BRASILDEFATO Ano I ■ Número 24 ■ São Paulo ■ De 14 a 20 de agosto de 2003
Circulação Nacional
R$ 2,00
Governo reage aos ataques da elite contra os movimentos sociais conservadores, alguns juízes e intelectuais, latifundiários e a grande mídia (televisiva e impressa) pressionam o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e exigem um endurecimento no trato com as mobilizações populares. Acusam os movimentos de levar
o país “ao caos” e ameaçar a democracia. Por intermédio de seus ministros, o governo bateu duro. Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, afirmou que não aceita conselhos da direita; José Dirceu, da Casa Civil, declarou que há preconceito de classe contra os movimentos
sociais. Para Dirceu, a dimensão atribuída às mobilizações tem um componente político. Segundo Olívio Dutra, ministro das Cidades, as manifestações populares são a voz dos que nunca tiveram vez como protagonistas da história política do país. Pág. 3
Flávio Cannalonga/Greenpeace
Em coro, políticos
ENCARTE ESPECIAL
A ameaça dos transgênicos As transnacionais fabricantes de produtos transgênicos (OGMs) intensificam as pressões para que o Brasil libere o cultivo e a comercialização de alimentos modificados. A mídia dá
pouco destaque ao assunto, que é dos mais graves. Os cientistas não conhecem, ainda, os efeitos dos OGMs sobre os seres humanos e sobre o ambiente. Além disso, os transgênicos ameaçam a
soberania nacional, pois um punhado de empresas detém o monopólio sobre as sementes modificadas. Por tudo isso, o Brasil de Fato oferece a seus leitores um encarte especial sobre o tema.
A Gaviões da Fiel acolhe sem-teto despejados
Servidores mantêm pressão contra a reforma
No México, ativistas preparam resistência à OMC
A torcida organizada do Corinthians Gaviões da Fiel acolheu, dia 10, 400 famílias sem-teto despejadas em São Bernardo do Campo. A Gaviões cedeu provisoriamente um terreno em São Paulo. Três dias antes, as famílias haviam decidido sair pacificamente de uma área da Volkswagen. Dezenas de sem-teto foram agredidos por policiais. Pág. 6
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) estão preparando uma marcha, dia 19, em Brasília, para protestar contra a reforma da previdência proposta pelo governo. A manifestação está agendada para a data em que deve ocorrer a votação em 2º turno, na Câmara. Pág. 6
Quarenta mil ativistas do mundo todo vão ocupar o balneário mexicano de Cancún para protestar contra a 5ª Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio, marcada para 10 a 14 de setembro. Os manifestantes preparam encontro alternativo, o Fórum dos Povos. Uma das atividades será a Marcha Mundial contra a Globalização, em 13 de setembro. Pág. 10
Marcha lembra 20 anos do assassinato de Margarida Alves
E mais:
Pág. 7
O Incra está quebrado DESMONTE DO ESTADO
Em 2002, o orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de R$ 889 milhões, foi 62% menor do que o de 1997. Uma perda de R$ 1,434 bilhão. Para este ano, em
tese, o Incra teria R$ 1,475 bilhão no orçamento da União, mas R$ 456,2 milhões estão contingenciados, ou seja, não podem ser gastos para que o governo economize e pague parte dos juros de sua dívida. Pág. 5
Mais benefícios para montadoras O governo reduziu em 3% a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para a indústria automobilís-
tica. A iniciativa é duvidosa quanto à geração de empregos e pode agravar a concentração de renda. Pág. 4
RÁDIOS COMUNITÁRIAS – A burocracia para registro de emissoras deve ficar mais fácil, mas a repressão pode aumentar. Pág. 7 DÍVIDA EXTERNA – A Campanha Jubileu Sul propõe a declaração da ilegitimidade da dívida externa dos países pobres. Pág. 9 IRAQUE - Estados Unidos criam lei para proteger empresas transnacionais na exploração de petróleo no país árabe. Pág. 11 PRECONCEITO – O exportador Carlos Antônio Cerqueira Lima diz que o Brasil perde negócios porque a elite tem preconceito contra a África. Pág. 12 DEBATE - Deputado federal Orlando Fantazzini (PT-SP) e o sociólogo Ricardo Antunes rejeitam proposta do governo para reforma da previdência. Pág. 14 TEATRO PARA OS OPRIMIDOS – O diretor Luiz Fernando Abreu vai encenar a Missa dos Quilombos, de Dom Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento. Pág. 16
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
Globo desafia a Justiça e não apresenta documentos
Com cantos e danças tradicionais, os índios Denis, do Sudoeste da Amazônia, festejaram, dia 5, a demarcação de suas terras, depois de 18 anos de espera. Será formado um corredor de mais de 3,6 milhões de hectares de floresta amazônica, beneficiando uma população de 2,4 mil pessoas. Pág. 13
Marcio Baraldi
Pág. 8
Índios Denis comemoram demarcação de terras
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Fala, Zé!
Por que o caderno sobre transgênicos
Ohi
NOSSA OPINIÃO
Você se sente bem informado sobre o que são alimentos transgênicos? Você sabe o que dizem as leis brasileiras sobre o tema, e qual a posição mantida pelo atual governo federal? Você é capaz de identificar quais são os principais grupos produtores de transgênicos e qual a sua atuação no Brasil? Caso você não consiga responder afirmativamente, não se sinta culpado: a mídia nacional jamais deu ao assunto o destaque e a profundidade que ele merece. Por essa razão, Brasil de Fato lança, nesta edição, um caderno especial sobre alimentos transgênicos. Trata-se de uma tentativa de oferecer aos leitores um esclarecimento, cada vez mais urgente e necessário, sobre o que está realmente em jogo. Em geral, quando a mídia publica notícias sobre os alimentos geneticamente modificados, elas se restringem a discussões genéricas, tão mal informadas quanto equivocadamente formuladas. As informações se resumem a dados estatíscos relativos à produtividade do solo e à suposta eficácia econômica do produto. Fica parecendo que os transgênicos fornecem uma solução quase “mágica” para o problema da fome no mundo. Basta usar sementes transgênicas e teremos a solução para combater as pragas e aumentar a produção, a preços mais baixos. Só há um problema: os dados divulgados pela mídia são, na maioria dos casos, fornecidos pelas próprias transnacionais que fabricam as sementes, ou produzidos por técnicos “independentes” que fazem pesquisas financiadas por aquelas empresas. Além disso, quase nunca são mencionados os efeitos nocivos de seu uso, nem o fato de que os países europeus e asiáticos vetaram a importação de transgênicos, como medida de proteção da saúde pública. Os cientistas não chegaram a uma conclusão definitiva sobre os efeitos dos alimentos transgênicos no corpo humano (embora haja suspeitas fortemente fundamentadas de que eles possam causar alergias e enfraquecimento do sistema imunológico), nem quanto ao seu impacto no meio ambiente (o seu uso tende a uniformizar as sementes, empobrecendo a biodiversidade, além de perturbar gravemente o equilíbrio do ecossistema) e à soberania nacional alimentar (pois um punhado de empresas transnacionais detêm o monopólio sobre as sementes geneticamente modificadas). Hoje, o Brasil é alvo de uma forte pressão, por parte das transnacionais, no sentido de liberar o cultivo e o consumo de transgênicos (proibidos por lei). A transnacional estadunidense Monsanto, que fabrica a soja transgênica Roundup Ready, enxerga na eventual abertura do mercado brasileiro a oportunidade de sair de uma situação falimentar. Pela mesma razão, George Bush pressiona os países europeus e asiáticos, no quadro da Organização Mundial do Comércio (OMC), exigindo a liberação dos alimentos modificados. Não é exagero dizer que o futuro do comércio mundial dos transgênicos depende da decisão brasileira. O assunto, portanto, é gravíssimo. No caderno especial, oferecemos a você os dados e os cenários, para que você mesmo tire a sua conclusão. Resta saber em nome do que a mídia oculta a dimensão do problema. Talvez os milhões de reais que ela receba das transnacionais, em troca de publicidade paga em suas páginas, indique uma resposta.
BRASILDEFATO CONSELHO POLÍTICO: Achille Lollo ■ Ari Alberti ■ Ariovaldo Umbelino ■ Assunção Ernandes ■ Aton Fon Filho ■ Augusto Boal ■ Cácia Cortez ■ Carlos Marés ■ Carlos Nelson Coutinho ■ Celso Membrides Sávio ■ Claus Germer ■ Dom Demétrio Valentini ■ Dom Mauro Morelli ■ Dom Tomás Balduíno ■ Edmilson Costa ■ Elena Vettorazzo ■ Emir Sader ■ Egon Krakhecke ■ Erick Schunig Fernandes ■ Fábio de Barros Pereira ■ Fernando Altemeyer ■ Fernando Morais ■ Francisco de Oliveira ■ Frederico Santana Rick ■ Frei Sérgio Gorgen ■ Horácio Martins ■ Ivan Valente ■ Jasper Lopes Bastos ■ ■ João Alfredo ■ João Capibaribe ■ João José Reis ■ João José Sady ■ João Pedro Stedile ■ Laurindo Lalo Leal Filho ■ Leandro Konder ■ Luís Alberto ■ Luís Arnaldo ■ Luís Carlos Guedes Pinto ■ Luís Fernandes ■ Luis Gonzaga (Gegê) ■ Marcelo Goulart ■ Marcos Arruda ■ Maria Dirlene Marques ■ Mário Augusto Jakobskind ■ Mário Maestri ■ Nalú Faria ■ Nilo Batista ■ Oscar Niemeyer ■ Pastor Werner Fuchs ■ Pedro Ivo ■ Raul Pont ■ Reinaldo Gonçalves ■ Renato Tapajós ■ Ricardo Antunes ■ Ricardo Rezende Figueira ■ Roberto Romano ■ Rodolfo Salm ■ Rosângela Ribeiro Gil ■ Sebastião Salgado ■ Sérgio Barbosa de Almeida ■ Sérgio Carvalho ■ Sérgio Haddad ■ Tatau Godinho ■ Tiago Rodrigo Dória ■ Uriel Villas Boas ■ Valério Arcary ■ Valter Uzzo ■ Vito Gianotti ■ Vladimir Araújo ■ Vladimir Sacheta ■ Zilda Cosme Ferreira ■ Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores ■
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
CONSELHO EDITORIAL: ■ Alípio Freire ■ César Benjamim ■ César Sanson ■ Hamilton Octávio de Souza ■ Kenarik Boujikian Felippe ■ Luiz Antonio Magalhães ■ Luiz Eduardo Greenhalgh ■ Luiz Bassegio ■ Maria Luísa Mendonça ■ Milton Viário ■ Neuri Rosseto ■ Plínio de Arruda Sampaio Jr. ■ Ricardo Gebrim
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Cartas de leitores REFORMA SINDICAL Com a eleição de um ex-sindicalista para o cargo de presidente da República, a questão sindical foi colocada em discussão. Foi criado um Fórum Nacional com a participação do poder público e de entidades sindicais de patrões e empregados. O debate está posto, e por certo vão surgir propostas as mais diferentes. Da nossa parte temos clareza que a atual estrutura não pode continuar. Precisamos pensar na liberdade e autonomia sindicais, com algumas regras básicas, entre as quais a representação por ramo de produção, sem a chamada categoria diferenciada. As entidades serão mantidas pelas contribuições dos associados. O sistema confederativo será substituído pela legalização das centrais sindicais. A representação por local de trabalho é outro ponto fundamental, podendo ser usado o critério de eleições das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes para estabelecer o número de integrantes das diretorias com efetiva representação do local de trabalho. São algumas idéias a serem
aperfeiçoadas no debate conseqüente, sem pressa, dada a importância do assunto. Uma questão é clara: sem mudança radical, o nosso sindicalismo não tem futuro, pode acabar de vez. E essa hipótese não pode transformar-se em realidade. Uriel Villas Boas, presidente do Sindicato dos Siderúrgicos e Metalúrgicos da Baixada Santista FOME DE JUSTIÇA Aos olhos da população, a Justiça parece elitista, lenta, onerosa e alheia às expectativas dos cidadãos comuns. Arvora-se intocável, mas peca em suas funções essenciais e se mantém fora do alcance do povo. Sem justiça perde-se a noção de cidadania, o povo tem “ fome de justiça “. É desafio de todos aqueles que fazem e representam as leis, responder à altura os anseios da população, sem medo. A justiça é o desaguar de todos os conflitos da sociedade e a história que poderá ser contada às próximas gerações sem nenhuma vergonha. Luiz L. Marins, São Paulo (SP)
MENTIRAS DE CUBA Uma telenovela da Rede Globo, Kubanacan, vem procurando mostrar, numa grotesca alusão à Cuba, uma ilha caribenha como uma simples caricatura de uma pequena nação governada ditatorialmente. Porém, se julgar o tipo de ditadura lá existente, cumpre esclarecer que a ilha é referência mundial em Educação e Saúde Pública. Igualmente, é potência esportiva mundial. E no mais recente levantamento da ONU relativo ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Cuba está em 52º lugar entre 175 países pesquisados, e 13 posições acima do Brasil. E, embora vivendo sob forte embargo comercial do seu gigantesco vizinho, poderoso império ditatorial global, Cuba sobrevive. Assim sendo, considero o autor da dita novela um ignorante em matéria de história contemporânea, ou intencionalmente mal assessorado. João Carlos Luz Gomes, Porto Alegre (RS)
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CONJUNTURA POLÍTICA
NACIONAL
A direita, tendo como porta-vozes alguns governadores, juízes e a grande imprensa, procura encurralar o governo Lula, disseminando a idéia de que as mobilizações populares estão levando o país ao caos; os ministros reagem e não aceitam as provocações
DIREITA & MÍDIA O ministro Márcio Tomaz Bastos, da Justiça, não deixou passar em branco a provocação do governador. “Não vamos aceitar o conselho da direita de que é preciso baixar o pau nos movimentos sociais, porque não é preciso”, afirmou no dia 11. Para ele, há uma condescendência natural no regime democrático com os movimentos sociais, e o governo não deixará que haja ruptura e transgressão às normas da legalidade. “É o momento dos que nunca tiveram vez, nem voz, de serem protagonistas da história política do país”, afirmou, por sua vez, o ministro das Cidades, Olívio Dutra, ao Brasil de Fato. Porém, para a considerada grande imprensa, quando os protagonistas são os pobres e os movimentos sociais, então está instaurado o “caos social”. Nessa mídia, em vez de informações, especulações. Que vão desde a suposta movimentação ilegal de dinheiro pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), até a organização de guerrilhas pré-revolucionárias. VELHOS FACTÓIDES Como a história só se repete como farsa, ultimamente as maiores redes de televisão e de jornal voltam a usar e abusar da mesma ladainha que foi sua característica às vésperas do golpe de 1964: a democracia e a ordem estariam ameaçadas. Exemplos não faltam. Em entrevista ao Estado de S.Paulo, dia 1º, Eliézer Rizzo de Oliveira, cientista político da Universidade de Campinas, afirmou que a violência é inerente ao MST, pois um de seus ícones é Che Guevara. E o país cor re o r isco de “colombianização”, com a formação de “milícias paramilitares contra a reforma agrária, em luta com as forças paramilitares a favor dela”. No entanto, esse tipo de rea-
■ O ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos não aceita conselhos das elites conservadoras ção não é fenômeno novo na história do Brasil. Para o advogado Plinio Arruda Sampaio, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), a reação da direita é reflexo das mudanças propostas pelo governo Lula, em especial, a reforma agrária. Ele critica a postura dos inte-
lectuais que têm contribuído para criar um clima de caos social . “A direita sempre teve intelectuais a seu serviço para racionalizar seus interesses. É o que eles têm feito”. ORDEM E DESORDEM Marilena Chauí, professora de
■ Marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) chegando em Santa Margarida do Sul (RS). O juiz Loraci Flores de Lima, da 2ª Vara Federal de Santa Maria, determinou na segunda-feira, dia 11, que o MST suspenda a marcha que faz em direção a São Gabriel, na região Fronteira Oeste, e que os ruralistas que se preparavam para sair pela BR-290 ao encontro dos sem-terra também desistam da mobilização
nimas de moradia e sobrevivência. Mas, em nome da “ordem”, devem enfrentar as milícias organizadas pelos latifundiários, que seguem armados e assassinando trabalhadores rurais; as polícias de gover nadores truculentos; a criminalização dos líderes dos movimentos sociais; e, de quebra, o reacionário coro da grande mídia. O ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos) considera um absurdo a criminalização de lideranças dos sem-terra. “Antes de os juízes condenarem e criminalizarem as ocupações, teriam que avaliar a função social da terra, que está improdutiva”, afirma. PRÉ-GOLPE? Analistas políticos de TVs, rádios e jornais de todo o país vêm comparando a conjuntura política atual com o período que antecedeu o golpe de 1964. Este tipo de comparação é “uma tentativa da direita para intimidar os movimentos sociais e o governo. O exército brasileiro está completamente integrado ao governo, não há qualquer risco de golpe militar”, assegura Nilmário Miranda. Não se deixar intimidar, diz o deputado federal Ivan Valente (PT-SP), significa viabilizar as propostas do governo para que possam, efetivamente, atender às demandas sociais. “O governo não pode entrar na provocação de elites acostumadas a concentrar riqueza e terras. Para manter o projeto conservador, eles criam essas tensões, mas não há comparação com a correlação de forças de 64 e de hoje”, explica o deputado. O compromisso anunciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de priorizar a reforma agrária no próximo semestre tem se afinado com o discurso de seus ministros. Para descontentamento dos ruralistas e dos conservadores brasileiros, no dia 11, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, afirmou, em São Paulo, que “os milhares de trabalhadores e trabalhadoras sem-terra que estão nas ruas deste país não são criminosos, são lutadores da justiça, da dignidade e da democracia”.
SEGURANÇA ALIMENTAR
Justiça surpreende e libera transgênicos Claudia Jardim, da Redação A Monsanto está em festa, mas pode ser por pouco tempo. No dia 12, a desembargadora Selene Maria de Almeida, do Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília (DF), suspendeu a sentença da 6º vara da Justiça, e liberou o cultivo e a comercialização de transgênicos no país. A liminar terá validade até o julgamento do mérito da ação, que vai ser analisada por mais dois desembargadores do TRF. A decisão ainda está sendo analisada pelos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. ”O que estamos entendendo é que há uma liberação temporária para pesquisas sobre transgênicos, e uma liberação do plantio até o julgamento definitivo da questão.
Como não tenho certeza, vou aguardar a posição da minha consultoria para decidir”, afirmou o ministro Roberto Rodrigues, da Agricultura. GOLPE Já o Ministér io do Meio Ambiente, divulgou nota sobre os riscos da decisão da juíza e do cultivo de transgênicos: “A liberação do plantio da soja transgênica pode causar sérios riscos para o meio ambiente do Brasil, tendo em vista não terem sido realizados estudos ambientais em nosso país, como reconhecido pela própr ia desembargadora ao conceder a liminar”. De seu lado, a juíza Salete Maria de Almeida alega ter se baseado nos estudos de órgãos científicos internacio-
nais que “comprovam a sanidade da soja Roundup Ready”. “Essa ação é um golpe na cidadania brasileira para favorecer os interesses da transnacional.”, afirma o deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT-RS). Para ele, o recurso apresentado pela Monsanto, e acatado pela Justiça, tem como objetivo principal garantir o plantio de organismos geneticamente modificados (OGMs) já para a próxima safra. Em 2002, a Monsanto teve prejuízo de cerca de 1,7 bilhão de dólares e, de acordo com a previsão da Innovest Strategic Value Advisors, suas ações devem ficar abaixo da média do mercado a médio e longo prazo. De acordo com pesquisa da Innovest, a rejeição aos alimentos transgênicos tem crescido
no mundo, inclusive nos Estados Unidos. RECURSO O Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), responsável, juntamente com o Greenpeace, pela ação civil pública que levou à suspensão do cultivo transgênico, divulgou nota afirmando que vai recorrer da decisão da juíza e lamenta a ação. Enquanto os ministérios e as organizações decidem a legitimidade da liminar, a Comissão Interministerial encarregada de elaborar projeto de lei sobre biossegurança deve encaminhar proposta ao Congresso Nacional, até o dia 15, para ser votado em regime de urgência, no máximo em 45 dias, e estabelecer as novas regras e o futuro dos transgênicos no Brasil.
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“H
á um preconceito de classe contra os movimentos sociais. Quando é ocupação de semteto, parece que o mundo vai acabar. Envolve um preconceito de classe. Isso tem um nome, é o pobre. Traz a consciência da dramaticidade da situação do Brasil, a herança que recebemos nos últimos 50 anos. Traz o medo”. Palavras do ministro José Dirceu, da Casa Civil, no dia 5. Sua declaração, porém, não basta para convencer os ultraconservadores, que insistem em criminalizar os movimentos sociais. Ora no discurso de governadores, ora na truculência de parte do Judiciário, todos ajudados pela grande imprensa, que tem desempenhado o papel de verdadeiro “partido das elites”. Jarbas Vasconcelos (PMDB), governador de Pernambuco, é um especialista em truculência: autorizou a violenta ação de despejo de 300 famílias acampadas em Engenho Prado, a ponto de merecer denúncia da Organização das Nações Unidas (ONU) por violação aos direitos humanos. Por isso, vem a público afirmar que, se o governo não impuser limites “às invasões, pode se ter algo muito mais grave do que um golpe militar”.
filosofia da Universidade de São Paulo, colocou os devidos pingos nos ii, em entrevista à Folha de S.Paulo, dia 3. Aos que consideram a organização dos movimentos sociais ameaça à democracia e responsáveis pelo caos social,deu um recado: ao contrário da “crise” que o jornal tenta criar, o momento é de comemoração pelo fato de o país estar, finalmente, conhecendo uma experiência democrática. “Democracia não é, como querem os liberais, o regime da lei e da ordem. Não estamos numa monarquia absolutista. Na democracia, graças ao trabalho do conflito, a sociedade diz ao governo o que ela pensa, o que quer e como quer que seja feito”, disse ela. E assim têm feito os movimentos sociais país afora.Além de exigir do governo a realização das reformas agrária e urbana, têm ocupado os espaços ociosos e terras improdutivas para garantir condições mí-
José Doval/Zero Hora/AE
Claudia Jardim, da Redação
José Cruz/ABR
Para conservadores, democracia é sinônimo de caos social
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NACIONAL
Privilégios à indústria automobilística perpetuam modelo concentrador da renda e poluidor, com efeitos questionáveis sobre a criação de empregos; as empresas oferecem pouco em contrapartida, não garantem a manutenção de postos de trabalho, nem dos preços dos carros
MONTADORAS
Lauro Jardim, de São Paulo (SP)
E
ntre 1992 e 2002, o total de salários pagos no país desabou de R$ 581,4 bilhões para R$ 475,7 bilhões, uma perda de R$ 105,7 bilhões, ou quase 8% de todas as riquezas produzidas pela economia brasileira em um ano. Isso é uma evidência de que a renda nacional está sendo desviada para outras áreas, agravando a concentração. Um desses desvios é o perdão de impostos e outros benefícios que os governos decidem dar a uns poucos setores de atividades, entre eles o automotivo. No dia 5, o governo reduziu em 3 pontos percentuais a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para automóveis de até duas mil cilindradas. Com isso, deixará de ser arrecadado algo como R$ 342 milhões de IPI, em mais uma doação às montadoras. Com validade até o dia 30 de novembro, a medida foi tomada para estimular as vendas de autoveículos, cujo estoque atual é da ordem de 100 mil unidades. Negando que o setor automotivo esteja recebendo um tratamento privilegiado, o ministro Antonio Palocci, da Fazenda, justificou a renúncia fiscal com o argumento de que poderá reaver o valor dos tributos com a hipotética retomada nas vendas de automóveis. De seu lado, a indústria se comprometeu a repassar integralmente a redução de 3 pontos no
Epitácio Pessoa/AE
Em quatro anos, benefícios de R$ 54 bi Dados da Anfavea informam que, de 1980 a 2001, as montadoras de veículos investiram 23,4 bilhões de dólares (cerca de R$ 78 bilhões). No mesmo período, seu faturamento líquido totalizou 270,6 bilhões de dólares (R$ 900 bilhões) – onze vezes mais.
■ José Feijóo, presidente do sindicato dos metalúrgicos do ABC, em assembléia na Mercedes Benz IPI aos preços finais, e manter os empregos existentes hoje. Mas, apesar desses novos privilégios, as montadoras não garantem a suspensão nos cortes de pessoal. Continuam previstos o afastamento supostamente temporário de 600 trabalhadores da General Motors, e a demissão (disfarçada de remanejamento e futura recolocação) de quase 4 mil empregados da Volkswagen. Essas atitudes não são novidade, porque o setor emprega cada vez menos. AUMENTOS Quanto à manutenção dos preços vigentes, Ricardo Carvalho, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veícu-
los Automotores (Anfavea), já avisou que o acordo não descarta a possibilidade de novos reajustes. Por exemplo, quando das negociações salariais na data-base dos metalúrgicos, em novembro. Por sinal, de janeiro a julho, enquanto a inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC) da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) foi de 5,2%, no mesmo período, os aumentos de preços dos automóveis Fiat, Ford, GM, Renault e Volkswagen variaram de 1,61% até 19,76%. Se o consumidor vai ser beneficiado com a redução do IPI, é outra história. Segundo cálculos iniciais, a queda no preço final dos automóveis deverá ser in-
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Em parte, o dinheiro desviado dos assalariados foi parar nos bolsos dos grandes grupos econômicos e financeiros que dominam a economia nacional, concentrando a renda, gerando levas de desempregados e sub-empregados. Diz-se que o incentivo às montadoras é importante porque ajudará a economia a se recuperar, uma vez que o aumento das vendas de automóveis contribuiria para puxar o crescimento de uma série de outros setores. Tudo isso é parcialmente verdadeiro. Os mesmos objetivos poderiam ser atingidos por outros caminhos, sem criar o mesmo tipo de problemas que têm bloqueado o avanço do país. O que está em jogo é exatamente como se pretende que isso aconteça: repetir um modelo que concentra a renda e aumenta a miséria da população, ou jogar no lixo esse modelo e partir para um novo? Há alternativas para voltar a crescer sem perpetuar as distorções. Considerando que, atualmente, a indústria enfrenta grande ociosidade, é possível, por exemplo, atualizar o salário mínimo, ou corrigir aposentadorias e pensões, com reflexos positivos sobre o consumo, as vendas e o emprego. Sem gerar pressões inflacionárias. QUESTÃO DE ESCOLHA Mas, a depender da escolha, a economia pode experimentar fortes taxas de crescimento e, ainda assim, não criar os empregos que o país necessita. De outro lado, os índices de aumento podem ser menores e, a despeito disso, o emprego crescer mais rapidamente. O governo tem esses dados nas mãos. O estudo mais recente do Banco mostra que, para um aumento de R$ 10 milhões na produção, a indústria de vestuário é a que apresenta o maior aumento do
Ayrton Vignola/Folha Imagem
Ainda o mesmo modelo perverso
ferior a 3%. Nas contas das concessionárias, nos carros populares, a redução ao consumidor pode oscilar de R$ 444 a R$ 528. UM MAR DE VANTAGENS Desde 1999, esta foi a quarta rodada de redução de impostos que beneficiou a indústria automobilística. Só em 2003, as doações às montadoras devem consumir R$ 1,122 bilhão, enquanto falta dinheiro, por exemplo, para fazer a reforma agrária. Mas há muito mais.Levantamento realizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) prova que o setor sempre recebeu incentivos. De acordo com o BNDES, entre 1996 e 1999, somando benefícios fiscais assegurados pelos governos federal, estaduais e municipais, perdão de impostos e gastos realizados pelo setor público para atender exigências da indústria de carros e autopeças, as vantagens consumiram 18 bilhões de dólares, ou perto de R$ 54 bilhões. O valor supera em 18% os 15,2 bilhões de dólares (R$ 45,6 bilhões) investidos no Brasil pelas montadoras e fabr icantes de autopeças entre 1997 e 2001. Ou seja, o contribuinte pagou para que as montadoras fizessem suas novas fábricas. E o retorno disso? O emprego gerado diretamente pelo setor encolheu, apesar de o número de empresas ter aumentado.
TODOS PAGAM Repete-se,hoje,um modelo que, além de concentrar a renda, tem agravado problemas ambientais nos centros urbanos, afetando a qualidade de vida da população, como apontou o engenheiro Cláudio de Senna Frederico, vice-presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Segundo o especialista, os usuários de carros no país pagam, hoje, o correspondente a apenas 10% ou 20% dos custos reais de um veículo. Os restantes 80% a 90% são pagos por toda a sociedade, sob a forma de novas estradas e rodovias, gastos com saúde, para tratamento de complicações respiratórias provocadas pela poluição do ar, além de despesas para mitigar e compensar outros impactos ambientais, causados pelas obras viárias, nos solos e nos mananciais. SALÁRIOS X IMPOSTOS O que a queda no total de salários pagos no país tem a ver com a redução de impostos concedido às montadoras? Tudo. Diante dos argumentos utilizados em defesa de uma nova redução de impostos, enquanto toda a economia afunda em crise, é difícil para a sociedade perceber que o dinheiro drenado dos cofres públicos para um único setor, ou grupo de empresas, estará sendo negado a milhões de brasileiros. O governo abre mão de receitas, doando recursos do contribuinte a um único setor industrial. Em vez disso, tais recursos poderiam contribuir para aumentar a oferta de empregos e a geração de renda em outros setores produtivos. A redução do IPI não é apenas um caso isolado. Ela vai se somar a uma extensa série de privilégios distribuídos a este e a outros setores e grupos econômicos, décadas a fio, no Brasil.
Empresas querem mais ■ Encalhe no pátio da VW, em São Bernardo do Campo (SP) emprego, com quase 1,6 mil vagas abertas, seguido pela agropecuária, com 1,3 mil empregos novos. Os dados levam em conta o total de empregados contratados diretamente pelas empresas de cada um daqueles setores, os empregos abertos indiretamente em outros setores, por influência do crescimento da produção de roupas, grãos, carnes etc.. Considera-se, aqui, que o crescimento da produção seria acompanhado de incremento das vendas, o que aumentaria as receitas das empresas, que poderiam pagar melhores salários e contratar novos empregados. Com renda maior, empregados e empresários, também favorecidos pelo aumento dos lucros de suas empresas, tenderiam a consumir mais, estimulando as vendas de móveis, roupas, eletrodomésticos, alimentos, bebidas e até carros, criando mais empregos, salários e assim por diante, num efeito em cadeia. Os mesmos estudos mostram
que a indústria de automóveis, ônibus e caminhões ocupa um tímido 36º lugar entre 41 setores analisados, com uma estimativa de apenas 418 empregos novos a cada aumento de R$ 10 milhões na produção. Com os R$ 342 milhões que o governo doará às montadoras, portanto, seriam criados, em tese, 14,3 mil empregos. Mais seria possível criar quatro vezes mais empregos se o mesmo dinheiro fosse destinado à indústria do vestuário (quase 55 mil novos empregos, em números redondos). Ou seja, os dados mostram que cada emprego criado na indústria de vestuário custaria R$ 6,2 mil, enquanto cada vaga criada pelas montadoras sairia por R$ 24 mil. Como os carros têm preço mais alto, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceria mais, mesmo que a indústria de roupas continue perdendo vendas e desempregando. Mesmo que o desemprego continue avançando em toda a economia. (LJ)
Não bastasse tudo isso, as montadoras também obtiveram financiamentos a custos de pai-parafilho do BNDES. De acordo com dados do banco, a instituição injetou no setor, a juros favorecidos, perto de 3,6 bilhões de dólares, entre 1991 e 2001, quase R$ 10,2 bilhões em valores atuais. No primeiro semestre de 2003, foram mais R$ 708 milhões, duas vezes mais do que no mesmo período do ano passado. Entre 1997 e 2001, o BNDES chegou a bancar praticamente um quinto dos investimentos das montadoras, em média, participação que atingiu 38% em 2000. Esta foi, no entanto, apenas uma parte dos benefícios. Entre 1996 e 1999, para chegar aos 18 bilhões de dólares transferidos ao setor, houve ainda redução de impostos federais, estaduais e municipais, inclusive do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), com casos de 10 anos de perdão de impostos. Cortou-se pela metade o imposto cobrado na importação de veículos para empresas que anunciaram planos de construir fábricas no Brasil, com redução também
nos impostos sobre máquinas, equipamentos, ferramentas e até moldes comprados no exterior. O que gerou desemprego no país, já que as importações substituíram a produção nacional. DINHEIRO PÚBLICO Além de adiar a cobrança de impostos, os Estados aplicaram recursos públicos na construção de estradas, redes de telefones, transmissão e distribuição de energia. E foram ao cúmulo de investir recursos diretamente nas novas fábricas, tornando-se sócios das empresas, como no Rio de Janeiro (Peugeot Citröen) e no Paraná (Renault). O caso da Bahia chega a ser escandaloso: o governo estadual comprometeu-se a financiar, com prazo de 22 anos, o correspondente a 12% do faturamento bruto da Ford, incluindo a venda de automóveis importados pela companhia (o que significa menor produção local e, novamente, desemprego). Detalhe: o valor envolvido correspondia a todo o imposto que a Ford deveria gerar no Estado, no mesmo período. (LJ)
DESMONTE DO ESTADO
emergencial, o governo petista não conseguirá cumprir sequer metade da meta já acanhada de assentamentos previstos para 2003. Originalmente, o objetivo era assentar 60 mil famílias, mas o dinheiro reservado para isso no orçamento da União não dá nem para 30 mil. Há até quem trabalhe com números ainda mais modestos, 10 mil famílias - para fazer os assentamentos como devem ser feitos, ou seja, com água, energia, estradas, assistência técnica aos produtores assentados, crédito para o plantio e garantia de escoamento para a produção agrícola. A situação atual não surgiu da noite para o dia. É resultado da aplicação, ao longo dos anos 90, do receituário liberalizante, com cortes de verbas e de pessoal, achatamento de salários e virtual desmanche do Estado. FAZ-DE-CONTA Chegou-se a uma situação em que o governo fingia que aprovava recursos para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e este fingia que realizava uma política de gestão fundiária e de reforma agrária. Entre 2001 e 2002, em média, foram gastos pouco mais de 70% dos recursos previstos no orçamento do Incra, que vem murchando desde 1997. Segundo relatório de gestão produzido no final de 2002 pela equipe anterior do Incra, o orçamento definido para o Instituto em 1997 foi de R$ 2,323 bilhões
havia sido liberado até a conclusão do relatório. Em números absolutos, saíram do Tesouro apenas R$ 535,1 milhões para o Incra, no ano passado, o correspondente a 30% dos gastos realizados em 1997. Isto é, houve um corte de 70% no dinheiro realmente gasto.
em valores atualizados, o equivalente a 0,61% do orçamento geral da União, e a 0,27% do Produto Interno Bruto (PIB) da agropecuária, ou seja, do total de riquezas produzidas pela pecuária e agricultura naquele ano. Era um orçamento modesto, e sequer chegou a ser gasto. Foram liberados, efetivamente, R$ 1,774 bilhão (76,3% da previsão orçamentária). LADEIRA ABAIXO De lá para cá, durante todo o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, os recursos só fizeram murchar. No ano passado, tomando-se valores corrigidos a partir de 1995, o orçamento do Incra desabou para R$ 889 milhões, 62% menos do que em 1997. Uma perda de R$ 1,434 bilhão, em cinco anos.
Assentamentos à míngua
perderam em torno de 8% desde 1996, totalizando R$ 244,7 milhões no ano passado, em valores de 1995. Mas as demais despesas correntes encolheram 42,5% a partir de 1998, atingindo o fundo poço no ano passado, com gastos de R$ 152 milhões. Os investimentos caíram verticalmente: de R$ 218,8 milhões em 1998, para R$ 85,5 milhões no ano passado - menos 61%, depois de descontada a inflação. Conclusão do relatório de gestão:“Os recursos orçados para despesas correntes diminuíram e são cada vez mais insuficientes para financiar o funcionamento da máquina”. O corte nos investimentos e demais despesas de capital “caíram ainda mais, criando dificuldades para financiamento da gestão finalística” (leia-se, a gestão dos programas de assentamento rural, incluindo desde a compra ou desapropriação de áreas para a reforma agrária, implantação de assentamentos, até sua emancipação).
PRIMEIRO, A DÍVIDA Para este ano, em valores não atualizados, em tese, o Incra teria R$ 1,475 bilhão assegurados no orçamento da União, mas R$ 456,2 milhões estão contingenciados, ou seja, não podem ser gastos para que o governo economize recursos e consiga pagar ao menos uma parte dos juros de sua dívida. Portanto, estariam teoricamente livres para serem usados perto de R$ 1,019 bilhão. Recursos insuficientes, e que correspondem a menos da metade do dinheiro que o Incra já teve, em 1997. “É um orçamento definido pelo governo anterior”, justifica a assessoria. Os gastos com pessoal foram menos atingidos pelos cortes, mas
■ Famílias em assentamento fantasma do Incra no Maranhão A participação do Instituto no orçamento da União despencou para 0,22%. Comparados ao PIB do setor agropecuário, os recursos representaram 0,1%. Do total previsto para 2002, que correspondia a uma redução de quase 4% sobre 2001, apenas 60% Arte: Maurício Senise/Fonte: Incra/SP
S em um reforço de caixa
Incra perde 62% de seus recursos em cinco anos Albani Ramos/Folha Imagem
Lauro Jardim, de São Paulo (SP)
NACIONAL
O Instituto tem, hoje, 43% dos funcionários que empregava em 1985, mas 42% dos servidores atuais podem se aposentar nos próximos dois anos; desde os anos 90, seu orçamento vem diminuindo e, hoje, se nada mudar, será insuficiente para assentar 10 mil famílias
OCUPAÇÕES NO ESTADO DE SÃO PAULO Minas Gerais Mato Grosso do Sul
Ilha Solteira Andradina
S. J. do Rio Preto
Castilho
Ribeirão Preto
Araçatuba Panorama Presidente Epitácio Teodoro Sampaio
São Carlos Marabá Pta
Presidente Prudente
Marília
Paraná
Botucatu
Campinas Taubaté
Iaras
São Paulo
para financiar o custeio e os investimentos nos assentamentos e na agricultura familiar. O crédito efetivamente liberado desabou de R$ 349,7 milhões, em 2000, para R$ 96,0 milhões no ano passado (menos 72,5%) - dado ainda preliminar, visto que estavam previstas novas liberações até o final de 2002. De qualquer forma, a tendência de queda é clara: a participação do crédito para os programas de financiamento aos assentados e a agricultores familiares em geral sobre o PIB agropecuário recuou de 0,6% em 2000, para 0,16% no ano passado, diante de 0,2% em 1995, quando Pronaf estava começando. O desmonte atingiu em cheio o quadro do Incra, que empregava, em 1985, segundo dados de sua assessoria, quase 12 mil funcionários. Hoje, são 5,2 mil, 57% a menos. De quebra, perto de 42% dos servidores atuais devem se aposentar nos próximos dois anos, segundo prevê o Instituto, especialmente depois da aprovação da reforma da Previdência. Para remediar a situação, a direção do Incra solicitou ao Ministério de Desenvolvimento Agrário a realização de concurso para preencher 900 vagas. Confirmada a aposentadoria de quase 2,2 mil funcionários e a contratação daqueles 900, o quadro do Incra estaria resumido a 3,9 mil pessoas daqui a dois anos, se nenhuma providência for tomada. Número que corresponderia a 32,5% do quadro de 1985.
Principais cidades do Estado
Oceano Atlântico
Acampamentos
Reforma: necessária mas não anda Anamárcia Vainsencher, da Redação A necessidade de reforma agrária é inegável, afirma Raimundo Pires Silva, superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em São Paulo. Mas o fato de a ação do Estado ter sido minada nos anos Fernando Henrique Cardoso não ajudou. “No governo passado, um processo de desapropriação demorava 1,5 ano. Agora, o Incra tenta reduzir o prazo para dois a quatro meses”, diz ele. No pesado fardo herdado da era FHC, Silva inclui a penúria dos assentamentos, em conseqüência da falta de investimentos em infra-estrutura. Os recursos do Incra estão congelados. O orçamento de 2003, de R$ 1 bilhão, é o mesmo há quatro anos. O quadro de pessoal é escasso. “Ao todo, o Incra tem 5 mil funcionários, antigos, metade dos quais vai se aposentar em um ano”, informa Silva. O último concurso foi em 1986. Na superintendência paulista, acrescenta, em 1985 existiam cerca de 600 funcionários. Hoje, são
75, dos quais apenas sete agrônomos, para atuar em todo o Estado. A estrutura funcional do Incra tampouco foi renovada, relata Silva. Assim, a capacidade operacional do corpo de funcionários fez um movimento inverso ao dos assentamentos - enquanto a primeira involuiu, o número dos segundos só aumentou (veja o mapa). “Um quadro que só piorou nos últimos dez anos”, observa. A missão do Incra era promover a reforma agrária, centrada nos preceitos do Estatuto da Terra; elaborar o cadastramento rural e mapear a estrutura fundiária do país. Hoje, dividido em inúmeras superintendências, o Instituto tem a tarefa de obter terras e assentar trabalhadores rurais. O Instituto não está, propriamente, sendo bem sucedido na empreitada, tendo em vista o passivo total de R$ 3 bilhões (o dobro de seu orçamento), relativos a assentamentos não atendidos. Para Raimundo Silva, a reforma agrária do Incra deveria ser feita junto com quem luta pela terra. “Se há reforma agrária no Brasil, também se deve às lutas sociais”, afirma.
A estrutura fundiária do Estado mais rico da federação, São Paulo, continua antiga. “Estamos sem qualquer mudança desde 1985”, afirma Raimundo Pires da Silva. A agroindústria exportadora (classificada como dinâmica) restringese à área situada entre as regiões de Campinas e Ribeirão Preto. No restante do Estado, regiões Norte, Oeste, Sul-Sudeste (abaixo do rio Tietê), onde também existe a cultura de grãos, a agricultura está descapitalizada. E precisando de reforma agrária, segundo Silva. Ele considera, por exemplo, que só ocorreram mudanças no Pontal do Paranapanema porque houve luta. Em São Paulo, há seis áreas prontas para a reforma, devidamente vistoriadas, classificadas como improdutivas e com os respectivos Títulos da Dívida Agrária (TDAs) depositados. Mas o processo parou porque os juízes não concedem a imissão de posse. “Fora isso, temos uma sér ie de áreas com ações suspensivas”, diz o superintendente do Incra-SP. Ou seja, cuja vistoria é barrada por antecipação na Justiça.
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
O orçamento para os programas-fins - assentamentos, emissão de precatórios para indenização a proprietários rurais, desapropriação de áreas, consolidação e emancipação dessas áreas - os mais importantes, caiu 57% desde 1997, de R$ 1,940 bilhão para R$ 827,7 milhões. Ressalve-se, novamente, que nem todo o dinheiro chegou a ser gasto por conta das restrições orçamentárias (cortes de recursos, em linguagem de gente). Os assentamentos perderam 58% dos recursos previstos em orçamento (de R$ 1,906 bilhão em 1997, R$ 795,1 milhões em 2002). As dificuldades de manutenção do Incra obrigaram o órgão a renegociar contratos com prestadores de serviços e fornecedores e a terceirizar uma série de serviços, lançando mão cada vez mais de receitas próprias para tentar cobrir o rombo orçamentário. De 11% do total de seu orçamento, aquelas receitas próprias passaram a ostentar, nos últimos dois anos, uma fatia superior a 20%, batendo em 24% em 2001. “As superintendências mais problemáticas são de Alagoas, Pernambuco, Distrito Federal/Entorno, Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná e Marabá. Os problemas mais graves são a falta de pessoal, estrutura e recursos financeiros suficientes para atingir as metas de assentamento”, resume a assessoria do órgão. A tesoura que cortou o orçamento também reduziu o crédito
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NACIONAL
Governo do Estado, prefeitura e transnacional do setor automobilístico se unem em São Bernardo do Campo (SP) contra famílias acampadas; em meio aos preparativos para a regulamentação da reforma da Previdência, o PT ainda se divide e os protestos continuam
MOBILIZAÇÃO
Jorge Pereira Filho, da Redação O despejo das famílias do acampamento Santo Dias, em São Bernardo do Campo (SP), começou dia 7, com o espancamento de dezenas de sem-teto. E terminou três dias depois, na sede social da Escola de Samba Gaviões da Fiel, em São Paulo, onde os sem-teto foram abrigados. Todo esse período foi marcado pela omissão do poder público, que não quis negociar com os acampados, e pela truculência da Polícia Militar. No dia 7, mais de 800 homens da Polícia Militar, 70 cavalos e 30 cachorros foram mobilizados para cumprir uma ordem de despejo, solicitada pela transnacional alemã Volkswagen, que reivindicava a posse do terreno abandonado. “Fomos obrigados a sair da área em meio a uma operação de guerra montada pela tropa de choque e demais forças policiais”, explica nota oficial do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). As famílias decidiram deixar a área pacificamente e realizar um protesto em frente da prefeitura de São Bernardo. Entraram em ônibus e caminhões, colocados à disposição das autoridades pela Volkswagen, com a promessa da Polícia Militar de que seriam
Luiz Carlos Murauskas/Folha Imagem
Durante despejo, sem-teto são espancados pela polícia paulista ções do governador do Estado, Geraldo Alckmin (PSDB), e do prefeito de São Bernardo do Campo, William Dib (PSB), que querem criminalizar o movimento social. “Esse foi o resultado de declarações irresponsáveis dessas autoridades. Há uma nítida intenção em criminalizar o movimento que luta por moradia, em vez de resolver o problema das famílias”, afirma o advogado da OAB.
■ Sem-teto preparam acampamento em terreno da Gaviões transportados até a prefeitura. Mas o trajeto foi outro.Alguns ônibus foram desviados para outras cidades, como Santo André e Diadema - o que fez vários passageiros descerem. Os caminhões com os pertences das famílias foram interceptados na rodovia Anchieta e alguns sem-teto foram espancados pela Polícia Militar.“A gente ia descendo e os policiais nem conversavam, já iam batendo com cassetete, dando chutes, socos. Eu não queria deixar o caminhão porque lá estavam todas as minhas coisas. Então os policiais lançaram bombas de gás lacrimogêneo. Um companheiro nosso perdeu metade da sola do
pé quando a bomba explodiu perto dele”, conta um sem-teto que não quis se identificar. Dezenas de pessoas foram agredidas, entre homens, mulheres e adolescentes. Dois caminhões lotados de pertences das famílias desapareceram. Grupos foram deixados a quilômetros de distância de São Bernardo.“O episódio demonstrou claramente que a Polícia Militar de São Paulo não está preparada para lidar com movimentos sociais e os trata como criminosos”, afirma o advogado Ariel de Castro, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Segundo Castro, os policiais são impulsionados pelas declara-
CRIMINALIZAÇÃO William Dib entrou com uma representação na Polícia Civil pedindo a prisão dos líderes do MTST e os acusando de formação de quadrilha e danos ao patrimônio público. Em nenhuma ocasião o prefeito de São Bernardo aceitou discutir propostas com as famílias sem-teto, recusando-se inclusive a receber uma carta de reivindicações do movimento. Apenas quatro das 26 pessoas agredidas pela polícia registraram boletim de ocorrência. Foi instaurado inquérito policial no Comando do Policiamento Metropolitano e na Corregedoria da Polícia. “Essas pessoas já fizeram exame de corpo de delito e aguardam apenas ser chamadas para identificar os agressores. Os culpados poderão ser indiciados por abuso de
autoridade e responder a processo criminal”, explica Castro. O que faltou ao poder público sobrou aos integrantes da Escola de Samba Gaviões da Fiel. Depois do despejo, os sem-teto que conseguiram chegar à prefeitura de São Bernardo montaram acampamento na entrada do prédio. Sem conseguir ser ouvidos pelo prefeito, receberam nova ordem de despejo. As cerca de 400 famílias deixaram o local e acamparam na praça da Igreja Matriz de São Bernardo por mais um dia. A via crucis terminou apenas dia 10, quando integrantes da Gaviões da Fiel ofereceram a quadra da escola de samba, em São Paulo, para as famílias pernoitarem. No outro dia, os sem-teto montaram um acampamento provisório em um terreno ao lado da quadra, também cedido pela torcida organizada do Cotinthians. A saga não arrefeceu os ânimos dos sem-teto. “Nós não vamos desistir até que o governo estadual mude de postura e aceite negociar com essas famílias. Queremos um projeto de moradia para a região de São Bernardo que contemple a situação dessas pessoas com renda até três salários mínimos”, afirma Camila Alves, coordenadora estadual do MTST.
Servidores planejam nova marcha Luís Brasilino, da Redação
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
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CONCENTRAÇÃO Durante o dia, mais de 50 mil trabalhadores se concentraram em frente do Congresso Nacional. Porém, na mobilização, alguns participantes tentaram entrar na casa. “Lamentavelmente, a imprensa se aproveitou desse fato e tentou esconder o protesto dando ênfase a meia-dúzia de gatos pingados”, diz José Domingues de Godói Filho, vicepresidente do Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior (Andes). Para acelerar a aprovação do projeto, o governo foi forçado a fazer algumas concessões à oposição. Entre as principais alterações estão a criação de fundos de pensão fechados para os servidores públicos e a elevação do subteto dos juízes estaduais de 85,5% para 90,25% .
O que muda com a reforma da previdência
Rafael Meddermeyer\AE
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) planejam nova manifestação contra a reforma da previdência. Será uma marcha em Brasília, dia 19 de agosto, quando deve ser votada, em segundo turno, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 40, regulamentando a reforma. As alterações na Previdência foram a plenário pela primeira vez no dia 6, quando os servidores públicos federais também organizaram uma manifestação. Entretanto, o presidente da Câmara Federal, deputado João Paulo Cunha (PT-SP), adiantou a votação sobre a PEC 40 para a madrugada desse mesmo dia, como forma de escapar da pressão popular.
Teto para contribuição Hoje: não há limite para o servidor público. No setor privado o teto é de R$ 1.869,34. Aprovada a reforma: funcionários públicos e privados só poderão contribuir até R$ 2.400. Quem quiser uma aposentadoria maior deverá investir em um fundo de pensão.
Salários
■ Milhares de servidores marcham pela Esplanada dos Ministérios rumo ao Congresso Nacional, dia 8 Pelo menos um deputado de cada partido da base aliada exceto o Partido Liberal (PL) e o Partido Popular Socialista (PPS) - votou contra a proposta, aprovada graças à oposição. Três parlamentares petistas se manifestaram contrários ao projeto e, segundo José Genoíno, presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), provavelmente serão expulsos. PARALISAÇÕES Outros oito deputados do PT preferiram se abster. Em nota à imprensa justificaram sua atitude reafirmando “a convicção de não violar a trajetória do partido na defesa do serviço público de qualidade”. Os parlamentares esclarecem: “Nossa abstenção simboliza a discordância com relação à reforma da previdência, não significando, entretanto, rompimento com a bancada, o partido e o governo, com quem queremos continuar dialogando”.
Protestos contra a reforma da Previdência não param de acontecer. A greve dos servidores públicos federais atingiu 70% de adesão, enquanto a paralisação dos auditores fiscais já provocou prejuízos de R$ 2,7 bilhões nas exportações de bens de capital mecânicos, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos. Os professores da maior universidade pública do país, a Universidade de São Paulo (USP), estão em greve desde o dia 11, juntamente com os docentes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mesmo depois de conseguir a elevação do subteto de seus vencimentos para R$ 15.600 o equivalente a 65 salários mínimos -, os juízes estaduais ainda fazem reivindicações. Eles querem aposentadoria integral e paridade para os futuros servidores.
Hoje: não existe teto. Aprovada a reforma: o teto da União será de R$ 17.300. Nos Estados, equivalerá à maior remuneração do chefe de cada poder. O subteto do Judiciário estadual corresponderá a 90,25% do vencimento dos ministros do Superior Tribunal Federal.
Inativos Hoje: não contribuem. Aprovada a reforma: os atuais inativos contribuirão com 11% daquilo que exceder R$ 1.440, para os servidores da União, ou R$ 1.200, para os de estados e municípios. O limite da isenção dos servidores na ativa hoje será de R$ 2.400 quando se aposentarem.
Integralidade Hoje: servidores se aposentam com valor equivalente ao do último salário. Aprovada a reforma: futuros servidores não terão direito à integralidade, que só será dada a quem tiver dez anos no cargo, vinte anos de serviço público, 30 anos (mulher) e 35 anos (homem) de contribuição; e mais de 55 (mulher) e 60 (homem) de idade. Os demais terão a aposentadoria calculada pela média das contribuições realizadas.
Paridade Hoje: reajustes dos funcionários da ativa e aposentados são iguais. Aprovada a reforma: deixa de existir para os futuros servidores. Caso cumpram os mesmos requisitos para receber a integralidade, os atuais servidores terão paridade; se não, seus benefícios serão reajustados pela inflação.
Pensões Hoje: são integrais para os servidores públicos. Aprovada a reforma: haverá desconto de 50% acima do que superar R$ 2.400.
MÍDIA
NACIONAL
A grande mídia não informou que Roberto Marinho era acusado na Justiça de fraude na transferência da TV Paulista para a Rede Globo; sua colaboração com a ditadura também foi esquecida; enquanto isso, as rádios comunitárias, combatidas pela Globo, têm situação piorada.
Ricardo Stuckert/ABR
Morre um homem da ditadura José Arbex Jr., da Redação
“90 milhões em ação / pra
■ O presidente Lula esteve no velório de Roberto Marinho na semana passada Coube ao próprio Médici, em 1972, descrever o papel da TV Globo, ao inaugurar o sistema nacional de transmissão de TV a cores: “No noticiário da TV Globo o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz. É como tomar um calmante após um dia de trabalho”.
Armando Falcão, ministro da Justiça entre 1974 e 1979, diria que “o doutor Roberto Marinho apoiou a revolução de março de 1964 desde antes de ela eclodir.” Esses fatos, descritos no livro Muito além do cidadão Kane, de Geraldo Anhaia Mello (editora Scritta,
Comunitárias vão de mal a pior Dioclécio Luz, de Brasília (DF) Boas e más notícias para as rádios comunitárias. A boa é que a burocracia no Ministério das Comunicações (MC) vai ser simplificada. As más são que a repressão vai continuar e que o decreto que regulamenta as rádios comunitárias (nº 2.615/98) pode ficar pior do que é hoje, se forem concretizadas as propostas do Grupo de Trabalho (GT) criado pelo ministério para analisar a questão das rádios comunitárias no país. Do GT, formado por representantes e não-representantes do movimento das rádios comunitárias, fez parte um representante da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), entidade que congrega as emissoras comerciais e é inimiga declarada da comunicação comunitária e da organização popular. O minsitro das Comunicações, Miro Teixeira, incluiu a Abert nesse GT, dobrando-se ao pedido da entidade. O GT preferiu ser eficiente no burocracismo. Pelo relatório final, conclui que, com a atual equipe do ministério, é possível concluir 250 processos por mês, ou, 3 mil por ano. “Além dos pedidos que estão tramitando, arquivados e concluídos, decorrentes dos 18 avisos de habilitação até agora abertos, existem protocolados no ministério 4.662 pedidos de autorização aguardando a abertura de novos avisos”, diz o texto. Mais mil novos processos foram incorporados nos três meses de atuação do GT. A solução para limpar as prateleiras, segundo o GT, é criar uma força-tarefa, constituída por funcionários de todos os ministérios. No prazo de 18 meses acredita-se – estariam analisados os 7 mil pedidos existentes. O relatório final, todavia, alimenta o ódio contra as rádios não autorizadas, estimulando a repressão oficial. O texto diz que se o Poder Executivo “pode mobilizar extraordinariamente recursos para reprimir a atuação das emissoras comunitárias não autorizadas (...), também deve constituir recursos extraordinários necessários para as-
segurar os direitos de cidadania estabelecidos na Lei nº 9.612/98”. Ora, o GT comete aí um duplo equivoco. Primeiro, não condena a repressão atual - violenta e discriminadora - desencadeada contra a população pela polícia federal e pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que é um dos mais graves problemas da atualidade (estão fechando em média duas rádios por dia). Em segundo lugar, ao falar em cidadania, em vez da Lei nº 9.612/98, que é discricionária, deveria citar o artigo 5º
da Constituição Federal, que trata dos direitos do cidadão. Diariamente emissoras comunitárias são fechadas no país; trabalhadores das rádios são humilhados; equipamentos obtidos às duras custas da comunidade são apreendidos. E o Grupo deTrabalho escreve uma só linha, e dúbia, sobre o caso. Os resultados desse GT são oficialescos. As propostas de mudança não respondem as grandes perguntas: quando terá fim a agressão ao direito popular de expressão, quando vai começar a reforma agrária do ar?
O decreto não propõe avanços Cabe ao Ministério das Comunicações elaborar decretos. A função do decreto é regulamentar (detalhar) a lei, que é feita pelo Legislativo (Câmara e Senado Federal). No caso da Lei nº 9.612/98, das rádios comunitárias, o decreto que a regulamenta, 2.615/98, é bem pior que a lei. O ministro, se quiser, a qualquer momento, pode modificá-lo, fazendo-o mais próximo dos interesses da população. Mas o ministro e o GT não acataram sugestões mais avançadas dos movimentos sociais e de deputados (Adão Pretto, Edson Duarte, Iara Bernardi), que encaminharam suas contribuições oficialmente ao ministro. Eis as principais sugestões aprovadas pelo GT: 1º) Alcance - O decreto determina alcance de 1 km. O GT ficou em cima do muro: diz que isso será definido depois por Norma Técnica; isto é, pelo próprio MC. 2º) Apoio cultural - Não existe norma legal definindo o que é apoio cultural. Mesmo assim, o decreto proíbe propaganda. Os deputados propuseram o direito de as rádios fazerem publicidade e cobrar por isso. O GT quer vedar remuneração por qualquer propaganda. 3º) Conselho - Será instituído o Conselho de Radiodifusão comunitária para acompanhar os processos no MC. 4º) Transparência - O MC dará ampla divulgação aos seus atos. 5º) Interferências - O decreto em vigor diz que se uma comunitária interfere em uma comercial, deve ser interrompida; mas se uma comercial interfere em uma comunitária, nada acontece. Acatando proposta dos deputados, o GT propõe que, em caso de interferência indesejável, a comunitária será, primeiro, informada do caso para que corrija o problema. 6º) Em cadeia - As emissoras comunitárias poderão entrar em cadeia. O decreto em vigor proíbe. 7º) Proselitismo - Os três deputados apresentaram proposta definindo claramente o que é proselitismo e vedando a gestão da rádio por igrejas ou partidos. O GT manteve o texto original, que é sujeito a várias interpretações. 8º) Referência à legislação repressora - Infelizmente, o GT manteve todas as referências à Lei nº 4.117/62 e ao Decreto nº 236/67. Inclusive o artigo 70 dessa lei, obra do regime militar, que pune com cadeia quem opera emissora clandestina.
São Paulo) são suficientes. Marinho construiu seu império em colaboração com os generais. Durante os vinte anos de ditadura, o Jornal Nacional funcionou como porta-voz oficioso do regime. A Globo tornou-se objeto do ódio dos movimentos sociais e do Par-
Globo não apresenta documentos originais Ubirajara Faria, de Brasília (DF) Na farta cobertura da morte de Roberto Marinho, a mídia não reservou uma linha sequer a um processo judicial movido contra ele pelos herdeiros da antiga TV Paulista, atual TV Globo São Paulo, responsável por mais de 50% do faturamento da Rede Globo. No processo, o magnata da comunicação brasileira é acusado, entre outras irregularidades, de ter falsificado documentos de procuradores de acionistas já falecidos e de ter organizado uma intrigante assembléia-geral na qual se aprova, realizada em circunstâncias nebulosas e às sombras de uma relação umbilical da Globo com a ditadura militar, a transferência das ações para o controle da família Marinho. Essa novela, que não vai ao ar, teve em seu último capítulo mais um grande golpe contra a Rede Globo: no final de junho, a juíza encarregada do processo na 41ª Vara Civil da Justiça do Rio de Janeiro deu prazo de trinta dias para que os Marinho apresentassem os documentos originais, única maneira de comprovar a autenticidade da decisão da assembléia-geral que transferiu o controle acionário da emissora paulista para a Rede Globo. Poucos dias antes da morte do empresário, seus advogados revelaram à Justiça algo que muitos sabiam, mas que à sociedade brasileira continua sendo sonegado: Rober to Mar inho não tem como apresentar à Justiça os documentos originais comprovando a autenticidade da operação comercial. FALSIFICAÇÃO Para entender melhor porque Marinho não pode atender ao pedido da juíza, vale lembrar as circunstâncias da operação de transferência patrimonial. Perícia feita pelo Instituto
Grafotécnico Del Piccha, de São Paulo, comprova que os documentos usados na operação, datados de 1953 e de 1964, foram falsificados. O laudo do Instituto afirma que na documentação “há presença de anacronismos instransponíveis, onde fato futuro está referido em documento com data anterior à sua existência ou ocorrência”.Além da abundância de provas que tornariam “praticamente desnecessárias outras provas técnicas” – diz o laudo, os peritos chegaram mesmo a surpreender-se com o primarismo dos expedientes utilizados, já que documentos com data de 1953 e 1964, vinham acompanhados de números de CIC e CPF dos outorgados e subestabelecidos, sendo que a Receita Federal só passa a usar esse controle após 1970. Morosidade não é algo extraordinário na Justiça brasileira. Mas, além da morosidade, o processo judicial movido contra os proprietários da Rede Globo tem certas características, essas sim raras. O processo tem passado pelas mãos de numerosos juízes. Alguns declinaram da incumbência declarando-se impedidos para julgar o caso, alegando relação de proximidade com os advogados da família Marinho. Há uma sucessiva troca de juízes, bem além do que normalmente se registra, o que dilata o tempo, obriga a repetição de procedimentos, novos estudos etc. Curiosa também é a presença nas dependências da sala de audiências da Justiça do Rio de Janeiro de quatro câmeras de TV sem qualquer indicação da empresa ou produtora de vídeo a que pertenceriam, o que, diante do imenso poderio da TV Globo para fazer e desfazer ministros, pode perfeitamente ser entendido como uma intimidação midiática à Justiça. Detalhe: até hoje, nenhuma emissora televisiva deu notícia sobre o processo.
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
frente Brasil, salve a seleção”: é 1970, e o Brasil está em festa. A seleção nacional, invicta, dá um show de bola e traz a Copa Jules Rimet para casa. O Brasil é tricampeão mundial. O país inteiro comemora, embalado pelo novo “hino nacional”, incessantemente repetido pela TV Globo, já com capacidade tecnológica de cobrir todo o território nacional. A TV Globo prestava um imenso serviço à ditadura militar, então chefiada pelo general Emílio Garrastazu Médici. Os aplausos e o carnaval dos torcedores, estimulados ao máximo, de Norte a Sul, sufocavam os gritos dos assassinados, torturados e perseguidos pelos generais, no momento em que o regime atingia o auge do autoritarismo sangrento. Fatos como esse foram convenientemente “esquecidos” pelo imenso cordão de puxa-sacos e bajuladores que compareceu aos funerais do “doutor” Roberto Marinho, chefão da Rede Globo, morto aos 98 anos, na semana passada. Mas a história é muito clara.
tido dos Trabalhadores, por suas campanhas de condenação e criminalização de greves, passeatas e quaisquer iniciativas de mobilização (incluindo a campanha pelas eleições diretas, em 1984). Em 1982, tentou, descaradamente, manipular o resultado das urnas, durante as eleições ao governo do Estado do Rio, para impedir a vitória de Leonel Brizola. Sete anos depois, o “doutor” Marinho jogou um papel decisivo na derrota do candidato Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, ao editar um debate, às vésperas do segundo turno das eleições, fazendo com que Lula parecesse um idiota trêmulo frente a um Fernando Collor de Mello cheio de confiança e iniciativa. Nos anos 90, a Globo foi decisiva como principal propagandista do Plano Real (que elegeu Fernando Henrique Cardoso, em 1994) e do neolibealismo. Sempre fazendo o jogo do poder, tornou-se “aliada” do governo Lula, agora adorando o santo que ontem queimou. Marinho, em resumo, foi apenas isto: um jornalista sempre pronto a alugar os seus serviços aos governantes de plantão.
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NACIONAL
Trabalhadoras rurais de todo o país denunciam os 20 anos de impunidade pela morte de Margarida Alves; manifestação de trabalhadoras rurais nas ruas pretende reunir 50 mil mulheres em Brasília; feministas questionam a regulamentação da prostituição
MULHERES
Tatiana Merlino, da Redação
Há 20 anos, a líder sindical Margarida Alves foi assassinada com um tiro de espingarda no rosto. Dia 12 de agosto de 1983, ela estava na frente de sua casa, em Alagoa Grande (PB), com o filho José de Arimatéia Alves, que na época tinha dez anos. Até hoje os criminosos não foram punidos. Margarida foi assassinada por dois pistoleiros, a mando de cinco pessoas.Antônio Carlos Coutinho e José Buarque de Gusmão Neto, conhecido como Zito Buarque, foram julgados e absolvidos;Amaro e Amauri José do Rego estão foragidos e Agnaldo Veloso Borges já morreu. Zito Buarque era usineiro de Alagoa Grande, detentor de grande poder político e econômico no Estado e, inclusive, no colégio eleitoral que elegia o presidente da República na época da ditadura militar. Na época de seu assassinato, Margarida era presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande e tinha feito denúncias ao Ministério do Trabalho sobre a Usina Tanques. De propriedade de Zito Buarque, a empresa foi acusada de cometer abusos contra canavieiros e de descumprir a legislação trabalhista. O Tr ibunal de Justiça da Paraíba adiou seis vezes o julgamento do usineiro. O criminoso, julgado somente 18 anos depois do homicídio, foi absolvido em junho de 2001, por cinco votos a
■ Margarida Alves: vinte anos de impunidade
dois. Após pressão de entidades defensoras dos direitos humanos, o julgamento foi anulado pela Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça da Paraíba, em dezembro de 2002, sob a alegação de que o resultado não condizia com as provas do processo. Porém, para o
desgosto dos familiares, o processo se encerrou no mesmo ano por ordem do Tribunal Superior de Justiça, sem que alguém fosse punido. A hipótese de manipulação do júri foi levantada por membros da Comissão Pastoral da Terra e por pessoas que assitiram ao julgamento. Zito teria sido absolvido por ser pessoa influente na região. O usineiro afirmou, em julgamento, não ter tido nenhum tipo de desentendimento com Margarida. O caso teve repercussão internacional e o processo Margarida Alves foi para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). A LUTA POR DIREITOS A sindicalista lutava pelos direitos dos trabalhadores rurais, como jornada de oito horas, 13º salário, registro em carteira e férias. No período em que presidiu o sindicato de Alagoa Grande, foram movidas setenta e três reclamações trabalhistas contra engenhos. Margarida passou a ser alvo da raiva dos latifundiários, que a ameaçavam para que deixasse de atuar no sindicato. A líder tornava as ameaças públicas e fazia questão de respondê-las. Na véspera de ser assassinada, fez uma afirmação que ficou para a história:“Prefiro morrer na luta do que morrer de fome”. Margarida se tornou um símbolo da luta no campo. Muitas
Arquivo JST
Moisés Araújo
“Prefiro morrer na luta a morrer de fome”
cooperativas de trabalhadoras e organizações sociais levam o nome da líder sindical. Uma delas é a Fundação de Defesa dos Direitos Humanos Margarida Maria Alves, cuja coordenadora, Marcina Graça, acredita que a luta das mulheres teve grandes avanços no campo e na cidade. “Na época, Margarida foi a única a enfrentar grandes latifundiários, ela é um exemplo de ousadia na luta pelas questões trabalhistas”, diz. A “Marcha das Margaridas” (veja abaixo), emblema que caracteriza as grandes manifestações das trabalhadoras rurais pelo Brasil, é uma homenagem à líder.
Margaridas marcham em Brasília Da Redação
DIREITOS
Projeto de lei legaliza prostitução
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
Letícia Baeta, da Redação
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Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei para a legalização e a regulamentação do mercado em torno da prostituição. De autoria do deputado Fernando Gabeira (PT), a proposta determina que casas de diversão, bares e agências de prostituição registrem as prostitutas, pagando INSS e demais encargos trabalhistas, como qualquer empresa faz com seus funcionários. Encaminhado à Câmara no final do ano passado, o projeto já foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos. Começa a gerar muita polêmica. Uma das coordenadoras do Serviço da Mulher Marginalizada (SMM), Priscila Siqueira, teme um aumento do tráfico de seres humaRufianismo – atividade praticada nos, pois essa pelo gigolô, visa o atividade, selucro a partir da gundo ela, é a exploração da terceira mais prostituição alheia rentável do mundo, depois do comércio de armas e o de drogas: gira em torno de 12 bilhões de dólares anuais e envolve 4 milhões de pessoas. “O Brasil é tido por ONGs internacionais como o segundo maior exportador de mulheres e meninas”, diz Priscila. Para Nalu Faria, coordenadora da Sempreviva Organização Feminista (SOF), o projeto favorece o comércio do sexo e
não garante os direitos das mulheres. Nalu não defende a extinção da profissão, mas uma campanha em apelo ao emprego, estudo, participação política e autonomia da mulher para decidir a sua profissão. Como a maioria das prostitutas é oriunda de países subdesenvolvidos, Nalu acredita que grande parte delas está na área por falta de opção e não por vontade própria, e ela acha que enveredam por esse ramo agenciadas por redes de prostituições, por conta de um passado marcado pela violência ou por causa do desemprego. Nalu acrescenta ainda que esses fatores estão associados à banalização da sexualidade: “As pessoas não têm clareza do significado da relação sexual para a auto-estima e para o desenvolvimento humano”. Segundo ela, a banalização afeta não só as profissionais do sexo, mas qualquer mulher. MARGINALIDADE As prostitutas querem o reconhecimento e o respeito pela profissão, encarando um possível aumento de profissionais como conseqüência. A prostituta Gabriela Leite, líder da Rede Nacional de Profissionais do Sexo, que reúne 23 organizações, acredita na legalização como forma de escapar da marginalidade e de melhorar as condições de trabalho: “Muitas vezes as casas são sujas. Em cidades pequenas e distantes dos grandes centros, as
prostitutas ficam presas dentro da casa, os horários de trabalho são os mais absurdos e não há como fazer uma reclamação trabalhista”. Mesmo quando é feita alguma denúncia, as profissionais do sexo são ignoradas pelos policiais, por preconceito. “Se alguém é estuprada, apanha, e vai fazer a denúncia, o policial diz: Mas qual é a sua profissão?” conta a prostituta Ana Eulália. Pelo interior do Brasil, a situação é pior. Gabriela já viu muitos abusos: “No Oiapoque (AP), as meninas de determinada boate ficam o dia inteiro presas a cadeado para não ir embora. Em Recife (PE), há mulheres que, além de trabalhar para a casa, são obrigadas a fazer faxina, sem ganhar nada”. PROTEÇÃO À CRIANÇA Uma contribuição importante do projeto, segundo Gabeira, é ajudar a combater a prostituição infantil. O mercado ficaria restrito apenas às profissionais maiores de 16 anos, idade mínima para o trabalho. “Se criaria uma cadeia de aliadas nessa luta, atraindo prostitutas legalizadas para a campanha”, diz o deputado. A líder Gabriela completa:“Mas é preciso criar políticas públicas para essas meninas, porque a polícia entra no bordel, tira meninas menores de idade e não tem o que fazer com elas. Então, dois dias depois, elas voltam”. A Constituição garante a legalidade da prostituição, mas não
dos prostíbulos, do rufianismo, do favorecimento da prostituição e do tráfico de mulheres. Mas só em outubro do ano passado a profissão entrou na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho. Ou seja, a profissional do sexo já pode ir a uma agência do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), registrar-se como prostituta, na condição de profissional autônoma, e se aposentar. Porém, essa é uma das grandes dificuldades: muitas prostitutas não querem ter a carteira assinada como profissionais do sexo. A Holanda foi o país pioneiro na legalização da prostituição, em outubro de 2000. A Alemanha e alguns Estados da Austrália tornaram as prostitutas prestadoras de serviços sexuais, beneficiárias de assistência médica e de direitos sociais. No entanto, ONGs internacionais constatam: nos países em que o mercado da prostituição foi legalizado, houve aumento do tráfico de mulheres. Segundo relatório da Coalizão Contra o Tráfico Internacional de Seres Humanos, 5% do Produto Interno Bruto (soma dos bens e serviços produzidos pelo país) da Holanda advém da indústria sexual. Porém, estima-se que 60% das 40 mil profissionais do sexo que trabalham no país são imigrantes e não podem, portanto, trabalhar em prostíbulos legais. Essas mulheres acabam trabalhando em prostíbulos clandestinos, onde estão mais sujeitas à exploração.
As trabalhadoras rurais brasileiras já estão preparadas para tomar as ruas durante a “Marcha das Margaridas - 2003 razões para marchar”, dia 26, em Brasília. Em sua segunda edição, a manifestação vai marcar os vinte anos do assassinato da líder sindical Margarida Maria Alves, em Alagoa Grande (PB). Organizadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e diversas entidades parceiras, as “margaridas” esperam reunir 50 mil mulheres. A primeira edição da marcha, realizada em 2000, reuniu 20 mil trabalhadoras, sendo considerada a maior mobilização de mulheres no Brasil. Os eixos temáticos das reivindicações deste ano serão: reforma agrária, meio ambiente, salário mínimo digno, direito à saúde pública e contra a violência sexista no campo. Nalu Faria, da Sempreviva Organização Feminina (SOF), alerta para a importância de dinamizar a agricultura familiar para aumentar a capacidade de compra dos pequenos municípios, e chama atenção para a luta contra a violência sexista:“Há muitos casos de agressão contra mulheres no campo. Muitas são agredidas por seus maridos e pais”. De acordo com Nalu, a partir da primeira marcha, as mulheres passaram a se articular mais. “ A luta se multiplicou. Houve melhorias no funcionamento dos sindicatos, há mais trabalhos de base, e as mulheres estão conseguindo se posicionar como gênero”, diz. Além das manifestações em Brasília, seminários e manifestações estaduais estão sendo promovidos por sindicatos e associações, marcados por reivindicações específicas das trabalhadoras rurais.
Ano I ■ Número 24 ■ Segundo Caderno
Movimentos populares exigem cancelamento da dívida externa Jorge Pereira Filho, da Redação
A
dívida externa dos países pobres, além de imoral, é ilegítima, e não pode ser colocada acima das dívidas sociais e ecológicas. Esses são os principais eixos da Campanha Jubileu Sul, uma rede internacional de movimentos sociais que realiza, em todo o mundo, ações para exigir o cancelamento da dívida dos países pobres. No início de julho, ativistas encontraram-se em Genebra (Suíça) para propor novas ações. O encontro reafirmou a ilegitimidade da dívida externa. “Nós não consideramos que a dívida exista. Primeiro, porque os contratos de endividamento, em sua maioria, foram feitos por governos autoritários, à revelia da vontade popular. Depois, a maior parte dos países já pagou várias vezes aquilo que devia”, explica Sandra Quintela, economista do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs). Alguns números comprovam a ilegitimidade da dívida. Segundo um relatório do Banco Mundial, os países pobres gastam a cada ano cerca de 360 bilhões de dólares em pagamento de juros e amortizações. Enquanto isso, um estudo da ONU afirmou que se fossem investidos de 80 bilhões de dólares por ano, durante, uma década, todas as pessoas no mundo teriam um padrão decente de alimentação, água, educação e saneamento básico. Mas, mesmo pagando em dia, os países pobres não conseguem reduzir sua dívida. Ao contrário, ficam cada vez mais endividados. Ainda de acordo com o Banco Mundial, em 1980, os países do Terceiro Mundo deviam 603 bilhões de dólares. Depois de 16 anos, essa dívida subiu para 2,1
Paulo Lima
■ Campanha Jubileu Sul reúne organizações de diversos países e tem como uma da principais bandeiras o não-pagamento da dívida externa trilhões de dólares (em 1996). “A vida não tem preço, mas podemos reordenar a forma de pensar para ver quem é devedor e quem é credor”, diz Sandra. DESIGUALDADE Na avaliação da economista, o endividamento dos países pobres é resultado de uma relação desigual de poder.“Um fato que comprova essa tese é que a dívida se tornou um mecanismo de transferência de riqueza das nações mais pobres para as mais ricas.As contas do Brasil mostram isso. Entre 1995 a 2002, o país pagou como serviço da dívida externa 330 bilhões de dólares. Recebeu, emprestados, 273 bilhões de dólares, que foram usados em sua maioria no pagamento dos juros desse endividamento. No final das contas, o Brasil pagou 57 bilhões de dólares a mais do que recebeu emprestado. E, mesmo assim, a dívida externa não diminuiu. Pelo contrário, aumentou 70 bilhões de dólares. “
século XIX, os Estados Unidos cancelaram a dívida de Cuba com a Espanha, argumentando que a dívida dos cubanos era odiosa, pois havia sido imposta pelo colonizador. No início deste século, foi a vez da Costa Rica se recusar a pagar sua dívida com o Canadá, alegando que havia sido imposta pela Inglaterra. Um tribunal internacional julgou o caso e deu razão à Costa Rica. Pelo mesmo critério, a dívida dos países pobres poderia ser questionada. A Campanha Jubileu Sul propõe, entre outras ações, que os países pobres façam auditorias sobre os contratos da dívida externa. No Brasil, movimentos sociais organizaram, em 2000, um plebiscito e seis milhões de brasileiros votaram a favor da auditoria. “Essa experiência inspirou várias campanhas. Nicarágua, Equador, Canadá e Filipinas estão tentando fazer algo semelhante”, conta Sandra.Também são propostas pela Campanha conferências e encontros para debater a questão do endividamento dos países pobres.
DÍVIDA ODIOSA Segundo a economista do Pacs, a dívida dos países pobres poderia ser questionada judicialmente. “Há um mecanismo jurídico chamado Dívida Odiosa, que poderia ser usado para questionar dívidas contraídas por governos autoritários”, explica Sandra. A história tem exemplos de países que contestaram o pagamento da sua dívida. No final do
CUBA
É preciso aumentar as mobilizações sociais Claudia Korol, de Buenos Aires (Argentina)
trabalhadores à precarização do emprego e à superexploração.
Julio Gambina, diretor da Fundação de Investigações Sociais e Políticas da Argentina (de sigla em castelhano Fisyp), é membro da entidade Autoconvocatória Não à Alca, que coordena as ações contra a Alca em seu país. Foi entrevistado pelo Brasil de Fato sobre as estratégias atuais do enfrentamento continental contra esse projeto de submissão aos EUA.
BF – Como o governo argentino está enfrentando as negociações com o FMI? Gambina - A Argentina negocia para retomar os pagamentos aos credores internos e para se reinserir no ciclo de negócios do capitalismo global. Se o acordo que vence em agosto fixava o indicador em 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB), a exigência agora do FMI supera os 4% para o triênio 2004-2006. Outro condicionamento é constituído das reformas estruturais, com o aumento das tarifas dos serviços públicos, a compensação dos bancos, privatização dos bancos estatais que ainda existem, o início dos pagamentos da dívida vencida e a garantia jurídica dos investimentos internacionais na Argentina. BF – A ascensão de Kirchner na Argentina, Lula no Brasil, gerou expectativas em relação à possibilidade de incrementar as relações no Mercosul. Como fortalecer, nesse contexto, as campanhas populares?
Gambina - O Mersosul é um espaço de negócios dos capitais transnacionais que atuam na região. As montadoras de carro, o petróleo e a agroindústria representam mais de 50% dos negócios da Argentina e do Brasil no Mercosul. Lula e Kirchner chegam ao governo como resultado da resistência popular e isso motivou a aproximação de Chávez e o pedido de incorporar a Venezuela ao Mercosul. Isso pode levar à incorporação da Comunidade Andina de Nações. A mudança política com participação popular pode transformar um acordo de comércio e inversões num movimento com a perspectiva de integração integral. Por isso, o Não à Alca pode incluir agora a campanha continental de luta levada adiante pelos movimentos populares e por algumas vozes oficiais contra a Alca. A Venezuela já se pronunciou e o Brasil e a Argentina indicam timidamente a necessidade de negociar a partir do Mercosul. A realidade é que não se pode melhorar a Alca com bons negociadores, como se imagina na chancelaria da Argentina. O que é necessário é intensificar as mobilizações populares e reforçar a coordenação continental desses eixos comuns de resistência.
Encontro Hemisférico contra livre comércio será em 2004 Da Redação Cuba será a sede, em janeiro de 2004, do III Encontro Hemisférico de Luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), conforme anunciou a Agência de Informação Nacional cubana. No encontro, convocado pela Aliança Social Continental, será possível avaliar como está a campanha continental que se opõe ao projeto dos Estados Unidos. Participarão da reunião representantes de organizações indígenas, negras, sindicais, camponesas, estudantis, ambientalistas, religiosas, defensoras de direitos humanos. Também é aguardada a presença de comunicadores, parlamentares, artistas e intelectuais em um esforço para aumentar a participação dos povos americanos contra a Alca. Para especialistas em América Latina, a implementação do acordo representa a absorção das pequenas economias da região e do Car ibe. O presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Parlamento cubano, Osvaldo Martinez, afirmou que a iniciativa estadunidense aparenta ser uma proposta técnica e inocente, mas tem ingrediente político. Para
■ Manifestação contra a Alca em Porto Alegre (RS) ele, a Alca, que exclui Cuba, propõe a extinção e a desnaturalização da empresa nacional estatal, ao fazê-la vítima das exigências da iniciativa privada e de seus objetivos de conseguir lucro a qualquer custo. Martinez explica que a Alca visa transformar a antiga relação entre Estado e empresa privada, na qual o primeiro preservava seu predomínio para impor condições em defesa do interesse nacional. “A Alca será o enterro das antigas e atuais tentativas de alcançar a integração da América Latina”, diz. (Prensa Latina)
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
ALCA
Brasil de Fato – Quais as principais conseqüências da Alca para os países do Cone Sul? Julio Gambina - Alca legitima as políticas hegemônicas aplicadas nas duas últimas décadas na região, que significaram uma ampliação na desigualdade de riqueza entre os poucos que acumulam muito e os muitos que sobrevivem nas piores condições de vida. E consolida a mudança de função dos Estados nacionais para sustentarem a acumulação de riquezas, lucros e poder dos grupos econômicos mais concentrados e das transnacionais que atuam no Cone Sul. Ao aderir à Alca, tornam-se irreversíveis as reformas trabalhistas regressivas que condenam os
Como essa dívida é praticamente impagável, os países pobres tomam empréstimos no mercado financeiro ou, então, com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para, pelo menos, quitar parte dos juros e renegociar o montante total. Para receber o dinheiro, aceitam se submeter às exigências dos credores.“O acordo que o FMI fez com o Brasil, por exemplo, impõe condicionalidades e considera o gasto social como despesa. Como é que a dívida financeira pode ser colocada acima da dívida social?”, pergunta Sandra.
Moisés Araújo
Ativistas do mundo todo reafirmam, em Genebra (Suíça), que a dívida externa dos países pobres é ilegítima e gera transferência de riqueza para as nações mais ricas; em janeiro de 2004, Havana (Cuba) será sede de mais um encontro continental de luta contra a Alca; o economista argentino Júlio Gambino aponta os efeitos nocivos do livre comércio: destruição da produção local, desemprego e fuga de capitais.
INTERNACIONAL
BRASILDEFATO
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OMC
Ativistas preparam fórum alternativo Da Redação
O
famoso balneár io de Cancún (México) vai ser ocupado por cerca de 40 mil ativistas do mundo todo, que vão protestar contra a realização da 5ª Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), prevista para acontecer de 10 a 14 de setembro. Os manifestantes estão preparando um encontro alternativo à reunião: o Fórum dos Povos, cujas atividades começam dia 1º de setembro. O principal lema do evento é “Tirar a OMC dos trilhos”. Para Maria Atilano, da Rede Mexicana de Ação contra o Livre Comércio (RMALC), um dos movimentos que organizam o fórum, a proposta é acabar com as diretrizes da Organização, que beneficiam as transnacionais e os países mais ricos. Entre as atividades do evento estão a realização de um Fórum Alternativo de Comunicação, cujo objetivo é criar uma rede global de notícias antiglobalização, e debates sobre agricultura, ambiente, comércio, economia e guerra. As discussões pretendem exigir mudanças à mercantilização
do mundo, proposta pela OMC, e articular ações internacionais de luta contra a globalização. A primeira conquista dessa organização deve ser a Marcha Mundial contra a Globalização e a Guerra, dia 13 de setembro,
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Desde sua criação, em 1995, o principal papel da Organização Mundial do Comércio (OMC) tem sido expandir seu poder de regulamentação em 145 países, o que significa exercer grande influência no cotidiano de milhões de pessoas.Apesar de difundir a ideologia do “livre comércio”, a OMC tem uma complexa estrutura de regras utilizada na defesa dos interesses de grandes transnacionais. Algumas dessas regras estão contidas no acordo conhecido como Tr ips (Trade-Related Intellectual Property Rights), que regulamenta a propriedade intelectual. Esse acordo tem abrangência maior do que a maioria das leis de patente dos países-membros da OMC e beneficia principalmente a poderosa indústria farmacêutica estadunidense. A concentração do controle de patentes por meia dúzia de transnacionais, na área de biotecnologia, é considerada hoje uma terceira fase no processo de colonização, iniciado no período das conquistas territoriais, durante os séculos XV e XIX, e passando pelo controle dos mercados financeiros nas últimas décadas. Países como Brasil e África do Sul questionam o Trips para garantir o direito de fabricar medicamentos genéricos. Essa questão tem sido debatida desde que os Estados Unidos processaram o Brasil por fornecer remédios genéricos para o tratamento do vírus HIV. A vitória brasileira nesse caso abriu um importante precedente contra as regras de patente na OMC. Mas, atualmente, os Estados Unidos se aliaram à Índia para evitar a liberação dos genéricos.A proposta estadunidense só inclui a quebra de patentes em casos de crise de saúde pública e limita a lista de medicamentos para o tratamento da AIDS, da malária e da tuberculose. Os acordos da OMC representam também um grande risco
Em São Paulo, militantes estudam para lutar contra a globalização Cerca de cinqüenta militantes feministas se reuniram em um hotel do centro de São Paulo, de 6 a 8 de agosto, para discutir formas de lutar contra a globalização. O encontro, que contou com a presença de palestrantes estrangeiros, como a equatoriana Magdalena León, da Rede Latino-americana de Mulheres Transformando a Economia (Remte), teve como título “O que está em jogo na Organização Mundial do Comércio (OMC)?” e, de acordo com as organizadoras, foi um espaço de formação de lutadores do povo. O importante, salientou Magdalena em sua exposição, é identificar como a globalização interfere na vida das pessoas e assim saber resistir e detê-la. Nesse sentido, disse, “é um meio de reconhecer os oprimidos, como as mulheres, e quando isso acontecer estaremos derrubando o predomínio das instituições financeiras”. Para Sandra Quintela, da Campanha Nacional contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), entretanto, é preciso ter cuidado para não perder a amplitude da luta. “O sistema multilateral de comércio, a globalização, é maior que a OMC”, destacou. Em sua palestra, Adhemar Mineiro, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos (Dieese), afirmou a necessidade de se conhecer detalhadamente os procedimentos e as negociações das instituições financeiras que, segundo ele, têm efeitos diretos na vida das pessoas. Para Mineiro, é fundamental defender a soberania dos países e seres humanos em relação aos organismos internacionais. Ele alerta:”o Brasil não tem um projeto capaz de frear e modificar a globalização e suas crias: fome e miséria”.
■ Cartaz da Rede Mexicana de Ação contra o Livre Comércio
Livre comércio: para quem? Maria Luisa Mendonça, da Redação
com manifestações simultâneas em diversos países. “Até hoje, o imperialismo criou guerras e sofrimento e, mais uma vez, vamos nos mobilizar para exigir um basta a esse modelo”, destaca Maria.
para a segurança alimentar de comunidades rurais, por meio da possibilidade de grandes empresas controlarem patentes de recursos genéticos e conhecimento tradicional indígena em relação, por exemplo, à produção de grãos nativos como milho, arroz e feijão. Outro tema polêmico é a abertura dos setores de serviços para empresas estrangeiras, pelo acordo chamado GATS (General Agreements on Trade in Services). O resultado dessa política, representada principalmente pelo processo de privatização de serviços públicos, foi o aumento do desemprego e a diminuição de investimentos em setores estratégicos da economia. No Brasil, o fracasso desse modelo se tornou evidente com a grave crise energética no ano passado. O chamado “livre comércio” criou também regras estritas contra o controle do Estado a investimentos externos, inclusive contra a possibilidade de os governos estabelecerem leis de proteção ao meio ambiente e ao bem-estar social. FALTA EQUILÍBRIO Normalmente, os acordos de livre comércio não são implementados de forma equilibrada entre países do Norte e do Sul. Por esse motivo, as negociações da OMC vivem sob ameaça de fracasso. As únicas possibilidades de evitar novo impasse dentro da OMC seriam: 1 - se os países industrializados deixassem de proteger suas indústrias e suas economias; ou 2 - se os países ‘marginalizados’ se submetessem, definitivamente, às regras dos mais fortes. Diante desse dilema e dos crescentes protestos de organizações sociais, a OMC dificilmente terá condições de superar sua crise de credibilidade. A próxima reunião ministerial da OMC será realizada em Cancún (México), de 9 a 13 de setembro, quando estão previstas mobilizações em todo o mundo em favor de políticas de comércio justo que promovam um novo modelo econômico.
ANÁLISE
Os limites de Brasil e Argentina Raúl Zibechi, de Montevidéu (Uruguai) Além das diferenças entre os estilos pessoais de Lula e Kirchner, não se deve esquecer que eles administram dois países com universos sociais e culturais que lhes impõem limites e os empurram em direções, talvez, opostas. Por mais fortes que sejam os governos, mesmo os mais autoritários, existem limites impostos pela cultura política herdada e pelas atitudes da sociedade civil. Até as ditaduras militares não poderiam ter sobrevivido sem contar com certo respaldo social, ao menos nos primeiros tempos. No extremo oposto, algumas surpresas do governo Kirchner só podem ser entendidas a partir de clamores sociais. Assim, o governo Lula depende fortemente de sua aliança com o empresariado paulista. O poder do setor industrial no Brasil - que deu a Lula o vice José Alencar - torna virtualmente impossível qualquer governo que não conte com um mínimo respaldo do empresariado. Na Argentina, ao contrário, a experiência prévia delineou um rumo diferente: a década de governo de Menem desarticulou o Estado e produziu mudanças sociais - e culturais - amplas, enquanto as jornadas de 19 e 20 de dezembro de 2001, que derrubaram o presidente Fernando de la Rúa, mostraram os limites que teria, à direita, qualquer gestão que pretendesse, mesmo simbolicamente, assumir-se como continuadora da política de Menem. CLARAS DISTINÇÕES Apesar de a economia brasileira ter crescido muito mais que a argentina nos anos 90, o produto per capita brasileiro é hoje apenas 62% do da Argentina. No terrível ano de 2002, as zonas urbanas argentinas tinham 23,7% da população abaixo da linha de pobreza e 6,7% abaixo da linha de indigência, enquanto o Brasil tinha, respectivamente, 32,9% e
José Cruz/ABR
INTERNACIONAL
Pessoas do mundo todo se reúnem para protestar contra a Organização Mundial do Comércio; a OMC continua dando prioridade às necessidades das empresas transnacionais; Brasil e Argentina: semelhanças e diferenças econômicas, sociais e culturais
■ Kirchner e Lula: mesmos desafios, realidades diferentes 9,3% (dados da Cepal). Na Argentina, a cesta básica era de 231 dólares contra 151 dólares no Brasil, o que revela padrões de consumo muito distintos. Outros indicadores das diferenças: apenas 36% das mulheres e 31% dos homens brasileiros chegam ao ensino secundário, frente a 81% e 73%, respectivamente, na Argentina. O acesso à universidade é três vezes maior, percentualmente, na Argentina do que no Brasil. Em 1996, vendiam-se na Argentina 123 jornais diários por mil habitantes, contra 40 por mil habitantes, no Brasil. Em resumo, a Argentina foi (e continua sendo) uma sociedade de consumo, a imensa maioria de seus habitantes foram (são?) cidadãos integrados, com direitos reconhecidos e, muitas vezes, respeitados. No Brasil, a população rural nunca foi cidadã (hoje mais da metade está abaixo da linha de pobreza e mais de um quarto é indigente), além de ter estado sempre à mercê dos latifundiários. Por isso, o Brasil é considerado hoje o “campeão mundial da desigualdade” - 1% dos proprietários detêm a posse de 45% da terra. Nesse cenário se moveram os diferentes atores sociais que fizeram a história dos dois países. A solidez das classes dominantes brasileiras começou a desfazer-se recentemente, no fim da última e longa ditadura militar (1964-84), com a ascensão de novos setores sociais e com a luta dos trabalhadores e de parte dos camponeses.
Aquele espaço as classes médias e os trabalhadores argentinos já tinham nas primeiras décadas do século XX. O setor mais dinâmico da sociedade brasileira é o rural, onde se deu a maior parte da dissidência social e política. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mesmo sendo o maior movimento do país e um dos mais fortes do mundo, inclui apenas uma pequena parcela dos brasileiros, com menos de 10% dos camponeses. Ao contrário, a classe trabalhadora argentina, que configurou um dos movimentos mais potentes do mundo, manteve sua autonomia mesmo no governo de Juan Perón, como prova a grande pressão que os trabalhadores exerceram sobre o general, em 1951, para que colocasse a esposa Evita na presidência. A classe trabalhadora argentina ganhou, por força das batalhas, um lugar na sociedade. No Brasil, ainda se luta por cidadania, pela inclusão social e política das maiorias. A existência de uma burguesia nacional é, ao mesmo tempo, impulso e freio para a sua política. Enquanto na Argentina a classe média empobrece e boa parte dela rompeu os velhos preconceitos classistas aproximando-se agora dos mais pobres, no Brasil os setores médios em ascensão não parecem tão dispostos a considerar que os “outros” têm também os mesmos direitos. (ALAI)
IRAQUE
Tom Mihalek/AFP
Bush controla petróleo iraquiano
■ “Quantas mortes por barril?”, perguntam pacifistas dos EUA
processo, decreto, execução, penhora ou seqüestro movido por terceiros ou outro procedimento judicial” contra as companhias petrolíferas estadunidenses. E não é só isso. A imunidade diz respeito a “todo o petróleo iraquiano, produtos petrolíferos e interesses a eles relacionados”.
Paulo Pereira Lima, da Redação Os Estados Unidos não querem apenas livrar seus soldados de eventuais punições no Tribunal Penal Internacional (TPI). A depender do presidente George W. Bush, as transnacionais estadunidenses que operam na exploração de petróleo no Iraque também gozarão de total imunidade. É disso que trata a “ordem executiva” (espécie de decreto) assinado por Bush, dia 28 de maio, e que foi ignorada pela grande mídia. A notícia foi destacada por Steve Kretzmann e JimVallette, pesquisadores do Instituto para Estudos Políticos, de Washington, em entrevista ao jornal italiano Il Manifesto. Segundo os pesquisadores, a ordem havia sido assinada poucas horas depois da resolução 1.483 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS-ONU) – a mesma que decretou o fim das sanções contra o Iraque e a criação de uma agência para gerenciar o Fundo para o Desenvolvimento do Iraque. A ordem 13.303 considera proibido, nulo e ineficaz qualquer
FORA DA LEI Para a Casa Branca, tal procedimento é necessário a fim de garantir o desenvolvimento e a reconstrução do Iraque. Na verdade, impede também as empresas de serem submetidas a qualquer lei civil ou penal nos Estados Unidos, como a Alien Tort Claims Act (Lei das Reclamações do Estrangeiro), usada pelas organizações de defesa dos direitos humanos em julho num tribunal da Califórnia para processar a transnacional Unocal. A petrolífera está sendo acusada de cumplicidade com o reg ime de Myanmar (antiga Birmânia), país do Sudeste asiático, que teria cometido atrocidades contra população local durante a construção de um gasoduto da Unocal. De acordo com a nova lei de
INTERNACIONAL
Bush garante imunidade às petrolíferas dos Estados Unidos que operam no Iraque; a situação do Iraque ainda não permite que se tenha uma visão clara do futuro das relações com o Brasil; lei racista impede árabes e judeus de viver em condições iguais
Bush, não estariam contempladas organizações humanitárias, empresas de comunicação ou outras consideradas esCS-ONU – Espécie de senciais na reórgão executivo construção do integrado por quinze países-membros, cinco Iraque. dos quais Segundo permanentes e com Kretzmann e poder de veto Vallette, a (Estados Unidos, imunidade seFrança, Grâ-Bretanha, China e Rússia) e ria privilégio outros dez com de indivíduos, assento temporário corporações e agências envolvidos na venda, comercialização ou outras atividades ligadas à exploração do petróleo iraquiano. Para os pesquisadores estadunidenses, “com uma simples assinatura, o presidente Bush eliminou o direito da população iraquiana a qualquer compensação garantida por meios legais.A ordem de Bush estabelece simplesmente que o petróleo iraquiano é um feudo das corporações estadunidenses”. TPI – Julga crimes de guerra e contra a humanidade. Embora os EUA tenham assinado, em 1998, o tratado que criou o tribunal, em 2002, Bush decidiu cancelar a adesão de seu país
Proibido casamento entre israelenses e palestinos Ativistas dos direitos civis e alguns políticos de esquerda acreditam que o verdadeiro motivo da lei seja demográfico, porque Israel teme que o contínuo fluxo de palestinos reduza a maioria judia. “Esta lei nada tem a ver com segurança”, afirmou o parlamentar árabe-israelense Azmi Bishara. “Está vinculada à demografia. O que querem é limitar o número de árabes em Israel”, acrescentou. Alguns juristas israelenses questionaram a constitucionalidade da
governo e devo acatar”, declarou o ministro, que será responsável pela aplicação da nova norma. LEI DIREITISTA Tibi Rabinovith, chefe do escritório do ministro do Interior, disse que o escritório do primeiro-ministro Ariel Sharon foi responsável pela iniciativa da lei. Esclareceu que a lei estará em vigor por um ano e sua renovação pelo parlamento dependerá dos “avanços no processo de paz” palestino-israelense. Entretanto, isto não é consolo para Rawda Masarwa. Desde que se casou, há cinco anos, seu marido Khaled teve de renovar sua permissão de residência em Israel a cada seis meses.“Cada vez que vou (ao Ministério do Interior) me pedem mais documentos. Sempre querem algo novo. Minha pasta está a ponto de estourar de tanto documento”, disse. A última permissão de Khaled venceu e as autoridades não a renovaram, o que significa que está vivendo ilegalmente em Israel.“Nunca saímos juntos, porque as forças de segurança detêm as pessoas (na situação de Khaled) e as devolvem aos territórios palestinos. Não queremos correr esse risco”,disse Masarwa, que trabalha como assistente contábil na cidade costeira de Netanya.“Quando nasceu nosso segundo filho, disse a Khaled que não fosse ao hospital nos visitar.Tinha medo que o prendessem e mandassem de volta para Tulkarem. Eu teria ficado sozinha com um recém-nascido”, contou.
■ Casamento em Jerusalém: Ariel Sharon promove lei racista
lei, por considerar que contradiz os valores básicos do país, como a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sejam árabes ou judeus. Organizações de direitos humanos pensam em recorrer à Suprema Corte para pedir a anulação da lei. “Já estamos redigindo uma solicitação”, afirmou Tibi. Masarwa quer que seu nome figure nessa petição.“Lutarei até o final. Não vou ficar de braços cruzados. Já vivi muito tempo com medo”, afirmou. (IPS/Envolverde)
Embaixada de governo nenhum Milena Galdino, de Brasília (DF) Depois da queda do regime de Sadam Hussein, as embaixadas do Iraque no mundo são o retrato do abandono.Na América do Sul, resta apenas a de Brasília. Mesmo assim, seis empregados já voltaram para o Iraque, e o único que continua no quadro funcional chega pela manhã e sai às 14h. No fim da tarde, volta para ligar os refletores. As pichações e a bandeira suja hasteada na entrada comprovam as impressões dos policiais militares que fazem a guarda: há tempos não há limpeza no local, invadido pelas moscas da vizinha estação de tratamento de esgotos. Na residência oficial – uma mansão comprada na década de 80, quando as relações comerciais com o Brasil chegavam a mais de R$ 4 bilhões anuais – a fachada reflete a crise que começou durante o embargo comercial e se intensificou com o fim do governo de Sadam. O casal que hoje ocupa a residência oficial – o encarregado de negócios, Khairallah Alobaidy, e sua mulher – foge da imprensa. Alguns embaixadores que participam da Liga Árabe ajudam o colega com as despesas.A quantia, contudo, não
foi confirmada pelo decano do grupo de embaixadores, o palestino Musa Amer Salim Odeh. Em rápida entrevista telefônica, Alobaidy reconheceu que a embaixada está praticamente fechada e que, sem governo, a rotina não existe. “Não posso dizer se vamos nos retirar do Brasil, essa é uma questão estratégica do governo em Bagdá. Não cabe a mim dizer”,explicou. O próprio Ministério das Relações Exteriores desconhece o futuro da embaixada. “O Estado iraquiano terá a garantia de que, se acabar com a representação aqui em Brasília, terá todos os bens protegidos e sua propriedade será intocada”, comenta uma fonte do Itamaraty. Segundo ela, as boas relações diplomáticas ensinam que, ao fechar uma embaixada, o país deve comunicar a saída ao anfitrião.“Mas, nesse caso, o encarregado de negócios era um representante de Sadam Hussein. Agora o chefe não está mais no poder, e o país foi ocupado. Seja qual for a decisão do governo iraquiano sobre o futuro da embaixada, a situação dos 160 cidadãos do país que vivem em terras brasileiras não será modificada. Segundo dados da Polícia Federal, boa parte deles vive no Rio de Janeiro. No Brasil, eles trabalham sobretudo no comércio e nas áreas de informática e arquitetura. (Agência Brasil)
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
Se Rawda Nasarwa e seu marido Khaled desejam continuar vivendo sob o mesmo teto, terão de violar a lei ou sair de Israel. Mas, se nenhuma dessas opções é aceitável, terão que se separar.A situação deste casal é produto de uma nova lei que impede os palestinos de Gaza e da Cisjordânia casados com cidadãos israelenses (em sua maioria árabes) de obter a cidadania ou a residência no Estado judeu.“Só existe uma palavra para descrever esta lei: racista”, disse Masarwa, de 28 anos, procedente da aldeia árabe-israelense de Taibhe, no Norte do país. Seu marido é da cidade de Tulkarem, no Norte da Cisjordânia. “O que devo fazer? Separar-me de meu marido? Temos dois filhos pequenos”, queixou-se Masarwa. O governo do direitista partido Likud, que conseguiu a rápida aprovação da lei no dia 31 de julho, defendeu a norma alegando razões de segurança. Segundo as autoridades, vários palestinos com residência em Israel aproveitaram sua liberdade de movimento para cometer ataques terroristas. Grupos de direitos humanos de Israel e do exterior, bem como opositores de esquerda, consideram que a lei é uma solução radical para um problema marginal, além de uma flagrante discriminação. A lei afetará milhares de casais e seus filhos que já vivem em Israel e estão à espera do trâmite de seu pedido de “unificação familiar”, como o procedimento é conhecido. Também afetará os futuros casamentos entre árabes-israelenses - que constituem 20% dos seis milhões de habitantes de Israel - e palestinos dos territórios vizinhos. A lei procura legitimar uma situação que se registra de fato desde meados de 2002, quando o governo bloqueou a residência aos palestinos casados com israelenses. Muitas famílias árabes ficaram divididas entre Israel e a Cisjordânia por causa de várias guerras na região, e os casamentos entre pessoas dos dois grupos são bastante freqüentes.“Esta lei aponta especificamente contra os israelenses casados com palestinos”,
disseYoav Loeff, porta-voz da Associação de Direitos Civis de Israel.“É um dia negro para a democracia israelense”, lamentou Loeff. A organização Anistia Internacional considerou que a lei constitui uma violação das “normas internacionais de direitos humanos e de tratados que Israel assinou e ratificou”. Por outro lado, o ministro sem pasta Gideon Ezra recordou que mais de cem mil palestinos obtiveram permissão de residência em Israel desde 1993 e destacou que a segurança é o fundamental. “Desde setembro de 2000 (quando estourou a segunda intifada, ou insurreição palestina) registramos uma importante ligação entre árabes israelenses e árabes de Gaza e da Cisjordânia nos ataques terroristas”, afirmou. Segundo o governo, foram registrados 20 desses casos, mas ativistas dos direitos civis discordam. “Quando pedimos os números, primeiro disseram que era impossível fornecê-los, e depois, de alguma forma, encontraram 20 casos”, assinalou Loeff. Os ativistas também questionaram a informação de Ezra sobre as cem mil permissões de residência. Adalah, o Centro Legal para os Direitos de Minoria Árabe em Israel, afirmou que foram apresentadas somente 24 solicitações desde 1993. O ministro do Interior, Avrham Poraz, membro do centrista e laico partido Shinui, manifestou-se contrário à lei.“Oxalá não se necessitasse dela. Não me
Atta Oweisat/AFP
Por Peter Hirschberg, de Jerusalém
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INTERNACIONAL
O governo brasileiro espera aumentar em um bilhão de dólares o comércio somente com a África do Sul este ano; nem por isso, segundo Carlos Lima, o país aproveita as chances de aprofundar o intercâmbio com os africanos; o exportador acha que falta conhecimento e sobra racismo
ÁFRICA AFRICA
“Elite discrimina África”, diz empresário Fotos: Luciney Martins7Rede Rua
Marilene Felinto, da Redação
E
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
le conhece 13 países africanos (Angola, Moçambique, África do Sul, Namíbia, Congo, Zâmbia, Tanzânia, Togo, Nigéria, Quênia, Benin, Senegal e Zimbábue), exporta para o continente desde 1982, quando, aos 22 anos, e militante de movimentos estudantis, impressionou-se com o então governo socialista de Angola. Carlos Antônio Cerqueira Lima, 44, passou parte de sua vida no Jardim Ângela, bairro da periferia da zona Sul de São Paulo, conhecido pelos altos índices de pobreza e de violência. Filho de uma empregada doméstica, venceu os preconceitos contra a cor da pele e a classe social. Foi de office boy a executivo de grandes empresas. Formou-se em economia, fala inglês e francês e é dono de duas empresas na área de comércio exterior, a Ditrading e a Akoro (um dos nomes de Ogum, entidade do Candomblé, o senhor da guerra), de exportação e representação comercial. Entusiasta das relações entre o Brasil e a África, acha que o governo Lula e seu ministério das Relações Exteriores têm agido “com maestria” no aprofundamento dos laços culturais e comerciais entre brasileiros e africanos. Mas é da opinião de que o Brasil ainda perde muitos negócios no continente, em comparação com os europeus, por exemplo, por desconhecimento e preconceito, alimentados pela imagem negativa divulgada pela mídia. Em entrevista ao Brasil de Fato em seu escritório de São Paulo, Lima falou de como a identidade cultural e as semelhanças físicas tornam o Brasil um parceiro diferenciado para a África, e de como o racismo da classe alta brasileira barra o avanço dos negócios.
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Brasil de Fato – O que marca o intercâmbio comercial entre Brasil e África? Carlos Antônio Cerqueira Lima – Eu acho que o Brasil tem alguns diferenciais, e isso eu já ouvi de pessoas em várias partes do continente africano. A tecnologia da Europa e dos Estados Unidos é muito avançada para a África. Um país como o Brasil apresenta grau tecnológico mais próximo da realidade africana. Então, acho que isso é uma vantagem. A proximidade também é maior quando se pensa no clima parecido e, em alguns países, também na língua. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem feito um trabalho importante em vários países, na área da agricultura, na Namíbia, Nigéria e Guiné. Volta e meia se ouve falar da Embrapa lá. É um centro de excelência reconhecido internacionalmente. Não faz sentido a África não ter produção de alimento. Sua agricultura de subsistência precisa ser modernizada e industrializada. Acho que o Brasil pode ajudar muito nisso. Temos exportado para a África bens de consumo e bens de capital. E importamos matéria-prima como petróleo. Eu soube no Fórum África [que aconteceu em Fortaleza, em junho] que o Brasil está explorando petróleo até na Tanzânia, numa estratégia de internacionalização daqueles blocos. E os estadunidenses também estão de olho. Há muita preocupação com esta nova onda de arraso da África por causa da exploração de petróleo, e eu sou muito crítico disso. Já fui convidado por uns estadunideses para fazer uma visita a São Tomé e Príncipe, às empresas petrolíferas de lá, porque falo português e sou brasileiro. Então, acho que pode acontecer um desastre ali. BF – Que desastre? Lima – O que acontece hoje é que países de economia muito pequena, mas que têm uma certa ordem social, passam a ser desorganizados pela força da indústria do petróleo, pelo poder de corrupção da indústria do petróleo, que é avassalador. Você está vendo, a Casa Branca hoje é movida à indústria do petróleo. A guerra do Iraque foi por isso. Cabinda, em Angola, e o Delta da Nigéria são lugares horríveis [zonas ricas em petróleo]. A população local vive de ma-
neira abjeta ali. Petróleo traz muito dinheiro. Mas para onde vai tudo isso? Ainda mais agora, que você tem uma potência hegemônica, que faz do mundo o que quer... Imagina como é que a estrutura social e política de um país como São Tomé e outros pode resistir a esse canto da sereia, à força dos Estados Unidos, que querem diminuir sua dependência do Oriente Médio!
BF – O que a África pode oferecer ao Brasil? Lima – Algumas matérias-primas, produtos primários, porque não há produtos de outra natureza. Mas o Brasil conhece pouco a África. Os nórdicos, os australianos, têm muito mais negócios lá, porque conhecem mais. Como a elite brasileira é muito preconceituosa e racista, olha para a África como o fim do mundo. E perdem-se oportunidades sérias hoje. A relação com os africanos poderia trazer apoio para o Brasil nas suas teses em fóruns internacionais multilaterias. O comércio gera proximidade entre os países. Hoje, a África é cortejada de maneira até vil por outros países, neste sentido. O voto de São Tomé e Príncipe parece pequeno, mas, quando se vai somar votos na Organização das Nações Unidas ou na Organização Mundial do Comércio, ele tem seu peso.
■ O exportador Carlos Lima, de São Paulo, comanda duas empresas de comércio exterior BF – Como foi sua primeira experiência de trabalho com a África? Lima – Eu conheci Angola ainda no tempo do partido único. Foi interessante porque eu estava na faculdade, participando daqueles movimentos todos, do movimento negro. Foi importante conhecer um país de regime socialista. Mas foi uma relação comercial, com os aparelhos de Estado. O Brasil já tinha uma linha de crédito com Angola naquele momento, e várias empresas brasileiras participavam, exportando alimentos, materiais escolares, vestuários, material de construção.
dois ministros no ano passado, para encaminhar as negociações. O governo de lá subsidia a construção de casas populares. Para você ter uma idéia, no câmbio de hoje, dependendo da faixa de renda, pode-se chegar a 3 mil dólares de subsídio direto. Se você vai comprar uma casa por 10 mil dólares, o governo banca 3 mil e você financia apenas 7 mil. Temos um volume inicial já definido de 5.500 casas. Entretanto, o déficit hoje, só na província de Gauteng, onde fica Johannesburgo, é de 500 mil casas. Essa área para onde vão as primeiras estruturas é próxima a Soweto.
BF – Que negócios o senhor mantém hoje com o continente? Lima – O carro-chefe da Ditrading hoje é um projeto de tecnologia voltada à construção de casas populares, da Gerdau. Tocamos projetos na África do Sul, América Latina e Caribe. As casas são feitas com uma estrutura de aço, que permite a construção em tempo bastante reduzido. Em 21 dias.
BF – Uma favela como Soweto é diferente das favelas daqui? Lima – Se você comparar Soweto com as áreas mais miseráveis das grandes cidades, os negros lá vivem melhor do que os pobres das favelas do Brasil ou de Caracas. Lá eles têm mais infraestrutura urbana e as próprias construções são melhores. Mas eu não estou eliminando a situação na época do apartheid, em que os negros foram segregados ali e não tinham nem ônibus para se locomover. Eu, pessoalmente, como alguém que viveu no Jardim Ângela, conheço isso e não é de retórica.
BF – Sua empresas exportam para a África do Sul? Lima – Nosso contrato com a África do Sul está pendente por uma questão jurídica de lá, relativa à terra. Nós trouxemos aqui
BF – O senhor cresceu no Jardim Ângela? Lima – Não, mas vivi muitos anos lá, e a origem da minha família é essa. A minha mãe era empregada doméstica. Fomos morar no Ângela como solução para não morar mais na casa dos outros. Alugamos uma casa ali, dividindo um banheiro com três famílias. BF – Como o senhor estudou e se formou? Lima – Até a 8ª série , eu estudei em escolas públicas. No colegial, e foi aí que começou o salto, minha mãe era empregada na casa de um diretor da Du Pont, e eu comecei a trabalhar lá como office boy. Como a empresa era no centro, perto do Colégio Mackenzie, eu descobri que precisava ter uma diferenciação na minha formação escolar e fiz o colegial no Mackenzie, pagando com meu salário. Depois entrei na Getúlio Vargas, passei no vestibular, mas não tinha dinheiro para pagar e tive que largar no segundo ano. Depois, já num
melhor emprego, eu terminei o curso de Economia. Minha monografia de graduação já foi sobre a África. Eu comparei o Brasil e a Nigéria, na questão da crise do petróleo, mostrando o impacto da crise nas duas economias. Isso já era um pouco fora do meio, porque em economia sempre é só mercado financeiro, e eu sempre gostei da teoria do desenvolvimento econômico. Eu ainda acho que a economia deveria ser uma ciência social, e não uma ciência matemática.
BF – A lei que institui o estudo de cultura e história da África nas escolas pode ampliar nosso conhecimento do continente? Lima – Vamos ver. Papel aceita tudo. Quero ver na realidade. Para ter acesso à cultura negra, minha filha precisa freqüentar uma escola estrangeira, dentro do meu país, uma escola francesa, em que há uma disciplina sobre isso. A gente não pode deixar que diluam a nossa especificidade. Meus filhos são filhos de negros com índios. E daí? Como é que surgiu isso? É ser mestiço? Não. Eu digo a minha filha: sua avó era uma índia, purinha, que nasceu na tribo assim e assado... Globalização para mim é americanização do mundo, só isso. Vejo com preocupação a perda de qualquer cultura. As línguas estão sumindo. Hoje, atrás dos marines estadunidenses que invadem o Afeganistão ou o Iraque, vão missionários conquistar a cultura local. Eu não sou muçulmano, mas sou contra destruírem a cultura dos caras. É por isso que eu tenho uma certa ojeriza à cultura estadunidense até hoje, a esse domínio cultural avassalador. Isso que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem falado, de melhorar a nossa auto-estima, é muito importante. Aqui, tudo que se faz hoje é em inglês. Na Venezuela, que eu pensei que fosse mais americanizada, não, é em espanhol. Você vê em Angola, eles pegam as palavras do Microsoft Word e passam para o português. Quer dizer, você tem uma língua lá. O Brasil está passando por um processo de lavagem que é cavalar. Por que eu pus os meus filhos num colégio francês? Por que sou metido? Não. Porque o francês é o povo que mais lê no mundo, de visão mais crítica.
INDÍGENAS
AMBIENTE
Indígenas amazônicos, depois de 18 anos de lutas, em que chegaram a autodemarcar suas terras, conquistaram direito a seu território, ameaçado até por uma madeireira malaia. Eles enfrentaram tudo: malária, sarampo e tuberculose, mas sua história teve final feliz.
J. Rosha, de Manaus (AM)
DETERMINAÇÃO Para o coordenador da Campanha da Amazônia do Greenpeace, Paulo Adário, “a luta dos denis pela demarcação de seu território é um exemplo da determinação de um povo indígena que resolveu tomar o destino nas próprias maõs. É um testemunho vivo da luta em defesa da manutenção dos recursos amazônicos por quem melhor os sabe proteger: as populações tradicionais que vivem na floresta. É algo que merece ser celebrado, depois de 18 anos de longa espera e muita batalha”. “A demarcação, sem dúvida, vai proporcionar ao povo deni redefinir sua vida e seu futuro. É um povo valente, que resistiu às invasões, aos ataques das frentes extrativistas, às inúmeras epidemias e agora pode e deve comemorar essa conquista”, disse Guinter Francisco Loebens, coordenador do Cimi Norte I. Para os indígenas, a conclusão do processo demarcatório é um passo inicial rumo a um futuro em que eles possam viver de acordo com suas tradições, sem medo de serem expulsos de seus territórios.“Nós dependemos da floresta para sobreviver. Precisamos caçar e pescar para nos alimentar e, para isso, precisamos de nossa terra”, disse Kubuvi Deni, um dos líderes do povo.
■ Índios denis participaram ativamente da luta pela defesa de suas terras, que estavam ameaçadas por uma transnacional madeireira
■ O povo deni celebrou com cantos e danças tradicionais a conclusão da demarcação de sua terra, após 18 anos de espera
BRASIL DE FATO De 14 a 20 de agosto de 2003
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os primeiros meses de 1992, um terço da população de três aldeias do povo deni do rio Xeruã, na Amazônia, foi dizimado por um surto de malária e sarampo. Foi mais um golpe sobre o povo já enfraquecido por inúmeros casos de tuberculose. Àquela época, a terra não estava demarcada e era constantemente invadida por madeireiros. O cenário que se vislumbra para eles agora é outro. No dia 5 de agosto, os denis celebraram com cantos e danças tradicionais a conclusão da demarcação de sua terra, após 18 anos de espera. A cerimônia foi organizada pelos pataharu (caciques) e aconteceu na aldeia Boaidor, localizada nas margens do rio Xeruã – afluente do rio Juruá, no Sudoeste do Estado do Amazonas. A demarcação oficial começou em maio, mas há três anos os próprios indígenas iniciaram a autodemarcação de sua terra, cansados de esperar providências do governo federal. A iniciativa deles se deu, dentre outras razões, por causa da presença da madeireira malaia WTK, que havia comprado uma área de 313 mil hectares de floresta – mais da metade encontrava-se sobreposta à terra dos denis – como planos de explorar madeira e produzir compensado para exportação. Em 1999, o Greenpeace iniciou uma campanha para demarcação naquela terra, com apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Operação Amazônia Nativa (Opan). Em setembro de 2001, os próprios indígenas iniciaram a autodemarcação, apoiados por voluntários do Greenpeace, que ensinaram os denis a manusear aparelhos como
teodolito, GPS e outros, utlizados nessa tarefa. Quando ainda executavam o trabalho, uma determinação do Ministério da Justiça interrompeu a autodemarcação e obrigou as entidades de apoio a sair da área. Os denis, porém, recusaram-se a parar e, dias depois, o então ministro da Justiça, José Gregori, assinou a portaria demarcatória.
Fotos: Flávio Cannalonga/Greenpeace
Denis festejam demarcação de sua terra
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DEBATE
REFORMA DA PREVIDÊNCIA
Não à exclusão A
o dizer não à reforma da Previdência Social com o voto de abstenção em plenário — um voto qualificado e expressado por outros sete companheiros do PT — reafirmamos o respeito aos trabalhadores, à nossa base política e o compromisso com a história partidária. A condução dos debates, as linhas gerais do texto e o encaminhamento impositivo à votação nos colocou diante da tênue decisão entre a consciência, a qual não podíamos trair, e o não rompimento com o nosso governo e com a disciplina partidária. Discordar de um texto excludente, que não reflete a esperança de mudança que levou Lula à vitória, é clamar pelo diálogo, debates e, como fizemos, por inúmeras tentativas de alterar o projeto. Não compactuar com esta reforma é dizer sim à coerência partidária, expressada em outras ocasiões por nosso partido no Congresso Nacional. Opor-se não significa rompimento com a bancada, com o PT e com o governo. Significa manter o ideal dos setores que confiaram na construção de um governo democrático e popular e não daqueles que representam uma elite retrógrada, entre os quais adversários históricos da classe trabalhadora. Diferente da emenda constitucional aprovada, acreditamos que a reforma da Previdência deveria consolidar a Seguridade Social, instituída na Constituição de 88, e avançar na ampliação da cobertura previdenciária à população brasileira, principalmente a mais pobre e excluída do sistema. O PT sempre foi contrário a taxação dos inativos. Taxar hoje em 11% abre precedente para se justificar no futuro o aumento do percentual, sob a mesma alegação de deficiência de caixa. A tese do
propagado déficit não se sustenta diante da inconsistente e obscura prestação de contas de arrecadação e despesa da Previdência. Em relação ao teto, propúnhamos que fosse de 20 salários mínimos, patamar que contemplaria cerca de 95% dos assalariados. O aumento da idade e do tempo de contribuição necessários para se aposentar penaliza os trabalhadores mais pobres. Incluídos cedo no mercado de trabalho informal, sem carteira, permanecem desamparados pelo sistema previdenciário. Além disso, a emenda constitucional deixa brecha para que no futuro se alterem as aposentadorias do setor privado. Outro equívoco - e por que não antidemocrático? Foi a propaganda institucional que satanizou os funcionários públicos e os elegeu como o belzebu de plantão. Estes não são os responsáveis pel brutal desigualdade na sociedade e nem pelas superaposentadorias criadas pelas velhas oligarquias. Há de se ressalvar a idéia generalizada, que não é verdadeira, dos altos salários, porque o número não ultrapassa 120 beneficiados, o que estaria corrigido com o teto de R$ 17 mil, estabelecido no projeto e o qual defendíamos. O verdadeiro problema estrutural da Previdência Social é a escandalosa exclusão de mais de 50% da classe trabalhadora. A alteração aprovada não assegura o redirecionamento dos gastos públicos para beneficiar uma parcela maior da sociedade e nem transfere renda. Ao contrário, fere direitos jamais questionados no nosso programa partidário. Não há como concordar, inclusive, com uma previdência complementar, aos moldes do FMI, para simples transferência de recursos da Previdência Social para o mercado especulativo.
Queremos que a democracia participativa seja o pilar das nossas ações, em vez de o PT optar pelo espírito centralizador de se governar com “carta branca” e apoio efêmero de governadores da direita, deixando à margem das mudanças sindicatos, instituições públicas e privadas, universidades, entidades e movimentos sociais e populares. A construção pela base, e nela presente, mantendo uma relação permanente e consultiva, sempre diferenciou o nosso partido no encaminhamento das questões internas, sociais e políticas. Defendemos os princípios partidários e o avanço no debate de propostas. Simplesmente referendar o proposto não é trilhar o caminho da democracia participativa. Estas premissas são necessárias para se introduzir no país uma vigorosa política de reforma agrária, de reforma urbana e de retomada do desenvolvimento, entre outras demandas sociais emergentes. Se prevalecer a livre manifestação crítica dentro e fora do partido, fazendo deste debate um instrumento de relação dinâmica e solidária, sem submissão, aí sim estaremos caminhando para construir um outro Brasil. Um país antagônico a este que vivemos, onde se usurpa e flexibiliza direitos trabalhistas e sociais, privilegiando o sistema financeiro e o capital transnacional com juros imorais. Um Brasil soberano, sem intromissão do FMI e seu impositivo superávit primário, sem con-
cessão aos produtores de alimentos geneticamente modificados, sem autonomia do Banco Central e sem submissão a potências econômicas e políticas, que querem fazer do Brasil o quintal de seus negócios, como a Alca, e eternizar a fome e a miséria de nosso povo. (PT-SP) Orlando Fantazini é deputado federal
Kipper
Orlando Fantazini
A contra-reforma da imprevidência Ricardo Antunes
balhadora brasileira, composta pelos funcionários públicos.
uando Fernando Henrique Cardoso iniciou seu governo, em 1995, deparou-se com uma greve geral dos petroleiros que abalou o país. A virulência com que enfrentou aquela greve marcou definitivamente seu governo, sua fisionomia, enfim, os interesses que estavam dominando seu governo. O neoliberalismo, iniciado com Collor, estava sendo continuado. Ocorreu o mesmo com a nefasta Margareth Thatcher, na Inglaterra, quando massacrou os mineiros entre 1983/ 4, aprofundando o neoliberalismo naquele país. Ambos, FHC e Thatcher, serão lembrados sempre como inimigos dos trabalhadores. Por tudo isso, foi triste ver a primeira ação do governo de Lula e do PT. Para os que esperávamos pelo início da reforma agrária, pelo principiar da mudança profunda da política econômica, pela recuperação da dignidade do salário mínimo, pela contenção do fluxo do dinheiro brasileiro que vai para o sistema financeiro internacional, esgotando a produção da nossa riqueza, pelo combate ao projeto da Alca, que consolida o domínio estadunidense na América Latina, enfim, pelo início de um programa de mudanças, foi triste ver que a primeira “reforma” do governo Lula foi agendada pelo FMI, imposição que o governo aceitou sem resistência, atacando um setor importante da classe tra-
Quais são as razões para que seja combatida a reforma? Primeiro, nós não estamos à frente de uma reforma da previdência com sentido universal e público, que crie condições reais para que a população trabalhadora brasileira tenha uma previdência digna para todos. Nós estamos, na verdade, à frente de uma contra-reforma da imprevidência , de conteúdo fiscalista, que tira dos funcionários públicos para transferir recursos para o sistema privado de previdência, para os fundos de pensão, que de fato vão lucrar muito com essa proposta. Trata-se, portanto, de uma reforma privatista e que incentivará o sistema financeiro do país, imaginando com isso alavancar o capitalismo brasileiro, associando sistema financeiro, sindicatos e fundos de pensão. Por isso os bancos estão tão felizes com o início do governo Lula. Uma verdadeira reforma da previdência, universal e pública, que beneficie milhões de trabalhadores, que incorpore cerca de 40 milhões que se encontram na informalidade, que não seja privatista, teria de partir da experiência pública existente no Brasil, torná-la mais equânime e mais justa, eliminando as distorções dos altos salários, em beneficio de uma ampliação da previdência pública para todos, sem fundos privados de pensão que, freqüentemente, como estamos vendo
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nos Estados Unidos, na Argentina e também no Brasil, quando entram em falência, prejudicam os pensionistas, que acabam ficando sem nada. Essa seria a verdadeira reforma da previdência, que se esperava do governo Lula e que somente poderia ser feita junto com os funcionários públicos, aproveitando sua experiência, acreditando no sentido social dos sindicatos e dos trabalhadores públicos, numa reforma que resultasse de uma profícua e positiva discussão. Em segundo lugar, temos no mundo hoje uma situação explosiva de desemprego. A população que trabalha é de aproximadamente 4 bilhões de pessoas. Quase um terço, entretanto, se encontra precarizada, realizando trabalhos parciais, temporários, e uma parcela grande está vivenciando o desemprego estrutural. No Brasil, a força de trabalho no chamado mundo da informalidade se amplia a cada dia e hoje está próxima de 60% do total de trabalhadores. Qualquer governo de esquerda que queira diminuir efetivamente o desemprego, que pretenda avançar na busca da dignidade humana, atuaria visando a redução da jornada e do tempo de trabalho, como reivindicam os trabalhadores e os sindicatos em todo o mundo. O que é que esta (contra)reforma da (im)previdência está nos impondo? A ampliação do tempo de trabalho. As classes trabalhadoras devem trabalhar mais tempo, as mulheres devem trabalhar mais tempo, os homens devem trabalhar
mais tempo, de modo que o desemprego aumente e os lucros que decorrem dos investimentos da Previdência se beneficiem. Terceiro, é muito importante afirmar que lutar contra a reforma da previdência não é uma ação corporativista. Desmontar a sua dimensão pública (res publica) do Estado, desmontar a educação, a previdência, a saúde, a escola e a universidade públicas, tudo isso afeta diretamente a população assalariada pobre, que não pode pagar pelos serviços privatizados. Por isso, lutam hoje também os trabalhadores na França, na Áustria, na Espanha, na Itália, em toda a parte em que políticas controladas pelo FMI estão sendo impostas e querem destruir os serviços públicos. É fundamental que os funcionários públicos, aliados a outros movimentos sociais que serão prejudicados, impeçam este desmonte dos direitos e da previdência pública. E se preparem para outros embates, que virão, como a luta contra a flexibilização da legislação social do trabalho, contra a autonomia do Banco Central e contra a anexação da Alca e pela reforma agrária profunda, pois somente com pressão e luta social é que se avança na oposição às reformas neoliberais. Ricardo Antunes é professor de Sociologia na Unicamp e autor de Os sentidos do trabalho (Boitempo, 7ª edição) e Adeus ao trabalho? (Cortez/ Unicamp, 8ª edição) e coordenador da Coleção Mundo do Trabalho (Boitempo)
Paulo Pereira Lima
HUMOR SP - SALÃO INTERNACIONAL DE HUMOR DE PIRACICABA ● Inscrições até dia 20 O salão, criado para incentivar a descoberta de novos talentos de humor gráfico e das histórias em quadrinhos, comemora 30 anos. A mostra tem incentivado a produção gráfica e propiciado a descoberta de técnicas de artes gráficas entre os artistas da América Latina, Europa e Ásia. Os temas predominantes na primeira década de existência do salão eram críticas à ditadura militar. Os interessados devem enviar trabalhos inéditos, de tema livre, nas categorias charge, cartum, tiras ou caricatura. Os prêmios são de R$ 1.000,00 e R$ 2.000,00. A exposição dos 220 selecionados será de 30 de agosto a 19 de outubro, no Parque Engenho Central, Piracicaba Mais informações: (19) 3421-3296
■ Romaria da terra em Canindé (CE), organizada pela CPT e pelo MST
AGRÁRIA
● Dia 24 A Marcha sairá do acampamento do MST, em Pecém, e deverá durar dois dias, até a chegada em Fortaleza. A meta é reunir 300 trabalhadores e trabalhadoras rurais, entre acampados e assentados, das dez regiões em que o MST atua no Estado. O objetivo é reivindicar o assentamento de mais de mil famílias que vivem em quinze acampamentos no Ceará; a liberação de assistência técnica para os assentamentos; a negociação das dívidas dos assentados da Reforma Agrária Solidária. No percurso da marcha serão realizados estudos sobre conjuntura política, reforma agrária, Alca, transgênicos e sobre o “Grito dos Excluídos”. A campanha para doação de alimentos para as famílias acampadas no Ceará continua. As doações estão sendo recolhidas na sede do MST no Ceará, localizada na Rua Missão Velha, 180, São João do Tauape. Mais informações: (85) 257-5630, 9989-7445
MÍDIA SP – DEBATE: MÍDIA E MOVIMENTOS SOCIAIS
Mais informações: (51) 3311-0956, 3311- 4968
● Dia 19, a partir das 19h30 O debate vai marcar o lançamento da edição número 20 da Revista Sem Terra. Com a participação de: João Pedro Stedile (MST), Plínio de Arruda Sampaio Jr. (Correio da Cidadania), José Arbex Jr. (Jornal Brasil de Fato), Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida (Revista Lutas Sociais), Hamilton Octávio de Souza (Revista Sem Terra). Local: Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Rua Monte Alegre, 984, sala P-65, 1.º andar (Prédio Velho) Mais informações: (11) 3361-3866
TELEVISÃO RS - SEMINÁRIO DE PROGRAMAÇÃO DE TELEVISÃO UNIVERSITÁRIA
CAPITALISMO RS - SEMINÁRIO: A SITUAÇÃO MUNDIAL E A CONSTRUÇÃO DE UMA
● Dias 20 e 21 A Associação Brasileira de Televisão Universitária e o Gramado Cine Vídeo promoverão o seminário, que será realizado em paralelo ao 31º Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino.Os objetivos do evento são: discutir políticas públicas para o desenvolvimento do audiovisual, pelo enfoque das TVs universitárias; debater projetos e programas de televisão universitária e agregar valor ao Gramado Cine Vídeo. Local: Centro de Eventos da Faurgs, Gramado Mais informações: www.abtu.org.br, (19) 3756-7325
ESQUERDA ANTICAPITALISTA NO E NO MUNDO
● Dia 15, às18 h Presenças confirmadas: François Chesnais, economista, professor da Universidade de Nanterre, diretor da revista francesa Carre Rouge e dirigente de ATTAC; Ernesto Herrera, dirigente da Corrente de Esquerda do Frente Amplo Uruguai; Aldo Romero, da Revista Herramienta de Argentina; Paulo Arantes, filósofo, fundador do PT; Ricardo Antunes, professor de sociologia da Unicamp e assessor do MST; Luciana Genro, deputada federal (PT), integrante da coordenação do Movimento Esquerda Socialista. Local: Auditório do Instituto de Educação Osvaldo Aranha, Porto Alegre
TEATRO SP – ESTRÉIA: MERCADO
DO GOZO
● Dia 15 Como resultado de uma pesquisa teatral sobre a produção contemporânea das imagens, o novo espetáculo da Companhia do Latão mostra o encontro de um jovem industrial de São Paulo, no começo do século vinte, com o submundo da prostituição e suas representações do desejo. Local: Teatro Cacilda Becker, Rua Tito, 295, Lapa Ingresso: R$10,00. Mais informações: (11) 3672-8939
ARTES VISUAIS SP – CARTAZES CUBANOS ● Até 6 de setembro
DIREITOS HUMANOS ES - I SEMINÁRIO REGIONAL LESTE
DE
DIREITOS HUMANOS
● De 15 a 17 O seminário, promovido pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) – Regional Leste, terá com o tema “Controle Social do Estado e Sustentabilidade”. Serão discutidas questões relacionadas ao controle externo do Estado e à sustentabilidade de entidades e defensores de direitos humanos. Também serão abordados os resultados obtidos durante os dez anos da campanha contra a impunidade no Espírito Santo. A abertura do evento vai acontecer dia 15, às 18h30. Estão previstas as presenças de: Itajiba Farias Ferreira Cravo, ouvidor da polícia do Estado de São Paulo; Sérgio Verani, desembargador do Rio de Janeiro; Iriny Lopes, deputada federal pelo PT do Espírito Santo, além de representantes de movimentos sociais, professores universitários, entre outros. Local: Auditório da Assembléia Legislativa do Espírito Santo, Av. Américo Buaiz, 205,Vitória
O Senac São Paulo apresenta o evento, que consiste em uma aula de como transformar idéias em apelo com baixa tecnologia e alta qualidade de informação. Haverá oficinas, exposição e uma mesaredonda. A mostra contará com 25 cartazes originais, antigos e contemporâneos, no período de 1965 a 2003. A curadoria da mostra é dos cubanos Alfredo Rostgaard, artista plástico, e Nelson Ponce, designer, que desenvolveram dois cartazes exclusivamente para o evento no Brasil. Os cubanos também conduzirão as oficinas Projetos de Cartazes. Local: Senac São Paulo, Rua Scipião, 67, Lapa, São Paulo Mais informações: (11) 3030-1520/1551
LIVRO A
HISTÓRIA DAS CORES
O texto foi criado a partir do comunicado de 1994, do subcomandante Marcos, integrante do Exército Zapatista, para o povo mexicano. A história, que se refere ao folclore do povo de Chiapas, é baseada em um mito Maia sobre como os deuses criaram as cores. Ilustrada pela artista mexicana Domitila Dominguez, a lenda revela a sabedoria dos povos indígenas de Chiapas e traz uma nova perspectiva sobre as dificuldades dos povos dessa região, que lutam para conservar sua cultura. Mais informações: (11) 3346-6088
TERRA CE – ROMARIA DA TERRA ● Dia 17 Trinta ônibus sairão em comboio, de Fortaleza rumo a Aracati, à 1hora da madrugada do dia 17 de agosto. A romaria acontecerá a partir das 5 horas da manhã. Os ônibus partirão de frente do Liceu de Messejana e irão pela Estrada do Litoral. A Comissão Pastoral da Terra vem realizando reuniões preparatórias para a romaria, que este ano tem como tema “Água e Terra Mãe: Doação de Deus, Direito de Todos”. A cor que identificará os romeiros da cidade de Fortaleza será o verde, por isso os participantes deverão ter fitas dessa cor atadas aos chapéus e vestimentas. Camisas, livros, cartazes e CD’s com os cantos da Romaria estão à venda no subsolo da catedral, na Rua Sobral, s/n, Centro, com Luizinha ou Janaína. Mais informações: (85)272-8357
REFORMAS RS - SEMINÁRIO TEMÁTICO REFORMA SINDICAL E TRABALHISTA. ● Dia 15, das 9h às 18h Promoção: Dieese Local: Intercity Hotel, Rua Prof. Sarmento Barata, 360, Navegantes, Porto Alegre. Mais informações: (51) 3211-4177.
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REFORMA AGRÁRIA CE – MARCHA EM DEFESA DA REFORMA
BRASIL
AGENDA
Confira algumas atividades populares, sociais e culturais desta semana. Para incluir seu evento nesta agenda, envie uma mensagem eletrônica para agenda@brasildefato.com.br
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CULTURA
Luiz Fernando Lobo abandonou a posição de biólogo pesquisador numa das instituições botânicas mais importantes do mundo para se dedicar em tempo integral ao teatro em favor dos oprimidos. Ele se inspira em dois alemães: o teórico comunista Karl Marx e o dramaturgo Berthold Brecht.
ENTREVISTA
Nestor Cozetti e Rodrigo Brandão, do Rio de Janeiro (RJ)
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le é ateu. E reapresentará a Missa dos quilombos, encenação escrita pelo bispo de São Félix do Araguaia (MT), Dom Pedro Casaldáliga em parceria com o poeta Pedro Tierra, musicada por Milton Nascimento, no Armazém 5 do Cais do Porto da cidade do Rio de Janeiro, de 21 a 31 de agosto.Trata-se do teatrólogo – ou militante do teatro, como prefere - Luiz Fernando Lobo. Quem assiste aos ensaios da Missa, uma verdadeira liturgia da libertação, fica impressionado com a seguinte reza:“Onde tu dizes lei, eu digo Deus. Onde tu dizes paz, justiça, amor, eu digo Deus. Onde tu dizes Deus, eu digo liberdade, justiça, amor”. No programa da peça, Luiz pergunta: “Um documento do Departamento de Estado estadunidense considera a Teologia da Libertação mais perigosa que o comunismo. Por quê?” A escravidão infantil retratada em Quilombos é outra indagação: “No Brasil, hoje, uma criança corta uma tonelada de cana por dia. Justiça social?”. Em 2001, pôs bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no palco de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. Agora, ele parte dos negros para mais uma vez falar, ou dar voz a todos os excluídos da sociedade moderna. “Não é só uma questão de raça. Como disse Heiner Müller, meus cúmplices são os negros de todas as raças”, diz o diretor da Missa e da Companhia Ensaio Aberto. Aqui ele dá uma entrevista exclusiva a Brasil de Fato. Brasil de Fato – A propósito da peça Missa dos quilombos: estes eram comunidades de escravos fugidos, como anda a questão do trabalho escravo hoje no Brasil? Luiz Fernando Lobo – A situação é dramática, não só no Brasil como no mundo. Segundo a Organização Mundial do Trabalho OIT, há muito não havia, em escala mundial, tantos trabalhadores em regime de escravidão. No Brasil, é preciso que compreendamos as formas atuais de escravidão. Hoje é muito comum a servidão por dívida. O trabalhador é aliciado por “gatos”, que transportam o pessoal para as fazendas. O cara chega lá devendo, porque o transporte já é cobrado. Depois ele precisa se alimentar. Então, o que consome obrigatoriamente, numa cantina dentro da fazenda, também é cobrado. No final das contas o lavrador paga para trabalhar. É um problema ligado muito mais ao analfabetismo, ao atraso cultural do país.
BF – Que direitos? Lobo – A constituição diz que todo cidadão tem direito ao acesso à cultura. Deveriam, portanto, existir mecanismos de políticas públicas que garantissem a universalização da cultura no país. BF – E os negros são maioria na peça sobre quilombos? Lobo – Como falamos, na realidade, dos “novos quilombos”, nossos quilombolas são todos aqueles que participam de alguma forma de resistência política clara às opressões dos dias de hoje. Para mim, por exemplo, os acampamentos e assentamentos do MST são os grandes quilombos dos nossos dias. BF – Vocês pretendem levar a peça às comunidades de quilombolas do Nordeste? Lobo – Já pensamos, mas não é fácil. A estrutura é muito complicada, os cenários são complexos, já que nos inspiramos nas fotos do livro Trabalhadores, do Sebastião Salgado. Uma questão muito importante da Teologia da Libertação é que é baseada nos espaços de trabalho. O mundo que a gente apresenta ao espectador, então, é o mundo do trabalho. Fazemos do cenário uma grande fábrica, com os atores manipulando máquinas como esmeril, solda, realizam tudo isso durante o espetáculo. Falamos da exclusão dentro do mundo do trabalho. É uma forma de colocar em cena um mundo que o espectador não está acostumado a ver nos palcos. Não podemos esquecer que a escravidão pode ser crianças dentro de um navio da Nike fabricando tênis. Há uma frase do
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BF – Fale um pouco de seu engajamento político. Lobo – Quando ainda me dedicava à biologia, já atuava em pesquisa sobre temáticas sociais e fazia teatro amador. Muito mais teatro militante, na verdade. Há 20 anos, optei por me dedicar em definitivo ao teatro, para estar mais ligado às causas sociais. Dez anos atrás ajudei a fundar a Companhia Ensaio Aber to. Procuramos resgatar a função social da dramaturgia, para construir uma sociedade mais progressista. Tentamos também trazer os excluídos para o teatro, oferecendo preços populares, apresentações para grupos, etc. Trazemos desde crianças em “conflito com a lei”, até catadores de papel e presos em regime semi-aberto. O importante para nós é mostrar através da arte que é possível exigir os direitos constitucionais que nos são negados.
Heiner Müller que inserimos no texto: “Nossos cúmplices são os negros de todas as raças”.
BF – Qual foi a participação do Dom Helder Câmara na criação da Missa dos quilombos? Lobo – Dom Helder é o pai da idéia. Foi por sugestão dele que Dom Pedro Casaldáliga (catalão de nascimento e bispo de São Félix do Araguaia, MT) e Pedro Tierra (pseudônimo do jornalista Hamilton Pereira) escreveram o texto e o Milton Nascimento musicou. São ao todo onze músicas, além de poemas declamados no palco. Na verdade, tivemos de fazer uma atualização do texto – originalmente escrito e encenado em 1981, no Recife – com dados novos, como a “Carta Aberta das Mães Sem Terra”. É bom lembrar que em 1981 sequer existia o MST. Hoje, uma “Missa” sem o Movimento seria um grave erro. Tem também um texto do Betinho (o sociólogo Herbert de Souza) sobre as crianças que cortam uma tonelada de cana por dia. BF – A escravidão continuará por muito tempo no Brasil? Lobo – Acho que o governo Lula conseguiu, já nos primeiros meses, avanços importantes neste departamento. É importante que o Brasil de Fato e outros jornais de esquerda noticiem isso, porque a grande mídia, como vocês sabem, em geral se interessa muito mais pelos tropeços que pelos acertos. Na questão do trabalho escravo, particularmente, o governo tem acertado, e muito. Só no primeiro mês de governo, foram libertados em todo o país mais trabalhadores que em todo o ano passado. Isso mostra que o governo dá atenção especial à questão. No entanto, o trabalho escravo só será definitivamente erradicado do país quando a reforma agrária
Luiz Fernando Lobo
BF – O senhor tem alguma proposta para enfrentar esta nova modalidade de escravidão? Lobo – Acho que a primeira providência a ser tomada é desapropriar, para fins de reforma agrária, qualquer fazenda na qual se encontrem trabalhadores em regime de servidão, mesmo que o proprietário argumente e até consiga provar que não sabia do problema. Se não sabe, é totalmente omisso, o que mostra que suas terras não têm utilidade produtiva.
Divulgação
Teatrólogo encena Missa dos quilombos
■ Cena do espetáculo Missa dos Quilombos
Quem é Luiz Fernando Lobo, 44 anos, carioca da Tijuca, dramaturgo e diretor de teatro, biólogo e bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ), trabalhou no Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Dali saiu aos 22 anos para ser um militante do teatro comprometido com o povo. Considera-se autodidata procedente do teatro amador, em que se iniciou aos 14 anos. Pai de dois filhos, casado com a atriz Tuca Moraes, estão à frente da Companhia Ensaio Aberto, fundada em 1992, que, a partir de 1999, com a apresentação da peça Companheiros, de sua autoria, na Universidade de Campinas – Unicamp, tem feito parcerias com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. A próxima peça, que está escrevendo, tratará das relações conflituosas entre o Santo Ofício do Vaticano e Leonardo Boff, um dos expoentes da Teologia da Liberta-
for concluída. Lembre-se de que o Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão como lei e é até hoje o único a nunca ter feito uma ampla reforma agrária.
BF- Vocês já se apresentaram fora do país? Lobo – Não com a Missa, mas com outras peças. Apresentamos Companheiros e Morte e vida severina em Portugal, em 1999. Companheiros é uma dramaturgia minha em cima de textos do Che Guevara, do Salvador Allende, do Pablo Neruda. Apresentamo-nos também ao Parlamento Europeu, onde fomos recebidos por ocasião dos chamados “julgamentos da terra”, quando José Rainha foi levado ao tribunal pela primeira vez, quando começou o julgamento dos assassinos de Eldorado dos Carajás. Nossa presença lá tinha o objetivo de sensibilizar a opinião pública para as manipulações que aconteceriam nesses julgamentos. BF – Como começou a ligação da Companhia Ensaio Aberto com o MST? Lobo - Nosso primeiro contato formal foi em 1999, no Tribunal da Dívida Externa, quando encontrei pela primeira vez o João Pedro Stedile. Disse que ele não me conhecia, mas ele respondeu: “Você é que pensa, sei quem você é e conheço o trabalho de seu grupo teatral. Aliás, vocês estão convidados a se apresentarem em nosso primeiro curso de formação de lideranças”. Logo depois recebemos uma carta convidando-nos a encenar Companheiros para 1.200 pessoas no auditório da Unicamp - Universidade de Campinas. Foi aí que saímos dos pequenos espaços para alcançar as massas. BF – Um jornal publicou que o senhor é um teatrólogo armado de Brecht e Marx. O que
significa isso, especialmente em relação à realidade atual? Lobo – Quando se fala nesses dois nomes, pensa-se em um mundo transformável a partir da ação concreta do homem comum. Eu procuro mostrar as injustiças e mostrar que isso pode ser transformado, em oposição à descrença geral que hoje existe no sujeito histórico podendo modificar o mundo. Tem uma frase, sobre fotografia, de que gosto muito: “A fotografia não muda o mundo, mas pode mostrar as mudanças do mundo”. É preciso mostrar as contradições da nossa sociedade, para provocar um novo olhar nas pessoas. BF – Como isso se articularia com o Brasil de hoje? Lobo – Primeiro, tentando estar ligado aos movimentos sociais progressistas. Como ensina Gramsci, fazer o papel do intelectual orgânico, que não se limita a analisar, mas influi diretamente nos acontecimentos. Estamos ligados a todas as reivindicações, a todas as lutas importantes da agenda política. A Companhia foi por muito tempo tachada de militante, como se isso fosse ofensivo, mas é apenas uma característica importante do nosso trabalho. BF – Qual é a importância da religião, que fez parte das origens do PT e do MST, no momento político brasileiro? Lobo – Pode parecer incrível, mas apesar de estar encenando uma peça religiosa, eu, particularmente, sou ateu. Para explicar minha ligação com a temática religiosa, tenho de revelar que estou escrevendo uma peça sobre a problemática do Leonardo Boff com o Vaticano. Pela primeira vez o Boff está abrindo seu arquivo pessoal. A religião, para mim, sempre esteve ligada ao MST, à questão da posse da terra, mas eu achava que um trabalho sobre o MST e a Igreja só interessaria a um pequeno público. A partir de 1999, quando comecei a trabalhar com o MST, percebi a importância das Pastorais na formação da organização. E percebi a real importância dos teólogos da Libertação que trabalhavam com os movimentos populares. Entendi que uma parcela muito significativa da Igreja Católica latino-americana é aliada poderosa dos movimentos progressistas na transformação desses países. Se você obser var o MST, o Exército Zapatista, verá que a Teologia da Libertação é uma forte influência em todos eles. É nessa Igreja, comprometida com a construção do reino de Deus na Terra, não nos céus, que eu, mesmo ateu, estou interessado.