BRASILDEFATO Ano I ■ Número 22 ■ São Paulo ■ De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
Circulação Nacional
R$ 2,00
Robson Fernandes/AE
Novas mobilizações aumentam a pressão social Ao completar a terceira semana de greve contra a reforma da Previdência proposta pelo governo, os servidores públicos federais convocaram, para 6 de agosto, a realização de uma marcha em Brasília. Os grevistas mantêm a pressão contra a reforma. Até o dia 29 de julho, a paralisação contava com a adesão de cerca de 544 mil (68%) dos 800 mil servidores. Pág. 5 Sem-teto – No dia 28, mais de 3 mil famílias do acampamento Santo Dias, em São Bernardo do Campo (SP), impuseram uma pequena derrota àVolkswagen: a Justiça suspendeu a reintegração de posse da área e garantiu a sua permanência momentânea, apesar das ameaças do governador Geraldo Alckmin. Pág. 4
Sem-teto, dia 28 em São Bernardo do Campo: prefeito não quis negociar
Mídia fabrica a guerra contra o MST
Sem-terra – Cinco mil famílias de pequenos agricultores realizaram encontros, de 22 a 25 de julho, em quatro acampamentos temporários em Erechim, Canguçu, Palmeira das Missões e Santa Cruz do Sul (RS), com o objetivo de apoiar a marcha dos sem-terra rumo a São Gabriel. Pág. 6 Atingidos por barragens – Cerca de 500 famílias ocuparam, no dia 29, o canteiro de obras da usina hidrelétrica de Campos Novos (SC), que desalojará mais de 600 famílias e pertencente à Enercan (consórcio dos grupos Votorantim,Camargo Corrêa e Bradesco). Pág. 6
A grande imprensa promove nova campanha de calúnias e difamações contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Desta vez, alega que João Pedro Stedile incita à guerra no campo, com base em afirmações feitas pelo coordenador nacional do MST, no dia 23, em Canguçu (RS), mas tiradas do contexto e deturpadas pelo jornal gaúcho Zero Hora. Várias organizações manifestaram sua solidariedade ao MST, incluindo os mais de 700 representantes de 31 países participantes da conferência “Cristianismo na América Latina e no Caribe: trajetórias, diagnósticos e perspectivas”, realizada de 28 de julho a 1º de agosto, em São Paulo (SP) e o Conselho Nacional de Igrejas dos Estados Unidos da América (National Council of the Churches). Pág. 3
Alca – A Campanha Continental contra a Alca anuncia o fortalecimento das mobilizações populares. O governo dos Estados Unidos aumenta a pressão para os países da América Latina assinarem o acordo. Pág. 9
Olívio Dutra defende ação dos movimentos sociais
Presidente da Funai denuncia sucateamento
As ocupações promovidas pelos sem-teto revelam o grave problema social e econômico do país, afirma o ministro das Cidades, Olívio Dutra, ao Brasil de Fato. Segundo o ministro, o governo estimula o protagonismo dos movimentos. “A Constituição é muito clara sobre a reforma agrária e nosso governo está determinado a realizá-la e, com ela, a reforma urbana. O estatuto da cidade, lei desde 2001, garante que o espaço urbano deve ser um espaço de cidadania para todos”, afirma o ministro, que critica a postura “policialesca” do governador Geraldo Alckmin. Pág. 4
O presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Eduardo Aguiar Almeida, deverá deixar em breve o cargo, por pressões políticas, segundo ele mesmo afirma. Para Almeida, são evidentes os sinais de sucateamento da instituição. Pág. 7
Argentina aceita extraditar torturadores Pág. 10
CONJUNTURA – A queda na taxa de juros, anunciada pelo governo, não vai modificar o cenário da economia. O desemprego cresce entre os jovens com maior escolaridade e os estoques da indústria atingem o nível mais elevado em cinco anos. Pág. 8 IRAQUE – Estados Unidos violam acordos de direitos humanos e convenção de Genebra ao apresentar como troféu os corpos dos filhos de Sadam Hussein, mortos no Oriente Médio. Pág. 11 DEBATE – O deputado estadual Simão Pedro (PT-SP) e a professora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) Ana Fani Alessandri Carlos avaliam o problema da falta de moradia e o direito à cidade. Pág. 14 CULTURA – Museu das Artes Gráficas de São Paulo (MAG) vai ser reaberto com mostra itinerante durante o Salão de Humor de Piracicaba (SP). Para o diretor do museu, Gualberto Costa, apenas o compromisso dos artistas gráficos decidirá o futuro do museu. Págs. 16
BRASIL DE FATO De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
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E mais:
Márcio Baraldi
Delegado acusa PF de abafar o caso Banestado
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Fala, Zé! Ohi
NOSSA OPINIÃO
Extremista é a mídia Primeiro foi o caso do boné. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou um boné que lhe foi dado de presente por uma delegação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); foi o suficiente para que a mídia descrevesse o simpático gesto em justificativa daquilo que ela qualifica como “invasão”, “violência”, “subversão”. Agora, pinçaram algumas frases de João Pedro Stedile, membro da direção nacional do MST, pronunciadas em Canguçu (RS), para transformá-las em “declaração de guerra”, “prova de desrespeito às leis”, “radicalismo” ou mesmo de “terrorismo”. Basta ver o que dizem as frases de Stedile, quem criou o escândalo e quem dele se aproveita, para determinar a natureza da operação em curso. Stedile disse: “Eles (os latifundiários) são 27 mil; nós somos 23 milhões. Será que mil de nós não conseguem derrotar um deles?” Qualquer pessoa minimamente familiarizada com a história das lutas sociais e com os valores da esquerda mundial, desde o início do século 19 até hoje, sabe que uma das principais críticas que se faz ao sistema capitalista é o fato de privilegiar um punhado de magnatas, às custas de bilhões de seres humanos. Sabe também que a força da esquerda reside no número de excluídos e explorados, os únicos de fato interessados em implantar o socialismo. Frases como essas são faladas diariamente, em todo o mundo, por ativistas de esquerda. Aliás, já foram muitas vezes proferidas pelo próprio Stedile, sem que isso causasse escândalo. Qual o motivo do “barulho”, então? A resposta está na conjuntura, não nas frases. Quando os latifundiários notaram a disposição do governo de priorizar a reforma agrária, partiram para atitudes extremistas. Multiplicaram milícias e mobilizaram o seu partido, a grande mídia, para o contra-ataque. Quem criou o escândalo? O jornal gaúcho Zero Hora, do grupo RBS, da família Sirotsky. Trata-se do mesmo grupo que, nos meses anteriores às eleições ao Executivo estadual, fez uma campanha infame contra o então governador Olívio Dutra, repleta de calúnias, injúrias e difamações, e que sofre, como resultado, os efeitos de uma mobilização inédita no Brasil, cujo lema é Zero Fora – mais de 20 mil assinantes que, enojados, cancelaram suas subscrições. Quem ganha com o “barulho”? Os latifundiários, os que se opõem à reforma agrária e todos os setores interessados em derrotar as vozes de esquerda do governo Lula. Trata-se de uma manobra de intimidação, cujo endereço não é o MST (as “acusações” são muito ridículas), mas o Palácio do Planalto. É como se a mídia estivesse mandando um recado ao governo: “Estamos agora mostrando que, se vocês não se comportarem como queremos, temos um imenso poder de fogo. Cuidado!”. Se você, caro leitor, associa a presente situação ao golpe contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em 2002, arquitetado pela mídia, com a “pequena ajuda” da CIA (serviço secreto dos EUA), parabéns! Você entendeu bem o espírito da coisa. Mas os barões da mídia deveriam se lembrar que o golpe na Venezuela fracassou, exatamente porque 23 milhões são infinitamente muito mais fortes do que 27 mil...
BRASILDEFATO CONSELHO POLÍTICO: Achille Lollo ■ Ari Alberti ■ Ariovaldo Umbelino ■ Assunção Ernandes ■ Aton Fon Filho ■ Augusto Boal ■ Cácia Cortez ■ Carlos Marés ■ Carlos Nelson Coutinho ■ Celso Membrides Sávio ■ Claus Germer ■ Dom Demétrio Valentini ■ Dom Mauro Morelli ■ Dom Tomás Balduíno ■ Edmilson Costa ■ Elena Vettorazzo ■ Emir Sader ■ Egon Krakhecke ■ Erick Schunig Fernandes ■ Fábio de Barros Pereira ■ Fernando Altemeyer ■ Fernando Morais ■ Francisco de Oliveira ■ Frederico Santana Rick ■ Frei Sérgio Gorgen ■ Horácio Martins ■ Ivan Valente ■ Jasper Lopes Bastos ■ ■ João Alfredo ■ João Capibaribe ■ João José Reis ■ João José Sady ■ João Pedro Stedile ■ Laurindo Lalo Leal Filho ■ Leandro Konder ■ Luís Alberto ■ Luís Arnaldo ■ Luís Carlos Guedes Pinto ■ Luís Fernandes ■ Luis Gonzaga (Gegê) ■ Marcelo Goulart ■ Marcos Arruda ■ Maria Dirlene Marques ■ Mário Augusto Jakobskind ■ Mário Maestri ■ Nalú Faria ■ Nilo Batista ■ Oscar Niemeyer ■ Pastor Werner Fuchs ■ Pedro Ivo ■ Raul Pont ■ Reinaldo Gonçalves ■ Renato Tapajós ■ Ricardo Antunes ■ Ricardo Rezende Figueira ■ Roberto Romano ■ Rodolfo Salm ■ Rosângela Ribeiro Gil ■ Sebastião Salgado ■ Sérgio Barbosa de Almeida ■ Sérgio Carvalho ■ Sérgio Haddad ■ Tatau Godinho ■ Tiago Rodrigo Dória ■ Uriel Villas Boas ■ Valério Arcary ■ Valter Uzzo ■ Vito Gianotti ■ Vladimir Araújo ■ Vladimir Sacheta ■ Zilda Cosme Ferreira ■ Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores ■
BRASIL DE FATO De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
CONSELHO EDITORIAL: ■ Alípio Freire ■ César Benjamim ■ César Sanson ■ Hamilton Octávio de Souza ■ Kenarik Boujikian Felippe ■ Luiz Antonio Magalhães ■ Luiz Eduardo Greenhalgh ■ Luiz Bassegio ■ Maria Luísa Mendonça ■ Milton Viário ■ Neuri Rosseto ■ Plínio de Arruda Sampaio Jr. ■ Ricardo Gebrim
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■ Editor-chefe: José Arbex Jr. ■ Editor-assistente: Mustafa Yazbek ■ Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Marilene Felinto, Nilton Viana, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu ■ Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino ■ Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Javelberg, Ricardo Teles ■ Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, Natália Forcat, Nathan ■ Projeto gráfico e diagramação: Wladimir Senise ■ Tratamento de imagem: Maurício Valente Senise ■ Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho ■ Jornalista responsável: José Arbex Jr. Mtb 14.779 Administração: Silvio Sampaio Secretaria de redação: Tatiana Merlino Assistentes de redação: Letícia Baeta, Maíra Kubík Mano e Tatiana Azevedo Sistemas: Sérgio Moreira DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA PARA TODO O Programação: André de Castro Zorzo B RASIL EM BANCAS DE JORNAIS E REVISTAS Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 FERNANDO CHINAGLIA Campos Elíseos – CEP 01218-010 RUA TEODORO DA SILVA, 907 PABX (11) 2131-0800 – São Paulo/SP TEL.: (21) 3875-7766 redacao@brasildefato.com.br RIO DE JANEIRO - RJ Gráfica: FolhaGráfica
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Cartas de leitores SAUDAÇÕES Meus sinceros votos que esse jornal continue por muito tempo. Realmente estávamos precisando de um órgão informativo desse porte. O importante é que a nova geração tome conhecimento de suas matérias. O Brasil de Fato me faz lembrar o combativo jornal dirigido por Osvaldo Costa, O Semanário, que contava com valorosos patriotas. A linha de conduta do jornal está perfeita, os artigos e as entrevistas estão condizentes com nossa realidade. A crítica ao governo atual é importante, mas, com fundamentos e sem atropelos. Aldo D´Hortas Prado, Simão Dias (SE) Parabéns pela iniciativa de lançar este jornal. Matérias como as de Plínio Arruda Sampaio e Hamilton Octavio de Souza (na edição de número 20) são necessárias à formação da consciência de nossa sociedade. Homero Mattos Jr. São Paulo (SP).
CRÍTICAS Tenho a assinatura anual do jornal porém tenho algumas reclamações a fazer. Faz quatro capas que vejo “...Lula; Lula...”, ou seja, um pouco repetitiva; o jornal está parecendo inteiramente político, pouco se fala de cultura e nunca saiu uma capa falando de outra coisa. A manchete da capa da edição sobre “Lula aceita Alca em 2005” entra em contradição com a matéria da edição 19, que diz que isso foi coisa inventada pela mídia. Pareceu-me comprada por vocês a informação da mídia burguesa. E matérias de outros estados por que saem tão poucas? É isso, adoro as notas nas matérias que nos auxiliam a entender o texto. O tamanho do jornal: não daria para fazer estilo tablóide, que fica mais fácil para ler e abrir em uma praça pública? Thimila Soares, São Paulo (SP) REFORMA AGRÁRIA Gostaria de parabenizar o professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho por seu trabalho na Procuradoria Geral do Incra e, ao mesmo
tempo, repudiar textos da Folha de S. Paulo nas edições de 13 e 14 de julho. Enquanto Souza Filho, um dos maiores conhecedores de direito agrário do Brasil, elabora parecer emblemático em relação à legislação antiinvasão do governo FHC, abordando aspectos constitucionais sobre o tema, a Folha, num total desconhecimento da aplicação de princípios constitucionais no Direito, diz que o “Incra ensina a driblar lei contra invasão”, quando o que está sendo feito é uma leitura conforme a Constituição. O editorial “A lei do Incra” (14/7) ainda aduz: “É inadmissível, numa situação como essa, o governo, que prometera promover uma reforma agrária pacífica, ocultar-se atrás de pareceres comprometidos com a desordem para deixar de cumprir a lei”. É triste que um jornal de circulação nacional aponte como “um parecer comprometido com a desordem” documento que apenas aponta uma interpretação. Tarso Cabral Violin, Instituto de Ação Social do Paraná
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REFORMA AGRÁRIA
NACIONAL
A grande imprensa distorceu e descontextualizou declarações do líder do MST, João Pedro Stedile, para pintar um clima de baderna e instabilidade no país; os movimentos sociais reagiram à manobra e se solidarizaram com a luta dos trabalhadores rurais
indignação e a reação dos movimentos populares e sociais contra a falta de ética da grande imprensa foi tão grande quanto o espalhafato que essa mesma mídia promoveu, ao descontextualizar e distorcer a fala do líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Tera (MST), João Pedro Stedile, dia 23, em Canguçu, no Rio Grande do Sul (veja o texto abaixo). A diferença é que, para essas manifestações de esclarecimento dos fatos e de apoio à luta dos trabalhadores rurais, os veículos de comunicação não concederam o mesmo destaque.Assim como não abriram tanto espaço, no mês passado, para condenar o panfleto apócrifo que incitava a população da cidade de São Gabriel (RS) a envenenar a água dos agricultores e a despejar gasolina sobre o acampamento, enquanto os semterra estivessem dormindo. Entre os vários documentos de solidariedade a Stedile, uma nota oficial da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) esclarece que as declarações do líder dos sem-terra apenas reforçaram o que os movimentos populares e sindicais vêm afirmando há muito tempo: “A força dos trabalhadores está no seu número. E esta força deve ser utilizada para alterar a realidade em
que vive hoje o povo”. A nota diz ainda que “as elites latifundiárias de nosso país, organizadas em suas entidades de classe e apoiadas por setores da imprensa nacional, diante do crescimento das organizações sociais do campo e de suas mobilizações, buscam de toda forma criar um clima de instabilidade social e influenciar a opinião pública, para que o governo adote medidas punitivas e coercitivas contra os movimentos dos trabalhadores e para impedir que a reforma agrária se concretize”. O jurista Jacques Alfonsin, coordenador da organização não-governamental Acesso - Cidadania e Direitos Humanos, par ticipou do encontro de Canguçu e caracteriza de “absolutamente sem fundamento” as acusações feitas contra Stedile. Para Alfonsin, o “estardalhaço” tem como objetivo “desviar a atenção do povo de dois fatos muito mais significativos: a retomada vigorosa dos projetos da reforma agrária brasileira, historicamente protelados, e a marcha dos sem–terra gaúchos rumo a São Gabriel, onde fazendas que compõe um latifúndio de extensão superior a muitos dos municípios do Estado foi declarado de interesse social para fins de desapropriação”. Ele também explica que a frase foi colocada dentro de um contexto fortemente motivador dos participantes da assembléia, “convidando-os a fazer uma sim-
Stedile pede que se cumpra a Constituição ia 23 de julho, o líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, participou de um acampamento no município de Canguçu (RS). Como parte das atividades de formação, Stedile fez uma palestra sobre o latifúndio, ressaltando que “a existência e a manutenção dessa estrutura fundiária gerou uma sociedade extremamente desigual, em que, de um lado, temos 26 mil grandes latifundiários que possuem áreas superiores a 2 mil hectares, em geral improdutivas; e, de outro, 4,5 milhões de famílias de sem-terra que vivem no campo passando necessidades”. Stedile disse, ainda, que o papel da reforma agrária é justamente “eliminar o latifúndio improdutivo” e que, em cada latifúndio desapropriado,“caberia o assentamento de mil trabalhadores”. Um jornalista do jornal gaúcho Zero Hora gravou as palestras e, fiel à linha editorial de ataque sistemático aos movimento sociais, descontextualizou e manipulou as frases de Stedile, desencadeando uma série de distorções da informação, repetidas e ampliadas por vários veículos da grande imprensa. Em nota à população brasileira, o MST esclarece que “a concentração dos meios de comunicação transformou a mídia num verdadeiro partido ideológico da elite brasileira, em defesa permanente apenas de seus privilégios. Querem agora, com essa
orquestração, transformar o governo Lula em refém dos seus interesses, impedindo a reforma agrária e a mudança do modelo econômico. (...) Querem jogar os movimentos sociais contra o governo Lula, e vice-versa, exatamente para inibir a luta contra o modelo neoliberal. Para alcançar seus objetivos, a mídia fica alimentando factóides, insinuando um clima de instabilidade política e social no país. Fez isso com as ocupações dos latifúndios, com a ocupação dos sem-teto em São Bernardo do Campo, fez isso quando o Lula usou o boné do MST e fez agora com as declarações de João Pedro em Canguçu”. Os dirigentes do movimento informam que “não é o MST que exige a eliminação do latifúndio” e que “a proposição está na Constituição Federal, quando determina que cabe ao Estado desapropriar todas as grandes propriedades improdutivas e distribuí-las para a reforma agrária”. Salientando que “as tentativas de dar às palavras de Stedile conotação violenta partem precisamente dos setores minoritários, mais atrasados, mais violentos e mais desacreditados em nossa sociedade”, a nota do MST lembra que “esses setores já assassinaram muitas lideranças dos trabalhadores rurais, como Chico Mendes, Padre Josimo, Canutos, Dorcelina Folador. Somente neste ano já assassinaram mais de 30 trabalhadores em áreas de conflitos de terra”. (AL)
ples comparação entre o número crescente dos brasileiros sem terra e sem comida, com a dos latifundiários com muita terra e indiferentes às necessidades do país”. Alfonsin relata que, com uma linguagem visivelmente pedagóg ica e metafór ica, Stedile animava a assembléia a “se conscientizar de que a sua grande superioridade numérica deveria refletir-se em poder de organização e luta política”. A exagerada repercussão da palestra de Canguçu na imprensa,a que se somou um pedido de prisão de Stedile por incitamento à violência, tentou mostrar à opinião pública e ao governo um cenário de desordem provocado pelos movimentos sociais. Mas em artigo publicado dia 24, no portal do PT, o presidente do partido, José Genoíno, indicou que não é esse o quadro: “O Brasil está vivendo, nas últimas semanas, uma fase de intensificação da pressão social, principalmente por parte do movimento dos sem-terra e do movimento por moradia. Movimentos dessa natureza foram ou são naturais em qualquer país democrático. Portanto, não há nenhum motivo para a disseminação de paranóia ou do medo de descontrole social do país. De modo geral, medos e paranóias desse tipo sempre serviram aos interesses conservadores que, ao longo da história do Brasil,trataram as questões sociais como questões de polícia e não como demandas legítimas de grupos na luta por direitos”.
■ Marcha de sem-terra a São Gabriel, no Rio Grande do Sul
Religiosos declaram apoio ao líder dos sem-terra anifestos em apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram assinados por personalidades de igrejas cristãs participantes da Conferência “Cristianismo na América Latina e no Caribe: trajetórias, diagnósticos e perspectivas”. O encontro, realizado de 28 de julho a 1º de agosto, em São Paulo (SP), reuniu mais de 700 representantes de 31 países para discutir a responsabilidade do cristianismo nas transformações sociais.Veja, abaixo, as íntegras dos documentos.
Nota à imprensa Nós, bispos, pastores, teólogos e teólogas de várias Igrejas Cristãs, comprometidos com a vida de todos os seres humanos, denunciamos esta tentativa de atribuir às vítimas o crime contra elas cometido. Em um Brasil, campeão mundial de desigualdades sociais e de concentração de terra e renda, fica parecendo que a violência matriz e provocadora dos distúrbios sociais seja feita pelos sem-terra e semteto, ao exigir da sociedade aquilo para a qual ela foi organizada: garantir o mínimo dos direitos humanos a todo o cidadão: terra, pão, trabalho e dignidade. Em nome de Deus, fonte de Vida e Paz, reafirmamos que o crime fundamental contra a fraternidade humana é o latifúndio, responsável pela fome e pela morte de tantos seres humanos. A Terra é dom de Deus para todos. Sobre ela pesa uma hipoteca social. Que Deus abençoe e fortaleça a caminhada dos pobres da Terra. Jesus está com vocês. Ele disse: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância”. (Jô 10,10) Assinam: dom Pedro Casaldáliga - bispo prelado de São Félix do Araguaia (MT); dom Tomás Balduino - bispo emérito de Goiás (GO), presidente da Comissão Pastoral da Terra; dom Federico José Pagura - bispo emérito Metodista, Argentina e membro do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas; dom Demétrio Velentini - bispo de Jales (SP); dom Samuel Ruiz - bispo emérito de San Cristóbal de las Casas (México); dom Hermenegildo
Ramírez - bispo de San Cristóbal de las Casas (México); dom Heriberto Heremes - bispo de Cristalândia (TO); Pastor Rolf Schuneman - pastor sinodal da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, São Paulo (SP); Ir mã Esperanza Morán - presidente da Confederação Latino-americana de Religiosos e Religiosas (Guatemala); Irmã Maris Bolzan - presidente da Conferência dos Religiosos do Brasil (Brasil); Marcelo Barros - monge beneditino e escritor, Goiás (GO); Pe. José Oscar Beozzo – Teólogo e Secretário Executivo Cesep, São Paulo (SP); Pe. Gustavo Gutierrez - teólogo e escritor (Peru); Paulo Fernando Carneiro de Andrade - presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter); Maria Helena Arrochellas Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade.
Carta aberta ao MST O Conselho Nacional de Igrejas dos Estados Unidos da América (National Council of the Churches) se congratula com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil por sua admirável atuação em prol da justiça no campo e da educação dos mais pobres no Brasil. No mundo inteiro, a caminhada do MST é sinal profético de um mundo mais justo e fraterno, parábola e esboço do Reino de Deus que Jesus Cristo veio nos trazer. Assinam: Reverendo Fred Morris, diretor de Relações com a América Latina; Dr. Antonios Kireopoulos – secretário geral associado para Assunots Internacionais e Paz.
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Áurea Lopes, da Redação
Leonardo Melgarejo
Sociedade repudia ataque da mídia à luta dos trabalhadores
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NACIONAL
Líder petista fala das necessidades de uma política preocupada com os milhões de sem-teto brasileiros; Justiça suspende liminar de reintegração de posse e garante permanência das famílias no terreno ocupado em 19 de julho e acampados festejam
ENTREVISTA
“Queremos combater as desigualdades” Claudia Jardim, da Redação
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BF – Enquanto os movimentos organizam as mobilizações, têm enfrentado do outro lado fortes repressões, seja dos governos locais ou dos latifundiários. Como controlar essa situação? Dutra – Reconhecemos os movimentos sociais legítimos, que têm história, pois são interlocutores do processo de execução das políticas. Nós (PT) somos originários dos movimentos sociais, mas não quer dizer que devemos ter unanimidade. No fundo a causa estrutural está nas desigualdades do país, e as cidades são a síntese dessa desigualdade. Em 23 e 27 outubro vamos realizar a Conferência Nacional das Cidades para eleger políticas públicas e estamos afirmando respeito aos movimentos sociais na formação de políticas e de controle público sobre o Estado. Nós respeitamos as diferenças mas queremos combater as desigualdades. BF – Qual sua avaliação sobre o pronunciamento do governador Geraldo Alckmin, insinuando que parlamentares do PT teriam incentivado as ocupações do MTST? Dutra – O movimento social é um amplo espaço de combinação de diferentes propostas e de disputa entre os partidos. Os partidos sempre disputaram influência dentro dos movimentos sociais, isso faz parte da sociedade democrática, portanto não cabe ao governador
identificar policialescamente movimentos e apoiadores. Ele deve trabalhar com sensibilidade e responsabilidade para formulação de propostas e não há mágicas. Para isso estamos realizando reformas como a previdenciária, a tributária e buscamos realizar a reforma agrária e a reorganização das cidades de forma diferente.
BF – Outro problema que acentua o acesso às moradias é o desemprego. O que fazer? Dutra – Isso evidentemente deve ser uma ação conjugada nas três esferas de governo: federal, estadual e municipal e também do
O ministro das Cidades, Olívio Dutra, nasceu em Bossoroca (RS) em 1941. Formado em Letras pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e especializado em língua inglesa, iniciou a vida política no movimento sindical durante a ditadura. Um dos fundadores do PT gaúcho, liderou a primeira greve de trabalhadores no Estado, desafiando o regime militar. Em 1987, foi eleito presidente nacional do PT e antes de compor o ministério do governo Lula, foi governador gaúcho, eleito em 1998.
setor privado. Os recursos públicos são escassos e por isso não devem ser desperdiçados com ações sobrepostas no vão da burocracia ou do simples aproveitamento para interesses privados. É importante aumentar os investimentos nas cidades, com a construção de novas moradias. O presidente anunciou em abril o investimento de R$5,3 bilhões para moradias de baixa renda com subsídio total, com recursos operados pela Caixa Econômica Federal e o ministério das Cidades já aplicou 32%, R$1,6 bilhão. Temos de superar as limitações impostas pelo governo anterior, pelos conselhos monetários internacionais e pelo
Banco Central, que impede o acesso aos recursos por parte dos entes públicos. É preciso ganhar autoridade nas negociações com o FMI. Há necessidade de mexer na dívida pública externa e interna sem prejuízos à estabilidade econômica.
BF – Como continuar a pagar os juros da dívida e ter recursos para destinar aos programas sociais? Dutra – Não há solução milagrosa e não pregamos isso. Não há porque estar temeroso de estarmos diante de uma crise social que pode desandar para um estado de descumprimento das leis. Isso é uma
pregação da direita e não de quem se preocupa com os problemas sociais. É fundamental trabalhar com a idéia de soberania do país na relação com as agências de financiamento externo, em particular o FMI. O que o presidente Lula tem feito em relação à política externa é importante para ganhar essa estatura de seriedade e de soberania, para na ocasião devida, na primeira que tivermos com o FMI, dizer que não queremos renegociar uma situação em que perduram cláusulas que impedem acesso a recursos da própria poupança do país para executar obras essenciais como saneamento básico, moradia digna e transportes. Para isso é preciso mudar.
MORADIA
Sem-teto vencem batalha contra Volks Jorge Pereira Filho, da Redação s mais de 3 mil famílias do acampamento Santo Dias, em São Bernardo do Campo, impuseram uma pequena derrota à transnacional alemãVolkswagen. No dia 28, o 1º Tribunal de Alçada Cível de São Paulo suspendeu a reintegração de posse da área e garantiu a permanência momentânea dos sem-teto no terreno. A notícia foi o desfecho de um dia tenso, marcado por mobilização popular, intransigência do poder público e descaso com o problema da moradia. No final, prevaleceu a vontade popular. A Polícia Militar já estava mobilizada para cumprir ordem de reintegração de posse, concedida à Volkswagen, no dia 22. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), defendia, na televisão, a ação policial e pedia para as famílias deixarem o local. As emissoras de rádio repetiam que o despejo poderia ocorrer a qualquer momento. SEM NEGOCIAÇÃO Pela manhã, uma reunião, no comando da polícia, havia mostrado que a transnacional não estava disposta a negociar. “Queríamos discutir propostas, como a de negociar a área por um custo social baixo. Pagaríamos o terreno com trabalho. Mas os advogados da Volks falaram que não negociavam com quem ‘invadiu o seu quintal’ e que queriam ver cumprida a ordem de despejo”, lembra Camila Alves, coordenadora estadual do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que participou da reunião. Para Camila, o governo estadual e a prefeitura de São Bernardo não queriam negociar. “O prefeito e o governador nem mandaram representantes para intermediar o encontro. Não é com violência po-
Gisele Zangueiro
Brasil de Fato – Qual sua avaliação sobre a ocupação realizada por mais de 3 mil famílias em São Bernardo do Campo e nos prédios da capital de São Paulo? Olívio Dutra – Essas ocupações não são geradas espontaneamente e não estão apenas em São Paulo. Isso revela que o grave problema social e econômico estrutural do país vem de longa data. Evidente que existe um clima de muita participação e o governo estimula o protagonismo dos movimentos e queremos que a cidadania seja exercida na sua plenitude e não ocasionalmente. Não podemos ter um país de cidadãos de primeira, segunda e terceira classe, então há um clima de muita participação e organização, principalmente por parte dos setores que nunca tiveram vez nem voz na execução de políticas e no acompanhamento da execução de projetos. O Estado de direito democrático é a nossa baliza, e não impede organização e mobilização. A Constituição é muito clara sobre a reforma agrária e nosso governo está determinado a realizá-la e com ela a reforma urbana. O estatuto da cidade, lei desde 2001, garante que o espaço urbano deve ser espaço de cidadania e de bens para todos e não de sofrimento como tem sido.
Quem é
José Cruz/ABR
s cerca de 4 mil famílias que ocuparam o terreno da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, SP, chocaram as elites, que observam as cidades e suas mazelas pelas janelas de suas coberturas ou pelas páginas dos jornais. O governador Geraldo Alckmin disse que os movimentos sociais são incentivados por políticos do PT e que o país “corre o risco de os movimentos continuarem se multiplicando sem uma repressão à altura”. Nesta entrevista, o ministro das Cidades, Olívio Dutra, reafirma o compromisso do governo Lula com os movimentos sociais, endossa a postura de estimular os que “nunca tiveram vez nem voz” e diz que o problema de moradia não deve ser tratado de forma “policialesca”, como sugere Alckmin.
licial que vamos resolver o problema dessas pessoas, que precisam de moradia”, afirmava. Nem a pressão de parlamentares, representantes da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que participaram do encontro, fez os advogados da transnacional recuarem. No final da reunião, a PM anunciou que ■ Sem-teto vizinhos de barraca no acampamento Santo Dias: promessa de ficar no terreno até conquista da moradia começava a preparar o despejo. Bernardo.A afirmação soou como metia Maria do Socorro, que tem No acampamento, o clima era um desaforo para Jorge Apareci40 anos e está desempregada. de expectativa.A reunião terminou do, nascido na cidade há 45 anos. Todo dia, o casal faz uma ronda e cerca de mil famílias partiram em No carro de som em frente à pela vizinhança à procura de servimarcha para a prefeitura de São prefeitura, o coordenador estadual ço. De manhã, Jorge Aparecido, peBernardo do Campo. Outro grudo MTST João Batista da Costa, o dreiro, visita construções.Volta para po ficou no terreno para garantir a Jota, criticava a postura do prefeito. o acampamento e, aí, Maria do Sosegurança. Maria Laura dos Santos “Há pessoas cadastradas há mais de corro sai atrás de emprego como e sua filha Gabriela, de 6 anos, ca20 anos em programas habitaciodiarista. “Tá muito difícil. Nós esminharam três horas.“É muita crunais. Viemos para cá justamente távamos com aluguel três meses eldade fazer isso com a gente. Eles porque o prefeito não apresentou atrasados. Deixamos a casa, espalhanão precisam do terreno. Isso aqui uma solução para o nosso problemos nossas coisas entre os parentes estava abandonado”, lamentava. Dema.Vamos acampar aqui, com lona e viemos para a ocupação. Não tesempregada há um ano, Maria mopreta, até o prefeito ser um pouco nho para onde voltar.Vou ficar até rava, com a irmã e suas duas filhas, democrático e aceitar negociar o fim”, contava Maria. em um barraco de madeira.“Estou com o povo”, avisava Jota. aqui desde o primeiro dia. Essa Até as 18 horas, o impasse perINTRANSIGÊNCIA menina aqui já perdeu dois dias de manecia. Um grupo já providenA marcha dos sem-teto cheaula. Não vai ser à toa”, dizia. ciava cobertores e lonas para improgou à prefeitura por volta das 13 Ao lado de Maria Laura, duvisar um acampamento. No apagar horas. O prefeito William Dib rante toda a marcha, estiveram seus das luzes do dia, uma ligação telefô(PSB), no entanto, não quis recenovos amigos, o casal Maria do nica a um dos coordenadores do ber uma comissão. Negou-se até Socorro de Jesus e Jorge ApareciMTST avisou que a Justiça havia susmesmo a receber uma carta de do de Freitas, vizinhos de barraca pendido a reintegração de posse. A reivindicações das famílias. “O no acampamento. No dia anterior, decisão foi anunciada no carro de município tem suas prioridades. depois de uma hora de fila, todos som. Os sem-teto explodiram em Essas pessoas têm de entrar na fila dividiram um prato da única refesta. Pulavam, gritavam, abraçavamdos programas habitacionais. O feição. “O acampamento é muito se.“Conseguimos! Conseguimos!”, problema dessas famílias deve ser sofrimento. Só tem um banheiro dizia Maria do Socorro, enquanto resolvido com a Volkswagen”, e uma torneira para todo mundo. abraçava sua vizinha de barraca. O isentava-se o prefeito, que tamQuem se obriga a passar por isso, sonho de conseguir uma moradia bém chegou a alegar que aqueles é porque precisa mesmo. Não vai digna continuava de pé. sem-teto não eram de São ser fácil. A gente vai resistir”, pro-
MOBILIZAÇÃO POPULAR
NACIONAL
Os servidores públicos estão programando uma marcha a Brasília para o dia 6 de agosto e contam com aumento da adesão à greve no reinício das aulas; em Nova Iguaçu (RJ) e Curitiba (PR), novas ocupações de sem-teto refletem o dramático quadro da falta de habitação, de emprego e de renda
Luís Brasilino, da Redação s servidores públicos federais em greve estão organizando uma marcha a Brasília, dia 6 de agosto, na qual esperam a presença de pelo menos 20 mil manifestantes. Como têm feito desde o início da paralisação, os grevistas continuam indo ao Congresso pedir aos deputados para não votar a Proposta de Emenda Constitucional nº 40 (PEC) que regulamenta a reforma. E tudo indica que greve não vai
parar de crescer. Segundo José Domingues de Godói Filho, vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), até o final de agosto é esperada a adesão de mais universidades. Com a volta às aulas, estão programadas assembléias para votar a paralisação. Até 29 de julho, aproximadamente 544 mil (68%) dos 800 mil servidores estavam parados. No início da mobilização, dia 8, eram 45% em greve. Ao final da primeira semana, o número passou para 50% e, na seguinte, para 58%.
Evelson de Freitas/AE
Servidores preparam marcha a Brasília
Professor vota pela greve, mas acredita em Lula tos de Leonardo Boff sobre a Teologia da Libertação, passou a enxergar a realidade com outros olhos. Eram tempos de ditadura e Laerte começou a participar de manifestações contrárias ao regime, como a missa ecumênica de sétimo dia de Vladimir Herzog – jornalista torturado e morto pela polícia política em 1975. Com a abertura política, filiou-se ao PT em 1982, partido ao qual pertence até hoje. Agora volta suas atenções para o sindicato. Além de participar das reuniões como filiado, o professor é o responsável pela montagem de um site na Internet que disponibiliza informações atualizadas sobre a paralisação ( w w w. c e f e t s p. b r / e d u / e s o / lutasindical). (LB)
No Rio, sem-teto sofrem repressão policial esde o dia 17 de maio, centenas de sem-teto ocuparam um terreno abandonado, há dezenas de anos, em Nova Iguaçu (RJ), e ergueram barracos. Sem mandado de reintegração de posse, e sem que o suposto proprietário, Paulo César, tenha apresentado qualquer documento, ele próprio comandou policiais-militares, seguranças e um sargento do Departamento de Polícia Ostensiva (DPO) de Campo Belo, conjunto habitacional vizinho, na derrubada e queima da maior parte dos 100 barracos. Restam acampadas 130 pessoas, ocupando 20 barracos. Em pouco tempo, os ocupantes cadastraram mais de 600 famílias interessadas em construir moradia no local. O terreno é vizinho a uma faixa de terra não edificável, por onde passam linhas de alta tensão e está abandonado há pelo menos 30 anos, segundo os moradores mais antigos do lugar. Outra parte do terreno se situa onde passava uma linha férrea, e é área devoluta. CONIVÊNCIA Os sem-teto querem tornar o terreno “uma área útil, que sirva de moradia, e não como cemitério clandestino”, denuncia Maurício Campos, militante do Centro de Cultura Proletária (CCP). Mas bastou a ocupação do terre-
no abandonado para surgirem “donos”. Como a imobiliária Brasil Central, com sede no Rio, que apareceu com documentos questionáveis e fez uma estranha proposta de dividir o terreno com os sem-teto. “Qual é o proprietário legal que, em vez de pedir reintegração de posse, propõe partilhar a área com os ocupantes?”, pergunta Campos. “A imobiliária começou a cercar o terreno e os sem-teto ainda têm de enfrentar as ameaças armadas de policiais. É inadmissível que o poder público e a grande imprensa continuem omissos e coniventes”, acrescenta. Os ocupantes foram à Cor-
Trabalhadores ocupam prédio do Banestado
regedoria Geral Unificada, órgão subordinado à Secretaria Estadual de Direitos Humanos que combate atitudes irregulares de policiais. A Corregedoria prometeu dar proteção, mas nada fez. Foram a delegacias, à Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, e ao Ministério Público. Ninguém tomou providências. No terreno, estão famílias acampadas que não têm sequer condições de se alimentar: desde o dia 7 de julho, os comandados de César queimaram tudo, até os fogões. Um sem-teto chamado Nena reconstruiu cinco vezes o próprio barraco.
cupar, resistir para morar. Esse é o lema do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) que, no dia 7 de junho, ocupou, em Curitiba (PR), o prédio do extinto Banco Banestado, o mesmo que é alvo de investigações em duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) por remessa ilegal de dólares para o exterior. Durante a madrugada, cerca de 40 famílias chegaram em dois ônibus, carregando alguns poucos per-
Um ano e meio após o despejo, imóvel do INSS continua sem uso Luiz Antonio dos Santos, do Rio de Janeiro (RJ) Há um ano e meio, as 50 famílias da Ocupação Revolta dos Malês, na Rua do Riachuelo, centro do Rio, foram despejadas por policiais federais, com ordem judicial.Três anos antes, quando a ocupação começou, os sem-teto limparam a área de morcegos e ratos, religaram luz e água, instalaram creche para 50 crianças, cooperativa de trabalho e diversas oficinas. O prédio pertence ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e estava sem uso há dez anos. O jornalista Luiz Clóvis Scarpino, hoje com 73 anos, viveu na ocupação. Conta que o despejo foi executado sem que os ocupantes pudessem retirar sequer seus pertences pessoais, inclusive o acervo fotográfico que ele constituiu ao longo de 50 anos. Após a desocupação, a Prefeitura do Rio prometeu casas para todos, mas, até agora, nem a metade das famílias teve a confirmação disso. O prédio continua sem uso.
tences e histórias semelhantes. Anselmo Schertner, membro da coordenação nacional do movimento, conta que 60% dos integrantes do movimento são mulheres, chefes de família.A maioria não consegue pagar os aluguéis, outros sofrem com o desemprego, e a regra é recorrer ao auxílio dos parentes. “São trabalhadores que sonham com a casa própria”, afirma Schertner. Enquanto os pais vivem sob a tensão do despejo, algumas crianças se divertem, brincando nos elevadores.
Bruno de Vizia, de Curitiba (PR)
■ Sem-teto são desalojados do Hotel Danúbio, no centro de São Paulo
DÉFICIT CRESCENTE O déficit habitacional no país, em 1995, era de 6,5 milhões de moradias, de acordo com a Fundação João Pinheiro, de Belo Horizonte. O coordenador do MLNM considera que o número pode ter dobrado. “Acredito que, hoje, o número esteja em 10 milhões. São quase 70 milhões de sem-teto. Só em Curitiba, 10% dos imóveis estão ociosos. Só nessa rua há mais quatro prédios desocupados” diz. Mesmo com a reintegração de posse já expedida, o movimento promete resistir à ação de despejo. Tanto que está para ser inaugurado, nas dependências do prédio, um bar, chamado Boca Bendita, um trocadilho com o nome do calçadão central de Curitiba, a Boca Maldita. No local, pretendem vender, além de lanches e bebidas, produtos beneficiados pelas cooperativas do MST e de outras organizações.
BRASIL DE FATO De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
Nestor Cozetti, do Rio de Janeiro (RJ)
■ No centro de São Paulo, no dia 25, manifestantes protestam contra a reforma da previdência; ao lado, o professor Laerte Moreira dos Santos defende a greve dos servidores públicos federais, mas ainda mantém esperanças no governo Lula
Anderson Barbosa
petista, mas ressalta que a única chance de dar certo é a intensificação dos movimentos sociais. Durante a gestão de Luíza Erundina na prefeitura de São Paulo (1988 a 1992), Laerte participou de diversas mobilizações, principalmente em habitação e transporte. Em visitas a favelas e coletivos, realizava um trabalho de conscientização política, explicando a todos a necessidade de lutar por seus direitos. “O PT de hoje está perdendo esse caráter, trocando a agitação social por uma política paternalista”. Laerte estudou até o nível superior (filosofia e teologia) em um seminário salesiano, definido por ele mesmo como um setor da Igreja Católica extremamente conservador.Ao conhecer os tex-
Luís Brasilino
O professor de filosofia Laerte Moreira dos Santos, do Ensino Médio do Centro Federal de Educação Tecnológica Teologia da (Cefet-SP) Libertação – Movimento teológico votou, no dia surgido no interior da 29, pela paraIgreja Católica, nos alisação de sua nos 60, inspirado no categoria, em Concílio Vaticano II, apoio às greque identifica no cristianismo um ves dos serviinstrumento de luta e dores públiinspiração religiosa cos federais dos oprimidos que exigem a retirada da reforma da previdência do Congresso. Professor do serviço público desde 1978, Laerte conta com um rendimento mensal que gira em torno de R$2.600,00. Ele ainda acredita no governo
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NACIONAL
Milhares de pequenos agricultores reúnem-se, no Rio Grande do Sul, para fortalecer a luta pela reforma agrária e apoiar a marcha dos sem-terra a São Gabriel; no Rio, assentados reclamam da falta de crédito; em Aracaju (SE), 15 mil lavradores, nas ruas, comemoram o dia do agricultor
RIO GRANDE DO SUL
Famílias reivindicam reforma agrária Eduardo Luiz Zen, de Porto Alegre (RS) ssas famílias gaúchas se encontraram de 22 a 25 de julho para fortalecer a luta pela reforma agrária no Estado e apoiar a marcha dos sem-terra rumo a São Gabriel.Em uma das ocupações, em Canguçu, os agricultores realizaram debates sobre a situação do
campo e os transgênicos. Em outro acampamento, em Palmeira das Missões, cerca de três mil pessoas se reuniram para discutir formas de luta e os próximos passos para conquistar a terra. Em Erechim, 1.200 trabalhadores rurais ocuparam no dia 25 a sede da empresa de fornecimento de energia do município, a RGE, para protestar contra aumentos abusivos das contas de
luz. Em seguida, rumaram para o centro da cidade, onde protestaram em frente ao Banco do Brasil, exigindo agilidade na liberação de crédito agrícola, e em frente ao fórum, onde entregaram um documento cobrando rigor do Judiciário na desapropriação de latifúndios improdutivos. Outro acampamento foi erguido em Santa Cruz do Sul, região de
produção de fumo, com propriedades de corporações do setor, como a Souza Cruz. Nos dias 22 e 24, pequenos agricultores ocuparam a sede do SindiFumo, o sindicato da indústria fumageira, como forma de pressionar pela desapropriação dos latifúndios mantidos pelas empresas e pelo assentamento dos produtores que não possuem terras. Essas mobilizações contaram com a participação de diversas
organizações que compõem a Via Campesina: a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Pequenos Ag r icultores (MPA), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Pastoral da Juventude Rural (PJR).
Carmem Pereira, enviada especial a São Sepé (RS) Enquanto ajeita um chimarrão no fogão improvisado da cozinha coletiva, Maria Tânia Ribeiro do Prado, 39 anos, dá um jeito de chamar alguns dos filhos que estão estudando em barracos da estrada de São Rafael, em São Sepé (na região central do Rio Grande do Sul). São aproximadamente 16h quando ela e seu marido, Adão Carloci do Prado, tentam reunir os nove filhos que os acompanham desde o início da Marcha contra o Latifúndio, que saiu de Pântano Grande, no dia 10 de junho. Com outros 800 sem-terra, os Ribeiro Prado se mobilizaram para fazer cumprir o decreto presidencial que liberou o complexo Southall, em São Gabriel, para a
reforma agrária. O sonho dos trabalhadores rurais tem batido de frente com a ira do proprietário das terras, Alfredo Southall, que se ampara em uma liminar concedida pela juíza Ellen Gracie, para frear o ato de desapropriação. De 20 a 21 de julho, dona Maria Tânia e seu Adão enfrentaram chuva e frio em um acampamento instalado na BR-392, a sete quilômetros do trevo de acesso a São Sepé, impedidos de passar por fazendeiros a cavalo, motorizados e de binóculos à mão, tentando monitorar a marcha. O bloqueio dos ruralistas só foi encerrado com a ação da Polícia Militar, na madrugada do dia 21. SÃO RAFAEL A partir do dia 22, os sem-terra continuaram a marcha e acampa-
ram em São Rafael. Junto com outras mulheres, dona Maria Tânia ajuda na cozinha da ocupação, além de trabalhar no setor de limpeza. Seus filhos merendam pão e bananas, enquanto estudam na escola itinerante montada no acampamento. O clima e a área de São Rafael agradam dona Maria Tânia e seu Adão, onde eles tentam recuperar energias para seguir adiante. O único problema, segundo eles, são os fazendeiros que montaram um acampamento a 500 metros dos barracos dos sem-terra. “De noite, a gente nem consegue dormir, eles ficam disparando rojão, e apavorando nossos filhos”, diz Maria Tânia. Mas, acrescenta, “isso não acaba com nosso sonho de criar nossas crianças, de ter onde morar, de ter onde plantar”.
RESISTÊNCIA
Débora Halberstadt
Chuva e fazendeiros não apagam sonho rumo a São Gabriel
■ Família Ribeiro Prado participa da marcha desde o início, em 10 de junho
RIO DE JANEIRO
Atingidos por barragens ocupam obras Agricultores avaliam Lula
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uinhentos atingidos por barragens ocuparam, na manhã do dia 29, o canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Campos Novos, localizada entre as cidades de Campos Novos e Celso Ramos, no meio-oeste de Santa Catarina. A usina em construção desalojará mais de 600 famílias, e pertence à Enercan, consórcio formado pelos grupos Votorantim, Camargo Correa e Banco Bradesco. Os agricultores reivindicam o reassentamento imediato das famílias e a liberação de crédito para a produção de alimentos. Segundo Evilázio Menegazzo, pequeno agricultor, liderança do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), os problemas trazidos pela barragem começaram assim que foi anunciada a construção. “Como as terras seriam alagadas, pararam os investimentos para as comunidades atingidas. A Enercan só negocia com o grupo dos ricos da região”, afirma. O MAB reivindica a intervenção imediata do Ministério de Minas e Energia. “O Ministério liberou esta obra, agora vai ter de se responsabilizar e solucionar os problemas causados por ela. A ocupação não tem dia para acabar”, afirma André Sartori, da coordenação do MAB. O MAB planeja aumentar a mobilização em breve, com a participação de atingidos pelas demais obras da região, como Barra Grande e Machadinho, além de agricultores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Pastorais Sociais, entre outros. DE NORTE A SUL Durante todo o dia 28, o canteiro de obras do açude Castanhão, da Andrade Gutierrez, em Fortaleza (CE), foi ocupado por cerca de 300 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, organizadas pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Os manifestantes reivindicam o reassentamento das famílias ainda não atendidas no programa de remanejamento da população rural que vai ser atingida pela barragem, e a implantação dos projetos de irrigação, agricultura, piscicultura e toda a infra-estrutura necessária aos moradores já transferidos e sem condições de se sustentarem nos novos locais de moradia. Segundo irmã Bernadete Neves, representante da sociedade civil no grupo multiparticipativo do Castanhão, ainda há 451 famílias à espera do reassentamento. Outras 133 aguardam a implantação do projeto de piscicultura e 424 os projetos de irrigação do complexo.“Apesar disso, a prioridade absoluta tem sido dada à barragem, deixando o problema social se agravando cada vez mais”, diz. Também no dia 28 centenas de atingidos pela barragem de Manso voltaram a ocupar a área do antigo canteiro de obras da usina. Os manifestantes, que representam 341 famílias assentadas, 68 indenizadas e ainda outras 653 que teriam sido excluídas pela Furnas Centrais Elétricas, cobram o cumprimento de acordo pela estatal. Em 3 de julho, com a presença de 2 mil atingidos, houve reu-
nião em Chapada dos Guimarães, quando a empresa se comprometeu a iniciar um cronograma de realocação e assentamento de todas a 1.062 famílias atingidas. O cumprimento da primeira promessa deveria começar em 30 dias. O da segunda, em 10.Todas seriam postas no papel em uma reunião inicialmente marcada para a semana seguinte, mas que acabou nunca acontecendo. O enchimento do reservatório da usina de Manso atingiu cerca de 20 comunidades a jusante da barragem. A estimativa é que seriam necessários 50 mil hectares para atender à reivindicação do movimento. “Não queremos cesta básica a vida inteira. Queremos uma terra produtiva”, diz Joaquim Neves, do MAB, que justificou a manifestação de maneira irônica. “Já que é para passar fome, que seja aqui em frente à usina”, afirma.
Rodrigo Brandão, do Rio de Janeiro (RJ) situação dos acampamentos e assentamentos no Estado do Rio de Janeiro, e no restante do país, é precária, especialmente em razão de falta de crédito e assistência técnica. E o ritmo das desapropriações no governo Luiz Inácio Lula da Silva ainda está muito longe do ideal. Esses foram os principais problemas levantados durante o 3º Encontro Estadual dos Assentados do Estado do Rio, realizado nos dias 26 e 27 de julho, no campus da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na baixada Fluminense. Mas as cerca de 170 pessoas, entre assentados, acampados, coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
SERGIPE
■ Uma caminhada com 15 mil sem-terra pela BR 253 marcou o 25 de julho – Dia do Trabalhador Rural, em Aracaju (SE). Os lavradores, que vieram de várias regiões do Estado, seguiram para o ginásio Constâncio Vieira, onde João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), falou sobre a necessidade de organização dos trabalhadores do campo e da cidade para a construção de um projeto popular para o Brasil, e da importância da reforma agrária para a efetivação deste projeto.
Milton Barreto
BRASIL DE FATO De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
Eduardo Luiz Zen, de Porto Alegre (RS)
(MST) e convidados não ouviram só más notícias.“Nos últimos meses, Lula vem assumindo mais abertamente o compromisso de completar o processo do que chamou de necessária,“massiva” e definitiva reforma agrária”, disse Delvek Matheus, da coordenação nacional do MST que, no início do mês, esteve reunido com representantes do governo em Brasília. No Rio, quase 4 mil famílias esperam por terra, e as poucas centenas assentadas ainda aguardam liberação de crédito e apoio técnico. Segundo o superintendente regional do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Carlos Corrêa, a meta de 2003 para o Estado é de 2,5 mil famílias assentadas. Mas ele reconhece as dificuldades. “O Incra hoje só tem verba para assentar e garantir crédito a cerca de 15 mil famílias, em todo o país”, afirma.
DESMONTE DO ESTADO
presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai),Eduardo Aguiar Almeida, está com os dias contados no cargo. E a decisão, que compete ao ministro da Justiça, MárcioThomaz Bastos, deve sair até o final do mês. A informação é do próprio Almeida, que não guarda segredos em relação à crise do órgão que dirige desde fevereiro. Seis meses de administração; um curto período de permanência que também acaba sendo a marca registrada da história do órgão indigenista oficial, contada através da sucessão de seus 30 presidentes ao longo de 35 anos. Almeida, portanto, é o 31º. Segundo fontes do Ministério da Justiça, ao qual a Funai está subordinada, entre os nomes mais citados para subtituí-lo estão o de Sérgio Servolo, chefe de gabinete do ministro da Justiça, e o de Fernando Dantas, procurador da Funai e ex-chefe de gabinete na gestão de Carlos Marés (novembro de 1999 a abril de 2000). Um dos formuladores do documento Compromisso com os Povos Indígenas, encampado no programa de governo do candidato Lula em 2002, Almeida se sente traído pelo “jogo de alianças” que
■ Índios Macuxi de Raposa Serra do Sol, em Roraima o Planalto estaria traçando, “em nome da governabilidade, mas com prejuízo aos direitos dos povos indígenas”. Segundo ele, “as alianças políticas são necessárias, mas elas não precisam pagar esse tipo de preço, de jeito nenhum”. MOEDA DE TROCA Exemplo desse jogo de interesses, segundo alguns analistas, seria a homologação da terra indígena Raposo Serra do Sol, em Roraima. A pressão política de parlamentares do Estado, e do próprio governador Flamarion Portela (recentemente filiado ao PT), teria sido, em parte, respon-
sável pela queda do presidente da Funai. “Há um fundo ideológico aí, com certeza, uma idéia perversa, resquício da colonização. Acham que o índio não deve ter terra, simplesmente porque não é gente, é empecilho ao desenvolvimento. O importante é o agronegócio. Isso é a própria legitimidade da exclusão”. Almeida admite serem evidentes os sinais de sucateamento do órgão: “Há mais de 15 anos não se faz concurso público para admissão de funcionários, 18 que não se fazia curso de formação. Além disso, há precariedade de recursos e insuficiência de pessoal.
ESCÂNDALO BANESTADO
CPI Mista do Banestado, que investiga a evasão de divisas por meio de contas CC5 abertas em agências bancárias de Foz do Iguaçu (PR), ouviu em 29 de julho o delegado da Polícia Federal José Francisco Castilho Neto. Ele chefiou o inquérito que apura os beneficiários de depósitos irregulares na agência do Banestado em Nova York. Castilho acusou a Polícia Federal e a procuradoria da República de tentar abafar o caso da evasão de divisas. Citou quatro grandes contas já rastreadas em Nova York – Les Pan,The Polo, Campare, Picon Rio – e disse que a cidade tornou-se uma lavanderia mundial de dinheiro. Castilho chefiou o inquérito da chamada Operação Macuco ainda em Foz do Iguaçu e, em sua opinião, a falta de foco retardou as investigações. Além disso, as equipes eram trocadas a cada três meses, deixando sem rumo os novos responsáveis pelas investigações. Outra reclamação do delegado é que, durante as investigações e as viagens a Nova York, não recebeu colaboração da Polícia Federal, que sequer o atendia. Por isso, no retorno da segunda viagem a Nova York, não entregou os documentos à polícia e pediu auxílio ao procurador da República, Luiz Francisco de Souza. O delegado foi afastado do caso e hoje trabalha com o senador Magno Malta, colaborando na CPI mista do Banestado.
Roosewelt Pinheiro/ABR
Delegado acusa polícia e procuradoria de abafar caso
■ O delegado da Polícia Federal, Júlio de Castilho, exibe relatório em depoimento no Senado, dia 29 Castilho disse que o mais importante agora é retornar a Nova York para completar o serviço deixado pela metade. Ele alertou as autoridades que, enquanto policiais federais estão depondo na CPI, bandidos de colarinho branco estão livres, viajando para o exterior e apagando provas. A senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) apresentou requerimentos para que o ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, o ex-prefeito Celso Pitta e sua exmulher, Nicéia Camargo, deponham na Comissão. No dia 24, Paulo Maluf foi detido e interrogado na França pela Polícia Fazendária, quando tentava sacar grande quantia de dinheiro em um banco em Paris. A CPMI já havia recebido informações do Ministério Público de São Paulo de que as contas movimentadas pelo ex-governador na Europa seriam abastecidas com recursos saídos do Brasil por
meio de contas CC-5 em Foz do Iguaçu (PR). A senadora também apresentou requerimento para ouvir o depoimento do ex-coordenador administrativo-financeiro da Mendes Júnior, Simeão Damasceno de Oliveira. O Ministério Público de São Paulo apura acusação de que Pitta e Maluf receberam propina da empreiteira Mendes Júnior durante a construção da avenida Água Espraiada, na zona Sul de São Paulo. Já o deputado EduardoValverde (PT-RO) sugeriu que a CPI Mista do Banestado ouça os bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que fizeram o levantamento das contas CC-5 antes de o governo ter conhecimento da evasão de dinheiro por esse meio. Os bispos apresentaram o resultado desse estudo ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que, segundo o deputado, não tomou nenhuma providência. (Agência Câmara)
Estou trabalhando com uma verba de R$ 104 milhões para este ano. E, para 2004, fizemos uma proposta de R$ 300 milhões”. Criada em dezembro de 1967, em substituição ao antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a Funai possui hoje cerca de 4.500 funcionários, que atuam em 45 administrações regionais, 14 núcleos de apoio, 10 postos de vigilância, 344 postos indígenas, distribuídos em 24 Estados (menos Piauí e Rio Grande do Norte, onde se alega não existirem povos indígenas), e o Museu do Índio, no Rio de Janeiro. SECRETARIA ESPECIAL Símbolo da crise por que passa o órgão foi o incêndio ocorrido, dia 18, na sede, em Brasília. Mais de 100 metros quadrados foram devorados pelo fogo e, de lá para cá, praticamente não há expediente. Há suspeitas de o incêndio ter sido criminoso. A Funai parou e, pelo que andam ventilando nos corredores do Ministério da Justiça, também estaria com os dias contados. Uma das hipóteses analisadas dentro do próprio Ministério é enterrar o órgão e criar uma espécie de Secretaria Especial para Assuntos Indígenas, com status ministerial, a exemplo da criada para os afro-descendentes. Isso resolve o problema? “Não, mas é um elemento importante que pode desencadear outros processos, como uma maior participação dos movimentos indígenas na definição da política indigenista, coisa que não vem acontecendo hoje, por exemplo”, analisa Egon Heck, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi),órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Na sua avaliação, a saída de Almeida se deve à falta de apoio dentro Funai e do governo em sua tentativa de reestruturar o órgão e definir uma política nova, baseada na autodeterminação e no protagonismo dos índios. CLIENTELISMO Jornalista,Almeida trocou nomes nas representações da Funai e tentou pôr fim à cultura clientelista, à qual estavam habituadas, inclusive, algumas lideranças indígenas. Além de retomar e atualizar os estudos sobre o órgão, procurou adotar um plano de cargos, carreira e salários, e a conquista de concursos públicos para reforço do quadro da Funai. “Até a questão da sede própria, de acordo com as necessidades de um novo órgão indigenista, e a renovação da frota de aeronaves, coisas que há anos se fala em fazer e nunca se chega aos ‘finalmentes’, nós estamos tocando no sentido de ‘encerrar novela’, fazer acontecer mesmo”,frisa Almeida. “O problema é que ele não conseguiu formar uma rede de aliados que desse sustentação”, avalia Heck. Há dias, Almeida vem sofrendo pressão para sair. Em meados de julho, o jornal O Globo especulou que ele seria substituído por Antonio Carlos Nantes de Oliveira, consultor do Senado, expeemedebista e ligado ao senador Romero Jucá (RR), que não goza da confiança das entidades e povos indígenas, sobretudo de Roraima. O ministro Bastos desmentiu a informação, após receber protestos de diversos setores. O Cimi repudiou a indicação, pois Oliveira “tem sido identificado com interesses de políticos e parlamenta-
res de Roraima, que, por sua vez, sempre tiveram postura agressivamente antiindígena”. Almeida recebeu apoio também da Frente Parlamentar Indigenista, que une deputados e senadores na defesa dos interesses dos povos indígenas. “Cremos que a saída do sr.Eduardo,neste momento, compromete todo o planejamento do órgão e o relacionamento governamental com diversas entidades indígenas e indigenistas. Qualquer outro nome sem trânsito junto à comunidade afim, fragilizará ainda mais o tênue relacionamento que há entre os povos indígenas e as entidades com o governo”, diz documento encaminhado ao ministro da Justiça. Integrante da Frente, a senadora Fátima Cleide (PT-RO) foi a campo:“Ocorre que ele (Almeida) simplesmente assumiu um organismo completamente esfacelado, sem condições materiais e técnicas, e com muitos vícios.” VIOLÊNCIA O fato é que não será a mudança de presidente que resultará em avanços na política indigenista. As lideranças indígenas dizem não aceitar indicação de presidente da Funai sem discussão com o movimento em torno de alguns encaminhamentos da política indigenista. “Como órgão, a Funai é um caso perdido”, avalia o líder Agnaldo Pataxó Hã-Hã-Hãe, de Pau Brasil, no Sul da Bahia. “É inoperante e, com sete meses de gover no, falta uma política indigenista de fato”, reclama. “Mudar presidente não resolve. O governo tem de colocar a questão indígena na agenda política, tem que dar prioridade.” Conseqüência desse descaso seria o aumento dos conflitos com fazendeiros, garimpeiros e mineradoras, e o elevado número de assassinatos. De janeiro até hoje, 18 índios perderam a vida, o dobro de 2002.“A tendência é piorar, e o nosso povo ser mais massacrado ainda, se o presidente Lula não sinalizar no sentido de criar um outro órgão que tenha ligação direta com ele, e criar uma política indigenista verdadeira”, diz o cacique. DOMINAÇÃO SECULAR Para quem defende que o órgão seja presidido por um índio, o líder pataxó responde: “Do jeito que está, não, pois é trazer para nossa responsabilidade um problema de 500 anos de dominação dos brancos”. Ex-presidente da Funai, entre setembro de 1995 e março de 1996, Márcio Santilli é da mesma opinião. “A estrutura da Funai envelheceu e as pendências deixadas pelo governo anterior só agravaram o quadro atual. Por isso, não é a troca de presidente que vai resolver, nem tampouco a criação de um novo órgão. O Estado como um todo deve assumir as questões indígenas”, diz o presidente do Instituto SócioAmbiental, que há mais de 20 anos atua junto ao movimento indígena. Para o Cimi, enquanto não se definir uma política indigenista que contemple os interesses dos povos indígenas, embasada nos direitos assegurados pela Constituição, mudando definitivamente a orientação integracionista herdada da ditadura militar, nada vale a substituição de cargos.
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André Vasconcelos
Ministro pode acabar com a Fundação Nacional do Índio
Paulo Pereira Lima, da Redação
Teresa Cristina Soares, Brasilia (DF)
NACIONAL
A falta de recursos, de pessoal, de uma política que levasse em conta a cultura e as necessidades indígenas deixaram a Fundação Nacional do Índio à míngua; provas de desvio de divisas para o exterior não são suficientes para condenar acusados do escândalo Banestado
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NACIONAL
Enquanto a equipe econômica faz de conta que alivia o arrocho, o desemprego cresce mais entre jovens que estudaram mais de 11 anos e que representam 60% dos novos desempregados; mas a agricultura familiar está criando empregos
CONJUNTURA
Os juros caem. Foi um ganho de tostões. Tente comprar uma esfiha... Lauro Jardim, de São Paulo (SP) ocê chegou a ver? Não? As taxas de juros caíram. Agora, aproveite a economia que você terá, e corra para comprar uma esfiha no Habib’s mais próximo. Pois é exatamente isso que você poderá levar para casa – caso você ainda tenha um emprego que lhe permita certos gastos extravagantes. Na semana passada, a cúpula do Banco Central (BC), que se reúne mensalmente no Comitê de Política Monetária (Copom), sob orientação da equipe econômica do Ministério da Fazenda, decidiu reduzir a taxa básica de juros da economia (utilizada pelo governo para remunerar os compradores de títulos públicos), de 26% para 24,5% ao ano. Depois de meses de sufoco asfixiante, enfim, algum refresco. Será mesmo? Confira as contas feitas pela Associação Nacional dos Executivos de Finanças,Administração e Contabilidade (Anefac), que entende do assunto. Na compra de uma geladeira, com preço ali na casa dos R$ 800,00 à vista, o valor da prestação, num financiamento de 12 meses, cairá de R$ 99,28 para R$ 98,74. Uma economia mensal de R$ 0,54. Quase uma esfiha por mês! PINGO N’ÁGUA Se você está com as finanças em frangalhos, e precisa tomar um empréstimo de R$ 500,00 numa
financeira, seu ganho será de R$ 0,38 por mês. Mas para quem já paga o crediário em parcelas mensais fixas, a dívida e as prestações continuarão do mesmo tamanho. Literalmente, a redução dos juros foi um “pingo n’água”. Até mesmo para as empresas. O custo do dinheiro (os juros) continuará tão pesado como antes. A Anefac estima que os juros médios cobrados pelo comércio recuarão de 118,5% ao ano para 116%. E os juros do cheque especial sairão de quase 238% para 234% também ao ano. Os juros médios cobrados das empresas pelos bancos, por sua vez, tendem a baixar de 82% para 80% – quase oito vezes acima taxa de inflação esperada para este ano. Em vez de mostrar uma disposição para rever a política de arro-
cho ao crédito adotada pelo governo, a decisão reforçou as suspeitas de que a equipe do BC e da Fazenda continuará a aliviar o aperto a conta-gotas, mantendo a economia estrangulada.
época. O imobilismo e a cegueira oficiais, agora, empurram a economia em direção a uma crise de graves conseqüências, cujo risco não será debelado às custas apenas de corte nas taxas de juros.
IMOBILISMO Pior ainda: a redução revela que os economistas de Brasília ignoram o que vem acontecendo no lado real da economia. A cautela se justificaria, segundo porta-vozes de Brasília, em função da necessidade de manter a inflação sob controle, eliminando qualquer risco de uma recaída inflacionária. Desde o início, no entanto, esse risco era muito baixo ou praticamente inexistente, como resultado da própr ia tendência de desaquecimento da economia, à
PRODUÇÃO ENCALHADA Os sinais estão aí mesmo. Na semana passada, um levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostrou que os estoques das empresas atingiram os níveis mais elevados em cinco anos, indicando que a produção encalhou por falta de consumidores. Mais precisamente, por falta de renda, arrochada pelo duplo efeito da queda dos salários e do avanço do desemprego. Note-se que a renda já vinha em queda desde o segundo semestre do ano pas-
Quase nada muda Compare as taxas de juros cobradas de pessoas físicas antes e depois da redução de 26,5% para 24% da taxa básica de juros (Selic) Linhas de crédito
Taxas anteriores (%) Por mês Por ano
Compras a prazo no comércio Cartão de crédito Cheque especial Crédito ao consumidor (bancos) Empréstimos pessoais (bancos) Empréstimos pessoais (financeiras) Taxas médias
Novas taxas (%) Por mês Por ano
Variação mensal (%)
6,73 10,67 9,79
118,49 237,57 206,03
6,63 10,57 9,69
116,05 233,92 203,39
- 1,49 - 0,94 - 1,02
4,01
60,29
3,91
58,45
- 2,49
6,57
114,59
6,47
112,19
- 1,52
12,93 8,45
330,24 164,70
12,83 8,35
325,69 161,79
- 0,77 - 1,18
Fonte: Anefac
sado, corroída pela própria disparada dos preços, naquele período, embalados pela alta do dólar, que encareceu alimentos como soja, trigo e derivados (cotados em dólar) e outros produtos que dependem de importações. Para desovar aqueles estoques, colocar sua produção no mercado, evitando prejuízos ainda maiores, as empresas teriam, forçosamente, de baixar preços. Os juros, portanto, poderiam ter uma queda mais pronunciada sem que isso pudesse ameaçar a política de controle da inflação. O crescimento dos estoques, além de indicar que a retração da atividade econômica foi mais acentuada do que se esperava, ocorre num momento de aumento do desemprego e nova queda dos salários. A taxa de desemprego medida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atingiu 13% em junho. Ou seja, havia 2,735 milhões de pessoas desocupadas nas seis maiores regiões metropolitanas do país. Em números absolutos, o total de desempregados aumentou 19,6% em relação a junho do ano passado, o que significa que mais 449 mil pessoas perderam ou não conseguiram emprego no período. Entretanto, a economia continuou criando empregos, tanto que 867 mil pessoas foram contratadas desde junho de 2002, elevando a população ocupada para 18,347 milhões (5% mais do que no final do primeiro semestre de 2002).
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problema é exatamente este: a economia já não consegue gerar vagas em número suficiente para abrigar todos que procuram emprego. E o número de pessoas que procuram emprego aumenta porque a renda caiu, e é preciso complementar o orçamento doméstico de alguma forma. Desde junho de 2002, os rendimentos recebidos pelos ocupados caíram 13,4%. Isso fez com que o total de pessoas em sub-ocupações (bicos e outros tipos de ocupação temporária) saltasse de 659 mil em junho do ano passado, para 991 mil no mês passado, ou 50,4% a mais. Não foi só isso. Houve um aumento de 47% no total de pessoas obrigadas a trabalhar por menos de um salário mínimo/ hora, em empregos precários. Já são 2,47 milhões de brasileiros nesta situação, representando 13,5% da população empregada, diante de 9,6% há um ano. O número de empregados sem carteira assinada aumentou 7,5%, somando 2,8 milhões. SEM PERSPECTIVAS Numa tendência que parece ter se agravado em junho, o desemprego começa a crescer mais rapidamente entre os muito jovens e entre aqueles com maior número de anos de estudo. O total de desempregados entre pessoas de 15 a 17 anos aumentou 6,2% em junho, em relação a maio, somando 256 mil desocupados. Um aumen-
to de 42% em comparação a junho do ano passado. Em números absolutos, não foi a faixa etária mais afetada pelas demissões, mas foi onde o desemprego mais cresceu, recentemente. Os mais atingidos, com 1,27 milhão de desocupados (praticamente o mesmo número de maio), têm entre 25 e 49 anos. Para esta faixa, houve um aumento de 13,3% no total de desempregados desde junho do ano passado. O contingente de desempregados com 50 anos ou mais se manteve em 190 mil pessoas, o mesmo de maio, que foi, porém, 38% maior do que o de junho de 2002. QUE FUTURO? E, grave, quando se examina o grau de instrução dos novos desempregados, verifica-se que 60% deles têm 11 ou mais anos de estudo. São 270 mil a mais do que em junho do ano passado (33% a mais), somando 1,1 milhão de pessoas que investiram em educação e, agora, não conseguem uma colocação no mercado de trabalho. Na comparação com maio, houve maior crescimento relativo do desemprego entre as pessoas com oito a 10 anos de estudo, que passaram de 705 mil para 723 mil no mês passado, num incremento de 2,5%. Isso leva à triste conclusão de que o desemprego vem impedindo que jovens com graus mais elevado de instrução progridam no mercado
profissional, literalmente rifando o futuro do País. Entre as pessoas sem instrução, ou com menos de oito anos de estudo (ou seja, que sequer concluíram o ensino fundamental), um batalhão de 916 mil desocupados em junho, o desemprego aumentou 10,5%. São mais 87 mil pessoas do que em junho de 2002 (ou menos de 20% dos 449 mil demitidos desde então). (LJ)
Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem
Quanto mais estudo, menos vagas
Agricultura familiar gera empregos Hoje, no Brasil, quase oito de cada 10 empregos no meio rural são gerados na agricultura familiar, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Nesse tipo de propriedade, são necessários, em média, oito hectares para criar um posto de trabalho. Na agricultura empresarial, a média é de um trabalhador por 67 hectares, segundo informações da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul). Maior entidade do gênero hoje no país, a Fetraf-Sul reúne 300 mil das 907 mil famílias do setor em 240 municípios dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
■ Candidatos a vagas de auxiliar de limpeza no Centro Educacional Unificado (CEU), em São Paulo
Ano I ■ Número 22 ■ Segundo Caderno
Maria Luisa Mendonça, da Redação Campanha Continental Contra a Alca decidiu intensificar suas mobilizações, diante da pressão exercida pelo governo estadunidense para acelerar as negociações sobre o acordo. No Brasil, estão previstos grandes protestos em setembro, articulados com a Coordenação de Movimentos Sociais (ver box ). SOBERANIA NACIONAL A Campanha ganha fôlego também no hemisfério Norte. Nos Estados Unidos, a maior central sindical, AFL-CIO, iniciou ampla consulta popular e assumiu a luta contra a Alca como uma de suas principais bandeiras. No Canadá, a Suprema Corte aceitou uma denúncia do Sindicato dos Trabalhadores dos Correios, alegando que o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN ou Nafta) é inconstitucional. Os trabalhadores defendem o direito do Estado de
Criada coordenação para unificar mobilizações em todo o país Em reunião no dia 26 de julho, em São Paulo, movimentos populares, pastorais sociais, sindicatos e organizações estudantis definiram a criação de uma Coordenação de Movimentos Sociais, com o objetivo de unificar as lutas populares no país.A coordenação é composta por grandes entidades nacionais, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Central de Movimentos Populares (CMP), o Movimento Sem Terra (MST), a Via Campesina, a Marcha das Mulheres, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Pastoral Operária, entre outras. O lema das mobilizações será “Soberania nacional, desenvolvimento, trabalho, distribuição de renda e inclusão social”. Em agosto, serão realizadas grandes plenárias em todo o país para divulgar propostas de combate ao desemprego e à exclusão social. Esse movimento irá participar da jornada internacional contra o neoliberalismo e o imperialismo, de 7 a 13 de setembro. Durante esse período haverá acampamentos, debates, atos públicos e paralisações em fábricas e estradas. No dia 13, estão previstas marchas simultâneas em centenas de cidades das Américas, Ásia e Europa.
PT veta plebiscito e propõe realização sobre referendo Da Redação proposta de fazer uma consulta popular sobre a adesão do Brasil à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), aprovada pela direção nacional do PT nos dias 12 e 13 de julho, não atende as exigências da Campanha Nacional Contra a Alca, articulada pelos movimentos sociais. De acordo com o documento, o PT acredita que a adesão ao acordo nos termos atuais representa “a intensificação da dependência externa, que acabará no enfraquecimento do Estado, da economia e na desnacionalização do país, além do agravamento da questão social”. No entanto, apesar de reconhecer o quão desastrosa pode ser a adesão à criação do bloco econômico, a proposta do partido é “considerar a possibilidade, no final das negociações, de realizar um plebiscito sobre a adesão à Alca”, o que significa propor um referendo. Na prática, a diferença entre referendo e plebiscito não é tão
sutil como parece. O plebiscito significa realizar uma consulta popular antes de se tomar uma decisão fundamental ao futuro do país. O referendo é a consulta após a decisão tomada. “Não adianta fazer uma consulta à população no final das negociações, quando o acordo já estiver assinado e não pudermos fazer mais nada. Continuamos pleiteando a realização do plebiscito oficial”, diz Luís Bassegio, da coordenação do “Grito dos Excluídos” e da Campanha Contra a Alca. No ano passado, mais de 10 milhões de brasileiros votaram contra a assinatura do acordo, segundo consulta nacional em setembro pelos movimentos sociais. Outra prioridade da campanha é efetivar a votação do projeto de lei do senador Roberto Saturnino Braga, que propõe a realização do plebiscito e a prorrogação das negociações da Alca para daqui a 25 anos, após o tema ser amplamente discutido com a sociedade, “assim como ocorreu na criação da União Européia”, ressalta Bassegio.
oferecer serviços básicos, como de correios, contestados pela transportadora privada UPS (United Parcel Services). Através do capítulo 11 do Nafta, que trata de investimentos, qualquer empresa privada pode processar o Estado e exigir indenização pelo simples fato de o governo oferecer serviços públicos à população. As contestações jurídicas, consultas populares e mobilizações crescem em todo o continente, além das alianças construídas em nível internacional, em preparação para os protestos contra a cúpula ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), de 9 a 13 de setembro. No Brasil, os protestos terão início na semana do “Grito dos Excluídos”, de 1o a 7 de setembro, com a campanha “Vacine-se contra a Alca”. Os movimentos exigem que o governo saia das negociações e inicie um grande debate, através de um plebiscito sobre a Alca ainda este ano. A campanha brasileira apóia um projeto de lei elaborado pelo senador Saturnino Braga, para que a população seja consultada antes de o governo dar continuidade às negociações. Por parte do governo estadunidense, a estratégia é utilizar os países latino-americanos no âmbito da Alca para forçar a abertura dos mercados europeus. Nesse sentido, a Alca, os acordos bilaterais ou um acordo com o Mercosul (chamado de 4 mais 1) são elementos essenciais para que os EUA garantam a aprovação de suas propostas na OMC. Para isso, o governo Bush joga todas as fichas: acelerou o acordo bilateral com o Chile, aposta na anexação do Mercosul e procura evitar o adiamento das negociações da Alca. GOVERNO ATENTO Em relação ao governo brasileiro, percebe-se certa ambigüidade. Por um lado, o Ministério de Relações Exteriores estabelece condições para as negociações e assume postura mais independente e soberana. Por exemplo, o Brasil adiou a entrega de ofertas so-
■ Protesto contra a Alca pelas ruas de Porto Alegre, durante Fórum Social Mundial bre serviços, investimentos e compras governamentais e decidiu construir uma proposta unitária com os países do Mercosul. Em artigo na Folha de S. Paulo, em 8 de julho, o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, afirmou que “o governo do presidente Lula não aderirá a acordos incompatíveis com os interesses brasileiros” e reiterou sua preocupação com “a necessidade de não comprometer nossa capacidade de desenhar e executar políticas de desenvolvimento social, ambiental, tecnológico etc.”. Mas, por outro lado, o governo brasileiro aceitou participar de reuniões extraordinárias sobre a Alca – além da cúpula ministerial de novembro, em Miami – que devem acelerar as negociações. Uma delas foi a chamada “miniministerial”, que ocorreu em Maryland (EUA), reunindo
somente 14 dos 34 países que negociam a Alca. O encontro foi organizado pelo representante de comércio dos Estados Unidos, Robert Zoellick, com a participação de ministros da Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, República Dominicana, El Salvador, Jamaica, México, Panamá, Peru, Uruguai e Trinidad-Tobago. O objetivo dessa reunião foi acelerar a negociação e construir uma proposta comum, sem a presença de países que impõem maior resistência ao acordo. O Brasil concordou também com a proposta do governo estadunidense de realizar uma cúpula presidencial, que incluirá temas como Alca e combate ao terrorismo, no início de dezembro. Esses encontros têm o objetivo de garantir o cumprimento do calendário que prevê a implementação da Alca em 2005.
Campanha forma milhares de militantes Nestor Cozetti, do Rio de Janeiro (RJ) omo aconteceu em julho, em todos os Estados, foi realizado no Rio de Janeiro, dias 26 e 27, o Curso Nacional de Formadores da Campanha Contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), numa iniciativa do Comitê Estadual da Campanha. O tema das palestras foi “Alca, Dívida e Militarização”. Rodrigo Vieira, economista do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) e coordenador da Campanha Auditoria Cidadã da Dívida, falou sobre como as dívidas interna e externa são usadas pelos Estados Unidos para pressionar o Brasil a entrar na Alca. O economista Paulo Passarinho denunciou: “Aderindo à Alca, o Brasil se eximiria de requerer a soberania para não pagar a dívida”. Maria Luísa Mendonça, jornalista e diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos,
■ Cartaz da Campanha Nacional Contra a Alca Mais informações: Rua Dr. Neto de Araújo, 168, Vila Mariana, 04111-000, São Paulo, SP Tel.: (11) 5572-1518 Fax: (11) 5573-8058 jubileubrasil@terra.com.br www.jubileubrasil.org.br
falou da presença militar estadunidense na Amér ica Latina. E Sandra Quintela, coordenadora continental da Campanha Contra a Alca, convocou a todos para as mobilizações populares mundiais, dias 9 e 13 de setembro, contra a Alca e a Organização Mundial do Comércio (OMC). De 14 a 16 de setembro, haverá, em Brasília, a Plenár ia Nacional da Campanha Contra a Alca, com entrega de um abaixo-assinado ao presidente da República, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal. A campanha internacional contra a Alca culminará no Equador, no Fórum Social das Américas, de 8 a 13 de março de 2004.
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Ao mesmo tempo que o governo estadunidense acentua a defesa de seus interesses na Alca, no Brasil, e no mundo todo, organizar-se é palavra de ordem necessária para enfrentar as novidades impostas; o partido propõe um referendo, em vez do plebiscito
João Zinclar
Movimentos intensificam a luta contra o livre comércio
INTERNACIONAL
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ARGENTINA
Dafne Sabanes Plou, de Buenos Aires (Argentina) ram idosos, alguns andavam com dificuldade, outros mantinham o porte dos anos de chumbo, embora parecessem preocupados, cansados ou talvez envergonhados. Assim surgiram na tevê, que documentava sua detenção, vários dos 45 militares acusados de violações aos direitos humanos durante a sangrenta ditadura argentina, de 1976 a 1983. Quando o juiz federal Canicoba Corral aceitou iniciar a ação pedida pelo juiz espanhol Baltasar Garzón, o mesmo do caso Pinochet, que agora solicitou a extradição desses 45 militares, acusados de envolvimento no desaparecimento de cidadãos espanhóis na Argentina, vieram à luz feridas que não cicatrizaram. A maioria dos militares se entregou à Justiça tentando passar despercebidos pela mídia. Sete deles, entre eles os líderes do golpe militar de 1976, Jorge Videla e Emilio Massera, já estavam sob detenção domiciliar, pelo seqüestro de bebês. Os demais, por enquanto, estão detidos em guarnições das três Forças Armadas. Somente dois estão foragidos. Dos 45, é provável que só onze fiquem nas prisões militares. Se-
gundo as leis argentinas, os condenados com mais de 70 anos têm o direito à detenção domiciliar. Entretanto, estão marcados pela sociedade, que durante vinte anos viu circularem livremente autores de crimes atrozes, como o general reformado Antonio Domingo Bussi, responsável pela feroz repressão no Norte do país, e que no regime democrático foi eleito governador provincial e prefeito da cidade de Tucumán, dono de uma polpuda conta no exterior. Não faltaram jornalistas que perguntaram se era necessário reabrir velhas feridas. Mas as feridas nunca cicatrizaram, nem mesmo na consciência dos repressores. O prefeito Pedro Asic, ao receber a ordem de detenção, tentou o suicídio com um tiro de pistola 9 mm na boca, sem êxito; continua em estado grave.Um ex-preso político, detido nos “anos duros” com sua mulher e o filho de vinte dias, contou que, ao interrogá-lo, Asic pegou o bebê pelos pés e ameaçou jogá-lo de cabeça ao chão. Depois, pôs o bebê sobre o peito do pai e passou a dar choques elétricos no corpo do bebê. Os próprios companheiros de Asic, chocados, interromperam o interrogatório. Coisas assim aconteciam na Escola de Mecânica da Armada, sob as ordens de Emilio Massera..
Fotos: CMI
Ditadura: feridas que não cicatrizam
■ Madres de la Plaza de Mayo exigem punição para militares que torturaram seus filhos (ao lado), fotos de arquivo do capitão Alfredo Astis e o ex-ditador Emilio Massera, que podem ser extraditados para a Espanha por violações aos direitos humanos durante a ditadura militar, de 1976 a 1983. Isso deverá ocorrer também com outros 45 militares de alto escalão, incluindo o general Jorge Videla
Damian Dopacio/AFP
AMÉRICA LATINA
A guerra contra o regime militar ainda não acabou na Argentina; a sociedade permanece atenta; praticantes de crimes violentos durante a ditadura brasileira continuam longe da Justiça; ninguém ainda sofreu castigo por cometer torturas na época
Quando o atual presidente Néstor Kirchner recebeu as Mães e Avós da Praça de Maio, logo depois de assumir, estava compro-
metendo seu governo com a vigência dos direitos humanos. Durante seu giro europeu em meados de julho último, Kirchner se reuniu com familiares de desaparecidos e com representantes de órgãos de direitos humanos no exterior. Logo que voltou dos Estados Unidos, o presidente anulou o decreto do ex-presidente De La Rúa, que há dois anos proibiu a extradição de militares.
BRASIL
Campeão em impunidade
BRASIL DE FATO De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
o que se refere aos crimes cometidos por regimes militares, o Brasil é o país mais atrasado da América Latina na luta contra a impunidade, afirma a vicepresidente do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM), Cecília Coimbra. Nenhum torturador do regime militar brasileiro foi preso até Anistia – ato do agora, nem sofre poder público que processo jurídico; declara impuníveis pelo contrário, aldelitos praticados, em guns ocupam cargos geral, por motivos políticos de confiança no governo. Quase 400 Inafiançável – dizdeles agiram diretase do crime para o qual mente, torturaram é proibida a fiança, presos políticos e quantia em dinheiro depositada antes do cerca de 27 mil julgamento, pelo participaram da reacusado, para que pressão, segundo lepossa responder ao vantamento feito processo em liberdade. Assim, no caso de pelo Projeto Brasil crime inafiançável, o Nunca Mais, da aracusado fica preso até quidiocese de São o julgamento Paulo, junto com o GTNM. Um dos torturadores ainda impune, segundo Cecília, é Aparecido Calandra, atual chefe do Serviço de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo, indicado pelo gover nador Geraldo Alckmin. Assim como Calandra, Josias Quintal, hoje deputado federal (PSB-RJ), atuou como analista de informação no Doi-Codi/ RJ, um dos piores centros de tortura do Rio de Janeiro. Segundo o advogado do GTNM, Paulo Henrique Fagundes,“Quintal era responsável por indicar presos a serem torturados”. Há três meses, Quintal deixou o cargo de secretário de Segurança do Rio de Janeiro, em que serviu durante mais de quatro anos. 10 Outro “analista de informa-
ções” foi Severo Augusto da Silva Neto, indicado pelo atual governo federal para secretário-adjunto da Secretaria de Segurança Nacional do Ministério da Justiça. Por pressão do GTNM, a indicação de Severo foi anulada. O único avanço, até agora, foram as cassações inéditas, em primeira instância, de onze registros profissionais de médicos assessores de tortura. Esse tipo de cassação ocorre somente no Brasil, desde 1988. Os Conselhos Regionais de Medicina investigam 44 casos, no Estado do Rio, e 66 em São Paulo. O primeiro médico a ter seu diploma definitivamente cassado, em 1988, foi o falecido Amilcar Lobo, que atuou no Doi-Codi/ RJ, de 1970 a 1974. Em 1994, foi a vez de Ricardo Agnese Fayad , atual general-de-brigada do Exército. Ambos foram acusados de for necer laudos falsos de necrópsias: corpos de militantes mortos sob tortura foram descritos como mortos em tiroteio, atropelamento ou suicídio. José Lino Coutinho da França Neto também foi proibido de exercer a profissão. Em 1999, foi acusado de acompanhar torturas a presos políticos para avaliar o quanto o preso aguentava. A causa da impunidade, segundo Cecília, é a má interpretação da Lei da Anistia, de 1979: representantes da ditadura militar e juristas da época entenderam que a anistia dada aos presos políticos serve também aos torturadores. Mas Cecília assinala:“Em momento algum a lei coloca que aqueles que torturaram, seqüestraram e esconderam cadáveres estariam anistiados, até porque tortura é um crime inanistiável e inafiançável, segundo a Constituição de 1988”. Ela aponta ainda a falta de vontade política do governo como impedimento para abertura de pro-
A DIVISÃO DE PODERES Depois de tantos anos de ingerência do Poder Executivo no Legislativo e no Judiciário, os porta-vozes do governo, o chefe de Gabinete e os ministros do Interior e da Justiça e Direitos Humanos têm de vir a público afirmar que cabe ao Poder Judiciário, e a nenhum outro, a decisão sobre cada processo. Isso é necessário porque, no governo Menem, o Executivo ditava as sentenças até da Corte Suprema de Justiça. O processo que começou com a detenção dos militares será demorado e complicado. Na Argentina continuam vigorando os efeitos das chamadas Leis de Ponto Final e de Obediência Devida, sancionadas em 1986 e 1987, pelo governo Alfonsín, que anistiaram os crimes da ditadura militar, mas sua vigência agora está sendo questionada. As leis foram
cessos contra essas pessoas. O caso brasileiro é diferente do argentino, em que a anistia não teve caráter geral – isto é, não contemplou todos os acusados – e foi resultado de decreto parlamentar, que for revogado pelo presidente. No Brasil, segundo o advogado Paulo Henrique Fagundes, seria necessário elaborar uma lei que interpretasse que esses torturadores cometeram crimes e, por isso, devem ser julgados.“O que é quase impossível”, completa o advogado. CONQUISTA LEGAL Um avanço inédito foi dado: a juíza Solange Salgado, da 1ª Vara Federal do Distrito Federal determinou à União a quebra do sigilo das informações militares de todas as operações no combate à guerrilha do Araguaia. Por conta disso, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, deve se reunir, nesta semana, com o ministro da Defesa, José Viegas, o advogado-geral da União, Álvaro Augusto Ribeiro da Costa, e o presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), para discutir a questão. Solange deu prazo de 120 dias para a União informar onde estão sepultados os restos mortais dos familiares dos 22 autores do processo. Além disso, determinou que, se necessário para garantir o cumprimento da sentença, a União intime agentes militares que participaram de torturas, para prestarem depoimentos. Eduardo Greenhalgh afirmou em entrevista à imprensa:“É inadmissível não esclarecer isso agora, num governo em que o presidente é ex-preso pela Lei de Segurança Nacional, o presidente do PT (José Genuíno) é um dos sobreviventes da guerrilha e
Marcello Jr./ABR
Letícia Baeta, da Redação
revogadas pelo Congresso Nacional, mas continuam beneficiando os que por ela foram agraciados durante os anos em que vigoraram. O que se discute agora é se seus efeitos de então devem ser anulados. Dois juízes as declararam inconstitucionais, mas os apelos às instâncias superiores atrasam os processos. Entretanto, a questão apresenta seus pontos positivos. De um lado, praticamente não restam mais na ativa militares que tenham atuado na ditadura. Os observadores assinalam que as novas gerações militares querem ver encerrado o assunto, que as continua afetando, sobretudo no seu prestígio e na sua imagem perante a população, que nunca mais voltou a confiar nas Forças Armadas. Por outro lado, as pesquisas de opinião divulgadas no último fim-de-semana de julho indicam claramente que a maioria da população quer que se reveja a ação da ditadura militar. Por exemplo, 65% dos entrevistados concordam que sejam anuladas as Leis de Ponto Final e de Obediência Devida, para que os militares possam ser julgados no país, e 61% acham que se deve reabrir a questão da ditadura militar, porque consideram que há perguntas que não foram respondidas. (Alai-AmLatina)
■ Integrantes do Grupo Tortura Nunca Mais entregam documento ao presidente Lula: “Nenhum torturador do regime militar brasileiro foi preso até agora” o líder do governo na câmara, Aldo Rebelo, é do PC do B, que organizou o movimento”. A deputada federal,Alice Portugal, acredita que “a decisão da juíza Solange reacende as esperanças dos familiares dos mortos e desaparecidos da guerrilha do Araguaia de desvendar o paradeiro dos corpos de seus entes que-
ridos e as circunstâncias de suas mortes”. Ela acrescenta ainda que a decisão cria um importante precedente para que outros arquivos da repressão sejam abertos aos interessados e sirvam para elucidar as circunstâncias das prisões, torturas, mortes e desaparecimento de milhares de brasileiros que lutaram contra a ditadura.
IRAQUE
ia 25, os Estados Unidos deram mais uma prova ao mundo do que estão dispostos a fazer para enfiar goela abaixo do povo iraquiano seu regime “democrático”. Numa operação hollyoodiana, o Comando Central estadunidense (Centcom) mostrou a jornalistas os corpos maquiados dos filhos de Sadam Hussein, Uday e Qusay, que tiveram barbas aparadas e tufos de cabelo implantados para deixá-los mais parecidos com suas imagens em vida. VIOLÊNCIA SEM FIM A hipocrisia militar estadunidense foi além. Um cartaz na sala onde foram expostos os cadáveres pedia “reverência e respeito”. A armadilha montada pelo secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, funcionou em parte. Claro, o troféu dos rostos desfigurados ganhou destaque nas TVs e nos jornais, mas se Rumsfeld quis convencer os iraquianos de
■ Soldados estadunidenses revistam iraquianos em posto de controle em Bagdá que o regime terminara e, assim, cessariam os ataques às tropas anglo-estadunidenses, o tiro saiu pela culatra. São os próprios ira-
quianos os mais céticos, acostumados com sósias de Sadam. Já se fala de gol contra. Até segunda, dia 28, nove soldados tinham
morrido desde que as tropas mataram os filhos de Sadam. As imagens chocantes desrespeitaram tradições culturais e as
ORIENTE MÉDIO
João Alexandre Peschanski, da Redação presidente dos Estados Unidos, George Bush, encontrou-se, dia 25 com o primeiro-ministro da Palestina, Mahmoud Abbas, e lhe ofereceu a fórmula mágica para resolver o conflito no Oriente Médio: a criação do Estado palestino, economicamente tutelado por representantes e empresas estadunidenses. Em meio às formalidades que cercaram a ida de Abbas à Casa Branca, Bush anunciou a articulação de um grupo de desenvolvimento econômico na Palestina, com a participação de homens de negócio dos EUA e de pessoas de confiança do premiê palestino. Para acelerar esse processo – segundo Bush, o único meio de se ter paz na região – os secretários estadunidenses do Tesouro e do Comércio, John Snow e Donald Evans, devem viajar à Palestina para planejar e estruturar as fundações econômicas necessárias para a criação do novo Estado. Eles também têm a tarefa de facilitar o ingresso palestino no sistema financeiro mundial e a instalação de empresas dos EUA no território, ainda pouco explorado por estas. ONU DE FORA A estratégia de Bush é a mesma adotada no Iraque, em que corporações estadunidenses ficaram responsáveis pela reconstrução do país, militarmente ocupado pelos EUA desde 8 de abril. Fundamentais para os iraquianos e sobretudo para os interesses das tropas invasoras, os poços de petróleo de Rumaila (Sul do Iraque), por exemplo, ficaram sob a responsabilidade da empresa Haliburton, presidida pelo vice de Bush, Dick Cheney. Apesar de ter participado do
Bashar Nazal/AFP
Solução mágica para a questão palestina
■ Governo de Ariel Sharon se empenha na construção do muro de mais de 350 km que vai separar os territórios palestinos de Israel estabelecimento do Road Map (do inglês, “mapa da estrada”), plano da Organização das Nações Unidas (ONU) para resolver o conflito no Oriente Médio, o governo estadunidense não pretende ter parceiros em sua nova estratégia para a região. No encontro com Abbas, Bush declarou que os EUA queriam cuidar do assunto em caráter de urgência e que, por isso, não poderiam contar com interferências de outros países e de organizações. O projeto, redigido por representantes da ONU e entregue a Sharon e Abbas em 30 de abril, possui três etapas: a primeira, exige a imediata desmilitarização da resistência palestina, a interrupção da expansão dos assentamentos israelenses e a retirada dos colonos estabelecidos após setembro de 2000. No segundo estágio, previsto para ser concluído até o final do ano, seriam definidas fronteiras do Estado palestino e os árabes convocariam eleições gerais. Por fim, entre 2004 e 2005, uma con-
ferência internacional consolidaria o novo Estado. Nesta seriam discutidos assuntos como a situação dos refugiados palestinos. A VEZ DE SHARON Quatro dias após o encontro com Abbas, o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, foi a Washington (EUA) e se reuniu com Bush. O presidente estadunidense exigiu mais empenho do governo de Israel para resolver o conflito no Oriente Médio, mas elogiou as medidas que este tomou, como a libertação de 600 prisioneiros palestinos. Apesar dos elogios, a postura de Sharon tem sido de manter a repressão a quem resiste à ocupação da Palestina por Israel. Mesmo se a libertação de 600 pessoas é um avanço, pouco representa diante dos 6.500 palestinos sob péssimas condições nas prisões israelenses. Deste total, de acordo com a entidade Defesa Internacional das Crianças – Palestina, 350 têm menos de 18 anos e, além
de estarem nas mesmas celas que adultos, são regularmente submetidos a sessões de tortura. Além disso, Sharon havia prometido a progressiva retirada dos israelenses residentes nos territórios palestinos. No entanto, segundo censo do Ministério do Interior de Israel, o total de colonos aumentou em 2003 – passou de 226 mil para 231,4 mil pessoas. Ao mesmo tempo, o governo israelense financia a construção de um muro para separar os territórios palestinos de Israel. A obra já está com 107 dos 350 quilômetros construídos e tem sido chamada pelos movimentos sociais da região de “Muro da Vergonha”. No dia 28, na Cisjordânia, antes mesmo do encontro entre Bush e Sharon, soldados israelenses dispararam gás lacrimogêneo e balas de borracha em pessoas que protestavam contra a construção. Dos 300 manifestantes no ato, cujo objetivo era destruir um dos portões do muro, pelo menos dez ficaram feridos.
convenções de Genebra, que exigem dos signatários (entre eles, os EUA), entre outras coisas, o respeito aos corpos dos inimigos. Nesse caso, porém, o governo estadunidense prefere usar dois pesos e duas medidas, visto que citou o mesmo documento para repudiar as TVs Convenções de árabes que, durante a Genebra – são invasão do Iraque, quatro e foram exibiram imagens de elaboradas em 1949, seus soldados captupara: melhorar a rados. A Convenção situação dos feridos e doentes das forças vale de acordo com a armadas em nacionalidade do inicampanha (Convenção migo. I); para melhorar a O secretário-geral situação dos feridos, doentes e náufragos da Frente de Ação das forças armadas no Islâmica, da Jordânia, mar (Convenção II); Hamza Mansour, critratamento dos ticou duramente o prisioneiros de guerra ato. “Os corpos de (Convenção III); proteger civis em Uday e Qusay devetempo de guerra riam ter sido lavados (Convenção IV) e enterrados imediatamente, mas os estadunidenses não respeitam nossas tradições e nossa doutrina.” Na Inglaterra, associações de defesa dos direitos humanos também condenaram os comentários de alegria e satisfação do premiê Tony Blair. Depois de saber da morte dos filhos de Sadam, ele disse, sorridente:“É um grande dia para o novo Iraque”. CAMPOS NAZISTAS Conforme o mais recente relatório da Anistia Internacional sobre cem dias de ocupação anglo-estadunidense, esse “novo Iraque”, prometido por Blair e Bush, mais se assemelha aos campos de concentração nazistas. A Anistia apresentou diversas provas, dia 23, em Bagdá. O Memorandum on concerns relating to law and order é um dossiê sobre a desordem no Iraque e revela casos de desrespeito aos direitos humanos e às convenções de Genebra. Um deles é o do garoto Mohammad al-Kubaisi, 12 anos, morto dia 26 de junho. Mohammad estava car regando uma bacia com panos para estender no varal de casa quando um soldado abriu fogo contra ele, durante uma ação militar. Os vizinhos tentaram levá-lo a um hospital, mas foram impedidos e obrigados a deitar por terra cerca de quinze minutos. Depois, soldados mandaram-nos para a casa, por causa do toque de recolher. Ele não resistiu e morreu. O relatório também lista uma série de detenções irregulares e medidas ilegais em relação aos cerca de 2 mil prisioneiros. A organização recebeu, contra as forças da coalizão, denúncias de tortura, com métodos de uma ditadura militar. Os prisioneiros são proibidos de dormir, obrigados a ficar em posições dolorosas por horas, com música em alto volume e exposição a luz intensa. E não podem se comunicar com advogados ou parentes. A organização adverte ainda sobre buscas dos suspeitos de crimes por parte das tropas: sem respeito aos direitos civis e com casos de destruição de habitações. Além disso, coloca sob suspeita os tribunais militares instaurados para julgar crimes cometidos após 19 de março, queda de Sadam, e que dependem exclusivamente das forças de ocupação.
BRASIL DE FATO De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
Paulo Pereira Lima, da Redação
Joseph Barrak/AFP
Anistia Internacional acusa os EUA de violar direitos humanos
INTERNACIONAL
Filhos de Sadam Hussein são exibidos pelos militares estadunidenses como troféus de guerra e apresentados através da mídia para o mundo inteiro; Estados Unidos pretendem criar projeto próprio para implantar um Estado palestino e solucionar assim a tragédia do Oriente Médio
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ÁFRICA AFRICA
Literatura revela usos do idioma como a língua portuguesa já não é um patrimônio comum dos povos que a herdaram do colonizador português. No Brasil como nos países africanos que falam português – Angola, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe – o idioma sofre transformações e assume características tão próprias que já não é uma só e única língua. Uma das melhores maneiras de entender isso é conhecendo a literatura produzida nesses diferentes países.
Marilene Felinto, da Redação ue tipo de português se fala em Angola? Que diferenças existem entre a língua portuguesa que se escreve em Moçambique, no Brasil ou em São Tomé e Príncipe? Essas e outras questões começam a ser esclarecidas aqui, numa série de reportagens sobre a literatura africana de expressão portuguesa. Nesta primeira, a professora Carmen Lúcia Tindó Secco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra
Fotos: Nigrizia
INTERNACIONAL
A influência de línguas nativas africanas sobre o português ganha expressão na literatura de vários países de herança lusitana; já não se pode considerar a língua de Portugal a mesma que a de Angola, Brasil ou Moçambique
■ Os escritores africanos de língua portuguesa: Mia Couto, Pepetela e Manuel dos Santos
Africanas formas da língua portuguesa CABO VERDE Cidade de Praia Bissau
GUINÉ-BISSAU
São Tomé SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
Luanda ANGOLA
OCEANO ATLÂNTICO MOÇAMBIQUE Maputo
OCEANO ÍNDICO
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Carmen Lucia Tindó Secco Especial para o Brasil de Fato
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á alguns anos, em entrevista ao Jornal de Letras, Eduardo Lourenço afirmou ser a língua portuguesa “uma utopia necessária, uma herança sem preço, fiadora de laços identitários”. Muitos destes, entretanto, através dos séculos, se desfizeram e se refizeram em heterogêneas combinações. Sabemos quanto de diversidade esse idioma adquiriu, ao travar contato com outras línguas e culturas ao longo da história. Levado à África e ao Brasil como língua de colonização, o português deixou marcas profundas; mas também sofreu metamorfoses em decorrência das diferenças lingüísticas, culturais e sociais entre os povos. A língua portuguesa, portanto, não mais se apresenta como patrimônio comum, uma vez ter assumido peculiaridades próprias dos lugares onde se instalou. Essa consciência é clara em vários escritores contemporâneos, tanto do Brasil, quanto de África, que têm como matéria vertente o idioma português. A poeta angolana Ana Paula Tavares, por exemplo, na crônica intitulada “Língua Materna”, demonstra grande lucidez a esse respeito (...). A autora reflete sobre as transformações do português em convívio com as línguas de Angola e vice-versa, confessando a sedução exercida sobre ela pelas enriquecedoras trocas ocorridas no de-
correr dos processos lingüísticos. (...) Também no Brasil, a língua portuguesa passou por modificações e assumiu características singulares. (...) A ficção da escritora Nélida Piñon, por exemplo, assume a contramão da língua e da História, buscando sempre uma maneira surpreendente e original de pensar e “re-escrever” o Brasil. Há na obra da autora uma obsessão pelas origens e trajetória da língua portuguesa. (...) A escritora mostra que, no Brasil, a língua portuguesa, em contato com as línguas indígenas e africanas, adotou ritmos e saberes outros. (...) Nélida denuncia como a colonização portuguesa impôs seu idioma, dizimando as populações autóctones, descaracterizando suas culturas e silenciando as línguas indígenas como, por exemplo, o tupi, entre tantas outras. IDENTIDADE PERDIDA Responsabiliza os colonizadores e os regimes autoritários brasileiros pelo degredo da imaginação e pela perda da identidade. Critica, principalmente na época do Brasil-Império, a educação clássica dos colégios, nos quais o ensino da língua, preso aos paradigmas da norma culta do português de Portugal, não permitia que os alunos tivessem paixão pelo idioma e, desse modo, lhes bloqueava a fantasia. Como escritora, alerta para a importância da conquista da língua, libertando-a de arbitrárias interdições. (...)
PORTUGUÊS QUIMBUNDO Existe um constante processo de subversão na escrita poética de Paula e na de outros autores angolanos, entre os quais Manuel Rui e David Mestre que, em alguns poemas e ensaios seus, se referiram a esse poder de subverter próprio da língua literária. (...).Tal faculdade, entretanto, está presente, também, muitas vezes, no falar coloquial dos povos que herdaram a língua portuguesa na África, no Brasil. E, nas propostas de muitos escritores brasileiros e africanos, é nitidamente intencional e consciente essa praxis transgressora. Em Angola, Luandino Vieira, Boaventura Cardoso são mestres da quimbundização do português (influência do quimbundo, língua dos povos bantos de Angola, sobre o português), recriando-o em africanas formas. No romance Maio, Mês de Maria, de Boaventura Cardoso, por exemplo, o sagrado católico e o animismo africano se unem num forte sincretismo religioso, em que o culto à Maria se mescla às oferendas aos deuses das tradicionais religiões angolanas, ou ainda à exorcização de Satanás, instado a sair do Templo, como costuma acontecer nos rituais da Igreja Universal, cujos adeptos vêm crescendo, ultimamente, na maioria dos países da África e da América Latina. (...) LuandinoVieira é outro escritor angolano que, por intermédio de um de seus personagens, João Vêncio, satiriza os discursos religiosos aprisionadores do ho-
O senhoro é que informa, aceito. Mas duvido.(...) Mu Kimbundu (...) Muadié veja: se a gente percebe tudo, onde está Deus,Ngana Nzambi Tata? -Se Deus existe? “Kimbundizando” a língua portuguesa, a escrita de Luandino se assume “verbalmente mestiça”, como já assinalaram tantos críticos de sua obra. Carnavaliza a linguagem jurídica e a católica, recriando as estruturas orais do Kimbundu, os termos chulos, as gírias e o calão expurgados pela moralidade inculcada pela colonização. ESCRITA ARTESANAL Em Moçambique, também a literatura de Mia Couto recupera as tradições populares e, artesanalmente, “retrabalha” a língua em brincriações semânticas, sintáticas, capazes de devolverem ao humano o gosto das palavras e o prazer dos sonhos que os muitos anos de guerra adormeceram em seu país. Seu discurso tece uma rede intertextual e simbólica com as crenças e os mitos moçambicanos. Opera metaforicamente com a linguagem e reinventa a língua portuguesa com paladares e entonações locais, efetuando construções fônicas, morfossintáticas e semânticas inusitadas, que visam ao resgate dos sentidos poéticos da vida, escamoteados pelos sofrimentos. Os processos de revitalização da linguagem empregados pelo escritor se assemelham aos usados por Guimarães Rosa e Luandino
Vieira. Os mais freqüentes são os neologismos formados por afixação e aglutinação. Do primeiro tipo, citamos vários exemplos: “imovente”, “irresultava”, “sofrências”, “amanhãzinha”, entre outros; do segundo, lembramos a palavra “cabisbaixeza”, resultado da fusão dos vocábulos “cabisbaixo” e “tristeza”. (...) O poeta moçambicano José Craveirinha é outra voz transgressora que, explicitamente, declarou sua posição clandestina de poder estar sempre a sublevar o tecido lingüístico de sua poesia: “Foi assim que eu/ subversivamente/ clandestinizei o governo/ ultramarino português.” Além dos citados, vários outros poetas e escritores de África e Brasil refletiram sobre a língua portuguesa, acentuando as distâncias desta em relação ao português de Portugal: Uanhenga Xitu,Arnaldo Santos, Ruy Duarte de Carvalho, Manuel Rui Monteiro, José Luís Mendonça, Virgílio de Lemos, Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e muitos mais. Há, na maioria das obras desses autores, um jogo erótico que visa à perversão do idioma português, tornando-o conquista e posse de cada um dos que o falam e/ou escrevem. (...) Carmen Lucia Tindó Secco é professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A versão integral deste texto, sob o título Os Laços da Língua, as Metamorfoses no Tempo, foi originalmente publicada na Revista Convergência Lusíada do Real Gabinete Português de Leitura, vol. 2 (Org. Gilda Santos). Rio de Janeiro, 2000.
Manuel Augusto
Mar Mediterrâneo
mem, questionando a relatividade das crenças e se indagando acerca da existência de Deus e das várias designações com que as religiões católica e africanas nomeiam a divindade suprema:
Ana Paula Tavares, na crônica já mencionada, aponta também para essa fratura existente entre a língua da escola e a da criação poética. (...) Mesmo em tempos de crise e desencanto, os textos de Paula Tavares conseguem reinventar os sonhos, fazendo do uso consciente e criativo da língua uma utopia não apenas possível, mas – como alertou Eduardo Lourenço na entrevista citada no início deste artigo – necessária. (...) Há, portanto, nos textos de Paula Tavares, uma compreensão profunda dos processos sociais, históricos, culturais, lingüísticos e literários que a envolvem e ao seu país. Na crônica “Países Africanos, Língua Portuguesa, Passado, Presente e Futuro”, assinala as diferenças entre as culturas e o uso das línguas (a portuguesa e as africanas), enfatizando os enriquecimentos e empobrecimentos sofridos nas trocas e contaminações ocorridas através da história. (...)
■ Estudantes em escola de Maputo, em Moçambique
DENÚNCIA
AMBIENTE
Importante reserva florestal e habitat de animais em extinção, próxima ao centro de Cotia, a fazenda Granja Carolina é alvo de megaprojeto imobiliário; as primeiras previsões indicam que até 17 mil pessoas poderão chegar a se instalar no município
m projeto imobiliário foi elaborado para a antiga fazenda Granja Carolina, em Cotia (km 34.3 e 36.5 da rodovia Raposo Tavares). Se aprovado na Secretaria de Estado do Meio Ambiente, serão comercializados lotes para imóveis, construídos prédios de apartamentos e barramentos de água. Estradas cortarão matas hoje contínuas e a impermeabilização do solo atingirá perto de 60%. O projeto prevê até 17 mil pessoas numa região já em crise ambiental e urbana com a inauguração do Rodoanel Metropolitano de São Paulo e a duplicação da rodovia Raposo Tavares. E agravará ainda mais o caos na cidade, com aumento de tráfego e demanda por serviços públicos. Localizada dentro da reserva da biosfera do cinturão verde da capital – Programa Man and Biosphere da Unesco – desde 1994, a área é importante remanescente de Mata Atlântica, com alta biodiversidade e interesse ecológico e paisagístico. Estudo dos loteadores apontou a presença de 162 espécies de aves e 14 de mamíferos, com cinco delas ameaçadas de extinção: bugio, sagui da serra, papagaio verdadeiro, araponga e pavó .A fazenda tem três micro bacias, com 17 nascentes, 5 córregos e 4 lagos. Preocupados com os impactos sobre a fauna, flora e toda a região, moradores de Cotia iniciaram luta pela preservação. Foi criado o movimento suprapartidário “Salve a Mata”, com amplo apoio de entidades ambientalistas, políticos, cientistas e interessados em geral. O movimento tem endereço na internet: (www.salveamata.cjb.net). LOTEAMENTO Os empreendedores alegam ser área estratégica, pois está ao lado de centro urbano. Há tentativas de lotear a área desde 1975. Em 89, os proprietários foram alvo de ação civil pública por desmatamento ilegal de 19,6 hectares. Plantaram 1,05 hectares com eucalipto e a ação está arquivada. A modificação da lei pela prefeitura em 1997 favoreceu o loteamento, ao transformar a área em zona residencial diversificada e permitir ocupação de 60%. O Consórcio de Desenvolvimento Urbano Granja Carolina, formado pelas empresas Scopel, Cipasa e Atuarq, elaborou novo projeto urbanístico para Cotia, com tamanho equivalente a três vezes a área do parque Ibirapuera. A propriedade abrange também Itapevi (com mais cinco Ibirapueras), que ficou de fora, devido à existência de um lixão. O EIA-RIMA* (Estudo de Impacto Ambiental - Relatório de Impactos sobre o Meio Ambiente) é feito pelo próprio empreendedor, que busca obter licença ambiental e concretização do projeto. O estudo deve apontar os impactos gerados e as respectivas medidas mitigadoras ou compensatórias. A conclusão do estudo, feito pela empresa JGP - Consultoria e Participações Ltda. para a Granja Carolina, é de que os impactos associados ao empreendimento serão de baixa intensidade, desde
que corretamente adotadas medidas mitigadoras preconizadas. São 36 os impactos sobre o ar, flora, fauna, recursos hídricos etc. apresentados no EIA-RIMA, e 44 as medidas compensatórias. Dentre elas, programa de revegetação ciliar e recomposição florestal; monitoramento e manejo da fauna e do solo. “Não dá para acreditar que medidas mitigatórias serão suficientes para compensar os impactos de um empreendimento de tal magnitude, adverte Marília Gruenwaldt, do movimento “Salve a Mata”. Ela viu de perto a ocupação do condomínio Transurb, ao lado da Granja Carolina, e a mortandade de animais pela caça e atropelamento. Presenciou também o desmatamento feito pelas pessoas.“Os condôminos não demonstram amor pela natureza e animais e só se interessam pela valorização da propriedade”, lamenta Marília. PROTEÇÃO NECESSÁRIA Para o professor do Instituto de Estudos Avançados da USP, o geógrafo Aziz Ab’Sáber, por ser um remanescente único da biodiversidade da região, nem a Secretaria Estadual do Meio Ambiente pode permitir o corte de árvores. Ab’Saber defende que proteger a mata é também proteção do meio urbano, pela renovação cíclica do gás carbônico nas árvores. Lembra que Cotia era exemplo de per ifer ia verde e está sendo destruída. “Os herdeiros e empreendedores são ambiciosos e não querem saber de restrições ambientais. Considero essas pessoas como meros especuladores do capitalismo, que querem transformar bosques naturais em condomínios fechados. As prefeituras gostam, pois recebem mais IPTU. Mas os prefeitos e governadores deveriam pensar também no meio ambiente e nessas conurbações”, protesta Ab’Sáber, favorável ao tombamento da área. O biólogo Paulo Aurichio, que fez uma análise do EIA-RIMA para o movimento “Salve a Mata”, afirma que qualquer área da Mata Atlântica deve ser preservada pela fragilidade de seu equilíbrio ecológico e significativo potencial biológico. “Os empreendedores devem ser lembrados que áreas deste tipo terão importância vital para o turismo e medicina, e sua destruição significa empobrecimento real dos interesses da humanidade, em favor de lucros imediatistas”. Segundo ele, a simples presença de espécies ameaçadas é outro fator que impede qualquer empreendimento. Carlos Bocuhy, do Conselho Estadual do Meio Ambiente, afirma que esse projeto não pode ser aprovado, pois se refere apenas à gleba de Cotia e o empreendedor pretende também lotear a de Itapevi. Para ele, seria necessário um estudo que demonstrasse a dimensão do impacto. “A região já sofre carência de água e não teria como suportar mais demanda, além do aumento no caos no sistema viário. A cidade de Cotia também não tem um Plano Diretor para planejar o desenvolvimento”, declarou. A mancha urbana continua avançando e consome os recursos naturais. E é justamente desse patrimônio ambiental que a propaganda imobiliária se vale para ven-
■ Fazenda Granja Carolina e animais em risco de extinção: população luta para preservar a fauna e a flora de Cotia, exemplo de periferia verde que pode ser destruída com megaprojeto imobiliário
der empreendimentos, empurrando a população para longe de estruturas urbanas e ocupando os últimos trechos de Mata Atlântica. Os jornais têm anúncios que oferecem qualidade de vida em áreas verdes, a 30 km de São Paulo.
■ Vida silvestre será prejudicada com a implantação de novos condomínios em Cotia
MUDANÇA DE PAISAGEM O Estudo de Impacto Ambiental traz uma realidade que nada tem a ver com preservação. Diz que o empreendimento vai induzir à valorização imobiliária das propriedades vizinhas, o que resultará em novos loteamentos. Considera este impacto positivo ao propiciar mudança de vocação de uso e urbanização da região. Ou seja, para os empreendedores, a destruição do cinturão verde e da biodiversidade, em favor de novas áreas urbanas, é positivo. Já o impacto considerado negativo é a provável ocupação desordenada no entorno por loteamentos de baixa renda, como já houve em locais como Granja Viana, Carapicuíba, Embu, Jandira, Itapevi e mesmo em Cotia. Fica claro que a mata da Granja Carolina é uma barreira do avanço urbano sobre o cinturão verde daquela região e precisa ser preservada.
O grupo “Salve a Mata” já acionou o Ministério Público e a Ouvidoria do Meio Ambiente para acompanharem o licenciamento. Um dossiê sobre o loteamento Granja Carolina foi enviado a autoridades, inclusive à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.Também circula abaixo-assinado e moção para o tombamento da área. O “Salve a Mata” aponta no dossiê a falta de EIA-RIMA para a construção dos barramentos de água e da estação de tratamento de esgotos. Expressa também a preocupação de que seja aprovado EIA-RIMA incompleto ou que omita importantes informações ambientais. Reivindica política de desmatamento zero para a região e sugere permissão para o desenvolvimento urbano somente em áreas já degradadas, protegendo-se assim espaços em que há regeneração natural. E aponta ser necessário um zoneamento ambiental integrado e especial devido à pressão que sofrem áreas próximas da metrópole, apesar de fundamentais para a manutenção da qualidade de vida para todos. *(EIA-RIMA disponível no site www.ambiente.sp.gov.br - busca em Granja Carolina - necessário ter acrobat reader)
BRASIL DE FATO De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
Ana M. Machado, de São Paulo (SP)
Fotos: Ana M. Machado
Remanescente de Mata Atlântica em São Paulo pode virar loteamento
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DEBATE
REFORMA URBANA
O sonho da moradia Simão Pedro u não tenho onde morar É por isso que eu moro na areia”
Kipper
Sábio Dorival Caymmi. Na primeira metade do século passado, o compositor baiano conseguiu, com aquele seu talento admirável, transformar em canção um lamento que revelava uma aspiração popular de inquestionável legitimidade. Continua atual. É assunto
tão importante que, não é de hoje, ninguém se esquece dele. “Casa, morada, vivenda, moradia, residência, habitação” – e assim vai o Novo Dicionário Aurélio explicando o significado desse direito constitucional perseguido por 6,6 milhões de famílias brasileiras, segundo a Fundação João Pinheiro. No Estado de São Paulo o déficit é de 1.116.000 de casas nas áreas urbanas e 45.580 na zona rural. São números sem dúvida preocupantes. Quem diria que, no Estado tido como o economicamente mais bem-sucedido da federação, o déficit habitacional adquiriria tamanha proporção em pleno ano de 2003? Que estranho modelo de desenvolvimento foi esse, adotado ao longo de tantas décadas? Fossem tijolos, as injustiças, sobrepostas, teriam deixado incontáveis edifícios à espera de ocupantes. Ao contrário, porém, as desigualdades se espalharam, enquanto cresceram as reivindicações pelo direito de morar. As demandas continuam aí, e apenas em parte vêm sendo atendidas. As invasões recentemente ocorridas na Grande São Paulo, portanto, não deveriam causar a surpresa estampada no noticiário. Não aconteceram por acaso. Resultam da ausência de políticas para o setor, do descaso, de equívocos, da falta de planejamento, de participação popular, e não da falta de recursos. De 1995 a 2002, o governo do Estado destinou uma montanha de verbas à Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Nada menos que R$ 4,3 bilhões foram reservados à empresa para investir em constru-
ções populares. Só em 2001, o setor ficou com R$ 671 milhões, equivalentes a 1% da arrecadação de ICMS. Nem assim a população mais carente foi atendida. Até o ano passado, os governos estadual e federal privilegiavam as famílias com renda de três a seis salários mínimos, embora grande parte da demanda venha da população mais pobre, que recebe até três mínimos. Mais números da Fundação João Pinheiro: a região metropolitana de São Paulo abriga 73,5% de toda a demanda por habitação no Estado, mas de 1995 a 1999 recebeu do governo do PSDB apenas 31% da produção de unidades. O interior, que concentra 21,7% da demanda, recebeu 65,4% das unidades – ou seja, faltam critérios técnicos que levem em conta a demanda e a solução do problema. Ao criar, entre os seus primeiros atos, o Ministério das Cidades, o presidente Lula demonstrou a disposição de investir seriamente em habitação. No nosso Estado, contudo, a política adotada pelo governo tucano para o setor consiste, grosso modo, em destinar, para a construção de pequenos prédios em bairros da periferia, recursos nem sempre aplicados pela CDHU, que encerrou 2002 com quase R$ 400 milhões em caixa. A pergunta que não quer calar: por que não investir em outras frentes? Por que não responder à reivindicação de milhões de pessoas que clamam pela urbanização das favelas, por apoio aos mutirões, por tarifas sociais, por um criterioso processo de regularização fundiária? Além de uma política eficiente e justa, a habitação merece um tratamento mais amplo. Pois não basta
erguer quatro paredes sem levar em conta outros fatores fundamentais para a cidadania: além de moradia digna, deve-se pensar, por exemplo, em acesso ao transporte e ao trabalho. Pode-se questionar, por isso, até as áreas utilizadas para as construções do CDHU. Não se deve eleger um espaço sem antes tomar uma série de cuidados. É preciso considerar a sua localização. Erguer moradias? Tudo bem. Mas elas devem ser construídas em espaços cujos arredores ofereçam benefícios aos moradores. Nas imediações deve haver bolsões de geração de empregos e, do lazer ao transporte, toda uma rede de prestação de serviços urbanos. Do contrário, o sonho da casa própria adquire contornos de pesadelo. O Estado de São Paulo até hoje não criou um fundo e um conselho estadual de habitação, para permitir a democratização do acesso aos recursos e a participação e a fiscalização dos movimentos sociais e dos municípios na definição das políticas. Ainda há, portanto, muito a avançar na questão da moradia. Como fez recentemente a prefeitura petista de São Paulo, que promoveu eleição para o Conselho Municipal e o Fundo Municipal de Habitação (da qual participaram mais de 30 mil pessoas), é urgente estimular o debate em torno do tema. É mais do que hora de descentralizar as decisões, reformular o sistema de financiamento, repensar políticas para a habitação. Para que, tijolo por tijolo, se concretize enfim o sonho da moradia, e canções belas como a do mestre Caymmi se inspirem cada vez menos numa realidade ainda tão dramática. Simão Pedro é deputado estadual (PT-SP)
O direito à habitação ?
BRASIL DE FATO De 31 de julho a 6 de agosto de 2003
Ana Fani Alessandri Carlos
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produção do espaço da metrópole revela um processo profundamente segregador, na medida em que se trata de espaços fragmentados, comprados e vendidos no mercado imobiliário que vão sedimentando a desigualdade social. Esta é mais clara no plano da habitação, pois é aqui que se revelam profundas desigualdades, impostas pela existência da propriedade privada do solo urbano. Tal fato sinaliza a principal contradição do processo de produção do espaço urbano: produção socializada versus apropriação privada. Esse processo de apropriação faz aparecer por todos os lados a desigualdade entre o “rico” e o “pobre” (entre centro e periferia e dentro de cada um) e entre este e a “miséria absoluta” representadas por aqueles que moram sob pontes ou nas praças. A disparidade também expressa-se nas construções, na existência e/ou qualidade da infra-estrutura, na roupa e rostos (na rudez ou suavidade de traços). O ato de morar revela o modo como o processo de segregação se realiza espacialmente, iluminando uma prática que justapõe morfologia social/ morfologia espacial, estratificadas e hierarquizadas em função da renda/classe social. Por outro lado, também revela uma diferenciação de usos que entram em conflito, na medida em que são contradi-
tórios os interesses dos vários segmentos da sociedade, contrapondo o processo de valorização, como condição da reprodução econômica e as necessidades da reprodução vida em sua dimensão plena. Como os interesses e as necessidades dos indivíduos são contraditórios, a ocupação do espaço não se fará sem lutas. Neste sentido o movimento da reprodução da metrópole revela os conflitos e limites da reprodução social apontando outra contradição; aquela entre valor de uso e valor de troca do espaço. Isto é, as possibilidades de produção da cidade, visando a realização da vida humana, entra em contradição com o processo de valorização do espaço, no sentido de criar possibilidades para a reprodução continuada, o que impõe o uso produtivo dos espaços enquanto a realização da vida cotidiana na cidade se realiza enquanto apropriação improdutiva. Esse processo revela, também, a existência da propriedade privada do solo urbano como condição necessária para a produção da cidade, hoje, e sua existência está legitimada pela Constituição; é porisso que as ações de “ocupação” de prédios, pelos sem-teto na metrópole são tratadas, pela mídia, como “invasão”– transgressão de um direito legítimo. Na realidade, esses movimentos sinalizam o questionamento da existência da propriedade privada do solo urbano,
daí sua radicalidade. Daí a necessidade de desqualificá-los. Mas a luta “por um teto”, ao questionar a existência da propriedade do solo urbano revela também a luta por um direito. O homem habita e se percebe no mundo a partir de sua casa. Aqui, o mundo humano é objetivo e povoado de objetos que ganham sentido à medida que a vida se desenvolve, como modos de uso da casa, da rua, da cidade, formando, por intermédio desta ação, um conjunto múltiplo de significados afetivos, que se construíram ao longo do tempo. Portanto, a habitação envolve outras dimensões espaciais como a rua, depois o bairro; estes criam o primeiro quadro de articulação espacial no qual se apóia a vida cotidiana. Como decorrência, as formas materiais arquitetônicas guardam um conteúdo social vindo da prática espacial enquanto modos de usos dos lugares. É através do uso, isto é do corpo em ato e movimento, que os habitantes se identificam com os lugares, posto que através deles se realizam os atos mais banais da vida. É a produção desta identidade que a memória ilumina, tornando-a presente e conferido-lhe um conteúdo. Assim, ato de “habitar” está na base da construção do sentido da vida, realizada enquanto prática socioespacial, modo de apropriação dos lugares da cidade, a partir da casa. O habitar implica, portanto, um
conjunto de ações que articula planos e escalas espaciais; por exemplo, entre o público e o privado se coloca como condição necessária da constituição do sujeito coletivo, como da constituição da vida que se realiza pela mediação do outro, imerso numa teia de relações que constrói uma história particular que é, também, uma história coletiva. Portanto, a condição da reprodução da vida humana articula dois planos: o individual (que se revela, em sua plenitude, no ato de habitar) e o coletivo (que diz respeito à reprodução da sociedade). Nesta dimensão, podemos afirmar que o direito à habitação é fundamental na constituição da cidadania, mas é insuficiente. Assim, o sentido do habitar é muito mais amplo que o espaço da casa (e da infra-estrutura, incluindo escolas, postos de saúde etc) envolvendo vários níveis e planos espaciais de apropriação, pois a prática socioespacial, no plano do vivido, aparece enquanto modo de apropriação dos lugares onde se realiza a vida cotidiana em seu conjunto. Nesta direção o conteúdo da cidadania não se realiza transformando o cidadão num usuário de “serviços urbanos”. Portanto, estamos diante da necessidade de pensar/ lutar pelo direito à cidade. Ana Fani Alessandri Carlos, é professora associada do Departamento de Geografia FFLCH-USP
QUE ESTÁ EM JOGO NA
OMC?”
● De 6 a 8 agosto Evento organizado para fornecer a representantes de organizações e movimentos sociais subsídios para compreender o papel da Organização Mundial do Comércio (OMC) no contexto geopolítico. E também preparar a intervenção das organizações brasileiras para o encontro ministerial que acontece em Cancun (México), de 7 a 14 de setembro.Vagas limitadas. ● Palestras do dia 6 • Das 9h às 12h: O histórico da criação da OMC, seu papel na consolidação da ordem capitalista neoliberal – com Maria Luísa Mendonça, da Campanha pela Desmilitarização das Américas, e Fátima Melo, da Rede de Integração dos Povos (Rebrip). ■ Manifestante segura cartaz “O • Das 14h às 17h30: A ideologia do mundo não é uma mercadoria” livre comércio: uma visão feminista em protesto contra a OMC, no sobre os mitos da globalização – com dia 10 de novembro de 2001, Magdalena León, da Rede Latinoem Marselha (França) americana de Mulheres Transformando a Economia (Remte). ● Palestras do dia 7 • Das 9h às 12h: As novas fronteiras da liberalização comercial – com Maria Rodrigues, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). • Das 14h às 16h: Livre comércio de quê, para quem? - com Adhemar Mineiro, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos (Dieese). ● Palestras do dia 8 • Das 9h às 12h: Resistência e alternativas ao modelo da OMC - com Maria Antilano, da Rede Mexicana de Ação Frente ao Livre Comércio (RMALC), e Sandra Quintela, da Campanha Nacional contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Local: Hotel San Raphael, Lgo. do Arouche, 150, São Paulo Mais informações: (11) 3819-3876, sof@sof.org.br
Gerard Julien/AFP
SP – SEMINÁRIO: “O
AGENDA
EXPOSIÇÃO SP – MOSTRA: “OLHOS DA CIDADE” – HISTÓRIAS NÃO CONTADAS ● De 1º a 3 de agosto Além da mostra de fotografias de moradores de Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade de São Paulo, haverá exibição de vídeos, bate-papos e atividades culturais. O objetivo é neutralizar a imagem negativa do bairro e resgatar a auto-estima dos moradores, destacando e divulgando ações construtivas que têm sido desenvolvidas na região O evento é organizado por agentes comunitários de saúde e representantes de entidades locais governamentais e não governamentais, com o apoio do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac). Horários: dia 1º, das 9h às 21 h; dia 2, das 14h às 21 h; dia 3, das 14h às 17 h. Local: EMEFM Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Av. dos Metalúrgicos, 1.155, Cidade Tiradentes Mais informações: (11) 3864-3133, com Bruna, Nil ou Niela ■ Painel “Nossa Fé”, da mostra “Olhos da Cidade”
Local: Abertura e shows - Pça. da Matriz; Palestras - Casa da Cultura, R. Dona Geralda, Parati Mais informações: (24) 3371-7082, iza.belita@uol.com.br, www.flip.org.br
ÁGUA
INTRODUÇÃO CRÍTICA DIREITO AGRÁRIO
ALCA CE – SEGUNDO ENCONTRO
AO
DOS
MIL
● Dia 2 de agosto, das 8h às 16h O encontro, promovido pela coordenação estadual da Campanha Contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), visa trazer informações aos militantes que acompanham o andamento das negociações do acordo. Luiz Bassegio, da coordenação do Grito dos Excluídos Continental, deve participar do evento. Taxa de inscrição: R$ 5,00. Local: Seminário da Prainha, Av. D. Manoel, 3, Fortaleza Mais informações: (85) 226-7277
Parte da série “O Direito Achado na Rua”, a obra consiste na coletânea de textos do curso a distância promovido pelo Grupo de Trabalho de Apoio à Reforma Agrária, da Universidade de Brasília. A publicação, organizada pela professora Mônica Gastagna Molina e pelos professores José Geraldo de Sousa Júnior e Fernando da Costa Tourinho Neto, tem como objetivo contribuir para a formação crítica sobre a concentração de terras no Brasil. Mais informações: (61) 226-6874, ramais 240 e 245, divulgacao@editora.unb.br Reprodução
LITERATURA
CE – DEBATE: “RECURSOS HÍDRICOS, DESERTIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL”
ENSINO DF – DEBATE: “POLÍTICA DE FUNDOS PARA O FINANCIAMENTO EDUCAÇÃO”
LIVRO
Consolação R. Dr.Vila Nova, 245, São Paulo Mais informações: (11) 3151-2333
DA
● Dia 1º de agosto, das 9h às 12h O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) promovem o evento para discutir a situação do ensino no Brasil e apresentar propostas em defesa da escola pública. Debatedores: a educadora Lizete Regina Arelaro e o assessor parlamentar do Partido dos Trabalhadores (PT), Carlos Baldijão. Local: SDS - Auditório da CNTE, Edifício Venâncio V, salas 201 a 206, Brasília Mais informações: (61) 322-7561, www.andes.org.br
CULTURA
RJ – FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATI
SP – SEMANA
● De 1º a 3 de agosto Entre as atividades, apresentações de dança, música, palestras e ciclos de leitura. Autores brasileiros que vão participar da festa: Ana Maria Machado, Drauzio Varella, Ferreira Gullar, Jurandir Freire Costa, Luís Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Patrícia Melo, Ruy Castro e Zuenir Ventura. Entre os estrangeiros: Daniel Mason, Eric Hobsbawm, Hanif Kureish e Julian Barnes. A abertura da festa deve contar com a presença do ministro da Cultura, Gilberto Gil.
● Até 1º de agosto O evento tem como objetivo trazer a público as diferentes visões e formas de fazer hip-hop e mapear as transformações ocorridas desde a chegada do movimento ao Brasil. Estão previstas 16 oficinas, cinco cursos, cinco sessões de debates, apresentações artísticas, exposições fotográficas e mostras de vídeo. Também devem ocorrer concertos. Locais: Ação Educativa, R. General Jardim, 660; Biblioteca Monteiro Lobato, R. General Jardim, 485; e, Sesc
DE CULTURA HIP-HOP
● Dia 1º de agosto, às 9h Continuidade da discussão do ano internacional da água, abordando a problemática da privatização e da poluição dos recursos hídricos e estimulando a discussão sobre a prevenção e o combate à desertificação. Temas que devem ser abordados: “Água bem comum: aspectos legais, potencialidades microregionais, poluição e alternativas” e “Desertificação no Semi-Árido Brasileiro”. Local: Centro de Expansão D.Vicente Matos, sítio Grangeiro, Crato Mais informações: (85)253-4728, (88)521-3005, acb@netcariri.com.br
RELIGIÃO SP – 3º ENCONTRO NACIONAL MOVIMENTO FÉ E POLÍTICA
DO
● Inscrições até 1º setembro “Conquistar a Terra Prometida” é o tema do evento, que vai acontecer em 20 e 21 de setembro, em Goiânia (GO). Devem participar do encontro dom Tomás Balduíno, Leonardo Boff e Frei Betto, além de educadores populares, antropólogos, teólogos e políticos. Até 1º de agosto, o preço da inscrição é R$ 10,00; após esta data, R$ 15,00. O pagamento deve ser realizado por depósito no Banco do Brasil, agência 0264-x, conta corrente 24 231. Local: Secretaria Nacional de Fé e Política, Pça. do Carmo, 36, Santo André (SP) Mais informações: (11) 4438-9211, mov.fepolitica@uol.com.br
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MOBILIZAÇÃO
Arquivo Ibeac
Confira algumas atividades populares, sociais e culturais desta semana. Para incluir seu evento nesta agenda, envie uma mensagem eletrônica para agenda@brasildefato.com.br
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CULTURA
A reabertura do Museu das Artes Gráficas, em agosto, é uma conquista importante para a atividade cultural paulistana e do país; a dança e a música do bumba-meu-boi está sempre presente na vida artística maranhense, atraindo visitantes de toda parte
ARTES GRÁFICAS
Museu das Artes Gráficas de São Paulo (MAG) vai ser reaberto em 30 de agosto, com uma mostra itinerante, durante o Salão de Humor de Piracicaba. Segundo Gualberto Costa, presidente do Instituto Brasileiro das Artes Gráficas, diretor e idealizador do museu, os originais vão permanecer no Arquivo do Estado por mais dois anos, para depois terem um espaço próprio. Mas as exposições do acervo devem acontecer também em espaços como a Pinacoteca, o Museu da Imagem e do Som (MIS) e o Paço das Artes. Ainda serão organizadas mostras itinerantes nas cidades paulistas.“Acho interessante um museu que vai até as pessoas”, diz Costa. O MAG foi inaugurado em 16 de dezembro de 2002, com a presença de artistas renomados das artes gráficas, como Júlio Shimamoto, Watson Portela, Osvaldo Pavaneli, Spacca, Angeli, Kipper, Adão Iturrusgarai, Glauco, Lélis, Fernando Gonsales e Laerte. O acervo é composto por 9.756 originais de cartuns, charges, caricaturas e histórias em quadrinhos, doados por 170 artistas. Em abril, foi fechado por conta do alto custo de manutenção (R$ 159 mil por ano) e da baixa
visitação (duas pessoas, em média, por dia). Costa afirma, no entanto, que o público não é a parte fundamental de um museu. Para ele, “a função do museu é preservar a memória. O público é conquistado com a educação”. O artista gráfico Elifas Andreato, famoso por suas capas de discos de vinil, acredita que o povo só reconhecerá a importância do museu quando tiver suas necessidades básicas supridas. Infelizmente, um povo ignorante e desprovido de necessidades básicas não tem interesse por cultura”, diz Andreato. Em resposta ao fechamento, artistas se uniram em uma campanha com iniciativas como a do Universo HQ, portal da internet sobre quadrinhos, que encabeçou um abaixo-assinado de mais de 10 mil assinaturas. Com toda a polêmica, os artistas perceberam a importância de não depender apenas do governo para manter o MAG. “Estamos atrás de patrocinadores porque não queremos que só o Estado sustente o museu”, revelou Costa. Andreato afirma que a existência do museu depende dos artistas: “Se queremos um museu de artes gráficas, nós, os artistas gráficos, precisamos assumir que ele é importante para nós”. Costa teve a idéia de criar o museu quando era da diretoria da Associação dos Quadrinistas e
Cartunistas e responsável pela parte cultural e de memória. “Eu pensava na importância das charges publicadas diariamente e achava que tinha que guardá-las”, lembra. Com patrocínio, contratou uma empresa que lhe enviava todas as charges publicadas no Brasil. “Chegou uma hora que não tinha condições de arquivar o material”, conta Costa. Embora o material tenha acabado no lixo, a experiência fez Costa perceber a importâcia de um museu que preservasse a memória de charges e cartuns produzidos no país. “Luto por esse museu há 20 anos. Fui persistente e não fugi da briga”, afirma o entusiasmado fã das artes gráficas.
■ Museu reabre depois de uma intensa campanha realizada por artistas, com iniciativas como um abaixo-assinado que recebeu mais de 10 mil assinaturas
Arquivo MAG
Natália Gómez, de São Paulo (SP)
Arquivo MAG
Luta dos artistas reabre museu
MARANHÃO
Julho é ainda tempo de bumba-meu-boi
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o contrário do que acontece em outros Estados, no Maranhão as festas juninas se estendem julho adentro, com destaque para as apresentações de danças populares, como o bumbameu-boi, o tambor-de-crioula e o cacuriá. Nesse período, a ilha de São Luís “dorme ao som dos tambores”, segundo o antropólogo Sérgio Ferretti. O fato é que a nova política cultural adotada pelo poder público vem procurando transformar essas manifestações populares em cifras, gerando um verdadeiro impacto cultural, pasteurizando e banalizando a cultura do Estado. Este ano, a Secretaria de Turismo do Estado não perdeu a oportunidade para divulgar seu Plano de Desenvolvimento Integral do Turismo do Maranhão. Gastou R$ 9 milhões em publicidade, infra-estrutura e promoção de atrações culturais em diversos pontos turísticos da capital. O bumba-meu-boi é certamente o mais conhecido entre os festejos.A tradição conta que Francisco era vaqueiro de um rico fazendeiro e, certa vez, sua mulher, Catirina, que estava grávida, desejou comer a língua do boi preferido do patrão. Não querendo contrariar a mulher, Francisco matou o boi na calada da noite para que ela pudesse comer-lhes a língua. Para que o patrão de nada desconfiasse e não o castigasse, Francisco resolveu “fazer” outro boi e colocálo no lugar do que havia matado. À noite, sob a lua cheia de junho e julho, o boi dança no terreiro para alegrar o patrão.
O bumba-meu-boi se organiza em grupos com diferentes “sotaques” musicais, que se caracterizam na variação dos trajes, da dança e dos instrumentos e ritmos musicais, oriundos de diferentes regiões do interior. Os principais deles são: orquestra, matraca, baixada, costa de mão e zabumba. O “sotaque” de orquestra é o que mais vem sofrendo com o impacto cultural e já perdeu muito de sua tradição. A cada ano eles se distanciam mais dos elementos típicos e adotam, por exemplo, até adereços carnavalescos em sua indumentária, assemelhando-se ao que acontece em Parintins, na Amazônia. Os demais sotaques ainda resistem, apesar de todo o apelo consumista e mercadológico sofrido nos últimos tempos. O boi de zabumba do bairro Fé em Deus, organizado por Terezinha Jansen, é um dos mais autênticos.
É um dos poucos que ainda obedecem aos fundamentos do ritual que se prolonga, na verdade, durante o ano todo. Os bois mais tradicionais são os de Axixá, Pindaré e Morros. Em São Luís, destacam-se os de Maracanã, Maioba e Madre Deus. Muitos desses grupos enfrentam uma maratona de apresentações em casas de particulares e arraiais pelo Estado afora. Como numa escola de samba, todo ano lançam canções (as toadas) abordando temas ligados, muitas vezes, a problemas sociais.
Principais “sotaques” musicais ■ Zabumba É o mais antigo que se conhece. Tem suas origens no litoral maranhense e possui características mais africanas, com os instrumentos tambor de fogo, zabumba e maracá.Tem um ritmo parecido a um samba primitivo. ■ Baixada Possui forte influência indígena, de ritmo constante e cadenciado, executado por pandeiros, matracas (pedaços de madeira batidos um contra o outro) e maracás. É originário da baixada Maranhense. ■ Matraca Típico dos arredores de São Luís, tem marcação mais forte e acelerada. Possui pandeirões, matracas maiores e maracás. ■ Orquestra É marcado por um conjunto de instrumentos de sopro, banjo, cavaquinho, violão, zabumba e maracá.
■ Grupos de bumba-meuboi se apresentam em arraiais de São Luís: festa dura o ano todo Fotos: Marco Antônio Sá
Vanessa Serra, de São Luís (MA)
Tambor-de-crioula e cacuriá Carla Melo, de São Luís (MA) o caldeirão cultural maranhense há espaço para outras manifestações populares, como tambor-de-crioula e cacuriá. O primeiro, cuja procedência também é africana, empresta às festas juninas um ritmo próprio, em que as dançarinas, chamadas de coreiras, parecem entrar numa espécie de transe. Apenas mulheres dançam. Aos homens cabe a responsabilidade de tocar os tambores, que imprimem um ritmo frenético à dança.
No cacuriá, é também a percussão que dá o tom da brincadeira, cuja raiz religiosa está na festa do Divino Espírito Santo. Criada há cerca de 30 anos, a música é executada ao som de pequenos tambores, chamados caixas. Porém, o que mais chama a atenção é a sensualidade da dança. Semelhante à dança de roda, o cacuriá e suas letras de duplo sentido são um atrativo a mais. A exemplo do bumba-meu-boi, o tambor-de-crioula e o cacuriá se mantêm vivos graças à população pobre do interior do Estado e das periferias das cidades.