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BRASILDEFATO Ano I ■ Número 7 ■ São Paulo ■ De 20 a 26 de abril de 2003

Circulação Nacional

R$ 2,00

A eventual formação de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca) será um passo positivo para a integração dos países do hemisfério, afirmou o ministro da Fazenda Antonio Palocci, em Washington, durante visita ao Fundo Monetário Internacional, no início da semana passada. Palocci distribuiu elogios ao FMI e criticou a política de subsídios agrícolas praticada pelos EUA. Para o economista Reinaldo Gonçalves, a Alca é sinônimo de renúncia à soberania. Previdência – Governo exagera nas previsões negativas para justificar novo achatamento dos benefícios dos servidores. A reforma prevê a criação de um sistema complementar elitista e excludente, que inclui a formação de fundos de pensão. Na Argentina e no Chile, a experiência foi desastrosa. Págs. 5 e 7

Jamil Bittar/Reuters

Palocci elogia o FMI e negocia o Brasil na Alca

■ (Esq. para a dir.) O ministro Antonio Palocci, o senador Aloísio Mercadante e o chefe da Casa Civil José Dirceu mantêm reunião com Otto Reich, assessor de Bush para a América Latina, em novembro, em Brasília

Deputado cubano explica pena capital

Oficiais e praças da Polícia Militar do Paraná vão fazer estágios em acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, para que os dois lados se conheçam melhor e passem a se respeitar mutuamente. A decisão, assumida pelo governador Roberto Requião (PMDB), também secretário da Segurança Pública, foi bem recebida por um dos coordenadores do MST no Paraná, Roberto Baggio, embora julgue que vá levar tempo para os policiais respeitarem de fato os acampados. Pág. 3

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o deputado Jayme Combret, vice-presidente da Asssembléia Nacional do Poder Popular de Cuba, explica por quê o governo utilizou a pena máxima contra três cidadãos cubanos, na semana passada. Combret lembra a guerra permanente dos Estados Unidos contra seu país. Pág. 11

Polícia de São Paulo promove torturador

E mais:

Veja, na seção Debate, pág. 14, as avaliações do sociólogo brasileiro Emir Sader e do escritor uruguaio Eduardo Galeano.

Síria é novo alvo da colonização George Bush e os seus assessores multiplicam declarações agressivas ao Estado sírio, preparando as condições para a sua invasão, em nova etapa do processo de colonização do Oriente Médio. A Síria não mantém relações com Israel e ocupa uma posição estratégica importante na região. No Iraque, os xiitas começam a aparecer como o principal grupo de oposição ao imperialismo, e convocam novas manifestações para exigir a retirada imediata das tropas estadunidenses. No Brasil, com o apoio do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Luiz Furlan, empresários disputam a participação no “processo de reconstrução do Iraque”. ■ Cartaz da campanha nacional do Págs. 9 e 10 Instituto de Defesa do Consumidor Natália Forcat

PMs vão estagiar entre sem terra

TRANSGÊNICOS – Em carta ao presidente Lula, 150 pesquisadores denunciam os riscos dos transgênicos. Pág. 3 REFORMA TRIBUTÁRIA – A proposta do governo mantém injustiças e distorções, diz Maria Lúcia Fatorelli. Pág. 6 JORNALISTA AMEAÇADA – A máfia dos combustíveis de Londrina (PR) ameaçou de morte a jornalista Cristina Matos. Pág. 8 ARGENTINA – Em clima de apatia, domingo, dia 27, serão realizadas eleições presidenciais na Argentina. Pág. 11 NIGÉRIA – Às vesperas das eleições presidênciais o clima de tensão na Nigéria parecia arrefecido. Pág. 12 PREJUÍZO AO SEXO – A erotização precoce promovida pela televisão prejudica o desenvolvimento dos jovens. Pág. 13 LYGIA FAGUNDES TELLES – A escritora completou 80 anos e fala de suas lembranças de vida e obra. Pág. 15

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

O delegado Aparecido Laertes Calandra, famoso como torturador com o codinome de Capitão Ubirajara, foi promovido ao comando do Departamento de Inteligência da Polícia de São Paulo. Pressionado por entidades de defesa dos direitos humanos, o governador Geraldo Alckmin declarou que “a anistia vale para os dois lados”. Pág. 8

VISITA AO FMI 1


Fala, Zé! Ohi

NOSSA OPINIÃO

O povo deve opinar Causam grande preocupação os elogios ao Fundo Monetário Internacional e as afirmações de apoio à formação da Área de Livre Comércio das Américas feitos pelo ministro da Fazenda Antonio Palocci, durante sua recente visita ao FMI e a funcionários do governo estadunidense, em Washington e Nova York. Afinal, o próprio presidente Lula, quando em campanha, declarou enfaticamente que a Alca, nos termos propostos pelos Estados Unidos, é uma afronta ao Brasil. A Alca não é uma medida qualquer, um passo entre tantos. Sua implantação traria implicações profundas, de ordem histórica e social, para o conjunto da nação. Temos mostrado, ao longo de várias edições, que essa avaliação é sustentada por alguns dos maiores economistas, juristas e cientistas políticos deste país – incluindo Celso Furtado, Dalmo de Abreu Dallari, Paulo Nogueira Batista Jr., Reinaldo Gonçalves - sem contar aqueles que, nos últimos anos, manifestaram publicamente seu desacordo com a mera idéia da Alca – incluindo vários ministros do governo e o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, atual secretário-geral do Itamaraty. O que pensar, então, das declarações de Palocci? Será que o Ministério da Fazenda já adquiriu autonomia em relação ao governo Lula? A Alca não é um mero acordo comercial. É um projeto estratégico que cederá aos Estados Unidos o controle de nossas riquezas, de nossa biodiversidade, de nossa moeda. É um projeto que interessa ao grande capital estadunidense, como explicou o secretário de Comércio Robert Zoelick. Apenas esse fato já deveria ser suficiente para demonstrar que a Alca exige um debate muito amplo e profundo com o povo brasileiro. Não é um tema que possa ser resolvido na solidão dos gabinetes de Brasília e Washington. Qualquer governo minimamente democrático tem a obrigação, o dever inalienável e indiscutível de expor claramente ao povo inteiro o conteúdo de um projeto tão importante. Até agora, os fatos mostram o oposto. As negociações continuam se desenvolvendo de forma secreta. Ficamos sabendo, aqui e ali, de alguns debates sobre determinadas medidas, que apenas nos permitem deduzir o seu significado e sentido. Somos obrigados a tirar conclusões a partir da experiência de outros países já integrados ao livre comércio com os Estados Unidos, como o México e o Canadá, na América do Norte. Em resposta a esse quadro, o setor pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou uma campanha contra a Alca, junto com movimentos sociais de todo o país, como noticiamos em nossa edição anterior. A campanha adotou um calendário de mobilizações, com o objetivo de exigir que o Congresso Nacional convoque um plebiscito oficial sobre a Alca, medida prevista pela Constituição. Brasil de Fato dá todo apoio a essa campanha, cujo objetivo é assegurar que o povo brasileiro tenha o direito de decidir, pelo voto direto, todos os assuntos referentes à soberania de nosso país. Certamente, o governo Lula dará sua contribuição a esse processo de fortalecimento da democracia popular.

BRASILDEFATO CONSELHO POLÍTICO: Achille Lollo ■ Ari Alberti ■ Ariovaldo Umbelino ■ Assunção Ernandes ■ Aton Fon Filho ■ Augusto Boal ■ Cácia Cortez ■ Carlos Marés ■ Carlos Nelson Coutinho ■ Celso Membrides Sávio ■ Claus Germer ■ Dom Demétrio Valentini ■ Dom Mauro Morelli ■ Dom Tomás Balduíno ■ Edmilson Costa ■ Elena Vettorazzo ■ Emir Sader ■ Egon Krakhecke ■ Erick Schunig Fernandes ■ Fábio de Barros Pereira ■ Fernando Altemeyer ■ Fernando Morais ■ Francisco de Oliveira ■ Frederico Santana Rick ■ Frei Sérgio Gorgen ■ Horácio Martins ■ Ivan Valente ■ Jasper Lopes Bastos ■ ■ João Alfredo ■ João Capibaribe ■ João José Reis ■ João José Sady ■ João Pedro Stedile ■ Laurindo Lalo Leal Filho ■ Leandro Konder ■ Luís Alberto ■ Luís Arnaldo ■ Luís Carlos Guedes Pinto ■ Luís Fernandes ■ Luis Gonzaga (Gegê) ■ Marcelo Goulart ■ Marcos Arruda ■ Maria Dirlene Marques ■ Mário Augusto Jakobskind ■ Mário Maestri ■ Nalú Faria ■ Nilo Batista ■ Oscar Niemeyer ■ Pastor Werner Fuchs ■ Pedro Ivo ■ Raul Pont ■ Reinaldo Gonçalves ■ Renato Tapajós ■ Ricardo Antunes ■ Ricardo Rezende Figueira ■ Roberto Romano ■ Rodolfo Salm ■ Rosângela Ribeiro Gil ■ Sebastião Salgado ■ Sérgio Barbosa de Almeida ■ Sérgio Carvalho ■ Sérgio Haddad ■ Tatau Godinho ■ Tiago Rodrigo Dória ■ Uriel Villas Boas ■ Valério Arcary ■ Valter Uzzo ■ Vito Gianotti ■ Vladimir Araújo ■ Vladimir Sacheta ■ Zilda Cosme Ferreira ■ Também participam do Conselho Político todos os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores ■

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

CONSELHO EDITORIAL: ■ Alípio Freire ■ César Benjamim ■ César Sanson ■ Hamilton Octávio de Souza ■ Kenarik Boujikian Felippe ■ Luiz Antonio Magalhães ■ Luiz Eduardo Greenhalgh ■ Luiz Bassegio ■ Maria Luísa Mendonça ■ Milton Viário ■ Neuri Rosseto ■ Plínio de Arruda Sampaio Jr. ■ Ricardo Gebrim

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■ Editor-chefe: José Arbex Jr. ■ Editores: Anamárcia Vainsencher, Marilene Felinto, Nilton Viana, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu ■ Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Eunice Nunes, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho ■ Projeto gráfico e diagramação: Wladimir Senise ■ Tratamento de imagem: Maurício Valente Senise ■ Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho ■ Jornalista responsável: José Arbex Jr. Mtb 14.779 Administração: Silvio Sampaio Secretaria de redação: Tatiana Merlino Sistemas: Sérgio Moreira Programação: André de Castro Zorzo Assinaturas: (11) 2131-0808 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 PABX (11) 2131-0800 – São Paulo/SP

redacao@brasildefato.com.br Gráfica: Diário do Grande ABC

E

stá no ar a página da Internet do jornal Brasil de Fato. Esse espaço virtual foi criado para ser o canal de comunicação direta entre os leitores, dos colaboradores e a redação. Ao clicar o botão SUGESTÕES DE REPORTAGEM, você pode enviar suas propostas, denúncias e temas que gostaria de ver abordados nas páginas do jornal. No botão SEJA UM COLABORADOR,você se cadastra para fazer parte da rede nacional de colaboradores.A página do Brasil de Fato também traz as principais manchetes do jornal na semana, a agenda completa de eventos sociais e culturais e todos os contatos dos comitês regionais de apoio do jornal. Entre e conheça: www.brasildefato.com.br

Cartas de leitores ESQUERDA Adorei o Brasil de Fato, o qual tive a honra de receber. Quando o governo pende um pouco mais para a esquerda, é preciso gente, pensamentos e projetos que também sejam mais à esquerda, para que a força centrífuga do poder não puxe para o centro e torne o socialismo cor de rosa. Padre Francisco Viana Pires, Porto Velho (RO)

midos, uma manifestação do ideal da solidariedade e da crença no potencial de cada ser humano. Esteja certo de que estará incentivando o bom hábito de leitura e uma sociedade de paz. Conto com sua ajuda para ampliar a consciência, estimular o espírito crítico, inquietar existencialmente, promover reflexões e desejos de participação social, além de amenizar os dias. Eduardo Israel, Dracena (SP)

FORMATO Parabéns a toda a equipe, incusive de apoiadores e assinantes, pela corajosa iniciativa de ousar. Ousar fazer uma publicação que se contraponha ao uníssono da chamada grande imprensa. Para o bem da democracia e, sobretudo, dos direitos individuais de nós, brasileiros, desejo vida longa ao Brasil de Fato. Só uma ressalva: por que não fazer a publicação em formato tablóide, que é mais fácil de manusear dentro do ônibus ou do metrô? Fica a sugestão. André Aron, São Paulo (SP)

LANÇAMENTO Sou estudante do curso de jornalismo da Unisantos e participei da palestra de lançamento do jornal feita no campus da Pompéia. Gostei muito do perfil do jornal.Acredito que era o que realmente estava faltando no Brasil. Não falo só do jornal, mas da vontade de se fazer o verdadeiro jornalismo. Estou na torcida e acompanhando a evolução de vocês! Renata Leão , Santos (SP)

POPULAÇÃO CARCERÁRIA Escrevo em nome da pacífica população carcerária da penitenciária de Dracena. Nela, atuo no sentido de promover o hábito de leitura e elevação cultural de meus companheiros. Acredito fanaticamente que a leitura é um poderoso fator de reeducação e desenvolvimento humano, assim como a mais útil e piedosa substituta para a liberdade perdida. A publicação do Brasil de Fato despertou um forte interesse em nosso público, por ser uma expressão de idéias populares, uma voz dos fracos e opri-

GOVERNO É revoltante saber que o governo que elegemos por ter tido, durante anos, a coragem de combater os vendilhões da amada pátria, seja justamente aquele que vai nos entregar sem luta nenhuma à rapina internacional. Hoje me arrependo muito de não ter votado em José Serra, não, naturalmente, porque ele fosse fazer coisa diferente, mas porque assim teríamos ao menos uma oposição no Congresso Nacional. Adeus Lula; Adeus PT, Adeus Brasil soberano, Adeus sonhos de um mundo melhor! Terezinha Bittencourt, Niterói (RJ)

SAUDAÇÕES Votos de congratulação ao jornalista José Arbex pelo lançamento do jornal Brasil de Fato, veículo este de comunicação que tem como um dos princípios ouvir a voz dos excluídos e grantir a democratização da informação no país. Vereador Francisco José Pinheiro, Partido dos Trabalhadores, Departamento Legislativo da Câmara Municipal de Fortaleza Estou muito feliz em saber que teremos à nossa disposição um jornal que lutará para mostrar, a quem quiser ver, uma realidade omitida por quase todos, se não todos, os meios de comunicação. Além de parabenizálos, gostaria de agradecer a oportunidade que vocês estão dando a todos que se preocupam com a realidade de desgraça social em que estamos inseridos. São iniciativas como esta que fazem surgir a esperança, por mais difícil que seja, de um mundo mais justo, de propagação da vida e não da luta sangrenta pelo poder econômico que mata a grande maioria da população. Diogo Cesarino, Curitiba (PR) Parabéns pela iniciativa de constituir mais esse valioso instrumento para construir uma imprensa séria no país. Como correspodente da Agência Carta Maior em Porto Alegre, sei bem das dificuldades e desafios para tornar esse projeto realidade. Marco Aurélio Weissheimer, Porto Alegre (RS)

As cartas devem ser encaminhadas com identificação, município e telefone do remetente.

Quem somos Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores. COMO PARTICIPAR Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br. Nesse endereço, que futuramente abriga-

rá a agência de notícias virtual do Brasil de Fato, também haverá a lista de temas que estarão sendo apurados para a edição semanal do jornal. COMITÊS DE APOIO Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilida-

de a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jornal ficaria restrito ao chamado “eixo Rio-São Paulo”, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também, do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato. QUANTO CUSTA O jornal Brasil de Fato custa R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00.

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REFORMA AGRÁRIA

NACIONAL

O governador Roberto Requião (PR) concluiu acordo com o MST, para promover um diálogo entre a PM e assentados; em todo o país, lavradores lembram o massacre de Eldorado dos Carajás; em Carta ao presidente Lula, 150 técnicos avaliam o impacto dos transgênicos no país

Da Redação erca de 25 mil integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Ter ra (MST) participaram, na semana passada, da Jornada Nacional contra o Latifúndio.A mobilização foi organizada para mostrar à sociedade os prejuízos causados pelo latifúndio e a necessidade de um verdadeiro programa de reforma agrária.A jornada, que incluiu debates, marchas estaduais e ocupações de latifúndios improdutivos,

é parte das atividades desenvolvidas pelo MST para lembrar o dia 17 de abril de 1996. Nessa data, a Polícia Militar do Pará assassinou 19 trabalhadores rurais sem terra e deixou outros 69 feridos em Eldorado dos Carajás (PA). O episódio ficou mundialmente conhecido como o Massacre de Carajás. E a Via Campesina internacional declarou o dia 17 de abril como o Dia Internacional de Luta Camponesa. Desde então, todos os anos, organizações camponesas do mundo todo promovem atividades em memória aos sem ter-

Fábio Motta/AE

Jornada contra o latifúndio reúne 25 mil ra assassinados e reivindicam os direitos dos agricultores. Este ano, o mote principal de reivindicações foi a luta contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a liberalização do comércio agrícola. Segundo a direção do movimento, as manifestações são necessárias para mobilizar o povo e esclarecer que muitos dos problemas enfrentados no meio urbano, como violência e desemprego, são ocasionados pelo êxodo rural, pela dificuldade que o trabalhador rural enfrenta em produzir e trabalhar a terra.

PM-PR deve fazer estágio em assentamentos do MST econhecido pelo governador Roberto Requião (PMDB), do Paraná, como “um movimento social que merece ser tratado com respeito”, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) vai receber oficiais, praças e soldados da Polícia Militar do Estado, que farão estágios dentro dos acampamentos. Ao determinar aos integrantes da corporação essa nova forma de convivência com os sem terra, Requião revelou que quer derrubar estigmas dos dois lados: o de que o MST é uma “horda de baderneiros”, aos olhos dos policiais; e de que a polícia, aos olhos do MST, só age para reprimir com violência e criminalizar a organização. Para Roberto Baggio, um dos coordenadores do MST no Paraná, a proposta é bem-vinda. Mas ele acredita que levará tem-

po até que os policiais se convençam de que o MST é um movimento social que luta pela democratização da terra. “A polícia sempre encarou o movimento como inimigo. Essa carga ainda está muito presente na PM. Será preciso fazer uma reeducação

política da corporação e desmistificar a carga ideológica transmitida aos policiais nos últimos oito anos”, afirma Baggio. Os detalhes sobre os locais e a pedagogia empregada nos estágios começarão a ser discutidos esta semana, em Curitiba,

■ No Rio, agricultores lembram o massacre de Carajás (17.abr.96)

Arquivo JST

Dimitri Stein Valle, de Curitiba (PR)

■ Trabalhadores sem terra marcham de Ponta Grossa a Curitiba

entre representantes do MST, do governo do Estado e da PM. O governador diz que a principal intenção do projeto é mudar a imagem dos policiais sobre os sem-terra, o que evitará confrontos violentos e desgastes políticos. “O MST é importante para o país porque denuncia o estado de abandono das famílias que trabalham no campo”, avalia o governador. Esse discurso de aproximação com o movimento, segundo Requião, não significará “complacência”. “Se tivermos divergências, vamos expô-las”, avisa. Na pr imeira gestão (1991-94), Requião organizou em Curitiba um seminário entre comandantes da corporação

e lideranças nacionais do MST. A finalidade era a mesma, com a diferença de que agora o contato se dará nos acampamentos e assentamentos ligados ao movimento. Baggio acredita que a iniciativa do governo também vai ajudar os sem terra a ver a polícia de uma maneira diferente: “Todos vão sair ganhando com os estágios. Hoje, existe um sentimento muito negativo dos métodos da polícia, mas isso pode mudar. Precisamos de um aparelho policial para reprimir crimes que ameacem a sociedade, como o narcotráfico, por exemplo, e não para combater movimentos sociais”, afirma.

SEGURANÇA ALIMENTAR

Da Redação m carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 80 pesquisadores e 71 extensionistas e autônomos do Paraná avaliam as conseqüências da comercialização da safra de soja transgênica. Veja, abaixo, os principais trechos do documento. TRECHOS DA CARTA “A primeira informação falsa é que “os produtos transgênicos são consumidos há mais de cinco anos por milhões de pessoas nos Estados Unidos, e nenhum problema foi registrado”. Cientistas da própria Food and Drug Administration (FDA), que liberou o cultivo dessa soja nos EUA, afirmam que não há base para qualquer conclusão a respeito da segurança dos transgênicos sobre a saúde pública. Isso porque os transgênicos nunca foram rotulados nos EUA, o que impossibilita o rastreamento de qualquer problema eventualmente ocorrido. Cabe mencionar que, ainda no decorrer do processo de aprova-

ção da soja Roundup-Ready nos EUA, cientistas da FDA avaliaram que não havia informações suficientes sobre os efeitos à saúde pública, e emitiram pareceres contrários à liberação. Tais pareceres foram desconsiderados pelos escalões superiores - politicamente indicados - que autorizaram o cultivo da variedade transgênica. A questão da segurança exige muita cautela, pois os problemas podem se manifestar apenas em longo prazo. Há hoje, no Vietnã, uma geração de crianças afetadas por focomielia - anomalia congênita que impede a formação normal de braços e pernas - porque, durante a guerra, seus avós foram expostos a elevadas doses do Agente Laranja, produto usado para desfolhar florestas e declarado seguro na época. A Monsanto foi a maior fornecedora de Agente Laranja para o exército americano. Segunda informação falsa: a soja Roundup-Ready produz mais e é mais lucrativa para os agricultores. Cientistas dos EUA têm verificado em suas pesquisas um custo de produção cerca de 5% mais baixo, mas

também uma produtividade 5% a 7% menor. Isso acontece na própria região para a qual essas variedades foram desenvolvidas e onde são largamente cultivadas. Afirma-se também que, no Brasil, a soja transgênica teria o custo de produção reduzido em 30%, devido ao menor gasto com herbicidas. Isso é impossível, pois os custos com herbicidas representam, em média, 12% a 17% do custo total na soja convencional.

Os principais importadores de soja no mundo já sinalizaram que preferem produtos não transgênicos A liberação da soja transgênica neste momento é um suicídio comercial, uma ação de lesa-pátria. Como é do conhecimento público internacional, os principais importadores de soja no mundo já sinalizaram que preferem produtos não transgênicos.

Com a proibição dos transgênicos, portas se abriram para as exportações brasileiras e as perspectivas são de maior abertura no futuro próximo. Daí nossa perplexidade de ver o futuro claramente vantajoso com não-transgênicos ser sacrificado para salvar aqueles que descumpriram a lei. Embora a transnacional Monsanto tenha implantado suas sementes nos EUA e Argentina, não consegue impô-las livremente aos países consumidores, porque permanece a possibilidade de abastecimento alternativo no Brasil. Assim, para a Monsanto, a liberação dos transgênicos no Brasil é essencial, já que a não liberação põe em risco suas vendas de transgênicos, inclusive na Argentina e nos Estados Unidos. As variedades de soja criadas em instituições públicas brasileiras garantem base genética diversificada e acessível aos agricultores; significam maior resistência a novas pragas e doenças e maior possibilidade de adaptação às várias condições ambientais do Brasil. A liberação dos transgênicos

contraria os interesses comerciais e sociais do Brasil: desfavorece a agricultura familiar - e também a empresarial; coloca nossa segurança alimentar em mãos de terceiros e enfraquece as instituições nacionais de pesquisa, tanto públicas quanto privadas. Senhor Presidente, somos profissionais das ciências agrárias e biológicas e temos colocado nossos esforços profissionais a serviço do desenvolvimento agrícola e social do Brasil. Não poderíamos fugir ao nosso dever cidadão de lhe comunicar nossa convicção de que a liberação para consumo interno da colheita transgênica gaúcha abrirá as comportas para a liberação dos transgê-nicos no Brasil, que julgamos de todo inoportuna. Por isso, é nossa compreensão que toda a safra transgênica deve ser exportada, a despeito do deságio comercial. O prejuízo é pequeno, se comparado aos danos políticos, sociais, econômicos e tecnológicos que poderá causar ao nosso País.”

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Carta a Lula: transgênico é “suicídio”

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NACIONAL

Criado após a II Guerra para auxiliar a reconstrução de economias devastadas, o Fundo Monetário Internacional atua como órgão do capital financeiro ; suas receitas, adotadas pelo governo brasileiro, causaram tragédias em todo o mundo, incluindo a arruinada Argentina

ANÁLISE

FMI aplaude o Brasil e exige mais Anamárcia Veisencher, da Redação menos que seja possível agradar a gregos e troianos, as autoridades monetárias (ministro da Fazenda e presidente do Banco Central) claramente fizeram a sua escolha: deram prioridade máxima às bancas internacional e nacional.Trata-se, desde os primeiros dias do governo, de ganhar a confiança dos credores, garantindo-lhes, em palavras e atos, que o

país não deixará de honrar o pagamento de suas dívidas. Para isso, executam uma política econômica de arrocho e de juros altos. Não foi por menos que o ministro Antonio Palocci e o presidente do BC, Henrique Meirelles, foram tão elogiados e aplaudidos na reunião do Fundo Monetário Internacional (dias 13 e 14 em Washington) e nos encontros que tiveram com banqueiros e representantes do governo estadunidense. Mais: o Brasil recebeu menção especial em documento do

G-7 (grupo dos países mais ricos do mundo), que deu boas-vindas às “fortes políticas macroeconômicas e ambiciosas reformas estruturais que as autoridades do Brasil estão implementando”. Em Nova York, onde se reuniu com bancos credores, Meirelles disse que sentiu um clima “bastante positivo”. Afagos à parte, durante sua reunião de primavera (no hemisfério Norte), atendendo às demandas de seus principais sócios, os países ricos, o FMI decidiu im-

por obstáculos ainda maiores ao acesso de países em dificuldades a pacotes de ajuda que ultrapassem as suas cotas no Fundo. Todo empréstimo cujo montante for superior à cota do país será feito somente através de uma linha chamada de Supplementary Reserve Facility (SRF), cujo custo é mais caro e os prazos menores. Nesses casos, o FMI exige, ainda, detalhado relatório sobre a situação do país tomador e uma avaliação da sustentabilidade de sua dívida. Esse endurecimento vem sen-

do pedido pelos países ricos desde a crise asiática, em 1997, época em que as turbulências resultantes da desenfreada especulação financeira internacional levaram vários países à insolvência. Foi grande a corrida ao Fundo em busca de socorro. Uma ajuda que é, verdadeiramente, um tiro pela culatra para as nações, que acabam por perder a sua soberania e ficam com margens estreitíssimas para realizar uma política econômica que atenda às necessidades de seus povos.

Marina Juarez, de São Paulo (SP) m dezembro de 1945, após o fim da II Guerra, 29 países se reuniram nos EUA e criaram o FMI. O objetivo era, em resumo, fazer o acerto entre o superávit de alguns países e o déficit de outros, promovendo estabilidade e equilíbrio internacional.Para tanto, em certos casos, e sob certas condições, o Fundo concedia financiamento oficial compensatório para sanear temporariamente déficits expressivos de alguns países. Hoje, o FMI tem cerca de 180 países membros e funciona como uma espécie de cheque especial, emprestando dinheiro –de um fundo criado com a contribuição dos países associadosº – para países que apresentem desequilíbrio em seu balanço de pagamentos, ou seja, que estejam precisando zerar a entrada e a saída de divisas (recursos em moeda estrangeira). Dada a rigidez das condições que sempre impõe aos países que a ele pedem socorro, o FMI acaba

determinando a sua política econômica.A aplicação de seus remédios (hoje em doses mais altas e mais diversificados) mostra de forma transparente que os métodos do Fundo têm fracassado. CONTA SALGADA Seguindo essa receita, o Brasil pagou, no ano passado, US$ 115 bilhões de juros da dívida pública (externa e interna), correspondentes a mais de 8% de tudo que é produzido no país (PIB). “Cada brasileiro trabalhou um mês para pagar juros em 2002”, diz Marcelo Manzano, mestre em economia pela Unicamp. Mas, apesar de ter cumprido o receituário do FMI, o Brasil não conseguiu equilibrar seu balanço de pagamentos e acaba de assinar nova Carta de Intenções com o Fundo. Enquanto a dívida externa brasileira cresce (eram 211 bilhões de dólares, em 2002 segundo o BC), a Malásia, que não seguiu a receita do FMI, teve desempenho diferente: seu PIB, que em 1998 tinha caído 7,4%, encerrou 2002 com

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

Com o perdão do leitor, aqui vai um pouco de “economês“

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Balanço de Pagamentos (BP): É o registro sistemático das transações entre residentes e não residentes de um país durante determinado período. Residentes são as pessoas que vivem permanentemente no país (incluindo estrangeiros com residência fixa), os funcionários em serviço no exterior e as pessoas que se encontram transitoriamente fora do país.Também são residentes as pessoas jurídicas, de direito público ou privado, sediadas no país, inclusive sucursais ou filiais de empresas estrangeiras. As contas do BP podem ser divididas em dois grupos: Operacionais e Caixa. As contas operacionais correspondem aos fatos geradores do recebimento, ou das transferências de recursos ao exterior. São creditadas (sinal positivo) quando entram recursos no país, e debitadas (sinal negativo) quando saem recursos. As contas de caixa registram o movimento dos meios de pagamento internacionais à disposição do país. Lança-se a débito o aumento, e a crédito a diminuição no saldo de cada item. Dois grandes grupos se destacam no balanço de pagamentos: Transações Correntes e Movimentos de Capitais.Transações Correntes são as que envolvem a movimentação de mercadorias e serviços. Movimento de Capitais envolve os deslocamentos de moeda, créditos e títulos representativos de investimentos. Estrutura do BP: A) Balanço Comercial – Exportações/ importações; B) Balanço de Serviços – Viagens internacionais; transportes ou fretes; seguros; rendas de capital (lucros e dividendos; lucros reinvestidos; juros); serviços governamentais (juros da dívida); serviços diversos C) Transferências Unilaterais – Donativos (recebidos ou enviados); D) Saldo do BP em Conta Corrente – A + B + C E) Movimento de Capitais Autônomo – Investimentos diretos; reinvestimentos; empréstimos e financiamentos; amortizações; capitais a curto prazo; outros capitais F) Erros e Omissões; G) Saldo Total do Balanço de Pagamentos – D + E + F Fonte: Dicionário virtual - www.topecom.hpg.ig.com.br

William Philpott/Reuters

Banco acumula história de fracassos

■ Manifestação de protesto em frente da sede do FMI, em Washington, dia 13 expansão de 3,5%; sua inflação anual, de 5,1% em 1998, caiu para 1,8% no ano passado. Em igual período, a inflação anual brasileira saltou de menos de 2%, em 1998, para mais de 12% em 2002. No ano passado, o Brasil registrou aumento expressivo das exportações – mas, basicamente, devido à desvalorização do real, de 50%. A partir de 1979, os Estados Unidos elevaram brutalmente suas taxas de juros. As dívidas dos países do terceiro mundo explodiram, desencadeando uma série de moratórias.

O FMI (com a cooperação do BIRD – Banco Interamericano de Reconstrução e Desenvolvimento), então, assumiu um papel preponderante nos processos de renegociação dos débitos dos países endividados, e passou a condicionar seus empréstimos a um modelo de gestão governamental que prevê forte redução dos gastos públicos, privatizações, terceirização do controle de serviços públicos (as agências reguladoras),autonomia da gestão da política macroeconômica pelo BC,contenção salarial,freio na concessão de crédito, aumento da taxa básica de juros etc.

O economista Wilson Cano, professor da Unicamp, explica que o FMI usa a doutrina monetária ortodoxa para fazer seus diagnósticos. Ou seja: o FMI entende que a crise no balanço de pagamentos é provocada por excesso de demanda (interna e externa), que implica elevadas importações; essa demanda muito aquecida, por sua vez, é produzida por governos perdulários, que gastam mais do que podem. Para reduzir a demanda, a receita é austeridade. E o povo sabe o significado disso.

O desastre da Argentina é o exemplo pesar de ter cumprido a agenda determinada pelo FMI durante o governo Carlos Menem, nos anos de 1990, a Argentina declarou moratória no final de 2001, entrou em profunda depressão, o desemprego atinge cerca de um em cada quatro argentinos e a miséria alcança cerca de 50% da população. Para chegar a essa situação, a Argentina dolarizou a sua economia, isto é, instituiu uma lei de paridade cambial que determinava que 1 peso argentino, sua moeda nacional, valesse 1 dólar, moeda estadunidense. Nestas condições, para a economia crescer, seria necessária enorme entrada de dólares. A paridade cambial encareceu as exportações argentinas e barateou as importações. Embora muitos dólares tivessem aportado ao país vizinho, a realidade eco-

nômica foi mais forte e a recessão se aprofundou. Resultado: o país quebrou. CORÉIA DO SUL Nos anos 70, as economias da Coréia do Sul e do Brasil eram similares. Entretanto, enquanto o Brasil manteve e acelerou a rota do endividamento externo, a Coréia do Sul investiu em um projeto nacional, combinou uma política educacional com uma política industrial agressiva de eleição de vencedores (em que o governo escolhe os setores que considera estratégicos e investe neles) e de exportação. Com essas decisões, a Coréia do Sul tornou-se um dos exemplos de como escapar do receituário do FMI. CHILE O Chile também usa um recurso que o FMI não aplaude: a

quarentena. Atravessou a crise financeira de 97/98 em grande parte por ter adotado esse instrumento de defesa contra a entrada e a saída indiscriminada de capital estrangeiro: depois de entrar no Chile, o capital estrangeiro só pode sair depois de alguns meses. MALÁSIA No final de 1998, depois que seu PIB sofreu uma queda de 7,4%, a Malásia decretou o controle de capitais, isto é, o controle do fluxo de moeda estrangeira. Em outras palavras, os estrangeiros estavam proibidos de retirar seus capitais do país. Esta é uma alternativa que o FMI condena. Mas funcionou na Malásia, que reduziu sua taxa de juros, fez sua produção voltar a crescer e suavizou o controle de capitais com o estabelecimento de taxas decrescentes (ao longo do tempo) sobre a saída de capitais. AMV


RUMOS DA NAÇÃO

NACIONAL

Em visita a Washington, o ministro Antonio Palocci pediu que a Casa Branca dê “sinais de abertura” que permitam acelerar a criação da Alca; no Brasil, movimentos sociais iniciam uma luta pela convocação de um plebiscito nacional; Reinaldo Gonçalves: aderir à Alca será um desastre

Para Palocci, livre comércio é um avanço Da Redação Área de Livre Comércio das Américas (Alca) avança dentro das possibilidades e das condições colocadas por país”, declarou o ministro da Fazenda do Brasil, Antonio Palocci, dia 13, em visita ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e a funcionários do governo estadunidense, em Washington e Nova York. Palocci distribuiu generosos

elogios ao FMI. Disse que sua visita tenha também o propósito de agradecer à instituição pelos auxílios prestados ao Brasil. E insistiu na defesa da Alca, ao longo de encontros mantidos com o representante de Comércio dos Estados Unidos, Robert Zoellick, com o assessor especial da Casa Branca para a América Latina (AL),Otto Reich, com o membro do Conselho de Segurança Nacional para a América Latina, John Maisto, além de banqueiros e outros funcionários.

Palocci criticou o protecionismo agrícola praticado por Washington e pediu que a Casa Branca emitisse “sinais de abertura” com o objetivo de atenuar as resistências à formação da Alca.“Queremos um sinal de que os EUA estão dispostos a abrir. A negociação avança se há avanços em todos os lados. Quando um país dá um passo atrás, outros países dão passos para trás também”. O governo pretende combater o protecionismo no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC).

As declarações de Palocci explicitam uma divisão no governo. De um lado, estão os favoráveis à a Alca, incluindo os ministros da Agricultura (Roberto Rodrigues), do Desenvolvimento (Luiz Furlan) e o presidente do BC, Henrique Meirelles. De outro, os que, até há pouco, manifestavamse contra aderir à aliança, como o presidente Lula, os ministros das Cidades (Olívio Dutra), do Desenvolvimento Agrário (Miguel Rosetto), dos Esportes (Agnelo

Queiroz), o secretário-executivo do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, e o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, Carlos Lessa. Zoellick, que se declarou “satisfeito”com Palocci, deverá fazer uma visita ao Brasil, para tratar do prosseguimento das negociações para a Alca. Já o ministro Roberto Rodrigues tinha uma viagem marcada aos EUA durante a semana. Com agências internacionais

ENTREVISTA

Arquivo JST

Só a pressão popular barra a Alca Nilton Viana, da Redação

Brasil de Fato – Que análise o sr. faz do governo? Reinaldo Gonçalves - A área social mostra ausência de coordenação e, excluindo, o programa Fome Zero, parece sem iniciativa. A área econômica está entre o lamentável e o ridículo. Não há evidência de tendência sustentável de melhoria da economia. Muito ao contrário. O governo nada fez para aumentar o emprego. A dívida pública continua fora de controle em decorrência dos elevados juros e do seu componente dolarizado. A política fiscal é autofágica com o atual nível de juros. O “neocompanheiro” presidente do BC está vendendo títulos públicos dolarizados com vencimento em 2008. Isso mostra que a política econômica veio para ficar. A história da transição é lorota. BF – Palocci defende o ingresso do Brasil na Alca. A Alca será inevitável? RG - Quem manda no governo é Luiz Inácio Lula da Silva. Palocci não passa de um operador descartável. A responsabilidade final é do presidente Lula. BF - A Alca interessa ao Brasil? RG - Definitivamente, não. A Alca aumentará ainda mais a vulnerabilidade externa do paísl. BF – Quem se beneficiará com a Alca? RG - A maior resistência a rejeitar a Alca não é externa, estadunidense, mas interna, brasileira. Quem lucraria com o eventual ingresso do Brasil na Alca? O exportador, que quer vender produtos têxteis e aço aos Estados Unidos; o empresário, que quer um acordo de proteção ao investimento para que sua empresa passe a ter um preço mais alto e possa ser vendida a estadunidenses; e o pessoal do latifúndio improdutivo, que quer que o valor da sua terra aumente, para que ele a venda a uma empresa transnacional do agronegócio, que será protegida pelo acordo jurídico institucional via Alca. Os meios de comunicação quebrados, com o acordo de serviços, se sentirão mais protegidos e, portanto, o preço das suas

ações para venda ao capital estrangeiro aumenta.

BF – A Alca é compatível com um projeto nacional? RG - Ao significar a maior liberalização e desregulamentação da economia, esse projeto está reforçando a causa principal da trajetória de instabilidade e crise do Brasil, que é a vulnerabilidade externa. O desafio que se coloca é a ruptura com o modelo neoliberal. Isso significa um breque imediato do processo de liberalização e desregulamentação e, em seguida, sua reversão. O projeto da Alca é incompatível com essa estratégia de ruptura. BF – A sociedade não conhece as propostas do Brasil para a Alca. RG - A transparência é uma das premissas de um governo democrático e popular. Lamentavelmente, o governo está não somente repetindo as políticas do governo Fernando Henrique, como incorpora os seus vícios. A idéia de convocar um plebiscito é muito boa. A voz do povo deve abafar os interesses particulares. Mas o grupo dirigente tem grande responsabilidade. Agora, a mobilização popular é fundamental. Se o povo não pressionar, é muito provável que o governo assine o acordo da Alca. O povo deve também se conscientizar da ineficácia da diplomacia brasileira. O governo deveria ter colocado no Itamaraty um político de alto calibre, com forte posição nacionalista e visão de estadista. Nesse caso, deveria seguir o exemplo dos EUA, cujo ministro de Relações Exteriores é um general e, principalmente, um político de alto calibre. BF – O que o BC deveria fazer? RG - Deveria operar um giro imediato de 180 graus na política macroeconômica. As diretrizes alternativas seriam as seguintes: controles dos fluxos de capitais internacionais; redução da taxa de juros real; aumento do depósito compulsório; expansão seletiva do crédito orientado para a produção; minimização do tema das metas inflacionárias; desdolariza-

Quem é Reinaldo Gonçalves é livredocente em Economia Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Ph. D. (pesquisador especializado) em Economia da Universidade de Reading (Inglaterra). É também professor titular da UFRJ e integra o Conselho Federal de Economia (2001-2003). Autor de mais de duas centenas de trabalhos publicados em 19 países na Europa, Ásia, África, América do Norte e América do Sul. Os seus principais trabalhos no Brasil incluem os livros Empresas Transnacionais e Internacionalização da Produção (Vozes, 1992); Ô Abre-alas: A Nova Inserção do Brasil na Economia Munção da dívida pública; desdolarização das tarifas dos serviços de utilidade pública; redução do superávit primário; recomposição das reservas internacionais; medidas da Receita Federal no sentido de eliminar prerrogativas de pagamento de impostos sobre lucros e juros (exemplo: juros sobre capital próprio); intervenção ativa no mercado cambial objetivando a estabilidade da trajetória de desvalorização efetiva do câmbio (dólar caro); e auditoria da dívida externa. Ou faz o giro agora ou, então, depois será muito tarde.

BF – E a proposta de autonomia do BC? RG - Ridícula, se for para ser uma autonomia de “brincadeirinha” ou tola, se for para ser de verdade. O BC precisa ser o braço armado do governo para enfrentar os agentes financeiros. O Estado, por definição, detém a capacidade de regular a relação entre os homens, dos homens com as coisas e o meio ambiente, bem como o monopólio da tributação, da força e da moeda. Ele não pode abrir mão do monopólio da moeda. É como se as Forças Armadas, a Justiça e a Receita Federal fossem terceirizadas. O BC tem de ser um instrumento de desenvolvimento econômico, cuja função-objetivo deve transcender a lógica míope da meta inflacionária. Precisamos do BC para controlar o capital externo, combater o desemprego e a exclusão. BF – O que o sr. espera do governo Lula?

dial (Relume-Dumará, 1994); Globalização e Desnacionalização (Paz e Terra, 1999); O Brasil e o Comércio Internacional (Contexto, 2000), Prêmio Jabuti

2001; Vagão Descarrilhado (Record, 2002); O Nó Econômico (Record, 2003); e A Herança e a Ruptura (Garamond, 2003).

RG - Os céticos pensam que não se deve esperar mudanças significativas. Recuperam a análise histórica que nos dá a seguinte lição: “A política de conciliação, de transação, teve como principal objetivo aplainar mais as divergências dos grupos dominantes que conceder benefícios ao povo.” Essa lição nos é dada por José Honório Rodrigues no livro Conciliação e Reforma. As medidas de política econômica nos primeiros meses indicam que estamos entrando em mais um período de conciliação e reforma. Para impedir que isso

aconteça, o povo tem de pressionar. Os movimentos populares têm de entender que governo é governo, movimento social é movimento social. O movimento social deve se manter atuante e crescer durante o mandato de Lula. A estratégia do movimento social deve ser montada em estágios: (1) definir uma agenda clara de demandas, projetos e programas; (2) definir os interlocutores no governo federal; (3) extrair compromissos específicos, com tempos determinados; (4) cobrar resultados, reconhecer êxitos e criticar fracassos.

Movimentos criam articulação nacional Maria Luisa Mendonça, da Redação O setor pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e movimentos sociais de todo o país se reuniram em São Paulo, dia 11, para dar início a uma articulação em defesa de um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil. Os organizadores pretendem “apoiar o governo Lula no que ele apontar para as mudanças efetivas, no rumo da alternativa democrático-popular”. E avaliam que “a ruína deste governo representaria uma derrota histórica dos setores que sempre lutaram pelas transformações sociais no país”. Os temas centrais do encontro foram a geração de empregos e a distribuição de renda, a necessidade de maiores investimentos públicos em áreas sociais e a defesa da soberania nacional, com especial atenção para a campanha contra a Alca e a independência do BC. Além disso, impedir que os projetos das reformas da Previdência e Tributária sejam aprovados nos moldes atuais, lutar pela reforma agrária e contra a liberação dos alimentos transgênicos. O encontro aprovou um amplo e extenso calendário de mobilizações pela convocação de um plebiscito nacional sobre a Alca, a ser realizado no primeiro semestre de 2004. O plano prevê a formação de comitês de luta em escolas, locais de trabalho e nos mais diversos ambientes e setores, além de um abaixo-assinado que deverá ser entregue ao governo no dia 16 de setembro, logo após a Semana da Pátria e o Grito dos Excluídos (7 de setembro).

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

implantação da Alca só interessa a um punhado de exportadores brasileiros e a grandes grupos transnacionais. Em contrapartida, torna o país mais vulnerável ao capital internacional, bloqueia qualquer possibilidade de um projeto nacional autônomo e promete mais miséria e desemprego. Esta é a opinião do economista Reinaldo Gonçalves, para quem apenas a mobilização popular pode impedir a adesão do Brasil. Gonçalves adverte: é necessário que o povo tome as ruas, mas a responsabilidade maior é dos governantes.

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NACIONAL

Maria Lúcia Fatorelli: reforma tributária proposta pelo governo passa à margem e ao largo de um sistema socialmente injusto e concentrador de renda; em Belo Horizonte (MG), fórum de servidores reúne 50 entidades que prometem resistir e, se necessário, ir à greve

REFORMA TRIBUTÁRIA

Pobres continuam pagando a conta Márcia Maria da Cruz, de Belo Horizonte (MG)

Brasil de Fato – Por que o sistema tributário precisa ser mudado? Maria Lúcia Fatorelli – Porque representa um dos principais fatores que contribuem para a concentração de renda e a inibição do crescimento econômico. O sistema é regressivo porque os trabalhadores e os consumidores, principalmente os de baixa renda, são os mais onerados, enquanto os ricos pouco ou nada contribuem. São desrespeitados os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da progressividade. Não há equilíbrio de incidência tributária sobre as bases clássicas: capital (patrimônio, lucros, juros, fortunas), consumo e trabalho. Enquanto nos países desenvolvidos a maioria dos tributos incidem sobre renda e patrimônio, no Brasil, 70% da arrecadação incidem sobre o consumo, até mesmo sobre a cesta básica. BF – Por que é tamanha a voracidade tributária? Fatorelli – O governo busca extrair cada vez mais recursos da sociedade, a fim de cumprir seus compromissos e implementar suas políticas. A carga tributária, no Brasil, está entre as mais elevadas do mundo, tendo saltado de 28,47% para 35,63 % do PIB nos anos FHC. Esse esforço arrecadatório serviu apenas para garantir o pagamento de juros e encargos da dívida. BF – A arrecadação é insuficiente ou a evasão, a sonegação, os subsídios e as exceções da lei são uma sangria constante? Fatorelli – A carga tributária brasileira é mal distribuída. A arrecadação fica prejudicada em função de mudanças, implementadas nos últimos anos, que incentivam o cresci-

mento da sonegação e da evasão fiscal, como por exemplo, a extinção de medidas punitivas de crimes contra a ordem tributária, mediante o simples pagamento tardio do tributo devido, que livra os sonegadores praticantes de fraudes. Outra medida que incentivou a sonegação foi a instituição do Programa de Recuperação Fiscal (Refis - parcelamento de débito calculado com base no faturamento da empresa). O programa tem prazo médio de 99 anos para as empresas quitarem seus débitos, que somam R$ 178 bilhões - quase meio orçamento federal. Isso faz com que algumas empresas tenham mais de mil anos para quitar débitos. Há uma medida provisória no Congresso para ressuscitar o Refis.

BF – Há outras distorções no sistema tributário? Fatorelli – Há várias outras práticas que permitem às grandes empresas lucrativas pagar cada vez menos impostos. Só existe no Brasil a possibilidade de uma empresa, que possui elevado nível de capital próprio, deduzir como despesa os juros sobre esse capital próprio. A coisa mais esdrúxula do mundo! Outro absurdo é a isenção de impostos na distribuição de lucros ou dividendos, ao passo que o assalariado que ganha acima de R$ 1.058 é tributado. Também não há tributação sobre as remessas de lucro para o exterior, o que representa uma perda, em valores de 1998, de R$ 12,7 bilhões anuais. BF – A tributação do lucro é uma medida tão óbvia... Fatorelli – O lucro tem de ser tributado. A tributação do ganho é legítima, muito mais legítima do que a tributação sobre o salário, que

Quem é

Arquivo Pessoal

sistema tributário brasileiro é socialmente injusto: quem ganha mais paga menos, o setor produtivo é onerado por impostos em cascata e os bancos pagam cada vez menos impostos. O governo está mandando para o Congresso uma proposta de reforma que mais parece uma colcha de retalhos. Sobre esses e outros assuntos fala a especialista Maria Lucia Fatorelli.

Maria Lúcia Fatorelli Carneio é Auditora Fiscal da Receita Federal, presidente do Unafisco Sindical de Belo Horizonte, coordenadora do Fisco Fórum MG e da Auditoria Cidadã da Dívida pela Campanha Jubileu Sul.

não é ganho, mal dá para a subsistência. O capital investido na bolsa de valores é isento de CPMF, mas os trabalhadores pagam CPMF. A remessa de juros para o exterior também não paga CPMF. Uma das medidas mais urgentes que o novo governo precisa adotar para coibir a sonegação é aumentar a fiscalização e o investimento na máquina administrativa.

BF – Quais são as punições para os sonegadores? Fatorelli – Até 1996, se um contribuinte fraudasse notas fiscais, emitisse notas frias, se praticasse contrabando, e tudo fosse devidamente comprovado, ele seria punido criminalmente e correria o risco de ir para a cadeia. Com as regras atuais, se o contribuinte paga imposto, nenhum daqueles crimes é passível de punição. BF – Como o sistema tributário penaliza a produção? Fatorelli – As empresas produtivas têm reclamado muito, principalmente da incidência da tributação em cascata, sobre cada etapa da produção. Quanto mais complexo o processo produtivo,

melhor para o país em função do número de empregos gerados, mas essas contribuições em cascata, como a Cofins, vão onerando cada fase. Ela encarece o produto fabricado no país, que perde a competitividade diante de produtos semelhantes no mercado internacional. Esta distorção foi corrigida em relação ao PIS, no final de 2002. Agora, o governo prometeu acabar com a incidência em cascata da Cofins até o final do ano. Se isso acontecer, a arrecadação vai cair, e o governo não aceita qualquer redução no volume de arrecadação. A saída é adotar medidas compensatórias - por exemplo, tributar os bancos, os latifúndios, as grandes fortunas, os lucros.

BF – E como fica a tributação do capital? Fatorelli – Esta é uma proposta nossa, da sociedade. É a pauta social, não a que está em discussão, nem a que foi debatida na reunião com os governadores, que foi a pactuada com o FMI quando o governo se comprometeu, na carta de intenções de 28 de fevereiro de 2003, a enviar para o Congresso, até junho, um projeto de reforma tributária. Cobrar

Fórum de BH define mobilizações

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

Ilson Lima, de Belo Horizonte (MG)

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s servidores públicos não vão aceitar passivamente as propostas para a reforma da previdência feitas pelo governo federal. O recado foi dado no final dos debates (dias 14 a 16) realizados na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, no Fórum Técnico “A Reforma da Previdência Social”. Participaram do evento mais de 50 sindicatos dos trabalhadores públicos e da iniciativa privada. Na avaliação das lideranças, que criaram em Minas o Fórum Unificado em Defesa do Trabalho e dos Direitos Sociais, as propostas anunciadas pelo governo Lula são uma versão piorada do Projeto de Lei 9 (PL-9), encaminhado pelo governo Fernando Henrique Cardoso. REIVINDICAÇÕES Para os participantes, o governo atual segue a cantilena dos anteriores, ao propagar que a previdência é deficitária, desviando o foco da questão, que é a enorme dívida pública acumulada há décadas. Ainda conforme essas li-

deranças, o governo federal está adotando a cartilha do FMI, ao não permitir o debate da questão com a sociedade civil. Os trabalhadores públicos querem a retirada e o arquivamento imediato da PL-9, tramitando no Congresso desde agosto de 2000. Querem, ainda, que todos os tributos que foram criados para finaciar a Previdência, como a CPMF e a Cofins, parem de ser desviados. Defendem, também, a realização de auditoria das dívidas interna e externa, e da reforma agrária. RESISTÊNCIA A disposição dos servidores é de, num primeiro momento, negociar com o governo federal, “mas estamos dispostos a mobilizar a categoria e partir para um greve prolongada”, afirma Olga Carvalho Hott, diretora do Sindicato dos Auditores Fiscais da Previdência Social. Para ela, as propostas do governo para a reforma da previdência são inaceitáveis, mas existe a disposição de negociar com um governo que foi eleito pelos trabalhadores.

impostos dos latifúndios, das grandes fortunas, dos lucros e dos bancos é um projeto de reforma dos movimentos sociais.

BF – Por que os governos perdoam as dívidas dos sonegadores? Fatorelli – Como representantes do Fisco, somos contra perdão de dívidas. Isso desmoraliza nossa atividade e premia o mau contribuinte. Os governos lançam mão dessas anistias quando há necessidade premente de arrecadação, o que é condenável. Paradoxalmente, os bancos pagam cada vez menos impostos. Os dez maiores bancos privados brasileiros, de 1994 para 2001, aumentaram em 180% os lucros e em 64% a rentabilidade, e diminuíram o pagamento de impostos em 50%. Isso acontece graças a brechas na legislação, aliadas a dispositivos concretos como juros sobre o capital próprio e isenção na distribuição de lucros, por exemplo. Qualquer iniciativa de aumento da carga tributária dos bancos é acompanhada de ameaça de repasse para os juros bancários, com reflexos nocivos ao setor produtivo, ao crédito imobiliário.

Os principais pontos do projeto de reforma tributária que será enviado pelo governo federal ao Congresso HOJE

NO FUTURO

ICMS • Legislação: há 27, uma em cada Estado, uma no Distrito Federal • Cobrança: origem, isto é, nos Estados produtores e exportadores • Alíquotas: 44 • Incentivos fiscais: Estados e municípios costumam conceder inúmeras isenções para atrair empresas, gerando o que se chama de guerra fiscal • IVA: imposto sobre valor agregado, não existe COFINS ( Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) • Cálculo: sobre o faturamento das empresas • Incidência: cumulativa, isto é, é cobrada várias vezes sobre um mesmo produto, em suas diversas fases de fabricação Contribuição previdenciária patronal • Incidência: folha de pagamento • Alíquota: em média, 22% ITR (Imposto Territorial Rural) • Destinação: a União Imposto sobre heranças e doações • Alíquota: 4% Renda mínima • Competência: a adoção do programa é voluntária

ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) • Legislação: em dois anos, será unificada • Cobrança: não está definido se será na origem (Estados produtores e exportadores), ou no destino (Estados consumidores, importadores), mas deverá ser simplificada • Alíquotas: serão cinco, a mais baixa das quais incidirá sobre a cesta básica • Incentivos fiscais: os Estados não poderão mais concedê-los para atrair empresas aos seus territórios • IVA (Imposto sobre o Valor Agregado): pode ser o novo nome do ICMS; na base de cálculo do IVA são descontados os custos de produção CPMF (Contribuição “Provisória” sobre Movimentação Financeira) • Duração: será permanente (como de fato se tornou, apesar do nome) • Alíquotas: máxima de 0,38%, mínima de 0,08%; o governo diz que diminuirá gradualmente a alíquota, mas, na lei, não haverá cronograma de redução COFINS (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) • Cálculo: poderá ter a mesma lógica do IVA, isto é, sobre o valor agregado da empresa, que desconta os custos de produção • Incidência: não será mais cumulativa, isto é, cobrada várias vezes de um mesmo bem, em suas diversas etapas de produção, para setores a serem especificados Contribuição previdenciária patronal • Incidência: será calculada sobre o valor agregado da empresa, isto é, a base de incidência descontará os custos de produção ITR (Imposto Territorial Rural) • Destinação: os Estados, que vão dividir metade da receita com os municípios Imposto sobre herança e doações • Alíquotas: serão progressivas, conforme os valores Renda mínima • Competência: União, Estados e municípios devem instituir o programa


PREVIDÊNCIA

NACIONAL

Governo carrega nas previsões negativas para justificar novo achatamento dos benefícios dos servidores e a criação de um sistema complementar elitista e excludente; no Chile e na Argentina, a criação de fundos de pensão resultou em desastre

Lauro Jardim e Jorge Pereira, de São Paulo (SP) o exato momento em que o governo anunciava sua proposta para a reforma da Previdência (v. quadro), surgiam na grande imprensa novos números sobre o alegado déficit do setor. Sempre carregados de tintas negras, os dados incluídos na proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que define como e onde o governo gastará os impostos que arrecada, revisam o tal rombo de R$ 23,8 bilhões para R$ 25,7 bilhões em 2003, projetando um déficit de R$ 147,8 bilhões para 2022. Para a previdência pública, considerando os servidores civis da União, as previsões apontam para déficits de R$ 15,3 bilhões neste ano, e R$ 20,3 bilhões em 2022. Descontada a futurologia, que estima um crescimento anual médio de 3,5% para a economia brasileira até o longínquo ano de 2022 (como se o País estivesse condenado a um crescimento

O

QUE PODERÁ MUDAR NA

medíocre para o resto dos tempos...), é preciso colocar aqueles números em perspectiva. PINGOS NOS IS Somados, aqueles dois “rombos” representarão, em 2003, algo como 2,45% do Produto Interno Bruto (o PIB, soma das riquezas produzidas pelo País). Apenas a conta de juros do governo federal, da ordem de R$ 120,9 bilhões em 2002, consumiu 9,2% de tudo o que o País produziu naquele ano – ou seja, quase quatro vezes mais do que o suposto “rombo” encontrado pelo governo naquelas duas contas previdenciárias. As projeções incluídas na LDO mostram, além disso, que a diferença entre as receitas das contribuições e as despesas com aposentadorias e pensões tende a encolher – isso mesmo – a partir da metade da segunda década deste século. No caso do regime próprio dos servidores civis, o “rombo” atingiria um pico de R$ 21,3 bilhões, em valores correntes (ou seja, consideradas as condições do

PREVIDÊNCIA

COMO É HOJE

Luciney Martins/Rede Rua

Reforma ameaça ampliar o “rombo”

■ Em fila, segurados do INSS esperam na fila para serem atendidos, na Santa Casa de São Paulo sistema em dezembro de 2002), no ano de 2016, passando a recuar daí em diante, até os R$ 20,3 bilhões previstos para 2022.

números levados a público não mostram. De qualquer forma, as mesmas previsões foram utilizadas para justificar a criação de um teto para as contribuições e benefícios da previdência pública e acelerar, no Congresso, a aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 9, de 1999 (ou algo equivalente). O projeto regulamenta a Emenda Constitucional 20 e define as normas para a criação de fundos de previdência complementar, destinados a financiar aposentadorias de valores superiores ao teto proposto. Um estudo preparado pelos economistas Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo e Bernard Appy (antes deste último ir para o atual Ministério da Fazenda), aponta imprecisões no projeto e imaturidade no debate sobre a questão. E lança a advertência: no limite, os futuros fundos de pensão dos servidores podem repetir a desastrosa experiência dos mal afamados montepios, que levaram milhares de trabalhadores a perder todos os recursos aplicados naqueles fundos por conta de má gestão financeira e das turbulências econômicas nos anos de 1970 e 1980.

DADOS ESCONDIDOS São estes “detalhes” que os

COM A PROPOSTA DE REFORMA DO GOVERNO FEDERAL

COMO PODERÁ FICAR

• Inativos: não contribuem • Idade: para os servidores, 48 anos mulheres, 53, homens • Teto: no INSS, é de R$ 1.561,56 • Pensões: são integrais para os servidores públicos • Alíquotas: o servidor federal já desconta 11%, mas União, Estados e municípios têm alíquotas diferenciadas; no INSS, são quatro faixas, de 7,65% até 11% • Redutor: não existe • Aposentadoria complementar: no regime público é proporcionada pelos fundos de pensão criados pelas ex-estatais ou no âmbito de alguns ministérios como o da Previdência. Na esfera privada, algumas empresas estruturaram fundos de pensão para os seus empregados; e os bancos oferecem o “produto” previdência complementar em várias modalidades. • Teto salar ial : não existe para o funcionalismo

• Inativos: vão contribuir os servidores que ganham mais de R$ 1.058,00, mesmo critério da isenção do Imposto de Renda • Idade: para a aposentadoria dos servidores, a idade mínima passa a ser 55 anos (mulheres) e 60 anos (homens) • Teto: no INSS, será de R$ 2.400,00 • Tempo de serviço: fim da aposentadoria integral para os servidores que contem o tempo trabalhado na iniciativa privada como tempo de serviço para se aposentar. O tempo de serviço no regime do INSS entrará no cálculo da aposentadoria proporcionalmente, combinado com o tempo de contribuição para a previdência do setor público • Pensões: serão concedidas com base em 70% do valor do benefício do servidor aposentado, ou do salário do funcionário ativo. O governo criará lei com regras específicas para servidores que casem com pessoas mais jovens • Alíquotas: a mínima será de 11%, e serão padronizadas as alíquotas de contribuição hoje cobradas de funcionários ativos e, em alguns Estados, de inativos • Redutor: o benefício do servidor que se aposentar antes da idade mínima será diminuído em 5% por ano de trabalho que faltar para a idade mínima, até um limite de redução de 35%. O homem deverá ter 53 anos, no mínimo; a mulher, 48 • Aposentadoria complementar: será um alternativa ao PL-9, e o que o governo pretende é permitir a criação de fundos de pensão para futuros servidores • Teto salarial: para impedir a existência de elevadas aposentadorias e salários, o governo pretende regulamentar um teto, fixando um valor máximo para remuneração no serviço público. Assim, os Estados podem determinar subtetos. Esse é um item da reforma administrativa do governo FHC que não foi regulamentado.

PREJUÍZOS Sob o ponto de vista das finanças públicas, o impacto pode ser amplamente negativo, especialmente se a transição do sistema atual para o “novo” acontecer numa conjuntura de juros reais elevados, como hoje. Com a mudança, o sistema tradicional deixará de receber as contribuições dos servidores de maior renda, continuará bancando

os benefícios contratados no regime antigo, e ainda terá de contribuir para complementar as reservas dos novos fundos, lembra Laura Tavares Soares, doutora em economia do setor público pela Unicamp e pesquisadora do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ. No final, o prejuízo inicial, resultado da transição, será tão maior quanto mais altas forem as taxas de juros – e o Brasil é “campeão” mundial, há anos, nesta categoria. Belluzzo e Appy mostram que as perdas iniciais poderão superar os ganhos futuros esperados com a mudança do regime. Ou seja, ao contrário do que alegam os porta-vozes do governo e do mercado, as contas do setor público sairiam do processo mais avariadas do que antes. SUPERÁVIT “Trata-se de um reducionismo absoluto. Estão rompendo com a seguridade social”, afirma Laura. Um grande avanço conquistado na Constituição de 1988, acrescenta, foi exatamente definir fontes múltiplas de financiamento para o sistema de seguridade, que inclui os setores de saúde, assistência social e previdência. É por isso que a Previdência, hoje, não tem déficit. O orçamento da seguridade, ao contrário, mostra um superávit (receitas maiores do que despesas) de R$ 22,3 bilhões em 2002 e um saldo positivo acumulado, nos últimos três anos, de R$ 67,8 bilhões. “A seguridade, na verdade, está financiando a dívida do governo”, destaca Laura.

timava-se uma transferência para fundos de pensão privados de R$ 1,4 trilhão, no longo prazo, caso fosse feita a opção pelo modelo chileno. A princípio, os fundos foram criados como instrumentos para estimular o crescimento da poupança interna e o financiamento dos investimentos no setor produtivo a taxas mais baixas e prazos mais longos. Os ativos dos fundos privados, no País, aproximam-se de R$ 200 bilhões, mas não há evidências de que tenham influenciado os investimentos produtivos. ESPECULAÇÃO No Brasil, a indústria dos fundos fechados de previdência complementar (ou seja, ligados a uma empresa ou formados por trabalhadores de setores específicos)

movimenta investimentos superiores a R$ 170 bilhões, dos quais 55,2% (R$ 94 bilhões) estão aplicados em títulos públicos federais, ou papéis remunerados com base nas taxas de juros estabelecidas pelo governo federal. Na prática, financiam a especulação financeira, o que agrava seu caráter elitista, apontam Laura e Sara. A experiência do Chile e da Argentina apenas reforça as inconveniências de um sistema complementar privado.”As estimativas são de que a transição chilena custou aos cofres públicos cerca de 25% do PIB (algo correspondente a R$ 330 bilhões no Brasil), e só foi possível graças à disponibilidade de recursos do chamado Fundo do Cobre”, segundo Laura. Mais grave, a capitalização dos fundos

■ Filas quilométricas são um raio X do estado de penúria (os rendimentos gerados pelas aplicações financeiras e outros tipos de investimento) não é suficiente sequer para pagar a aposentadoria mínima (no caso chileno, 80% do salário mínimo), o que obr iga o gover no a

complementá-la. Na Argentina, o governo tem sido obrigado a recorrer aos fundos pr ivados para pagar os benefícios do sistema tradicional, que perdeu contribuintes depois da mudança, arremata Sara. LJ e JP

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

projeto de criação dos fundos de pensão corresponde a um retrocesso histórico, afirmam a economista Laura Tavares e Sara Granemman, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A idéia, diz Sara, é estabelecer um teto o mais rebaixado possível para abrir espaço para a comercialização da previdência como um serviço. “A reforma possui os mesmos ingredientes das outras privatizações feitas pelo governo anterior, com um diferencial: ela permite que se forme, em um prazo curto, um volume monumental de recursos”, afirma. Laura lembra que, em 1998, quando o governo FHC introduziu mudanças na Previdência, es-

Luciney Martins/Rede Rua

Fundo de pensão é retrocesso histórico

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NACIONAL

O governador Geraldo Alckmin promove o delegado Aparecido Calandra, ou “capitão Ubirajara“, denunciado por órgãos de defesa dos direitos humanos como torturador à época da ditadura; em Londrina (PR), a máfia dos combustíveis ameaça de morte uma jornalista da Globo

ESCÂNDALO

Jorge Pereira Filho, da Redação regime militar deixou um legado de truculência, repressão e violência para a história do Brasil. Foram, ao todo, 358 mortes. Naquela época, o delegado Aparecido Laertes Calandra atendia pelo codinome “Capitão Ubirajara” e comandava uma equipe de torturadores no DOI-Codi de São Paulo. O tempo passou, os militares perderam o poder, veio a democracia. Mas o que aconteceu com Calandra? Acaba de ganhar um prêmio: foi nomeado para um cargo de comando do Departamento de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo (Dipol), que o permite determinar, por exemplo, escutas telefônicas. A escolha de Calandra para o cargo não é obra do desconheciDOI-CODI – Órgão mento. Na semarepressivo da ditadura militar brasileira. na passada, o goSignifica vernador Geraldo Destacamento de Alckmin (PSDB) Operações de declarou à Folha Informações – Centro de Operações de de S. Paulo que “a Defesa Interna anistia vale para os dois lados”. O governador, ainda, perguntou: “Vamos ficar voltando ao passado a cada momento?”. DIANTE DOS FILHOS Para a ex-presa política Maria Amélia de Almeida Teles, esse passado está muito nítido em sua mente. “Estive presa por 50 dias no DOI-Codi e lá o Capitão Ubirajara tinha voz de comando, orientava e fazia sessões de tortura”, lembra. Maria Amélia esteve presa no final de 1973 e começo de 1974. Não foi sozinha para as celas. Marido, filhos e uma irmã grávida também ficaram juntos atrás das grades. “Meus filhos eram pequenos e assistiam às minhas sessões de tortura. Ficávamos semidespidos. O meu menor, que na época tinha quatro anos, me perguntava por que eu estava azul”. Maria Amélia, na verdade, estava rocha de tanto ter apanhado.

Certo dia, o Capitão Ubirajara levou um jornal para Mar ia Amélia. Estava escrito: “Terrorista morto em tiroteio”. A notícia refer ia-se à morte de Carlos Nicolau Danielle, militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B), amigo de Maria Amélia e preso no mesmo dia que ela. “Você pode virar uma manchete igual a essa. Aqui, nós damos a versão que queremos para a morte de vocês”, teria dito o Capitão Ubirajara. ASSASSINATO E ESTUPRO Há mais acusações na ficha do delegado Aparecido Laertes Calandra. Ele teria sido o responsável pelas torturas que culminaram na morte de Hiroaki Torigoe, aos 28 anos de idade. Calandra também é acusado de ter estuprado a noiva do mecânico Pierino Gargano, segundo o Projeto Brasil Nunca Mais — ampla pesquisa feita com base na microfilmagem de todos os processos de presos políticos no período de 1964 a 1978. “(...) O depoente, seu pai, sua irmã e sua noiva, foram seviciados, tendo sua noiva revelado ao depoente que tinha sido vítima de estupro por parte dos investigadores Ubirajara e Gaúcho (...)”, diz o depoimento prestado por Gargano em 1968. MANOEL E HERZOG Não é só. O Capitão Ubirajara é acusado de ser responsável pela morte do operário Manoel Fiel Filho. Além disso, foi Calandra quem telefonou à Política Técnica para informar que o jornalista Vladimir Herzog estava morto. “Ubirajara não era um torturador qualquer. Era o chefe da equipe C, uma das mais truculentas do DOI-Codi”, lembra ElziraVilela, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. Elzira, que esteve presa durante o regime militar, está indignada com a nomeação de Calandra para o cargo que ocupa. “Todas as vezes que você promove um torturador você promove a tortura”, diz.

Manoel Nascimento/Dips/Ag. O Globo

Torturador ganha chefia de polícia em SP Alckmin lava as mãos

■ Calandra confere droga antes de ser incinerada na Delegacia de Narcóticos, em São Paulo Elzira lembra que essa não é a primeira vez que tentam dar cargo de destaque a Calandra. “No ano passado, tentaram dar um cargo de chefia a ele, mas tiveram de tirá-lo por causa de pressão pública. Esse é o lado mais truculento do governo Alckmin”, afirma. A presidente do Tortura Nunca Mais refere-se à tentativa de nomear Calandra delegado responsável pela Divisão de Inteligência e Apoio Policia (Diap) do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc). “Muita gente teve a vida marcada por esse homem e ele está aí, ocupando um cargo de confiança. É um retrocesso”, avalia Elzira.

MOBILIZAÇÃO Diversas entidades de direitos humanos já se pronunciaram contra a manutenção do Capitão Ubirajara no cargo que ocupa. Uma comissão de 16 dessas entidades enviou carta aberta ao governador Geraldo Alckmin repudiando a nomeação do delegado e pedindo audiência para discutir o caso. Para o próximo dia 29, está marcado um ato na cidade de São Paulo, no Largo São Francisco. A idéia é fazer uma passeata até a secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, exigindo que Calandra saia do posto que ocupa.

A herança da ditadura militar dados referentes ao período entre 1964 e 1983 Mortos ............................................................................. 185 Desaparecidos no Brasil .................................................... 138 Desaparecidos na Argentina ................................................ 07 Desaparecidos no Chile ...................................................... 05 Desaparecidos na Bolívia .................................................... 01 Mortes no exílio ................................................................. 08 Outras mortes .................................................................... 14 Total de mortos ................................................................ 358 Fonte: Dos filhos deste solo, livro de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio. Fundação Perseu Abramo, 1999

PARANÁ

Jornalista é ameaçada de morte por máfia dos combustíveis BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

Dimitri Stein Valle, de Curitiba (PR)

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epois de ameaçar empresários e manter o maior preço da gasolina no Paraná, a máfia dos combustíveis de Londrina, no Norte do Estado, fez mais uma vítima. A jornalista Cristina Matos, repórter da TV Coroados, afiliada da Rede Globo, foi avisada de que estava marcada para morrer. Os recados foram dados em telefonema a sua casa, na sexta-feira, 11, e na madrugada de segunda-feira, 14. Nesse dia, um comboio formado por três automóveis promoveu arruaças em frente ao prédio onde a jornalista mora. Assim que ela foi vista na sacada para ver o que acontecia, um

homem saiu de um gol e berrou que ela seria assassinada em breve. Cristina foi obrigada a se esconder. Sua proteção está sendo bancada pelo departamento de jornalismo da Rede Paranaense de Televisão, controladora da emissora onde a jornalista trabalha. Ela virou o novo alvo da máfia por causa de um dos principais quadros dos telejornais da rede. Cristina informava onde eram encontrados os preços mais baratos do produto em Londrina. O projeto recebeu o apoio da Promotoria Especial de Defesa do Consumidor, que vem fechando o cerco à quadrilha, acusada de ameaçar de morte os próprios colegas de profissão que ousaram praticar a livre concorrência.

Em artigo assinado na Folha de S.Paulo, na sexta-feira, dia 18, o governador Geraldo Alckmin nega ter nomeado o ex-torturador Aparecido Laertes Calandra para um cargo de chefia da Polícia Civil de São Paulo. “Isso não é verdade. Não nomeei, não contratei, não promovi.” O tucano argumenta que Aparecido Laertes Calandra foi contratado por concurso público há 33 anos e há nove anos continua na mesma função de assistente.“Não tem cargo de chefe e apenas responde interinamente por uma área burocrática do departamento onde trabalha.” Diante dos pedidos de entidades de defesa dos direitos humanos para que demita o extorturador, Alckmin diz que não poderia fazê-lo, pois “demissão só se faz com processo judicial ou administrativo”. Segundo o governador, quem designa para a função de delegado é seu chefe imediato.“No caso,o delegado divisionário do Departamento de Inteligência da Polícia de São Paulo (Dipol). Não seria agora que eu acoitaria, ainda que indiretamente, alguém ligado à repressão e à tortura. Demitir o citado policial seria atropelar a lei”.

Desde o mês passado, cinco donos de postos foram parar na cadeia por prática de cartel. Só estão soltos graças a habeas corpus obtidos noTribunal de Justiça. O Ministério Público Estadual vem colhendo relatos pavorosos sobre a atuação da máfia. Numa cena típica de traficantes cariocas enfurecidos com a lei, um posto na zona Leste da cidade, na rua Maringá, que vendia gasolina abaixo do combinado, teve suas bombas abatidas a tiros. Os equipamentos pegaram fogo. Uma tragédia maior só não aconteceu porque as chamas consumiram apenas o combustível das mangueiras e não o que estava armazenado nos tanques subterrâneos. Apesar do terrorismo, a máfia vem dando sinais de que irá per-

der a guerra. A gasolina, encontrada há poucas semanas a R$ 2,37 o litro (o maior do Estado), já vem sendo comercializada a R$ 2,19. “Havia um alinhamento escandaloso de preços”, constata o promotor especial de Defesa do Consumidor, Miguel Sogaiar. O promotor determinou ao Grupo Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gerco) - formado por policiais e promotores - uma investigação para tentar descobrir quem foram os autores das ameaças à jornalista. “Essas ameaças não vão nos fazer parar de prestar um serviço à comunidade, que é o de informar onde está o menor preço”, garante o chefe de redação da TV Paranaense, Carlyle Ávila.

■ Justiça Juízes do DF são acusados de corrupção Dois juízes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) acusados de grilagem de terras e de envolvimento com um esquema de vendas de habeas corpus a traficantes, devem ser investigados a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Os presidentes do STF, Marco Aurélio de Mello, e da OAB, Rubens Approbato Machado, defendem uma apuração rigorosa sobre a conduta dos desembargadores Pedro Aurélio e Wellington Medeiros. Uma sindicância interna do TJ-DF relaciona o nome de Mello com traficantes de drogas e o de Medeiros com grilagem de terras.

■ Violência Relatório aponta abuso da polícia contra menor O 16º relatório da organização internacional Human Rights Watch (HWR) denuncia práticas abusivas dentro do sistema de detenção juvenil no Brasil, por parte da Polícia Militar e dos monitores responsáveis pela segurança interna dos centros. Realizado em 17 centros de detenção no Amapá, Amazonas, Maranhão, Rondônia e Pará, o estudo revela casos de agressão policial, dificuldade de acesso à justiça e à educação e negação de direitos previstos pela lei. Segundo a pesquisa, é no meio rural que ocorrem os maiores abusos e espancamentos.


Ano I ■ Número 7 ■ Segundo Caderno

Estados Unidos apertam o cerco à Síria Da Redação pós o banho de sangue no Iraque, George W. Bush está agora de olho na Síria.A declaração do presidente dos Estados Unidos, em 15 de abril, cinco dias após a tomada de Bagdá, não deixa dúvidas:“Acreditamos que haja armas químicas na Síria. O exemplo iraquiano mostra a seriedade com que queremos acabar com as armas de destruição em massa.” Ao mesmo tempo, Bush e seu capataz, o secretário de Estado

Colin Powell, já afirmaram que irão atrás de Sadam Hussein, onde ele estiver. Como por acaso, as Forças Armadas dos Estados Unidos divulgaram uma nota oficial em que apontam que há fortes indícios de que o ex-presidente iraquiano esteja na Síria. O presidente do país, Bachar al Assad, nega. A Casa Branca parece estar disposta a controlar todos os pontos estratégicos do Oriente Médio e os argumentos são as mesmas ameaças sem fundamento que deram início à invasão do Iraque. Os governo da Inglaterra e da Hussein Malla/Associated Press/AE

A pretexto de caçar Sadam Hussein, a Casa Branca ameaça agora invadir a Síria, como parte de sua estratégia de recolonização do Oriente Médio; no Iraque, os muçulmanos xiitas aparecem como principal força de oposição aos planos de Bush e convocam novas manifestações contra o império estadunidense

■ Iraquianos protestam diante da mesquita Abu-Hanifa, em Bagdá

Austrália, que apóiam os ataques estadunidenses, já comunicaram que a Síria não tem as tais armas de destruição em massa - que, por sinal, o Iraque também não possuía - e que não se sabe o real paradeiro de Sadam. A Síria, entretanto, tem três coisas que despertam a ira de Bush: o controle das Colinas do Golã, o não-reconhecimento do Estado de Israel e a inflexível posição de Assad em não compactuar com a ordem planetária que a Casa Branca quer impor. O presidente sírio declarou que não pretende se submeter à pressão estadunidense e que as ameaças de Bush são sem fundamento. Ele também disse que não possui armas de destruição em massa, mas que defende um acordo para desarmar o Oriente Médio, em especial Israel, que tem o maior arsenal militar da região. Ariel Sharon, o primeiro-ministro israelense, aplaude de pé as ameaças de Bush a Assad. Aliado histórico dos Estados Unidos, espera que sobre algo para seu governo numa possível invasão da Síria. Em entrevista ao jornal israelense Yediot Aharonot, Sharon afirmou que os serviços de inteligên-

INTERNACIONAL

BRASILDEFATO

cia de Israel têm provas de que a Síria possui armas químicas e que se dispõe a participar de uma ofensiva contra o país. Os Estados Unidos, em contrapartida, nomearam um amigo íntimo de Sharon, o general Jay Colinas do Golã – Garner, para comanárea estrategicamente dar o governo colosituada na fronteira nial do Iraque. entre Israel e Síria. É uma região rica em O plano de Bush lençóis freáticos, conta com o apoio responsável por mais do Congresso estade 30% do dunidense, que estusuprimento de água da impor sanções de Israel econômicas e diplomáticas à Síria. Um dos defensores das medidas, que conta com apoio de democratas e republicanos na Câmara e no Senado, é o deputado democrata Eliot L. Engel. Para Engel, “o engajamento em programas de armas de destruição em massa e mísseis balísticos pela Síria ameaça a segurança do Oriente Médio e os interesses de segurança nacional dos Estados Unidos”. Para o senador republicano Rick Santorum, a Síria é “um ator que desempenha um papel muito ruim”, o que a coloca sob a mira dos Estados Unidos.

Xiitas são a principal força de oposição “Convoco os iraquianos a se reunirem em Karbala, contra qualquer tipo de dominação estrangeira e para apoiarem um governo iraquiano que proteja a liberdade, a independência e a justiça para todos”. A convocatória, para terça–feira, feita pelo aiatolá Mohammed Baquir al Hakim, líder do Conselho Supremo para a Revolução

Islâmica no Iraque (CSRII), é mais uma demonstração de força da comunidade xiita. Os xiitas, que formam a maioria entre a população islâmica do Iraque, Irã, Líbano, Bahrain e do Leste da Arábia Saudita (veja o mapa), começam a aparecer como os principais opositores dos Estados Unidos no Iraque. No dia 15, seus principais líderes boicotaram uma reunião organizada pelos Estados Unidos para traçar o futuro político do país. O encontro apro-

vou uma declaração de 13 pontos, defendendo uma democracia federativa e a dissolução do partido de Sadam, o Baath. Em entrevista publicada em 27 de março no jornal libanês As Safir, o presidente sírio Bachar al Assad previu que os Estados Unidos poderiam terminar por descobrir que a vitória no Iraque traria problemas enormes. “Não há dúvidas de que os Estados Unidos são uma superpotência capaz de conquistar um país relativa-

mente pequeno”, disse Assad. “Mas será que os estadunidenses serão capazes de controlá-lo?” Multiplicam–se pelo país os protestos contra a ocupação. Em Mossul, pelo menos vinte manifestantes foram assassinados pelos soldados estadunidenses. Ninguém sabe ao certo quantos morreram ou foram feridos como resultado da invasão. O Pentágono recusa–se a fornecer dados. Segundo informações do governo iraquiano, antes de cair, dia

O “barril de pólvora” agitado pela invasão do Iraque Israel

Líbano

● Capital: Telaviv ● Área: 20.700 km2 ● População: 6,2 milhões (2000) ● Línguas: hebraico (oficial), árabe ● Regime: parlamentarismo ● Moeda: shekel novo ● Religiões: judaísmo 80,6%, islamismo 14,6% (maioria sunita), cristianismo 3,2%, drusos 1,6% (1997) ● Composição: judeus nativos israelenses (41%) e europeus, estadunidenses, africanos e médio-orientais (40%), árabes 19% (1996)

● Capital: Beirute ● Área: 10.400 km2 ● População: 3,3 milhões (2000) ● Línguas: árabe (oficial), francês, curdo, armênio ● Regime: república parlamentarista. ● Moeda: libra libanesa ● Religiões: islamismo 55,5% (xiitas 34%, sunitas 21,5%), cristianismo 37,3% (católicos 25,1%, ortodoxos 11,7%, protestantes 0,5%), drusos 7,2% (1995) ● Composição: árabes libaneses 80%, árabes sírios 17,5%, árabes palestinos 1,5%, curdos e armênios 1% (1996)

Síria ● Capital: Damasco ● Área: 185.180 km2 ● População: 16,1 milhões (2000) ● Línguas: árabe (oficial), curdo ● Regime: república presidencialista ● Moeda: libra síria ● Religiões: islamismo 86% (sunitas 74%, xiitas 12%), cristianismo 8,9%, drusos 3%, outras 2,1% (1992) ● Composição: árabes sírios 90%, curdos 5,9%, circassianos, turcos e armênios 4,1% (1996)

Turquia ● Capital: Ancara ● Área: 779.452 km2 ● População: 66,6 milhões (2000) ● Línguas: turco (oficial), curdo ● Regime: república parlamentarista ● Moeda: lira turca ● Religiões: islamismo 99,8% (sunitas 80%, xiitas 19,8%), cristianismo 0,2% (1994) ● Composição: turcos 80%, curdos 18%, árabes 1,5%, outros 0,5% (1996)

Palestina ● Capital: Não reconhecida pela ONU ● Área: 11.573 km2 ● População: 2,9 milhões (1996) ● Línguas: árabe (oficial) ● Regime político: presidencialismo ● Moeda: libra palestina (não em circulação) ● Religiões: cristianismo, islamismo, judaísmo ● Composição: palestinos 90%, árabes 10% (1996)

Arábia Saudita ● Capital: Riad (sede do reinado) ● Área: 2.153.168 km2 ● População: 21,6 milhões (2000) ● Línguas: árabe (oficial) ● Regime:monarquia islâmica (reinado) ● Moeda: rial saudita ● Religiões: islamismo 98,8% (sunitas 95,5%, xiitas 3,3%), cristianismo 0,8%, outras 0,4% (1980) ● Composição: árabes sauditas 50%, outros árabes 40%, afro-asiáticos 10% (1996)

3, as baixas civis seriam de 1.254 mortos e 5.112 feridos. Isso sem contar as mortes ocorridas nos hospitais. Por enquanto, o número mais exato de baixas civis é oferecido pela organização Projeto de Contagem de Mortos no Iraque (www.iraqbodycount.net). No total contabilizado depois de 26 dias de combate (até quinta-feira, dia 17) havia no mínimo 1.631 e no máximo 1.887 civis mortos. Com agências internacionais

Iraque ● Capital: Bagdá ● Área: 434.128 km2 ● População: 24 milhões (2000) ● Línguas: árabe (oficial), curdo ● Regime: inexistente ● Moeda: dinar iraquiano ● Religiões: islamismo 97% (xiitas 62,5%, sunitas 34,5%), cristianismo 2,7%, outras 0,3% (1994) ● Composição: árabes iraquianos 80%, curdos 15%, turcomanos, sabeus, iezites e marches 5% (1996)

Kuait ● Capital: Cidade do Kuait ● Área: 17.818 km2 ● População: 2 milhões (2000) ● Línguas: árabe (oficial) ● Regime: monarquia islâmica (emirado) ● Moeda: dinar kuaitiano ● Religiões: islamismo 85% (sunitas 45%, xiitas 30%, outros 10%), católicos 15% (1995) ● Composição: árabes kuaitianos 31,5%, outros árabes 48,5%, sul-asiáticos 9%, iranianos 4%, outros 7% (1996)

Irã

Turquia Líbano Síria Israel Iraque Palestina Jordânia

Irã Kuait

Arábia Saudita

Jordânia ● Capital: Amã ● Área: 97.740 km2 ● População: 6,7 milhões (2000) ● Línguas: árabe (oficial) ● Regime: monarquia parlamentarista ● Moeda: dinar jordaniano ● Religiões: islamismo 92% (sunitas), cristianismo 8% (1995) ● Composição: árabes palestinos 60%, árabes jordanianos 37,7%, circassianos 1%, armênios 1%, chechênios 0,3% (1996)

● Capital: Teerã ● Área: 1.648.196 km2 ● População: 67,7 milhões (2000) ● Línguas: persa (oficial), turco, curdo, árabe ● Regime: república presidencialista ● Moeda: rial iraniano ● Religiões: islamismo 99,1% (xiitas 93,4%, sunitas 5,7%), bahaísmo 0,6%, cristianismo 0,1%, zoroastrismo 0,1%, judaísmo 0,1% (1991) ● Composição: iranianos 66%, azeris 20%, curdos 5%, árabes 4%, lures 1%, outros 4% (1996)

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

Paulo Pereira Lima, da Redação

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INTERNACIONAL

O Brasil deve participar da reconstrução do Iraque, afirma o ministro Furlan, para a alegria de empresários brasileiros que lucram com a invasão; Emir Sader: imperialismo multiplica guerras para enfrentar crise de superprodução, conquistar territórios e controlar reservas de petróleo

AGRESSÃO IMPERIALISTA

Brasil disputa espólio do Iraque Paulo Pereira Lima, da Redação secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Snow, deve chegar em breve ao Brasil, trazendo na mala o convite para o país participar da reconstrução do Iraque. A proposta está sendo feita a mais de 60 países, que deverão ajudar na reforma de pontes, rodovias, prédios e no recrutamento de profissionais de saúde para cuidar das vítimas no Iraque. O governo brasileiro parece estar interessado na proposta. No dia 9, o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, já tinha afirmado que o país iria pleitear, junto às Nações Unidas, a participação em projetos de construção, serviços, engenharia e habitação no Iraque arrasado. Como a ONU está longe de assumir algum tipo de poder na

nova colônia estadunidense, só resta tratar com os governantes de fato, representados por Snow. O ministro, que falou durante o almoço de lançamento do Fórum Nacional da Indústria, não foi desautorizado por ninguém do governo.

“Não creio que os Estados Unidos, embora queiram reservar o filé, queiram ficar com toda a carne.” Também defende a mesma tese o ex-ministro de Relações Exteriores do governo Fernando Henr ique, Luiz Felipe Lampreia, hoje presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Em palestra a empresários no Hotel Maksoud

(www.midiaindependente.org). Soldados britânicos e estadunidenses estão usando calçados especiais e uniformes produzidos por empresas mineiras, paulistas e paranaenses.

Plaza, em São Paulo, disse: “Não creio que os Estados Unidos, embora queiram reservar o filé, queiram ficar com toda a carne.” E continuou:“O Brasil já possui boas relações com países do Oriente Médio, por exemplo, na área de frangos, carnes, na qual já temos a prática de cortar os animais abatidos segundo os rituais religiosos deles, óleos vegetais, grãos e na área de construção”. Por coincidência, na mesma semana em que Furlan e Lampreia falavam de negócios no Iraque destruído pela guerra, o conflito foi o grande ausente do discurso do presidente Lula, em cadeia nacional de rádio e de televisão, sobre seus cem dias de governo, conforme observou o cientista político Emir Sader. Já existem empresas brasileiras se beneficiando com a invasão do Iraque, segundo informou o Centro de Mídia Independente

LUCRO VEM PRIMEIRO Segundo Luís Fernando Malta, gerente da fábrica mineira de calçados Marluvas, as exportações têm crescido bastante desde alguns meses antes do início da agressão imperialista. A empresa exporta 5% de sua produção diária de 15 mil calçados para os exércitos britânico e estadunidenses. Malta diz que a empresa é totalmente contra o ataque ao Iraque e que se sente mal ao saber que seus produtos estão sendo usados para cometer atrocidades, mas ao mesmo tempo afirma que a Marluvas não pode deixar de aproveitar esta oportunidade de gerar re-

cursos para o Estado e lucro para a própria empresa. Outra fabricante de calçados especiais, a Ar royo, do pólo calçadista de Franca, no interior de São Paulo, exporta coturnos apropriados para combates no deserto a um fabricante fornecedor do Exército dos Estados Unidos. A Pic do Brasil, uma subsidiária da indústria estadunidense, está promovendo um consórcio com empresas brasileiras para a exportação de calças e jaquetas impermeáveis para os Estados Unidos. A empresa não revela dados dessa operação, mas a Doca Confecções, de Formiga (MG), revelou ter produzido 20 mil peças que foram exportadas para o Pentágono entre setembro de 2002 e janeiro deste ano. Colaborou Luís Brasilino, de São Paulo (SP)

ANÁLISE

Sava Radovanovic/AP/AE

Império cria guerras para enfrentar a crise

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

Emir Sader, do Rio de Janeiro (RJ)

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á quase um século, Lenin anunciava que o capitalismo entrava na sua fase imperialista. Isso implicava, entre outras conseqüências, que as grandes potências passavam a lutar militarmente entre si para conquistar territórios. As duas grandes guerras foram isto: disputas sangrentas pela apropriação de países e regiões. O pai do atual presidente dos Estados Unidos tinha anunciado, depois da primeira guerra do Iraque, que surgia uma nova ordem mundial. Esta deveria ser de paz, de convivência harmoniosa entre os vencedores da guerra fria e de desenvolvimento econômico na globalização. Uma década depois, vivemos a perigosa combinação entre recessão econômica mundial e políticas de guerra, num clima que - ao contrário do que afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - o imperialismo está mais vivo e agressivo do que nunca. O governo atual dos Estados Unidos assume expressamente que são uma potência imperial, mas que, por haver - segundo a sua nova doutrina estratégica - países e zonas do mundo que não conseguiriam se autogovernar, eles atuariam como uma espécie de “império do bem”, que tutelaria governos de fora para dentro. A segunda guerra do Iraque foi - na continuidade da guerra contra o Afeganistão - a colocação em prática dessa política imperial. Ela significa não apenas as intervenções localizadas e temporais do imperialismo no século 20 - a dominação imperialista era mais econômica, financeira e ideológica do que de ocupação territorial - mas também uma estratégia de invasão e de tentativa de exportação da democracia liberal e da economia capitalista de mercado para o conjunto do Oriente Médio. Os Estados Unidos se instalaram no coração do Oriente Médio, praticamente cercando a Arábia Saudita, a Síria, o Irã, a Jordânia, nem sequer necessitan-

demonstração de força e do unilateralismo exacerbado do governo Bush. Voltamos a um período de guerra em escala mundial. Não de guerra aberta, mas tampouco de guerra fria apenas. Os governo Bush coloca a coerção física como tema central, fazendo com que os governos, partidos e movimentos

que se oponham tenham de colocar também a luta pela paz e as formas de fazê-lo como tema central. Não haverá outro mundo possível sem o enfraquecimento e finalmente a derrota da estratégia imperial norte-americana, inscrita no coração da dinâmica do capitalismo mundial na atualidade.

Teste os seus conhecimentos (e se prepare para uma surpresa) Complete o seguinte texto:

■ Jovens gregos contra a pax americana, dia 16, em Atenas do do apoio de um país como a Turquia para novas aventuras na região, e contando que talvez nem necessitem de novas invasões para que outros governos se convençam de que tenham de ceder às posições estadunidenses.

Voltamos a um período de guerra em escala mundial. Não de guerra aberta, mas tampouco de guerra fria apenas O imperialismo tem uma tendência expansiva, proveniente do funcionamento do capitalismo, que é movido a crises. Sua crise atual, por exemplo, é mais uma clássica crise de superprodução, em que vastas

quantias de capitais ficam disponíveis, sem condições de investimento por falta de mercado consumidor. As guerras sempre foram um apoio a esse tipo de crise, mas, além disso, na atualidade, se somam temas como o acesso ao petróleo, quando os Estados Unidos têm dificuldades, por produzir apenas 40% do que consomem e por terem dificuldades na relação com seus maiores abastecedores - Arábia Saudita e Venezuela. Além disso, as outras corporações fundamentais no governo Bush são as da indústria de armamento, que encontram na política belicitas dos Estados Unidos um campo fértil para atrair invesimentos. Ao que se agrega a necessidade estadunidense de demonstrar na prática até onde está diposta a fazer uso de sua superioridade militar, para neutralizar seus aliados europeus incomodados, mas que terminarão se reaproximando, diante da

No dia ..... (a) de setembro de ..... (b) uma explosão destruiu ...... (c). A responsabilidade de tal ato não foi fixada com precisão até hoje, mas os ..... (d) acusaram imediatamente a ..... (e). A civilização ocidental está pronta para ser submetida a outra grande prova da sua capacidade de sobreviver ao desastre. Mais uma vez, o mundo marcha para a guerra. Os líderes mundiais não atentaram nas lições da terrível provação da última guerra e sucumbiram às tentações do poder e da cobiça. Uma das principais causas da guerra foi a adoção de uma política isolacionista pelos Estados Unidos, que não aceitaram as resoluções da ....... (f). Muitos acreditam que a posição estadunidense é obra exclusiva dos reacionários ferrenhos e dos nacionalistas impenitentes. Espalha-se pelo mundo a convicção de que Tio Sam fora meter-se no que não era da sua conta. A política da Inglaterra com respeito à manutenção da paz é quase que o oposto da política francesa. Separados do resto da Europa pelo Canal da Mancha, os ingleses não se sentem levados a se preocupar tanto com a segurança nacional. A política partidária americana também desempenhou papel considerável no caminho para a guerra. As eleições de outubro de ...... (g) foram vencidas pelos republicanos. Embora um análise posterior demonstrasse que a maioria do eleitorado havia votado nos democratas, os votos estavam distribuídos de tal maneira que os republicanos ganharam o controle tanto do Senado quanto da Câmara. Foram feitas diversas tentativas para salvar a paz. Importantes intelectuais, através de artigos no New York Times, desafiavam o governo estadunidense a aceitar a proposta francesa. Todas as tentativas de desarmamento fracassaram. Começou a correr o mundo a idéia de uma guerra preventiva. ...... (h) anunciou que as operações militares haviam começado. Como justificativa, alegava que ...... (i) já havia mobilizado e cometido atos hostis contra ...... (j) e que a “bárbara perseguição” contra homens, mulheres e crianças ...... (l) já não podia ser tolerada por uma grande nação. Se você respondeu: (a) 11, (b) 2001, (c) o World Trade Center, (d) Estados Unidos, (e) Al Qaeda, (f) ONU, (g) 2000, (h) George W. Bush, (i) o Iraque, (j) os Estados Unidos e (l) iraquianas Parabéns: você acertou. Mas, poderia ter respondido: (a) 18, (b) 1931, (c) Estrada de Ferro da Manchúria Meridional, (d) japoneses, (e) China, (f) Liga das Nações, (g) 1918, (h) Hitler, (i) a Polônia, (j) a Alemanha e (l) alemãs.


CUBA

Beto Almeida, de Brasília (DF) m visita ao Brasil a convite do Congresso Nacional, na semana passada, o deputado Jayme Combret, vice-presidente da Asssembléia Nacional do Poder Popular de Cuba, refutou as críticas que Cuba recebeu, por ter castigado três cidadãos cubanos com a pena capital, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Combret lembra que há uma guerra permanente contra Cuba, vítima sistemática de atentados organizados a partir de Miami, com o apoio das autoridades dos Estados Unidos - e que já custaram a vida de mais de 3500 cubanos.“Mais vítimas do que na ocupação do Iraque”. As condenações, ele explica, resultam da aplicação de leis cubanas criadas “para que o país pudesse se defender do terrorismo”. Combret ressalta que houve julgamentos, em tribunais normais, com a participação de advogados de defesa. “Os réus puderam apelar das sanções. E foram condenados pelas leis aprovadas por nosso congresso com o intuito de defesa frente a um inimigo tão poderoso.”

Assunção Costa/Agência Senado

Líder parlamentar justifica pena capital

INTERNACIONAL

Em visita ao Brasil, vice–presidente do parlamento cubano explica as razões que levaram o regime a executar três cidadãos acusados de espionagem e terrorismo; na Argentina, eleições jogam água fria nas mobilizações; Venezuela lembra um ano do fracasso do golpe contra Chávez

Para explicar o seu ponto de vista, Combret retoma o período histórico inaugurado pela queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989. Os Estados Unidos, diz ele, acreditaram que havia chegado o momento histórico de asfixiar totalmente a revolução cubana e intensificaram sua hostilidade. Nos últimos anos, segundo ele, intensificaram-se os atentados contra áreas da economia de Cuba que podem representar um alto desenvolvimento, como é o caso do turismo: há sabotagem contra aviões civis cubanos para desestimular o turismo. MÁFIA NO PODER Segundo o deputado, a máfia cubana de Miami contribuiu financeiramente e de outros modos com a eleição de George Bush. Em reciprocidade, mais de 20 altos funcionários do governo estadunidenses são de origem cubana, incluindo Otto Reich, assessor da Casa Branca para a América Latina. “Entre outras medidas, recrudesceram a lei do Ajuste Cubano, vigente desde 1966, pela a qual todo cubano que chegar legal ou ilegalmente aos Estados Unidos, ainda que seja um seqüestrador de avião ou de embarcação, pode

■ Jayme Combret (ao centro) mantém encontro com os senadores Eduardo Suplicy e Paulo Paim permanecer em território estadunidense, com direito a residência, trabalho e ajuda econômica.” Do ponto de vista cubano, essa lei estimula as saídas ilegais de Cuba e reforça a imagem do fracasso da revolução. Além disso, as fugas da ilha têm resultado na morte de milhares de pessoas que enfrentam condições perigosas para fazer a travessia entre os países. Combret lembra ainda que existem grupos de mercenários e trai-

dores cubanos financiados, organizados e estimulados pela máfia de origem cubana, estabelecida em Miami. Cuba conseguiu infiltrar agentes especializados em muitas dessas organizações e obteve provas das ações terroristas. Recentemente houve dois seqüestros de aviões. Primeiro, os Estados Unidos liberaram os cúmplices; depois, mediante fiança, liberaram os seqüestradores. Mais tarde, houve uma tenta-

tiva de seqüestro de uma embarcação com mulheres, crianças e turistas. Como faltou gasolina, o barco teve de regressar a Cuba para reabastecimento, o que deu margem para o seqüestro ser dominado.Todos os seqüestradores tinham antecedentes criminais, haviam participado de atentados terroristas. Veja, na seção Debate, pág. 14, as avaliações do sociólogo Emir Sader e do escritor Eduardo Galeano

ARGENTINA

Eleições esfriam mobilização popular e outros partidos de esquerda (Partido Comunista Revolucionário, Partido dos Trabalhadores Socialistas, Pátria Livre, entre outros), movimentos piqueteiros, assembléias, que estão convocando a não votar ou a anular o voto. Claramente, o menu principal para o 27 de abril apresenta versões diversas do mesmo modelo: dieta obrigatória para os pobres. Que aliás se mobilizaram no sábado da semana anterior, dia 12, numa passeata de milhares de pessoas em Buenos Aires contra a adesão à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e na II Assembléia Nacional Argentina de Luta Contra a Alca (veja o box ao lado).

DIVISÃO NA ESQUERDA Dentro da esquerda e centroesquerda, as propostas se fragmentaram entre os que optaram por apresentar candidaturas, como a Esquerda Unida (Partido Comunista e Movimento Socialista dos Trabalhadores), o Partido Operário, algumas correntes socialistas, e os que decidiram boicotar as eleições. Entre esses últimos estão a corrente liderada pelo deputado socialista Luis Zamora (que será candidato nas eleições em Buenos Aires em 8 de junho),

■ Faixa traduz a frustração dos argentinos com os políticos

Milhares marcham contra a Alca Milhares de pessoas fizeram passeatas, em Buenos Aires, no dia 12, contra a adesão à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e contra a guerra no Iraque. A concentração foi diante do Congresso e dali os manifestantes partiram para a Praça de Maio. Entre eles estavam participantes da II Assembléia Nacional Argentina de Luta Contra a Alca, encerrada no domingo. Participou da assembléia o Movimento Camponês de Santiago del Estero (Mocase,Argentina), que denunciou os métodos de negociação da Monsanto, transnacional apontada como vanguarda da Alca. Segundo o Mocase, a Monsanto faz um contrato leonino de financiamento vinculado à taxa do dólar. Como o contrato envolve a hipoteca das terras, e não pode ser pago com maquinário e outros bens, o resultado é que dezenas de milhares de famílias camponesas argentinas, não organizadas em entidades, estão perdendo suas terras. São 110 mil famílias endividadas e 170 mil já totalmente falidas, que estão perdendo suas terras e engrossam o êxodo rural. (CK)

VENEZUELA

Apoio do povo dá novo fôlego a Chávez Laura Cassano, de Caracas

Claudia Korol

o próximo domingo, dia 27, serão realizadas eleições presidenciais na Argentina, convocadas pelo presidente Duhalde após o assassinato de Darío Santillán e Maximiliano Kosteski (piqueteiros do Movimento de Trabalhadores Desempregados Aníbal Verón), em 26 de junho de 2002. A convocação antecipada das eleições, e seu desdobramento em um sem-número de datas diferentes em que se decidirão as provinciais e municipais (em 27 de abril só se votará para presidente e vice), teve o objetivo de esfriar o clima de mobilização crescente que exigia “que todos vão embora”. Três candidaturas de origem peronista e três de origem no Partido Radical dão conta da crise do projeto bipartidário em que se reorganizou o país no fim da ditadura. O campo da oposição mais avançada dividiu-se entre várias candidaturas e convocações à anulação do voto. São indicações da falta de alternativas, no plano eleitoral, que expressem o movimento popular surgido nas jornadas de 19 e 20 de dezembro de 2001. Os candidatos com maiores possibilidades defendem a mesma

política adotada nos últimos anos. Segundo indicam as pesquisas de intenção de voto, não há uma tendência determinante: todas as candidaturas estão abaixo dos 20% das preferências. Kirchner (candidato de Duhalde), encabeça o menu de opções, com 18,9%; seguido por Menem, com 16,8%, e Adolfo Rodríguez Saá,com 15,6%. Esses três candidatos provêm do peronismo, e tiveram altas responsabilidades na aplicação das políticas que conduziram à destruição da Argentina. Seguem-se nas intenções de voto três candidatos provenientes do radicalismo: Elisa Carrió, com 12,9%; Ricardo López Murphy, com 9,8%, e, com menos ainda, aparece Leopoldo Moreau.

pós um ano da tentativa frustrada de golpe contra o presidente democraticamente eleito Hugo Chávez, a oposição perde força e uma série de iniciativas faz avançar o processo de recuperação pós-sabotagem. Durante o Encontro Mundial de Solidariedade com a Revolução Bolivariana, na semana passada, em Caracas, intelectuais discutiram com o povo temas como soberania popular, os efeitos do golpe. Entre as propostas práticas, esteve o anúncio da criação de uma nova central sindical.A maior central dos trabalhadores do país, a CTV (Central dos Trabalhadores da Venezuela), teve como líder, durante décadas, o empresário Carlos Ortega – um dos articuladores do golpe . O objetivo é que

na nova organização as decisões sejam tomadas pelos trabalhadores, não pelos chefes. Se o apoio das classes populares – 80% da população – ao governo é maciço, o mesmo não acontece entre a classe média-alta. No entanto, surgiu, em novembro do ano passado, o movimento Classe Média em Positivo. Jesús López, seu participante, diz que o objetivo é “mostrar que a adesão da classe média ao governo está aumentando, apesar da mídia”. Aqui, os militares vêm, em sua maioria, de classes muito humildes. Isso cria uma certa tendência para que optem por defendê-las. A escritora chilena Marta Harnecker explicou que se trata de uma integração entre civis e militares nunca antes vista. Depois do fracasso do golpe, as elites se articularam, em novembro do ano passado, para uma gre-

ve geral.“O objetivo era paralisar a PDVSA (Petroleos deVenezuela Sociedade Anónima)”, conta Gustavo Ramos, gerente de informação da empresa. CONTRA A SABOTAGEM Como solução, Chávez despediu grevistas – 40% dos funcionários.Antes, a proporção de executivos e trabalhadores era meio a meio. “Com a reformulação, houve uma horizontalização da estrutura” ,afirma José Ávila, gerente de telecomunicação. A recuperação da PDVSA surpreendeu especialistas internacionais, que disseram que seriam necessários 100 meses para a recuperação de 40% da produção. “Mas, em menos de dois meses, a produção teve um aumento proporcional de 100%”, conclui Gustavo Ramos, gerente de informação.

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Claudia Korol, de Buenos Aires

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ÁFRICA AFRICA

Eleição na Nigéria desafia conflitos as primeiras eleições nacionais totalmente organizadas por civis depois de quase 30 anos de ditadura, a Nigéria parece ter superado as previsões de que se transformaria num campo de guerra durante o pleito. O maior temor era de que os partidos de oposição boicotassem as eleições do último sábado (19/4), quando 61 milhões de nigerianos iriam às urnas para escolher o novo presidente do país e os governadores de seus 36 Estados. Quarta-feira passada, 12 partidos de oposição anunciaram em Abuja (capital) que rejeitavam os resultados do pleito realizado em 12 de abril (primeira etapa das eleições gerais) para senadores e deputados, que dava esmagadora vitória ao Partido Democrático do Povo (PDP), do atual presidente Olusegun Obasanjo, candidato à reeleição. OBASANJO FAVORITO Até aquela data, 287 das 360 cadeiras da Câmara já tinham sido definidas: 170 delas ficaram com o PDP, enquanto o Partido de Todos os Povos da Nigér ia (ANPP), o maior da oposição, conseguira apenas 81. O principal rival de Obasanjo para a presidência, Muhammadu Buhari, que é do ANPP, liderou a reunião dos 12 partidos de oposição que alegaram irregularidades na apuração e contagem de votos. Mas todos se comprometeram a não boicotar as votações para presidente e governadores. As expectativas de reeleição de Obasanjo cresceram muito a partir da divulgação dessas parciais das eleições legislativas. A eleição na Nigéria é dividida em três etapas. A última será no dia 3 de maio,

quando serão escolhidos os representantes das assembléias locais. Apesar de alguns casos de violência registrados em algumas partes do país, as eleições têm sido consideradas tranqüilas por observadores internacionais e pelo atual governo. Em pronunciamento à TV na semana passada, o presidente Obasanjo congratulou o povo nigeriano por votar em uma atmosfera de “liberdade e justiça”. Disse também que o sucesso das eleições são um testemunho de que a Nigéria está pronta para uma democracia permanente. Em Warri, região mais volátil do país, houve confrontos entre militares e combatentes da etnia Ijaw. Jovens militantes queimaram cabines e urnas de votação. A região petrolífera de Warri, no delta do rio Níger, é palco de confrontos entre as etnias rivais Ijaw e Itsekiri. Os dois grupos disputam representação política nos partidos e parte nas indenizações por desastres ambientais provocados pelas multinacionais do petróleo Shell e Texaco. Desde o início do ano, morreram dezenas de combatentes dos dois lados no conflito. Nos últimos quatro anos, estima-se que 10 mil pessoas tenham morrido em conseqüência de conflitos étnicos, religiosos e políticos. Nigéria ● ●

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Localização: África ocidental Principais cidades: Abuja (capital) e Lagos (capital comercial) Línguas: inglês (oficial), haussa, ibo, ioruba, dialetos diversos Divisão política: 36 Estados Regime político: república presidencialista Moeda: naira Religiões: islâmica, protestante, católica e animista Curiosidades: país mais populoso da África, com 120 milhões de habitantes; sétimo produtor de petróleo do mundo

■ Eleitores votam no distrito de Ewekoro, no sudeste da Nigéria

Quem são os candidatos à presidência Desde sua independência do Reino Unido, em 1960, a Nigéria experimentou mais de 28 anos de regime militar e 10 golpes de Estado, dos quais seis bem-sucedidos. Os dois principais candidatos à presidência são ex-militares ligados ao período da ditadura. Olusegun Obasanjo é um general (cristão e do Sul), que dirigiu o país à frente de uma junta militar entre 1976 e 1979, quando entregou o poder a um presidente civil, Shehu Shagari, que foi derrubado em 1983 por um golpe militar liderado por Buhari. Este, por sua vez, foi afastado do poder pelo também general Ibrahim Babangida. O tam- ■ Obasanjo (à esq.) ao lado de Thabo Mbeki, bém general Buhari é muçulmano e do Norte. presidente da África do Sul Os dois abandonaram as Forças Armadas para se dedicarem à política. Em 1999, a eleição de Obasanjo encerrou 15 anos de regime militar na Nigéria. As eleições deste ano são consideradas uma prova da continuidade da democracia no país.

CHADE

NÍGER

Fela Kuti: uma das maiores estrelas da música nigeriana, Fela Anikulapo Kuti nasceu em 1938. Era músico e compositor. Criou letras de resistência e conscientização política, voltada para a idéia do pan-africanismo (solidariedade entre países africanos). Influenciou

compensação por danos à saúde dos Ogoni e pelos derramamentos de óleo que causaram poluição ambiental e destruíram o solo antes fértil do delta do Níger. Em janeiro de 1993, ele reuniu 300 mil Ogonis numa marcha pacífica para exigir participação nos lucros do petróleo e alguma forma de autonomia política. Ken Saro-Wiwa foi executado em novembro de 1995, por enforcamento, juntamente com outros 8 líderes Ogoni, depois de ser julgado pelo ditadura militar por “incitamento ao crime”. (MF)

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Ken Saro-Wiwa: político, dramaturgo, produtor de TV e ativista dos direitos humanos, Ken SaroWiwa foi presidente do Movimento pela Sobrevivência do Povo Ogoni (Mosop), uma organização criada para defender os direitos humanos e ambientais do povo Ogoni, que vive no delta do rio Níger. Durante 17 anos, SaroWiwa liderou protestos contra as multinacionais do petróleo, como Shell e Texaco, por conivência com o regime militar do falecido general Sani Abacha. No governo de Abacha, houve milhares de violações dos direitos e assassinatos do povo Ogoni. Nos anos 90, ativistas Ogoni, os primeiros a protestar contra a distribuição desigual dos lucros do petróleo na Nigéria, exigiram bilhões de dólares de participação nos lucros das ■ Ken Saro-Wiwa, enforcado pelo empresas petrolíferas e regime nigeriano em 1995

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CAMARÕES

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Warr Port Harcourt

Golfo da Guiné

Calabar Bonny

Portos Principais

Caldeirão de etnias explodiu em Biafra Arquivo Nigrizia

Wole Soyinka: Escritor, dramaturgo, ensaísta e ativista dos direitos humanos. Nasceu em 1934. Sua obra retrata os conflitos entre os valores tradicionais africanos e a influência ocidental. Prêmio Nobel de literatura de 1986. Vive há sete anos no exílio, acusado de atentados a bomba em Kano e Kaduna, em 1997. Transformou-se em suspeito porque um de seus livros foi encontrado junto ao corpo de um terrorista morto. Em abril de 2002, fez uma visita de solidariedade aos territórios palestinos como membro de uma delegação do Parlamento Internacional de Escritores, de que também participou o escritor português José Saramago.

Kano

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a criação do ritmo “afro-beat”, mistura de ritmos africanos com jazz e “dance music”. Foi um dos maiores críticos da ditadura militar nigeriana. Criou seu próprio partido político (Movimento do Povo) em 1979. Quando os militares voltaram ao poder, em 1983, Kuti foi condenado a cinco anos de prisão. Morreu em 1997.

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rinta anos de ditadura na Nigéria deram origem a um forte discurso de resistência contra a repressão política, o“apartheid” social e econômico e o controle dos meios de produção de petróleo.Verdadeiros heróis nigerianos saíram desse movimento de resistência. Conheça alguns deles.

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Ditadura criou heróis da resistência

Arquivo Nigrizia

Marilene Felinto, da Redação

Pius Utomi Ekepei/AFP/AE

INTERNACIONAL

Depois de quase 30 anos de ditadura militar, uma dezena de golpes de Estado, confrontos étnicos, políticos e religiosos, os nigerianos experimentam um pleito de relativa calma; o presidente Obasanjo, candidato à reeleição, seguia como favorito das votações de sábado

A situação de instabilidade étnico-política no continente africano é o resultado de diversos fatores históricos. A multiplicação de conflitos tribais se deve em parte à exploração de suas riquezas por multinacionais estrangeiras. Na Nigéria há profundas diferenças entre os mais de 250 grupos étnicos que constituem sua população. Cada grupo ocupa um território, que considera seu por direito de herança e por antigüidade de ocupação. Há três grupos étnicos principais: os haussas (no Norte, muçulmanos), os iorubas (no Sudoeste) e os ibos (no Sudeste, cristãos). Em maio de 1967, os ibos iniciaram uma revolta pela independência de seu território no Sudeste (área que concentra a produção de petróleo nigeriana), no que ficou conhecido como a Guerra de Biafra, que mergulhou o país numa guerra civil até 1970. O saldo de mortos foi de mais de um milhão de pessoas. O conflito foi marcado pela intervenção de grandes potências e grupos estrangeiros, sobretudo companhias de petróleo, que disputavam as jazidas descobertas na costa Leste. O povo ibo, o mais progressista da região, sustentou suas posições por quase três anos, mas o isolamento infligido pelas tropas federais arrasou-o por meio da fome e das matanças. Apesar do grande número de mortos, a pacificação e reconstrução econômica foram rápidas. (MF)


INFÂNCIA

CULTURA

A televisão condiciona as crianças a se preocuparem com a sensualidade antes da hora, com o objetivo de alimentar um mercado que fatura R$ 168 bilhões por ano, deputados federais promovem campanha nacional contra programas de baixaria na televisão

IMAGINAÇÃO DIRIGIDA O psicólogo diz que as crianças cr iam suas fantasias e constróem sua imaginação de acordo com tudo o que vêem na televisão, e não apenas com o que absorvem dos programas infantis. Por isso, preocupa a revelação da pesquisa da Unesco, segundo a qual mais da metade de tudo que é assistido por menores de 12 anos vai ao ar após as 18h, horário destinado à programação adulta. “Muitos pais compraram as roupas da Tiazinha para as filhas e acharam o máximo ver as meninas rebolando. Isso acaba despertando a sexualidade precoce.Além disso, na televisão, a mulher é apresentada como um objeto de consumo e muitas crianças acabam adotando e reproduzindo esse modelo”, comenta a presidenta da Sociedade Brasileira de Estudos e Pesquisa da Infância (Sobepi), a psicóloga Ana Celi Huguet. O lucro dessa história vai para o mercado infantil brasileiro que, segundo dados levantados pela revista Época, movimenta R$ 168 bilhões por ano, o equivalente ao faturamento mundial da Nestlé no mesmo período. Uma das campeãs de vendas é a linha de produtos da Xuxa: só em 2002, foram vendidas 1,8 milhão de sandálias com o nome da apresentadora na fivela. A televisão é responsável pelo

Gianne Carvalho/AE

■ As apresentadoras de televisão Eliana e Xuxa abusam de decotes, roupas transparentes e sensualidade para cativar a atenção das crianças

surgimento de uma geração de pessoas com graves traumas, na opinião de Ceccarelli. Ele se fundamenta no fato de que a erotização precoce leva a uma sexualidade problemática, causadora, nos adultos, de problemas como dificuldades em ter prazer, impotência e frigidez. Ao serem expostas a um tipo de sexualidade que ainda não faz parte do seu universo, as crianças sofrem as conseqüências do desequilíbrio entre as preocupações de adulto e o corpo infantil.

mobilização da socieO quadro do apresentador João dade é o único meio Kleber foi considerado pela de conter o baixo níComissão de Direitos Humanos da vel da televisão brasiCâmara dos Deputados um dos leira, segundo o deputado federal piores veiculados na televisão, junto Orlando Fantazzini (PT-SP), coorcom os do Ratinho, Gugu, Sérgio denador da campanha Quem finanMallandro e Faustão. cia a baixaria é contra a cidadania. Para Fantazzini, há três formas CONTROLE DA FAMÍLIA de pressão social: o controle dos pais O juiz titular da 3ª Vara da Inem relação ao que assistem seus fifância e da Juventude de Porto lhos, diminuindo a audiência de Alegre (RS), Leoberto Brancher, programas que expõem violência aponta que os primeiros respone sexo; o boicote a produtos anunsáveis pelo que as crianças assisciados em programas de baixo nítem são os pais, pois são eles que vel; e a denúncia de têm de conapresentadores e de trolar a educaprogramas, que é A democratização ção dos filhos. gratuita, e pode ser “Não adianta a da mídia é feita pelo sítio r ve n ç ã o fundamental para idon t eJudiciário, www.eticanatv.org.br ou pelo telefone se as famílias se pensar uma 0800-619-619. não estiverem televisão de Baseado nos rediscutindo o sultados da campa- melhor qualidade que aparece na nha, o ministério televisão, público de São como sexo e Paulo entrou com representação violência”, comenta, salientando no Ministério da Justiça contra o que a cidadania exige repensar os Programa João Kleber, da emissora valores culturais e a influência dos Rede TV. Os promotores paulistas programas televisivos. Vidal Serrano Nunes Júnior e A análise é compartilhada Motari Ciocchetti de Souza enpelo psicólogo Paulo Ceccarelli, tendem que o programa “inclui para quem a família pode ser a cenas de violência, temas sexuais e base do desenvolvimento de uma desvirtuamento e banalização de consciência crítica em relação aos valores éticos, em notória discreprogramas. No entanto, para ele, pância do seu horário de exibição”. não se pode impedir as crianças

Arquivo Pessoal

Pressão social limita baixaria

Ana Celi explica que as crianças nascem com libido, têm prazer com a descoberta de seu corpo. Essa energia é mais forte entre os 3 e 4 anos de idade, quando a criança desenvolve o complexo de Édipo e, se não houver atenção e cuidados dos pais, o espaço desse momento fundamental da sexualidade pode ser preenchido por modelos inadequados. Como os oferecidos pela televisão. O professor de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Sérgio

Caparelli, autor de diversos livros sobre televisão, diz que os modelos e padrões dos programas sempre levam à frustração do telespectador: Na vida real, não existe esse conto de fadas.A televisão se torna, então, quase um vício, à medida que se deseja ter o máximo contato possível com o tal mundo perfeito”. Colaborou Cláudia Jardim, da Redação

■ Deputado Orlando Fantazzini (PT/SP) coordena a campanha contra a baixaria na televisão de terem acesso à televisão, pois ela é uma ferramenta importante para o crescimento cultural. A democratização da mídia é fundamental para se pensar uma televisão de melhor qualidade, pois quebra o controle monopolista de algumas empresas sobre as informações que são repassadas para o telespectador, explica o professor de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Sérgio Caparelli. Para ele, “os canais de televisão, como a Globo, não abrem espaço para discutir a mídia, pois não têm interesse nisso. Como controlam tudo, essa discussão simplesmente não ocorre”. (JAP)

■ Cartaz da campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania, promovida pela Câmara dos Deputados

Cidade Alerta exibe cena real de suicídio O deputado federal Orlando Fantazzini (PT-SP) enviou um ofício à Procuradoria da República de São Paulo e ao Ministério da Justiça, solicitando medidas legais contra o baixo nível do Cidade Alerta, da TV Record. Em 10 de abril, o programa exibiu durante uma hora cenas de um suicídio em tempo real. Segundo Fantazzini, esse tipo de exibição fere artigos da Constituição e, por isso, precisa ser punido. O Cidade Alerta passa habitualmente no final da tarde, horário em que, de acordo com dados da Unesco, a maioria das crianças assiste televisão.

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

menina M. F. tem 9 anos e sabe de cor a música e a dança da Egüinha Pocotó. Cursa a 2ª série de uma escola municipal no Jardim Ângela (zona Sul de São Paulo) e não presta atenção nas aulas, segundo sua mãe, L.I., auxiliar de enfermagem. A garota assiste cinco horas de televisão por dia e seu programa favorito é Big Brother. Nesse perfil, ela não é a única. Em média, jovens menores de 12 anos ficam de três a quatro Libido – energia horas por dia sexual que, de acordo assistindo TV, com a psicanálise, é a base de toda a enquanto disconduta ativa do ser pensam apehumano nas uma hora e meia às liComplexo de ções de casa. Édipo – para a psicanálise, é o Pela pesquisa conjunto de elementos da Organizaque caracteriza o ção das Nadesejo da criança ções Unidas pelos pais para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), de onde foram extraídos esses dados, a televisão é considerada a principal fonte de informação das crianças, mais do que a escola e a família. “Os programas televisivos podem ser ferramentas de integração social e de desenvolvimento da cidadania, mas servem, hoje, principalmente para orientar e disciplinar a mente dos jovens telespectadores para o consumo”, avalia o psicólogo Paulo Ceccarelli, estudioso da influência da mídia na infância. O especialista aponta efeitos perversos das mensagens que as crianças adquirem dos programas de TV, como noções de concorrência e de competição que não existem naturalmente nessa idade.

Além disso, Ceccarelli explica que a televisão impõe às crianças uma sexualidade precoce. Principalmente as meninas ganham preocupações com a aparência, começam a escolher roupas e acessórios — mecanismo que impulsiona o consumo de grifes da moda e de toda a sorte de produtos fabricados para criar necessidades de consumo.“Quem não pode comprar, fica fora da turma da Xuxa ou da Eliana. Isto é, não existe”, salienta Ceccarelli.

Secom/Cordi/Sepre

João Alexandre Peschanski, da Redação

Robson Fernandes/AE

TV prejudica formação da sexualidade

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DEBATE

Emir Sader: se Washington quiser atacar Cuba, enfrentará algo muito mais parecido com o Vietnã do que com o Iraque; Eduardo Galeano: os fuzilamentos são uma notícia muito boa para os Estados Unidos e ruim para quem acredita que liberdade e justiça caminham juntas

A guerra infinita de Fidel Emir Sader, do Rio de Janeiro governo cubano demonstrou, pela forma de reagir às provocações do encarregado de negócios dos Estados Unidos na ilha, que fez uma leitura detida da nova doutrina norte-americana de segurança, de sua aplicação no caso do Iraque e que reagiu diretamente em função dessas condições ao punir de forma tão rápida e severa os dissidentes internos. Ao agir dessa maneira, Fidel Castro está mandando de volta um recado para Washington – de que, se quiserem atuar contra Cuba como o fizeram contra o Iraque e ameaçam fazê-lo contra a Síria, não encontrarão dentro do país algo similar ao papel desempenhado pelos curdos, ou pela Aliança do Norte na invasão do Afeganistão, e que terão de enfrentar algo muito mais parecido com o Vietnã do que com países do Oriente Médio. Menos bravata – como as de Sadam – e mais ação, seria a resposta cubana às novas condições internacionais depois da guerra do Iraque. Há poucos anos atrás, o governo cubano também reagiu de maneira rápida e violenta à tentativa de um avião de aterrissar em Cuba e fazer panfletagem com

teses oposicionistas. Antes disso, já havia igualmente passado o recado de que os que quisessem tentar desestabilizar o governo cubano não ficariam nos cárceres como referência para a campanha internacional contra Cuba, nem poderia nutrir a ilusão de que o regime pudesse cair – ao estilo daqueles da Europa oriental – e esses personagens pudessem sair da prisão para protagonizar a política pós-revolucionária.

Menos bravata e mais ação seria a resposta cubana às novas condições internacionais Desde que se configurou a crise da União Soviética, e que Cuba se deu conta de que não ia poder contar com a proteção soviética, diante da maior potência bélica da história da humanidade situada a 90 milhas de suas costas, assumiu a atitude que dá prosseguimento agora, no caso do processo de militares acusados de complacência com o narcotráfico, que levou à execução, entre outros, de Arnaldo Ochoa.

A atitude do escritor José Saramago, de crítica ao governo cubano, dá a impressão de que fosse algo novo no seu comportamento. Pode-se perfeitamente discutir e condenar, mas não considerar que seja um elemento novo, que justificasse uma mudança de atitude em relação a Cuba, porque nesse aspecto o governo cubano foi sempre coerente com sua atitude. Fidel assume a contrapartida cubana da guerra infinita. Sabem que estão no roteiro do governo norteamericano, que são, junto com os vietnamitas, os únicos que conseguiram impor derrotas aos Estados Unidos e que seguem sendo uma espinha na garganta de Washington. Afinal, já passaram 10 presidentes nos EUA, assim como tantos anúncios do fim do regime cubano, que eles sabem que falta alguém no eixo do mal de Bush e por isso se precavêm da forma que lhes parece a melhor.

Emir Sader é sociólogo, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, da PUC de São Paulo e autor de vários livros

Cuba peca contra a esperança s prisões e os fuzilamentos em Cuba são notícias muito boas para o superpoder universal, que está louco de vontade para arrancar da garganta esta obstinada espinha. São notícias muito ruins, por outro lado, notícias tristes que muito doem em quem acredita que é admirável a valentia desse pequenino país e tão capaz de grandeza, mas também acreditamos que a liberdade e a Justiça caminham juntas, ou não andam. Tempo de notícias muito ruins: se nos desgostávamos com a impunidade da carnificina do Iraque, o governo cubano comete estes atos que, como diria don Carlos Quijano, “pecam contra a esperança”.

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

★★★★★★

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Rosa Luxemburgo, que deu a vida pela revolução socialista, discordava de Lenin no projeto de uma nova sociedade. Ela escreveu palavras proféticas sobre o que não queria. Foi assassinada na Alemanha, há 85 anos, mas continua tendo razão: “A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido, por numerosos que sejam, não é liberdade. A liberdade é sempre liberdade para quem pensa diferente”. ★★★★★★ O século 20, e no que vai do 21, deram testemunho de uma dupla traição ao socialismo: a claudicação da socialdemocracia, que em nossos dias chegou ao cúmulo com o sargento Tony Blair, e o desastre dos Estados comunis-

tas transformados em Estados policiais. A revolução cubana nasceu para ser diferente. Submetida a uma pressão imperial incessante, sobreviveu com pôde e não como quis. Muito se sacrificou esse povo, valente e generoso, para continuar de pé em um mundo cheio de curvados. Entretanto, no duro caminho que percorreu em tantos anos, a revolução perdeu o vento de espontaneidade e o frescor de seu começo. Digo isso com dor. Cuba dói. ★★★★★★ A má consciência não me prende a língua para repetir o que já disse, dentro e fora da ilha: não creio, nunca acreditei, na democracia do partido único (tampouco nos Estados Unidos, onde há um partido disfarçado de dois), nem creio que a onipotência do Estado seja a resposta à onipotência do mercado. ★★★★★★ As longas condenações à prisão são, acredito, gols contra. Transformam em mártires da liberdade de expressão grupos que abertamente operavam da casa de James Cason, o representante dos interesses de Bush em Havana. Tão longe havia chegado a paixão libertadora de Cason, que ele mesmo fundou o Ramo Juvenil do Partido Liberal Cubano, com a delicadeza e o pudor que caracterizam seu chefe. Agindo como se esses grupos fossem uma grave ameaça, as autoridades cubanas lhes renderam homenagem e lhes deram o prestígio que as palavras adquirem quando estão proibidas.

Esta “oposição democrática” nada tem a ver com as genuínas expectativas dos cubanos honestos. Se a revolução não tivesse feito o favor de reprimi-las, e se em Cuba houvesse plena liberdade de imprensa e opinião, esta suposta dissidência desqualificaria a si mesma. ★★★★★★ Os Estados Unidos, incansável fábrica de ditaduras no mundo, não têm autoridade moral para dar lições de democracia a ninguém. Poderia dar lições de pena de morte o presidente Bush, que sendo governador do Texas se proclamou campeão do crime, assinando 152 execuções. Mas, as revoluções de verdade, feitas de baixo para cima como foi a cubana, precisam aprender maus costumes do inimigo que combatem? Não tem justificativa a pena de morte, onde quer que seja aplicada. ★★★★★★ Será Cuba a próxima presa da carnificina de países empreendida pelo presidente Bush? O anúncio foi feito por seu irmão Jeb, governador da Flórida, quando disse: “Agora, há que se olhar para a vizinhança”, enquanto a exilada Zoe Valdés pedia aos gritos, na televisão espanhola, “que atirassem uma bomba no ditador”. O ministro da Defesa, ou melhor, de Ataques, Donald Rumsfeld, esclareceu: “por enquanto, não”.

Kipper

Eduardo Galeano, de Montevidéu (Uruguai)

★★★★★★ São visíveis em Cuba os sinais de decadência de um modelo centralizado, que transforma em mérito revolucionário a obediência às ordens que determina, “sob a orientação” das cúpulas. O bloqueio e outras mil formas de agressão impedem o desenvolvimento de uma democracia à moda cubana, alimentam a militarização do poder e servem de desculpa para a rigidez burocrática. Os fatos demonstram que hoje é mais difícil do que nunca abrir uma cidade que se fechou na medida em que se viu obrigada a defender-se. Os fatos também demonstram que a abertura democrática é, mais do que nunca, imprescindível. Serão os cubanos, e somente eles, sem que ninguém se intrometa, que abrirão novos espaços democráticos e conquistarão as liberdades que faltam, dentro da revolução que fizeram e do mais profundo de sua terra, que é a mais solidária que conheço. Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, é autor de As veias abertas da América Latina e Memórias do fogo


LYGIA LYGIA FAGUNDES TELLES

CULTURA

Quando o Brasil tiver mais escolas, terá menos hospitais – disse o escritor Aldous Huxley, em visita ao país, em 1960; a frase impressionou Lygia Fagundes Telles, que, aos 80 anos, lamenta uma chaga que permanece aberta, passadas quatro décadas

80 anos de sensibilidade e talento eu ouvi em sua fala na Biblioteca Mário de Andrade foi: “No dia em que o Brasil tiver mais escolas, terá menos hospitais.”. Ah! que bonita essa frase, de um quase cego inglês, que nunca tinha visto nada aqui. Já se passaram mais de 40 anos, mas as chagas continuam.

ygia Fagundes Telles completou 80 anos dia 19 de abril. Cresceu ouvindo histórias de pajens — para as quais sempre desejou outros finais, felizes ou não.Talvez por isso tornou-se escritora, dedicando-se ao conto e ao romance, ao longo dos últimos sessenta e três anos. Formada em Direito e Educação Física, Lygia casou com o jurista Goffredo da Silva Telles Júnior, em 1950, e dois anos depois começou a escrever o seu primeiro romance, Ciranda de pedra considerado por ela como seu marco literário. Em 1960, separou-se de Goffredo e três anos depois foi viver com o cineasta Paulo Emílio Salles Gomes. Nessa época, iniciou o polêmico romance As Meninas. Premiada nacional e internacionalmente, Lygia é autora de mais de vinte livros, já tendo sido traduzida para diversas línguas. Em 1982, foi eleita para a Academia Paulista de Letras e, em 1985, para a Academia Brasileira de Letras. Publicamos, em seguida, um trecho de sua entrevista a Brasil de Fato. Brasil de fato – Como você sente as recentes perdas de grandes escritores brasileiros? Lygia Fagundes Telles – Em 2002 falou-se muito, devido ao seu centenário, no Carlos Drummond de Andrade. Ele era muito integrado a mim, tínhamos temperamentos parecidos. Uma certa discrição, muita reserva. Ele fazia parte da minha vida. Eu sinto um vazio, uma vontade de dizer coisas que eu não tive tempo de dizer enquanto este amigo estava, assim, à mão. Isto falando de amigos como Drummond, Clarice Lispector, de quem eu estava ficando cada vez mais próxima — chegamos a viajar pra Colômbia, à cálida Cali, como cito em Durante aquele estranho chá. BF – Onde estão os novos nomes da literatura brasileira? LFT – Gostaria de dizer que recebo muita coisa. Os jovens me mandam livros, originais; eu leio e me surpreendo - sim, cada vez mais, há gente da maior qualidade escrevendo. Fico feliz em saber que temos escritores se reve-

lando, enfrentando a adversidade de escrever e, sobretudo, de publicar, fazer o livro chegar às mãos do leitor. Temos muitos bons escritores brasileiros das mais variadas gerações. Não gostaria de citar nomes porque posso cometer injustiças ao esquecer alguém. No entanto, recebo livros de todas as regiões e leio sempre grandes revelações.

BF – Como você vê a Academia Brasileira de Letras (ABL)? LFT – Apesar de tudo que falam, acho a Academia importante porque abriga homens e mulheres que já fizeram muito e escreveram sobre este país. Em geral, são pessoas que amam esta pátria, sérias, ardorosas defensoras deste Brasil tão combalido. Acho importante porque, como disse, não gosto da solidão e a Academia me dá esse convívio literário. BF – O que significou a eleição de Paulo coelho à ABL, em 2002? LFT – Não sou afeita à política. Então não posso comentar, porque não participo das campanhas, fico

Heitor Hui/AE

Nathalie Bernardo, de Brasília

BF – Quais são as suas expectativas quanto à educação e saúde no novo cenário político? LFT – Eu votei no Lula. Meu voto, aliás, apareceu no seu site e eu fiquei feliz em poder assumir publicamente minha opção por acreditar que teremos novidades. Esses setores que você cita todos se referem e acabam na nossa degradada situação social, ainda um horror para milhões de pessoas deste país. Creio que teremos um maior enfoque no lado social. Isso é urgente, não se pode adiar.

■ A escritora em seu escritório: a situação social ainda é um horror para milhões de brasileiros no meu canto, reservada. Cada vez mais, como os copistas medievais, quero apenas escrever, escrever... Quanto ao Paulo Coelho, ele foi eleito por uma pequena margem, por dois votos. Como todos sabem, votei no Hélio Jaguaribe. Quando eleito, o Paulo me ligou e eu o cumprimentei.

NBC: Qual seria a função da palavra escrita? LFT – Não está tendo função nenhuma ultimamente, porque a política não permite. Há como que um complô, uma conspiração para abafar a palavra. Um silêncio, um duro silêncio. Passei minha vida caminhando em caravanas, fui a tantas cidadezinhas (eu, o querido Ricardo Ramos, já falecido; a Nélida e o Ig-

nácio de Loyola Brandão) divulgar não os meus escritos, mas os escritores brasileiros: Machado de Assis, Castro Alves, Jorge Amado, enfim, tantos... Às vezes, acabávamos falando pra meia dúzia de sonolentos. Percorremos centros culturais, bibliotecas, universidades pregando a bandeira da educação, da leitura, que está diretamente ligada à literatura. Enfim, miséria, miséria, miséria, eis uma insistente verdade, que anda de braços dados com o analfabetismo. Creio que o cenário melhorou um pouco, mas ainda há muito a se fazer. Como não dispomos de poder político algum, usamos a palavra. Em 1960, Aldous Huxley esteve no Brasil e a primeira frase que

BF – O mercado editorial brasileiro continuará, na sua opinião, invadido por best-sellers estrangeiros, em detrimento da produção literária nacional? LFT – Se você pega a lista dos livros mais vendidos, é incrível como todos os títulos são sempre de autores estrangeiros... Esses livros de auto-ajuda que mais ajudam os bolsos dos seus autores. Bem, ainda assim, diante desse cenário, acho que tem saído muita coisa boa. Não podemos desacreditar, é isso! Não podemos nos dar ao luxo da desesperança, porque ainda há muito a se fazer no nosso país. Nathalie Bernardo da Câmara é jornalista, fotógrafa e escritora, atualmente produzindo um documentário sobre a educadora e feminista norte-rio-grandense Nísia Floresta Brasileira Augusta.

AGENDA OPRIMIDOS RS - DEBATE: A IDENTIDADE HISTÓRICA DOS OPRIMIDOS

EDUCAÇÃO GO - XIV CONGRESSO NACIONAL DA FEDERAÇÃO DE ARTE-EDUCADORES DO BRASIL ● de 22 a 24 Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Mais informações: (62) 521-1159, fav@fav.ufg.br

CIDADANIA SP - SEMANA DA CIDADANIA ● de 21 a 26, às 19h Escola Elvira Arruda de Souza, R. Pedro Canesin, s/n, Sertãozinho. Coordenada pela Pastoral da Juventude do Brasil, a semana será marcada por atividades em favor dos adolescentes e jovens. O eixo deste ano é a qualidade de vida. Mais informações: (16) 642 4811, toninhocosta@netsite.com.br

ARTES SP- EXPOSIÇÃO NO MUSEU BRASILEIRO DA ESCULTURA (MUBE) ● Inscrições até 15 de maio A Galeria Cassiano Araújo está recebendo inscrições de trabalhos de artistas plásticos para a 1º Mostra Darcy Penteado de Arte, que acontece em junho no Mube. A exposição, que tem como tema Em

Tamanho Único...Trace Seu Caminho, propõe uma reflexão sobre a diversidade sexual e cultural e o acesso aos direitos humanos. Ao final da exposição será lançado um catálogo com todas as obras publicadas. Mais informações: (11) 5083-9423 / 5539- 1924, cassianoaraujo@uol.com.br

CUT ES - IX CONGRESSO ESTADUAL CUT

DA

● de 25 a 27, das 8h às 21h Santa Cruz, Sesc, Aracruz. Mais de 200 delegados irão discutir as estratégias de Lutas e eleger a nova diretoria da Central no Estado, além da delegação capixaba ao 8º Concut. Mais informações: (27) 3222-8377, secimprensa@cut-es.org.br

● dia 22, às19 h Plenarinho da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre. Movimento Brasil Outros 500/RS de Luta Indígena, Negra, Feminina e Popular Mais informações: luixc@uol.com.br

SOBERANIA SP - SEMANA DA SOBERANIA NACIONAL ● de 22 a 26 Unicamp, Campinas. Debate sobre as ameaças a que está sujeita a soberania do país. Serão abordados temas como Alca, cultura e soberania, base de Alcântara, programa espacial brasileiro e movimentos sociais. Mais informações: caio@eco.unicamp.br, (19) 3788-7910

PROJETOS SOCIAIS SP - SEMINÁRIO: OS PROJETOS SOCIAIS COMO VIA DE POLÍTICA PÚBLICA E A LÓGICA NEOLIBERAL DO

TERCEIRO SETOR PE - 1º SEMINÁRIO SOBRE O TERCEIRO SETOR - OPORTUNIDADES E PROJETOS ● de 22 a 24 Promovido por: Rits, Recife Voluntário, Sebrae-PE, Movimento Tortura Nunca Mais, juntamente com o Governo Estadual. Sebrae, R. Tabaiares nº 360, Ilha do Retiro, Recife Mais informações: (81)3227-1902 ou 3228-8739

INDIVIDUALISMO DE MERCADO

● 24 e 25, das 9h às17h Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Rua Dr. Cesário Mota Jr., 262. Informações e inscrições: (11) 6972-2417 /6281-9839

MULHERES E RÁDIO NORTE E NORDESTE - II CONCURSO CYBERELA DE INCLUSÃO DIGITAL PARA MULHERES NO RÁDIO ● Inscrições até dia 30

Promovido pela ONG Comunicação, Educação e Informação em Gênero Cemina), o concurso está aberto para comunicadoras das regiões Norte e Nordeste. Para participar, as mulheres precisam estar vinculadas a programas de rádio e trabalhar pela promoção dos direitos femininos. As 16 vencedoras serão premiadas com dois computadores. Inscrições poderão ser feitas pelo site www.cemina.org.br Mais informações: Silvana Lemos, (21)262.1704, cemina@cemina.org.br

CINEMA BRASÍLIA - 8º FESTIVAL

RJ E BRASILEIRO

DE CINEMA

UNIVERSITÁRIO

● Inscrições até dia 21 Rio de Janeiro/ Niterói - de 28 de maio a 8 de junho. Centro Cultural Banco do Brasil, Rua 1º de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro. Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense, Rua Miguel de Frias, 9, Icaraí, Niterói. Brasília - de 24 a 29 de junho Centro Cultural do Banco do Brasil, SCES, Trecho 2, Lote 22. Realizado pela UFF e com patrocínio do Banco do Brasil, o festival irá promover uma mostra competitiva internacional de Escolas de Cinema.O cineasta Ruy Guerra será o homenageado desta edição.O festival ainda vai apresentar mostras informativas, pré-estréias de longas de ex-alunos de cinema, mostras especiais, oficinas e workshops. Mais informações: Aleques Eiterer(21) 9236-9790 / 2717-2654

BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

Confira algumas atividades populares, sociais e culturais desta semana. Para incluir seu evento nesta agenda, envie e-mail para agenda@brasildefato.com.br

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ESPORTE

O futebol é praticado nos recantos mais remotos do Brasil, por jogadores que não foram descobertos pelo mercado e cujo amor à arte é bem maior do que a esperança de enriquecer: o vestiário pode ser um galinheiro, mas o toque é de craque; as fotos são de Flávio Cannalonga

FUTEBOL

Da Redação xiste um Brasil bom de bola que ainda não foi descoberto pelos empresários, mas que tem craques que, se fossem conhecidos, seriam admirados no mundo inteiro. Essa realidade está documentada pelo fotógrafo Flávio Cannalonga, que percorreu alguns dos lugares mais remotos do país registrando pés e bolas. No Vale do Jequitinhonha, as traves, o travessão e a rede do gol quase se confundem com a árvore sem folhas. Ainda ali, na Chapada do Norte, num lugar chamado Buraco da Onça, o vestiário é um galinheiro, mas assim mesmo o goleiro faz pose.

Fotos: Flávio Cannalonga

Os boleiros dos cafundós

NA TERRA DE PELÉ Em Três Corações, em Minas Gerais, local de nascimento do rei Pelé - à beira da rodovia Fernão Dias, que leva de São Paulo a Belo Horizonte - os pés maltratados dão idéia dos bons tratos que dão à bola (sabe-se que os grandes profissionais do futebol têm os pés tanto mais feios e machucados, principalmente unhas feridas e grandes veias saltadas no peito do pé quanto melhor jogam bola). Em Bauru, no interior de São Paulo, e onde se radicaram os pais de Pelé, importante centro comercial, o menino seminu da periferia controla a bola como gente grande. Em qualquer ponto do Brasil se pode ver craques agachados para fotos, tentando imitar o mesmo estilo com que, antigamente, os jogadores do ataque posavam se ajoelhando - hoje mal se abaixam para deixar visíveis os companheiros da defesa. O futebol-associação chegou ao Brasil na mesma década de seu nascimento oficial na Inglaterra, meados dos anos de 1860, trazido por marinheiros britânicos e jogado nas cidades portuárias. Com regras mais ou menos semelhantes às originais, era praticado em Itu, importante centro republicano no Interior de São Paulo, já nos anos de 1870. A contribuição de Charles Miller, no final do século 19, não foi introduzir no Brasil o futebol, então aqui já bem divulgado, mas sim trazer as regras, uniformes e bolas oficiais.

■ Acima, o goleiro no vestiáriogalinheiro e o jovem craque de Bauru (SP); ao lado, o gol de um campo no Vale do Jequitinhonha (MG); abaixo, à esq., os pés feridos de quem trata bem a bola e, à dir., o craque agachado

Vai dar mídia! BRASIL DE FATO De 20 a 26 de abril de 2003

Juarez Soares, de São Paulo (SP)

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a última terça-feira, 15 de abril, houve o que a imprensa chamou de uma grande festa do esporte. Na verdade, não foi uma festa esportiva, foi uma enorme reunião política. Compareceram mais de seiscentas pessoas.Tinha de tudo. Atletas, ex-atletas, secretários, empresários, puxa-sacos, uma fauna realmente variada. Nesse dia, a cidade de São Paulo apresentou sua pré-candidatura aos Jogos Olímpicos de 2012. São Paulo vai concorrer com o Rio de Janeiro. A escolha será próximo no dia 7 de julho. Outras cidades do mundo também serão candidatas. A disputa não será fácil: NovaYork, Madri, Paris, Leipzig também estão na páreo. A escolha internacional e definitiva será só no

ano 2005. Claro que nessas horas nas que não funcionam, autódroabismo de diferença entre ser conhá um grande entusiasmo dos povocado para os Jogos Olímpicos mo mal feito e reformado com dislíticos e puxa-sacos. Claro, acontecomo atleta ou cavar uma “boquiplicência (o último Grande Prêce sempre o que os homens e munha” como dirigente. Outra coisa mio que o diga). Até o estádio do lheres públicos chamam de “mídia”. é ser responsável pela construção Pacaembu tem um gramado irre“Vai dar mídia”, é a gular, onde outro palavara-chave. dia o jogador VamSão Paulo quer sediar os Claro que nesse peta pisou num buJogos Olímpicos de 2012; quem se raco e estourou o caso a responsabilidade é infinitamente depara com o miserê tem o direito joelho.Vai ficar inamaior. Imagino que tivo por oito meses. de ficar abismado nenhum responsável Quando se pela vida da cidade, confronta com essa pelo esporte da capital e pela adrealidade, é justo imaginar quem e organização de uma sede para ministração municipal seria tão levai preparar a cidade para as Olimreceber uma a Olimpíada. Princiviano ao ponto de fazer esse trepalmente quando, à luz da razão e píadas de 2012 se nossa capital for mendo auê só para “dar mídia”. da lógica, a gente presta atenção escolhida. Só a Vila Olímpica tem Fico imaginando quanto desses de receber mais de 10 mil atletas. na vida esportiva de São Paulo. políticos já foram a uma OlimpíaSem contar com ginásios, pisciSem ofensa, a cidade vive um da. Claro não estou me referindo estado de penúria em termos de nas e estádios para todas as moa ex-atletas ou dirigentes que, por dalidades. As previsões dos gastos prestação de serviços.Todos os pródever de ofício, já estiveram até podem ser descritas inicialmente prios da municipalidade mal se mais de uma vez nas olimpíadas. assim: serão precisos 2,6 bilhões sustentam de pé. Centros educaPara esses, tudo é festa. Há um de dólares em obras e serviços cionais caindo aos pedaços, pisci-

para a realização dos jogos. Isso para a montagem da competição, e não inclui a construção de toda a infra-estrutura para a disputa. Nesse caso, seriam necessários 10 bilhões de dólares. Isso num país em que a verba do Ministério do Esporte é menor do que o orçamento da cidade de São Paulo para a área esportiva. Quem se depara com o estado de miserê do esporte na cidade tem o direito de ficar abismado. No entanto, é bom parar por aqui. Quem critica corre o risco de passar por antipatriota, pessimista etc. e tal. Eu estive em três olimpíadas: Montreal, Atlanta e Sydney, tenho noção de como as coisas funcionam. E olhe que essas cidades não fizeram os Jogos Olímpicos só para “aparecer na mídia”. Os políticos de lá é que são muito mais sérios.


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