BRASILDEFATO Ano I ■ Número 11 ■ São Paulo ■ De 15 a 21 de maio de 2003
Circulação Nacional
R$ 2,00
Previdência tem só 300 procuradores para cobrar dívida de R$ 100 bilhões
Agricultores queimam milho transgênico no PR Três mil pessoas, entre sem-terra, pequenos agricultores e estudantes,
Há 10 anos, a Previdência tinha 7 mil fiscais para 2,5 milhões de empresas; hoje, menos de 3,9 mil auditores devem fiscalizar o dobro, e 300 procuradores têm que despachar 1,7 milhão de processos trabalhistas por ano. No total a dívida para com o INSS soma R$ 100 bilhões. Enquanto isso, milhões sofrem o pesadelo de depender do INSS. Págs. 4 e 5 DESMONTE DO ESTADO
Gazeta do Povo/AE
destruíram nove hectares de uma plantação de milho transgênico da Monsanto, em Ponta Grossa (PR), na sexta-feira, dia 9. O ato marcou o encerramento da II Jornada Paranaense de Agroecologia, cujos participantes enviaram uma carta em que pedem ao presidente Lula uma moratória no uso dos transgênicos no país. Os bispos da Comissão Pastoral da Terra também lançaram manifesto, sobre os riscos dos transgênicos. Pág. 3
Reforma Tributária ignora distorções Projeto enviado pelo governo federal ao Congresso mantém o mecanismo que onera o assalariado e poupa o capital financeiro, como provam cálculos feitos pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais (Unafisco). É a chamada “regressividade do sistema”, que favorece a concentração de renda. Pág. 7
Veja na seção Debate, pág. 14, as avaliações do deputado federal Virgílio Guimarães (PTMG) e do professor de Direito Osiris Lopes Filho, da UNB e FGV.
■ Em Ponta Grossa, agricultores destroem plantação da Monsanto,
que pressiona pela liberação dos alimentos transgênicos no Brasil
Justiça italiana absolve assassino de Carlo Giuliani
Nove anos depois do fim do apartheid, 65 mil brancos, num país de 40 milhões de habitantes e 26 milhões de camponeses negros sem-terra, ainda são donos de 80% da terra agricultável da África do Sul. Em entrevista exclusiva, Andile Mngxitama, coordenador nacional da Comissão Nacional pela Terra, conta como o MST brasileiro influenciou e inspirou o Movimento das Pessoas sem Terra sulafricano. Para Mngxitama, o MST é “exemplo do que deveria ser um estado permanente de poder popular”. Pág. 12
O assassino do manifestante Carlo Giuliani, 23 anos, durante os protestos de massa contra uma reunião do G-8 em Gênova, Itália, em julho de 2001, vai ficar impune. A juíza Elena Daloiso absolveu o policial Mario Placanica, autor do disparo que matou Giuliani. Segundo a versão fantástica da juíza, Placanica atirou para o alto, a bala ricocheteou numa pedra atirada pelos manifestantes e só então atingiu Giuliani.“O arquivamento do caso é a sentença de uma Itália que tem medo”, reagiu a Comissão Verdade e Justiça para Gênova. Pág. 10
A euforia do mercado financeiro não tem contrapartida real: o desemprego continua aumentando e a produção e salários, caindo. Pág. 6
E mais:
FEBEM – As meninas internas da Febem não recebem tratamento adequado para seu sexo e estão sujeitas a castigos violentos. Pág. 8 ORIENTE MÉDIO – O presidente estadunidense George Bush quer impor ao Oriente Médio uma área de livre comércio semelhante à Alca. Pág. 9 BRASIL-IRAQUE – O Brasil já deve reiniciar os negócios com o Iraque, afirma o ministro Luiz Fernando Furlan. Pág. 9 ALCA – Grande parte da produção brasileira seria destruída se entrasse em vigor a Alca, diz o economista Paulo Nogueira Batista Jr. Pág. 11 QUILOMBOS – Veja um ensaio fotográfico com imagens dos quilombos brasileiros, registradas pelo fotógrafo Ricardo Teles. Pág. 13 RÁDIOS DE CRIANÇAS – Nas escolas municipais de São Paulo (SP), crianças produzem programas de rádios comunitárias para seus colegas. Pág. 15
BRASIL DE FATO De 15 a 21 de maio de 2003
A responsabilidade para acabar com a bandidagem do futebol é de toda a sociedade. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o ministro do Esporte, Agnelo Queiroz, anunciou uma cruzada para moralizar o esporte brasileiro. Ele também anunciou a principal meta de sua gestão:“colocar quatro milhões de pessoas praticando esporte até o final do governo”. Apesar de reconhecer as dificuldades iniciais, Queiroz acredita que o esporte poderá ser usado como um instrumento de inclusão social e combate à criminalidade. Pág. 16
■ O administrador de empresas Marcelo Fernandez espera sua vez em fila de candidatos a um posto de trabalho, na sede da Central Única dos Trabalhadores, em São Paulo
Nathan
Ministro quer acabar com a bandidagem no futebol
DESEMPREGO Renato Stockler
MST do Brasil inspira a luta de sul-africanos por terras
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Fala, Zé! Ohi
NOSSA OPINIÃO
Não aos transgênicos Existem hoje no mundo dois importantes pólos de resistência aos alimentos transgênicos: o Brasil, pela sua capacidade de produção agrícola, e a Europa, pela conscientização dos consumidores, que não compram produtos geneticamente modificados. França, Dinamarca, Bélgica, Itália, Alemanha, Suécia, Luxemburgo e Grécia não permitem a sua entrada. Em praticamente todos os países do mundo há restrições ao cultivo comercial de transgênicos: 98% de toda a área cultivada com esse tipo de planta encontra-se em apenas três países dominados pelas transnacionais estadunidenses: Estados Unidos, Canadá e Argentina. A resistência dos mercados europeus, em particular, ameaça levar a transnacional Monsanto à falência. A situação é dramática: o presidente George Bush anunciou, semana passada, uma nova ofensiva, no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), para derrubar as barreiras européias. O fato central é: está nas mãos dos brasileiros a sobrevivência ou a falência da Monsanto. Primeiro, porque o mercado brasileiro de sementes de soja é um dos maiores do mundo. Segundo, porque, se o Brasil contaminar a sua produção de soja com sementes modificadas, a Europa não teria de onde comprar produtos não transgênicos. Isso explica as pressões da Monsanto sobre o governo, no sentido de liberar a produção e a comercialização de suas sementes. A pressão incluiu um processo de convencimento dos produtores gaúchos de importar sementes contrabandeadas da Argentina e cultivar plantações ilegais do produto. Para evitar uma catástrofe no Rio Grande do Sul, o governo foi levado a autorizar a comercialização da safra. Em Pernambuco, o lobby dos transgênicos conseguiu que a Assembléia Legislativa autorizasse a importação de milho modificado da Argentina. Houve várias reações importantes à ofensiva da Monsanto. Os bispos da Comissão Pastoral da Terra (CPT) publicaram, em 6 de maio, um manifesto contra os alimentos geneticamente modificados. Apontam razões ancoradas nos princípios de justiça social, de direito a um ambiente ecológico saudável, de saúde pública e de soberania alimentar. O documento foi entregue ao presidente da Câmara e à Mesa do Senado. E de ambos os bispos receberam a promessa de uma campanha de esclarecimento para que o direito do povo seja preservado. Em Ponta Grossa (PR), os participantes da 2ª Jornada Paranaense de Agroecologia, entre 7 e 10 de maio, destruíram uma plantação de milho modificado da Monsanto. Durante a jornada, o vice-governador do Paraná, Orlando Pessuti reafirmou a determinação do governo em manter as terras paranaenses livres de transgênicos. O governo federal tomou a iniciativa, bastante positiva, do decreto lei que regulariza a necessidade de rotular todos os produtos que tenham mais de um 1% de transgênicos. É vital e possível resistir. O povo brasileiro não deixará que nossos alimentos sejam contaminados pela sanha gananciosa da Monsato e comparsas.
BRASILDEFATO CONSELHO POLÍTICO: Achille Lollo ■ Ari Alberti ■ Ariovaldo Umbelino ■ Assunção Ernandes ■ Aton Fon Filho ■ Augusto Boal ■ Cácia Cortez ■ Carlos Marés ■ Carlos Nelson Coutinho ■ Celso Membrides Sávio ■ Claus Germer ■ Dom Demétrio Valentini ■ Dom Mauro Morelli ■ Dom Tomás Balduíno ■ Edmilson Costa ■ Elena Vettorazzo ■ Emir Sader ■ Egon Krakhecke ■ Erick Schunig Fernandes ■ Fábio de Barros Pereira ■ Fernando Altemeyer ■ Fernando Morais ■ Francisco de Oliveira ■ Frederico Santana Rick ■ Frei Sérgio Gorgen ■ Horácio Martins ■ Ivan Valente ■ Jasper Lopes Bastos ■ ■ João Alfredo ■ João Capibaribe ■ João José Reis ■ João José Sady ■ João Pedro Stedile ■ Laurindo Lalo Leal Filho ■ Leandro Konder ■ Luís Alberto ■ Luís Arnaldo ■ Luís Carlos Guedes Pinto ■ Luís Fernandes ■ Luis Gonzaga (Gegê) ■ Marcelo Goulart ■ Marcos Arruda ■ Maria Dirlene Marques ■ Mário Augusto Jakobskind ■ Mário Maestri ■ Nalú Faria ■ Nilo Batista ■ Oscar Niemeyer ■ Pastor Werner Fuchs ■ Pedro Ivo ■ Raul Pont ■ Reinaldo Gonçalves ■ Renato Tapajós ■ Ricardo Antunes ■ Ricardo Rezende Figueira ■ Roberto Romano ■ Rodolfo Salm ■ Rosângela Ribeiro Gil ■ Sebastião Salgado ■ Sérgio Barbosa de Almeida ■ Sérgio Carvalho ■ Sérgio Haddad ■ Tatau Godinho ■ Tiago Rodrigo Dória ■ Uriel Villas Boas ■ Valério Arcary ■ Valter Uzzo ■ Vito Gianotti ■ Vladimir Araújo ■ Vladimir Sacheta ■ Zilda Cosme Ferreira ■ Também participam do Conselho Político todos os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores ■
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Cartas de leitores CARTA AO LULA Achei muito ingênua a carta dos intelectuais ao Lula. Sinceramente, quem sai na chuva é pra se molhar. A pressão americana todos sabem qual é, vide Iraque, Chile, Hiroshima.Agora, depois da votação da 192, das declarações contra os radicais, que nem são radicais de fato, ainda achar que a Alca não vai passar? E pedir plebiscito com o voto eletrônico e Duda Mendonça é pedir a “aprovação” da população a esta barbaridade. Cristina Paraguassu, Rio de Janeiro (RJ)
DECEPÇÃO Fiz assinatura do Brasil de Fato, estive lendo os exemplares já editados e gostei muito. Evidencio as reportagens sobre países africanos. Finalmente alguém dá voz a esse continente. As entrevistas também estão ótimas. Porém, fiquei decepcionada, assim como minhas companheiras de comunidade, com a figura que usaram para ridicularizar o Bush, no n.4.
Porque usaram um corpo de mulher? Porque não o ridicularizaram no seu corpo masculino? Acho que vocês pisaram na bola. Não esperava isso de um jornal dessa categoria. Como mulher, sinto-me ofendida. Fora isso, parabéns. Nada é perfeito, diz o Pequeno Príncipe. Espero que não caia na armadilha de usar o corpo feminino para chamariz, nem mesmo brincando. É de mau gosto. Comunidade das irmãs missionárias combonianas, Curitiba (PR)
PREVIDÊNCIA SOCIAL Os que pagam e os que lucram. Se de fato, até o final do corrente ano, o déficit previdenciário brasileiro chegar à casa dos R$70 bilhões, é bom que se fique sabendo que deste total apenas 30%, ou seja, R$21 bilhões corresponderão ao pagamento de 87,5% de pessoas do universo de 24 milhões de aposentados/pensionistas. E o grande montante de R$49 bilhões, ou 70%, corresponderão aos
12,5% de aposentados/pensionistas restantes, todos do setor público, funcionários muito bem pagos pelos cofres públicos. Em média, recebem 10 salários mínimos mensais, contra a média de apenas 2 salários mínimos que recebe o trabalhador da iniciativa privada, depois de contribuir e trabalhar muito mais tempo do que o funcionário público que, durante muitas décadas simplesmente não contribuiu com valor algum. Enfim, gasta-se bem mais com 3 milhões de pessoas do setor público do que com o extraordinário número de 21 milhões de pessoas do setor privado. João Carlos Luz Gomes, Porto Alegre (RS)
SAUDAÇÕES Votos de congratulação a todos os membros do conselho político do jor nal por participarem da formatação do projeto, hoje semanário Brasil de Fato. Odair Gonzalez, Câmara Municipal de Santos (SP)
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SEGURANÇA ALIMENTAR
NACIONAL
Cerca de 3 mil participantes de um encontro realizado em Ponta Grossa (PR) destruíram uma plantação de milho transgênico da Mosanto e enviaram uma carta ao presidente Lula contra a liberação de alimentos modificados; bispos reunidos em Itaici também condenam os transgênicos
Encontro faz ofensiva contra transgênicos ove hectares de plantação de milho transgênico da empresa transnacional Monsanto foram destruídos durante um protesto realizado dia 9, em Ponta Grossa (PR). O ato, realizado num campo de testes da empresa, reuniu cerca de 3 mil pessoas, entre trabalhadores rurais sem-terra, técnicos e agricultores familiares. A manifestação marcou o encerramento da 2a Jornada Paranaense de Agroecologia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (o quadro ao lado) receberá uma carta dos participantes, pela erradicação dos transgênicos. O protesto inaugurou também uma campanha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) contra áreas rurais que abriguem sementes geneticamente modificadas. A legislação permite o cultivo para fins de pesquisa, mas como não há fiscalização, fica difícil limitar o uso das sementes no campo científico. A partir de agora, essas áreas vão ser ocupadas. Será proposto ao governo que as propriedades façam parte do programa de reforma agrária, diz José Damasceno, da coordenação do MST no Paraná.“Precisamos de áreas para produzir alimentos saudá-
veis”, explica. A ciência desconhece os efeitos que os transgênicos podem causar no corpo. O uso de transgênicos, além disso, pode ameaçar a sobrevivência dos agricultores familiares.“A Monsanto tem o monopólio das sementes transgênicas. Se sua venda for liberada, os pequenos produtores ficarão muito dependentes de apenas uma empresa para comprar matéria-prima”, afirma Damasceno. As ações do MST incluem ainda uma campanha nacional em parceria com o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). Segundo outro integrante da coordenação do MST–PR, Roberto Baggio, Lula será pressio-
nado a proibir, a partir de 2004, qualquer presença de organismos modificados nas lavouras. O protesto durou trinta minutos. Uma caravana, formada por 50 ônibus que transportam os participantes da jornada agroecológica, conseguiu entrar na propriedade, guardada por dois vigilantes. Os pés de milho foram quebrados e depois queimados. A área destinada ao cultivo de soja transgênica estava vazia, sinal de que o produto já havia sido colhido. Duas viaturas da Polícia Militar foram vistas próximo ao local. Os policiais se limitaram a acompanhar a movimentação, à distância.
Carta a Lula pede moratória do uso de sementes modificadas
Jovana Cestile
Dimitri Stein Valle, de Curitiba (PR)
■ Queima de milho transgênico da Monsanto em Ponta Grossa (PR)
Os participantes da 2a Jornada Paranaense de Agroecologia enviaram uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para pedir uma “moratória” contra produtos de origem transgênica “por tempo indeterminado, até que sejam escalrecidas todas as dúvidas quanto à sua segurança para a saúde da população e o meio ambiente”. A carta pede que a União se retire da ação que move em conjunto com a Monsanto no Tribunal Regional Federal da Primeira Região, pela derrubada da exigência de avaliações preliminares para medir os riscos à saúde e ao meio ambiente com o manuseio de transgênicos. Em outro trecho, pede que o acordo comercial entre a transnacional e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) seja desfeito e o resultado das pesquisas feitas até agora seja levado a público. A carta pede, ainda, a abertura de um amplo debate na sociedade sobre as funções da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio), órgão do governo responsável por avaliações sobre experimentos com transgênicos. O governo foi cobrado a ajudar na descontaminação das lavouras gaúchas, que concentram alto índice (80%) de contaminação por transgênicos, e promover ações de fiscalização no Rio Grande do Sul para combater o plantio ilegal de soja modificada. O documento cita a agroecologia como contraponto saudável à exploração dos transgênicos e solicita do governo federal a adoção de políticas públicas para o setor, além de empréstimos para financiar a armazenagem de sementes convencionais e crioulas. Em outro documento, os participantes da jornada acusam o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, de ser “portavoz do latifúndio e das multinacionais detentoras das sementes transgênicas”. O documento pede o fim das “contradições no governo, que se expressam no continuísmo das políticas que ainda privilegiam os interesses das grandes corporações que dominam o mercado”. (DSV)
Monsanto depende do mercado brasileiro Jovana Cestile, especial para o Brasil de Fato sobrevivência ou a morte da empresa transnacional Mosanto está nas mãos do Brasil, afirma Peter Rosset,diretor da organização Food First (Comida Primeiro). Isso, por duas razões: primeiro, porque o Brasil é, em si, um mercado muito grande de sementes.A liberação da soja transgênica poderia abastecer os cofres da empresa. Segundo, porque muitos países europeus proibiram a importação de soja transgênica, e o Brasil é o único país que pode fornecer soja não contaminada na escalada necessária para os europeus. Caso a soja brasileira seja contaminada, os europeus não terão alternativa. Brasil de Fato – Os transgênicos são a modernização do capitalismo na agricultura? Peter Rosset – O capitalismo apresenta o agrotóxico como o método correto de controlar as pragas, os tratores grandes como a maneira de preparar o solo.
Assim, eles vão tomando conta de toda a cadeia produtiva. Cada vez a indústria vai tomando para si mais partes da agricultura, e os agricultores ficam com menos. Os transgênicos, nessa lógica, seriam a última parte que as corporações transnacionais querem tomar.
BF - Hoje se retoma a teoria malthusiana, segundo a qual a escala de aumento da produção alimentar é menor do que a do crescimento da população. Como está a produção de alimentos no mundo? PR – O argumento do aumento da população tenta explicar a fome, e o uso do transgênico como solução. Isso é falso. Fome não tem relação com crescimento da população. Há países com grande população em que muitos passam fome, mas também há países com pequenas populações, em que também existe o problema da fome. O Brasil é o exemplo número um: com tanta terra e tantos passam fome.
O mundo produz excesso de alimentos. Mas é preciso destinar mais recursos aos pobres, para que eles tenham acesso à comida. O governo do meu país, o presidente George Bush, usa toda a força para garantir os interesses das corporações multinacionais, e para isso usa o pretexto do combate à fome. A Monsanto está passando por uma crise financeira, o valor de suas ações nas bolsas está muito baixo. Se o mercado brasileiros de sementes de soja se abre, a Monsanto pode sobreviver; caso contrário, vai falir. Então os brasileiros têm em suas mãos o futuro da Mansanto.
BF - Qual seria a saída para a agricultura brasileira?
PR – Há várias saídas estratégicas: voltar a construir a autonomia dos agricultores, não consumindo agrotóxicos e sementes transgênicas. A saída é combinar a agroecologia com resistência política, multiplicar ações diretas sobre as instalações da Monsanto, pressionar o governo. Se o Brasil eliminar a Monsanto do país, será uma vitória para o povo do mundo todo. Com a agroecologia, a agricultura pode ser soberana, autônoma e não depender das transnacionais. As pesquisas mostram que os agricultores que conseguem uma mudança completa para a agroecologia têm rendas mais altas, é uma saída econômica para as famílias do campo.
Da Redação eunidos em Itaici (SP), os bispos acompanhantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aprovaram um manifesto contra os alimentos geneticamente modificados. O documento foi entregue ao presidente da Câmara dos Deputados e à mesa do Senado Federal. De ambos, os bispos receberam a promessa de uma campanha de esclarecimento para que o direito do povo seja preservado. Veja a íntegra do documento. “Os transgênicos são resultado de manipulação genética que permite produzir, alterar e transferir genes entre os seres vivos, rompendo a barreira do cruzamento natural entre as espécies, criando, alterando e transferindo material genético entre vegetais, animais, bactérias, vírus e humanos.
Em todo o mundo e aqui no Brasil muitos estudiosos e também líderes sociais têm levantado, muito oportunamente, sérias preocupações em relação a este assunto. Estas preocupações giram em torno dos seguintes riscos: 1o Com relação à saúde humana, a ingestão dos grãos geneticamente modificados podem provocar aumento de alergias, resistência a antibióticos e elevação do índice de substâncias tóxicas nos alimentos. 2o No meio ambiente há o risco da erosão genética, afetando irreversivelmente a biodiversidade, pela contaminação dos bancos naturais de sementes (bancos de germoplasma). Acresce a isto o aumento assustador da monocultura e a conseqüente perda da riquíssima variedade e qualidade das sementes. 3o É também uma ameaça à soberania alimentar do nosso país, em razão da perda do controle das sementes e dos seres vivos pelo patenteamento dos mesmos, tor-
nados propriedade exclusiva e legal de grupos transnacionais que só visam fins comerciais. 4o O risco maior, entretanto, está na total dependência, na destruição e, finalmente, no desaparecimento da pequena e até da média agricultura por causa do inexorável monopólio mundial da produção e comercialização das sementes, que passam para o domínio de um pequeno grupo de gigantescas e poderosas empresas transnacionais. Com relação a estas questões, por outro lado, não podemos ignorar ou deixar de cumprir as exigências éticas como a nãomaleficência, a justiça social, a justiça ecológica e a precaução. O princípio da não-maleficência implica no nosso dever de evitar ou impedir o mal ou dano aos outros. No caso de introdução massiva de novas tecnologias que impliquem riscos potenciais à saúde, este princípio deve estar garantido por meio de informações claras e seguras.
O princípio da justiça social, em casos de inovações tecnológicas massivas e de alto impacto social, leva-nos a perguntar sobre quem vai ser beneficiado e quem vai ser prejudicado. Ora, no caso concreto dos transgênicos é claro que um pequeno grupo de grandes empresas será o grande beneficiado, com grave dano para a agricultura familiar. O princípio da justiça ecológica impõe o dever de preservar o meio ambiente para as gerações atuais e futuras. Os transgênicos podem representar sério risco ecológico. O princípio da precaução exige que, antes da liberação de qualquer produto para o consumo humano, sejam adotadas severas normas de biossegurança. Não se trata de travar a ciência ou a pesquisa, nem de provocar medo paranóico perante o novo. Pelo contrário, defende-se o mais amplo espaço para a ciência e a
pesquisa, orientadas, porém, para o bem comum. As aplicações tecnológicas que impliquem riscos potenciais de grande envergadura, sejam decididas, aprovadas, negadas ou aperfeiçoadas a partir de decisões democráticas e sob controle do povo. Apoiando a heróica luta das organizações populares do campo e fazendo eco a uma das grandes reivindicações do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, de bom grado defendemos que as sementes sejam declaradas patrimônio da humanidade e conservadas em sua integridade genética pelas comunidades camponesas. Nesta mesma linha tomamos a liberdade de indicar ao Poder Público, ao Ministério Público, ao Legislativo, ao Judiciário e ao Executivo que, ao tratar destas graves questões, se orientem por estas novas e justas reivindicações, bem como pelos princípios éticos que as regem.”
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Bispos rejeitam alimento modificado
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DESMONTE DO ESTADO
Lauro Jardim, de São Paulo rocure bem, porque esta espécie está ameaçada de extinção. Há 10 anos, a Previdência contava com 7 mil fiscais para 2,5 milhões de empresas, segundo números da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Anfip). Restam, hoje, menos de 3,9 mil auditores para fiscalizar 5 milhões de empresas em todo o Brasil. O número de auditores fiscais diminuiu 48%, enquanto dobrou o total de empresas. Se, no início dos anos 90, cada fiscal deveria responder, aproximadamente, pelo acompanhamento de 360 empresas, hoje cada um deles terá que investigar os livros de quase 1,3 mil empresas por ano (quatro vezes mais) ou, numa estimativa meramente hipotética, três empresas e meia por dia, sem direito a descanso e feriados, sem férias nem finais de semana. INCOMPETÊNCIA Deve-se levar em conta que o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) considera cada obra em andamento como uma empresa, já que a fiscalização e o lançamento de eventuais débitos fiscais são feitos separadamente. Isso, de qualquer forma, não ameniza o impacto da política de desmonte em vigor também no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS). Ao contrário, os dados mostram que a carga de trabalho da equipe de fiscalização foi multi-
Fiscal da Previdência: você já viu um? plicada por quase quatro em 10 anos, o que demonstra, no mínimo, uma inapetência do governo para combater a sonegação ou, numa hipótese mais grave, sua conivência com sonegadores e fraudadores.
rombo de R$ 19,6 bilhões projetado para o INSS em 2003. Mas a operação desmonte prossegue, inabalável. “As sucessivas reformas ou ameaças de reforma da Previdência, representando a supressão de direitos, levaram à aposentadoria precoce de servidores e à não renovação dos quadros”, afirma Possas. Na função de auditor fiscal da Previdência, foram registradas apenas 122 contratações nos últimos quatro anos, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Nos quatro anos anteriores, as contratações por concurso público somaram 1.005.
ENORME ESTRAGO O “estrago”, na verdade, é maior do que parece. O vice-presidente de Comunicação Social da Anfip, Rodrigo Possas, lembra que o total de fiscais da Previdência já chegou a 9 mil no final dos anos 80 – número considerado adequado ao sistema. No ano passado, segundo balanço do INSS, foram fiscalizadas ou sofreram diligências, em todo o país, apenas 190.699 empresas, numa queda de 19,4% em relação a 2001. Também em 2002, a receita líquida da Previdência, representada pelo recolhimento de contribuições, somou R$ 71 bilhões, em valores aproximados, dos quais cerca de 28%, ou R$ 20 bilhões, foram arrecadados pela ação dos fiscais. A Anfip estima que seria possível quase dobrar a arrecadação se o quadro de auditores fosse multiplicado por dois.
ARROCHO SALARIAL Resultado: o número de fiscais aposentados e de pensionistas é duas vezes maior do que o quadro na ativa (8.245 diante de 3.893). Para complicar, o piso da categoria sofreu correção de apenas 8,8% desde 1995, saindo de R$ 4,6 mil para R$ 5 mil hoje, diz Possas. No período, a inflação superou 100%, achatando o salário de entrada na função de auditor. Para contornar a evasão de pessoal, o governo decidiu investir na informatização e concentrar a fiscalização nos maiores contr ibuintes. A moder nização tecnológica é considerada bemvinda pelos servidores, não fosse um “porém”. “Os sistemas de arrecadação, fiscalização e de pagamentos de benefícios não se ‘falam’, o que dificulta uma gestão competente dos recursos previdenciários”, arremata Possas.
FIM DO DESEQUILÍBRIO Em tese, a medida seria suficiente para zerar o tal déficit alegado pelo governo federal para justificar a reforma do setor – e que este jornal já demonstrou, com base em dados da Anfip, não passar de uma fantasia. A entrada de mais R$ 20 bilhões em caixa anularia o (falso)
BRASIL DE FATO De 15 a 21 de maio de 2003
Falta gente até para digitar
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CORTE GENERALIZADO Ao buscar contentar sua base de aliados, o governo federal ainda cortou 10% das funções gratificadas, que estavam colocadas a serviço da Procuradoria Geral Federal, e as redistribuiu entre os novos órgãos e ministérios criados desde janeiro. “Hoje, faltam secretár ias, digitadores e pessoal administrativo de apoio ao trabalho dos procuradores, que são obrigados a atender telefones, passar fax e fa-
mento de desemprego e queda na renda (leia matéria nesta edição). Um estudo do MPAS, com base em dados de 2002, mostra a existência de 18,7 milhões de trabalhadores e assalariados em condições de contribuir para o INSS, mas que hoje estão fora do sistema.
zer o trabalho de digitação”, diz o procurador. E a informatização ajuda? Ajudaria, sim, se houvesse gente. Mas “esqueceram” do elementar: não há técnicos para lançar os dados no computador e alimentar o sistema, mantendo os processos atualizados. DÍVIDAS NÃO COBRADAS A conseqüência prática pode ser antevista nos números a seguir. A dívida ativa da Previdência, representando apenas os crédito já reconhecidos pela Justiça, e em fase de cobrança judicial, saltou de R$ 53,978 bilhões, em 1998, para R$ 93,924 bilhões no final do ano passado, e já se aproxima de R$ 99 bilhões no terceiro trimestre deste ano, segundo números do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS). Sempre de acordo com a assessoria do ministério, ano a ano, menos de 2% daqueles créditos são recuperados, algo como R$ 1,7 bilhão no ano passado. Neste ritmo, seriam necessários 50 anos para receber tudo, supondo-se que a dívida pare de crescer, daqui para a frente. CRISE FABRICADA Num resumo, a crise da Previdência vem sendo fabricada pela política de desmonte a que o setor foi submetido ao longo dos anos, e agravou-se, recentemente, em função da própria política econômica, que tem gerado au-
■ Fila para retirar o seguro-desemprego em posto do INSS (SP)
Uma missão jamais cumprida Com base na Lei no 8.212 de 1991, a Previdência Social tem como missão, ou ao menos deveria ter, “assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, idade avançada, desemprego involuntário, encargos de família e reclusão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente”. Tomando a solidariedade como um de seus princípios fundamentais, a Previdência deve (ou deveria) cobrar e arrecadar contribuições daqueles que têm condições para isso com o objetivo de repartir entre as pessoas que já deram sua cota de esforço e sacrifício ao país, produzindo riquezas. Ou, utilizando ainda os recursos das contribuições, amparar incapazes, viúvas, órfãos e idosos que, de outra forma, não teriam meios para se sustentar.
Segundo o mesmo estudo, a cada 1 milhão de novos contribuintes, a receita do INSS cresce o correspondente a R$ 750 milhões. Se todo aquele contingente fosse agregado à Previdência, a arrecadação sofreriam uma injeção de R$ 14 bilhões por ano.
Some-se mais outros R$ 20 bilhões que poderiam ser recuperados no combate à sonegação e o INSS estaria trabalhando, hoje, com um saldo de caixa de R$ 14,4 bilhões, levando-se em conta os números do próprio governo.
Fábio Motta/AE
o mesmo tempo em que não consegue fiscalizar os sonegadores como deveria, o governo mostra incompetência para cobrar a dívida já ajuizada (ou seja, em fase de cobrança na Justiça) porque faltam procuradores. Hoje, segundo um procurador ouvido pelo Brasil de Fato, são apenas 300 para despachar 1,7 milhão processos de execuções trabalhistas por ano, cerca de 300 mil ações de execução fiscal (cobrança de dívida) e 1 milhão de processos movidos por aposentados e pensionistas que reclamam direitos ou a revisão de benefícios. Em média, cada procurador deve analisar, anualmente, perto de 10 mil processos, o que dá o incrível número de 27 processos por dia, também sem direito a fim de semana, feriados e muito menos férias.
Edu Garcia/AE
NACIONAL
Em 10 anos, o desmanche da Previdência Social reduziu o número de auditores quase à metade, e sobra para menos de 300 procuradores a tarefa de cobrar uma dívida que já acumula perto de R$ 100 bilhões
■ Posto do INSS reabre após greve prolongada, em novembro de 2001, no Rio de Janeiro
BRASILEIROS
NACIONAL
Dois Antônios e um Benedito: três brasileiros que sentem em sua pele a dura realidade de um sistema previdenciário absolutamente injusto, condenados a uma vida indigna, enquanto bancos recebem bilhões de reais, em concessões e anistias fiscais
A dura vida de quem depende da seguridade social
Antônio Nascimento dos Santos, 42 anos A
ntônio Nascimento dos Santos, de 42 anos, nasceu na Bahia.Aos 12, teve de migrar para São Paulo “porque na roça não deu mais para viver”. Trabalhou durante 20 anos em uma fábrica de materiais para construção. De ajudante chegou a inspetor de qualidade. Ganhava o equivalente a R$ 800,00 por mês, com o que sustentava a casa onde morava com a esposa, a filha e a mãe.
Há seis anos sofreu um acidente de trabalho: “a prensa caiu no meu braço e me deixou com esses pinos e não pude mais trabalhar”, explica. Santos foi aposentado por invalidez e passou a receber R$ 280,00 por mês da previdência social. O dinheiro não era mais suficiente para o sustento da família e Santos começou a recolher pa-
pelão nas ruas para complementar o orçamento.“Às vezes ganho até quinze reais por dia, mas não é sempre. Antes do acidente eu tinha carro, um Corcel II, pagava as contas direitinho. Hoje, com o que ganho da aposentadoria, não dá pra mais nada”. Nos finais de semana, Santos mora no bairro do Itaim Paulista, zona Leste da cidade. Nos outros dias, vive nas ruas de São Paulo. Durante a semana, Santos e a esposa dormem embaixo da carroça que ele empurra. Não dá para voltar para a casa todos os dias, pois se gastar o dinheiro com o transporte, “não dá nem para comer. Só volto para casa no sábado”. Ele não sabe quais são as propostas do governo para a reforma da previdência e, apesar das dificuldades, não perde as esperanças. Deposita toda a sua confiança no presidente Lula: “Ele foi grevista, enfrentou a ditadura, foi preso e, além de tudo, roceiro, como eu. Por ter passado tudo isso é que ele vai fazer as coisas melhorarem”, acredita Santos.
A
Antônio José Simões, 64 anos César Viegas/BF
alguns metros de onde fica Antônio Nascimento dos Santos, outro Antônio disputa o papelão. “Ele não deixa eu pegar, diz que é dele. Para não arrumar confusão, pego latinhas”, conta o imigrante português Antônio José Simões, de 64 anos. Ele chegou em São Paulo na década de 60.Trabalhou em alguns restaurantes da cidade como garçom. Morava na Mooca e seu último trabalho, há 6 anos, foi em uma pizzaria.“Fui demitido e não tinha mais como pagar o aluguel da pensão onde morava, aí fui viver na rua”. Apesar de ter trabalhado com registro em carteira profissional e de ter contribuído com a previdência social, Simões não conseguirá se aposentar. Ele perdeu todos os documentos em um assalto e não consegue comprovar os registros profissionais das empresas em que trabalhou. Procurou um advogado, mas não conseguiu resolver o problema. Continua a esperar alguma solução. Com a saúde visivelmente debilitada, Simões conta que é preciso recolher um quilo de latinhas todos os dias para
conseguir R$ 2,40, apenas o suficiente para se alimentar no “mesão”, um restaurante popular onde o prato de comida custa R$ 0,95. “Fico na rua até as onze da noite porque o guarda só deixa eu dormir ali na esquina da rua Sete
de Abril depois desse horário”. Ele conta que prefere dormir na rua do que nos albergues da cidade, onde “as camas são cheias de bichos”. O imigrante lamenta a solidão. “Nem esposa, nem filhos, não te-
nho ninguém”. Apesar da melancolia, as lágrimas só vertem de seus olhos quando pensa no futuro e na esperança que deposita no presidente: “Só ele pode mudar isso, não agüento mais essa vida; ele é minha única esperança, nada mais”.
“Só esse dinheiro não dá, então tenho que trabalhar de sanduíche”. O aposentado conta que ganha R$ 15,00 por dia, mas não são todos os dias que consegue o posto. “Às vezes chego e a vaga já está ocupada porque tem um monte de gente sem emprego”. Ele admite não entender muito de política, mas não acredita que a reforma da previdência possa melhorar a situação dos aposentados. “As coisas já estavam perdidas desde o tempo do Collor, não acho que agora o governo vai conseguir fazer alguma coisa para mudar de verdade. Mas ainda é cedo, vamos ter que esperar para ver o que vai acontecer. Espero que as mudanças sejam para melhor porque, se piorar, aí não vai dar para viver”.
César Viegas/BF
Santos, de 68 anos, trabalha na rua Barão de Itapetininga como plaqueiro. É o “sanduíche”, como se costuma chamar os trabalhadores que carregam as placas de empregos e anúncios pelas ruas da cidade. Durante muitos anos, Benedito trabalhou como metalúrgico. No entanto, a empresa em que trabalhava faliu e, depois disso, ele só conseguiu colocação como ajudante geral, função em que foi aposentado. Recebe dois salários mínimos de aposentaria, R$ 480,00 por mês. Gasta aproximadamente R$ 100,00 com medicamentos, R$ 200,00 para pagar as contas de água, luz e gás; com o restante, compra alimentos para o sustento da esposa e de dois filhos.
O deputado estadual Dionilso Marcon (PT/RS) acusou o governo do Estado de permitir a volta da espionagem política no Rio Grande do Sul. O parlamentar levou à tribuna da Assembléia Legislativa gravação na qual o secretário da Justiça e da Segurança, José Otávio Germano, declara que está criando um grupo especial na polícia para monitorar os movimentos sociais. A secretaria respondeu alegando que as afirmações de Germano foram mal interpretadas. Mas o comandante geral da Brigada Militar, Coronel Nelson Parafiadache da Rocha, defendeu a orientação do serviço de informações da instituição: “nós trabalhamos com possibilidade e probabilidade e, assim, precisamos de um acompanhamento permanente do que acontece em todas as cidades deste estado”.
■ Santa Catarina Outro cacique assassinado O cacique da aldeia Terra Indígena Xapecó e vice-prefeito de Ipuaçu (SC), Orides Belino da Silva, foi assassinado dia 6.Vítima de uma emboscada, o indígena líder dos Kaingang foi baleado pelas costas, quando chegava em sua residência. O cacique passou a fazer parte da lista de líderes indígenas assassinados no Brasil durante o governo Lula. Desde o início do ano, doze índios já foram mortos. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Conselho de Caciques do Estado de Santa Catarina cobraram do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, a imediata apuração rigorosa do crime.
■ Rio de Janeiro Cataguazes terá que recompor ambiente
Benedito dos Santos, 68 anos O aposentado Benedito dos
■ Rio Grande do Sul Espionagem política
A Cataguazes Indústria de Papel foi condenada, pela Justiça do Rio de Janeiro, a responder pela completa recomposição dos recursos ambientais danificados pelo vazamento de 1,2 bilhão de litros de rejeitos químicos do seu reservatório, em Minas Gerais. No final de março, a empresa poluiu os Rios Pomba e Paraíba do Sul, afetando a população de municípios fluminenses. A partir do momento em que receber a notificação judicial, a Cataguazes terá as atividades suspensas até reconstruir a barragem no Córrego Cágado, afluente do Rio Pomba, e realizar outros reparos que evitem novos vazamentos. A empresa também será obrigada a pagar multa diária de R$ 30 mil, ao expirar o prazo de 72 horas para execução dos reparos. A decisão da Justiça carioca é mais dura que o termo de ajuste de conduta assinado pela Cataguazes e o Ministério Público Federal, que garante à empresa prazo de dois anos para desativar a barragem.
■ Bahia Tratorista punido por não destruir casas O motorista de trator Hamilton dos Santos pode receber punição por não demolir duas casas pobres na periferia de Salvador. No dia 2 de maio, Hamilton ficou emocionado ao cumprir uma ordem de reintegração de posse. Aos gritos da multidão, chorou e não demoliu as residências. Resultado: foi preso pela polícia militar, sob acusação de “não cumprir ordem judicial”. Agora, pode perder o emprego. O presidente da AOB, Rubens Approbato Machado, indicou um escritório de advogados para fazer a defesa do motorista. Machado defende que Hamilton não pode ser acusado de não cumprir ordem judicial porque o motorista não faz parte do processo nem recebeu uma ordem direta para o seu cumprimento. Além disso, há evidências de que Hamilton estava sem condições emocionais para acionar o trator.
BRASIL DE FATO De 15 a 21 de maio de 2003
o cotidiano de milhões de brasileiros, a sobrevivência é o maior desafio. Enquanto o governo federal discute a reforma da previdência e o suposto rombo nas contas, grande parcela dos beneficiários do sistema experimentam a perversidade resultante do processo de arrecadação e distribuição dos recursos. Uma dessas perversidades é a garantia de uma série de benefícios ao capital financeiro. Apenas um deles, a concessão de renúncias fiscais às rendas do capital, produzem um rombo de R$ 10 bilhões nos cofres públicos. Outro exemplo: somente os três maiores bancos privados do país poderiam pagar adicionalmente à União cerca de R$ 860 milhões de PIS e Cofins, se deles fossem cobrados os tributos na mesma base de cálculo praticada para as demais empresas. Enquanto isso...
César Viegas/BF
Cláudia Jardim, da Redação
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NACIONAL
A euforia nos mercados financeiros não tem base na realidade concreta, pois, no lado real da economia, o desemprego avança, os salários caem e a produção industrial volta a recuar; no centro de São Paulo, todo dia, uma legião de pessoas sai às ruas em busca de trabalho
DESEMPREGO
Renato Stockler
A economia no país do faz-de-conta Lauro Jardim, de São Paulo (SP) mercado financeiro já deu seguidas mostras, no passado recente, de invulgar oportunismo e de uma capacidade inigualável de multiplicar seus lucros, no curtíssimo prazo, às custas do agravamento das mazelas econômicas do país. O mesmo cenário parece desenhado, neste momento, enquanto os mercados de juros, títulos e câmbio entraram em um ciclo de euforia que desconsidera, e literalmente atropela, os dados concretos divulgados nos últimos dias sobre o desempenho do lado real da economia. Com a colaboração de especuladores e investidores nacionais e internacionais, participantes do verdadeiro “cassino dos juros altos” em que se transformou o Brasil desde os anos de 1990, criou-se um “país do faz-de-conta”, que distorce a realidade dos fatos e vende a falsa imagem de que tudo vai bem na economia brasileira – para que tudo permaneça como está. Os dados reais mostram que a economia continua estagnada, ou mesmo derrapando ladeira abaixo, com desemprego em alta, renda e salários em baixa e a atividade industrial novamente em queda, a despeito do bom desempenho da agroindústria e do avanço das exportações. MERCADO DETERIORADO A pesquisa de emprego e desemprego do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente a março, aponta uma taxa de desemprego de 12,1%, diante de 11,6% em fevereiro. O índice havia atingido níveis mais elevados no início de 2002, batendo em 12,9% em março do ano passado. A eco-
■ Desempregados buscam emprego temporário em projeto da Prefeitura de São Paulo nomia, à época, estava saindo de um longo período de racionamento de energia, e as estatísticas de desemprego ainda refletiam aquela situação e retomariam, em seguida, taxas inferiores a 12%, chegando a 10,5% em dezembro. Desde então, as taxas não param de crescer. Os números do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócioeconômicos (Dieese) mostram tendência semelhante para a região metropolitana de São Paulo e outras capitais. Em março, o desemprego paulistano atingiu 19,7%, em relação a 19,1% em fevereiro e 19,9% em março de 2002. Em março de 2003, um em cada cinco trabalhadores da região metropolitana de São Paulo engrossava a legião de desempregados. Assim como o IBGE, o Dieese classifica a flutuação do índice como natural em março, visto que o carnaval, neste ano, aconteceu naquele mês. Mais uma vez, no entanto, a questão é que o desem-
prego tem sido crescente desde dezembro, o que parece sugerir um agravamento das condições no mercado de trabalho. VAGAS FECHADAS Os levantamentos do Dieese para as demais capitais, com dados até fevereiro, indicam tendências semelhantes. Em Salvador, o desemprego alcançou 27,2%; subiu para 20,5% em Recife, para 19,2% em Belo Horizonte e para 14,8% em Porto Alegre. Só na região metropolitana de São Paulo foram fechadas 97 mil vagas em março, com a indústria dispensando 46 mil empregados no mês. Para complicar as perspectivas futuras da economia, ao menos no curto prazo, prossegue o arrocho sobre salários e rendimentos em geral. Para março, o IBGE estima uma queda de 2% no total de rendimentos recebidos pelas pessoas ocupadas no mês, incluindo assalariados, trabalhadores por conta própria e empregadores. O Diee-
de 10%. A redução reflete as perdas causadas pelo desemprego e o achatamento da renda e dos salários provocado pela aceleração dos preços em geral, o que causa a transferência da renda dos assalariados para empresas e bancos, em função da alta dos preços e das taxas de juros. A combinação de desemprego elevado e renda em queda não autoriza previsões animadoras para os próximos meses. Sem renda, e diante da ameaça de perder o emprego, a tendência é de o consumidor adiar compras e cortar gastos, ajudando a desaquecer ainda mais a economia. ATIVIDADE CAI De certa forma, é o que já parece estar ocorrendo, como mostram os primeiros números sobre a atividade econômica em abril. No mês passado, as vendas de veículos contrariaram as expectativas das montadoras e desabaram praticamente 22% na comparação com abril de 2002, atingindo 108,4 mil unidades – o pior resultado, para um mês de abril, desde 1994. Nos primeiros quatro meses deste ano, as vendas da indústria automobilística registram queda ao redor de 7%, frente a idêntico período do ano passado. Há perdas também nos setores de eletrodomésticos e eletroeletrônicos. Os números mais recentes da indústria indicam, portanto, uma persistente tendência de emagrecimento da atividade industrial, praticamente repetindo o cenário observado em março, quando a produção derrapou novamente, encolhendo 3,4% em relação a fevereiro e indicando uma magra recuperação de 0,66% em relação a março do ano passado.
se divulga os dados sobre rendimentos e salários com um atraso de um mês em relação à pesquisa de emprego e desemprego. Por isso, seus levantamentos mostram a situação existente ainda em fevereiro, mas funcionam como indicadores de tendência (ou seja, ajudam a entender o que está acontecendo com a economia, neste momento, e a projetar seu possível comportamento futuro). ARROCHO Os rendimentos médios caíram 8,5% em fevereiro deste ano, comparados ao mesmo mês de 2002, para o total das pessoas ocupadas, com tombo de 7,7% para os assalariados.As massas de rendimentos e de salários (ou seja, os rendimentos totais recebidos pelos ocupados e o total de salários pagos aos assalariados) encolheram, respectivamente, 7,8% e 7,0% frente a fevereiro de 2002. Desde outubro do ano passado, o total de salários pagos murchou a uma taxa bastante próxima
Fotos: Renato Stockler
Ciranda da desesperança
BRASIL DE FATO De 15 a 21 de maio de 2003
Jorge Pereira Filho, da Redação
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al o dia amanhece, uma legião de desempregados toma as ruas do centro de São Paulo. Diariamente, ainda em meio ao nevoeiro, muitos trabalhadores sem emprego formal montam suas barracas e, aos berros e súplicas, iniciam uma feira de bugigangas. Outros, sem dinheiro para fazer o investimento inicial, distribuem panfletos ou carregam placas com anúncios de lojas. E há ainda os desempregados esperançosos, que se amontoam durante a madrugada nas filas dos centros de recolocação profissional ligados a sindicatos. Boa parte dos mais velhos dessa legião sem trabalho é de exmetalúrgicos. Como Anísio Batista, 46 anos de idade e 15 de trabalho na indústria. Há cinco anos, não consegue emprego como operário.“Sempre trabalhei em grandes empresas. Como metalúrgico, eu fui tor neiro mecânico da Mercedes-Benz e da Bombril. Mas houve uma queda muito grande no emprego”, conta o paulistano. SEM TETO Hoje, ao lado da estação São Bento do metrô, no centro de São Paulo, ele distribui folhetos de uma ótica. “Consigo ganhar R$ 15,00 por dia. Se eu levar um cliente até a loja e ele comprar alguma coisa, ganho mais R$ 5,00 de comissão”, explica Batista, que tem segundo grau completo. Com esse dinhei-
■ Marcelo Fernandez (à esq.), Antônio Gila (acima) e Anísio Batista (à dir.) vivem o desespero do desemprego em São Paulo
ro, não pode pagar aluguel. Desde o final do ano passado, vive em uma ocupação de prédio público, organizada pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC). Numa quinta-feira, não foi distribuir folhetos e, com mais quatro mil sem-teto, participou de uma manifestação para reivindicar moradia ao governador Geraldo Alckmin. Nesse dia, lembrou das greves no ABC, região industrial de São Paulo.“Eu sou um ex-metalúrgico grevista. Estive na greve de 1982 e participei de muito comício do Lula falando para a companheirada. Tomei muita bomba de gás lacrimogêneo”, recorda Batista. E o que espera do presidente? “Olha, ele conhece bem a miséria. Não estou acompanhando a política, mas ele tem de ter pulso e não pode se deixar manipular. Espero que ele consiga dar emprego para o povo.”
A qualidade de vida da população brasileira caiu consideravelmente. Tanto que o ex-operário Antônio do Carmo Gila e sua mulher pararam de pagar aluguel e voltaram a morar de favor, no fundo da casa da tia.Três vezes por semana, Gila acorda às quatro da manhã e caminha durante uma hora até o centro de São Paulo. Lá, ocupa um lugar na fila dos desempregados, que se forma no Centro de Trabalho e Renda da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Gila tem 56 anos, é pernambucano e foi operário numa indústria de plásticos em Santo André durante os anos 1980. Há seis meses, não consegue emprego. DESESPERO FEROZ A concorrência, ou melhor, o desespero dos trabalhadores é feroz. Certo dia, Gila chegou às cinco horas da manhã na fila e ocupou o
71º lugar. Quatro horas depois, foi chamado pelo atendente da CUT, que lhe avisou sobre uma vaga em Ribeirão Pires, cidade da região metropolitana de São Paulo. Gila passou na casa da tia, pegou dinheiro com a mulher, que é empregada doméstica, e foi de trem até o outro município. Chegando na empresa, encontrou só mais um concorrente. “Tinha certeza de que iria ganhar a vaga. Poxa! Eu tinha experiência e segundo grau completo”. A vaga era de caseiro. Gila perdeu a disputa. Seu concorrente se ofereceu para trabalhar em troca de uma cesta básica por mês. “Como o trabalho era de caseiro, ele também ia ganhar a moradia. Eu pedi um salário de R$ 200 e não consegui”, lembra. TEM ESTUDO, E DAÍ? O desemprego anda tão generalizado que grau de instru-
ção deixa de fazer diferença. O privilégio de ter cursado uma faculdade de administração não impediu que Marcelo Fernandez viva uma sina diária de desempregado. Quase todos os dias, o paulistano acorda cedo, lê o jornal que a mulher compra e vai para uma biblioteca perto de sua casa. “O acesso à Internet é gratuito e eu fico navegando em páginas de emprego, procurando vagas”, conta. No ano passado, 6,5% dos trabalhadores de nível universitário estavam desempregados na Grande São Paulo, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). “Fiz a faculdade porque o mercado está muito exigente. Além disso, na época, podia pagar. Mas nem isso hoje garante emprego”, afirma Fernandez. Quem sustenta a casa, hoje, é sua mulher, com o salário de R$ 1 mil que recebe como auxiliar de escritório. Há 15 anos, Fernandez era metalúrgico. “Era uma época diferente, a condição do brasileiro mudou bastante. Hoje, com a globalização e a abertura dos mercados, a situação é outra”, explica o ex-operário, que sempre trabalhou em empresas familiares, fornecedoras das grandes montadoras. “As fábricas pequenas foram sendo fechadas ou vendidas depois que as multinacionais do setor de autopeças entraram no Brasil”, analisa.
REFORMA TRIBUTÁRIA
NACIONAL
A proposta enviada pelo governo ao Congresso mantém uma lógica que pune o trabalhador; o Unafisco Sindical, que denomina o sistema como “inferno tributário dos assalariados”, mostra que a carga sobre a renda disponível é tanto maior quanto menor o seu valor
Proposta do governo pune o trabalho maioria dos brasileiros – assalariados ou não – desconhece o tamanho da mordida do leão, isto é, o tamanho da carga de impostos que é obrigado a pagar. No caso do trabalhador assalariado com carteira assinada, todo mês o desconto do Imposto de Renda (IR) na fonte come quase um terço de seu salário. Se o trabalhador que está na economia informal não paga IR, nem por isso o fisco é menos impiedoso: todo mundo paga impostos sobre os bens e produtos que consome. A proposta de reforma tributária enviada pelo governo federal ao Congresso desconsidera
QUEM PAGA MENOS Nem pelo fato de a concentração da renda, no país, ser a quarta maior do mundo, a cobrança
A carga tributária no Brasil Carga tributária bruta, 1994 a 2002 em %
2002(*)
35,95
2001
34,36
2000
33,18
1999
32,15
1998
29,74
1997
29,03
1996
28,97
1995
29,76
1994
29,46
de tributos leva isso em conta, e a carga tributária continua crescente. Arrochando a renda do trabalho e isentando bancos e grandes proprietários. Assim, segundo dados de 1996, o imposto sobre propriedades imóveis no Brasil não passava de 1,64% da receita tributária total, no equivalente a apenas 0,49% do Produto Interno Bruto (PIB – a soma das riquezas produzidas no país); nos Estados Unidos, aquela taxação era de 9,82% da arrecadação total e 2,77% do PIB; no Reino Unido, 9,16% do total recolhido em impostos, e 3,28% do PIB. Seguindo essa mesma lógica, é acintosa a disparidade entre a tributação do capital e a do trabalho. Em 2001 (veja o gráfico), a tributação sobre a renda do trabalho representava 51% da arre-
cadação total.A mesma lógica, aliás, faz com que um conjunto de privilégios e isenções sejam asseguradas aos bancos pelo sistema previdenciário nacional. RENDA X IMPOSTOS Mais um exemplo notório da regressividade do sistema é o fato de a carga indireta sobre a renda disponível ser tanto maior quanto menor a renda. De acordo com estimativas do Unafisco, em 2001, as despesas com itens como alimentação, saúde, habitação, vestuário e transporte representavam uma carga indireta de impostos de 33,7% para quem ganhava até dois salários mínimos; de 17,8% para quem auferia de cinco a seis mínimos; de 13,3% para quem recebia de 10 a 15 mínimos; e de 9,34% para quem ganhava mais
Em 2001, a carga tributária sobre os bancos foi 22% menor do que a cobrada no ano anterior
Os impostos por bases de incidência 4% Patrimônio Consumo
29%
Fonte: SRF (*) Estimativa da assessoria Econômica do Unafisco Sindical
Renda
67%
Encargos da dívida devoram a receita fiscal Juros, amortizações e receita fiscal 18
Fonte: SRF. AFE/BNDES, IPEA-DATA Elaboração: Assessoria Econômica do Unafisco Sindical
16 14 % do PIB
12 10
O trabalho paga a conta
8 6
Tributação sobre a renda do capital e do trabalho
4
1996
Juros / Amortizações Receita Fiscal
2
2001
0 1996
1997
1998
1999
2000
2001
Fonte: STN - MF, Bacen, SRF Elaboração: Assessoria Econômica do Unafisco Sindical
49%
41%
51%
59%
Gastos sociais X Juros nominais % da arrecadação tributária
Capital
em %
45 41%
40 35
39%
40%
40%
42%
40%
40% 39%
39%
27%
25%
Veja, na seção Debate, pág. 14, as avaliações do deputado federal Virgílio Guimarães (PT-MG) e do professor de Direito Osiris Lopes Filho, da Universidade de Brasília e da Fundação Getúlio Vargas.
Capital: IRPJ + CSLL. Trabalho: IRPF + IR Trabalho na fonte IRPJ: Imposto de Renda Pessoa Jurídica CSLL: Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
37%
20
18%
15 10
26% 24%
20%
13%
12%
13%
12%
12%
11%
12%
11%
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
5 1995
Juros Nominais
Gastos Sociais
CONFISCO SALARIAL O Unafisco chama de “inferno tributário dos assalariados” o seguido congelamento da tabela do IR. Isto é, quando as alíquotas não são atualizadas pela inflação, os impostos efetivamente recolhidos aumentam. Um confisco que significou, em 1977, arrecadação de IR do trabalho na fonte de R$ 1,3 bilhão; em 1999, R$ 2,5 bilhões; em 2001, R$ 5,3 bilhões. Entre 1996 e 2002, enquanto o IR sobre o trabalho recolhido na fonte aumentou 40%, a massa salarial diminuiu 10%. Segundo o Unafisco, “o congelamento salarial foi a verdadeira âncora do Plano Real, desorganizando a economia, pois implica em uma redução da demanda e joga o país na recessão, ou no crescimento do tipo ‘stop and go’. Associada esta situação com a elevação da carga tributária sobre o consumo, verificamos como a política tributária nos últimos anos foi nefasta para o país”. Não bastasse isso, mais uma vez, o confisco é maior para quem ganha menos. De acordo com cálculo do Unafisco para o IR devido em 2003, aplicada a tabela corrigida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo, do IBGE), a mordida sobre a renda anual de quem ganhava R$ 3 mil mensais em 2002 seria o equivalente a 73,9% do salário; para quem recebia R$ 7 mil, 23%; para quem ganhava R$ 20 mil, 5,2%. No passado, chegou a haver 15 alíquotas de IR no país, número hoje reduzido a duas (15% e 27,5%). O inverso da maioria dos países, onde prevalecem mais de duas faixas do imposto. Numa lista de 26 países selecionados, a alíquota máxima existente no Brasil é a segunda menor. Enquanto isso, em 2001, a carga tributária sobre os bancos foi 22% menor do que no ano anterior.
Trabalho
30 25
de 30 salários mínimos. Mais: nem pelo fato de o consumo das famílias cair 4% entre 1996 e 2002, a carga tributária sobre o consumo deixou de crescer – o aumento foi de 27% no período. Isso, como avalia o Unafisco, simplesmente desorganiza a economia. O consumo cai quando a renda encolhe, os impostos ajudam a diminuir ainda mais a renda disponível, o que se reflete na produção de bens, que também acaba por se retrair. A atividade econômica entra em declínio.
Entre 1996 e 2002, o IR sobre o trabalho recolhido na fonte aumentou 40% e a massa salarial diminuiu 10%
Gastos Sociais sem Previdência
Os prejuízos do sistema na economia Enquanto o imposto sobre propriedades imóveis no Brasil não passava, em 1966, de 1,64% da receita tributária total, no equivalente a apenas 0,49% do PIB, nos EUA, aquelas cifras eram de, respectivamene, 9,82% e 2,77%, e no Reino Unido, 9,16% e 3,28%
Variação em % PIB - 1996 a 2002 Salários no PIB
-10% 18%
CT Renda Trabalho -4%
Consumo das Famílias
27%
CT Consumo 23%
CTB -10% CT: carga tributária CTB: carga tributária bruta
-5%
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
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elementos fundamentais do atual sistema tr ibutár io, como a regressividade, por exemplo, e passa ao largo de distorções históricas na legislação de impostos vigente no país. Acreditando que “um outro Brasil é possível com uma reforma tributária cidadã”, o Unafisco Sindical (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) elaborou uma preciosa série de gráficos e tabelas (disponíveis na página da entidade, na Internet, com o endereço www.unafisco.org.br) que apontam o perverso quadro da tributação no país, e uma saída para o descalabro vigente.
Anamárcia Vainsencher, da Redação
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NACIONAL
Padre Júlio Lancelotti (Pastoral do Menor): a instituição (Febem) destrói os valores íntimos da mulher; Conceição Paganele, da Associação de Mães e Amigos da Criança em Situação de Risco (Amar): ”A Febem está aí sem resultado, ela fortalece o grau de violência nesses jovens.”
FEBEM
Alex Silva/AE
Meninas também sofrem violências Tatiana Merlino, da Redação uando eu saí da Febem, não parei de roubar porque achava que aquilo era errado, parei porque tinha medo de voltar para lá”, diz Verônica, 17 anos, duas passagens pela Fundação para o Bem-Estar do Menor (Febem). Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabeleça que os adolescentes privados de liberdade devam ser tratados com respeito e dignidade, a violência física, métodos de intimidação, ausência de medidas socioeducativas e maus tratos fazem parte do dia-a-dia das unidades do Estado de São Paulo. “A instituição é a mesma, tem como intuito a contenção e não a educação”,explica Conceição Paganele,da Associação de Mães e Amigos da Criança em Situação de Risco (Amar).”A Febem está aí sem resultado, ela fortalece o grau de violência nesses jovens”, afirma. Aos 13 anos,Verônica saiu de casa. Seu relacionamento com os pais era muito difícil. Foi morar na rua e começou a roubar. Foi parar na Febem, na unidade do Brás, onde funciona a Unidade de Internação Provisória (UIP).Após conseguir liberdade assistida, a menina foi transferida para um abrigo, de onde fugiu.Voltou para a casa da mãe, onde pretendia ficar por pouco tempo, “até se arranjar”. Porém, no dia do seu aniversário, voltou para a rua depois que seu padastro tentou matá-la. “Daí eu fui viver como quem vive na rua, roubando e traficando”, diz. Um mês depois a garota estava na Febem. Segundo Verônica, a rigidez no tratamento vai além dos métodos
■ Momento de descontração: as meninas brincam no baile de carnaval na Febem/Mooca, fev.2003 convencionais de coação, já que até para falar as meninas têm hora. Não é permitido conversar na hora de dormir, nem na hora das refeições. “Um monitor bateu em mim porque eu estava conversando num horário permitido. Ele implicou comigo, reclamou, mas como estava todo mundo falando, eu continuei. Ele veio, me tirou da sala e me bateu. Ele era um dos que gostava de bater nas meninas”, denuncia. VALORES DESTRUÍDOS De acordo com o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Menor, a instituição destrói os valores íntimos da mulher, não leva em consideração a diferença de gênero, necessidades e sonhos femininos. Para ele, a estrutura física teria de ser diferente, os grupos deveriam ser pequenos, os trabalhos personalizados. Lancelotti afirma que o tratamento dado às meninas é o sintoma de uma doença da sociedade que aceita isso.
Também não existe investimento na formação do monitor, que é muito precária. “Nas provas dos agentes de proteção são aprovadas as pessoas que correm muito, são provas de velocidade”, explica a psicóloga Letícia Souto Maior. Na chegada, as meninas passam o primeiro dia trancadas, sozinhas. “É para se acostumar, é a regra da casa”, diz Letícia. Há medidas punitivas, como a sala de castigo, em que a menina fica por dois dias, sozinha, trancada, só podendo ler a Bíblia.“É uma cadeia, não há investimento pedagógico”, afirma Letícia. De acordo com a psicóloga, existem diversos cursos, mas eles são dados de forma ineficaz. TRATAMENTO PRECÁRIO De acordo com o ECA, as entidades que desenvolvem programas de internação têm as seguintes obrigações, entre outras: oferecer cuidados médicos, psicológicos,
Aracruz é acusada de envenenamento
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Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ouviu, dia 7, denúncias referentes aos 30 anos de atuação da Aracruz Celulose. A empresa, que não enviou representante para a audiência, foi acusada de promover envenenamento de seus funcionários e destruição do meio ambiente no Norte do Espírito Santo, em decorrência do uso de herbicidas. Para Marcelo Calazans,representante da Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional, “existe uma situação de calamidade na região, especialmente nos municípios litorâneos do Norte, em função do modo de produção arcaico e depredatório adotado pela empresa”. Ele criticou ainda o fato de que o governo, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Social, emprestou R$ 840 milhões para a construção de uma terceira fábrica de celulose no Estado, que vai gerar apenas 173 empregos diretos. CONTAMINAÇÃO De acordo com o representante do Movimento dos Pequenos Agricultores,Derly Cazali,milhares de trabalhadores estão contaminados e três crianças morreram porque tiveram
REINCIDÊNCIA ALTA O sistema não é capaz de reeducar os adolescentes, tanto que a própria direção da Febem reconhece que a taxa de reincidência é muito alta. Dos jovens que saem, cerca de 30% voltam à vida do crime e acabam retornando às unidades.”Todas as meninas que eu atendi voltaram a infracionar, é claro, não há um investimento junto com as famílias”, salienta Letícia. Em setembro de 2002, Verônica saiu da semiliberdade sem ser entregue a um responsável. “No dia da audiência, a minha mãe foi e disse que a gente não dava certo morando junto”.“O juiz falou para eu me virar, e disse que a Febem não era minha casa, nem abrigo”. Hoje, após ter passado por um programa de acompanhamento de liberdade assistida com a Pastoral do Menor, Verônica mora com uma amiga, trabalha em uma loja de revistas e jornais e tem projetos para o futuro: “Quero estudar direito e trabalhar na Febem”. * O nome da entrevistada foi modificado
A Febem em São Paulo 4.450 jovens (de 12 e 21 anos) ■ 133 são meninas (3% do total) ■ 68 unidades (65 masculinas, 3 femininas) ■ 13 mil jovens estão em regime semi-aberto ■
LIVROS PARA O DIA-A-DIA
MEIO AMBIENTE
Da Redação
odontológicos e farmacêuticos. Na unidade de Taipas, para onde Verônica foi transferida no período da sua segunda internação, não havia tratamento para as garotas dependentes químicas.“Elas tinham ataque nervoso, falavam besteira. E se ficavam agressivas, ficavam sem fumar, trancadas no quarto, apanhavam. Mas tratamento, não tinha não”. Na unidade do Brás, a garota conta que não tem ginecologista, só um clínico geral, e na unidade de Taipas, a situação é ainda pior: “Não tinha enfermaria ou médico, tinha que estar muito mal para ir a um hospital, senão os monitores
mesmo nos medicavam”.A ida de uma menina ao médico ainda tem um fator complicador: a obrigatoriedade de haver uma escolta policial que as acompanhe faz com que a demora em serem atendidas aumente ainda mais.
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(Miguel Ángel Astúrias) – 304 páginas – R$ 13,00 Muitos sabem o que é viver sob um regime militar. Mas, o que é viver em um país invadido pelos Estados Unidos? O tema desta obra, um dos maiores romances políticos do século XX, é a tragédia da Guatemala invadida pelos EUA, deixando um saldo de milhares de guatemaltecos assassinados.
contato direto com embalagens de veneno deixadas pela empresa sob árvores. Cazali garantiu que os plantadores de eucalipto são obrigados pela Aracruz a usar agrotóxicos. E demonstrou também que a empresa está extinguindo outras culturas, como a do café, cuja produção foi reduzida à metade após a chegada da Aracruz. Enquanto o café gera mais de 200 mil empregos diretos, a Aracruz gera 4.800. MORTES O representante dos ex-trabalhadores mutilados da Aracruz, Jair Alves de Lima, que trabalhou na empresa durante 17 anos, afirmou que nunca tinha visto tantos trabalhadores morrerem em uma empresa como durante o período em que trabalhou na Aracruz: “O que ocorria lá era um massacre. Morriam trabalhadores embaixo de tratores, amassados por árvores tombadas e, principalmente, contaminados por agrotóxicos e benzina”. O ex-trabalhador informou que a empresa tem capatazes armados e que os empregados, ainda que não concordem, são obrigados a assinar avisos prévios para a demissão. Agência Câmara
Week-end na Guatemala
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Dissidentes ou mercenários? (Hernando C. Ospina e Katlijn Declerq) – 272 páginas – R$ 8,00 V. quer saber como os EUA – em particular a CIA – agem contra governos progressistas? Este livro prova, com exemplos concretos e indiscutíveis, como a causa da democracia é manipulada pelos poderes imperialistas. Que é democracia para o império?
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Soberania sim, Alca não! (vários autores) – 192 páginas – R$ 5,00 Uma coletânea de 14 artigos que explicam o plano estratégico dos Estados Unidos para a “dominação política, econômica, militar e social” da América Latina. Um acordo que está sendo admitido inclusive pelo Governo Lula e que terá influência na vida dos milhões de habitantes do continente, potenciais formadores de um mercado exclusivo de produtos e da cultura estadunidense.
■ Rosa Luxemburgo – Vida e obra
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PEDIDOS
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INTERNACIONAL
BRASILDEFATO Ano I ■ Número 11 ■ Segundo Caderno
Bush quer uma “Alca” também no Oriente Médio Paulo Pereira Lima, da Redação epois de querer impor a todo custo a instalação da Área de Livre Comércio nas Américas (Alca), o presidente George Bush filho está de olho no merca-
do do Oriente Médio. Dia 9, ele anunciou que seu governo vai trabalhar para a criação de uma zona sem barreiras comerciais para “favorecer o desenvolvimento econômico e a estabilização” da região. “Proponho o estabelecimento de uma zona de livre de comércio
entre os Estados Unidos e os países do Oriente Médio na próxima década para colocar essa região num ciclo de novas oportunidades”, afirmou Bush em discurso feito na Universidade da Carolina do Sul. Nesse mesmo dia, representantes dos EUA, Grã-Bretanha e
Márcio Baraldi
Enquanto diplomatas disputam na ONU os espólios do Iraque, Bush anuncia uma nova ofensiva estratégica: criar uma zona de livre comércio no Oriente Médio, à semelhança da proposta da Alca para a América Latina; Miguel Urbano Rodrigues prevê a expulsão dos EUA de Bagdá, como os franceses foram derrotados pelos argelinos, após décadas de cruel ocupação
Espanha apresentaram no Conselho de Segurança da ONU uma proposta de resolução pela qual a entidade internacional legitimaria a ocupação do Iraque. Além disso, endossaria o controle do petróleo, dos recursos financeiros e do desenvolvimento político do país pelas forças anglo-estadunidenses por um prazo de, pelo menos, um ano. De acordo com o projeto de resolução, a ONU seria relegada a apenas conselheira das forças invasoras. A proposta, porém, não faz nenhuma menção aos inspetores de armas da ONU. Os EUA querem que a votação aconteça até 3 de junho, quando o programa de petróleo das Nações Unidas precisa ser renovado. Sem a adoção da resolução, nenhuma entidade em Bagdá – seja iraquiana, estadunidense ou mesmo da ONU – teria autorização para comercializar o petróleo iraquiano. O governo Bush conta com o apoio de Rússia, França, China e Alemanha, países que se opuseram à operação militar, mas desta vez, segundo diplomatas, estariam pouco interessados em novo confronto político.
Ministro Furlan vê bons negócios no Iraque ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, voltou a defender a participação do Brasil na reconstrução do Iraque. Desta vez, foi dia 7, em Genebra, durante as reuniões da Organização Mundial do Comércio (OMC). “Quais seriam os motivos para não
ter representação brasileira no Iraque?”, questionou Furlan, embora o presidente Lula tenha condenado, em diversas ocasiões, a invasão estadunidense. O ministro também já havia defendido essa proposta em evento com industriais brasileiros e em encontro com o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Snow, que veio ao País
em busca de apoio. E parece ter conseguido. Para o ministro, a participação deveria ocorrer mesmo que a reconstrução não seja liderada pelas Nações Unidas. Furlan afirmou à agência Estado que vai apresentar sua proposta ao ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e ao presidente Lula. “Estou até pensando em
liderar uma missão comercial para a região. Não somos pagos para ficarmos parados.” Segundo ele, a viagem poderia ocorrer depois de sua ida ao próximo encontro da OMC, no Egito, em junho. PRAGMATISMO Segundo o ministro, “tem de haver pragmatismo. A invasão do
Iraque é um fato e a reconstrução uma promessa. O Brasil, portanto, quer participar, pois tem know-how e capacitação para isso”. Apesar de não revelar se alguma empresa nacional já mostrou interesse pelo Iraque, Furlan disse que “as empresas se mexem mais rápido do que o governo”. (PPL)
ANÁLISE
Miguel Urbano Rodrigues, de Havana (Cuba) ais de 7 anos durou a guerra de independência da Argélia contra os colonizadores franceses. Politicamente, a França começou a perdê-la quando começou a insurreição, em novembro de 1954. Mas em Paris não se pressentiu o desenvolvimento da história. A Argélia fora conquistada bem mais de um século antes. Apenas três semanas durou a guerra no Iraque. Os Estados Unidos começaram a perdê-la, politicamente, no dia em que os seus primeiros mísseis explodiram em Bagdá. Em Washington, os estrategistas do não tomaram consciência da realidade. Os atuais políticos e generais estadunidenses são menos instruídos e inteligentes do que os seus colegas franceses do final dos anos de 1950. George Bush filho, comparado ao presidente Charles De Gaulle, tem a capacidade mental de um orangotango. O poder militar dos Estados Unidos não anula essa evidência. Talvez fosse útil à equipe da Casa Branca ler um livro hoje es-
quecido: A Guerra da Argélia, trilogia de 1.800 páginas, organizada pelo escritor Henri Alleg. HERANÇA DO ISLÃ O Iraque, como a Argélia, é uma sociedade multinacional, cujos povos e etnias conservaram a sua especificidade cultural, ao longo de dezenas de séculos. Da presença romana, somente sobreviveram em ambos vestígios materiais. Na memória das respectivas populações ela não deixou marcas. O denominador comum, no Iraque e na Argélia, é a herança do Islã. Apesar de dialetos muito variados, o árabe é, no convívio com outros idiomas, a língua oficial de iraquianos e argelinos. No Iraque, a língua (e o acervo cultural dela inseparável) sobreviveu à dominação de impérios tão poderosos como o mongol, o persa e o otomano. Na Argélia, a presença turca passou como ondas sobre a areia da praia. E o sonho assimilador da França teve um desfecho de pesadelo. Henri Alleg confronta o leitor com a história profunda, ilumina com luz forte a epopéia do povo argelino, que tornou possível aquilo que parecia impossível:
a conquista da independência. Um milhão de argelinos morreram na luta contra um exército de ocupação que chegou a contar com meio milhão de homens. A devastação foi colossal. Mas as bombas foram impotentes contra as superestruturas culturais. IMPÉRIO EM CRISE No Iraque, após as destruições provocadas pelas armas, a luta pela libertação nacional apenas começou. O brutal primarismo dos ocupantes funciona como estímulo. O crime de cultoricídio consumado, com o saque do Museu de Arqueologia e os disparos quase diários das tropas de ocupação contra multidões desarmadas atuam sobre a consciência do povo como exemplos do que ele pode esperar da pax americana. O gigantesco protesto dos peregrinos de Kerbala e as ininterruptas manifestações contra a presença militar antecipam a subida da maré da resistência popular. Há meses, a propaganda estadunidense sustentava que os seus soldados seriam recebidos pela maioria xiita como libertadores. A ilusão logo foi desmentida pelos fatos.
Os discursos do general Garner, o procônsul investido de poderes discricionários, assumem contornos de farsa quando entoa o cântico da democracia de modelo estadunidense imposta pelos fuzis. Contra o que Washington esperava, os iraquianos que vieram na bagagem das suas forças armadas inspiram desprezo ao povo. Ahmad Chalabi fala como os colaboracionistas que na Europa ocupada pelos nazis lhes mendigavam os favores; faz lembrar os caids e bachagas, que na Argélia em luta atuavam como aliados dos franceses. As duas primeiras reuniões com “notáveis”, convocadas para debater a formação de um governo (sob tutela dos Estados Unidos), fracassaram. Ninguém se entendeu, apesar de quase todos serem gente submissa. O representante pessoal de Bush, Zalmay Khalilzad, não conseguiu esconder o seu pessimismo. Utilizou a expressão “autoridade interina” para qualificar o que dias antes chamava “governo”. AFEGANISTÃO No Iraque, os acontecimentos do Afeganistão são acompanhados com muita atenção.Transcorridos 18 meses, as tropas estadunidenses
somente controlam as principais cidades e eixos rodoviários. Os comboios de abastecimento são atacados todas as semanas. No Iraque, não é improvável que à fase dos protestos maciços se siga à da luta armada organizada. Massacres com os de Faluja, nos dias 28 e 30 de abril, com 18 mortos e mais de 70 feridos, contribuem para amadurecer as espigas da seara de ódio. A soldadesca estadunidense comporta-se como horda de bárbaros. O temor dos homens-bomba descontrola a tropa; um simples protesto pode desencadear uma chacina. O povo oferece nas ruas provas de uma grande coragem, de um espírito combativo que os estrategistas do Pentágono não haviam previsto. Washington já admite que 125 mil homens permanecerão no país pelo espaço mínimo de um ano. No Iraque, tal como na Argélia, a força maior do povo que entrou na guerra e que dela sairá vencedor não é a vinda de armas. É a força que sobe da memória da história, das raízes de uma grande cultura, a força que leva os povos às grandes epopéias na luta pela liberdade.
BRASIL DE FATO De 15 a 21 de maio de 2003
Em Bagdá, a guerra apenas começou
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ITÁLIA
Justiça absolve assassino de Carlo Giuliani João Alexandre Peschanski, da Redação homicídio do militante antiglobalização Carlo Giuliani, de 23 anos, durante protesto contra o G8 em Gênova (Itália), dia 20 de julho de 2001, foi um ato de legítima defesa do policial que atirou na cabeça do manifestante. A conclusão é da juíza italiana Elena Daloiso, que, dia 5, absolveu Mario Placanica, suspeito de homicídio voluntário. O caso foi arquivado. “O policial não pode ser incriminado porque não teve a in-
tenção de assassinar. Sua atitude foi certamente determinada pela necessidade de defesa de seus direitos injustamente ofendidos”, declarou a juíza, segundo reportagem do jornal italiano Corriere della Sera. O tribunal considerou Placanica inocente, de acordo com o artigo 53 do Código Penal da Itália, que prevê o uso legítimo de armas em situações de risco. Segundo interpretação da Justiça italiana, o policial atirou para o alto; a bala atingiu uma pedra jogada por um manifestante e desviou em direção a Giuliani.Também foi absolvido o policial Filippo Cava-
taio, suspeito de ter atropelado diversas vezes o corpo baleado do militante antiglobalização. A juíza diz que isso apenas teria causado ferimentos leves. Placanica se declarou satisfeito com a sentença, pois nunca teve a intenção de atingir voluntariamente Giuliani.“Minha confiança foi recompensada”, afirmou. SENTENÇA DO MEDO “O arquivamento do caso é a sentença de uma Itália que tem medo”, declararam em comunicado oficial os presidentes do Comissão Verdade e Justiça para
Gênova, Giulietto Chiesa e Enrica Bartesaghi. Para eles, a decisão é uma atrocidade com graves erros, como o fato de o processo não ter levado em conta fotografias que mostravam Placanica apontando um revólver diretamente para Giuliani. Chiesa e Enrica exigem que seja realizado um novo julgamento, com base em uma comissão parlamentar de inquérito, que apure os verdadeiros acontecimentos em Gênova. “À família Giuliani, a todos os democratas, dizemos que não aceitamos o arquivamento e continuaremos a lutar pela conquista da verdade e da justiça”, afirmam.
Zennaro/ANSA/AE
Saldo da repressão: um morto, 560 feridos, 220 presos Os confrontos entre policiais e militantes antiglobalização em julho de 2001, em Gênova, terminaram com uma morte – a de Carlo Giuliani – 560 feridos e 220 presos. Na época, comandantes da polícia italiana exigiram do presidente do país, Silvio Berlusconi, inquéritos sobre a repressão violenta aos manifestantes.Até agora ninguém foi investigado e punido. Segundo dados da Anistia Internacional (AI), participaram dos protestos contra a reunião do G8 cerca de 200 mil pessoas e a maioria delas se manifestou pacificamente. Para a entidade, que fiscaliza ataques aos direitos humanos no mundo todo, a ação da polícia e da Justiça italiana, após os protestos, foi insuficiente e inadequada. Além disso, de acordo com a Anistia, também deveria ter sido criada uma comissão de inquérito constituída por pessoas de reconhecida independência e honestidade. ■ 20 de julho de 2001: Carlo Giuliani, 23 anos, jaz numa rua de Gênova
EUROPA
Ativistas preparam atos contra G8 Da Redação nquanto ainda são recentes as seqüelas provocadas pela ofensiva dos Estados Unidos e da Inglaterra contra o Iraque, os movimentos e orG8 – grupo composto ganizações sopelos sete países mais ciais da Europa ricos (Alemanha, Canadá, EUA, França, preparam granInglaterra, Itália e des manifestaJapão), mais a Rússia. ções para proTem por objetivo testar contra a discutir estratégias econômicas e definir reunião do G8 rumos da globalização que ocorrerá
na França, de 1o a 3 de junho. Os organizadores das manifestações calculam que entre 200 e 300 mil pessoas participarão das mobilizações, cujo propósito é denunciar a ilegitimidade do encontro. A reunião vai acontecer em Evian, uma pequena cidade situada às margens do lago Leman, próxima a Genebra e Lausana (na Suíça). Os chefes de Estado e os governantes do G8, além de ministros, conselheiros e assessores, se alojarão em hotéis de luxo da região, rodeados e protegidos por grandes efetivos policiais e militares. Do lado suíço, prevê-se a
mobilização de 5.700 soldados e 4.650 policiais, com um gasto calculado em 30 milhões de dólares. As autoridades francesas proibiram manifestações em Evian e estão controlando as entradas da cidade para impedir que manifestantes se aproximem da reunião do G8. Movimentos sociais da Suíça e da França estão organizando uma marcha conjunta para protestar contra o início do encontro. Além disso, três acampamentos alternativos foram criados para alojar, alimentar e informar os manifestantes que vierem. Os organizadores prevêem participantes
da Alemanha, Espanha, Inglaterra, Itália e outros países europeus. “O G8 pretende desempenhar o papel do governo do mundo, mesmo sem ter legitimidade para isso. É por isso uma instância ilegítima que impõe suas preferências e orienta o futuro do planeta. O G8 impulsiona políticas neoliberais que aceleram a concentração de riquezas e atacam os direitos dos trabalhadores”, aponta um manifesto do Fórum Social do lago Leman, uma das organizações responsáveis pelos protestos. Com agência Alai
Interesse dos EUA cria tensão entre as Coréias BRASIL DE FATO De 15 a 21 de maio de 2003
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ssim como a China fez em abril, a Coréia do Sul tentará intermediar as próximas negociações entre Estados Unidos e Coréia do Norte agora em maio. Roh Moo-hyun, presidente sulcoreano, viajou dia 11 para os EUA a fim de discutir com George W. Bush uma solução para a crise, que se agrava a cada dia. Desde outubro de 2002, a ameaça de uma guerra aumenta. Tudo começou com acusações dos EUA quanto à existência de um programa nuclear secreto dos norte-coreanos. Aproveitando a
denúncia, os estadunidenses decidiram cancelar o fornecimento de petróleo. Irritados, os nortecoreanos expulsaram inspetores da ONU e rasgaram o Tratado de não-Proliferação Nuclear. Dia 12, avisaram a Coréia do Sul que cancelar iam também acordo de 1992 sobre armas nucleares. A entrada da Coréia do Sul, tradicional aliada dos estadunidenses, serviria para reforçar a influência de Washington na Ásia. Mas pode não dar certo. Roh Moo-hyun, que visita os EUA pela primeira vez, foi eleito sob uma plataforma de aproximação com os vizinhos e tem como prioridade conseguir a paz. Deve tentar que os EUA amenizem suas ameaças.
■ Carlo Giuliani (14/3/1978–20/7/2001)
■ Lula na FAO Presidente vai propor o Fome Zero Mundial Um plano internacional de combate à fome vai ser novamente proposto em outubro próximo pelo presidente Lula, durante sua visita à sede da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês). Essa informação foi dada pelo ministro da Segurança Alimentar, José Graziano, durante o seminário sobre O Papel da Iniciativa Privada no Combate à Fome, em São Paulo (SP). Em janeiro último, Lula já havia proposto, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, um Fome Zero Mundial, como primeiro passo de um pacto global pela paz e contra a fome. Mais exatamente, o presidente disse que esse Fome Zero Mundial deveria ser um fundo internacional para o combate à fome entre os pobres e miseráveis do Terceiro Mundo, a ser bancado pelo G-7 (o grupo dos sete países mais industrializados do mundo) e estimulado pelos grandes investidores privados internacionais.
■ Televisão mundial CNN à moda francesa Depois de oito anos de disputas entre as suas várias redes de televisão, a França finalmente decidiu: irá ao ar em escala mundial um canal estatal francês de televisão, para enfrentar concorrentes como a estadunidense CNN, a britânica BBC e a árabe Al Jazira. O ministro francês da Cultura e Comunicação, Jean Jacques Allaigon, afirmou no Parlamento que o novo canal é ao mesmo tempo uma “necessidade” e uma “oportunidade”: “É uma necessidade porque a França deve ampliar sua audiência internacional, e uma oportunidade porque nos permitirá racionalizar e organizar os sistemas franceses de difusão internacional.” O jornal Le Monde publicou: “A audiência mundial tem apenas as imagens da televisão estadunidense, britânica ou árabe. É evidente a necessidade de um contrapeso informativo.” O canal, via satélite e também pela Internet, já está sendo chamado de “CNN à francesa”.
■ País difícil Berlusconi se queixa
PACÍFICO ASIÁTICO
Daniel Santini, enviado especial a Seul (Coréia do Sul)
Reprodução
INTERNACIONAL
A juíza Elena Daloiso absolve o policial Mario Placanica da acusação de homicídio do jovem Carlo Giuliani, durante as manifestações anti–globalização de Gênova, em 20 de julho de 2001; ativistas convocam novo ato contra o G–8, com reunião marcada na França, de 1 a 3 de junho
Teme um repeteco da Guerra do Golfo em seu quintal. Sua posição, é também a de muitos de seu país.Yang Hur, presidente da Federação pela Unificação do Sul e do Norte, por exemplo, é contra o conflito. E exatamente pela boa relação da Coréia do Sul com os EUA, considera impossível um ataque. “Aqui, ninguém apoiaria. As tensões do passado já não existe, trabalhamos para que o país volte a ser um só. E uma invasão de Bush não iria ajudar nosso sonho”, diz. DOIS PAÍSES A guerra que dividiu a Coréia em duas acabou há 50 anos. Até hoje, a fronteira no paralelo 38º é
rigidamente vigiada, mas o ódio estimulado na época da Guerra Fria já não existe. Nas ruas de Seul, pelo menos, as pessoas falam com carinho e até pena da difícil situação dos vizinhos do Norte. Se há raiva, é de pacifistas em relação à agressiva diplomacia de Bush, que causa arrepios em Seul.A possibilidade de uma guerra é discutida – e rechaçada – em debates e jornais locais. Dia 7, a norte-irlandesa Betty Williams, Prêmio Nobel da Paz de 1976, esteve na capital e falou ao Brasil de Fato: “Falam que a Coréia do Norte é perigosa. Vejo perigo é na política do senhor Bush. Ele acusa os outros de terrorismo, mas é o principal terrorista do mundo atualmente”, denuncia.
O primeiro-ministro italiano Sílvio Berlusconi, que é também o homem mais rico do país, depois de enfrentar acusações de fraude diante de um tribunal, afirmou, dia 9, que ele próprio é nada mais, nada menos do que “o salvador da democracia italiana”, disposto até mesmo a enfrentar processos judiciais “indevidos” para evitar que a Itália seja “tolhida pela esquerda”. Disse que trabalha incansavelmente para governar um país difícil como a Itália,“onde todo mundo se queixa”. Durante os últimos doze meses, só passou menos de um dia a bordo de seu iate particular e “há mais de dois anos” não vai para sua casa de praia nas Bermudas.Tudo isso para impedir que a Itália “perca a liberdade nas mãos dos comunistas e de outros esquerdistas”, luta na qual entrou em 1993, ao entrar para a política, e da qual não pretende sair mais.
LIVRE COMÉRCIO
Alca é sinônimo de regressão econômica Da Redação ma área de livre comércio com os Estados Unidos produziria efeitos destrutivos em boa parte do sistema produtivo brasileiro, especialmente nos setores mais sofisticados em que a primazia das empresas estadunidenses é quase sempre inquestionável (bens de capital, componentes eletrônicos, química, eletrônica de consumo, software e informática). A economia brasileira tenderia a regredir à condição de economia agrícola ou agroindustrial e produtora de bens industriais leves ou tradicionais.” A avaliação é de Paulo Nogueira Batista Jr., da Fundação Getúlio Vargas, após análise da última minuta divulgada do acordo, que tem dez capítulos e mais de 350 páginas. Publicamos, a seguir, trechos da avaliação (o texto integral pode ser encontrado na página www.ivanvalente.com.br). Comércio de mercadorias O objetivo dos EUA é eliminar tarifas de importação. Washington pretende que as tarifas sejam objeto de negociação e que a maioria sofra rápida redução. ■ Serviços Os países membros da Alca te■
todas as transferências relacionadas a um investimento, inclusive juros, remessa de lucros, repatriação do capital e injeção de recursos financeiros adicionais depois da realização do investimento inicial. Investidores privados passariam a desfrutar de status legal antes reservado a Estados nacionais. O investidor de um paísmembro da Alca teria o direito de recorrer a arbitragem internacional, no âmbito do Banco Mundial ou da ONU, ultrapassando a legislação e o sistema judicial do país hóspede do investimento. ■ Compras governamentais Para uma ampla gama de contratos de compras governamentais, qualquer fornecedor de bens e serviços de um outro país da Alca receberia o mesmo tratamento que os fornecedores do próprio país. Ficaria proibida a incorporação de cláusulas que estabeleçam níveis de conteúdo doméstico,licenciamento de tecnologia, compromissos de investimento e requisitos que “distorçam” o comércio. ■ Propriedade intelectual Os EUA pressionam pela inclusão na Alca de obrigações que vão além das já assumidas no âmbito
riam a obrigação de proporcionar aos fornecedores de serviços de outros países-membros tratamento não menos favorável do que o concedido, em condições semelhantes, aos fornecedores nacionais. Os EUA querem que a Alca assegure amplo acesso a mercados para serviços financeiros, telecomunicações, informática, serviços audiovisuais, construção e engenharia, turismo, publicidade, serviços profissionais, serviços de distribuição, entre outros. ■ Investimentos A pretensão dos EUA é a de que o acordo da Alca proíba o governo de um país-membro de definir políticas que favoreçam os investidores nacionais. Os EUA buscam uma definição ampla para o termo “investimento”, que inclua todas as formas de ativos com características de investimento, como companhias, ações, certas formas de dívida, certas concessões, contratos e propriedade intelectual. Propõem, também, que o investidor tenha o direito de transferir fundos para dentro ou fora de qualquer país da Alca sem demora e a uma taxa de câmbio de mercado. Essa garantia cobriria
da Organização Mundial do Comércio (OMC).A legislação dos EUA é o modelo para a proposta apresentada na Alca e a sua incorporação acarretaria mudanças significativas nas legislações nacionais. A proposta inclui proteção
INTERNACIONAL
A eventual adesão à Alca significaria, para o Brasil, regredir ao estágio da economia agrícola, diz Paulo Nogueira Batista Jr., que vê na proposta dos EUA uma estratégia de anexação do mercado latino–americano; exigências do FMI levam o Equador à beira de uma nova explosão
do copyright (direito de reprodução),das patentes,de segredos comerciais, de marcas comerciais e de indicações geográficas.A idéia é garantir o máximo de proteção a atividades dominadas pelos estadunidenses.
Com Bush, perspectivas pioram Paulo Nogueira Batista Com o governo Bush, as perspectivas da Alca tornaram-se mais sombrias. Os EUA passaram a seguir uma concepção peculiar de livre comércio: por um lado, o máximo de abertura nos temas e setores em que os EUA apresentam vantagens competitivas; por outro, protecionismo para os setores frágeis ou pouco competitivos. Em agosto de 2002, o Congresso dos EUA aprovou um mandato muito restritivo para negociar acordos comerciais (Trade Promotion Authority).As negociações da Alca ficaram circunscritas aos temas de interesse dos EUA. A Alca acarretaria formidável perda de autonomia na condução de aspectos essenciais da política econômica brasileira. De todas as negociações internacionais em curso, essa é a que representa a maior ameaça à soberania do país. Com a Alca, o Brasil ficaria comprometido a manter o seu mercado interno sempre aberto para as exportações dos EUA e de outros países do continente americano. As empresas brasileiras se veriam expostas à vigorosa concorrência das grandes corporações estadunidenses. O Brasil teria que abrir mão de uma série de instrumentos de política governamental, tornando-se incapaz de implementar um projeto nacional de desenvolvimento. Como mínimo, o que se deve esperar é que o Brasil não se comprometa com a Alca sem refletir profundamente sobre as implicações desse conjunto de restrições e proibições para o desenvolvimento da economia do país no longo prazo. O que está em discussão é o acordo econômico mais abrangente e mais importante já negociado pelo país.
EQUADOR
Plano do FMI ameaça causar explosão Marcelo Larrea, de Quito (Equador), para Adital
Vivant Univers
ma missão do Fundo Monetário Internacional (FMI) visitou o Equador, semana passada, para supervisionar o funcionamento da economia do país.
O ministro da Economia, Mauricio Pozo, e o presidente do Banco Central, Mauricio Yépez, atuaram como funcionários do FMI, e não como representantes de um país soberano. Em linha com o acordo assinado pelo governo de Lúcio Gutiérrez, o FMI pressiona para que
se cumpram as metas de austeridade do orçamento fiscal, que não deve exceder os 6,7 bilhões de dólares. Isso implica, fundamentalmente, severas restrições à capacidade do setor produtivo, e cortes de 9,8% para 6,6% no investimento social em educação, saúde e moradia, além da diminuição dos postos de trabalho no setor público. Ao mesmo tempo, o FMI pressiona pelo cumprimento dos desembolsos para o pagamento da dívida, fixados em 2,4 bilhões de dólares, e o fortalecimento dos orçamentos das Forças Armadas e da polícia, que atingem 1 bilhão de dólares (superam 50% os gastos totais). A maior parte dos recursos fiscais são destinados à satisfação das exigências dos credores da dívida externa e o fortalecimento do aparato repressivo. Isso combina com a estratégia de
Washington,de precipitar o Equador em sua guerra do Plano Colômbia e prevenir as explosões sociais que emergem da quebra financeira de 1999, dos desequilíbrios críticos da dolarização e das próprias contradições do modelo neoliberal. Hoje, a mancha da pobreza estende-se sobre 80% da população. Apesar de a dívida externa do Equador oscilar ao redor de 60% do Produto Interno Bruto (PIB, soma total das riquezas do país), o FMI exige medidas de ajuste contra uma população com rendimentos insuficientes. A missão do FMI voltou a pressionar pela eliminação do subsídio ao gás, a introdução de uma reforma trabalhista dirigida a congelar a massa salarial e a reduzir os empregados do setor público, além de uma reforma tributária para elevar os rendimentos por impostos, taxan-
do os veículos e eliminando escudos fiscais que protegem o aparato produtivo local. As imposições do FMI deixam o governo de Gutiérrez em posição de guerra aberta com a classe operária e o conjunto do povo,que pode provocar a ruptura da coalizão política que o elegeu, e desencadear uma crise grave. Setores empresariais, inclusive, advertem sobre o perigo de uma explosão social, pela deterioração do setor produtivo, causada pela dolarização, que tem permitido a invasão do mercado por produtos estrangeiros. Isso tem contraído e encarecido o crédito, pela insuficiência de dólares, que gera o déficit comercial e a decisão dos banqueiros em transferir os depósitos de seus clientes para o exterior. Marcelo Larrea é diretor do jornal “El Sucre”
GUATEMALA
Agência Alai
■ Poço de petróleo em lago Aqrio, centro-oeste do Equador
rês juízes (Willevaldo Contreras, Luis Felipe Hernández e Rosa María de León Cano) a da 4 Côrte de Apelações da Guatemala decidiram, dia 7, deixar impunes os militares Edgar Godoy, JuanValencia e Guillermo Oliva dos crimes cometidos durante a ditadura no país. Os policiais são acusados do assassinato da antropóloga Myrna Mack Chang, em 1990. A antropóloga produziu um trabalho importantíssimo sobre as condições subumanas a que eram submetidas a população expulsa de seus lares pela guerra civil em cur-
so no país e confinada a viver em miseráveis campos de refugiados. Com a absolvição dos militares, a corte praticamente deu aval à política de repressão aplicada pelo Estado da Guatemala durante a época do conflito armado interno; e jogaram o manto da impunidade sobre os crimes cometidos em nome da Doutrina de Segurança Nacional, da política contra-insurgente e do conceito de inimigo interno. No marco de uma resolução de caráter político, com uma clara defesa dos interesses do exército, a Corte absolveu o Estado Maior Presidencial de toda a responsabilidade nesse assassinato e deixou de lado todos os fatos
provados judicialmente nos últimos treze anos. O Poder Judiciário manifestou a magnitude da debilidade institucional que corrói suas estruturas e evidenciou que continua sendo presa dos poderes fáticos, do poder militar.A mensagem que se enviou hoje à população é que na Guatemala a justiça não é possível. Os advogados vão tentar impugnar a sentença de segunda instância. A batalha judicial continuará pelas vias estabelecidas legalmente e o seguinte passo é apresentar a cassação à espera de que a Câmara Penal faça a correção da aberração jurídica que representa a sentença emitida.
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Criminosos da ditadura são abolvidos
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INTERNACIONAL
Nem mesmo o fim do apartheid devolveu à população negra da África do Sul as terras tomadas pelos colonizadores brancos; segundo Andile Mngxitama, líder da luta pela terra, falta a seu país mais organização entre os trabalhadores rurais e um partido como o PT
ÁFRICA AFRICA
Movimento dos sem-terra sul-africanos se espelha no MST brasileiro Sean Jacobs, correspondente na Cidade do Cabo (África do Sul)
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BF – Há uma política de reforma agrária? AM – Você deve se lembrar que o partido no poder, o Congresso Nacional Africano (ANC), tinha já então adotado uma estrutura macroeconômica neoliberal em 1996 e, mesmo assim, conseguiu maioria nas eleições gerais (para o parlamento e a presidência) em 1999.
Parece-me que isso deu ao ANC confiança para prosseguir sua agenda neoliberal mais agressivamente, o que significava que uma reforma agrária assistida pelo mercado seria o programa-chave, e que a sociedade civil não seria consultada. O governo está totalmente comprometido em comprar de volta a terra, a ponto de gente desesperada que ocupa terras ser brutalmente removida e incriminada.
força política como o PT. Isto, para mim, explica as diferenças em termos de esperanças por uma reforma agrária. Também não temos uma classe de intelectuais baseados na universidade que estejam preocupados com a questão da terra. A liderança nacional do LPM tem uma representação de gênero equilibrada, e acho que as mulheres são o setor mais militante do movimento.
Andile Mngxitama (foto), coordenador nacional da Comissão pela Terra da África do Sul, é um especialista em ocupações, direitos dos trabalhadores rurais, restituição e redistribuição de terra. Ele lidera a rede dos sem-terra de seu país nos esforços de mobilização comunitária, advocacia e lobby interno na luta pela terra e é o responsável pela articulação com movimentos de camponeses e direitos à terra internacionais. É conhecido como um forte e inovador estrategista político, comprometido e habilidoso para cavar políticas nacionais e estratégias a partir de experiências com comunidades pobres.
que o Brasil aprenda com a África do Sul que um grande homem – amado ou odiado – pode não ser a solução. Digo isso levando em conta as grandes contribuições dos presidentes Chavez e Castro.
BF – Os proprietários brancos resistem? AM – A polícia, parte das do Exército, e a Justiça ficam do lado dos proprietários de terra.
Dida Sampaio/AE
Brasil de Fato – Como surgiu o LPM? Andile Mngxitama – O LPM foi lançado em 2001. Os fundamentos da “nova” África do Sul são construídos a partir da idéia de que a terra roubada durante os longos períodos de colonização e, mais tarde, do apartheid, não será devolvida aos expropriados. Nós temos de comprar a terra de volta pelo mesmo processo que tem sido agressivamente promovido pelo Banco Mundial em outras partes do mundo. O surgimento do LPM pode ser explicado por três fatores interligados. Primeiro, o lamentável fracasso do programa de reforma agrária do pós-apartheid. Em 1994, o governo prometeu entregar 30% da terra agriculturável do país nos primeiros cinco anos – ou seja, até 1999. Naquele período, o governo só redistribuiu cerca de 1%. O segundo, é o que se chama de “o fator Zimbábue”. Parece-me que o processo de recuperação da terra, que se intensificou no Zimbábue de 1998 a 2002, deu aos sulafricanos ávidos por terra a confiança na possibilidade de tirar a terra dos invasores colonialistas. Mas para que isso aconteça no contexto da África do Sul é necessário um certo nível de organização. O terceiro fator – muito importante na minha opinião – é o movimento antiglobalização corporativa. As possibilidades de engajamento para além de nossas fronteiras teve um grande impacto na emergência do LPM. Particularmente o MST do Brasil, pelo qual, eu acho, o LPM é bastante influenciado, e no qual se inspirou. Na última assembléia nacional do MST, alguns de nossos ativistas de Ongs tiveram a oportunidade de ver um movimento de pessoas sem terra em ação. Eles voltaram para a África do Sul muito inspirados e impressionados com as conquistas do MST sob as mesmas condições da África do Sul. Acho que os três fatores somaram-se num momento oportuno. Pode-se dizer que o LPM teve conexões internacionais: é parceiro da Via Campesina e está atualmente planejando uma visita de solidariedade ao MST este ano.
Quem é
Arquivo pessoal
ove anos depois do nascimento da democracia e do fim do apartheid na África do Sul, a reforma agrária está longe de começar, empatada pelas políticas neoliberais do presidente Thabo Mbeki mas, principalmente, pela questão racial. Cerca de 65 mil brancos, que são menos de 1% da população, detêm mais de 80% das terras férteis sul-africanas. Estima-se em 26 milhões o número de sem-terra no país de 40,4 milhões de habitantes. Em entrevista ao Brasil de Fato em Johannesburgo,Andile Mngxitama, coordenador nacional da Comissão Nacional pela Terra, Ong parceira do Movimento das Pessoas Sem Terra da África do Sul (Landless People Movement – LPM), conta como surgiu o LPM e como o movimento busca inspiração no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil. “Nós estamos realmente olhando para o MST como um exemplo do que deveria ser um estado permanente de poder popular”, diz Andile Mngxitama, que compara o governo de Luiz Inácio Lula da Silva ao de Nelson Mandela:“ambos amados pelo mundo, ambos políticos moderados, que, na minha opinião, não têm condições de liderança contra a investida violenta do imperialismo”. (Tradução de Marilene Felinto)
BF - Quanto por cento da terra pertence ao Estado? AM - Nem mesmo o Estado é capaz de responder a esta pergunta, mas nós achamos que é um mínimo. Embora os ex-territórios do apartheid (os 13% ocupados por negros ao final do apartheid), onde a maioria dos negros rurais ainda vive, seja tecnicamente “terra do Estado”, elas obviamente não estão disponíveis para a reforma agrária. Uma estimativa demonstra que a África do Sul pode redistribuir 77 milhões de hectares de terra amanhã sem que isso afete em nada a economia. A maior parte da terra é subutilizada e improdutiva. Todos os direitos de propriedade são protegidos pela Constituição. Mas a mesma Constituição contém dispositivos para expropriações. No entanto, desde 1994 não vimos um único caso de desapropriação para redistribuição de terra. BF – Vê diferenças entre a reforma agrária no Brasil e na África do Sul? AM – Em primeiro lugar, nós não temos uma Constituição que permita a ocupação de terras improdutivas. Em segundo, não temos um movimento tão dinâmico e poderoso quanto o MST ou uma
Mas ainda temos que lidar com muito machismo o tempo todo, e outras dificuldades, como a diversidade de línguas (cerca de 12 línguas são faladas na África do Sul). É aí que as diferenças com o Brasil terminam. Acho que temos muito mais em comum: tivemos Mandela como chefe de Estado quatro anos atrás, e o Brasil tem Lula, ambos amados pelo mundo, ambos políticos moderados, que, na minha opinião, não têm condições de liderança contra a investida violenta do imperialismo. Vocês tiveram Cardoso, um neoliberal que basicamente construiu uma infra-estrutura social, econômica e política que precisa ser demolida se se quiser atender às necessidades do povo. Nosso atual presidente, Thabo Mbeki, não só é amigo de Cardoso, mas também é um respeitado promotor das políticas neoliberais. A África do Sul enfrenta os mesmos desafios. Pode-se dizer que vocês estão ganhando um Mandela um pouco depois de nós, mas há muito pouca indicação de que vocês estão melhores depois de Lula. Então, nós estamos realmente olhando para o MST como um exemplo do que deveria ser um estado permanente de poder popular. Espera-se
■ Trabalhadores sem terra em manifestação em Johannesburgo (África do Sul), agosto de 2002
Isso é mais agudo ainda na zona rural. Todas as vezes em que o LPM realizou manifestações pacíficas e legais na província de Mpumalanga, foi vítima de prisões e perseguição da polícia, que tem membros identificados entre os proprietários locais. Os latifundiários também têm suas companhias de segurança privada, que na realidade operam como exércitos privados. Eles mutilam, matam e expulsam muitas pessoas impunemente. É importante saber que os proprietários organizados são um lobby poderoso. Eles são tidos como os que alimentam a nação e como quem desempenha importante papel econômico. Mas o grande proprietário na África do Sul também é o senhor de escravos e um racista brutal. Quando as pessoas resistem às remoções em assentamentos urbanos informais, que eu acho que são chamados de “favelas” no Brasil, há sempre casos de morte. As remoções forçadas são brutais e quase sempre ilegais, já que o governo não se importa nem mesmo em obter ordens judiciais.
BF - Que paralelos há entre a África do Sul e a situação no Zimbábue? AM - Nos primeiros dez anos após a independência, ou seja, entre 1980 e 1990, os zimbabuanos foram forçados, pelo acordo de paz com os colonizadores e a Inglaterra, a fazer a reforma agrária através do mercado. Eles restituíram muito pouco, apesar de terem feito muito mais de que o governo sul-africano. Por volta de 1992, o Zimbábue adotou um programa de ajuste estrutural que excluiu a possibilidade da reforma agrária já que, como sabemos, os programas de ajustes são dirigidos segundo a perspectiva do Consenso de Washington, que afasta o Estado da sociedade e impõe o mercado como um novo Deus. Por outro lado, você tem a África do Sul, que tomou a via do ajuste voluntariamente e impôs uma reforma agrária dirigida pelo mercado, que não funcionou no Zimbábue nem em qualquer outro lugar do mundo. Em ambos os países há uma maioria, que é a população africana faminta por terra e crente de que a terra nas mãos dos colonizadores brancos é uma propriedade usurpada. Existe uma situação de profundo ressentimento histórico, pobreza crescente, alienação e arrogância racista branca generalizada. Isso é a base da crise, da ruptura e do confronto. O que é interessante é que o governo sul-africano age exatamente como o zimbabuano nos seus primeiros anos, assegurando aos brancos proprietários de terras de que nada irá acontecer, e o fazendeiro branco fica mais arrogante e ganancioso. Mas, quando mudar a constelação de forças – e ela mudará – ninguém se sentirá pesaroso pelo grande fazendeiro comercial branco que está acumulando a terra em vez de reparti-la. Os proprietários brancos estão basicamente vivendo na era colonial e são encorajados pelo governo atual a manter esse estado idiota. Eu não acho que ele pode perdurar. Alguns estudos mostram que muitos africanos na África do Sul acreditam que a terra deve ser devolvida aos negros não importam as conseqüências. Essa é a situação em que se encontra o Zimbábue hoje. Eu acredito ser irrelevante dizer que Mugabe tomou a via da redistribuição de terras por oportunismo político: qualquer político tirará vantagem de uma necessidade sentida pela sociedade.
AFRO-DESCENDENTES
CULTURA
O fotógrafo gaúcho Ricardo Teles reúne, em livro premiado – Terras de Pretos – uma parte do acervo de fotos que registram as cenas do cotidiano dos nove primeiros quilombos que conquistaram o título definitivo de suas terras; Teles mostra um Brasil que poucos conhecem
o longo de nove anos, o fotógrafo gaúcho Ricardo Teles registrou cenas do dia-adia de nove quilombos do Brasil que têm em comum o fato de terem sido os primeiros a conquistarem o título definitivo de suas terras. Depois de anos de mobilização, conseguiram fazer valer o que garante a Constituição em seu artigo 68. Segundo a definição da Associação Brasileira de Antropologia, quilombo é toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado. Para a secretária especial do governo federal para a Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, o Brasil não pode deixar de reconhecer a riqueza histórica dos quilombos. O primeiro passo é fazer um levantamento para saber o número exato de comunidades, pois um estudo feito pelo governo passado apontava 2.000 quilombos, enquanto o Movimento Nacional de Remanescentes de Quilombos afirma que são 4.000 espalhados pelo país, sendo a concentração maior nas regiões Norte e Nordeste. Parte de suas histórias agora está registrada em preto e branco no livro que Teles lançou em novembro do ano passado, Terras de Preto – Mocambos, Quilombos. Histórias de Nove Comunidades Negras Rurais do Brasil (Editora ABooks). Um dos mais importantes fotógrafos-documentar istas da atualidade, Teles teve seu trabalho reconhecido em diversos momentos. O mais recente veio em março, quando recebeu o Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, na categoria Fotojornalismo, por um trabalho sobre racismo. Gáucho de Porto Alegre, desde 1994 vive em São Paulo e há
Construção coletiva Givânia Maria da Silva, liderança de Conceição das Crioulas Nascida em Conceição das Crioulas, Pernambuco, vivi minha infância cercada de muito amor, porém, tendo de experimentar as dificuldades que enfrentam todos os quilombolas. Conceição é uma comunidade formada há mais de dois séculos por um grupo de mulheres negras que ali chegaram por não aceitar o regime imposto: a escravidão. Lugar cercado por serras, ideal para quem queria viver em paz.A fertilidade das terras para o plantio do algodão fez com que, a partir de seu cultivo, elas adquirissem a posse das terras, vendendo o fio na cidade de Flores. Já no século passado essa realidade mudou, com a entrada de grileiros na área, fato que até hoje vem criando problemas, não só em Conceição, mas nas demais comunidades quilombolas do país. Assim, repete-se a luta que foi liderada por Zumbi dos Palmares em diversos cantos do país e do mundo. Como Conceição das Crioulas, existem hoje centenas de comunidades quilombolas no Brasil. Umas, organizadas; outras, em processo de organização. Há muitas semelhanças entre elas; a principal é o eixo que as movem: a incansável luta para sobreviver no maior patrimônio, que é a terra.Terra como objeto sagrado, sinônimo de vida.
tempos vem registrando imagens de um país rico em diversidade. Em 1998, lançou o livro Saga – Retratos das Colônias Alemãs no Brasil (Editora Terra Virgem). Terras de Preto traz um país desconhecido por muitos. Mostra a terra, o trabalho, o alimento, as moradias, as festas, os botecos e as brincadeiras de crianças no Pará, Maranhão, Goiás, Alagoas, Bahia e São Paulo. Oferece também textos escritos por quem domina o assunto, como o antropólogo Clóvis Moura e as lideranças quilombolas Ivo Fonseca Silva, de Frechal (MA) e Givânia Maria da Silva, de Conceição das Crioulas (AL).
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Paulo Pereira Lima, da Redação
Fotos: Ricardo Teles
Viagem pelos quilombos do Brasil
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DEBATE
SISTEMA TRIBUTÁRIO
Reforma sem timidez
Kipper
Virgílio Guimarães esde que o projeto de Reforma Tributária começou a ser discutido, semanas antes de chegar ao Congresso, alguns segmentos da sociedade passaram a tachá-lo de “tímido”. Argumentam que ele modificará essencialmente o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços(ICMS) e deixará de mexer em outros tributos. O que essas vozes discordantes não dizem é que um dos problemas centrais do nosso sistema tributário é precisamente o ICMS. Ele é o principal tributo brasileiro: arrecada mais de R$ 100 bilhões por ano, é o mais sonegado, é o que m a i s
distorce e substitui a concorrência e a busca da eficiência. Pode mesmo ser considerado um componente do Risco Brasil. Se todos esses problemas puderem ser contornados, a reforma do ICMS terá sido, no meu entender, um passo gigantesco. As mudanças no ICMS, com a unificação de suas alíquotas, vão ajudar o governo a alcançar os dois objetivos essenciais: dar sustentabilidade às finanças públicas e baixar os juros. Só com a redução dos juros e do nosso superávit primário absurdamente alto, a economia brasileira poderá voltar a crescer. Reduzindo a incidência desse imposto sobre os produtos da cesta básica, nos aproximaremos de outro objetivo: a justiça social. A redução das alíquotas do ICMS dos produtos da cesta básica será fundamental para se fazer justiça social, na medida em que o orçamento das famílias mais pobres receberá uma carga tributária menor, ao contrário do que ocorre hoje. A partir de agora, rico paga mais imposto e as populações pobres pagam menos. IMPOSTO MAIS JUSTO O Imposto de Renda deverá ser reformado e deixar de ser apenas uma espécie de imposto sobre salários.
Quem pode mais paga mais, inclusive, e principalmente, os banqueiros. Quem pode menos paga menos e quem não tem nada, recebe. Ou seja, o Imposto de Renda vai pagar uma renda mínima para aqueles que não têm renda alguma. Além disso, o trabalhador autônomo que estiver desempregado vai pagar menos imposto, já que, com as mudanças previstas na Reforma, a parcela patronal será reduzida. É importante que os que ainda têm dúvidas se convençam de que a Reforma Tributária do governo Lula já começa com dois paredões intransponíveis: a carga tributária total não será, de forma alguma, aumentada, e a parcela do governo federal no bolo tributário também não. Quando aumentarmos alguns tributos, outros serão reduzidos para que a equação fique perfeita. Agora que as Reformas chegaram ao Congresso — literalmente pelas mãos do Presidente da República — caberá a nós, do Legislativo, ampliá-las. Pretendo ser um relator democrático, aberto a acolher as sugestões da sociedade e dos colegas da Comissão Especial da Reforma Tributária. Mas também darei minha colaboração pessoal. Estou convencido, por exemplo, de que uma alternativa à taxação dos servidores inativos está na Reforma Tributária. Apresentarei uma proposta de que o servidor aposentado que ganhe acima do teto passe a recolher para a seguridade um determinado valor
que varie de acordo com sua renda, idade e tempo no setor público. Os recursos arrecadados por meio desse recolhimento compulsório formariam uma espécie de fundo de garantia do servidor aposentado, que seria devolvido ao servidor, ou a seus dependentes, num determinado momento. Esse fundo seria capitalizado para render dividendos. Os estados o utilizariam para dar sua contrapartida à previdência complementar dos funcionários públicos. É uma proposta socialmente mais justa e com um formato jurídico mais adequado às necessidades atuais. Em um segundo momento das reformas, trataremos das questões infra-constitucionais, ou seja, que não terão que modificar o texto da Constituição. Nesta parte, entrará, por exemplo, a reforma da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que atualmente é cumulativa. A produção será desonerada quando a Cofins deixar de incidir sobre suas várias etapas. Como essas, outras idéias surgirão. E serão discutidas, com ou sem as polêmicas que vêm esquentando o clima das reformas no âmbito do próprio PT. Afinal, eu costumo dizer que o P da sigla significa polêmica, mas o T, é de ternura. Desde a criação do partido, não conheço nada que tenha sido feito sem muita polêmica. Virgílio Guimarães (PT-MG) é relator da Comissão Especial da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados
Estado em formação
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Osiris Lopes Filho
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proposta de reforma constitucional do presidente Lula, ao pretender reformular substancialmente o ICMS, da competência dos Estados e do Distrito Federal, alterará a estrutura da Federação brasileira, enfraquecendo-a. Esse tributo é o principal do país, tanto em abrangência quanto em arrecadação. Em 2002, a sua receita global alcançou R$ 104 bilhões. A sua esfera de incidência compreende todas as operações com mercadorias, entre elas as mais importantes, de vendas, e as prestações de serviços estratégicos na nossa economia, como transportes e comunicações. Aprofundou-se uma tendência que já estava presente na atual Constituição. A centralização em órgãos da União do poder de legislar sobre o ICMS. Aos Estados e ao Distrito Federal vai caber apenas a função de arrecadá-lo para os seus cofres. Uma arrecadação que vai emagrecer por força de regime imposto pelas novas regras a serem estabelecidas. É que todas as exportações de mercadorias e serviços estarão fora de sua área de incidência, protegidas por imunidade tributária. Poder-se-ia dizer que já é assim. É verdade. A Lei Complementar nº 87/96 prevê essa não incidência. Tudo mal. É que na Constituição de 88 foram previstas duas regras distintas: produtos industrializados exportados submetidos à não incidência; produtos semi-elaborados, incidência do ICMS, admitido que a lei complementar viesse a estabelecer a não-incidência do ICMS. Equiva-
le dizer que a LC Nº 87/96 fez prodígio jurídico, tornando letra morta a regra geral estabelecida pela Constituição de se cobrar ICMS na exportação de produtos primários ou com baixo nível de agregação industrial (semi-elaborados). Essa regra geral de incidência do ICMS sobre os semi-elaborados foi uma conquista, na Constituição de 88, dos Estados menos desenvolvidos, sem grande base industrial, produtores de bens da agricultura, pecuária e mineração. Criou-se um Fundo, na Lei Complementar nº 87/96, para ressarcir a perda de receita decorrente dessa não incidência sobre os semi-elaborados. O projeto do governo Lula é omisso em relação a tal Fundo. Tira-se, na Constituição, fonte de receita dos Estados, abaladora das finanças dos menos desenvolvidos e nada se fala sobre a compensação financeira para a manutenção dos serviços públicos desses Estados. As suas finanças vão se agravar, pois se prevê ainda que os gêneros alimentícios de primeira necessidade terão a menor alíquota do ICMS entre as cinco previstas. Tem-se que, exportados os seus produtos primários e semielaborados, ficarão, literalmente, a ver navios, sem arrecadação, e às vendas realizadas no mercado interno desses produtos serão aplicadas as menores alíquotas, mesmo nas transações interestaduais. Nas operações com energia elétrica e petróleo e lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, o ICMS será devido no Estado destinatário. Toda-
via, se as operações interestaduais forem realizadas com gás natural e seus derivados, e lubrificantes e combustíveis que não sejam derivados do petróleo, haverá a repartição entre os Estados de origem e de destino, com base na proporcionalidade que ocorre nas operações com as demais mercadorias. Isso significa, por exemplo, que nas vendas de álcool ou lubrificante de origem vegetal feitas por Estado menos desenvolvido do nordeste a Estado desenvolvido, a parte substancial de arrecadação do ICMS, nessas operações ficará com o Estado desenvolvido. Eis que na realidade, na balança comercial entre os dois Estados, o desenvolvido tende a ter resultado favorável, que se projetará nessa repartição de arrecadação. A nova regra mais draconiana e assustadora para os Estados menos desenvolvidos é a que estabelece que o ICMS “não será objeto de isenção, redução de base de cálculo, crédito presumido ou qualquer outro incentivo ou benefício fiscal ou financeiro que implique sua redução”. Não mais poderão atrair os investimentos para o seu território mediante incentivos na área do ICMS. Postula-se dar a cada um o que é seu; aos desenvolvidos, o progresso de que já desfrutam; ao menos desenvolvidos, a estagnação da sua condição atual, perdido o poder de utilizar a extrafiscalidade em seu benefício. O novo ICMS que emergirá dessa reforma, se aprovada como foi proposta, terá função meramente arrecadatória, sem que os Estados e o Distrito Federal pos-
sam utilizá-lo como ferramenta de política desenvolvimentista. Tudo realizado em nome da pacificação na alegada guerra fiscal. Conseguir-se-á a paz, mas a paz imobilizada dos cemitérios. O presidente Lula quer pressa na aprovação dessa proposta e alguns trâmites na Câmara foram abreviados. A pressa é má conselheira, diz a experiência popular. Exemplo disso é a afirmação constante da página 3 da exposição de motivos que encaminha a proposta de reforma. Ali se assevera a instituição da progressividade para o imposto de transmissão causa mortis e doação. No texto do projeto nada se menciona sobre isso. Equívoco, omissão ou esquecimento. Qualquer que seja a justificativa, fica claro que alterações tão significativas e inovatórias na Constituição merecem apreciação mais cuidadosa. E não ordem unida, em marcha acelerada. A ditadura militar já era. Não é hora de reestabelecer alguns dos seus processos. É melhor um amplo e aberto debate sobre essa matéria vital ao país, sem patrulhamentos ou blindagens. É o que se espera e deseja. Aos que atuam objetivando atender às exigências do FMI, é hora de alertar: a Federação e a descentralização do poder são conquistas fundamentais à cidadania, nacionalidade e soberania do país, e a concentração do poder desserve a essas idéias-forças inerentes à existência do país e da nação. Osiris Lopes Filho é advogado, professor de Direito na UNB e na FGV, e exsecretário da Receita Federal
EDUCAÇÃO
CULTURA
Um projeto inovador estimula os alunos da rede municipal de São Paulo a ganhar autoconfiança, exercitar a cidadania e, ainda, aumentar o interesse pelas disciplinas escolares: o Educom.rádio, que já implantou estações de rádio de transmissão restrita em 121 escolas
Crianças operam rádios comunitárias em escolas municipais de São Paulo
CAMPO EMERGENTE “Queremos criar hábitos de comunicação e o rádio é um instrumento adequado para isso, pois valoriza algo que a criança já traz consigo, a oralidade. Quando ela tem a sua oralidade reconhecida e valorizada, inclusive com os erros gramaticais, ela se espelha nos meios de comunicação, no seu aspecto positivo. Não é a violência que ela vai imitar, e sim o jornalista que faz uma denúncia ou tenta reorganizar a sociedade a partir de uma perspectiva cidadã”, explica o supervisor geral do projeto, Ismar Soares. É assim que se aplica a educomunicação, prática pedagógica que tem como precursores o
■ Alunos de diversas escolas do município de São Paulo em atividades de capacitação promovidas pelo projeto Educom.rádio
educador Paulo Freire e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. “No mundo inteiro, a violência está sendo combatida a partir de ações comunicativas”, revela Soares. Para convergir esses esforços, duas empresas do ramo, a Oboré e a GENS, estão organizando o Encontro Nacional de Áudio e Vídeo de Educação, para o segundo semestre deste ano. A maior parte de trabalhos com educomunicação é desenvolvida por ONGs, como o Grupo Cipó, na Bahia, e o Grupo Ande, em Brasília. Mas a inovação do Educom.rádio, segundo a coordenadora educomunicacional do projeto, Grácia Lopes, é que não se trata de um simples projeto pedagógico, que se aplica a uma ou cinco escolas, como é feito pelas ONGs.“Mas de uma política pública que se estende a toda a rede municipal”, conclui.
AGENDA Confira algumas atividades populares, sociais e culturais desta semana. Para incluir seu evento nesta agenda, envie e-mail para agenda@brasildefato.com.br
TRANSGÊNICOS O Greenpeace lançou, dia 10, em São Paulo, a segunda edição do Guia do Consumidor, com a lista atualizada de produtos com e sem componentes transgênicos. O objetivo do guia é informar a população sobre o que são os transgênicos, os riscos que oferecem ao meio ambiente e à saúde, e o posicionamento das principais indústrias de alimentos frente a esses riscos. A publicação contém uma lista verde e uma lista vermelha. Na lista verde estão os produtos de empresas que garantem não utilizar ingredientes transgênicos na fabricação de seus produtos; na lista vermelha estão as empresas que não oferecem essa garantia. A versão para consulta e impressão está disponível na página do Greenpeace na Internet, www.greenpeace.org.br.
DANÇA SP - OFICINA DE DANÇATERAPIA ● de 22 a 25 dia 22, às 19h30, no clube A Hebraica,
R. Hungria nº 1.000, Pinheiros, São Paulo De 23 a 25, no Colégio Marista Arquidiocesano, R. Domingos de Morais, no 2.565, São Paulo. Realizado pela bailarina-coreógrafa criadora da dançaterapia, María Fux, a oficina terá a duração de 12 horas e é aberta a educadores, psicólogos, terapeutas, profissionais da saúde, arte-educadores, arte-terapeutas, representantes do terceiro setor, artistas, dançarinos, entre outros. Mais informações (11) 5011-9526/ 5012-5527 /9161-4465, mcgross@uol.com.br
FRATERNIDADE DF - CONCURSO PARA CARTAZ DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2004 O tema da campanha será “Água, Fonte de Vida” e o lema, “Fraternidade e a Água”. O cartaz será escolhido por concurso. A data limite para a apresentação dos trabalhos é 13 de junho e o regulamento encontra-se na página da CNBB na Internet, www.cnbb.org.br/cf . Os cartazes devem ser enviados para o Setor de Comunicação Social da CNBB, no endereço: SE/Sul Quadra 801, conjunto B, CEP 70401.900, Brasília, DF. Mais informações: (61) 313.8300, comsocial@cnbb.org.br.
■ Professor Ismar de Oliveira durante curso com professores do projeto Educom.rádio
DIREITOS HUMANOS ES - HOMENAGEM AO TRATORISTA HAMILTON DOS SANTOS ● dia 19, Vitória A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) prestará homenagem ao tratorista Hamilton dos Santos, que receberá uma placa de reconhecimento ao exemplo de coragem, ética e respeito aos direitos humanos.
REFORMA AGRÁRIA CE - SEMINÁRIO: REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL ● dias 15 e 16 Praia de Iparana, R. Alameda dos Tapebas, 82 Organizado por: Comissão Pastoral da Terra do Ceará (CPT-CE). Durante o evento haverá discussão sobre a estrutura agrária do Brasil, o Estatuto da Terra, o I Plano Nacional de Reforma Agrária, o Programa Emergencial, o Novo Mundo Rural, o Projeto Cédula da Terra, o Banco da Terra e o Crédito Fundiário. Também estarão em discussão as heranças do governo de Fernando Henrique Cardoso e o cenário político atual. Mais informações: Lia Lima, (85) 2261413, cptce@fortalnet.com.br
LUTA CONTRA A AIDS RJ - 20º ANIVERSÁRIO DO MEMORIAL DAS VELAS ACESAS DE AIDS ● dia 18, às 15h
Pq. das Ruínas, Santa Teresa, Rio de Janeiro. Mais de 2 mil comunidades participarão do Memorial das Velas Acesas, evento global na luta contra a AIDS. O evento tem como objetivo homenagear as vidas perdidas, demonstrar apoio às pessoas portadoras do HIV, além de mobilizar as comunidades para a prevenção do vírus em nível local, regional e nacional. O tema deste ano é “Uma voz e muitos rostos unidos pela vida”. Mais informações: (21) 2222-3282, gabrielamp@transformarte.org.br, www.transformarte
TRABALHO INFANTIL SP - O TRABALHO INFANTIL NO COMÉRCIO INFORMAL ● dia 20, das 8h30 às 17h30 Salão Nobre da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, Av. Miguel Stéfano, 3.900, Água Funda O objetivo do evento é refletir e construir, por meio da participação da sociedade civil, do Estado, dos trabalhadores e dos empregadores, as propostas de erradicação do trabalho infanto-juvenil no comércio informal, tendo como referência as diretrizes estratégicas elaboradas no Seminário do Trabalho Infantil no Estado de São Paulo, realizado em agosto de 2002. Atividades gratuitas. Mais informações: www.sp.senac.br/ terceirosetor, (11) 6647-5151
BRASIL DE FATO De 15 a 21 de maio de 2003
studantes da rede municipal de ensino de São Paulo estão vivendo uma experiência inédita: produzir programas de rádio para a comunidade escolar. Criado há dois anos, o projeto Educom.rádio já equipou 121 escolas de nível fundamental com estúdios de rádio para transmissão restrita (dentro do espaço escolar).A meta é atender 455 escolas, até dezembro de 2004, quando termina a gestão da perfeita Marta Suplicy. O projeto – parceria da Secretaria Municipal de Educação com a Universidade de São Paulo (USP) e a assessoria da Oboré – também promove a capacitação de alunos, professores e integrantes da comunidade escolar. A participação, tanto dos professores quanto dos alunos, é voluntária. Cada professor dedica uma parte da aula para fazer Paulo Freire o programa (1921 – 1997) – educador brasileiro da de rádio, de linha da pedagogia da acordo com libertação, de prática os assuntos de progressiva. A sua disciplina. Pedagogia do Oprimido é sua Os grupos de principal obra, quatro alunos conhecida recebem um internacionalmente roteiro do professor e se enHerbert de Souza, Betinho (1935carregam da 1997) – Sociólogo elaboração do mineiro, articulou a programa, que Campanha Contra a dura cerca de Fome, em 1993, fundou a Ação Popular cinco minutos: e foi assessor do escolhem o Ministério da tema, produEducação no Governo zem músicas João Goulart. Lutou a de abertura e favor da reforma agrária e contra o de encerramilitarismo na América mento, pesLatina quisam as no-
tícias da semana, fazem entrevistas ao vivo e anunciam, nos comerciais, quitutes das mães que vendem doces e serviços dos pais desempregados. Na Escola Arlindo Caetano Filho, em Sapopemba (SP), assuntos de gente grande são temas de entrevistas. Patrícia, da 5a. série, pergunta a um colega o que ele acha das drogas. A resposta é imediata: “Sou contra porque, além de fazer mal à saúde, gera violência”, responde o aluno, filho de uma usuária de drogas. Problemas dessa natureza fazem de Sapopemba uma das regiões com maior índice de violência da cidade. Por isso, a Escola Arlindo Caetano foi escolhida para ser uma das pioneiras no projeto. Os resultados do educom.rádio refletem diretamente na qualidade educacional, segundo MatiasVieira, coordenador do Projeto Vida, ao qual o Educom.rádio é vinculado: “as crianças resgatam a auto-estima, se desinibem e aguçam a percepção dos problemas da comunidade, entre outros benefícios”, diz.
Fotos: Arquivo NCE/ECA/USP
Letícia Baeta, da Redação
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ESPORTE
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o ministro do Esporte, Agnelo Queiroz, convoca toda a sociedade a ajudar no combate contra a bandidagem no futebol e defende a maior participação do Ministério Público para controlar o que acontece nas entidades privadas que administram o esporte
ENTREVISTA
Sociedade precisa ajudar no combate à bandidagem, afirma ministro João Alexandre Peschanski, da Redação
Lei Rouanet e Lei do Audiovisual – mecanismos legais que permitem projetos do governo receberem patrocínios de empresas e pessoas que poderão abater os benefícios concedidos no Imposto de Renda Estatuto de Defesa do Torcedor – conjunto de regras cujo objetivo é oferecer mais direitos para as pessoas que vão a estádios Medida Provisória 79 – proposta de lei do governo que estabelece normas para a atuação de clubes de futebol. Os principais pontos são as obrigações de responsabilidade administrativa e de transparência em negociações
BF – Com os cortes no orçamento, o que sobra para o Ministério do Esporte não é muito. O que dá para fazer com esse dinheiro? Quais são as prioridades de sua gestão? AQ – Atualmente, mantemos 92 mil crianças nos programas de inclusão por meio do esporte. Com as parcerias que estamos acertando, deveremos dobrar
Tasso Marcelo/AE
Agnelo Queiroz é ministro do Esporte. Médico de formação, foi o autor do texto do projeto de lei que instituiu a Bolsa-Atleta, benefício mensal para esportistas de idade escolar até atletas de nível olímpico.
esse número nos próximos meses. Mas o nosso desafio é colocar quatro milhões de pessoas praticando esporte até o final do governo.
BF – O corte no orçamento implica a necessidade de conseguir dinheiro de outras fontes, isto é, da iniciativa privada. Como vai ser isso? AQ – Pela adoção de leis de incentivo, como as adotadas pelo setor cultural. Grandes eventos da cultura são financiados com renúncia fiscal por meio da Lei Rouanet e do Audiovisual. BF – Em entrevista ao Brasil de Fato (edição 9), Plinio Arruda Sampaio declarou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisa dar um basta e fazer as mudanças que o povo espera. No campo do esporte, isso significa aumento no número das áreas de lazer e inclusão social. O senhor pretende dar esse basta? AQ – Na questão das áreas de lazer, o mais importante é utilizar as áreas já existentes. Há muitas quadras abandonadas e que, com um simples reparo, podem voltar a ser usadas pela comunidade. Onde não existe nenhum equipamento, a construção se torna urgente, principalmente em áreas de grande densidade populacional e com risco social. Fazendo isso estaremos promovendo a inclusão e reduzindo o poder de cooptação do tráfico de drogas e da criminalidade.
BF – O presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, que possivelmente irá se reeleger em julho, é apontado como um coronel do futebol, acusado vários tipos de arbitrariedades. Qual é sua relação com ele? AQ – Não tenho nenhum tipo de relação pessoal com o presidente da CBF. Na condição de ministro do Esporte, não posso me furtar de tratar de temas ligados ao futebol quando isso se tornar necessário. BF – Apesar de destinar parte de seus recursos para a CBF, o ministério tem pouca influência nessa entidade que dirige o futebol no Brasil. O senhor pretende mudar a relação do Estado com a CBF? AQ – Para esclarecer, a CBF, do ponto vista jurídico, é uma entidade privada e não recebe um centavo do Ministério do Esporte. Mas estamos trabalhando para que ela, como outras entidades, trabalhem visando o interesse do esporte. Por isso, dois importantes instrumentos legais foram aprovados recentemente. São o Estatuto do Torcedor e a Medida Provisória 79. Com eles é possível o Estado ter maior controle sobre as entidades que dirigem o futebol brasileiro. Clubes, federações e confederações têm agora responsabilidades administrativas mais cla-
■ Reunião entre o Conselho Técnico da CBF e os representantes dos clubes, na sede da entidade, para discutir as regras do Campeonato Brasileiro ras e estão mais vulneráveis às ações do Ministério Público.
BF – Em federações e clubes, o futebol brasileiro é guiado por pessoas que geralmente atuam como verdadeiros bandidos. Quais são as propostas do senhor para moralizar a estrutura do futebol? AQ – Aprimorar os mecanismos legais. Quem não estiver dentro da lei não sobreviverá a uma estrutura que visa modernizar o esporte brasileiro.
BF – Lula falou em abrir a caixa-preta do Judiciário. O senhor pensa em abrir a caixa-preta do futebol? AQ – Abrir a caixa-preta do futebol é uma atribuição de toda a sociedade. Dos jornalistas, do Judiciário, dos conselhos deliberativos dos clubes e das federações, do Ministério Público e do executivo. Se cada um fizer o que está ao alcance legal e institucional, conseguiremos transformar o futebol brasileiro em um produto de primeira qualidade, tanto para consumo interno como para exportação.
Victor Soares/ABr
Brasil de Fato – Nesses primeiros meses de governo, o senhor tem realizado o que desejava na área dos esportes? Agnelo Queiroz – Não posso negar que há dificuldades. Mas a ampliação do número de pessoas praticando esportes depende de um esforço da sociedade no sentido de democratizar os espaços. Assim, clubes sociais, unidades militares e outras instituições têm aberto suas portas para a comunidade em apoio às ações do Ministério do Esporte. Esse governo acredita no esporte como instrumento de política social e de afirmação cultural, o que não acontecia antes.
Quem é
Elza Fiuza/ABr
ministro do Esporte, Agnelo Queiroz, pretende realizar uma verdadeira cruzada contra a bandidagem no futebol. Para isso, convoca todos os setores comprometidos com o esporte no Brasil. Apesar de seu orçamento de 2003 ter sido cortado em 88,3% (de R$ 369,6 milhões para R$ 43,1 milhões), Queiroz acredita que terá como fazer do esporte um instrumento de inclusão social. Sua principal meta é democratizar o acesso a locais públicos de práticas esportivas.
■ Queiroz concede entrevista coletiva em 1o de maio
A exclusividade de transmissão e o fim do futebol
BRASIL DE FATO De 15 a 21 de maio de 2003
Juarez Soares, de São Paulo (SP)
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tualmente no Brasil joga-se três, ou melhor, quatro campeonatos. O campeonato da primeira divisão, ou série A, o da segunda divisão, ou série B, a Copa do Brasil e a Taça Libertadores da América. É tanta competição ao mesmo tempo que é provável que uma equipe esteja mal em um torneio e, em outro, bem classificada. O torcedor às vezes fica perdido, desnorteado, sem saber como acompanhar o seu time preferido e haja dinheiro para ir ao campo de futebol. É impossível acompanhar todos os jogos do time do coração. Normalmente o torcedor escolhe um jogo e aí aplica o seu rico dinheirinho. Foi assim no encontro do Corin-
thians contra o River Plate pela Libertadores. A torcida economizou na partida do Timão contra o Figueirense para gastar no enfrentamento contra os gringos. Ainda há outro fator a considerar: o campeonato da segunda divisão vai de mal a pior, caindo pelas beiradas. Bom seria se no nosso país que tem 150 mil torcedores, todos, ou quase todos, pudessem ver os jogos pela televisão. Ah! a televisão. Aqui começa outro drama, o da exclusividade. Da espetacular população brasileira, só 5 famílias são donas dos canais de alcance nacional: a família Marinho (TV Globo), o Sílvio Santos (SBT), a Igreja Universal (TV Record), a Bandeirantes (os irmãos Saad) e a Rede TV (dois sócios de nome Amilcar e Marcelo). Sobre essas redes de te-
levisão, a Globo sobrevoa há mais de trinta anos. Essa rede detém a exclusividade de todo o futebol brasileiro. Foi ela que fez o atual calendário, o regulamento, estabeleceu dias e horários, fez os campeonatos, deitou e rolou. A Confederação Brasileira de Futebol obedeceu e cumpriu as ordens e exigências da emissora com repugnante subserviência. As demais redes concorrentes jamais reuniram condições financeiras administrativas e de negociações para estabelecer pelo menos uma tentativa de concorrência. A última heróica rebelião foi criada pela Federação Paulista de Futebol que vendeu os direitos de transmissão para o SBT. Bastou o anúncio do negócio para que a Globo, que já tinha desisitido dos direitos, arrumasse
um verdadeiro inferno na vida do futebol de São Paulo. Originou-se então uma briga jurídica que interferiu nos dias e horários de transmissão que quase levou o torcedor de São Paulo à loucura. Por interferência direta da Globo, o calendário do Paulistão foi reduzido a doze datas. Ficou provado que aquilo que a emissora carioca não pode ter, ninguém tem. Na batalha jurídica, essa televisão é imbatível. Ela humilha e tripudia o poder judiciário e tem mais: é sempre vitoriosa. Interessante que, no momento em que se leva tanta fé no governo federal, e que tanta lei sobre futebol é votada, ninguém tem a coragem de tratar desse assunto. Dirão os bobalhões de plantão que o governo não pode interferir na exclusividade do futebol.
Claro que pode. Se tiver peito, vontade política e capacidade, o governo pode tudo. Pode ir muito além dos jogos de futebol e fim de semana na Granja do Torto. A exclusividade das transmissões liquida, ou quase, com a classe dos jornalistas esportivos. Restringe o campo de trabalho, principalmente de uma emissora como a Globo, que emprega ex-jogadores e ex-árbitros nas vagas que por lei pertencem a jornalistas. Além disso, o país é submetido a um só tipo de opinião, até nos jogos da seleção brasileira. Opiniões tendenciosas e oportunistas. A exclusividade é um tipo de ditadura imposta pela força política e financeira. Resta saber se os políticos estão de acordo com esse tipo de ditadura. Pelo jeito, estão.