Edgar Hoover, então diretor geral do FBI (polícia federal estadunidense).

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

Não há dúvida: Colin Powell é um grande artista, como mostrou de novo no Conselho de Segurança da ONU nas últimas semanas. Na televisão, exibe confiança e faz declarações com exuberância. Mas Powell deve muito de sua decantada credibilidade ao fato de que ele funciona dentro de uma bolha da mídia dos Estados Unidos que o protege do desafio direto. Powell não enfrenta questões básicas como as seguintes: • O senhor cita violações pelo Iraque de resoluções do Conselho de Segurança da ONU para justificar o desencadeamento da guerra aberta pelos EUA. Mas o senhor sabe muito bem que aliados dos americanos, como a Turquia, Israel e o Marrocos, continuam a violar dezenas de resoluções do Conselho de Segurança. Por que outras nações não poderiam exigir o direito de “impor” militarmente as resoluções do Conselho de Segurança contra países a que prefeririam bombardear? • O senhor insiste que o Iraque é uma grave ameaça às outras nações do Oriente Médio. Mas, com exceção de Israel, nenhum país da região fez essa alegação ou expressou qualquer entusiasmo por uma guerra contra o Iraque. Se o Iraque é uma séria ameaça à região, por que a região não se sente ameaçada? • O senhor diz que o regime iraquiano está comprometido com a agressão. Entretanto, o Iraque não atacou nenhum país há mais de doze anos. E apenas oito dias antes da invasão do Kuwait pelo Iraque a 2 de agosto de 1992, a enviada dos EUA a Bagdá deu o que pareceu um sinal verde para a invasão quando se encontrou com Saddam Hussein. Uma ata iraquiana da reunião cita a embaixadora April Glaspie: “Não temos opinião sobre os seus conflitos interárabes, como a sua disputa com o Kuwait. O secretário (de Estado) James Baker me orientou para enfatizar a instrução... de que o Kuwait não está associado com os Estados Unidos.” Sr. Powell, por que o senhor nunca menciona essa informação? • Washington foi a favor do Iraque durante a guerra iraquiana contra o Irã nos ano 1980. Como outros dirigentes dos EUA, o senhor enfatiza que Saddam Hussein “lançou gases contra seu próprio povo” e usou armas químicas contra o Irã, mas o senhor não fala sobre os dados de inteligência e outras formas de assistência que os EUA proporcionaram para o Iraque fazer essas coisas. Se a história dos malfeitos de Bagdá é relevante, por que não são também relevantes os dados sobre a cumplicidade dos EUA? • Quando o senhor adverte que o Conselho de Segurança da ONU “se coloca em risco de irrelevância” se deixar de endossar uma guerra contra o Iraque liderada pelos EUA, o senhor não está de fato proclamando que as Nações Unidas são “relevantes” apenas na medida em que fazem o que o governo estadunidense quer? Se Powell tivesse de enfrentar questões como essa, sua aura na mídia ficaria menos luminosa.

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ALCA

EUA apertam o cerco à América Latina s Estados Unidos aceleram o processo de militarização da América Latina, enquanto que os meios de comunicação fingem que nada acontece. Mas especialistas no tema, como a professora Ana Esther Ceceña, da Universidade Nacional do México, alertam para o perigo representado pela instalação de bases militares no continente. Pior ainda: a base espacial de Alcântara, no Maranhão,

tem grande importância estratégica para os Estados Unidos, indicam os estudos de Ceceña. A razão é simples: a instalação de um base estadunidense em Alcântara completaria o cerco dos Estados Unidos na região. Em carta enviada recentemente ao presidente Lula, Ceceña expressa sua preocupação com “a concessão da base de Alcântara ao exército estadunidense, que significaria sérios problemas para a soberania da nação brasileira, mas, sobretudo, que permitiria a implantação continental de um pa-

Diga “não” à base de Alcântara Dezenas de ativistas, intelectuais, artistas, professores e lutadores do povo de toda a América Latina enviaram uma carta ao presidente Luís Inácio Lula da Silva, para solicitar o cancelamento do acordo de concessão da Base de Alcântara para os Estados Unidos. Conheça trechos da carta e envie sua mensagem ao governo. “A América Latina abriga a região de maior biodiversidade do planeta. Ela está ameaçada pelos planos Puebla Panamá e Colômbia. As comunidades e povos que habitam a região desde tempos ancestrais e que contribuíram para o seu desenvolvimento e riqueza formam, hoje, um freio ao ímpeto neoliberal que afeta todos os níveis da vida. O poder que se abate sobre elas só pode ser comparado àquele de 500 anos atrás: enfrentamos a ameaça de um novo genocídio dos povos latino-americanos. Na região, há reservas de petróleo, gás, urânio e condições propícias à geração de energia elétrica. (...) O controle destes recursos constitui uma das linhas mestras na estratégia montada pelos Estados Unidos para assegurar sua relativa invulnerabilidade e redesenhar sua hegemonia sobre o planeta. A água da bacia amazônica, da região do Plano Puebla Panamá e dos glaciais ao sul do continente são um motivo maior para promover a ocupação, mediante diversos mecanismos, deste território rico e maravilhoso. O interesse de controlar o território latino-americano levou os Estados Unidos a estabelecer-se militarmente em pontos estratégicos. Hoje, essa necessidade se acentua, dada a resistência dos povos e a voracidade capitalista. Nos últimos anos, vimos serem multiplicadas as posições militares estadunidenses em nossos territórios. O Comando Sul do Exército estadunidense, responsável por tantas mortes e danos, reforçou sua ação na América do Sul e Central.O Comando Norte agora se ocupa da região mexicana, incluídos os seus mares e Cuba. As bases militares vêm do Caribe e baixam pela América Central e pela região do Pacífico, até a Terra do Fogo. Estão promovendo uma triangulação do território com uma visão de longo alcance, que implica uma submissão total. Falta-lhes ainda a costa Atlântica e por isso querem instalar-se na base de Alcântara. A concessão da base constitui o último elo que ainda faltava para o controle total da América Latina. (...) Como lutadores pela democracia e pela libedtade de nossos povos, não podemos aceitar que esta concessão seja concluída. Señor presidente Lula, convencidos de seu compromisso com as melhores causas de nossa América, pedimos que o senhor anule o acordo e impeça que as bases militares estadunidenses se instalem em território brasileiro.” Envie para: Ministro da Defesa José Viegas Filho ministro@defesa.gov.br Fone (61) 312 4000 Ministro da Ciência e Tecnologia Roberto Amaral gabmin@mct.gov.br Fone (61) 223 4134

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim celsoamorim@mre.gov.br Fone (61) 411 6456

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Plano Colômbia: 60% de miseráveis Sob o pretexto de combater as drogas, a Casa Branca enviou soldados e armas à Colômbia. Como resultado, as operações militares e as fumigações com agentes químicos já contaminaram mais de um milhão de hectares de floresta. As populações camponesas e indígenas são as mais atingidas, com cerca de dois milhões de refugiados internos. A população pobre é a que mais sofre com a guerra civil. No meio rural, muitos camponeses cultivam a coca como única opção de sobrevivência. Muitas vezes, a folha é a sua única fonte de alimento. O desemprego e a ausência de serviços básicos de moradia, saúde e educação estimularam o poder do narcotráfico, gerando uma espécie de economia paralela. Hoje, milhares de jovens colombianos são obrigados a optar pelo alistamento nas Forças Armadas, paramilitares ou nas guerrilhas. O nível de desemprego na Colômbia é de pelo menos 20%. Entre os “sortudos” empregados, 80% ganha menos de dois salários mínimos. Conseqüentemente, 60% da população vive em situação de pobreza.

drão de domínio que nega a democracia e a autodeterminação dos povos latino-americanos”. O governo de Fernando Henrique Cardoso chegou a assinar um acordo com os Estados Unidos, permitindo a utilização da base. Seriamente contestado por muitos parlamentares, e rejeitado em massa pelo plebiscito nacional de setembro, quando quase 10 milhões de pessoas rejeitaram a concessão, o acordo ainda tramita na Câmara dos Deputados. A presença militar dos Estados Unidos na América Latina

tem causado a destruição do meio ambiente e sérias violações de direitos humanos, além de constituir uma clara ameaça à soberania das nações. A ocupação tem como objetivo a apropriação de recursos naturais, como água, petróleo e biodiversidade, sendo concentrada na Amazônia, na região do Plano Puebla Panamá (sul do México e América Central) e nas áreas glaciais do sul do Continente (Terra do Fogo). Os Estados Unidos possuem bases militares no Equador, Colômbia, Peru, Aruba, Curaçao, Porto

Rico, Cuba e Honduras.Além disso, pretendem construir bases em El Salvador e na Argentina (na Terra do Fogo), assim como controlar a base de Alcântara, no Brasil. Em resposta, movimentos sociais em todo o continente criaram a Campanha Continental Contra a Militarização, como parte da Campanha Continental Contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). A campanha propicia a troca de informações e a articulação de mobilizações contra a presença militar dos EUA na América Latina.

Ocupação militar estadunidense da América Latina

MÉXICO CUBA

PORTO RICO HONDURAS ARUBA GUATEMALA CURAÇAO PANAMÁ COLÔMBIA

EQUADOR

Bases e zonas de exercícios militares

PERU

BRASIL BOLÍVIA

Linhas de deslocamento estratégico e raios de ação Base militar de Alcântara e operações pretendidas pelos EUA

ARGENTINA

Bases e operações em processo de implantação FONTE: Ana Esther Ceceña

Plano Puebla-Panamá: destruição ambiental e trabalho semi-escravo estratégia de dominação estadunidense na América Latina inclui também acordos comerciais regionais, como o Plano Puebla-Panamá - um projeto transnacional de construção de um canal terrestre ligando o sul do México até a América Central, passando pela Guatemala, Belize, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Essa região é muito rica em biodiversidade e recursos naturais (incluindo importantes reservas de gás natural, petróleo, urânio, alumínio e cobre). O plano prevê a construção de um complexo de maquiladoras (linhas de montagem, também conhecidas como “processadoras para exportação”), controlado por empresas transnacionais, que planejam utilizar mão-de-obra barata e não sindicalizada Essas empresas se multiplicaram a partir de 1994, com o início do NAFTA (Acordo de Livre Comércio entre México, Estados Unidos e Canadá). Existem hoje cerca de quatro mil maquiladoras no

■ Panamenhos fazem ato contra a Alca, durante o fórum de Porto Alegre México, produzindo principalmente acessórios eletrônicos, equipamentos mecânicos, produtos têxteis, sapatos, brinquedos, comida enlatada e produtos químicos. Quase toda a produção é exportada, sem tributação. Diversas organizações têm denunciado violações de direitos tra-

balhistas nas maquiladoras, como a repressão à organização de sindicatos, horas extras forçadas e maustratos. Como 60% da mão-de-obra é formada por mulheres, freqüentemente se registram casos de abuso sexual.Além disso, uma pesquisa do Comite de Apoyo Fronteirizo Obrero Regional (CAFOR), indica que 76% das trabalhadoras apresentam dores pulmonares e 62% desenvolvem alergias e doenças de pele, em conseqüência do constante contato com produtos químicos. A destruição ambiental é comum nessas áreas, como no caso da cidade de Matamoros, na fronteira com o Texas, onde se encontram empresas como a General Motors e AT&T. Após a chegada das maquiladoras nessa região, verificou-se que o nível de agentes químicos nas fontes de água potável estava 50.000 vezes maior. Além da exploração de mãode-obra barata nas maquiladoras, o Plano Puebla-Panamá prevê a implementação de grandes latifúndios agrícolas para a produção de alimentos transgênicos.

Wladimir Senise

Maria Luisa Mendonça, da Redação

Moisés Araújo

INTERNACIONAL

De olho nas riquezas e reservas naturais da América Latina, Washington multiplica a instalação de bases militares e pressiona o Brasil por Alcântara; a militarização faz parte da estratégia de total anexação regional, cujo componente econômico é a Alca


ARGENTINA

Marcelo Barbão, de Buenos Aires s trabalhadores argentinos conseguem, com esforço e luta, reconstruir pedaços da economia de seu país. Enquanto o governo fica mendigando a benção do FMI, eles ocupam (preferem dizer “recuperam”) as fábricas abandonadas por seus patrões.Visitei algumas delas e posso afirmar: é uma experiência emocionante. Em Buenos Aires, encontra-se a IMPA, uma velha metalúrgica. Ela é a mais antiga das empresas recuperadas e ajudou todos os outros movimentos que vieram depois. A empresa, inicialmente de capital alemão, foi criada nos anos 40. Durante a época peronista dos anos 40 e 50, a fábrica foi estatizada, mas o general Frondizi, em 1961, decidiu vendê-la. Os trabalhadores, o sindicato e a opinião pública convenceram o governo a transformá-la numa cooperativa. “A fábrica nunca foi dirigida como uma cooperativa, ao contrá-

rio. Os trabalhadores não tinham nenhum poder, a disciplina era muito rígida e a direção da empresa tinha salários muito mais altos que nós”, conta Oracio Atílio Campos, atual presidente da Cooperativa IMPA. Oracio entrou na fábrica em 1968 e foi demitido em 97. Por reclamar de salários atrasados. Segundo ele, foram descobertos diversos documentos que comprovavam que a direção da Cooperativa queria que a empresa falisse para transformá-la em uma Sociedade Anônima. Foi a luta dos trabalhadores que impediu isso. E Oracio acabou dirigindo a luta dos seus ex-companheiros por acaso. Pouco tempo depois de ser demitido, ele estava fazendo alguns bicos na região e foi chamado a participar novamente das assembléias que discutiam a recuperação da fábrica pelos seus trabalhadores. Acabou sendo eleito dirigente. E organizou a primeira manifestação na porta da fábrica Quando subiram, junto com o advogado, para a primeira reu-

Fotos: Marcelo Barbão

Trabalhadores argentinos recuperam fábricas nião com a Comissão Diretiva, Oracio reconhece que o objetivo era bastante modesto: “Nós só queríamos algumas mudanças na Comissão e na fábrica”. Mas, os gerentes não concordaram e partiram para o confronto. Apostando na incapacidade dos operários, a gerência simplesmente foi embora, deixando a fábrica nas mãos de uma centena deles. No começo, o desânimo foi muito grande. Mas, aos poucos, a fábrica voltou a funcionar. A retomada da fábrica levou à construção de uma solidariedade que não existia antes. Os companheiros participam dos principais movimentos de luta do país, ajudando greves de outros setores fabris, lutas das assembléias de vizinhos e estudantes. Um dos trabalhadores da IMPA, Eduardo Murúa, é também dirigente do Movimento Nacional de Empresas Recuperadas (MNER). Hoje, na Argentina, já são mais de 150 empresas recuperadas e 10.000 pessoas que trabalham em regime de autogestão.

Uma “fábrica cultural” Antes de acabar a entrevista na IMPA, eu precisava tirar uma dúvida: que significa essa placa na porta da fábrica onde está escrito Fábrica Cultural? Oracio, feliz, lembra quando os primeiros jovens cabeludos começaram a aparecer na fábrica.A desconfiança foi total. Que querem estes tipos estranhos? Aos poucos a confiança foi sendo construída. Principalmente, quando os jovens universitários vinham com seus bumbos, para ajudar nas manifestações e passeatas. Desta união, nasceu um projeto único e muito simples. Os espaços ociosos da fábrica foram disponibilizados para companhias de teatro, artesãos, cursos e até festas. No final de 2002, a IMPA recebeu a visita do cantor francês Manu Chao. Amante da América Latina, Manu Chao ficou maravilhado com a primeira “fábrica cultural” do mundo.. Minha visita acontece numa sexta-feira e pude presenciar os preparativos para uma festa que aconteceria no dia seguinte. Para os artesãos que usam o espaço para desenvolver seu trabalho, a experiência da IMPA prova a superioridade da autodo Brasilgestão. Ao invés de um lugar frio e impessoal, as fábricas se transformam em ambientes de criação e reflexão.

Saúde para os desocupados, comida para as crianças Os vizinhos do bairro de Flores tomaram um susto quando resolveram transformar a Clínica Portuguesa em um centro cultural e um restaurante comunitário para as famílias sem-teto da comunidade. A clínica ficou abandonada por seis anos, mas para assombro de todos, entre a sujeira e os escombros estavam equipamentos médicos como

camas, mesas cirúrgicas, esterilizadores e estetoscópios, conta Alejandro Amirato, um portenho típico, de cabelos compridos e sorriso fácil. Caminhando pelos quatro andares cheios de equipamentos abandonados, Alejandro conta que a clínica tem condições de funcionar e este se tornou o objetivo da comunidade, com a ajuda de uma comi-

INTERNACIONAL

Na Argentina, 150 fábricas foram ocupadas por 10.000 trabalhadores, que agora operam em regime de autogestão; no Brasil, em Joinville (SC), mil trabalhadores, apoiados pelo população, ocupam e administram duas das mais importantes indústrias do setor plástico

tiva de fábricas recuperadas da Capital e da Grande Buenos Aires. “E como se organizará essa clínica quando estiver funcionando?” Alejandro é rápido e preciso: “Com delegados das fábricas recuperadas e da comunidade, desde que sejam delegados rotativos, para que haja transparência na administração, como deve ser”.

■ Atividades com crianças na IMPA

BRASIL

Fotos: Clodoaldo Fáveri

Em Joinville, mil operários dão o exemplo Sandro Silva e Sérgio Homrich, de Joinvile

■ Operários da Cipla durante piquete e em atividade na fábrica agora controlada por eles mesmos a partir de novembro de 2002, os trabalhadores já assumissem a direção das empresas e três meses após, 100% do controle acionário passaria às mãos dos funcionários – este último item do acordo não havia sido cumprido até o último dia 13 de março. “Agora não há mais volta; a empresa já é de fato dos trabalhadores”, diz o marceneiro Evandro Luiz Pinto, escolhido em assembléia como diretor administrativo da Interfibra. Evandro é um dos 20 integrantes do Conselho Administrativo Unificado (CAU), uma das instâncias formadas pe-

los operários para gerenciar as empresas. PRODUTOS DE EXPORTAÇÃO Fundada há 40 anos, a Cipla, juntamente com a Interfibra, controla outras sete empresas. Apenas três delas ainda estão ativas. Fornecedora exclusiva de peças para várias multinacionais do setor automotivo, a Cipla já liderou o ranking na tecnologia da produção de produtos plásticos. “Já tivemos até quatro mil trabalhadores aqui dentro”, recorda a sexagenária Onélia Marcelino de

Oliveira, que há 36 anos trabalha na empresa. Aposentada, dona Onélia preferiu continuar trabalhando no “chão de fábrica, no meio do meu povo”, como faz questão de enfatizar. Líder antiga na indústria, é cipeira e integra o Con-

selho de Administração Unificado. Outra aposentada é Benta Margarida da Luz, que dedicou 20 de seus 56 anos à CIPLA. “Quero sair, dar lugar a gente nova, mas primeiro tenho que receber meus direitos”, sinaliza com o dedo.

Faturamento aumenta Fevereiro de 2002: R$ 1.132.000,00 Fevereiro de 2003: R$ 1.335.000,00 ■ Março de 2003: R$ 1.600.000,00 (Projeção com base em contratos e pedidos de produtos já formulados) ■

Fonte: Departamento Administrativo/Financeiro da CIPLA/Interfibra.

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

erca de mil trabalhadores em greve ocuparam e agora administram duas das mais importantes indústrias do setor plástico da América Latina, a Cipla e a Interfibra, em JoinvilleSC. Entre confrontos com a polícia e o apoio da população, os operários já elevaram a produção, aumentaram o faturamento e passaram a pagar salários em dia. O controle dos trabalhadores sobre as duas empresas pertencentes à Holding Brasil está oficializado em acordo coletivo de trabalho. Ele foi firmado em outubro do ano passado, após tensos oito dias de greve. Sem pagar os funcionários há vários meses, respondendo a 840 processos trabalhistas e com uma dívida que gira em torno de 480 milhões de reais, os irmãos Luiz e Anselmo Batschauer, proprietários da holding, não tiveram outra saída senão acatar a reivindicação dos operários e lhes entregar a fábrica. O acordo inicial, que contou com a intermediação da Delegacia Regional do Trabalho e do Ministério do Trabalho, era de que,

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AMBIENTE

Pesquisadores canadenses criticam ganância das corporações que querem privatizar a água do planeta; no Brasil, a lógica piramidal de um sistema que concentra riqueza e informação leva as corporações da mídia ao impasse, como no caso do jornal Gazeta Merantil

OURO AZUL

André Deak

Principais guerras do século 21 serão por água André Deak e Giovanna Modé, de Porto Alegre s guerras pela água serão as principais lutas do século 21. De um lado, corporações que querem privatizar a água; do outro, um bilhão e meio de pessoas que hoje passam sede no mundo. A análise é dos pesquisadores canadenses Maude Barlow e Tony Clarke, dois dos principais ativistas de movimentos em defesa da água. Ambos vieram ao Brasil em janeiro para participar do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e para divulgar seu novo livro, “Ouro Azul” (São Paulo: M. Books do Brasil, 2003). Os organismos internacionais facilitam a transformação da água em mercadoria, afirmam. Um deles, o Banco Mundial, financia o 3º Fórum Mundial da Água, que começa no domingo, 16 de março, no Japão, cujo objetivo é rati-

■ Tony Clarke e Maude Barlow: “Imagino que nos próximos cinco anos veremos um movimento da sociedade civil muito grande e muito ligado à luta pela água”

ficar que a água é um bem econômico. Por outro lado, ao mesmo tempo, estão sendo organizados fóruns alternativos em vários países do mundo. No Brasil, acontecerá em Cotia (SP).

Brasil de Fato: Como está a situação geral no mundo, em relação à água? Maude Barlow: Está ficando cada vez pior. O primeiro problema é que a Terra está ficando

sem água. O segundo é que esse conhecimento de que vai faltar água chegou justamente quando os mercados estão se tornando globais. Tudo está à venda. Coisas que eram comuns agora estão sendo privatizadas. O Banco Mundial, o FMI (Fundo Monetário Internacional) e acordos como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas), tudo isso faz força para a privatização da água. Isso é uma catástrofe terrível.

Brasil de Fato: Como está o movimento contra essa privatização? Tony Clarke: Imagino que nos próximos cinco anos veremos um movimento da sociedade civil muito grande e muito ligado a essa luta. A água será um ponto aglutinador dessa resistência social. Nós somos feitos de água, 60 ou 70% do nosso corpo é de água. Numa das manifestações de que participei, houve um tra-

balhador que disse: “Se vocês querem privatizar a água da Terra, então vão ter que me privatizar também, porque eu tenho água dentro de mim.”

Brasil de Fato: Por que privatizar a água se isso causará a morte de muitos? Clarke: As classes mais ricas simplesmente ignoram o resto da humanidade. Existe hoje uma tensão sendo armada que tem, de um lado, os movimentos em defesa da água, que lutam para que a água seja reconhecida como um direito universal. Do outro, as corporações, querendo comercializá-la. Isso não vai ser decidido com livros bonitos e trabalho simples. As guerras pela água serão as grandes lutas deste século. A última fronteira do capitalismo é atacar o sistema público. Saúde, educação, água e coisas assim. As corporações estão vindo atrás disso já.

MÍDIA PATRONAL

Luiz Antonio Magalhães, de São Paulo mais importante jornal econômico do Brasil das últimas décadas vive uma crise aguda. Há muito, a Gazeta Mercantil vem passando por dificuldades financeiras e gerenciais, como ocorre com quase todos os grandes veículos de mídia no País, mas desde o ano passado a crise ganhou os contornos de uma tragédia empresarial. A situação na Gazeta é tão delicada, que desde o final de 2001 os funcionários do jornal não recebem seus salários integrais, informa o jornalista Paulo Totti. Editor-executivo da Gazeta e com 23 anos de casa, Totti foi demitido no dia 31 de janeiro, junto com duas dezenas de jornalistas. No mesmo episódio, foram afastados de suas funções o diretor-editorial, Roberto Müller Filho, e o editor-chefe, Matías Molina. Não se tratava de mais um dos tantos cortes que vem acontecendo no setor, em função das sucessivas reestruturações das empresas. Desta vez, foi represália pura e simples aos profissionais que participaram de uma espécie de

greve branca no jornal. Dois dias antes da demissão de Totti e seus companheiros, a empresa não pagara atrasados que havia prometido colocar em dia. Os editores decidiram então que não havia material de qualidade para publicar a edição do dia seguinte. O jornal foi fechado de forma precária pelos diretores da empresa e circulou com notícias velhas, além de ter chegado a muitas bancas com grande atraso. Até aceitar uma oferta do presidente do BNDES, Carlos Lessa, e assumir a assessoria de imprensa do banco há três semanas, Paulo Totti era o porta-voz da Associação dos Empregados e Prestadores de Serviços do Grupo Gazeta Mercantil.A entidade foi subscrita por 305 jornalistas – que representa a incrível taxa de 98% do total — e nasceu para lutar pelos direitos dos trabalhadores da Gazeta. Totti conta que já houve uma grande vitória: a Associação obteve na Justiça, no dia 15 de janeiro, uma liminar cautelar determinando que a Gazeta pague os salários devidos e que tenha ativos como garantia desses pagamentos. Na prática, isso significa que a marca

Informe publicitário

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

Edital de Convocação

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O presidente da Confederação das Cooperativas de Reforma Agraria do Brasil - CONCRAB, no uso das atribuições que lhe confere o Estatuto Social da mesma, vem por meio deste CONVOCAR todas as filiadas para a Assembléia Geral Ordinária que se realizará no dia 31 de março de 2003, no Centro de Formação Cepatec, situado na Rua Dr. Rubens Meireles, 136, Barra Funda São Paulo, SP, às 14:30 h, em primeira convocação, com o mínimo de 2/3 dos associados e, em segunda e última convocação, às 15:00 h, com 50% mais um dos sócios, com a seguinte ordem do dia: a) prestação de contas anual; b) destinação dos fundos e sobras e/ou prejuízos; c) avaliação das atividades em geral; d) plano de atividades para o ano de 2003, e) outros assuntos de interesse da sociedade. Sendo só para o momento, Saudações cooperativistas São Paulo (SP), 12 de março de 2003 Francisco Dal’Chiavon Presidente

Márcio Baraldi

Gazeta Mercantil vira notícia na crise econômica

da empresa ficou indisponível, o que inviabilizaria operações como a realizada pelo empresário Nelson Tanure. Recentemente, ele arrendou a marca do Jornal do Brasil, criou uma nova empresa para cuidar do passivo do jornal, livrando o JB de crise semelhante, mas lesando os trabalhadores, especialmente os que foram dispensados na reestruturação que se seguiu, ao arrendamento da marca. Apesar da vitória judicial, Totti não está otimista com o futuro, pelo menos no curto prazo. Ele lembra que, diferentemente das demais empresas de mídia que entraram em crise aguda, incluindo aí as que já quebraram, a Gazeta Mercantil optou por um caminho complicado, ao deixar de pagar os salários dos trabalhadores.“Nem a Manchete fez isso. Quando perceberam que não poderiam mais pagar os salários, eles fecharam a empresa”, diz o jornalista, referindo-se à editora e rede de televisão que faliu na década passada. “Nos últimos anos, a Gazeta se financiou às custas de não pagar salários e impostos”, completa. O arresto da marca por parte da associação de empregados é motivo de alívio, mas o ex-edi-

tor-executivo da Gazeta descarta uma saída à la Le Monde, em que os jornalistas assumiram o controle do jornal. Segundo ele, o contexto da França pós-guerra é muito diverso do atual. Totti tampouco acredita na entrada de capital estrangeiro na empresa e no setor de mídia em geral. Na avaliação do jornalista, o patronato apostou que abrir 30% do capital das empresas para os estrangeiros seria suficiente

para atrair um “sócio salvador” e ao mesmo tempo manter as famílias proprietárias no comando do setor, mas isto não se verificou. Os investidores exigem ser majoritários; além disso, as incertezas da realidade mundial, com a aproximação da guerra, aumenam e a falta de confiança dos investidores estrangeiros. Luiz Antonio Magalhães é editor assistente do Observatório da Imprensa e editor de Política do DCI

Construtor da P-36 assume o controle do jornal O empresário German Efromovich, dono da Marítima, empresa de plataformas petrolíferas, responsável pela construção da célebre P36, que afundou em mares fluminenses, negociou com Luís Fernando Levy, diretor do jornal, uma parceria de gestão e a “formação de uma nova empresa”, conforme informado pela direção da Gazeta ao site Comunique-se. Mas Nelson Tanure, atual controlador do Jornal do Brasil e rival de Efromovich no setor de construção naval, adquiriu, no ano passado, o direito a um crédito que o Bank of America tinha para receber da Gazeta. Com isso, ele pode executar a dívida e se tornar acionista do grupo, manobra que vem tentanto executar na Justiça para controlar a marca da Gazeta.


MÍDIA INDEPENDENTE

NACIONAL

A perseguição às rádios comunitárias chega a ser mais implacável no governo Lula do que nos tempos de FHC, em que os lacramentos ilegais e truculentos das emissoras chegaram a dez por dia. Enquanto isso, há rádios de baixa freqüência “intocáveis”, apadrinhadas por políticos

Os inquéritos da Polícia são abertos em função do que ela considera crime. Do inquérito, resulta o indiciamento das pessoas que, segundo a PF, seriam autoras desse crime. O quadro abaixo especifica a lei, o número de inquéritos abertos e de pessoas indiciadas por cometerem crime assinalado nessa lei, no período de 1998 a 2002.

Repressão da Polícia Federal 1998-2002 Inquéritos Pessoas “Crime” Punição abertos indiciadas Lei 4.117/62 Operar um a Art. 70/ Dec. 236 4.474 1.794 emissora dois sem anos de autorização prisão Lei 9.472/97 - Art. 185 94 9 Lei 9.472/97 - Art. 183 5.573 1.828 Fonte: MJ/Departamento de Polícia Federal

PF e Anatel agem com truculência No final de 2002, uma rádio “clandestina” do Rio de Janeiro, a Bicuda, recebeu a intervenção policial. Levaram tudo que estava à vista. A emissora mantinha um convênio com o Ministério da Saúde, para divulgar a Campanha DST/AIDS. Com a apreensão, o coordenador da Campanha, Paulo Teixeira, enviou um ofício ao delegado federal conhecido como Masserati, interferindo em favor da rádio, destacando que a emissora estava cumprindo um papel social importante,... Pois bem, a reação do delegado foi indiciar Paulo Teixeira no inquérito policial!! Conforme vários testemunhos, os agentes da Anatel e da Polícia Federal invadem as rádios, estúdios ou residências, de forma truculenta. Nem sempre apresentam o mandato judicial. A PF, em grupos que variam de seis a dez servidores, vai armada de fuzis e metralhadoras, constrangendo crianças e adultos. As pessoas são algemadas, proibidas de falarem com seus advogados, agredidas física e verbalmente, ameaçadas, tratadas como criminosos perigosos. Eles levam os equipamentos, documentação da rádio, CDs, papéis, e até posters pregados na parede. Nos casos de abuso de autoridade, além das ações recomendadas pelo juiz Paulo Fernando Silveira, o agredido deve denunciar os agentes envolvidos à Corregedoria da Polícia Federal: por email, antonioprietocoge@dpf.gov.br, ou no fone 311 8719 / 8219. O corregedor se chama Antonio Prieto.

■ Rádio Novos Rumos, no Rio de Janeiro perguntas sem respostas. Por que a Anatel, quando, em 1997, proibida por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de “apreender” equipamentos, num primeiro momento desobedeceu esta decisão, e depois adotou o “lacramento”, que tem o mesmo efeito prático da “apreensão”? Por que a Anatel (como confirma Ivan Botelho), paga para a PF passagem, diárias e transporte? De acordo com Orlando de

Luca Júnior, gerente de Fiscalização e Supervisão Regional da agência, “a Anatel somente cumpre as obrigações que lhe são impostas pela Lei Geral deTelecomunicações, de nº 9.472/97”, diz. Mas essa é uma lei para “telecomunicações” e não caberia à “radiodifusão”, conforme estabelece o artigo 21 da Constituição brasileira, ao separar os dois segmentos. E nem sempre a Anatel é legalista. Conforme fonte da Po-

■ O nadador Gustavo Borges, durante visita a rádio comunitária da favela de Heliópolis, em São Paulo

Equipamentos apreendidos Ano 1998 1999 2000

Quantidade 1.672 1.705 2.721

Ano 2001 2002 TOTAL

Quantidade 2.093 1.950 8.191

Fonte: MJ/Departamento de Polícia Federal

Governo FHC lacrou 10 rádios por dia O quadro abaixo é o retrato da linha política adotada pelo governo Fernando Henrique Cardoso. O que se destaca aqui: • A eficiência do sistema repressivo: foram lacradas 2.462 emissoras no ano, o que dá uma média de 10 rádios por dia (considerando somente os dias úteis). • São Paulo foi o Estado privilegiado, com o maior número de ações com sucesso. • O povo reage: a Anatel e a Polícia Federal tiveram que recuar diante da resistência popular em 506 casos - é quando o povo é chamado para proteger a rádio e os repressores são obrigados a voltar atrás. A organização popular se fez maior nas regiões mais pobres do país, caso do Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí, onde venceu 138 lutas. • A repressão é grande em todo o Brasil.A quantidade de ações na Amazônia é a praticamente a mesma do Sul do país. • As emissoras estão sabendo se esconder dos agentes. O número de emissoras não-localizadas é grande (1.854), aproxima-se das que foram lacradas (2.462), e é muito maior do que as que foram motivo de apreensão (372). No Rio de Janeiro e no Espírito Santo, os agentes não localizam as rádios e em São Paulo, apesar da repressão maior (675 lacradas), é grande o número de não-localizadas (460). • Em alguns casos (157 anotados), o Judiciário tem se posicionado em defesa das rádios comunitárias, concedendo liminares favoráveis a entrar no ar. Mas é importante registrar que no ano passado a Anatel procurou o Judiciário na tentativa de convencer juízes dos perigos representados pelas rádios de baixa potência.

lícia Federal, ao discutir ações conjuntas no Estado de São Paulo, a agência apresentou lista de rádios “intocáveis” - emissoras sem autorização que, por motivos não muito claros, ela queria deixar imune à ação policial. Essa mesma fonte assegura que há rádios comunitárias em São Paulo pertencendo a deputados federais, com anuência da Anatel. Mais uma evidência está no relatório assinado por Fernando Antonio Fagundes Reis, ouvidor da Anatel, do segundo semestre de 2002. Diz ele: “a fiscalização de radioemissão é proporcionalmente elevada em relação à mesma atividade desenvolvida perante as operadoras de telefonia”. Em 2002 foram aplicadas 2.252 multas em empresas de telefonia, perfazendo um valor redondo de R$ 5 milhões. No entanto, de acordo com o ouvidor da Anatel, até hoje ninguém pagou nada. A legalidade das ações da Anatel e da Polícia são questionadas pelo juiz federal aposentado Paulo Fernando Silveira, autor de livro sobre o tema.“Na Lei 9.612/98 não constam as penalidades de lacração e de apreensão. Logo, em hipótese alguma elas podem ser aplicadas. Eu tenho recomendado, em todos os lugares aonde vou, que comecem ações penais contra os agentes da Anatel e agentes da Polícia Federal, por abuso de autoridade”. ABUSOS NA ERA FHC O governo Fernando Henrique Cardoso distribuiu 1.707 autorizações de rádios comunitárias. Estima-se que somente 10% sejam rádios comunitárias de fato. Fonte no Congresso Nacional, por onde passam todos os processos, diz que autoridades do Ministério das Comunicações ofereciam rádios aos deputados. Depois, cada deputado ía ao município com um papel “oficial” para, em ato solene, informar à comunidade que a rádio fora uma conquista dele. Diante desses abusos, o ministro das Comunicações, Miro Teixeira, diz que fará uma revisão de todas as autorizações concedidas no Governo FHC e que constituirá equipe capaz de dar rapidez aos 7 mil processos encalhados nessa praia. Em off, porém, uma autoridade do Ministério informa que, passados quase três meses, nada foi feito, e nem será - vai ficar tudo como dantes. A reportagem do Brasil de Fato tentou checar essas e outras informações. Há quase 30 dias foram enviadas perguntas por email e cobradas as respostas em mais de 20 telefonemas à assessoria de imprensa e à Secretaria de Serviços de Radiodifusão. Não houve resposta. A revisão dos processos é defendida por Chico Lobo, produtor cultural e um dos fundadores do movimento das rádios comunitárias no Brasil. “Todas as autorizações que foram dadas a “toque de caixa” no governo FHC e que representaram moeda política, deverão ser revistas, bem como aquelas que deveriam ser comunitárias e se transformaram em rádios comerciais, políticas, religiosas, pessoais. Mudar a legislação - a Lei nº 9.612/98 e o Decreto nº 2.615/ 98 - é uma das reivindicações do movimento. Mudar a lei demora, mas o decreto, que é função do Executivo, é dependência do Ministro das Comunicações. Pode ser feito agora.

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

o dia 14 de janeiro, em Itabaiana, Paraíba, foi fechada a primeira rádio comunitária no governo Lula. A “Rádio ComunitáriaVale do Paraíba FM” foi ocupada por agentes da Polícia Federal-PF e Agência Nacional de Telecomunicações-Anatel. Duas pessoas foram presas e os equipamentos foram apreendidos. Era um sinal de que nada mudaria. Em todo o país, centenas de emissoras populares já foram fechadas pelo novo governo: 13 no Distrito Federal; 8 no Rio de Janeiro; 15 no Rio Grande do Sul... De acordo com o delegado Ivan Botelho, da PF, não houve uma orientação para que se adotasse outra postura com relação às rádios, para ele, “clandestinas”. Quanto aos abusos dos agentes, às vezes acusados de truculências, ele diz não conhecer nenhum caso, mas “quem se sentir agredido deve denunciar à corregedoria estadual da PF”. Segundo Botelho, em geral, as ações são desencadeadas com

o mandado judicial de busca e apreensão. Quando há flagrante delito (“a rádio está no ar sem autorização”), não há necessidade de mandato. “Mas se a rádio não está no ar não há crime; e aí, a Polícia só pode agir por mandato”. Desde 1998, quando a lei das rádios comunitárias foi sancionada, a PF tem instaurado uma média de... 1.100 inquéritos por ano! Ela já apreendeu mais de 8 mil equipamentos de transmissão. Em média, uma pessoa por dia nesse país é indiciada em inquérito pelo crime de operar emissora clandestina (conforme define o Decreto nº 236, criado em 1967 pelo regime militar, ainda em vigor até hoje), e arrisca pegar de um a dois anos de cadeia. A Anatel que, segundo o presidente Lula, age como um poder paralelo e independente no país, tem demonstrado uma rara eficiência no combate à livre expressão das emissoras populares. Só no ano passado ela lacrou 2.700 rádios. Parece tratar-se mais de política de Estado do que de lei. Há

Vidal Cavalcante/Adestado

Dioclécio Luz, de Brasília

Kita Pedrosa/Portal Viva Favela

O medo e a esperança das rádios comunitárias

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CULTURA

Há meio século, em 20 de março de 1953, morria Graciliano Ramos, um dos mais importantes escritores brasileiros. Sua marca foi o retrato das misérias causadas pela aliança entre os latifundiários e a burguesia, levando aos horrores que até hoje subsistem no campo

LITERATURA

Reprodução/Agestado

A letra a serviço dos homens do sertão Luiz Ricardo Leitão Brasil é um país de latifundiários. Desde o tempo das sesmarias de finados Zacarias, ainda no século XVI, durante a primeira onda de globalização do Novo Mundo, ser proprietário de vastas extensões de terra é um símbolo de poder em Pindorama (que o diga FHC, ex-sociólogo dos príncipes, cioso de sua brejeira fazenda em Buritis). Muitos pensadores brasileiros esmiuçaram essa verdade tropical, mas poucos romancistas souberam apreender com suficiente lucidez e imaginação o singularíssimo arranjo de classes graças ao qual os velhos coronéis da casa grande ludibriaram a senzala e se perpetuaram no imaginário nacional e também na vida prosaica da Terra de Santa Cruz. Dentre eles, ninguém decerto foi mais agudo em denunciar essa ardilosa fórmula de modernização sem ruptura do que o seco e agreste cabra alagoano Graciliano Ramos, autor de diversas obras-primas da literatura brasileira e criador de entes ficcionais que talharam no espírito de seus leitores uma compreensão luminosa do urbano e do agrário em nossa experiência periférica de modernidade. Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis. Evitei-me emaranhar-me em teias de aranha. (...) Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. (Graciliano Ramos, Relatório ao Governador do Estado Alagoas)

(...) No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros. Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria! (Graciliano Ramos,Vidas Secas) de sua letra ainda reluz em um mundo repleto de aves de arribação. Nenhuma outra ficção ousou afrontar tanto o estigma de barbárie que paira sobre nossos sertões e, de quebra, mergulhar na alma eloqüente de seu povo. O silêncio, afinal, é apenas exterior. Um professor escreveu outro dia, em um caderno da grande imprensa, que em Vidas secas (1938) avulta a “anemia do pensamento”. Patolagem das boas, diria o vaqueiro Fabiano por trás da cerca. É fato que o papagaio da família nunca falava – e isso até precipitou o seu fim. E também é verdade que a solidão pode embrutecer e desumanizar as criaturas, embotando a sua expressão racional, mas no interior dos homens secos e agrestes a vida mental é “profunda e dilatada, remoente”. Para aqueles que negam ao sertanejo a capacidade da auto-análise e a consciência de sua interioridade, privativa de psiquismos “mais complexos”, Vidas secas é contundente: não apenas a utopia, mas a própria ficção há de brotar da áspera realidade. A exemplo de Fabiano, Graciliano também era um cabra arredio, retraído. Sua sina era instalar grãos de dúvidas no muro das verdades cristalizadas. Em Memórias do cárcere (1953), testemunho inacabado de sua odisséia pelas prisões do Estado Novo

entre 1936 e 1937, os companheiros comunistas muitas vezes o viam ensimesmado, quem sabe a digerir em sua imaginação aquilo que o mestre Leandro Konder um dia chamou de “a derrota da dialética”, ou seja, a assimilação difusa e refratária das idéias que importamos do Velho Mundo para servir aos nossos planos de libertação (tão irreais quanto as sombras com as quais os prisioneiros da caverna platônica pretendem apreender a realidade exterior). POLÍTICO E ESCRITOR Se porventura se intrigavam com aquilo, era porque decerto não haviam lido o famoso relatór io anual escr ito em 1929, durante sua gestão na Prefeitura de Palmeiras dos Índios. Até mesmo sua aparição no cenário letrado nacional se dá sob o signo dessa opção, na qual o político e o escritor se irmanam sob o véu da humanidade. José Lins do Rego, outro prosador de mão cheia (Fogo morto é, de longe, o mais pungente depoimento sobre a decadência do engenho no Nordeste), quando bateu o olho no documento, não hesitou: apadrinhou o prefeito e o fez ingressar na cidade letrada. Não era para menos.

■ Graciliano Ramos (1892-1953) Em um mundo coberto de penas e sofrimentos, o romancista esteve sempre a serviço dos homens secos e agrestes. Certa feita, Carlos Lacerda, na época apenas um aprendiz de comunista (ainda nos anos 30, antes de sua conversão ao udenismo), criticou-o por eleger “um fazendeiro” protagonista de um romance social (São Bernardo). Quanta cegueira! Lacerda não entendeu nada do que leu... Quem disse que Paulo Honório simboliza a burguesia brasileira? Ele quis ascender a tal condição, mas sua origem de classe era bem distinta: foi trabalhador de eito, sem eira nem beira, aprendeu a ler na cadeia, “em carta de ABC, em almanaques, numa bíblia de capa preta, dos bodes”. Depois, casou-se com uma normalista (uma alegoria da pretensa aliança da burguesia nacional com a classe média urbana?). Procurou ser dinâmico, moderno, empreendedor, mas o Brasil não é terra para Fausto e outros mitos de selfmade

man. Quando deu por si, já não era mais um Fabiano, aprisionado pelo latifúndio ocioso, sólido, moroso e inabalável. O mestre Graça parecia querer nos dizer que, na cultura da modernização sem ruptura, o velho ainda sabe usar a roupagem do novo, ditando o curso da transformação capitalista sob o ritmo dos alqueires infinitos. Em suas contínuas versões, sela pactos turbulentos, porém eficazes, com os compadres da cidade; articula golpes e contragolpes; rastreia as rebeldias prestes a explodir e antecipa-se à sua propagação. Seduz alguma gente e, se necessário, reprime outros tantos. Até quando, porém, o fôlego lhe sobrará? Só há curvas onde as retas foram impossíveis. Creio que era nisso que o vaqueiro Graciliano cismava à porta de seu cárcere imemorial... Luiz Ricardo Leitão é prof. adjunto da UERJ e Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana (Cuba)

BRASIL DE FATO 16 a 22 de março de 2003

Sebastião Salgado

Ele morreu há 50 anos, em 20 de março de 1953, mas o gume

O mundo coberto de terras

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PERIFERIA

ESPORTE

Esporte considerado de elite, xadrez chega ao mundo da periferia das grandes capitais e conquista crianças e adolescentes; Juarez Soares sugere aos políticos acabar com as intermináveis reeleições que perpetuam dirigentes nas presidências da CBF, das Federações e dos Clubes

Fotos: Douglas Mansur

Xadrez não é só “coisa de elite” Claudia Jardim, da Redação les estão em guerra e precisam invadir o território das 64 casas. Peões, cavalos, bispos e rainhas, brancos e pretos, são responsáveis por proteger o rei do ataque inimigo. Olhar atento, concentração, criatividade e paciência à espera do lance perfeito... Xequemate! Esse passou a ser o combate enfrentado diariamente por um grupo de jovens da periferia de São Paulo: o xadrez. Os alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental José Américo de Almeida, em São Miguel Paulista, zona Leste da cidade, participaram do projeto “Xadrez: Movimento Educativo” implementado pela prefeitura em 1993. Desde então, meninos e meninas passaram a se dedicar ao esporte e inverteram a lógica de que xadrez era esporte para ricos.“A inteligência aparece em qualquer lugar. É preciso talento, imaginação e equilíbrio. Os grandes campeões de xadrez têm inteligência acima da média” afirma o professor de xadrez Eduardo Krempel, que uma vez por semana se dedica a ensinar o jogo aos Capivara - jogador alunos da 1ª à 8ª iniciante, fraco, mas que acredita ser o melhor séries e sempre sob o alerta: “A Alexander Alekhine disciplina é funenxadrista russo, nacionalizado francês em damental para um 1929. Conquistou o bom desempetítulo de mestre internacional aos 16 nho”. anos (em 1908) .Em O atual cam1927 venceu o peão municipal considerado imbatível Capablanca em Buenos da categoria subAires, Argentina, e se 16 seguiu a cartitornou o 4º campeão lha do professor. mundial da história William Costa,

peão, igual ao Alekhini. Mas já coloquei os pés no chão: sem dinheiro não dá. Ele é o grande rival”, lamenta Costa. Ainda assim, afirma que jamais deixará de jogar: “O xadrez é essencial, já faz parte de mim”. Mesmo compartilhando da mesma realidade, o amigo de tabuleiro, Almir Ferreira, 18 anos, mantém as esperanças.“Quero ser um grande jogador profissional. Enquanto isso procuro emprego de manhã e treino à tarde. Se parar, o rendimento cai”. PRA QUE JOGAR XADREZ? Os benefícios do esporte aos alunos vão além de melhores notas nas disciplinas regulares, maior concentração e criatividade. Para o enxadrista e professor José Antônio Rosa, o xadrez traz o que ele chama de “principio de transferência” a partir dos movimentos do jogo. “A todo momento é preciso tomar decisões e pensar estratégias. A criança acaba transferindo isso para o seu cotidiano. Ensina a pensar”, afirma Rosa. Ele defende a idéia da inclusão do xadrez no ensino de todas as escolas da rede pública, assim como já acontece nas escolas particulares.“É preciso criar um grande projeto que combine a responsabilidade do Estado e da iniciativa privada, para tornar possível a inclusão desse esporte na vida dos jovens”, reitera. Responsável pelo ânimo dos garotos da periferia em aprender o xadrez, Krempel é rigído em sua avaliação ao esporte no Brasil.“Há uma elitização de tudo no país, do esporte à educação. Enquanto prevalecer a lógica de que só é bom quem tem dinheiro, vamos continuar desperdiçando grandes talentos” alerta.

■ William Costa e colegas de partidas de xadrez de 16 anos, largou a bola e abraçou o tabuleiro aos 12 anos. Reserva duas horas diariamente para estudar as estratégias do jogo, os tipos de abertura e movimentos de ataque e defesa, que colocava em prática nos disputados torneios interclubes de São Paulo. Apesar de tanta dedicação da conquista de alguns títulos, o garoto já não sonha mais em ser um grande mestre no xadrez. Como para todos os meninos da periferia, o grande desafio é se manter na prática do esporte, pois lhes faltam dinheiro, muitas vezes, até para pagar a condução até o local do torneio, sem contar as despesas com o pagamento de inscrições, viagens e professores particulares. “Quando era ‘capivara’, sonhava em ser um grande cam-

AGENDA Confira algumas atividades populares, sociais e culturais desta semana. Para incluir seu evento nesta agenda, envie e-mail para agenda@brasildefato.com.br

Um jogo para todos?

DEBATES DE

DEBATES

DO

CENTRO ACADÊMICO XI

● até 21 de março Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP, Largo São Francisco, 95 Programação: dia 18 - Indústria Cultural e Mídia Alternativa, com Lobão (11h), Reforma do Judiciário, com os professores José Eduardo Faria, José Reinaldo de Lima Lopes e Estevão Mallet (19h); dia 19 - Encontro do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária /SP (14h), apresentação teatral do Arcádia Cia. Teatral (19h); dia 20 - apresentação teatral do Grupo Arcádia (11h), Perspectivas em tempos de guerra, com Emir Sader (19h); 21- Brasil: aberto para mudanças, com José Luís Fiori e Paulo Arantes (11h), Maracatu nas Arcadas (13h).

ÁGUA CE - SEMANA DA ÁGUA ● 17 a 22 de março Realizado por entidades que integram o Fórum Cearense pela Vida no Semi-Árido. Sua finalidade é incentivar as entidades a organizar eventos de mobilização e sensibilização da sociedade civil sobre o problema da água, particularmente no semi-árido brasileiro. Mais informações: Alessandro Antônio - Cáritas Regional (85) 231-4783

SEMINÁRIOS SP - SEMINÁRIO

NACIONAL COM SINDICATOS

Auditório da Central Única dos Trabalhadores, Rua Caetano Pinto, 575, Brás ● 17 a 19 de março A Confederação Nacional do Ramo Químico (CNQ-CUT) reúne os sindicatos do ramo para discutir a reforma da Previdência Social, a atuação da CNQ-CUT no governo Lula, a avaliação do ramo químico durante o governo de FHC, as perspectivas do ramo no novo governo e a possibilidade de ativação das câmaras setoriais. Mais informações: Edílson de Paula Oliveira, (11) 9634-2741

O Ministro dos Esportes, Agnelo Queiroz, aprovou no dia 13 de janeiro deste ano o projeto “Xadrez nas Escolas e em Comunidades Carentes”, que será realizado em parceria com a CBX (Confederação Brasileira de Xadrez). Considerado pelo presidente da CBX, Darcy Lima, como a principal mola propulsora do desenvolvimento do xadrez no país, terá o projeto-piloto implementado em Brasilia-DF no mês de março e posteriormente será expandido para as escolas públicas dos demais Estados brasileiros. Diante dos cortes no orçamento anunciados pelo Governo Federal no dia 12 de fevereiro, considerando a redução de 88,34% na verba prevista para o Ministério dos Esportes, resta aguardar e verificar se o programa realmente será efetivado.

Quando os políticos se metem com futebol... Juarez Soares ada vez que os políticos de Brasília se metem a discutir os problemas do futebol, vem a público o desenrolar de uma comédia que será divertida se o assunto não fosse tão sério. Aliás, uma das poucas vezes que o povo brasileiro se une é quando joga a seleção brasileira. Em torno do time de futebol as discussões fervem, as divergências de ponto de vista, de tática, de escalação varrem o país de norte a sul. Mas todo mundo quer ver a seleção ganhar. Agora, por conta de uma tal medida provisória de número 79, armou-se na Câmara Federal um autêntico forrobodó. Pela quinta vez a votação foi adiada. A previsão para conversão em lei estava prevista para o dia 25 de fevereiro. Imaginem! O motivo do adiamento foi a oposição ter rompido o acordo fechado com a CPI na véspera. O mais engraçado é que a reunião entre o partido do governo, o PFL e o PSDB durou mais de sete horas. Ficou estabelecido que o futebol não seria beneficiado pela Lei Rouanett (1991), que é aplicada à cultura. No outro dia o relator, deputado Gervásio Silva, do PFL, fez justamente o contrário. Fez uma emenda estendendo o benefício ao futebol. Enfim, o que combinaram sentados não sustentaram de pé. Uma lembrança. Além disso, acrescentaram à medida provisória itens já aprovados pela Câmara que fazem parte do famigerado Estatuto do Torcedor. Ao meu ver, esses políticos travestidos de torcedores poderiam prestar um grande serviço ao futebol se aprovassem dois itens que realmente interessam ao torcedor: acabar com as intermináveis reeleições que perpetuam dirigentes nas presidências da CBF, das Federações e dos Clubes; o outro item indispensável seria acabar com a exclusividade nas transmissões dos jogos da seleção. Assim dariam um colorido de seriedade a essa comédia que teimam continuar apresentando em Brasília. Juarez Soares é comentarista esportivo

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SP - CICLO DE AGOSTO

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AMBIENTE

Implantada no final dos anos 60, a monocultura de eucalipto, fundamental para a instalação de um complexo industrial produtor de celulose, trouxe uma série de graves impactos socioambientais no Espírito Santo

EUCALIPTO

Erick Schunig e Fernando Gasparini, de Vitória implantação da monocultura de eucalipto no Espírito Santo foi feita pela empresa Aracruz Celulose e, de acordo com a CPI que investigou as irregularidades cometidas por essa empresa desde a sua instalação houve aquisição de terras devolutas com a ajuda de forças políticas locais, resultando na invasão das áreas de grupos indígenas e quilombolas existentes no norte do Estado. O representante do Conselho Missionário IndigeQuilombola – nista (Cimi), Fábio Descendente de Villas, afirma que até habitantes dos antigos quilombos, comunidade a chegada da emprede negros que se sa existiam 40 aldeias rebelaram contra a na região, ocupando escravidão uma área de 40 mil hectares no município de Aracruz, restando hoje só sete aldeias, com dois mil índios. “Praticamente foi tomada toda essa área dos índios pela Aracruz, usando-se pessoas ligadas à empresa que adquiriram terras dos índios através Celulose – Composto orgânico extraído da de compra ou ameamadeira para a ças”, comenta Villas. fabricação de papel Ele ressalta que os mais resistentes eram ameaçados por pessoas armadas que ateavam fogo e destruíam as casas. Situação parecida vivem os remanescentes de quilombos no norte capixaba. Um dos membros da Associação Benedito MeiaLégua, entidade do município de Conceição da Barra que luta pelos direitos da comunidades ne-

Fotos: Arquivo Fase

Deserto verde invade terras indígenas e quilombos gras, Domingos Firminiano dos Santos, afirma que, a partir da chegada da Aracruz Celulose, as comunidades remanescentes de quilombos passaram a encontrar dificuldades para sobreviver. Estudos indicam que antes do plantio de eucalipto existiam 10.000 famílias, sendo que existem hoje 1.200, cercadas pelo eucalipto. Domingos denuncia que a empresa e autoridades policiais proíbem que até mesmo restos de eucalipto sejam retirados pelos habitantes. “Já foram presos 5 membros de uma comunidade porque estavam retirando galhos que estavam no chão para serem utilizados como lenha. São pessoas sérias e humildes que estão sendo reprimidas, sofrendo ameaças e humilhações” destaca Domingos. Segundo ele, o caso já foi denunciado à Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Atualmente a compra indiscriminada de terras para o plantio de eucalipto ainda constitui um problema para o assentamento de famílias na região. De acordo com um dos diretores estaduais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Dimas Pereira de Melo, a compra de áreas pela Aracruz Celulose elevou o preço da terra, dificultando o processo de desapropriação para a reforma agrária. Dimas afirma que o problema está relacionado ao fato de não existir uma política agrícola para o pequeno produtor, o que praticamente o obriga a vender sua propriedade, atraído pelo preço que a empresa oferece.

Terras devastadas O advogado Sebastião Ribeiro, especialista em direito ambiental e que acompanhou a CPI, lamenta a interrupção dos trabalhos por uma medida judicial, tendo sido feito apenas um relato provisório sobre as investigações.“No município de Conceição da Barra, as empresas Bahia Sul Celulose e Aracruz Celulose detêm hoje mais da metade da área do município, sendo 40% só com plantio de eucalipto”, afirma Ribeiro. Ele destaca que as investigações feitas pela CPI apontaram irregularidades nos licenciamentos para o plantio de eucalipto, contrariando a legislação estadual, que prevê a elaboração de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) nas áreas que serão submetidas a esse plantio. De acordo com Ribeiro, foi elaborada apenas uma declaração de impacto ambiental, que é um estudo menos complexo e abrangente, não prevendo a realização de audiências públicas, como é feito no EIA. Ele lembra que esse mesmo processo foi utilizado para fazer a transposição das águas do rio Doce para o abastecimento da fábrica da empresa.

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Perigo tóxico

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Para o técnico da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), entidade que luta contra os impactos causados pela monocultura do eucalipto,Winfridus Overbeek, a situação é preocupante. Ele alerta para o uso do cloro no processo de branqueamento da celulose, condenado pelo movimento ambiental devido a formação de organocloratos, substâncias extremamente tóxicas que podem causar câncer. O uso de cloro no processo de branqueamento da celulose já foi abandonado na Europa, mas a Aracruz ainda utiliza para atender a certos clientes, o que é permitido pela legislação brasileira. Segundo ele, só em 1999 foram produzidas 250 mil toneladas de celulose com cloro, colocando em risco o ambiente, pois os organoclorados são despejados no mar. De acordo com Winfridus, não existe por parte das autoridades ambientais uma comprovação de que a Aracruz Celulose esteja obedecendo as normas estipuladas pela legislação, já que é a própria empresa que faz o controle.

■ Vítimas do deserto verde protestam contra a Aracruz Celulose, no Espírito Santo

O que dizem as instituições públicas e a Aracruz De acordo com o superintendente substituto do Incra, Elizeu Nunes Galvão, a instituição conhece os problemas da monocultura, mas prefere ficar à margem da discussão “devido às circunstâncias econômicas do país. O presidente da Assembléia Legislativa do Espírito Santo, Cláudio Vereza , juntamente com três deputados estaduais e repre-

sentantes de movimentos sociais que lutam contra os impactos causados pela monocultura do eucalipto, estiveram em reunião no dia 11 de março. Ficou então decidido que os parlamentares irão analisar toda a documentação entregue pelas entidades e as informações levantadas pela investigações feitas pela CPI, como a contaminação por

agrotóxicos, irregularidades na aquisição de terras e nos licenciamentos ambientais. Os deputados irão fazer visitas nos locais onde existem esse problemas A nossa equipe de reportagem tentou, com insistência, falar com a Secretaria Estadual de MeioAmbiente e com a empresa Aracruz Celulose. Estranhamente, não obtivemos retorno.

Brasil: principais produtores de celulose do mercado de eucalipto* 1990/99 (Em mil toneladas) Empresas 1 Aracruz ** 2 Cenibra ** 3 Bahia Sul 4 Votorantim 5 Jarcel 6 Klabin Riocell 7 Lwarcel ** Outras Total

1990

Participação %

1999

Participação %

501 362 0 0 250 230 16 104

34 25 0 0 17 16 1 7

1.263 784 390 320 290 245 81 133

36 22 11 9 8 7 2 4

1.463

100

3.505

100

Fonte: Bracelpa. Apud., BNDES. A década de 90 – mercado de celulose. abr./2001. p. 36. * Celulose kraft branqueada ** Não integradas


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