BRASILDEFATO Anderson Barbosa
Ano I ■ Número 10 ■ São Paulo ■ De 11 a 17 de maio de 2003
Circulação Nacional
R$ 2,00
Bush promove cerco da América Latina Os Estados Unidos multiplicam suas bases militares em toda a América Latina, especialmente na região amazônica e em outras áreas ricas em petróleo e biodiversidade. É necessário organizar a resistência, conclui o I Encontro Hemisférico contra a Militarização, realizado de 6 a 9, no México, com a participação de 929 delegados de 28 países. Em Buenos Aires, uma reunião das igrejas latino-americanas denunciou o perigo de asfixia no “abraço de urso” da Alca. Alcântara – ato em Brasília comemora a retirada, da pauta do Congresso, do projeto de lei que concedia aos EUA o direito de usar a base espacial de Alcântara (MA). Págs. 9 e 10 ■ Mais de 15 mil sem teto marcham pelas ruas de São Paulo, dia 7,
reivindicando moradia. Pág. 7
Tarifas em dólar achatam renda dos trabalhadores
Desmonte da Receita ajuda o crime organizado
Monsanto cobra taxa por soja transgênica
Governo acelera programa de cotas
A proporção das tarifas de serviços públicos nos gastos dos consumidores passou de 16,2% da renda familiar total em 1994, antes das privatizações, para 28,2% em janeiro deste ano, segundo levantamento da firma Rosenberg & Associados. Com isso restam menos recursos às famílias para custearem outros serviços e bens. A situação foi causada pela indexação das tarifas ao dólar, com o que elas sobem bem acima da inflação, enquanto os salários ficam para trás. Pág. 4
O Estado brasileiro corta na sua própria carne e na carne da sociedade a que deveria servir: a máquina arrecadadora da Receita sofreu cortes de quase 40% nos seus recursos. A falta de auditoresfiscais, que passaram de 12,5 mil em 1970 para 5 mil a menos hoje, facilita o contrabando, a fraude, a sonegação e até a importação, pelo crime organizado, de armas pesadas e munições. Além da perda de receitas para os serviços públicos, tudo isso facilita a vida dos narcotraficantes. Pág. 5
A transnacional Monsanto pretende cobrar royalties (direito de uso) pela safra de soja transgênica, obtida mediante contrabando e cultivada ilegalmente no Rio Grande do Sul. A cobrança foi possibilitada por medida provisória que autoriza o comércio da safra. Em Ponta Grossa (PR), 3 mil pessoas participaram do Encontro de Agroecologia, entre os dias 7 e 10, para exigir a erradicação dos transgênicos. Em Pernambuco, a Assembléia aprovou projeto que autoriza a importação de milho modificado para uso animal. Pág. 3
Já está em fase de preparação, pela secretária especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, com estatuto de ministra, a instauração de cotas no ensino federal para afro-brasileiros e pessoas carentes. Segundo o ministro da Educação, Cristovam Buarque, é preciso cautela na instauração das cotas, pois o preconceito poderia ser substituído por antagonismo na disputa de vagas nas universidades. Pág. 13
INSS – O déficit da Previdência não passa de um mito, afirmam os economistas Wilson Cano e Lício C. Raimundo. Pág. 6 CUT E LULA – Em carta ao presidente Lula, a CUT de Sergipe cobra o cumprimento dos objetivos antineoliberais da campanha eleitoral. Pág. 7 JUDICIÁRIO – Conheça como funciona a organização Observatório Judiciário, uma tentativa de controle externo dos juízes no Ceará. Pág. 8 GUANTÁNAMO – Entidades de direitos humanos denunciam a detenção de crianças no enclave dos Estados Unidos em Cuba. Pág. 11 ÁFRICA – Crescem os boatos sobre a renúncia do presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, introdutor de uma reforma agrária radical. Pág. 12 ASSISTÊNCIA SOCIAL – A pesquisadora Hilda Corrêa de Oliveira defende um Estado democrático e voltado para o bem-estar do povo. Pág. 15
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
“Os líderes da esquerda argentina são sectários e incompetentes”, diz a principal dirigente das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, para explicar a situação sem saída em que ficaram as camadas populares diante dos resultados das eleições em seu país. Ela chama de “peronistas fascistas” e “farinha do mesmo saco” os dois candidatos a presidente, Néstor Kirchner e Carlos Menem, que vão se enfrentar no segundo turno. Pág. 10
E mais:
pág. 14, as avaliações da deputada estadual Jurema Batista (PT-RJ) e do professor Nilson Lage, titular de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina.
Márcio Baraldi
Líder argentina critica esquerda por impasse
Veja na seção Debate,
1
Fala, Zé! Ohi
NOSSA OPINIÃO
Contra o império Não poderia acontecer em momento mais apropriado o I Encontro Continental contra a Militarização, realizado em San Cristobal de las Casas, no México, entre os dias 6 e 9 de maio. Basta enumerar os objetivos do encontro, para entender a sua urgência: identificar regiões na América Latina onde existem ocupações militares, analisar seus impactos e construir atividades coordenadas entre organizações pacifistas. Os Estados Unidos intervêm de forma cada vez mais explícita e agressiva no hemisfério. Suas tropas atuam diretamente na Amazônia, a pretexto de combater o narcotráfico, agora qualificado como “narcoterrorismo”; reeditando os piores momentos da Guerra Fria, seus agentes arquitetam golpes de Estado, não raro com a ajuda das elites locais, como na Venezuela de Hugo Chávez; suas bases se espalham pelas Américas, incluindo o extremo Sul argentino, passando pela tríplice fronteira (entre Brasil, Argentina e Paraguai); seus porta-vozes endurecem ainda mais a retórica contra Cuba, objeto de novos ataques ardilosos. A Casa Branca combina a ocupação militar com o programa de recolonização representado pela Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Não por acaso, aliás, o encontro foi realizado no primeiro país latino-americano “integrado” ao mercado comum com a América do Norte (Nafta), responsável por uma catástrofe econômica, social e humana. Isso acontece no quadro mundial que presenciou a invasão do Iraque, comandada pela gangue que tomou de assalto a Casa Branca. Washington não reconhece limites ao seu apetite por reservas naturais, território e poder. Apenas ingênuos ou iludidos poderiam acreditar ser possível manter negociações civilizadas com o governo Bush. Se alguma força é capaz de frear as estratégias do império, é a mobilização do povo. Em certas circunstâncias, a potência das armas obriga a Casa Branca a pensar antes de agir, como demonstra sua “paciência” para com a Coréia do Norte. O segredo é o poderio militar da China, que dá cobertura ao regime de Pionguiangue. Não é essa a realidade dos países latino-americanos. A única – e grandiosa – arma de que dispõem os seus povos é a mobilização democrática e antiimperialista. Ninguém deve subestimar essa força. A mobilização popular derrotou o golpe contra Chávez e derrubou o governo neoliberal argentino. A vitória de candidatos da esquerda no Brasil e no Equador, por outro lado, demonstra o anseio por mudanças. Reconhecendo o poder desse anseio, aliás, o governo Lula vai retirar do Congresso o acordo de entrega da base de Alcântara para os Estados Unidos, sustentado pelo governo anterior, preservando assim a nossa soberania. É possível derrotar o império, e o encontro do México aponta o caminho: a união das forças populares, democráticas e antiimperialistas do hemisfério. É preciso organizar a luta, apontar o inimigo e denunciar sua estratégia. No Brasil, isso passa pela convocação de um plebiscito sobre a Alca, que deve ser utilizado como exercício de democracia e de defesa da nação.
BRASILDEFATO CONSELHO POLÍTICO: Achille Lollo ■ Ari Alberti ■ Ariovaldo Umbelino ■ Assunção Ernandes ■ Aton Fon Filho ■ Augusto Boal ■ Cácia Cortez ■ Carlos Marés ■ Carlos Nelson Coutinho ■ Celso Membrides Sávio ■ Claus Germer ■ Dom Demétrio Valentini ■ Dom Mauro Morelli ■ Dom Tomás Balduíno ■ Edmilson Costa ■ Elena Vettorazzo ■ Emir Sader ■ Egon Krakhecke ■ Erick Schunig Fernandes ■ Fábio de Barros Pereira ■ Fernando Altemeyer ■ Fernando Morais ■ Francisco de Oliveira ■ Frederico Santana Rick ■ Frei Sérgio Gorgen ■ Horácio Martins ■ Ivan Valente ■ Jasper Lopes Bastos ■ ■ João Alfredo ■ João Capibaribe ■ João José Reis ■ João José Sady ■ João Pedro Stedile ■ Laurindo Lalo Leal Filho ■ Leandro Konder ■ Luís Alberto ■ Luís Arnaldo ■ Luís Carlos Guedes Pinto ■ Luís Fernandes ■ Luis Gonzaga (Gegê) ■ Marcelo Goulart ■ Marcos Arruda ■ Maria Dirlene Marques ■ Mário Augusto Jakobskind ■ Mário Maestri ■ Nalú Faria ■ Nilo Batista ■ Oscar Niemeyer ■ Pastor Werner Fuchs ■ Pedro Ivo ■ Raul Pont ■ Reinaldo Gonçalves ■ Renato Tapajós ■ Ricardo Antunes ■ Ricardo Rezende Figueira ■ Roberto Romano ■ Rodolfo Salm ■ Rosângela Ribeiro Gil ■ Sebastião Salgado ■ Sérgio Barbosa de Almeida ■ Sérgio Carvalho ■ Sérgio Haddad ■ Tatau Godinho ■ Tiago Rodrigo Dória ■ Uriel Villas Boas ■ Valério Arcary ■ Valter Uzzo ■ Vito Gianotti ■ Vladimir Araújo ■ Vladimir Sacheta ■ Zilda Cosme Ferreira ■ Também participam do Conselho Político todos os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores ■
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
CONSELHO EDITORIAL: ■ Alípio Freire ■ César Benjamim ■ César Sanson ■ Hamilton Octávio de Souza ■ Kenarik Boujikian Felippe ■ Luiz Antonio Magalhães ■ Luiz Eduardo Greenhalgh ■ Luiz Bassegio ■ Maria Luísa Mendonça ■ Milton Viário ■ Neuri Rosseto ■ Plínio de Arruda Sampaio Jr. ■ Ricardo Gebrim
2
■ Editor-chefe: José Arbex Jr. ■ Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Marilene Felinto, Nilton Viana, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu ■ Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Eunice Nunes, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho ■ Projeto gráfico e diagramação: Wladimir Senise ■ Tratamento de imagem: Maurício Valente Senise ■ Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho ■ Jornalista responsável: José Arbex Jr. Mtb 14.779 Administração: Silvio Sampaio Secretaria de redação: Tatiana Merlino Sistemas: Sérgio Moreira Programação: André de Castro Zorzo Assinaturas: (11) 2131-0808 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 Campos Elíseos – CEP 01218-010 PABX (11) 2131-0800 – São Paulo/SP
redacao@brasildefato.com.br Gráfica: Diário do Grande ABC
DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA PARA TODO O BRASIL EM BANCAS DE JORNAIS E REVISTAS FERNANDO CHINAGLIA RUA TEODORO DA SILVA, 907 TEL.: (21) 3875-7766 RIO DE JANEIRO - RJ
Os ganhadores da promoção Brasil de Fato
Acesse a nossa página na Internet www.brasildefato.com.br
No sorteio realizado dia 1o de maio, entre os assinantes do Brasil de Fato, ganharam a viagem a Cuba os leitores Agostinho José Soares, de São Joaquim (SC), e Ângelo da Costa Neto, de Natal (RN). Já as coleções literárias foram ganhas por Creuzenete Alves de Faria (PB), Flávio Antônio C. Pereira (MG), e pelo deputado federal Sigmaringa Seixas (DF).
Cartas de leitores MUDANÇA DE RUMO Hoje, 30 de abril, comprei o número 8 de Brasil de Fato. Estou tremendamente desconfiado de que o jornal resolveu mudar.A política econômica do governo está ausente, as reformas foram ignoradas (justamente na semana da entrega dos projetos no Congresso), o encontro de Lula com Chavez no Recife também não foi sequer referido (com a reafirmação de Lula sobre o ingresso do Brasil na Alca). Quer dizer: a postura do jornal agora é ressaltar os “pontos positivos” do governo (propostas sobre o narcotráfico, a base de Alcântara etc) e “torcer” por uma mudança de rumo no futuro, depois das reformas enfim aprovadas e os funcionários públicos e aposentados prejudicados? Vamos, ainda uma vez, conciliar? Tarcizo Martins, João Pessoa (PB) SAUDAÇÕES Parabenizo a equipe do jornal Brasil de Fato pela proposta inovadora de jornalismo a que está se propondo. Faço votos de que o jornal preserve esta postura editorial íntegra e, ao mesmo tempo, sobreviva
comercialmente, para que não seja um projeto temporário, como já vimos anteriormente na história da imprensa brasileira. Marcellus William Janes, São Paulo (SP) Grande parte dos jornais impressos em circulação no país segue à risca as agendas de notícias prédeterminadas pelos anunciantes; e a sociedade civil, a quem se destina e se faz necessária a notícia, é impossibilitada de conhecer os fatos assim como eles são. O que se encontra no mercado são pílulas diárias de informações, que oferecem o fato isolado ao leitor, sem lhe oferecer o contexto em que se passou. É por isso que quando chega às bancas um jornal expositivo, analítico e crítico acima de tudo, merece atenção dos leitores. Assim nasceu o Brasil de Fato, que veio com a intenção de mostrar ao país que ainda hoje é possível apresentar notícias com imparcialidade, coerência e responsabilidade. Horácio Neto,Vereador. Câmara Municipal de São Caetano do Sul
CUBA O imper ialismo mostra suas garras cada vez mais mortíferas ao mundo. Uma grande campanha se faz agora contra Fidel Castro e o regime político cubano, apoiado por 97% de sua população. As vozes hipócritas soam aos ouvidos dos alienados de todo o mundo fazendo de Cuba – a ilha onde seus habitantes possuem com igual oportunidade o melhor sistema de saúde e educação da América, onde a prioridade é o bem estar social e não os odiosos lucros – um alvo a ser atingido pelos criminosos representantes do capitalismo mundial. Com a invasão do Iraque, proliferaram por todo o Brasil os protestos contra mais um massacre promovido pelo governo dos EUA. Protestos vagos, que só acusaram a conseqüência e não mostraram a causa do problema aos olhos do povo. Eis a chance de fazer algo que vale a pena, algo para tentar abrir os olhos das pessoas, falo de um ato em defesa de Cuba. Rodrigo Nicola, Santos (SP)
As cartas devem ser encaminhadas com identificação, município e telefone do remetente.
Quem somos Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores.
COMO PARTICIPAR Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br.
QUANTO CUSTA O jornal Brasil de Fato custa R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00. Você também pode fazer uma assinatura semestral, com direito a 26 exemplares, por R$ 50,00.
COMITÊS DE APOIO Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilidade a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jornal ficaria restrito ao chamado eixo Rio-São Paulo, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato. AL- brasil-al@brasildefato.com.br
BA- brasil-ba@brasildefato.com.br
CE- brasil-ce@brasildefato.com.br
DF- brasil-df@brasildefato.com.br
ES- brasil-es@brasildefato.com.br
GO- brasil-go@brasildefato.com.br
MA- brasil-ma@brasildefato.com.br
MG- brasil-mg@brasildefato.com.br
MS- brasil-ms@brasildefato.com.br
MT- brasil-mt@brasildefato.com.br
PA- brasil-pa@brasildefato.com.br
PB- brasil-pb@brasildefato.com.br
PE- brasil-pe@brasildefato.com.br
PI- brasil-pi@brasildefato.com.br
PR- brasil-pr@brasildefato.com.br
RJ- brasil-rj@brasildefato.com.br
RN- brasil-rn@brasildefato.com.br
RO- brasil-ro@brasildefato.com.br
RS- brasil-rs@brasildefato.com.br
SC- brasil-sc@brasildefato.com.br
SE- brasil-se@brasildefato.com.br
SP- brasil-sp@brasildefato.com.br
Para assinar, ligue (11) 2131-0808 ou mande uma mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br
SEGURANÇA ALIMENTAR
NACIONAL
Monsanto exige que agricultores gaúchos paguem pelo direito de uso de semente transgênica, ilegamente plantada; no Paraná, encontro agroecológico declara guerra aos transgênicos; em Pernambuco, Assembléia Legislativa desafia lei federal e aprova importação de milho modificado
Monsanto exige pagamento de taxa inalmente, a Monsanto mostra a que veio.A transnacional estadunidense,detentora das patentes da soja Roundup Ready, quer cobrar royalties pelo uso das sementes transgênicas cultivadas ilegalmente no Rio Grande do Sul. Apesar da notícia ter soado como novidade entre os ministérios, Osíres Lopes Neto, consultor jurídico da Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio), afirma que essa cobrança já era prevista pela Comissão Interministerial, responsável pela edição da medida provisória 113, que autoriza a comercialização da safra transgênica até o final de janeiro de 2004. “A cobrança só seria ilegal se o governo federal não tivesse autorizado a comercialização. Como a MP admite a soja transgênica, isso dá à Monsanto o direito de cobrar”, explica Lopes Neto.A lei de patentes (nº9.456/1997) assegura o direito à indústria de cobrar pela utilização das tecnologias desenvolvidas, como no caso das sementes transgênicas. “A Monsanto deveria ser processada,pois está assumindo publicamente que efetuou o contrabando das
sementes para o Brasil “, analisa o deputado estadual Frei Sérgio Gorgën (PT/RS).Para ele, o posicionamento da transnacional confirma o totalitarismo que a indústria de sementes transgênicas quer disseminar na agricultura mundial, utilizando-se dos meios jurídicos para controlar a produção de alimentos.“É exatamente o procedimento adotado nos outros países. A indústria vende as sementes a baixo custo e a partir daí passa a exigir royalties”, complementa Osíres Lopes Neto. Nos Estados Unidos, mais de 2 mil agricultores estão sendo processados pela Monsanto sob a alegação de se apropriarem da tecnologia sem pagar. “Na maioria dos casos, as lavouras são contaminadas por transgênicos e, os agricultores, acusados de apropriação ilegal”, explica Gorgën. O diretor de Comunicação da Monsanto do Brasil, Lucio Pedro Mocsanyi, afirmou que a empresa está conversando com setores de produção e exportação do país para garantir os direitos de propriedade.“Se a empresa insistir, só ganhará a rejeição dos agricultores. Além disso, esse produto contrabandeado pode trazer sérios riscos ao meio ambiente”, afirma o
Nathan
Cláudia Jardim, da Redação
chefe geral da Embrapa Trigo, Benami Bacaltchuk. A Embrapa também é responsável pelo desenvolvimento de outras sementes transgênicas, como de algodão e de trigo. Até mesmo os produtores favoráveis à liberação dos transgênicos
no país se surpreenderam. Para Marcel Caixeta, vice-presidente da Comissão Nacional de Agricultura (CNA), essa atitude demonstra a intenção da Monsanto: sacrificar a agricultura brasileira. Segundo ele, os agricultores não sabiam que as sementes cultivadas eram patenteadas
pela transnacional e que deveriam pagar pelo uso da tecnologia. Mesmo assim, ele não espera ter prejuízos com a produção transgênica pois, “se isso acontecer, a Embrapa e os agricultores teriam sido vítimas de uma armadilha”. O vicepresidente da CNA confia Royalties – remuneração pelo uso que o governo ou pela concessão do federal não vai uso de uma patente, permitir a comarca de indústria ou brança pela de comércio; plano, fórmula ou processos transnacional. secretos; equipamento No entanto, seindustrial, comercial gundo declaraou científico; ou por ções do secreinformações tário executivo correspondentes à experiência adquirida da Agricultura, José Amauri Dimárzio,“eles (Monsanto) estão ajudando o governo a fazer cumprir a lei (MP 131), pois essa proposta inibirá o plantio ilegal”. Lopes Neto reforça que, se efetivada a cobrança,o agricultor pagará a conta:“não é razoável proteger a ilicitude do ato”, afirma. Para Gorgën, essa situação revela os impactos da introdução dos transgênicos no país: “Total dependência tecnológica e econômica, danos à saúde da população e ao meio ambiente”.
PARANÁ
m seminário realizado entre os dias 7 e 10, em Ponta Grossa, pode ser a ponta de lança para um movimento nacional contra os produtos transgênicos. O tema da 2a Jornada Paranaense de Agroecologia foi a ameaça que os organismos geneticamente modificados representam. Os participantes irão pressionar o governo a adotar uma postura mais clara contra a presença de transgênicos no Brasil. O que mais se discutiu foi a necessidade de uma articulação dos agricultores de todos os Estados. E ela começou por Ponta Grossa,onde 3 mil pessoas marcharam no centro da cidade, dia 7. O vice-governador do Estado, Orlando Pessuti (PMDB), também secretário da Agricultura, garantiu que o plantio de sementes não convencionais continuará proibido no Paraná. A legislação brasileira só permite que as empresas promovam pesquisas nesse setor, mas a fiscalização é falha. MONSANTO EM RISCO O ativista estadunidense Peter Rosset, coordenador da Organização Não Governamental Food First (Comida em Primeiro Lugar), disse que a Monsanto depende da liberação do mercado interno para sobreviver. “A Monsanto está em crise. Como o mercado de sementes no Brasil é muito grande, a empresa tem interesse de que a venda dos transgênicos seja liberada, para a sua sobrevivência”, afirmou. Caso resistam à Monsanto, os produtores brasileiros podem afastar de vez a ameaça das sementes transgênicas, mais caras e de produtividade menor que a convencional. “O povo brasileiro tem uma responsabilidade histórica pela so-
brevivência ou não desta transnacional”, advertiu Rosset. O ativista comentou ainda que a produção de alimentos hoje é suficiente para acabar com a fome no mundo.“O que está errado é a distribuição dos alimentos. Não seria uma nova tecnologia, como a dos transgênicos, que iria saciar a fome. O único objetivo da nova tecnologia é garantir os lucros de transnacionais.” Outro ativista, Jean Marc Von Der Weid, alertou que, se o Brasil optar por uma abertura aos transgênicos, vai perder o mercado europeu, refratário a produtos geneticamente alterados.Weid deu como exemplo o Paraná, onde o controle do comércio clandestino da semente “frankstein” foi maior do que o verificado no Rio Grande do Sul. Isso garantiu ao Estado desembarque seguro da safra de soja nos países europeus.“Os grandes produtores entenderam o risco de perder o mercado europeu, e pressionaram o governo estadual a não liberar as sementes.” PREFEITO PROÍBE Nos bastidores do encontro, atuação do prefeito de Ponta Grossa, Péricles de Mello (PT), foi decisiva para impedir a realização de um protesto em frente de uma unidade de pesquisa de sementes transgênicas da Monsanto, localizada na cidade. O prefeito ameaçou demitir o secretário de Agricultura de Ponta Grossa, René Sperafico, caso o protesto fosse realizado em frente da Monsanto. Mello alegou aos organizadores que a manifestação poderia repercutir de forma negativa para a imagem de sua administração. Pressionados, os organizadores recuaram. A passeata, por fim, foi realizada entre duas grandes praças públicas da região central do município.
■ Participantes do encontro agroecológico fazem passeata no centro de Ponta Grossa, dia 7
PERNAMBUCO
Deputados autorizam importação Assembléia Legislativa de Pernambuco aprovou, dia 7, o substitutivo aos Projetos de lei de no 53 e 54, que autoriza a importação de produtos transgênicos para consumo animal. Segundo os deputados, o Estado não tem capacidade de produzir milho suficiente para abastecer o setor avícola. Isso, segundo o deputado Sebastião Oliveira (PFL), poderia provocar a demissão de 150 mil trabalhadores. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, há cerca de 520 mil toneladas de milho disponíveis para venda na grande região de Barreiras, oeste da Bahia. O milho argentino está sendo vendido por R$ 24,50 a saca de 60 quilos. Já o milho de Barreiras é vendido ao
avicultor de Pernambuco por até R$ 29,00 a saca. O preço argentino não inclui o ICMS e o custo de frete do porto até a granja – por isso o custo é mais baixo. Para o deputado Isaltino Nascimento (PT), que deu parecer contrário ao projeto, a aprovação é uma estratégia das elites e das indústrias de patentes para pressionar o governo federal a liberar o cultivo transgênico no país. “Eles querem fazer do milho um fato consumado para conseguir a abertura total aos transgênicos.” A lei federal de biossegurança (nº 8974/95) concede à CTNBio o poder de determinar as normas de cultivo, consumo, comercialização e importação de transgênicos no país. Portanto, segundo o consultor jurídico da CTNBio, Osíris Lopes Neto,
“esse projeto é inconstitucional, o Estado não pode legislar sobre este assunto”. O projeto de lei será votado pela segunda vez, dia 14. Se for novamente aprovado, será encaminhado ao governador Jarbas Vasconcelos, que deve assinar a nova lei. Segundo Lopes Neto, os movimentos sociais, entidades civis e do consumidor podem entrar com uma ação declaratória de inconstitucionalidade junto à Advocacia Geral da União (AGU) para revogar a lei, se aprovada. “Não estamos impedidos de agir. Mesmo se aprovada a lei, não vamos permitir que sejam importados produtos transgênicos”, anuncia João Arnaldo Novaes, gerenteexecutivo do Ibama/Pernambuco. (CJ)
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Dimitri Stein Valle, de Curitiba(PR)
Celso Margraf/Diários dos Campos
Encontro convoca luta contra transgênicos
3
NACIONAL
Preços de bens e serviços administrados pelo setor público mais do que triplicaram desde 1994 e já consomem 28% da renda do assalariado; no Paraná, o governador Requião preserva a estatal Copel, salva da privatização, na era FHC, pela mobilizacão da sociedade civil
CONJUNTURA ECONÔMICA
Tarifas baseadas em dólar achatam a renda Lauro Jardim, de São Paulo (SP) ontados para tornar as estatais ainda mais atrativas e conquistar investidores dispostos a trazer dólares para o país, os contratos que hoje regulam preços e tarifas das concessionárias de serviços públicos ajudaram a criar, no Brasil, uma classe de privilegiados. De um lado, há centenas de milhares de pequenas e médias empresas e uma multidão de assalariados/trabalhadores que continuam
perdendo com a alta do custo de vida. De outro, uma minoria de setores, incluindo as empresas de telefonia privatizadas, geradoras e distribuidoras de energia, que estão autorizadas a aumentar suas tarifas com base em índices de preços que refletem a inflação passada, e compensam todo o impacto da desvalorização do real. ARMADILHA O sistema criou uma verdadeira armadilha ao retardar, ou mesmo impedir, a queda da inflação e,
de quebra, frear o crescimento da economia. O mais grave é que o Ministério da Fazenda anunciou que não pretende modificar a fórmula de cálculo daqueles preços. A intenção é preservar todos os contratos, mesmo que incluam cláusulas claramente abusivas e prejudiciais ao consumidor e à economia como um todo. Os números do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) e da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) da Uni-
versidade de São Paulo comprovam a perpetuação de pressões inflacionárias por conta da correção automática dos preços administrados – que incluem as tarifas de água, luz, telefone e ônibus urbano, os preços do gás de cozinha, da gasolina, óleo diesel e outros derivados do petróleo, até planos de saúde e remédios. ALTAS ABUSIVAS De acordo com o Dieese, entre julho de 1994 e dezembro de 2002, aqueles preços subiram quase 300%, diante de uma elevação média de 165,8% para o Índice do Custo de Vida (ICV).A Fipe, segundo dados trabalhados pela LCA Consultores, aponta uma alta de 219,3% para os preços públicos administrados (que levam em conta os aumentos dos telefones, da energia, transporte coletivo, saneamento e combustíveis), acumulada entre 1995 e a segunda quadrissemana de abril (ou seja, nas quatro semanas encerradas no dia 12 do mês). O Índice de Preços ao Consumidor (IPC), apurado pela Fipe na capital paulista, subiu “apenas” 96,2% em período idêntico.
A pressão dos preços administrados Variação anual (%) Peso* IPC-Fipe 100,00 Preços administrados 42,6 • Públicos (a) 22,3 • Privados (b) 20,3 Preços livres 57,4 • Alimentação 22,7 • Núcleo Industrial (c) 15,9 • Núcleo de Serviços (c) 10.2
1995 23,2 26,9 19,3 41,5 21,4 6,5 15,6 43,0
1998 -1,8 0,2 0,4 0,0 -2,7 -0,6 -3,8 0,1
1999 8,6 16,1 25,4 1,6 5,7 7,2 8,9 3,7
2000 4,4 7,1 10,9 2,9 2,4 -0,1 3,3 3,4
2001 7,1 8,5 14,5 2,3 6,1 6,7 6,0 7,6
2002 9,9 6,5 8,5 4,3 12,5 18,5 11,0 9,5
2003(P) 5,4 6,0 8,4 3,5 5,0 6,6 5,1 3,2
Notas: (*) Peso atual, da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 1999 (a) Serviços públicos (energia, saneamento, telefonia, transportes, etc.) e combustíveis (b) Preços que sofrem interferência (como remédios e planos de saúde) e/ou são regidos por contrato (como mensalidades escolares) (c) Exclui produtos sujeitos a sazonalidade, como alimentos, vestuário, algumas bebidas, etc. (e) Até a 2a quadrissemana de abril (P) Previsão
MENOS RENDA Um outro estudo, da Rosenberg & Associados, retrata o estrago sobre os salários: entre 1994 e janeiro deste ano, a parcela do orçamento doméstico destinada a fazer frente a despesas com bens e serviços administrados saltou de 16,2% para 28,2%, ajudando a achatar a renda do consumidor e, portanto, a reduzir as chances de retomada do crescimento econômico. A questão é que os contratos nas áreas de energia elétrica e de telecomunicações prevêem correções anuais automáticas com base na variação do Índice Geral de Preços (IGP) e do Índice Geral de Preços do Mercado (IGPM), ambos medidos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Os dois indicadores incorporam em sua estrutura os preços cobrados entre as empresas no
ENERGIA
Jóia da coroa, Copel ficou de fora da “privataria” Dimitri Stein Valle, de Curitiba (PR)
CONTRATOS LESIVOS O sucessor de Lerner, Roberto Requião (PMDB), garantiu que o que resta das ações continuará em poder estatal. O governador suspendeu, em fevereiro, contratos de compra de energia das termelétricas Cien, da Argentina, e UEG Araucária, controlada pela estadunidense El Paso, e localizada na região de Curitiba. Os contratos eram lesivos aos cofres da Copel. Cada megawatt era adquirido por 42,00 dólares (UEG) e 29,00 dólares
(Cien). No entanto, a mesma quantidade era revendida, em moeda nacional, por R$ 4,00, no Mercado Atacadista de Energia (MAE). “Tínhamos de suspender os contratos. O valor total deles (cerca de R$ 1,2 bilhão) representava um terço do nosso lucro líquido. Se os acordos fossem mantidos, a empresa correria o risco de quebrar em um ano”, afirmou o presidente da Copel e ex-governador do Paraná, Paulo Pimentel. “A Copel nunca precisou desses contratos, porque sempre foi superavitária na produção de energia”, acrescentou o ex-superintendente da empresa, Aldino Beal, com 26 anos de serviços prestados à companhia. Beal sabe o que fala. Em pleno apagão de 2001, o Paraná ajudou
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Katie Muller/Gazeta do Povo/AE
ista como a melhor empresa estadual do setor no país, a Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel), paradoxalmente, ficou de fora do leilão promovido no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Pressões da sociedade, o apagão de 2001, crises internacionais e um histórico de eficiência nos 49 anos de vida da Copel a afastaram da privatização total de seu patrimônio. Hoje, o governo do Paraná detém 31% do controle acionário da companhia. Em janeiro de 1995, quando Jaime Lerner (PFL), aliado de FHC no Estado, assumiu o governo, o poder público
era dono de 81,5% das ações. A abertura do setor energético promovida na gestão do ex-presidente tucano permitiu que a maior parte das ações fosse parar em mãos de investidores estadunidenses e do BNDES.
4
■ Estudantes ocupam Assembléia Legislativa do Paraná durante votação de projeto Popular contra a privatização da Copel
São Paulo a amenizar os efeitos do racionamento exportando energia. A direção da Copel declarou em comunicado oficial que esses contratos ajudaram, em grande parte, a gerar um prejuízo líquido de R$ 320 milhões no balanço de 2002. Beal defende que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investigue o que levou a antiga direção da Copel a fechar contratos que só prejudicaram a empresa. COMO A ENRON “Quiseram transfor mar a Copel numa Enron”, disse o exsuperintendente numa referência à empresa estadunidense de energia que faliu ao ser flagrada inflando o valor de suas ações para esconder uma divida bilionária. Por ironia, casos como o da texana Enron e do apagão registrado no mesmo ano de 2001 na Califórnia, onde empresas privadas também controlavam o setor de energia, ajudaram a evitar que a Copel caísse sob controle privado, como ocor reu com a Eletropaulo, por exemplo. O racionamento de energia imposto pelo governo brasileiro em 2001, conhecido como apagão, que também ajudou a espantar interessados estrangeiros na compra da Copel, além da pres-
mercado atacadista, que representam 60% do IGP e do IGP-M. Ou seja, sofrem grande influência das variações dos custos de matériasprimas, como aço, borracha, ferro e metais em geral, soja, e de insumos, como energia e petróleo. CONTAS EM DÓLAR Todos esses preços são, direta ou indiretamente, regulados pelo mercado internacional e sobem quando o dólar dispara aqui dentro, como aconteceu no segundo semestre do ano passado. Em alguns casos, como o da energia, o aumento fixado em 2002 terminou influenciando na elevação do IGP, que acumula um salto na casa dos 32% nos 12 meses terminados em março deste ano. E, incrivelmente, vai puxar para cima o reajuste da conta de luz em 2003. O economista-chefe da LCA Consultores, Luís Suzigan, prevê, para este ano, aumentos ainda mais salgados para os preços administrados, em função dessa “indexação” (correção automática, com base na inflação “velha”) dos contratos das concessionárias de serviços públicos. CICLO VICIOSO De fato, o texto da ata da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), realizada em fevereiro, aponta que os preços administrados subiram 2,3 vezes mais depressa do que os demais preços. Na verdade, os preços em geral não registram, hoje, o mesmo ritmo de alta dos últimos meses de 2002, mas as tarifas e preços administrados vão continuar refletindo a escalada observada no ano passado e gerando mais inflação. Com um agravante: para evitar que os demais preços na economia sejam “contaminados” pelos aumentos, trazendo de volta a “espiral inflacionária” do passado, o Banco Central decidiu manter os juros nas alturas, esfriando a economia. Eterniza-se a crise apenas para respeitar contratos cujo teor real a sociedade desconhece.
são de partidos políticos, sindicatos, empresários, trabalhadores e estudantes do Paraná, obrigaram o governo estadual passado a cancelar a venda da empresa. VITÓRIA DA SOCIEDADE “Aquela decisão representou uma vitória da sociedade”, afirmou um dos diretores de Itaipu Binacional, Nelton Friedrich, que coordenou o Fórum Contra a Privatização da Copel. A movimentação reuniu 140 mil assinaturas.Tanta mobilização é explicada pela identificação da Copel com os paranaenses. Ela atende 393 dos 399 municípios do Estado. Fundada em 1954 como uma das várias companhias estaduais para fomentar o desenvolvimento industrial em curso na era Vargas, a Copel é considerada hoje a melhor empresa estadual de energia do Brasil. Isso foi possível graças às 17 usinas hidrelétricas e uma a carvão que a empresa construiu. Toda essa estrutura tem poder para gerar 4,6 mil megawatts (7% do que é produzido no Brasil), o que possibilita à empresa enviar por seus 160 mil quilômetros de linhas de transmissão parte da energia excedente para outros Estados, como São Paulo e Mato Grosso do Sul.
DESMONTE DO ESTADO
NACIONAL
Governo impõe cortes de quase 40% nos recursos destinados a financiar a máquina de arrecadação; a falta de fiscais facilita o contrabando, a fraude e, entre outras coisas, a importação ilegal de armas e munições pelo crime organizado
etralhadoras russas, armamento pesado, fuzis e munição de uso privativo do Exército estadunidense e das forças armadas israelenses. Não é por acaso que o narcotráfico mostra suas garras cada vez com maior desenvoltura no Brasil.Também não é coincidência que o avanço aconteça no mesmo momento em que o país assiste à continuação de uma política de desmanche do setor público, com destaque, neste processo, para o desmonte premeditado da Secretaria da Receita Federal (SRF), favorecendo a ação de contrabandistas e sonegadores. Afinal, as armas exibidas pelo crime organizado, que sitia zonas inteiras do Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória e de outras capitais, entraram no país aproveitando as brechas do sistema aduaneiro e o desmantelamento da fiscalização, que vem ocorrendo desde os anos 80. ROMBO “Está em curso um sensível e notório esvaziamento da Secretaria da Receita Federal”, afirma o diretor jurídico do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco Sindical),Tadeu Matosinho. Essa política de desmonte, segundo estima o Unafisco Sindical, tem causado um rombo de R$ 10
bilhões por ano, apenas por conta do contrabando e descaminho de mercadorias. A falsificação de produtos, que deveria ser coibida pela Receita, causa um rombo anual de 10,5 bilhões de dólares em impostos, segundo estimativas da indústria. A sonegação desvia dos cofres públicos, no total, um real para cada outro arrecadado, algo como R$ 250 bilhões por ano, em valores de abril, com base em projeções realizadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou a sonegação em 1994. CRIMINALIDADE “Os cálculos ainda não levam em conta os prejuízos causados pelo desemprego e na área de segurança pública, por exemplo”, complementa Matosinho. O contrabando e as fraudes na importação de bens e produtos penalizam a indústria regularmente instalada, roubando mercados, provocando queda nas vendas, reduzindo a produção e gerando demissões. Na área de segurança, o desmantelamento tem facilitado o contrabando de armamento pelo crime organizado. No limite, pode-se dizer que há uma relação bastante próxima entre o avanço dos índices de criminalidade e a operação de desmonte da Receita. O projeto de um Estado mínimo criou uma obtusa equação em
■ Apreensão de caminhão com carga de maconha no Rio de Janeiro que “se paralisa a máquina arrecadadora para gerar superávit primário”, diz Matosinho. O superávit primário corresponde à receita que sobra depois de descontadas as despesas do governo, sem considerar os gastos com juros das dívidas interna e externa. Ou seja, toda a “economia” feita pelo governo com o arrocho imposto ao setor público é destinada a pagar os juros cobrados pela especulação no mercado financeiro, que consomem R$ 125 bilhões do orçamento federal.
Enxugamento afasta 5 mil fiscais nas últimas décadas m meados dos anos 1970, relembra Tadeu Matosinho, diretor da Unafisco Sindical a Receita empregava 12,5 mil auditores-fiscais, numa época em que a produção anual de veículos – só para se ter uma dimensão do “tamanho” da economia brasileira de então – mal superava as 900 mil unidades.A produção de aço bruto, em outro exemplo, atingia a casa das 9 milhões de toneladas. E o fluxo de comércio exterior, na soma de exportações e importações, rondava os 20 bilhões a 22 bilhões de dólares por ano. Apenas em termos hipotéticos, considere-se que, naquele período, cada auditor respondia pela fiscalização de 1,760 milhão de dólares no comércio exterior, supondo-se que todos os fiscais estivessem lotados nos postos da aduana brasileira. Hoje, o corpo de auditores da Receita está limitado a 7,5 mil profissionais, 40% menos do que nos anos de 1970. Desde lá, a produção de aço cresceu três ou quatro vezes, chegando a mais de 30 milhões de toneladas. A indústria automobilística passou a despejar no mercado em torno de 1,8 milhão de veículos por ano e tem capacidade para produzir 3 milhões – mais de duas vezes a produção verificada na metade dos anos de 1970. O fluxo de comércio exterior alcança mais de 112 bilhões de dólares por ano, um salto de mais de cinco vezes no período. Apenas para dar uma dimensão da desmontagem na Receita: cada auditor hoje seria responsável pela fiscalização de 15 milhões de dólares por ano, uma relação
oito vezes e meia acima da observada entre 1975/76. Mais grave, o total de auditores fiscais na ativa, hoje, representa cerca de um terço dos 20 mil que a própria Receita considera como o número mínimo ideal para desempenhar as funções de fiscalização e arrecadação de impostos no Brasil. Este último dado, no entanto, está defasado, pois foi projetado ainda em 1995/96 pelo setor de logística da Receita, prossegue Matosinho. O mais provável é que o abismo entre o ideal e a realidade tenha se alargado ainda mais desde então, já que a economia sofreu novas mudanças nesses sete ou oito anos. Matosinho aponta que o desmantelamento prossegue mesmo depois da mudança de governo. Excluindo as despesas com pessoal ativo e inativo, o orçamento da Receita para 2003 havia sido fixado em R$ 706 milhões, o que representava um corte de R$ 202 milhões diante dos R$ 908 milhões estabelecidos para 2002. Em fevereiro deste ano, para cumprir as metas acertadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), paradoxalmente, o Ministério da Fazenda impôs um corte de 16%,reduzindo o orçamento da Receita para R$ 592 milhões. Para agravar, a secretaria está autorizada a gastar, neste ano, apenas R$ 488 milhões, correspondendo a um corte de 38% em relação ao orçamento efetivamente realizado em 2002, diz o diretor do Unafisco Sindical. Os restantes R$ 104 milhões somente poderão ser desembolsados em 2004. (LJ)
O total de auditores na ativa representa 1/3 dos 20 mil que a Receita considerava, em 1995, como o mínimo para desempenhar as funções de fiscalização e arrecadação de impostos
Um décimo dos fiscais da França A estrutura da Receita Federal, no Brasil, poderia ser totalmente diferente, hoje, equiparando-se àquelas de países mais ricos. Recursos não faltam, ao contrário da retórica oficial. O Fundaf, um fundo criado para financiar a modernização e aparelhamento da fiscalização, alimentado com o dinheiro das multas cobradas no recolhimento de impostos em atraso, acumula uma receita anual na casa dos R$ 3 bilhões, afirma o diretor jurídico do Unafisco Sindical, Tadeu Matosinho. Mas o grosso daquele dinheiro fica “congelado” e é desviado, todos os anos, para os cofres do Tesouro, para pagamento de juros aos credores do governo. Como fica evidente, a SRF poderia investir seis vezes mais do que investe hoje, revertendo o desmonte. Não há interesse real em combater a sonegação e o contrabando, o que acaba criando situações absurdas como esta, por exemplo: a França, com seus 550 mil quilômetros quadrados, 15,5 vezes menos que o Brasil, tem dez vezes mais fiscais nas fronteiras e alfândegas, com aviões e helicópteros à disposição. São 20 mil auditores instalados nas aduanas francesas, diante de meros dois mil no Brasil.
Sem controle Viracopos, em São Paulo, um dos maiores aeroportos de cargas do país, com um movimento diário estimado, em média, em 400 toneladas, dispõe de 60 auditores. No Japão, uma ilha com menos de 378 mil km, um pouco maior do que o Estado de Goiás, há 8 mil fiscais aduaneiros, quatro vezes mais do que em todo o Brasil. A partir de 1998, surgiu um complicador nesta área. A Instrução Normativa 111/98, da SRF, criou novas regras para a averiguação e despacho de mercadorias em portos e aeroportos, abrandando, na prática, os controles aduaneiros. Um sistema informatizado define os parâmetros do que deve e do que não precisará ser fiscalizado na alfândega. Desde então, 80% das cargas importadas entram pelo chamado “canal verde”, ou seja, são liberadas automaticamente, sem fiscalização e sequer sem retenção dos documentos referentes ao produto importado para conferência posterior. “Apostou-se no aparato tecnológico, mas este não substitui o trabalho do fiscal”, declara Matosinho. (LJ)
Legislação beneficia sonegadores Hoje, sonegação não dá mais cadeia. Desde 1995, não por coincidência quando assumiu o governo Fernando Henrique Cardoso, a Lei nº 9.249 permite, em seu artigo 34, o cancelamento do processo penal e a extinção da punição para todo sonegador que, pego com a boca na botija, simplesmente pagar o que deve. A lógica fiscal substituiu a ética. Hoje, como apontam a presidente do Unafisco de Minas Gerais, Maria Lúcia Fatorelli, e a edição de número 4 da revista Conexão, do Unafisco Sindical, PC Farias não seria preso por sonegação.
O estratagema foi estendido, em 2000, pela Lei nº 9.964, que beneficia com a extinção do processo penal a todos os que aderiram ao Refis, um programa de refinanciamento (perdão fiscal, na verdade) que permite que as empresas devedoras do Fisco tenham até 99 anos de prazo para pagar suas dívidas ao Leão e à Previdência.
Burocratização O trabalho dos fiscais vem sendo dificultado ano a ano, desde 1995. Em 1996, a Lei nº 9.430 impediu que os auditores da Receita denunciem sonegadores por crimes fiscais enquanto o processo administrativo não for concluído, buro-
cratizando o processo de cobrança. Até então, a representação fiscal era feita no momento da autuação da empresa faltosa. Três anos depois, em 1999, uma simples portaria do secretário da Receita, de número 1.265, obrigou os fiscais a descrever o setor e os livros que pretendem fiscalizar numa empresa, além de tornar obrigatória a comunicação da empresa que gerou a suspeita de fraude ou sonegação.A medida, igualmente, burocratiza a fiscalização e esvazia o caráter de surpresa da ação fiscal, permitindo que empresas de um mesmo grupo se antecipem à chegada dos fiscais. (LJ)
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Lauro Jardim, de São Paulo (SP)
Márcio Fernandes/AE
Desmanche da Receita favorece (até) avanço do narcotráfico
5
NACIONAL
O governo confunde o déficit do INSS com o de todas as instituições previdenciárias públicas – federal, estaduais e municipais; a crise exige a adoção de reformas que nada têm a ver com a proposta de redução dos benefícios e aumento do tempo de contribuição do trabalhador
SEGURIDADE SOCIAL
Luciney Martins/Rede Rua
Déficit do INSS: um mito fabricado Wilson Cano e Lício C. Raimundo Especial para Brasil de Fato tema do alegado déficit previdenciário continua na ordem do dia e já faz parte dos documentos oficiais para a reforma da Previdência. Só que desta vez a reforma é capitaneada por um governo cujos princípios, constantes da proposta apresentada durante as eleições, se opunham radicalmente àqueles que por oito anos castigaram o país. O problema é que o déficit alegado é a soma dos resultados de todas as instituições previdenciárias públicas – federal, estaduais e municipais, que totalizariam um déficit anual de mais de R$ 75 bilhões. É necessário separálos, dadas suas especificidades, problemas e, principalmente, valores envolvidos. Apenas o déficit da Previdência do setor público federal equivale a pouco mais do que o dobro do déficit do INSS. Aliás, causa estranheza recente proposição de autoridade federal no sentido de corrigir os benefícios reais da Previdência pela taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB, soma total das riquezas do país). Isso, sim, implicaria exigir alocação de verbas específicas ao INSS, que talvez excedessem as verbas sobrantes da Seguridade Social. DE OLHO NO DINHEIRO Membros do governo e a mídia continuam a propalar um suposto déficit do INSS, de R$ 17 bilhões em 2002. Este seria, segundo alegam, um problema crescente, cuja solução implicaria
■ Segurados do INSS aguardam atendimento em hospital público de São Paulo redução de benefícios e/ou aumento do tempo de contribuição do trabalhador. O debate voltou a aguçar os interesses do sistema financeiro, ávido por manipular todo dinheiro grande e barato. Cabe fazer algumas indagações e ponderações sobre o dito déficit. A tabela abaixo mostra os dados da receita total (arrecadação e receitas próprias mais transferências do governo) e os gastos totais. Os resultados negativos ocorrem em apenas 3 anos da série (coluna A-B), mas o saldo piora a partir de 1994: é quando a taxa de desemprego cresce muito, aumenta a informalidade e cai o rendimento médio dos trabalhadores, causados pela baixo cres-
cimento do PIB. O rendimento médio é uma estimativa que leva em conta: a) massa salarial anual dos trabalhadores contribuintes do INSS (R$ 495,9 bilhões) e b) a parcela relativa a essa massa que se encontra no intervalo de remuneração entre 7 e 20 salários mínimos (27,5% do total). Aplicando-se a alíquota de 11%, chega-se ao valor de R$ 15 bilhões. ARDIL FISCAL O déficit alegado (coluna C-B) representa as “transferências” que o governo federal faz ao INSS para cobri-lo, valendo-se, para isso, apenas de frações da Contribuição Social sobre o Lucro e da Cofins. Mas as contribuições foram criadas jus-
tamente para aumentar os recursos da Seguridade Social (cujo orçamento é superavitário), e não para aumentar o superávit primário do orçamento ou pagar outras despesas. Além disso, há um ardil fiscal: a Desvinculação de Recursos da União (DRU) retira 20% dos recursos próprios do INSS, “devolvendo-os”, parcialmente, como transferência, para cobrir o déficit. Dessa forma, não há déficit algum. É como se considerássemos os gastos com uma escola pública (ou com os de uma delegacia), como déficit. Haveria enorme superávit, se os problemas (metodológicos, administrativos e os da política econômica), que neste texto apontamos, fossem enfrentados e sanados.
Os números do INSS Dados calculados com base em R$ bilhões de 07/1999 Anos
Desemprego* (%)
PIB (%)
A Receita total
B Despesa total
A-B
C** Receita própria
C-B
(C-B)/C (%)
91 (1) 92 (1) 93 (1) 94 (1) 95 96 97 98 (2) 99 2000 2001 2002
11,7 15,2 14,6 14,2 13,2 15,1 16,0 18,2 19,3 17,6 17,6 19,0
1,0 - 0,5 4,9 5,8 4,2 2,7 3,3 0,1 0,8 4,4 1,5 1,5
49,4 49,5 50,5 50,0 54,7 62,7 67,3 68,8 67,8 67,4 69,7 72,3
48,5 42,3 46,7 45,0 54,9 64,4 64,7 71,2 67,6 66,7 69,6 70,5
0,9 7,2 3,8 5,0 - 0,2 - 1,7 2,6 - 2,4 0,2 0,7 0,1 1,8
42,7 48,4 47,5 47,7 50,9 59,8 63,1 58,3 54,3 54,5 54,0 55,2
- 5,8 6,1 0,8 2,7 - 4,0 - 4,6 - 1,6 - 12,9 - 13,3 - 13,1 - 15,6 - 15,3
-13,6 12,6 1,7 5,7 - 7,9 - 7,8 - 2,6 - 22,1 - 24,4 - 24,0 - 28,9 - 27,5
INSS Fonte: Iesp-Fundap – vários números. (1) Entre 1991 e 1994, as receitas financeiras eram cerca de 9% da receita total, caindo para 0,4% no período 1996-2001. (2) Mudança na lei do Tempo de Serviço – Contribuição, aumentando o número de aposentadorias. (*) A taxa de desemprego medida pelo Seade-Dieese é a média anual para a Região Metropolitana de São Paulo. (**) Inclui transferências do governo federal relativas aos seus funcionários em regime CLT.
Consideremos, ainda, que o montante da renúncia previdenciária relativo apenas a micro e pequenas empresas, trabalhadores domésticos, clubes de futebol e entidades filantrópicas, soma algo como R$ 10 bilhões. Bastaria tão somente cobrar essa renúncia para que os R$ 17 bilhões se reduzissem a R$ 7 bilhões. Acrescente-se a isso o montante das dívidas totais de empregadores (públicos e privados) junto ao INSS que, hoje, segundo a Associação Nacional dos Fiscais da Previdência (Anfip), constituiriam a fantástica soma de R$ 180 bilhões. Embora parte disso não constitua dívida efetiva, a morosidade da burocracia do INSS e a da Justiça resultam em nova e fantástica renúncia. Por outro lado, os benefícios pagos a idosos urbanos e trabalhadores rurais, que raramente contribuíram com o INSS, também estão nesse conjunto e, como suas aposentadorias são, de fato, uma inquestionável e necessária política social, a rigor, não poderiam fazer parte das despesas com aposentadorias, ampliando o déficit, e sim ter uma verba orçamentária específica (assistência social) para pagá-los. Aliás, dos R$ 17 bilhões de déficit, R$ 14,7 bilhões tiveram origem no setor rural (6,7 milhões de aposentados que não contribuíram e empresas rurais que pouco contribuem). Wilson Cano e Lício C. Raimundo são, respectivamente, professor titular e doutor em Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Para os leitores que desejem aprofundar seu co as nh ec im en to so bre est s questões, recomendamo S. de s lho os recentes traba Dain (O financiamento pú a blico na perspectiva da polític e ia om on social, Rev. Ec ia, om Sociedade, Inst. Econ Unicamp, 12/2001) e o de , M. Milko e J. O.L. Ribeiro envim vol Seguridade e Desen to: Um projeto para o Brasil, qu e est á na pá gi na da internet www.anfip.org.br. Este último mostra deta, lhadamente que, para 2001 o “deficit” de R$ 15 bilhões se converte em superávit de R$ 30 bilhões!
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Solução da crise exige vontade política
6
sistema previdenciário, depurado das renúncias e do problema metodológico, pode funcionar perfeitamente em sua atual base de repartição e ainda gerar um farto superávit. Cabe perguntar como tem sido administrado o patrimônio do INSS, que não é pequeno, e cujos imóveis, quando alugados a particulares, recebem valores ínfimos. Bem administrado, esse patrimônio também poderia reduzir uma parcela do alegado déficit. A questão previdenciár ia
continuará a viver de expedientes calcados no improviso enquanto não for encontrado um encaminhamento mais sólido e permanente para as questões que estão na base da fragilização de suas contas: o enorme aumento da taxa de desemprego aberto, a queda do rendimento médio real da classe trabalhadora, a precarização do emprego e o aumento da informalidade (que já perfaz 55% da população economicamente ativa – PEA), ampliados pela política macroeconômica, que não permite um crescimento suficiente para enfrentar esses problemas.
No fundo, é a estagnação econômica a grande causadora de um eventual déficit. Além desses fatos, por que não imaginar um aumento dos tetos de benefício e de contribuição para os trabalhadores do setor privado para, digamos, 20 salários mínimos, por exemplo? Tomando por base dados extraídos da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), temos que o aumento da arrecadação que resultaria dessa ampliação traria, imediatamente, ao sistema recursos adicionais da ordem de R$ 15 bilhões/ano, quantia importante
para liquidar mais de 88% do tal déficit (por exemplo, em países desenvolvidos, tais reservas são aplicadas em títulos governamentais com juros preferenciais em relação aos dos demais tomadores). Frente a uma diferença entre gasto e arrecadação de R$ 17 bilhões, tais R$ 15 bilhões, se não chegam a zerar o déficit, o conduzem a um nível suportável para a sociedade, considerando sua tendência de crescimento não explosivo para os próximos anos. Para garantir o futuro benefício, parte dos novos recursos adicionais deveria constituir um fundo
de reserva de acumulação (para a Região Metropolitana de São Paulo, o rendimento médio anual em 2002 era 28,4% menor do que o de 1995, e 45,3% menor do que o de 1985, segundo a pesquisa Seade-Dieese). Os benefícios futuros deveriam incorporar o novo teto, de acordo com um fator de proporcionalidade, considerando-se o tempo de contribuição para o benefício, até o limite do novo teto. O déficit restante mereceria uma dotação orçamentária anual, a título de política social de rendas. Não seríamos o único país no mundo a fazê-lo. (WC e LCR)
CONJUNTURA
NACIONAL
A eventual adesão do Brasil à Alca produziria uma catástrofe econômica, mostra estudo da Unicamp; congresso da CUT de Sergipe pede que Lula cumpra compromissos de campanha; fiscais provam que privilégios de bancos causam rombo de bilhões na Previdência
Com Alca, indústria nacional quebra m em cada cinco trabalhadores brasileiros está desempregado; metade da população empregada não tem carteira assinada e vive sem os benefícios garantidos pela Constituição (férias, décimo-terceiro salário, fundo de garantia etc). Se o acordo da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) for assinado pelo Brasil, a situação pode piorar, avalia o economista Mariano Laplane, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador de um estudo sobre o impacto de acordos de livre comércio na indústria brasileira. A pesquisa, concluída em dezembro de 2002, foi encomenada pelo Ministério do Desenvolvi-
mento, Indústria e Comércio Exterior, no governo Fer nando Henrique Cardoso. Para Laplane, a abertura indiscriminada da economia brasileira poderia acarretar quebradeira na indústria nacional. “O custo, em termos de emprego, balança comercial e tecnologia pode ser muito alto”. O estudo — coordenado por mais três economistas (Luciano Coutinho, David Kupfer e Elizabeth Farina) e com a participação de especialistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — aponta que os acordos da Alca e da União Européia (UE) não interessam ao país.“Se o país estiver disposto a encarar novas rodadas de abertura é essencial, antes de tudo, implementar medidas para
retomar o crescimento, o investimento e o desenvolvimento tecnológico”, explica Laplane. O economista lembra que, há décadas, a indústria brasileira está patinando. Durante os anos de 1980, a economia sofreu uma forte estagnação. Na década de 1990, a política adotada por FHC, com juros altos e a manutenção artifical de um real valorizado em relação ao dólar, prejudicou a indústria. Nesse período, quase não houve investimentos.“É, no mínimo, ingênuo acreditar que a indústria brasileira poderia concorrer com a estadunidense.” Laplane não concorda com a tese da volta do crescimento econômico supostamente impulsionado pela Alca e UE. “É como se o acordo pudesse substituir o desenvolvimento nacional. Nós já vi-
SINDICAL
Unafisco propõe a Berzoini o fim de privilégios concedidos a bancos
O ‘pacto social’ não é uma bandeira da CUT, pois está fora de questão abrir mão de direitos e conquistas dos trabalhadores A sua eleição para a Presidência da República expressou a vontade de mudanças do povo trabalhador do Brasil, rumo a um país soberano, rumo ao atendimento das urgentes reivindicações de terra, emprego, moradia, salário, serviços públicos de qualidade, educação, saúde e segurança. Acompanhamos com preocupação a sua disposição de promover um ‘pacto social’, através do recém-criado Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. A história tem demonstrado que historicamente as tentativas de ‘pactos sociais’ entre opressores e oprimidos visam amortecer os conflitos e a capacidade de luta dos trabalhadores. O ‘pacto social’ não é uma bandeira da CUT, pois
está fora de questão abrir mão de direitos e conquistas dos trabalhadores ou deixar de utilizar instrumentos legítimos de luta de classe, como a greve, diante das ameaças ou ataques patronais ou das necessidades de luta por mais empregos, contra as demissões e por melhorias salariais. CONTRA A SOBERANIA Os planos e as ações do FMI atentam contra a soberania nacional e a autonomia do governo brasileiro. A CUT se posiciona contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) por entender que a sua implantação facilitará os monopólios estadunidenses, promoverá o desemprego e o agravamento do desemprego do nosso povo. Diante disso, defendemos a realização de um plebiscito oficial, para que o povo brasileiro possa livremente expressar a sua posição frente à Alca. A CUT sempre condenou a dívida externa como um instrumento de dominação do imperialismo que estrangula a nação brasileira, tendo nos seus sucessivos congressos afirmado que ela é ilegítima, já foi paga e que não é do povo. Esta deve ser a posição do governo brasileiro, dirigido por você, companheiro Lula. Os trabalhadores brasileiros sempre quiseram as reformas nas estruturas do Estado, como um instrumento para combater os entulhos deixados por sucessivos governos, que penalizaram os trabalhadores, semearam a miséria, a violência e a fome no solo brasileiro. No que diz respeito à reforma da Previdência, não aceitaremos a definição de um teto rebaixado; a não cor reção das distorções nos benefícios nas aposentadorias e pensões de alguns segmentos, particularmente o Judiciário; que os servidores públicos sejam tratados como os vilões; que os aposentados sejam taxados; e a ampliação da idade e do tempo de contribuição para a aposentadoria. Sabemos que nenhuma proposta de reforma tributária alterará o atual modelo econômico brasileiro, excludente e injusto, se não for feita a taxação das grandes fortunas e do sistema financeiro.”
Beto Almeida, de Brasília (DF) Unafisco Sindical entregou ao ministro da Previdência , Ricardo Berzoini, um conjunto de propostas alternativas à taxação dos aposentados contida na reforma previdenciária. Os auditores fiscais da Receita Federal propõem a retomada da alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das instituições financeiras no mesmo patamar em que se encontrava no início do governo FHC.
Esta medida permitiria a arrecadar pelo menos R$ 2,3 bilhões. Desde 1997, a alíquota da CSLL para instituições financeiras, que já chegou a ser de 23%, está reduzida a 9%. Os auditores recomendaram ainda o fim das renúncias fiscais concedidas às rendas do capital, o que permitirá gerar uma arrecadação de, no mínimo, R$ 10 bilhões. Pedem também o fim da série de privilégios das instituições financeiras como, por exemplo, a redução das bases de cálculo relativas ao PIS e à Confins.
Para ilustrar: somente os três maiores bancos privados do país poderiam pagar adicionalmente à União cerca de R$ 860 milhões de PIS e Confins se deles fossem cobrados os tributos na mesma base de cálculo praticada para as demais empresas. O Unafisco demonstra com números que a não taxação dos aposentados pode ser compensada pela tributação de “um segmento que há muito vem sendo desonerado de dar uma contribuição compatível com a sua capacidade contributiva.”
CAOS URBANO
Quinze mil marcham por moradia em SP João Alexandre Peschanski, da Redação União dos Movimentos de Moradia organizou uma marcha com 15 mil pessoas dia 7, em São Paulo (SP). O objetivo da manifestação foi pressionar o governador Geraldo Alckmin para que realize uma reforma urbana que atenda à população mais pobre do Estado. Maria das Graças Xavier,uma das coordenadoras da UMM, comentou que Alckmin pretende construir
12 mil habitações, mas que ele só beneficiaria pessoas que recebem mais de três salários mínimos.“Nós queremos que ele inclua famílias que recebam de zero a dois mínimos, pois são as que mais precisam”. A UMM é uma rede de movimentos populares que atua em favelas, cortiços e ocupações do Estado de São Paulo. Ela existe desde 1987 e reúne 120 entidades.A marcha da UMM começou às 8h na Praça da Sé, região central da cidade, e foi encerrada à tarde na frente da sede do governo paulista, o Palácio dos Bandeirantes (zona Sul).
Apesar de reivindicarem uma audiência com o governador, os manifestantes foram atentidos pelo secretário de Habitação, Barjas Negri, e agendaram uma nova reunião para quarta-feira, 14, cujo objetivo é marcar um encontro entre representantes da UMM e Alckmin. “Se não formos recebidos pelo governador ou se ele não estiver disposto a discutir, o único meio de resolver o problema de habitação será realizar diversas ocupações”, afirmou Maria, que disse existirem 400 mil prédios vazios a serem ocupados no Estado.
Anderson Barbosa
pós seu 9o Congresso Estadual, a CUT de Sergipe enviou, com data de 6 de maio, uma carta ao presidente Lula, em que assinala: “A sua história de líder operário também é a nossa história, pois combatemos nas mesmas trincheiras, tanto nas lutas em defesa dos direitos dos trabalhadores, como na árdua tarefa de construirmos nesta nação uma sociedade socialista. Companheiro Lula, é por isso que reconhecemos que a sua participação foi decisiva na fundação da CUT, na convocação aos trabalhadores brasileiros para que resistissem contra a onda neoliberal que se abateu sobre o continente latino-americano e acima de tudo, para fazer ver as elites que a história desse País pode ser decidida pelos que sempre foram dominados.
RETROCESSO No caso da indústria ligada à saúde, a conclusão do estudo é categórica. “O tratado pode ocasionar retrocesso tecnológico significativo e perda de competitividade em novos produtos”. O impacto dos acordos sobre o setor da indústria química e petroquímica também seria negativo.
A pesquisa constatou também que alguns setores da indústria brasileira poderiam ter oportunidades de crescimento com a liberação comercial, como a cadeia produtiva do suco de laranja e a da siderurgia, por exemplo. Mas, mesmo nesses setores, as oportunidades só se tornariam reais se os Estados Unidos abrissem efetivamente seu mercado e eliminassem, não apenas barreiras tarifárias, mas também outras barreiras aplicadas aos produtos brasileiros, como antidumping, salvaguardas etc. A conclusão do economista é que, sem uma política de crescimento econômico, não há como aproveitar as oportunidades, caso se “materializem”, nem como se defender das ameças dos acordos comerciais que estão sendo negociados.
PREVIDÊNCIA
CUT-Sergipe pede coerência a Lula Da Redação
mos, nos anos 1990, que isso não funciona”, afirma Laplane. Na pesquisa, foram analisadas 18 cadeias produtivas que representavam, em 2002, 53% do faturamento de toda a indústria brasileira. As empresas pesquisadas são responsáveis por 63% das exportações e 67% das importações do país. Além desses, foram estudados mais dois setores - biotecnologia e saúde.
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Jorge Pereira Filho, da Redação
■ A marcha percorreu 15 quilômetros, da praça da Sé ao Palácio dos Bandeirantes
7
NACIONAL
Há três anos, funciona no Ceará o Observatório do Judiciário, que tem por objetivo manter um controle externo informal das atividades dos juízes cearenses; a família de Manoel Lisboa, morto há 30 anos pela ditadura, conseguiu finalmente obter a urna com os seus restos mortais
SOCIEDADE CIVIL
Divulgação
Cearenses fiscalizam ação da Justiça Janaína de Paula, de Fortaleza (CE) á três semanas, a intocabilidade do único poder que ficou imune a qualquer tipo de democratização e controle social, após a Constituinte de 1988, foi colocada em xeque pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva — que exigiu a abertura da “caixa preta” e maior controle externo do Poder Judiciário. No entanto, há três anos funciona, no Estado do Ceará, uma iniciativa de fiscalização e controle da Justiça, protagonizada pela sociedade civil organizada: o Observatório do Judiciário, rede que reúne mais de 20 entidades – entre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil Habeas corpus – (OAB), a Comissão ordem judicial para libertação de uma de Justiça e Paz da pessoa detida, em CNBB e a Anistia geral para aguardar Internacional. em liberdade o O Observatóinquérito e/ou o julgamento. rio exerce uma espécie de controle Mandado de externo informal segurança – ordem do Judiciário ceajudicial para sustar a rense, visando sua determinação de uma autoridade que não moralização e sua seja um mandado de democratização, prisão. além do efetivo acesso da sociedaLiminar – medida temporária para de às instâncias sustar, até o judiciais. Os rejulgamento da causa, sultados foram tão a determinação de positivos que o uma autoridade. Rio Grande do Norte, o Maranhão e o Distrito Federal querem adotar o modelo (leia o quadro abaixo). QUEBRA DE TABU Surgido na esteira da tentativa de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembléia Legislativa do Ceará, o
pulação tem o direito de procurar saber o que se passa em todas as instituições que utilizam recursos públicos. E a Justiça democratizada será reflexo do que a sociedade realmente pensa da máquina judiciária”, diz Pinheiro. “Não quero ser o último a saber o que a sociedade tem comentado sobre a magistratura”, justifica-se. A repercussão de casos como o de Maria da Penha Fernandes, vítima de violência doméstica, leva a experiência do Observatório até para fora do país.Vítima da violência do ex-marido, Penha ficou paraplégica e viu o processo contra seu agressor se arrastar por 19 anos — o que levou o Brasil a ser condenado pela primeira vez por crime de violência doméstica em uma corte interna-
■ Os deputados federais João Alfredo (PT-CE, ao centro) e dr. Rosinha (PT-PR) entregam ao presidente Lula documentação sobre o Observatório do Judiciário Observatório já encaminhou mais de 50 denúncias sobre nepotismo, tráfico de influência, negociações de sentenças ao Tribunal de Justiça do Ceará e às instâncias superiores (Superior Tribunal de Justiça e Procuradoria Geral da República). A pressão da sociedade organizada provocou mudanças impensáveis: o Tribunal de Justiça afastou dois desembargadores (um deles já reintegrado) e três juízes, numa iniciativa inédita em 150 anos de Tribunal. “O Observatório conseguiu quebrar um tabu, não só no Ceará, mas também em todo o País, mostrando que o Judiciário não é intocável, não está acima e fora de qualquer possibilidade de ser criticado. Esse poder emana do povo e, como tal, deve e pode ser controlado pela sociedade”, observa o deputado federal João Alfredo (PT/CE), um dos articuladores da rede e autor do pedido de criação de duas comissões na Câmara: uma, especial, para de-
bater a reforma do Judiciário e uma CPI para investigar tráfico de influência e venda de sentenças nos Tribunais Superiores. O processo inédito de mudanças na estrutura da Justiça cearense vai além, com a eleição, pela primeira vez na história, de uma chapa de oposição para a direção da Associação Cearense dos Magistrados (ACM), consagrando uma nova geração de juízes que internamente luta pela democratização. O presidente da ACM, Michel Pinheiro, defende a participação de juízes na escolha dos dirigentes da Justiça, o fim das sessões secretas, além de criticar o teor da reforma que vinha sendo discutida no Congresso.
Algumas das atividades realizadas 1 Denúncia de indústria de liminares estabelecendo um verdadeiro entra-e-sai de prefeitos no Ceará. No município de Bela Cruz, na região Norte, a prefeita foi cassada dez vezes e reintegrada outras tantas no mesmo mandato. 2 Quase cem advogados que atuam na Região do Cariri encaminharam representações ao Tribunal de Justiça do Ceará comprovando o conluio de uma juíza de Juazeiro do Norte com o único advogado que ganha as causas naquela comarca. 3 Um só desembargador responde a processo no Tribunal de Justiça por 15 denúncias, entre as quais, patrimônio incompatível com os salários obtidos pelo magistrado; substituição ilegal de juízes; doações cartorárias; tráfico de influência; concessão de liminar em mandado de segurança determinando efeito suspensivo, sustando os efeitos de decisão de juiz singular; publicação de livro-relatório do Poder Judiciário; construção de memorial; alienação de imóveis; compra de automóveis; contratações feitas sem licitações. 4 Denúncias originárias da CPI do Senado contra juízes e desembargadores envolvidos em tráfico de influência,favorecimento pessoal e irregularidades processuais, entre outras acusações. 5 Denúncia de favorecimento de empresas envolvidas no esquema de fraude do FINOR por meio de bloqueio, transferência e saque de mais de R$ 11 milhões de instituição financeira sob intervenção do BACEN.
DIREITOS SOCIAIS “O Observatório é uma manifestação espontânea da sociedade sobre assuntos que envolvem o Judiciário. Acredito que, como a sociedade remunera os agentes públicos, entre eles os juízes, a po-
Ministro discute iniciativa do Ceará
A experiência se espalha pelo Brasil O Observatório do Judiciário extrapolou as fronteiras do Estado do Ceará. Entidades e pessoas de outros Estados têm procurado as entidades que participam da rede, interessadas na experiência cearense. No Distrito Federal, o deputado distrital Augusto Carvalho (PPS), motivado por es-
cândalos envolvendo magistrados, articula-se com outros parlamentares e representantes da sociedade civil para implantar o modelo de controle externo.“Em Brasília, são muitas as denúncias envolvendo juízes e desembargadores em negociatas como a venda de habeas corpus para traficantes, sem falar na grilagem de terras públicas”, ar-
gumenta Carvalho. No Rio Grande do Norte, o deputado estadual Paulo Davim é um defensor do projeto. “Nunca é demais criarmos mecanismos de controle do Judiciário. Estou certo de que é positivo, inclusive para o aprimoramento da própria Justiça”, analisa Davim.
Observatório do Judiciário já começa a se articular nacionalmente. Logo nos primeiros meses do governo Lula, membros da rede estiveram em audiência em Brasília com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, para prestar apoio à reforma do Judiciário e apresentar um diagnóstico da situação do Judiciário no Ceará. Integrantes do Observatório estiveram também com representantes da Procuradoria Geral da República, do Superior Tribunal de Justiça e com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Melo, para discutir o andamento das investigações de denúncias envolvendo juízes e desembargadores cearenses, encaminhadas pela rede.
MEMÓRIA
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
8
família de Manoel Lisboa de Moura, fundador do Partido Comunista Revolucionário, conseguiu, 30 anos após o assassinato do líder político pela ditadura, realizar o enterro desse que foi um dos mais importantes revolucionários do Estado de Alagoas. Dia 6, em ato na prefeitura de São Paulo, uma urna com os restos mortais de Manoel Lisboa foi entregue a seus familiares, na presença de militantes de organizações de esquerda, parlamentares e autoridades dos governos municipal, estadual e federal. A cerimônia, que reuniu cerca de 300 pessoas, teve apresentações do Teatro União e Olho Vivo (TUOV), leitura de poesias e uma retrospectiva do legado de Manoel Lisboa.
De São Paulo, a urna foi levada para Recife (PE), onde 700 pessoas realizaram uma manifestação no monumento Tortura Nunca Mais.Além do prefeito de Recife, João Paulo, participaram do ato Amelinha Teles, pela Comissão de Desaparecidos Políticos; Lula Falcão, pelo PCR, e Fernando Lira, ex-ministro da Justiça. No dia 8, os restos mortais de Manoel chegou a Maceió (AL), para uma cerimônia com a presença do Ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e do governador Ronaldo Lessa. HISTÓRIA DE LUTAS Manoel Lisboa de Moura nasceu em Maceió, em 1944. Foi diretor da União dos Estudantes Secundaristas de Alagoas (Uesa) e integrante da Juventude Comunista do PCB. Organizou o Centro Po-
pular de Cultura da UNE, apresentou e dirigiu peças de teatro. No golpe de 1964, cursava Medicina na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), da qual foi expulso, tendo seus direitos políticos cassados. Mudou para Recife, onde trabalhou na Cia. de Eletrificação Rural do Nordeste (Cerne). Em julho de 1966, foi preso logo após o atentado contra o então ministro Arthur da Costa e Silva, e posto em liberdade quatro dias depois, pois o inquérito não comprovou sua participação. Entrou para a clandestinidade e, em dezembro de 1966, fundou o Partido Comunista Revolucionário (PCR), junto com Amaro Luiz de Carvalho, o Capivara, e Ricardo Zaratini Filho, entre outros. No dia 16 de agosto de 1973, foi capturado por agentes do DOI-Codi e torturado até a morte.
A experiência pioneira de controle externo do Judiciário estará no centro das discussões da reforma do Judiciário. Atendendo à proposição do deputado federal João Alfredo, a Câmara dos Deputados criou mais uma comissão especial, desta vez para reestudar a reforma do Judiciário. O antigo projeto tramita no Senado, mas o parecer do senador Bernardo Cabral foi duramente criticado por entidades sociais. “Embora tenha avanços na questão trabalhista, o parecer contemplou o lobby da cúpula do Judiciário. A nossa comissão deve começar do zero e promover a participação popular nas discussões”, revelou João Alfredo. (JP)
Junhiti Nagazawa
Lisboa é sepultado, 30 anos após seu assassinato Da Redação
cional (Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos). “A sociedade tem demonstrado que, se for organizada, tem poder de mudar as coisas. Essa é a principal lição que trago da experiência do Observatório”, diz Penha, comemorando depois de tantos anos a punição do exmarido. Além desse, mais um caso cearense pode levar o Brasil a outra condenação no sistema internacional, por violação aos direitos humanos: o assassínio de um paciente em um hospital psiquiátrico no Ceará, em que as acusações recaem sobre a equipe médica e de enfermagem, e que ainda está impune pela Justiça estadual.
■ Comissão de lideranças parlamentares e populares cearenses em audiência com o ministro Márcio Thomaz Bastos
Ano I ■ Número 10 ■ Segundo Caderno
A política imperial dos EUA foi atacada de frente no I Encontro Hemisférico contra a Militarização, realizado no México, com 929 pessoas de 215 entidades de 28 países; em Brasília, ato comemora parecer de ministros que pedem ao presidente Lula veto ao acordo sobre a base de Alcântara
Encontro latino-americano denuncia terrorismo de Bush Maria Luísa Mendonça, enviada especial a San Cristóbal de las Casas (México) I Encontro Hemisférico contra a Militarização, que aconteceu em San Cristóbal de las Casas, no México, foi o palco de severas críticas em relação à política imperial do governo dos Estados Unidos. O evento ocorreu entre a quarta, 6, e a sextafeira, 9, e reuniu 929 pessoas de 215 organizações sociais, vindas de 28 países da África,Américas, Ásia e Europa. A palestra de abertura, do escritor mexicano Carlos Montemayor, denunciou a estratégia militar dos EUA para manter sua hegemonia. Ele questionou a definição subjetiva de terrorismo usada pelo presidente estadunidense, George Bush, como sendo uma “desqualificação política utilitária”. Para ele, a definição justi-
fica as intervenções militares com o objetivo de controlar recursos como o petróleo, do qual o país é o principal consumidor mundial (883 bilhões de barris por ano – a quarta parte da produção mundial). Montemayor salientou que as ofensivas militares estadunidenses servem como experiências da indústria bélica para testar novas armas e tecnologias militares. Segundo ele, uma das principais conseqüências da invasão do Iraque deverá ser uma nova corrida armamentista por parte dos países que possuem armas nucleares. Apontou, como forma de superar da prepotência dos EUA,“a emancipação do povo estadunidense contra os bárbaros que o governam”. IRAQUIANOS MORTOS A jornalista mexicana Blanche Petrich, que cobriu a invasão do Iraque como correspondente de
La Jornada, denunciou a falta de interesse por parte da imprensa em investigar o número de civis mortos. Segundo a organização inglesa Body Count, o número seria de pelo menos 2.600, e os feridos e mutilados atingiriam a cifra de 8.000. O embaixador da Palestina no México, Fawzi El-Mashni, denunciou o “terrorismo dos EUA, que destruíram 7.000 anos de civilização no Iraque”. Ele questionou a posição da Organização das Nações Unidas em relação ao governo de Israel, que já violou cerca de 500 resoluções do Conselho de Segurança, da Assembléia Geral e da Comissão de Direitos Humanos. Por se negar a ratificar o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, Israel não aceita a inspeção da ONU, apesar de possuir entre 400 e 500 ogivas nucleares. Fawzi explicou a estratégia de propaganda de Israel, que criou três “mitos”. Primeiro, que a Pa-
Investigação e desenho Ana Esther Ceneña
Controle militar dos recursos estratégicos
Biodiversidade Petróleo Bases militares dos EUA (implantadas ou em implantação) Raios de ação
INTERNACIONAL
BRASILDEFATO
lestina era uma “terra sem povo para um povo sem terra” – indicando que a população palestina tem Plano Colômbia – sido ignorada desde Intervenção militar o início da ocupaestadunidense na ção de seu territóAmérica do Sul sob o rio. Israel tenta ainpretexto de combater o narcotráfico no da desqualificar as continente. As operações críticas sobre suas do plano começaram em políticas, como senoutubro de 2000 do anti-semitas. O terceiro se refere ao grande aparato militar de Israel, justificado como “sistema de defesa”. Ele concluiu dizendo que a paz deve ser “sinônima de justiça” e explicou que os palestinos “não necessitam de piedade, mas de ações concretas de solidariedade”. PETRÓLEO A representante da organização Oil Watch, Esperanza Martinez, denunciou a destruição causada pela Texaco no Equador, que dizimou alguns povos indígenas, como os Ugua. Ela explicou que, em 26 anos de exploração, as mortes, a migração forçada e a tragédia ambiental, causadas pela corporação, equivalem a 51 vezes o valor da dívida externa, de 14 bilhões de dólares.A Oil Watch abriu um processo de indenização contra a Texaco, atualmente em andamento em tribunais equatorianos e estadunidenses. O economista colombiano Hector Mondragón também indicou as ligações entre a exploração de petróleo e a violência em seu país. Em 1999, o governo dos EUA exigiu que o país modificasse sua legislação em relação ao petróleo, permitindo sua exploração por transnacionais, como condição para iniciar o Plano Colômbia. Um dos principais objetivos do plano é o controle de recursos naturais em toda a região amazônica. O Plano Colômbia tem estimulado a guerra civil que, desde 1981, causou a migração interna de 3 milhões de pessoas – 400 mil o ano passado. Nos últimos 20 anos, o número de mortos chega a 200 mil, dos quais 5.000 líderes de sindicatos e movimentos sociais.
ANÁLISE
Da Redação ezenas de entidades organizaram um ato público, dia 12, em Brasília para comemorar o veto ao projeto de acordo que permitiria aos Estados Unidos usar a base espacial de Alcântara (MA). O veto foi recomendado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em abril, pelos ministros das Relações Exter iores (Celso Amorim), Defesa (José Viegas Filho) e Ciência e Tecnologia (Roberto Amaral). O projeto, apoiado pelo governo anterior, tramitava no Congresso. O objetivo do ato, convocado para o Auditório Nereu Ramos, Anexo I da Câmara dos Deputados, era consolidar esta importante
vitória do povo brasileiro. E também marcar a continuidade da luta pelos direitos das comunidades remanescentes de quilombolas. O debate sobre Alcântara atualizou a necessidade de ocupação e desenvolvimento da Amazônia que, sozinha, representa mais de 50% do território nacional. A imensidão verde, terra de ninguém, está à mercê das potências estrangeiras, especialmente dos Estados Unidos. Os estadunidenses já montaram vinte bases militares em torno da região. O cinturão seria completado mediante o aluguel da base de Alcântara, no Maranhão. Coube ao ex–deputado federal Waldir Pires (PT–BA) liderar, no Congresso Nacional, a luta para
impedir a entrega daquela que seria a melhor base de foguetes do planeta, em termos de localização estratégica e facilidade no lançamento. Alcântara pertence à Força Aérea Brasileira, que a idealizou, planejou e construiu. Países do Primeiro Mundo, historicamente exploradores dos povos semidesenvolvidos, sempre invocaram a razão do lobo para ficar com espaço infinito. Alcântara encontra-se a menos de três graus ao sul da linha do Equador o que, devido à rotação da Terra, proporciona velocidade inicial maior, permitindo a colocação de satélites em órbita com economia de até 30% de combustível, o que baratearia o transporte e aumentaria a carga útil transportada.
Até 2007, o serviço de lançamento de foguetes no mundo – imprescindível às telecomunicações, previsão do tempo e acompanhamento de tudo o que se passa na superfície terrestre, sem falar na sua importância militar – movimentará 45 bilhões de dólares. Um mercado bilionário, do qual o Brasil continua excluído. Além disso, sempre existiria a possibilidade de os EUA utilizarem a base para, em vez de foguetes espaciais, trazerem mísseis para daqui os jogar nos outros. O Exército Brasileiro tem um efetivo de cerca de 200 mil homens. Desse total, pouco mais de 20 mil vigiam a Amazônia, justamente a região do Brasil escancarada às investidas estrangeiras. São perto de 11 mil quilôme-
tros de fronteiras com oito países, inclusive a conflagrada Colômbia. Naquele mundão de chão, floresta e água, riquíssimo de minérios e praticamente inexplorado cabem 13 vezes o território de Portugal, ou duas vezes o da Bolívia, ou três vezes o do Paraguai, ou cinco vezes o do Reino Unido - que compreende a Inglaterra e a Irlanda. Para defender tamanho território – como se isso fosse possível –, lá se encontram apenas, só e tão somente, 20 mil homens, usando armas e equipamentos bélicos mais ou menos do tempo da onça, se os compararmos aos utilizados pelos maiores predadores da idade contemporânea. Colaborou Javier Godinho, de Goiânia (GO)
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Ato comemora veto à base de Alcântara
9
ENTREVISTA
A revolução não é um conto de fadas Claudia Korol, especial para Brasil de Fato, de Buenos Aires l pan, pan; al vino, vino; y asesino al asesino” diz o provérbio muitas vezes utilizado por aqueles que fazem a apresentação da presidenta da Associação Madres de Plaza de Mayo, Hebe de Bonafini. Em certos momentos, as palabras de Hebe são ásperas. Ferem a sensibilidade dos que pensam que a política de esquerda é só uma questão de bons modos. Irritam os que esperavan que o manto do esquecimento legitimasse sua impunidade. Golpeam o inimigo. Abraçam incondicionalmente os amigos. No dia 30 de abril, Madres completaram 26 anos. Mas não se detêm em comemorações e homenagens. As Madres têm uma meta: manter vivos no fogo da rebelião os sonhos de seus filhos e filhas. Brasil de Fato - Como a senhora analisa a situação atual na Argentina? Hebe de Bonafini - Creio que caímos numa armadilha e não vemos a saída. É como se tivessem aberto um caminho e todos foram entrando por ele. É uma situação muito difícil. Vai haver muita repressão, e os líderes da esquerda são incompetentes. Não foram capazes de escutar, de mudar, de transformar. Não falo dos outros, pois eles não são políticos, mas mafiosos. O movimento dos piqueteiros está muito complicado. Não se pode fazer piquetes por qualquer motivo: contra as enchentes, os planos do governo, contra qualquer coisa. Quando os partidos políticos formaram os “seus” piquetes, desnaturalizaram o movimento. O partido político pode apoiar os piquetes, mas não criar os seus próprios piqueteiros. Muitos não sabem o que fazer, há muita desorientação. Quando diziam que nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001 havia uma situação prer-revolucionária na Argentina, um “argentinazo”, eu achava que não havia. Tivemos uma boa oportunidade para escutar o povo, estar com o povo, mas deixamos que ela se perdesse.
BF – Qual foi a posição das Madres nas eleições de 27 de abril? HB - Decidimos não votar, pois nenhum dos candidatos nos satisfazia. Sabemos que a revolução é o caminho. A revolução construída de várias maneiras. Podemos falar da venezuelana, da cubana, da revolução que fazem os sem terra do Brasil - uma revolução permanente, un movimento que me enche de esperanças e sonhos. Na Argentina, se houvesse alguém digno de crédito, eu apoiaria. Mas não há. E tampouco vamos votar no segundo turno. As pessoas não percebem. Todo o mundo está apostando em Néstor Kirchner e criticam o presidente Eduardo Duhalde. Não entendem que Kirchner é Duhalde. Kirchner e o atual ministro da Economía, Lavagna, foram falar com Lula. Vão juntos por serem a mesma coisa. Carlos Menem é mais despótico, mais arrogante, mas adota a mesma política. Nenhum deles tem uma política transformadora. Kirchner governou uma província que entregou o petróleo, que vendeu meia Patagônia para os estadunidenses, que admite a militarização da Patagônia. Creio que os Estados Unidos ficarão contentes com qualquer um eles.
Luciney Martins/Rede Rua
AMÉRICA LATINA
Menem e Kirchner, candidatos no segundo turno das eleições presidenciais na Argentina, são farinha do mesmo saco, afirma Hebe de Bonafini; em Buenos Aires, encontro de igrejas latinoamericanas denuncia as armadilhas do livre comércio
Quem é Hebe de Bonafini nasceu há 74 anos, na província de Buenos Aires. Casou-se ainda jovem e teve 3 filhos: Jorge, Raul e Maria Alexandra, depois adotou mais um, Sérgio. Tinha uma vida pacata, até que em 1977 sua família se desestruturou completamente; os filhos Jorge e Raul e uma nora desapareceram “nos porões” da ditadura na Argentina. E ela se tornou uma das mais ativas lideranças das Madres de Plaza de Mayo, associação que reúne mães de militantes políticos “desaparecidos” e que luta por uma sociedade justa e digna. Há 26 anos, rigorosamente às quintas-feiras, elas protestam na Praça de Maio, em Buenos Aires.
BF - Como explicar que os dois candidatos que disputam o segundo turno sejam peronistas? HB – O peronismo é como uma religião. Quando nasce o bebê, já tem ao seu lado a foto de Perón e Evita; depois, ensinam a cantar a marcha peronista, e logo ensinam a votar. É como uma religião com alguns pressupostos: “Da casa ao trabalho e do trabalho para casa”. Que os trabalhadores não discutam nem pensem. Que trabalhem muito e voltem para casa. “Para um peronista não há nada melhor que outro peronista”. Por isso, ainda que agora lutem entre si, de-
BUENOS AIRES
Encontro de igrejas denuncia o “abraço de urso” da Alca
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Da Redação
10
integração econômica impulsionada na América Latina pelos Estados Unidos é como o abraço de um urso. Mais vale ficar à distância. Esta poderia ser a síntese das discussões ouvidas pelos representantes de igrejas latino-americanas reunidos na semana passada em Buenos Aires na conferência continental Globalizar aVida Plena. Os palestrantes e debatedores foram unânimes em proclamar que a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), prevista para entrar em vigência em 2005, provocará o aumento da exclusão e da pobreza na região. “A Alca é a anexação clara e concreta da América Latina pelos Estados Unidos”, afirmou o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980. Pérez Esquivel sustentou que a Alca é um exemplo do “totalitarismo globalizado que os Estados Unidos tentam impor em todo o mundo”, por meio desses acordos comerciais, da militarização e do “pensamento único”.
O Prêmio Nobel advertiu que, juntamente com a Alca, ocorre um processo de militarização da região. Trata-se da instalação de bases estadunidenses em diversos países, como o Equador, a Colômbia e a tríplice fronteira entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai, e na participação dos exércitos nacionais em manobras conjuntas com militares dos EUA. Pérez Esquivel assinalou que a água potável é um dos recursos que Washington vai procurar controlar na região. Acentuou que não basta rejeitar a Alca; é preciso “desenvolver a criatividade e o pensamento crítico” para criar uma estratégia “preventiva”. Lembrou o plebiscito sobre a Alca realizado pela Igreja Católica Romana e outras entidades no Brasil. Já Jim Hogson, da Ong religiosa Kairós Canadá, advertiu que o seu país, juntamente com o México, convivem hoje na Associação Norte-Americana de Livre Comércio (Nafta) com um vizinho, os EUA,“unilateralista e intervencionista”. No entanto, destacou uma conseqüência positiva não esperada pelos idealizadores da Nafta: “a geração de novas coali-
zões multissetoriais”. No Canadá, essas alianças incluem igrejas, sindicatos, Ongs de mulheres, indígenas e ambientalistas. “Nós, das igrejas do Canadá, nos opomos abertamente à Alca e continuamos buscando alternativas”, concluiu. Shefali Sharma, do Projeto de Informação para o Comércio, alertou que os países que “assinam acordos sem saber o que estão assinando, na verdade estão assinando um cheque em branco para a indústria global. Para Sharma, as igrejas deveriam opor-se às próximas negociações sobre a Alca que se realizarão em Cancún, no México, e associar-se mais ativamente às organizações que já lidam com o tema. Convocada pelo Conselho Latino-Americano de Igrejas e co-patrocinada pelo Conselho Mundial de Igrejas, a Aliança Reformada Mundial e a Conferência de Igrejas Européias, na primeira semana de maio, participaram cem representantes, da conferência na maioria da América Latina, mas também de todos os outros continentes. Com Agência Latino-Americana de Informação (Alai)
pois das eleições farão acordos. São conceitos terríveis. Há um peronismo honesto e decente, mas este que está no governo é fascista. Muitos sindicalistas peronistas denunciaram nossos filhos para que fossem mortos. Não há um sindicalismo livre. Quando surgiram sindicalistas independentes, revolucionários, marxistas, socialistas, comunistas, foram assinassinados, desapareceram com eles. O peronismo também trabalhou muito com subornos. Menem distribuiu presentes.
As pessoas não percebem. Todo o mundo está apostando em Nestor Kirchner e criticam o presidente Eduardo Duhalde. Não entendem que Kirchner é Duhalde. BF – Atualmente, discutese muito a situação de Cuba. Qual é a posição das Madres? HB - As Madres apóiam a Revolução Cubana, apoiamos Fidel. As Madres nunca pediram a pena de morte para os militares argentinos, mas Fidel trata de defender a revolução. É algo completamente diferente. Os Estados Unidos fizeram tantas coisas, assassinaram tantas crianças, despejaram tantas bombas, destruíram tanto, e ninguém diz nada. Sofremos isso na nossa própria carne. Nós, que sofremos com o desaparecimento, a morte, a tortura, o assalto de nossas casas, nós sabemos muito bem o que são os Estados Unidos. Além disso, fomos ao Iraque, sabemos o que fazem. No Iraque, causou-me impacto um povo tão sofrido e tão valente. Sobretudo, causou-me impacto visitar os hospitais. Li hoje a carta de uma mãe cubana que dizia “aqueles que nos criticam não sabem o que é não ter que dar de comer a uma crianca, não ter medicamentos.” Foi isso que vivi no Iraque. As mães caladas, mudas, sombrias, impo-
tentes à beira do leito, com um menino sem roupa, sem soro, sem nada, esperando a sua morte. Isso me impressionou, não consigo tirar da cabeça. Não podíamos falar com elas, mesmo com tradutor, porque não podiam falar, estavam esperando a morte de seus filhos. É terrível.Quem fala desses crimes? Quem decretou o assassinato dos meninos? Conhecemos também Cuba e os cubanos. Alguns condenam Cuba porque dizem defender sua revolução. Os intelectuais me irritam, já que muitos não sabem o que é um fuzil, escalar uma montanha, arriscar o próprio corpo, fazer e defender uma revolução. Que eles continuem escrevendo o que queiram e que façam contos para crianças, mas a revolução não é um conto de fadas.
BF – Quais são os novos projetos das Madres? HB – Queremos consolidar a Universidade Popular, abrir cursos para as mais diferentes carreiras no interior do país. Nossos alunos estão trabalhando, fazendo filmes, escrevendo livros. Queremos voltar a imprimir o nosso jornal periódico, lançá-lo novamente em junho. E temos a idéia de lançar uma escola. O Movimento dos Sem Terra do Brasil me enche de esperanças, cada vez que vejo o que fazem, não importa quanto tempo tenham levado para isso. É preciso que todos conheçam o MST. Para as Madres, é o movimento revolucionário de luta pela terra mais importante do mundo. O lançamento do Brasil de Fato foi um dia de glória para mim. Foi um grande momento de felicidade. Nesses momentos, a gente ganha energia para muito tempo, pois eles te dão o doce sabor do afeto, das pessoas, do povo mobilizado, essa mística tão fantástica. São necessários os jornais revolucionários. Queremos lançar o nosso. No ato comemorativo dos nossos 26 anos, eu dizia que não podemos deixar que nos levem tudo o que está ligado à terra, aos sonhos e ao conhecimento. É impossível que levem o conhecimento; tampouco podem levar a terra, se você a cultiva. Os sonhos têm a ver com tudo isso. As Madres querem recriar, ampliar, colocar em prática os sonhos de nossos filhos.
AGRESSÃO IMPERIALISTA
Paulo Pereira Lima, da Redação crueldade com que os Estados Unidos estão tratando os prisioneiros em Guantánamo (Cuba) mais uma vez é alvo de denúncias por parte de entidades internacionais de defesa dos direitos humanos. Segundo a organização Human Rights Watch, pelo menos três crianças de 13 a 15 anos estão entre os 660 prisioneiros capturados durante a campanha militar dos Estados Unidos no Afeganistão, em novembro de 2001. Washington negou a todos status de prisioneiros de guerra – o que lhes daria garantias pela Convenção de Genebra. A alegação: eles são terroristas, não soldados. Segundo o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, são “combatentes inimigos e os piores entre os piores”. CELAS ISOLADAS “Essas crianças são colocadas em celas isoladas por longos períodos, além do fato de que não poderiam estar entre os adultos”, diz o advogado da Human Rights Watch, Jo Becker, para quem os Estados Unidos estão violando leis internacionais humanitárias que proíbem a prisão de crianças com menos de 15 anos em conflitos armados. Devido a esse tratamento e a uma rotina que é interrompida por constantes interrogatórios, está aumentando o número de tentativas de suicídio. Até 24 de abril, foram 25, sendo quatro reincidências. Na grande maioria dos casos, os presos tentam se enforcar. DETENÇÃO ARBITRÁRIA De acordo com relatório divulgado pela Anistia Internacional, entre os pr isioneiros de Guantánamo estão dois anciãos, um de 88 anos e outro de 98 anos. A questão começa a ser fonte de
brigas internas mesmo no governo Bush. No dia 14 de abril, o secretário de Estado, Colin Powell, tido como representante da suposta “ala moderada” do governo Bush, escreveu uma carta a Rumsfeld, criticando decisões tomadas pelos militares sobre os prisioneiros. Na carta, Powell lembra que alguns países (França, Espanha, Rússia e Paquistão) exigem, sempre com maior insistência, informações sobre o tratamento dispensado a seus cidadãos em Guantánamo. Os 660 prisioneiros provêm de 42 países. DEBATE NO G8 O assunto também foi parar na mesa de discussão na reunião dos ministros da Justiça do G8 (o grupo dos sete países mais industrializados e a Rússia), que aconteceu em Paris, dias 5 e 6. O ministro francês, Dominique Perben, exigiu do seu par estadunidense, John Ashcroft – um expoente da ala mais reacionária da administração Bush – esclarecimentos sobre o que acontece em Guantánamo.“Não é possível manter essa situação de desrespeito aos direitos humanos”, afirmou Perben. “Não sabemos nada sobre o estado dessas pessoas, seja francês ou não.” Desde que foram presos no Afeganistão, nenhum deles foi formalmente acusado, nem pôde entrar em contato com um advogado ou ter direito a visitas. Na França, uma rede de familiares entrou com uma ação contra os Estados Unidos por “detenção arbitrária” no Tribunal de Justiça de Lyon. A rede britânica BBC produziu um detalhado documentário evidenciando a prática de tortura. O governo estadunidense chegou a admitir que o combate ao terrorismo pode, eventualmente, exigir o recurso a “métodos não ortodoxos.”
Tomas Van Houtryve/AP/AE
EUA mantêm crianças prisioneiras na base de Guantánamo
INTERNACIONAL
Aumenta o número de tentativas de suicídios entre os 660 prisioneiros levados pelos EUA à base militar, após a invasão do Afeganistão, incluindo crianças e anciãos, denunciam grupos de defesa dos direitos humanos; contra as pressões de Bush, intelectuais redigem manifesto em defesa de Cuba
■ Enjaulados: Washington nega, mas os prisioneiros sofrem maus-tratos e humilhações em Guantânamo
Ganhadores do Prêmio Nobel lançam apelo em defesa de Cuba Da Redação s escritores e ativistas dos direitos humanos ag raciados com o Prêmio Nobel: Rigoberta Menchú, Nadine Gordimer, Adolfo Pérez Esquivel e Gabriel García Márquez assinaram o seguinte manifesto em defesa de Cuba, contra as crescentes pressões dos Estados Unidos: “A invasão ao Iraque teve como conseqüência a ruptura da ordem internacional. Uma potência sozinha agrava hoje as normas de entendimento entre os povos.
Essa potência invocou uma série de causas não verificadas para justificar sua intromissão, causou a perda de inúmeras vidas humanas e tolerou a devastação de um dos patrimônios culturais da humanidade. Nós temos apenas nossa autoridade moral, e com ela fazemos um chamado à consciência do mundo, para evitar um novo atropelo dos princípios que nos regem. Existe hoje uma dura campanha contra uma nação da América Latina. O cerco de que Cuba é objeto pode ser o pretexto para uma invasão. Frente a isso, levantamos os princípios universais de soberania nacio-
nal, de respeito à integridade territorial e o direito à autodeterminação, imprescindíveis para a justa convivência das nações.” Assinam também dezenas de outros artistas, intelectuais e ativistas de todo o mundo, incluindo: Ana Esther Ceceña, Ariel Dorfman, Arthur Poerner, Beth Carvalho, Claudia Korol, Danny Glover, Eduardo Galeano, Emir Sader, Harry Bellafonte, Hebe de Bonafini, James Petras, Joao Pedro Stedile, Mario Benedetti e Oscar Niemeyer. Com Agência Alai
ORIENTE MÉDIO
George Baghdadi, de Damasco Síria cedeu à pressão dos Estados Unidos e começou a fechar os escritórios de organizações palestinas que operam em seu território. Assim, procura assegurar que não será o próximo objetivo da guerra antiterrorista de Washington. O governo sírio parece ter agido considerando a “nova situação estratégica” no Oriente Médio depois da invasão do Iraque, disse o secretário de Estado Colin Powell, que visitou Damasco dia3. Powell não deu detalhes e a Síria não confirmou de imediato a informação, mas outros funcionários do Departamento de Estado garantiram que Damasco frechou os escritórios do Movimento de Resistência Islâmica (Hamás), da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e da Jihad Islâmica Palestina. Todos esses grupos lutam contra a ocupação israelense na Cisjordânia e em Gaza.
“Queria ouvir a posição do presidente Bashar al-Assad sobre a nova situação estratégica”, afirmou Powell depois de se reunir com o presidente sírio. E, sem dúvida, também lhe sugeriu a posição que mais lhe conviria para manter as relações com Washington em um caminho menos beligerante. Powell instou a Síria a retirar o apoio que dava às organizações radicais que Washington considera terroristas, para garantir que não será objeto de uma invasão como a liderada pelos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. O governo sírio começou imediatamente a fechar em Damasco os escritórios de organizações armadas opostas a Israel, segundo anunciou o própr io Powell, de Beirute, capital que visitou depois de sua entrevista com Assad.“Houve alguns fechamentos. Espero que façam mais a respeito dos líderes dessas organizações. Fizemos outras sugestões aos sírios, que as estão estudando,
e espero ter notícias no futuro”, afirmou o secretário. A maioria dos dirigentes de organizações palestinas não quis falar sobre o assunto à imprensa. O líder da Frente para a Salvação da Palestina, Khaled Al Fahoum, confirmou a notícia dada pelo secretário de Estado em Beirute, mas negou-se a fazer comentários. O dirigente Ahmed Jibril, líder da marxista FPLP, considerada o grupo armado palestino mais poderoso na Síria, não atendeu aos chamados da imprensa. Um porta-voz da Jihad Islâmica limitou-se a dizer que sua organização “se submeterá a tudo o que decidirem as autoridades do país hóspede”. RESISTÊNCIA “Diante da delicada situação, prefiro esperar as indicações de meu chefe”, disse o porta-voz do escritório na Síria do islâmico Movimento Hamás,Abu Bilal Bakr. Mas seu chefe, Khaled Mishall, não quis fazer comentários. Por outro lado,
o porta-voz do Hamás em Gaza, Mahmoud Zahar, garantiu que o fechamento de escritórios na Síria “não afetará a resistência palestina. A presença do Hamás na Síria é apenas simbólica.A resistência aqui, nos territórios ocupados, vai continuar”, afirmou. Porta-vozes do Departamento de Estado estadunidense disseram que os escritórios fechados em Damasco colaboraram de forma direta com ataques suicidas e outras operações contra Israel. Após essa decisão, é difícil que organizações palestinas encontrem acolhida em outros países. Nem Egito, nem Jordânia, nem as nações do Golfo estão dispostas a arriscar suas relações com os Estados Unidos. Consultada sobre o anúncio de Powell, a porta-voz da chancelaria síria, Buthaina Shaaban, limitou-se a afirmar que Assad “discutiu todos os assuntos necessários para iniciar um processo de paz”. O editorial dominical do jornal Al Baath, que reflete a opinião do
governo sírio, deu a entender que a Síria já havia feito as primeiras concessões aos Estados Unidos. “Para todo assunto pode haver uma solução, incluindo a dos escritórios de imprensa palestinos que defendem sua causa junto à opinião pública mundial”, afirmou o jornal. Assad deixou claro, no final de semana, que seu governo procura uma solução para o conflito palestino-israelense que também contemple seus interesses, entre eles a devolução à Síria das colinas de Golan, ocupadas por Israel em 1967. O “mapa” para a paz no Oriente Médio, formulado pelo Quarteto (ONU, União Européia, EUA e Rússia) prevê a criação de um Estado palestino em 2005, o fim das hostilidades entre Israel e Palestina e a suspensão da instalação de assentamentos judeus na Cisjordânia e em Gaza. No entanto, as autoridades sírias dizem que isso apenas atende em parte suas expectativas.
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Síria cede a Bush no caso palestino
11
ÁFRICA AFRICA
Ivant Univers
Líder do Zimbábue pode renunciar Marilene Felinto, da Redação umores de que o presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, pode renunciar foram reforçados na semana passada após a visita de três chefes de Estado africanos ao polêmico governante, responsável pela mais não ortodoxa das reformas agrárias já vistas no continente – à base do confisco de terras da minoria de fazendeiros brancos, descendentes dos colonizadores europeus, para redistribuí-las a camponeses negros sem terra, que constituem a maioria da população. No dia 5 de maio, Mugabe recebeu em Harare, capital do país, os presidentes da África do Sul, Thabo Mbeki, do Maláui, Bakili Muluzi, e da Nigéria, Olusegun Obasanjo. A visita oficial teria como principal objetivo encorajar o partido de Mugabe, a União Nacional Africana do Zimbábue – Frente Patriótica (Zanu-PF), a estabelecer um diálogo com o oposicionista Movimento pela Mudança Democrática (MDC). Segundo diplomatas africanos, o diálogo visaria estabelecer um período de transição no qual Mugabe, 79, há 23 anos no poder, se aposentaria; e no qual um governo de transição, formado pelos dois partidos, seria instalado para preparar o caminho para
■ Camponeses negros sem terra são beneficiados pelo confisco de fazendas dos brancos novas eleições. O Zimbábue, mergulhado numa crise econômica sem precedentes, na qual metade de seus 11 milhões de habitantes padece de fome, está dividido politicamente entre defensores de Mugabe e partidários de Morgan Tsvangirai (do MDC), ex-líder sindicalista, secretário-geral da Confederação dos Sindicatos do Zimbábue, com quem Mbeki, Muluzi e Obasanjo também se reuniram para uma conversa.
Tsvangirai não reconhece a reeleição de Robert Mugabe no último pleito de 2002, e entrou com uma ação na Justiça contra ele por fraude, incitação à violência e violação dos direitos humanos. Mugabe, por sua vez, processou Tsvangirai por conspiração e tentativa de assassinato, em alegado complô para matá-lo. Agências de notícias africanas consideram prematuro dizer se as negociações falharam ou foram bem sucedidas.
Mugabe insiste em que Tsvangirai reconheça o resultado das eleições e retire a ação contra ele. ALVO DOS EUA O governo zimbabuano tem negado qualquer sugestão de que Mugabe vá renunciar antes que seu mandato acabe, em 2008. Portavozes do governo da África do Sul também rejeitaram a idéia de que a visita tivesse como objetivo promover uma mudança no regime do país vizinho. O presidente da Nigéria disse à agência All Africa sobre a visita que “ambos os lados manifestaram vontade de retomar as negociações”, faltando apenas acertar o que seria “legítimo” ou
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Reforma agrária por confisco
12
m julho de 2000, o presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, deu início a uma reforma agrária acelerada (“Fast Track”), alegando querer dotar de poder econômico a maioria negra do país. Desde então, mais de três mil dos 4,5 mil fazendeiros brancos tiveram suas terras confiscadas e supostamente redistribuídas entre camponeses negros sem terra. Os fazendeiros brancos eram donos de um terço das terras mais férteis do país, enquanto 1,5 milhão de pequenos produtores negros dividiam os outros dois terços. O principal grupo de oposição a Mugabe, o Movimento pela Mudança Democrática, acusa o presidente de usar o problema da terra para aumentar a tensão e justificar sua permanência no poder. Os críticos da política agrária também culpam o governo pela atual crise alimentar no país, e alegam que Mugabe entregou as terras a agricultores despreparados para cultivá-las, quando não a partidários e aparentados seus. A questão provocou também uma instabilidade político-econômica e levou muitos governos e doadores internacionais a suspenderem a ajuda ao Zimbábue. Organismos africanos e internacionais como a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), que reúne países da África Austral, a União Africana e a Anistia Internacional têm denunciado Mugabe por incentivo à violência no confisco de terras, violações dos direitos humanos e tortura de militantes da oposição além de censura à imprensa. Mugabe, ex-pastor de ovelhas e professor, foi eleito em 1980 como herói da revolução que tirou do poder a minoria branca, mas sua popularidade despencou depois de cinco reeleições e 20 anos de governo autocrático e crise econômi-
“ilegítimo”, numa referência à questionada reeleição de Mugabe. A idéia da viagem oficial dos chefes de Estado africanos surgiu depois que o presidente Mugabe deu indícios, em meados de abril, em uma entrevista à TV estatal de seu país, de que estaria pronto para deixar o poder. Mas a iniciativa diplomática também anteciparia a visita de Walter Kansteiner, Secretário de Estado Assistente para Assuntos Africanos dos Estados Unidos à África austral, encarregado de angariar apoios entre os líderes da região para forçar uma mudança de regime no Zimbábue. Observadores internacionais têm dito que Robert Mugabe teme um ataque armado da Inglaterra e dos Estados Unidos a seu país desde que foi implementada a política de reforma agrária compulsória. Apoiada pelos EUA,a Inglaterra lidera uma campanha de sanções econômicas contra o Zimbábue.
SOB O FMI Na Constituição do Zimbábue, formulada a partir da assinatura do tratado de Lancaster House, a oposição negra aceitou incluir um artigo protegendo a propriedade privada, e uma cláusula interditando qualquer modificação da lei fundamental antes de decorridos sete anos. No início dos anos de 1990, a economia zimbabuana sofreu um abalo. O país teve de se submeter, a partir de 1991, ao ajustamento estrutural já imposto a numerosos países africanos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Para Mugabe, até então sério adversário dos métodos do FMI, a decisão foi particularmente difícil, sobretudo porque supunha medidas impopulares exatamente no momento em que reaparecia a questão da redistribuição das terras, cujo processo não tinha avançado em nada. Em 2000, pressionado pela demanda interna dos camponeses negros por terra e pela eleição de 2002, que corria o risco de perder, Mugabe implantou a reforma agrária compulsória.(MF)
■ Mugabe, 23 anos no poder Zimbábue
ca. O Zimbábue já foi considerado um modelo de transição do acesso ao poder da maioria negra. Em 1979, a assinatura – pelo primeiro-ministro branco, Ian Smith, e pelos guerrilheiros negros, chefiados por Rober t Mugabe e Joshua Nkomo – dos acordos de Lancaster House, foi visto como um sucesso inédito na então conflituosa África austral, especialmente porque a mudança de regime não acarretou um caos econômico. Na época, a África do Sul e a Namíbia viviam em um regime de apartheid. Moçambique e Angola, reféns da guerra fria, estavam destruídas por guerras civis, e a Zâmbia mergulhava numa crise econômica.
Christine Nesbitt/AP/AE
INTERNACIONAL
Reunião de três chefes de Estado africanos esta semana com Robert Mugabe, chefe zimbabuano há 23 anos no poder, parece ter dado início à aposentadoria do polêmico criador da reforma agrária, que tirou terras da minoria branca por meios não ortodoxos
● ●
ZÂMBIA
●
●
Lago Kariba ● ●
Harare NAMÍBIA Chitungwisa
Z
I
M
B
Á
B
U
● ●
E
Localização: África austral (do Sul) Nacionalidade: zimbabuana Principais cidades: Harare (capital), Bulawayo, Chitungwisa, Gweru, Mutare Línguas: inglês (oficial), shona, ndebele Divisão política: dez províncias Regime político: república presidencialista Moeda: dólar do Zimbábue Religiões: protestante, animista, católica
Mutare Gweru Bulawayo
BOTSWANA MOÇAMBIQUE
ÁFRICA DO SUL
País já foi “Rodésia” Entre os séculos 9 e 13, o Zimbábue era uma civilização bastante desenvolvida. Grandes tribos bantos viviam na região. Portugueses traficantes de escravos chegaram ali no século 16. Em 1887, tentaram ocupar o território para unir, pelo interior, as terras de Moçambique e Angola, já dominadas por eles. Foram impedidos por britânicos e africânderes (descendentes de colonizadores holandeses da África do Sul), que haviam começado a invadir a região. Tropas do Reino Unido venceram também a resistência das tribos nativas e, em 1888, estabeleceram um protetorado que incluía a Rodésia do Sul (atual Zimbábue), a Rodésia do Norte (atual Zâmbia) e a Niassalândia (atual Maláui). O nome “Rodésia” vem de Cecil Rhodes, político e financista britânico, criador do império britânico na África, que obteve, na época, concessão do Reino Unido para explorar ouro e diamante. Em 1961, a Rodésia do Sul, dominada por um governo que excluía a população negra, adotou uma Constituição semelhante à do apartheid sul-africano. Em 1965, o partido racista branco elegeu seu líder, Ian Smith, primeiro-ministro e proclamou a independência. O novo país não foi reconhecido, porém, nem pela ONU nem pelo próprio Reino Unido. Nos anos de 1970, movimentos guerrilheiros encabeçados por líderes negros aumentam a pressão sobre o governo. Em 1978 foi assinado o acordo de Lancaster House, que marcou o início da transição para um governo democrático. O país passa a se chamar Zimbábue-Rodésia. As eleições de 1980 dão maioria à União Nacional Africana do Zimbábue (Zanu), de Robert Mugabe, eleito primeiro-ministro. A independência é proclamada no mesmo ano.
■ Brasil/África Ministro visita 6 países O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, fez uma viagem por seis países da África – Moçambique, Zimbábue, São Tomé e Príncipe, Angola, África do Sul e Namíbia – entre 1º e 10 de maio último. O objetivo da visita era preparar a ida do presidente Lula ao continente africano, no segundo semestre de 2003. Na África do Sul, o ministro participou da segunda reunião da Comissão Mista Brasil-África do Sul, de aprofundamento das relações comerciais entre os dois países. Amorim também se reuniu com representantes do governo da Índia, para avaliar um possível acordo de livre comércio entre o Mercosul, a África do Sul e o país do Sul da Ásia, chamado de “Franja Sul”. Pelo acordo, Mercosul, África do Sul e Índia teriam forte integração, facilitada ainda pelas rotas de transporte marítimo ligando as regiões.
Morre Sisulu, líder anti-apartheid Morreu, dia 5, Walter Sisulu, lendário ativista anti-apartheid sul-africano e mentor de Nelson Mandela nos anos de 1950, na então Liga Jovem do Congresso Nacional Africano (ANC, partido hoje no poder). Sisulu tinha 90 anos, mais de vinte deles passados na cadeia durante o regime segregacionista. Embora não tão carismático quanto Mandela, ele gozava da mesma importância que o ex-presidente sul-africano dentro do ANC, de que foi secretário-geral.
AFRO-DESCENDENTES
CULTURA
O projeto de reserva de vagas nas universidades para afro-descendentes e a população carente se fortalece, no Brasil, com a proposta do governo em implantar o sistema nas federais; no Rio, o sistema já funciona e é elogiado por movimentos sociais e estudantis
Luís Brasilino, de São Paulo (SP) romessa de campanha do presidente Lula, a reserva de cotas para afro-descendentes e para população carente no ensino superior federal começa a ser preparada.A iniciativa já acontece em algumas instituições estaduais. A tarefa está a cargo de Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial, assistente social que atua no movimento negro desde 1988 e que agora possui estatuto de ministra. O grande desafio da secretaria é criar um projeto que não seja Unesco – entidade traumático e da Organização das que resulte em Nações Unidas que um passo na ditrata de assuntos ligados à educação, à reção da incluciência e à cultura são social de quem sempre foi excluído do ensino superior. O ministro da Educação, Cristovam Buarque, defende a discussão do assunto com toda a sociedade. Ele acredita que se a proposta for imposta à população, seu
objetivo, a superação do preconceito, pode dar lugar a um antagonismo racial. Segundo o ministro, “as cotas devem ser definidas depois de um amplo debate da sociedade em busca de consenso”. Porém, o próprio ministro já tece críticas ao projeto. “A elite brasileira é branca.Temos de mudar a cor da pele dos alunos da universidade, mas não podemos impor, nem aos negros nem aos brancos. Gostaria de chamar a atenção para uma coisa: as cotas para negros são para os negros que terminam o ensino médio e que, em geral, não são pobres. Os pobres só terminam a quarta série do primeiro grau. As cotas ajudam a mudar a cor da universidade, mas não a classe”, conclui. CIDADANIA A população brasileira é composta por 45,3% de afro-descendentes, porém, no universo do ensino médio, a participação negra cai para 5%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já Matilde observa que as maiores dificuldades para implantação das
cotas vêm da estrutura do país. A secretária acredita que há uma resistência natural da população branca, primeiro por ser natural vê-la na universidade e, segundo,porque dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar, ou seja, os negros invariavelmente tomarão o lugar de alguns brancos. Seguindo sua linha de pensamento, se a princípio as cotas representam perdas para os brancos, a conquista da cidadania é vantajosa a todo o conjunto da população. Apesar da cautela do governo federal, o sistema de cotas já foi implantado pelas respectivas administrações estaduais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). E, a partir do início do ano letivo, os alunos beneficiados começam a freqüentar as aulas. Segundo os projetos da Uerj e da Uneb, o número deve atingir cerca de 40% nas turmas aprovadas após a implantação do sistema de cotas.
José Cruz/ABr
Governo investe em sistema de cotas
Veja, na seção Debate, pág. 14, as avaliações da deputada estadual Jurema Batista (PT-RJ) e do professor Nilson Lage, da Universidade Federal de Santa Catarina.
O Ministro da Educação, Cristovam Buarque, discursa no 9o Fórum Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, dia 17 ■
Universidades do Rio são pioneiras Escolas Particulares entrou com ação de inconstitucionalidade contra a reserva de vagas para negros, pardos e alunos de escolas públicas no Supremo Tribunal Federal. O caso está sendo analisado. A própria Uerj, por sua vez, acaba de encaminhar proposta de revisão das leis de cotas para a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, em que sugere a redução para 20% a reserva para aluno da rede pública, 20% para o estudante que se declarar negro ou pardo e 5% para integrantes de grupos específicos (indígenas, grupos perseguidos e portadores de deficiências). Segundo o coordenador do Departamento de seleção acadêmica, o percentual sugerido tem como base os princípios da proporcionalidade. Salgueiro afirma que as leis anteriores não foram analisadas em conjunto com a universidade.
Luciney Martins/Rede Rua
Helvio Romero/AE
Brasil chega tarde ao debate internacional sobre cotas para candidatos tradicionalmente excluídos (raça, etnias, populações ou grupos perseguidos). A opinião é de Paulo Fábio Salgueiro, coordenador do Departamento de seleção acadêmica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pioneira (junto com a Universidade Fluminense do Estado do Rio) na adoção de cotas no País. Segundo Salgueiro, embora o Brasil tenha avançando na questão nos últimos dois anos, o debate ainda tem sido muito pobre. “Estamos chegando tarde na discussão. A Unesco indica há pelo menos 10 anos a adoção de política ativa para admissão de
candidatos a cursos aos quais determinados grupos sociais não têm acesso. A Uerj trouxe à tona o tema no Brasil. A experiência no Rio está servindo como oportunidade para se questionar o acesso único à universidade privilegiando o conhecimento. Por outro lado, já constatamos que só a cota não resolve.Tem de vir aliada a uma política de permanência do aluno”, diz. Desde que adotou o sistema de cotas para estudantes oriundos de escola pública (50%) e de alunos auto declarados negros ou pardos (40%) no último vestibular, a Uerj enfrentou mais de 200 pedidos de liminares encaminhados ao Tribunal de Justiça do Rio, que chegou a suspender a reserva de vagas para alunos da escola pública. Impulsionada pela polêmica, a Confederação Nacional das
■ Denise Aparecida de Deus, estudante de fisioterapia é a única negra na sala de aula da Faculdade Metodista, em São Paulo, que mantém sistema de cotas; ao lado, alunos do curso prévestibular para negros e carentes da Universidade Anhembi-Morumbi, em São Paulo
A Educafro, entidade que luta pela inclusão de afro-descendentes no ensino superior, acredita que o sistema de cotas é favorável por trazer a discussão da questão racial para dentro da universidade. No entanto, um de seus coordernadores, Renato Ferreira, ressalta que a simples aprovação no vestibular não basta. “É necessário fazer um acompanhamento desses alunos durante o curso, fornecer a eles vales-alimentação, transporte, condições de adquirir os materiais do curso, bem como bolsas de estudo, uma vez que esses estudantes virão de classes baixas da sociedade”, afirma. “A entrada de afro-descendentes na universidade não trará somente um benefício direto aos negros, ela favorecerá toda a sociedade à medida que essa política resultará num aumento da diversidade em todas as suas camadas”, salienta Ferreira. Ele cita que, pela primeira vez na história, moradores da Baixada Fluminense (uma das zonas mais pobres do Rio) irão cursar medicina na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), beneficiados pela reserva de cotas implantada na instituição no último vestibular. Gláuber Santana, diretor do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), onde também foi implantado o sistema de reserva de vagas, comenta que “a cota vem para formar o cidadão, uma vez que aqueles que antes tinham vergonha de se declarar negros passam a ver essa condição como uma vantagem”. Santana enxerga nas cotas um mecanismo para não deixar ninguém para trás. “Se a solução é melhorar o ensino médio e fundamental, como é que ficam aqueles que terminaram esses estágios antes de eles sofrerem melhoras significativas?”, indaga. Apesar disso, ele reconhece que o problema educacional brasileiro está na qualidade do ensino e que as cotas devem ser encaradas como um processo transitório. É justamente sob este aspecto que Igor Bruno, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), alega que o sistema de cotas para negros não é suficiente. “A cota para negros não implica em crescimento do nível educacional brasileiro, ao passo que a reserva de vagas para estudantes da rede pública pode corrigir uma dívida que o ensino médio e fundamental de má qualidade deixou ao estudante”, afirma. (LB)
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Angélica Basthi, do Rio de Janeiro (RJ)
Movimentos e estudantes aprovam reserva de vagas
13
DEBATE
SISTEMA DE COTAS
Uma questão de reparação histórica Jurema Batista
O CASO BRASILEIRO A base da economia brasileira durante a maior parte de sua história foi exatamente a escravidão. Por isso, costumamos dizer o seguinte: no Brasil, quem são os ricos? São os que tiveram escravos para construir suas riquezas. Depois da libertação da escravatura, ficaram com os bens que os negros construíram. Para nós, 300 anos de escravidão são 300 anos de atraso. Quando houve a Abolição, o negro não teve direito à indenização. Logo, se o negro não obteve dinheiro nesse processo, ele teve e tem até hoje uma qualidade de vida muito prejudicada, porque financeiramente ele nada herdou pelo seu trabalho. Na Conferência de Duban, defendemos a tese de que nos Estados Unidos o processo de libertação foi diferente: quando ela aconteceu, havia lá muito espaço geográfico demarcado e os negros puderam construir a sua fortuna, pois o dinheiro circulou dentro da própria comunidade negra. Além disso, havia a demarcação racial muito forte: negro não casava com branco, havia igreja de negro, igreja de branco; universidade de negro, universidade de branco. Os negros americanos herdaram terras e isso garantiu muita coisa. Aqui no Brasil, não. Na medida
kipper
movimento negro no Brasil — fortalecido principalmente nas décadas de 1970 e 1980 — tinha como objetivo levar para a sociedade a noção de quanto a discriminação racial é nefasta para os afro-descendentes. Baseado nisso, sempre houve uma discussão de como seria feita uma reparação por tantos danos causados à etnia negra neste país. Durante a década de 1980, conseguimos derrubar o mito da democracia racial. Entramos nos anos de 1990 já com o movimento bastante firme, enraizado. Os movimentos internacionais, como os dos Estados Unidos e da África do Sul, fortaleceram a nossa visão sobre o racismo como uma questão mundial e ao mesmo tempo sobre as particularidades da situação no Brasil, até pelo fato de ter sido este o último país do mundo a fazer a libertação da escravatura. Já no século 21 tivemos a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, quando o mundo todo foi a Duban, na África do Sul, discutir a questão da discriminação. Nessa discussão, falou-se muito em reparação. Foi dito pelos que lá estavam que o racismo é conseqüência da escravidão que, assim como o holocausto, foi um crime de lesa-humanidade. O povo judeu já teve alguma reparação por parte dos bancos alemães, que financiaram Hitler para fazer a carnificina. Já a comunidade negra, ainda não: não houve
nenhum país do mundo com projeto de reparação, mesmo sabendose que muitos países tiveram sua economia calcada no trabalho escravo.
em que o negro não tinha lugar certo, ia perambulando e acabava sempre em locais paupérrimos, como as favelas que até hoje são uma realidade brasileira. Defendemos em Duban que o racismo no Brasil é uma coisa nefasta, que tem impedido aos negros ascenderem socialmente. Ficou definido que, junto com outros países, iríamos brigar por um projeto de reparações. Mas como seriam essas reparações? Pensouse em uma indenização, mas nenhum dinheiro do mundo pagaria tantas mortes nos navios negreiros, a perda da nossa história. Assim, as reparações poderiam ser feitas com políticas públicas que viessem a atender aos negros. Dentro dessas políticas, surgiu a questão da política de cotas. Da forma como a sociedade brasileira foi montada, dificilmente o negro consegue alcançar o espaço que os brancos, que são os herdeiros do nosso trabalho, têm. Então a briga seria para que em determinados segmentos, principalmente no acesso ao trabalho e educação, tivéssemos políticas de ação afirmativa, políticas de cotas. Retornamos ao Brasil com essa idéia, que vingou. Ainda na administração Fernando Henrique, por meio do Ministério da Justiça, foi feito o projeto de percentual de trabalhador e, no Rio de Janeiro e na Bahia, o de acesso às universidades públicas, que já está em vigor. Foi quando surgiu uma grande polêmica, que para nós foi muito boa, pois tirou do armário pessoas que até então escondiam seus preconceitos, seus racismos. Quando essas pessoas se sentiram ofendidas por-
que achavam que os negros iam tirar o direito de seu filho ou deles próprios, externaram a idéia de que o negro não incomoda quando sabe qual é o “seu lugar”, mas, se resolve disputar espaço com brancos, tudo muda de figura. No Brasil o racismo é uma coisa naturalizada. É natural irmos aos shoppings e não vermos negros trabalhando. O que quebra essa naturalidade é quando o negro resolve falar alguma coisa e então ocorre a reação: “vem você com o racismo ao contrário”. Se não tem negro na televisão, as pessoas acham normal. Se tiver uma família só de negros, as mesmas pessoas reclamam: racismo às avessas. Na gestão da governadora Benedita da Silva, no Rio de Janeiro, havia muitos negros. Imediatamente começaram a dizer: estão vendo, Benedita está fazendo racismo ao contrário. Ora, por que o critério de nomear alguém no governo tem que ser racial? Porque sempre foi o critério racial o de colocação de pessoas. O critério racial passa até pelo critério social. As pessoas que entram na universidade fazem vários amigos. Se entram na PUC, que é caríssima, ou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), cujo ingresso é dificílimo, o nível de relação dessas pessoas fica só entre brancos. Esse nível de relação é que garante a perpetuação do poder do branco em nosso país. E é justamente isso que queremos quebrar agora com a política de ação afirmativa, tema em discussão na UERJ e na Universidade do Norte Fluminense. Mesmo com a diferenciação da questão numérica, a política de cotas vai continuar, na espera de que a sociedade continue discutindo a questão do racismo no Brasil e das reparações, as duas fundamentais para nós, negros. Jurema Batista é deputada estadual (PT/ RJ) e Presidente da Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional
A pior estratégia contra o racismo
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Nilson Lage
14
e todas as estratégias para promover a integração “racial” e social no Brasil, a pior é a imposição de cotas no ingresso em universidades públicas. Essa decisão política, ao desconsiderar o mérito dos estudantes, a) estimula entre os jovens o preconceito que pretende combater; b) promove a rebaixa do padrão acadêmico, de pesquisa e extensão nas universidades, de vez que o processo de ensino-aprendizagem depende, em boa parte, da formação anterior do aluno, do acúmulo de conhecimentos que lhe permite aprender (da raiz latina de aprehendere, tomar para si) as informações novas que os professores lhe ensinam, isto é, lhe apontam (do latim insignare, indicar). A solução foi tentada nos Estados Unidos e lá não deu certo. O New York Times, há duas semanas, publicou reportagem interessante sobre uma universidade “negra” do Mississipi que, por decisão da Justiça, receberia muitos milhões de dólares se matriculasse pelo menos 10% de estudantes brancos para
cumprir as leis de integração. Publicou anúncios oferecendo bolsas em todo o país. Nada. Finalmente, importou alunos da Rússia, com a desculpa de melhorar o desempenho das equipes desportivas. Por que não deu certo? Por uma razão histórica básica. Na primeira leva de expansão capitalista, vieram de Portugal, Espanha e, em menor escala, da Itália, homens que estabeleceram entrepostos comerciais. Sós, criaram prole mestiça que, na maioria dos casos, reconheceram como filhos. Dizem que teria havido estupros; é provável. Mas o reconhecimento de paternidade e a cultura popular, que tanto valoriza a mulata e a cabocla, não parecem indicar que tenha sido comportamento comum ou aceitável. Segundo dados da Universidade Federal de Minas Gerais, que fez a pesquisa por amostragem estatística e exame de DNA, 66% dos brancos de nível superior têm genes indígenas e negros e outros 12% têm genes norte-africanos, oriundos, talvez, da ocupação árabe da península Ibérica, na Idade Média. A segunda leva da expansão capitalista, movida pela Inglater-
ra, França e Holanda, com ideologia calvinista, objetivou a colonização. Vieram famílias. A miscigenação foi execrada, de modo que, quando houve, e houve, os descendentes foram e são chamados de “negros” ou “índios”, o que significa esconder a paternidade/ maternidade branca. Somos um país de mestiços; é difícil saber quem é negro ou índio aqui. Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, onde o exército dizimou as nações indígenas (lembram dos antigos filmes de cowboy?), populações de origem indígena e mestiça ocupam todo o Norte, parte do Centro-Oste e do Sul brasileiro. Passada a era colonial, os índios foram exaltados até o ridículo, no indigenismo romântico, e protegidos pela única tropa do mundo que tinha como lema morrer, se fosse preciso (foi preciso muitas vezes), e matar nunca. Seu comandante era o Marechal índio Cândido Mariano Rondon. Dizem que a opinião pública brasileira que condena o racismo esconde o problema. Pode ser. Mas não existem “raças”: os homens, como os outros animais, ao
se espalhar pelo mundo, ao longo de milênios, foram-se adaptando (perdendo melanina, que dá a cor da pele, por exemplo). O conceito de “raça” é meramente cultural e a inferioridade dos negros invenção para justificar a escravatura. Assim, tornar o racismo odioso é também a maneira certa de combatê-lo. Em suma: por que, em lugar de criar cotas, não se criam escolas públicas de segundo grau com padrão de excelência e pagam bolsas a crianças selecionadas entre as de melhor aproveitamento na rede pública de ensino básico para que se dediquem ao estudo em tempo integral? Considerando o custo social, é muito mais barato. E como a inteligência não é racista, entre os que chegarão preparados à universidade e ascenderão legitimamente à elite do país, haverá muitos negros, muitos pobres, muitos índios. Como sempre, o concurso público é a mais democrática das vias de ascensão social, desde que se dê igualdade de condições às pessoas. Nilson Lage é professor-titular de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina
LUTA SOCIAL
ENTREVISTA
A simbiose entre interesses públicos e privados é um problema central que o governo Lula precisa resolver, afirma a assistente social Hilda Corrêa de Oliveira; sua categoria realiza eventos comemorativos alusivos ao seu dia nacional (15 de maio)
O Estado deve dar prioridade ao povo
Brasil de Fato - Como a senhora avalia as políticas do governo Lula na área social? Hilda Corrêa de Oliveira - As medidas estão longe de corresponder à expectativa de mudanças. No enfrentamento imediato da pobreza e miséria, a grande bandeira tem sido o programa Fome Zero. Sem dúvida, é um grande programa para um país continental, o que já explica muitas de suas dificuldades. Por outro lado, a reforma da previdência ganhou centralidade e uma urgência que nos surpreende. O Fome Zero, as reformas tributária e da previdência e as medidas na economia que dão continuidade às linhas dos governos anteriores ocuparam a agenda do governo nesses primeiros meses. O Ministério das Cidades, por exemplo, uma belíssima idéia para um país que em curto espaço de tempo viu migrar grande contingente da população da área rural para o meio urbano, até agora não ganhou espaço. O ministro da Educação, com razão, clamou por mais recursos do orçamento e estabeleceu prioridades. Até agora não temos muitos avanços nessa área. BF - Quais mudanças devem ser prioritárias? Hilda - O fortalecimento da esfera pública é fundamental à consolidação da democracia, assim como a universalização dos serviços sociais e direitos da população. O Estado brasileiro deve
efetivar ações que atendam ao interesse público e democratizer as suas relações com a sociedade. A simbiose do público e do privado que se deu no Brasil deve ser rompida. O servidor público precisa ser visto e se entender como um trabalhador especial, por desenvolver um trabalho que é de interesse da coletividade. Para agregar valor ao setor público, o Estado empregador tem de creditar confiança valorativa e condições ao seu quadro de trabalhadores para um desempenho competente e eficiente. Por que a escola pública não oferece hoje um ensino de qualidade? O que explica a precária assistência na rede de saúde da esfera pública, se não a opção de privilegiar interesses do mercado? A expectativa de se ter um governo democrático e popular foi a de construir um país que combata a desigualdade social, no sentido de assegurar os direitos enunciados no artigo 6º da Constituição de 1988: educação, saúde, moradia, segurança, previdência. Destaco duas diretrizes para as políticas sociais: a descentralização política administrativa que atribui papéis distintos, embora articulados, às instâncias de governo federal, estaduais e municipais. A segunda diz respeito à participação da população por meio de organizações representativas na formulação das políticas e no controle das ações desenvolvidas pelos órgãos públicos. As leis que regulamentam direitos e políticas sociais no Brasil, pós Constituição de 1988, de-
Hilda Corrêa de Oliveira preside o Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro. É mestranda em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Atuou como assistente social no serviço público: INSS e na LBA (órgão extinto em 1995). Mili-
tante no movimento de organização dos assistentes sociais e no movimento de regulamentação pelas políticas públicas de assistência social nos anos de 1980 e 1990, participou da gestão 96/99 do Conselho Federal de Serviço Social.
talham e indicam modos de operacionalizar essas diretrizes. Isso pode ser confirmado com a simples leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) promulgado em 1990, das leis e normas do Sistema Único de Saúde (SUS), da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), de 1993, e da política nacional do idoso editada em 1994.
pização do social – expressa no crescimento do Terceiro Setor, do voluntariado e das ações de “cidadania” empreendidas pelas empresas corresponde à transferência da responsabilidade que o Estado deve ter diante da questão social para a sociedade. Corresponde não só ao sucateamento dos serviços públicos, às privatizações, mas também a uma tentativa de forjar uma nova cultura em que as pessoas legitimem a desconstrução dos direitos sociais e a desconstrução da esfera pública.
de para negar ou viabilizar direitos. Atua também em políticas privadas nas empresas e organizações não governamentais. São muitos os brasileiros que sofrem por não terem suas necessidades mais elementares satisfeitas, convivendo com situações limites, e buscam os assistentes sociais para ter acesso a direitos e para serem ouvidos nas suas demandas.
BF - A que a senhora atribui a imagem assistencialista do assistente social junto da sociedade? Hilda - Dois elementos contribuem para isso. O primeiro corresponde ao passado desta profissão. Suas origens, não só no Brasil mas também no continente latino-americano, estão estreitamente ligadas à ação caritativa que a burguesia, em aliança com a Igreja Católica, desenvolveu nos anos de 1930. No nosso país tal estratégia visava recuperar os privilégios que a Igreja havia perdido com a instauração da República e, sobretudo, se contrapor ao crescimento das idéias socialistas. A influência da Igreja marca de maneira muito forte a origem e o desenvolvimento da profissão até pelo menos a década de 1960. Outro elemento inteiramente atual é a refilantropização do social desencadeada no país dos anos 1990 para cá, pelo neoliberalismo. Portanto, a refilantro-
BF - O que é o trabalho do assistente social? Hilda - O assistente social viabiliza direitos nas mais variadas áreas: saúde, educação, habitação, previdência, assistência sociojurídica entre outras. Ele opera com serviços, programas, benefícios e políticas sociais, quer seja em nível de execução terminal, quer seja em nível de planejamento e assessoria. Seu objeto de intervenção é o conjunto de desigualdades sociais, econômicas, políticas, culturais, étnicas etc. O assistente social não atua sozinho, mas integrado a uma equipe multiprofissional. Deve intermediar a relação entre o usuário, que vive um conjunto de desigualdades, e a instituição, que oferta os serviços e políticas sociais. Dada a posição que ocupa no mercado profissional e nas instituições, ele é o profissional que está mais próximo do cotidiano da população e que pode utilizar essa proximida-
AGENDA
SAÚDE PR - SEMINÁRIO “UM OLHAR SOBRE O SUS: AVALIAÇÃO E DESAFIOS”
Confira algumas atividades populares, sociais e culturais desta semana. Para incluir seu evento nesta agenda, envie e-mail para agenda@brasildefato.com.br
UNIVERSIDADE SP - USP NA ZONA LESTE. PARA QUEM? PARA OS FILHOS E FILHAS DOS TRABALHADORES OU PARA OS RICOS?
● dia 13, às 10h Centro de Itaquera, Praça da Cultura, São Paulo. Entre as reivindicações estão: imediata construção do campus para funcionamento pleno em 2004; aumento das vagas; revisão do estatuto da USP, possibilitando a oferta dos cursos mais concorridos da Fuvest; garantia de acesso e permanência de estudantes de escola pública; garantia de acesso e permanência da população negra; fim das taxas do vestibular; assistência estudantil decente (moradia, habitação, bolsatrabalho, transporte, bolsa-alimentação entre outras necessidades); gestão democrática no novo campus com a participação direta e efetiva da comunidade. Organizado por: Apeoesp - Subsede Itaquera, Cadesc, Cedema, CMP, Dandara, Força Ativa, Fala Negão, MSE, PCO, PSTU, PT, PJMP, UPOGI. Mais informações: marxjones@ig.com.br
PI - VIII SEMANA UFPI
DE
HISTÓRIA
DA
● de 12 a 16, das 8h às 21h30 Universidade Federal do Piauí (UFPI), Bairro Ininga s/n, Teresina O tema do evento é “Rupturas sociais: o historiador como um agente transformador” e discutirá a atual conjuntura política mundial, colocando ainda como foco especial o Brasil e o Piauí. O evento vai enfocar também o atual estado de guerra que vive o mundo hoje, assim como as suas verdadeiras causas e as conseqüências para o nosso cotidiano. Mais informações: www.cahisufpi.hpg.com.br, cahis.ufpi@bol.com.br, (86) 8803-2280
EDUCAÇÃO SP - CONGRESSO EDUCAÇÃO TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO
E
● inscrições até o dia 13 Hotel Gran Meliá WTC, São Paulo. Organização: Instituto Ayrton Senna e Microsoft. O congresso será nos dias 13 e 14 de junho. Valor da inscrição: R$ 150,00 até 13/5 (após essa data e até 11/6, R$ 170,00). Mais nformações e inscrições: (11) 38644673, http://escola2000.globo.com/congresso
● dias 16 e 17 Auditório Brasílio Itiberê, Curitiba. Dirigido a movimentos populares e sociais dos Estados do Sul. Promoção: Fórum Sul da Saúde. Mais informações: (54) 313-6325, Alessandra e Marcos, ceapppps@berthier.com.br
NEGROS SP- CURSO DO MOVIMENTO NEGRO ● dia 18, das 8h às 16h Centro Social Urbano,Alto da BoaVista. R. Papa João 23 nº 61, Bebedouro. Realização: União de Negros Pela Igualdade. Mais informações e inscrições gratuitas: comunidadenegra@mdbrasil.com.br, (17) 9709-0084
VIOLÊNCIA ES - CAMPANHA ESTADUAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL: NÃO CÚMPLICE, DENUNCIE
SEJA
● de 15 a 18 Vitória. Promoção do Fórum Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil. Mais informações: (27) 3382-6175/9994-8761
POLÍTICAS PÚBLICAS BA - DEBATE “DESENVOLVIMENTO LOCAL E POLÍTICAS PÚBLICAS”
BF - 15 de março é o dia do assistente social. Há o que comemorar? Hilda - Há muito o que comemorar. O assistente social brasileiro deve se sentir orgulhoso das conquistas obtidas nos últimos vinte anos. O Serviço Social é uma das poucas profissões que, no cenário nacional atual, tem um projeto com uma direção ético, e política muito clara: um projeto profissional que é claramente opositor ao conservadorismo que marcou a origem e o desenvolvimento da profissão.Um projeto que se vincula abertamente à construção de uma sociedade sem exploração de classe, etnia ou gênero. Nesse curto espaço de tempo (duas décadas apenas), a profissão se renovou inteiramente. O Serviço Social passou de mero vazadouro da produção das ciências sociais e humanas a ser um interlocutor respeitado e importante da área. Fez crescer em quantidade e qualidade a sua produção teórica. Empreendeu de forma séria e democrática uma profunda revisão da sua formação profissional.
● dias 17 e 18 Escola CAIC, Salvador. Promoção do Fórum de Luta por Terra, Trabalho e Cidadania. Mais informações: (73) 613-9129, faseba@nuxnet.com.br
ECOLOGIA RJ - CICLO 21 ECOLOGIA BRASIL Auditório Carl Sagan, Rio de Janeiro. Programação: Dia 12 - Terra: O tesouro genético é nosso ou deles? Palestrantes: Antonio Paes de Carvalho e Carlos Minc; mediador: Guilherme Fiúza, Dia 19 - Ar: O poder do homem sobre o clima, Palestrantes: Laura Valente e Roberto Schaeffer; mediadora: Ana Lúcia Azevedo, Dia 26 - Fogo: a poluição da pobreza. Palestrantes: Samira Crespo e Tania Pacheco; mediadora: Kristina Michahelles. Às 20h30, com distribuição de senhas uma hora antes. Mais informações: (21) 2274-0046/ 0096, ramais 214 ou 215
AMÉRICA LATINA SP - OFICINA “CIÊNCIA, COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE”
● dia 14, às 9h30 Universidade Federal de SP (Unifesp), auditório Marcos Lindenberg, R. Botucatu, 862, edifício dos anfiteatros, São Paulo. Entrada franca, com tradução simultânea. Mais informações: luisa.massarani@scidev.net
BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
s medidas adotadas pelo governo Lula na área social são ainda muito tímidas, especialmente quando confrontadas ao grande desafio de colocar o Estado a serviço do bem público, afirma a assistente social Hilda Corrêa de Oliveira, atual presidente do Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro. Em entrevista a Brasil de Fato, ela faz uma avaliação dos primeiros quatro meses do governo e dos desafios colocados para os assistentes sociais brasileiros, que em 15 de maio comemoram o seu dia nacional.
Quem é
Arquivo CRSS
Nilton Viana, da Redação
15
ESPORTE
As grandes transnacionais utilizam o esporte como meio de divulgar suas marcas e controlam esse mercado mundial de R$ 324 bilhões; no Brasil, a corporação holandesa Nike manda e desmanda no futebol, com a aprovação da CBF
LAZER POR DÓLARES
ma dezena de multinacionais domina cerca de 70% do mercado mundial do esporte, avaliado em R$ 324 bilhões (3% do valor do comércio internacional). Esse controle financeiro se dá pela compra de equipes, o patrocínio de seleções e a transmissão por televisão, além do comércio de acessórios e roupas esportivas. “O esporte de alto nível se tornou um simples instrumento da mundialização econômica”, avalia o economista francês Jean-François Bourg, pesquisador do Centro de Direito e de Economia do Esporte, em Limoges. Para ele, as grandes empresas utilizam atletas, equipes e seleções apenas como meio de divulgar suas marcas. Nesse sentido, o patrocínio esportivo, em 1998, atingia mundialmente a cifra de R$ 54 bilhões, dos quais R$ 30 bilhões para a compra de espaços em roupas de atletas. A transnacional estadunidense Coca Cola, que está presente em 200 países, destina por ano R$ 4,2 bilhões para colocar sua marca em eventos esportivos. No ramo dos tênis, as três maiores produtoras (Nike,Adidas e Reebok) representam 62% das vendas, de um total mundial avaliado em R$ 66 bilhões. Segundo Bourg, o slogan Just do it (“Só faça isso”) ou a vírgula, símbolo da
Nike, são sinônimos de um estilo de vida, baseado na vitória e na riqueza, que criam um padrão único de consumo, ou seja, quem pratica esporte sente a necessidade de possuir os acessórios e roupas da empresa. BOLSA DO FUTEBOL Mais do que pelos resultados, o futebol, por exemplo, é hoje dirigido e orientado por uma bolsa mundial, que decide quanto uma equipe vale e quanto as empresas devem investir, analisa Bourg, cujo principal livro, Economia do Esporte, deve ser publicado no Brasil pela Edusc ainda em 2003. Para ele, o esporte passou de uma atividade física com fins educativos para uma atividade econômica em escala internacional. A bolsa, criada na década de 1980, já funciona em doze países europeus e regula a compra de jogadores, os investimentos em estruturas esportivas (estádios, ginásios etc.) e os rendimentos financeiros de equipes como o Manchester United (Inglaterra), o Ajax (Holanda) e a Lazio (Itália). Bourg explica que essa instituição perverte o equilíbrio competitivo, pois só algumas equipes são beneficiadas pela bolsa, aumentando a desigualdade entre os times. “Do ponto de vista ético, a satisfação de objetivos financeiros, para os acionistas, é muitas vezes priorizada em relação aos esportivos, para os torcedores”, completa o economista francês.
Garrinchas não existem mais A transformação do esporte de atividade física com fins educativos para uma atividade econômica em escala internacional modificou também o modo como as pessoas representam e se envolvem com ele. Segundo a pesquisadora Eline Deccache Maia, especialista na área de antropologia do esporte, o espírito coletivo que deveria estar presente no futebol desaparece por conseqüência da concorrência comercial entre os jogadores. Para ela, o jogador tem em mente que, se não fizer o gol, não será mais o garoto propaganda da Nike, o que muitas vezes significa o fim de uma carreira.“A maneira como Garrincha encarava o futebol não encontramos em nenhum jogador que a ele se assemelhe, não existe mais”, salienta. Mesmo assim, Eline acredita que a arte não se perdeu totalmente, mas que ela está concentrada essencialmente nas várzeas, onde não há o compromisso com o capital. (JAP e CJ)
A economia do esporte no Brasil ■
Total (2001): R$ 20 bilhões (1,7% de toda a renda nacional) ■ Indústria (2001): 6% de taxa crescimento 30% de participação no total da economia do esporte ■ Investimentos em infra-estrutura (2000): R$ 2,6 bilhões ■ Trabalho (2000): 300 mil pessoas empregadas no setor Fonte: O esporte como indústria, de Istvan Kasznar (Rio de Janeiro: CBV, 2002)
■ O economista francês Jean-François Bourg denuncia o controle da economia do esporte por transnacionais; ao lado, o atacante Ronaldo faz jogada em amistoso contra o México, cuja renda de 800 mil dólares foi toda embolsada pela Nike
Claudio Cruz/AP/AE
João Alexandre Peschanski e Cláudia Jardim, da Redação
Arquivo pessoal
Dez corporações controlam o mercado esportivo mundial
A Nike manda no futebol brasileiro Wilson de Carvalho, do Rio de Janeiro (RJ) Confederação Brasileira de Futebol (CBF) mantém em vigor um contrato milionário com a transnacional holandesa Nike, dando à empresa o poder de fazer o que bem entender com a seleção brasileira. A empresa chega ao ponto de escalar jogadores e expor a equipe em amistosos inexpressivos e altamente desgastantes, caso recente do empate de 0 a 0 com o México, em Guadalajara, e sem que a CBF tenha qualquer participação nos lu-
cros (nesse jogo de 800 mil dólares), direitos de televisão, placas de publicidade, entre outros. O contrato direto entre a CBF e a Nike atinge 160 milhões de dólares – e essa quantia é apenas a oficial. Em uma das cláusulas da negociação, a entidade brasileira coloca à disposição da transnacional a seleção para uma dezena de amistosos até 2006 em que, pelo menos, oito jogadores considerados titulares estejam presentes. O jogador Ronaldo, que teve a escalação imposta pela Nike na decisão da Copa de 98, na França, depois de uma convulsão até hoje não explicada, é protegido
por uma cláusula que obriga a CBF a não deixá-lo fora da seleção por um período mínimo de dois anos. Ou seja, mesmo estando mal ele tem de jogar. Até faixas da Nike são obrigatórias em vestiários, juntando o nome da empresa ao do País. A corporação também pode, a cada ano, modificar o modelo da camisa da seleção brasileira. Na nova sede da CBF, na Barra da Tijuca, o contrato obrigou a instalação de uma loja de varejo e o logotipo em destaque, na frente, “bem visível”, conforme enfatiza o artigo 8.3, letra G, sobre Benefícios do Patrocínio.
“Um goleiro é tão infeliz que onde ele joga nem a grama nasce” BRASIL DE FATO De 11 a 17 de maio de 2003
Juarez Soares, de São Paulo (SP)
16
frase acima é tão antiga no Brasil que chegou junto com a primeira bola que Charles Miller trouxe da Inglaterra. Tudo no goleiro é diferente. Seu uniforme, sua área de atuação, só ele pode pegar a bola com a mão e ser aplaudido. O goleiro tem seu momento sublime na hora do pênalti. Nessa hora ele só participa do lucro, nunca do prejuízo. Se a bola entrar, paciência. Era a obrigação de quem chutou. Mas se o goleiro defende, bem, aí tudo é diferente. Ele é o herói, o milagreiro, o santo, quase atinge a divindade. O goleiro vai do céu ao inferno em um instante.
Foi assim outro dia no jogo do Santos contra o Nacional de Montevidéu pela taça Libertadores da América. A Vila Belmiro estava lotada. Vinte mil torcedores do Santos, enlouquecidos, esperavam a vitória, pois só a vitória interessava. O Santos saiu ganhado por um a zero e a esperança explodiu no estádio. Mas como a dor e a sorte fazem parte da vida, tudo se transformou. O Nacional empatou num lance histórico. O jogador do Uruguai fez um gol de “bicicleta”, talvez a mais difícil e bonita jogada do futebol. A Vila Belmiro tremeu. Para maior dos pecados, os uruguaios passaram a frente vencendo por dois a um. O goleiro Fábio Costa, herói de outras jornadas, teve uma falha de
principiante, e um clima de horror tomou conta dos torcedores. Era a desclassificação do torneio. Logo, ele, Fábio Costa, que tinha garantido com todas as honras, para o Santos, o título de campeão brasileiro na partida decisiva contra o Corinthians. Mas a dor faz parte da vida. A sorte faz parte do jogo. O mesmo jogador uruguaio, autor do gol de bicicleta, fez um gol contra e desceu ao inferno. Jogo empatado, clima de felicidade naVila Belmiro. Felicidade parcial, se é que a felicidade pode ser distribuída em fatias. Final do jogo, sem vencedor, o regulamento mandou que a partida fosse decidida nos pênaltis. Cinco cobranças para cada lado. O estádio, sentindo a dor do seu goleiro como um coral majesto-
so, começou a gritar o nome de Fábio Costa.Vinte mil pessoas elegendo por antecipação o seu líder e salvador. E o goleiro não decepcionou. Das cinco cobranças, defendeu três. Seu time se classificou e segue firme na Libertadores.Todos os seus companheiros fizeram pública reverência a Fábio Costa. Ele tinha voltado ao céu, no lugar especial reservado somente aos goleiros, esses seres tão sofridos. Mas o jogo Santos X Nacional foi muito mais que uma partida de futebol. Foi um reencontro entre brasileiros e uruguaios. Ameaçou trazer de volta o fantasma da Copa de cinqüenta no Maracanã, quando o Brasil foi derrotado. O jogo da Vila Belmiro colocou de novo em discussão se a
violência no futebol vale a pena. Na partida disputada em Monte vidéu, ou uruguaios deram tanto pontapé, usaram de tanta violência que, na falta de outro recurso, um jogador adversário quase arrancou o dedo de Diego, com uma mordida. O time do Santos, técnico, muito jovem, agüentou resignado a pancadaria. Na Vila Belmiro, jamais sofrido, agüentou melhor o tranco. Nesse jogo, classificou-se o time que tem melhor futebol, mais prático, mais bonito. Verdade que precisou dos préstimos de seu goleiro, que virou de novo herói. A não ser que, nesse final de semana, o inesperado faça uma surpresa, e um “frango” atravesse o seu caminho. Fábio Costa sabe que faz parte da profissão.