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BRASILDEFATO Ano I ■ Número 26 ■ São Paulo ■ De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

Circulação Nacional

R$ 2,00

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urante visita à Venezuela e ao Peru, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a união da América do Sul para proteger os países da região da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e da Organização Mundial do Comércio (OMC). “Buscamos uma nova ordem internacional mais equilibrada e

justa”, disse Lula. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, pediu o fim do Fundo Monetário Internacional (FMI). Durante o encontro, Lula e Chávez discutiram a proposta da Alternativa Bolivariana para a América Latina (Alba), uma integração para eliminar a exclusão social. O presidente argen-

Crimes do latifúndio: 44 assassinatos só em 2003 lutas no campo. Um estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos revela: a bancada ruralista no Congresso perdeu representatividade, mas mantém a capacidade de organização em defesa do latifúndio. Pág. 6

Representante do Unicef revela miséria no Iraque Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o representante do Unicef no Iraque, Carel Derooy, fala da miséria social no país. Segundo ele, a situação já era ruim antes da guerra, mas agora ficou muito pior. Pág. 11

■ Lula e Hugo Chávez homenageiam Simón Bolívar (ao fundo) Victor Soares/ABR

O documento, lançado dia 26 pela Comissão Pastoral da Terra, em conjunto com outras organizações de defesa de direitos humanos, aponta assassinatos de 44 trabalhadores rurais, só este ano. De 1985 a 2002, foram 1.280 mortes ligadas a

tino, Néstor Kirchner, declarou que é inaceitável condenar os povos à pobreza para simular o pagamento de uma dívida impagável. No Brasil, movimentos sociais organizam Encontro Jurídico contra a Alca, em Piracicaba (SP), com a presença de intelectuais e ativistas. Pág. 10

Roberto Castro/AE

Lula defende unidade sul-americana para enfrentar a Alca e a OMC

■ 40 mil camponesas marcham sobre Brasília por reforma agrária e fim da violência no campo

Ministro apóia capital estrangeiro na Educação Pág. 4

Nestlé domina mercado de água Pág. 13

Saci: resgate da cultura nacional

E mais: TRANSGÊNICOS – Banco do Brasil não financiará plantio de soja geneticamente modificada no Rio Grande do Sul. O ministro da Casa Civil, José Dirceu, prometeu discutir com a sociedade. Pág. 3 DESENVOLVIMENTO REGIONAL - Extintas por escândalos de corrupção, Sudam e Sudene são recriadas com a promessa de descentralizar os incentivos fiscais. Pág.4 REFORMA TRABALHISTA - Projeto do governo já causa polêmica - juristas alertam para o perigo de supressão dos direitos dos trabalhadores. O Ministério do Trabalho e Emprego aprovou um programa de geração de empregos para jovens excluídos. Pág. 8

Pág. 16 ÁFRICA – Com a primeira eleição multipartidária para presidente em 40 anos, Ruanda caminha para a democracia.

Pág. 12 DEBATE - O senador Eduardo Suplicy e o jornalista Miguel Urbano escrevem sobre o papel da ONU. Pág. 14

Desemprego e baixa renda debilitam negociação salarial

Movimentos sociais decidem unificar a luta

Em julho, a renda dos brasileiros teve queda recorde de 16,4%. Somada ao desemprego, essa perda enfraquece o poder de negociação nas campanhas salariais, resultando em reajustes que sequer acompanham a inflação. Em compensação, com a queda dos juros, o consumidor poderá economizar cerca de R$ 0,92 por mês, em um empréstimos de 12 meses. Pág. 5

Cerca de 140 organizações populares decidiram unificar as lutas. Durante a 1º plenária da região Sudeste da Coordenação dos Movimentos Sociais, realizada dia 23, em São Paulo, foi preparado um documento com propostas de um projeto alternativo e a realização de uma manifestação para o dia 13 de setembro. Pág. 7


Fala, Zé!

Bush é responsável

Ohi

NOSSA OPINIÃO

Quem foi o responsável pelo atentado que, no dia 19, destruiu a sede do escritório da Organização das Nações Unidas (ONU) e matou o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Melo? A grande mídia, imediatamente responde, fazendo coro com a Casa Branca: foram os “terroristas iraquianos”. Será? Em primeiro lugar, a ONU é vista por uma boa parcela da população iraquiana como parte das forças de ocupação. E com muita razão. Durante anos e anos, desde 1991, a ONU comandou um processo de boicote econômico contra o Iraque; seus inspetores vasculharam o país em busca das famosas “armas de destruição em massa”, sem nada encontrar; em março, quando George Bush invadiu o Iraque, contando com informações estratégicas cedidas pelos inspetores, a ONU não moveu uma palha para impedir. Do ponto de vista iraquiano, é no mínimo uma piada qualificar a ONU como “força humanitária”. Em segundo lugar, o ataque à sede da ONU não pode ser entendido como um ato isolado, mas sim no quadro mais amplo da resistência dos iraquianos contra as forças de ocupação. Não se passou sequer um dia, encerrada a primeira fase da invasão, sem que houvesse algum ataque a soldados e posições militares anglo-saxônicas. Motins e revoltas populares , com ampla participação de líderes da maioria xiita, são tão freqüentes quanto devidamente ocultadas pelas corporações da mídia. Jornalistas que mostram alguma independência são ameaçados ou assassinados pelos homens de Bush. Desde o início era óbvio que a chamada “guerra” estava apenas no seu começo. Analistas falaram e falam em “novo Vietnã”, desta vez no Oriente Médio. Finalmente, coube a uma ONU desmoralizada, decrépita e impotente afirmar o óbvio: a segurança de seu escritório estava a cargo das tropas estadunidenses. Estas, aparentemente, abriram uma avenida para os que praticaram o atentado, por razões até agora pouco claras. De fato, resta muita coisa por ser explicada sobre o atentado em si. A operação foi executada com alta precisão militar; os terroristas utilizaram uma tonelada de explosivos, obtida sabese lá como, em um cenário totalmente controlado por tropas que vasculham cada esquina, casa e prédio em busca de armas e arsenais; eles conheciam a rotina de reuniões do escritório, assim como a distribuição das salas. O atentado só foi possível graças à união extraordinária dessas condições absolutamente excepcionais. Como isso foi possível? Dado esse quadro geral, responsabilizar os próprios iraquianos pelo ato é, no mínimo, uma brincadeira de péssimo gosto. Eles não pediram que seu país fosse invadido, não solicitaram a presença da ONU e muito menos a permanência das tropas de ocupação. Ao contrário, cansaram de demonstrar claramente o seu desejo de que as forças do império se retirem imediatamente. Se nada, obviamente, pode justificar o ataque a civis inocentes, por outro lado, os responsáveis são aqueles que criaram uma situação de desespero, ódio e miséria: George Bush e o Império que ele representa.

BRASILDEFATO CONSELHO POLÍTICO: ■ Achille Lollo ■ Ari Alberti ■ Ariovaldo Umbelino ■ Assunção Ernandes ■ Aton Fon Filho ■ Augusto Boal ■ Cácia Cortez ■ Carlos Marés ■ Carlos Nelson Coutinho ■ Celso Membrides Sávio ■ Claus Germer ■ Dom Demétrio Valentini ■ Dom Mauro Morelli ■ Dom Tomás Balduíno ■ Edmilson Costa ■ Elena Vettorazzo ■ Emir Sader ■ Egon Krakhecke ■ Erick Schunig Fernandes ■ Fábio de Barros Pereira ■ Fernando Altemeyer ■ Fernando Morais ■ Francisco de Oliveira ■ Frederico Santana Rick ■ Frei Sérgio Gorgen ■ Horácio Martins ■ Ivan Valente ■ Jasper Lopes Bastos ■ ■ João Alfredo ■ João Capibaribe ■ João José Reis ■ João José Sady ■ João Pedro Stedile ■ Laurindo Lalo Leal Filho ■ Leandro Konder ■ Luís Alberto ■ Luís Arnaldo ■ Luís Carlos Guedes Pinto ■ Luís Fernandes ■ Luis Gonzaga (Gegê) ■ Marcelo Goulart ■ Marcos Arruda ■ Maria Dirlene Marques ■ Mário Augusto Jakobskind ■ Mário Maestri ■ Nalú Faria ■ Nilo Batista ■ Oscar Niemeyer ■ Pastor Werner Fuchs ■ Pedro Ivo ■ Raul Pont ■ Reinaldo Gonçalves ■ Renato Tapajós ■ Ricardo Antunes ■ Ricardo Rezende Figueira ■ Roberto Romano ■ Rodolfo Salm ■ Rosângela Ribeiro Gil ■ Sebastião Salgado ■ Sérgio Barbosa de Almeida ■ Sérgio Carvalho ■ Sérgio Haddad ■ Tatau Godinho ■ Tiago Rodrigo Dória ■ Uriel Villas Boas ■ Valério Arcary ■ Valter Uzzo ■ Vito Gianotti ■ Vladimir Araújo ■ Vladimir Sacheta ■ Zilda Cosme Ferreira ■ Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

CONSELHO EDITORIAL: ■ Alípio Freire ■ César Benjamim ■ César Sanson ■ Hamilton Octávio de Souza ■ Kenarik Boujikian Felippe ■ Luiz Antonio Magalhães ■ Luiz Eduardo Greenhalgh ■ Luiz Bassegio ■ Maria Luísa Mendonça ■ Milton Viário ■ Neuri Rosseto ■ Plínio de Arruda Sampaio Jr. ■ Ricardo Gebrim

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■ Editor-chefe: José Arbex Jr. ■ Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Marilene Felinto, Nilton Viana, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu ■ Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino ■ Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Javelberg, Ricardo Teles ■ Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, Natália Forcat, Nathan ■ Projeto gráfico: Wladimir Senise ■ Diagramação: Valter Oliveira Silva ■ Tratamento de imagem: Helena Sant‘Ana ■ Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho ■ Jornalista responsável: José Arbex Jr. Mtb 14.779 Administração: Silvio Sampaio Secretaria de redação: Tatiana Merlino Assistentes de redação: Letícia Baeta, Maíra Kubík Mano e Tatiana Azevedo Sistemas: Sérgio Moreira DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA PARA TODO O Programação: André de Castro Zorzo B RASIL EM BANCAS DE JORNAIS E REVISTAS Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 FERNANDO CHINAGLIA Campos Elíseos – CEP 01218-010 R UA TEODORO DA SILVA, 907 PABX (11) 2131-0800 – São Paulo/SP EL .: (21) 3875-7766 T redacao@brasildefato.com.br RIO DE JANEIRO - RJ Gráfica: FolhaGráfica

Participe do jornal O Brasil de Fato foi criado a partir da colaboração e da união de diversas pessoas e movimentos sociais comprometidos com um projeto popular para o país. Por isso, as reportagens publicadas no jornal podem ser reproduzidas em outros veículos - jornais, revistas, e páginas da internet, sem qualquer custo, desde que citada a fonte. Basta entrar em contato com a redação ou com os comitês de apoio.As pessoas também podem se tornar colaboradoras do Brasil de Fato e propor reportagens, enviar eventos e ajudar a divulgar o jornal.

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Cartas de leitores DOENTE SUBDESENVOLVIDO Doutor, mais um doente Está de volta, de novo Não tem remédio que cure É um homem de nosso povo. Doente de verminose Mora à beira do mangue Seu corpo extenuado Já perdeu bastante sangue. Os poderosos com fome de poder Os pobres sem poder, com fome A Nação inteira definha Um Povo inteiro se consome. Doutor, responda-me, Como é que pode ser? Viver sem se alimentar, Ou sem as pernas, correr? Que fazer? Que remédio passar? Sem alimentação adequada, Como se vai curar? A arte de sobreviver, É por toda parte A arte de se morrer, Sem comida nem arte. Medicina comprimida, Retorno redobrado Dieta não cumprida

De gente sendo finado. A morte da medicina É a medicina da morte, Que usa antibiótico Para um faminto sem sorte. Não há corpo são, Sendo mal alimentado Quem não come, hoje, Amanhã estará adoentado. Não há saúde sem pão Sem pão não há liberdade Não pode, um povo faminto, Ser uma nação de verdade.

perambulam os trabalhadores desempregados, famílias inteiras em busca de pão, terra e trabalho. Lideranças, em diversos pontos do país, organizam os pobres na luta por respeito e dignidade, moradia e oportunidade. Na presidência da República, um ex-sindicalista que passou fome mostra-se conivente com os interesses dos grandes proprietários. A primavera do povo, o nascente despertar das latejantes amarguras em consciência, será a ruína daqueles que brindam a humilhação dos justos.

José de Souza, João Pessoa (PB)

Rodrigo N. Matsui, Santos (SP)

REALIDADE NACIONAL Na terra, sementes geneticamente modificadas contaminam o solo semeando o monopólio da produção, e por aí nascem bebês estranhamente deformados.Tocam-se as taças dos proprietários das grandes empresas, que regozijam com os lucros obtidos e que calculam obter no futuro. Em suas casas, os pequenos proprietários estão aflitos com as dívidas, a safra e a venda de seus produtos. Pelas estradas e municípios,

SAUDAÇÕES Queria parabenizar vocês, do jornal de esquerda do Brasil. Eu e meus companheiros compramos toda a semana o jornal Brasil de Fato porque entendemos que precisamos estar por dentro das notícias e divulgá-las. Aqui em Angra temos o comitê da Alca e vários sindicatos que apóiam o jornal. Claudiney Santos Severino, Angra dos Reis (RJ)

As cartas devem ser encaminhadas com identificação, município e telefone do remetente.

Quem somos Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores.

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SEGURANÇA ALIMENTAR

NACIONAL

O Banco do Brasil no RS garante que não vai liberar financiamento para os agricultores que plantarem soja transgênica; produtores fazem pressão alegando que não há sementes convencionais; o ministro José Dirceu é contra os transgênicos, afirma o deputado Adão Pretto

Claudia Jardim, da Redação

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o Estado marcado pela desobediência da federação da agricultura, a diretoria de Agronegócios do Banco do Brasil no Rio Grande do Sul anunciou que vai cumprir a lei. Está vedado o financiamento para os agricultores que plantarem soja geneticamente modificada. A recomendação, feita pelos procuradores da República Carlos Eduardo Copetti, Fábio Alves e Daniele Escobar, apenas reforça a Lei nº 10.688/2003, que proíbe que as instituições financeiras oficiais ofereçam crédito a procedimentos contrários à legislação em vigor. Apesar da confusão criada pela liminar da desembargadora Selene de Almeida, o plantio de transgênicos continua proibido. Para evitar financiar plantio de transgênicos, a instituição financeira exige do agricultor um termo de compromisso atestando que a soja a ser financiada é convencional. Porém, esse procedimento também foi utilizado no ano passado e o resultado foi a safra gaúcha de soja transgênica. “A orientação dada aos agricultores é de assinar o documento porque o plantio começará já em setembro. Depois eles vão decidir se plantam soja convencional ou transgênica”, afirma Ezídio Pinheiro, presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag/ RS). De acordo com ele, a maior parte dos agricultores fez reservas dos dois tipos de sementes: convencional e transgênica. “Não houve fiscalização do ministério da Agricultura para atestar a legalidade das sementes. Não temos como garantir que os grãos não se misturaram”, diz Pinheiro. NEGLIGÊNCIA “Temos consciência de que a fiscalização feita pelo poder público está muito aquém do necessário, mas quem descumprir a legislação terá de responder”, admite Coppetti. Os agricultores que obtiverem crédito junto ao Banco do Brasil e cultivarem soja transgênica, se flagrados, terão de devolver o dinheiro do financiamento e seus nomes serão incluídos no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados (Cadin).

Sílvio Ávila/Folha Imagem

Banco do Brasil não financiará safra ilegal

■ Banco do Brasil seguirá a lei à risca: não vai liberar financiamento para os agricultores gaúchos que plantarem transgênicos Mesmo sujeitos à devolução do crédito e ao pagamento de royalties à transnacional Monsanto - proprietária da soja transgênica Roundup Ready (RR) - os cerca de 150 mil produtores gaúchos estão decididos, segundo o presidente da Fetag, a plantar a soja RR. Eles acreditam que estarão livres da cobrança de taxas pelo uso da tecnologia da transnacional. “Vamos fazer um acordo com

a Monsanto e eles disseram que não vão cobrar royalties”, afirma Pinheiro. Basta analisar a postura da Monsanto frente ao plantio gaúcho para saber se a transnacional pretende cumprir tal acordo. Em maio deste ano foi divulgada pela imprensa uma carta do presidente da Monsanto do Brasil, Richard Greubel Jr., recomendando aos importadores da soja brasileira a apresentação

do documento de licença do produto. A Monsanto ainda ameaçou reter as sacas, caso não constasse o pagamento do direito de propriedade intelectual quando utilizada soja transgênica. A Organização Mundial do Comércio (OMC) assegurou à Monsanto o direito de cobrança de royalties em qualquer etapa de manipulação do produto. Isso signifi-

ca que o agricultor terá custos na aquisição das sementes e a cada novo plantio, mesmo fazendo reservas das sementes.“Mais uma vez a região quer mostrar uma situação de irreversibilidade e o Ministério Público se opõe ao plantio de alimentos transgênicos porque os testes para garantir que não há riscos à saúde a ao meio ambiente não foram realizados”, conclui Coppetti.

Produtores alegam falta de sementes Às vésperas do plantio da próxima safra de soja, os produtores gaúchos alegam que não há sementes de soja convencional suficientes para abastecer os agricultores e garantir a próxima colheita livre de transgênicos. “Os fornecedores dizem que não têm sementes”, alega Ezídio Pinheiro, presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag/RS). No entanto, os produtores de sementes do Estado garantem que existem sementes de soja suficientes para a próxima safra. De acordo

com Rui Rosinha, da Fundação Pró-Semente, os produtores de sementes gaúchos receberam 260 mil toneladas de sementes de soja da Secretaria Estadual de Agricultura. Após passar pelo beneficiamento, cerca de 200 mil toneladas serão colocadas à disposição, volume capaz de cobrir uma área de 3 milhões de hectares de plantação. Na última safra, a produção de soja do Rio Grande do Sul foi de 3,6 milhões de hectares. “O restante da área pode ser coberto com as sementes salvas pelos agricultores (re-

serva de sementes)”, assegura Narciso Barison Neto, presidente da Associação dos Produtores de Sementes do Rio Grande do Sul (Aprassul). “Isso é pressão para criar uma situação falsa.Temos sementes para 70% da área do Estado”, acrescenta Rosinha. Além de ser uma potencial ameaça ao meio ambiente e à saúde, os transgênicos começam a anunciar o futuro dos agricultores e produtores de sementes. Desde que o Rio Grande do Sul passou a importar ilegalmente soja transgênica da Ar-

gentina, há três anos, o número de produtores legalizados de sementes caiu de 300 para 100.“Os transgênicos significam a desestruturação do mercado de sementes”, analisa Rui Rosinha. “Antes, cobríamos 60% da área de produção; hoje, o número está em 22%. Não tenha dúvida de que isso aconteceu por causa das sementes pirateadas”, afirma Barison Neto que, apesar de favorável à liberação dos transgênicos, admite o desmonte crescente do setor de produção.

“O ministro deixou claro que, neste ano, está descartada a possibilidade de legalizar o plantio transgênico. O projeto em elaboração deve liberar apenas as pesquisas”, afirma Pretto. “Nesta safra, não tem discussão. Prevalece a lei que proíbe os transgênicos”, acrescenta o deputado federal Josias Gomes (PT-BA), relator da Medida Provisória sobre os transgênicos, transformada em lei. No entanto, a avaliação de Gomes sobre a conversa com Dirceu é diferente da do deputado gaúcho:“O projeto deve aumentar as restrições, mas caminha para a liberação”. Os parlamentares também se reunirão com os ministros responsáveis pela elaboração do PL para ampliar as discussões sobre riscos e conhecer a posição de cada um sobre o tema. A primeira reunião do grupo foi dia 22, com o ministro de Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral. Ainda não é consenso, entre os ministros, o papel da Comissão Nacional de Biossegurança em relação aos OGMs. A

■ Ministro garante que a sociedade vai participar de discussão sobre Projeto de Lei principal dúvida é se devem conceder à CTNBio caráter deliberativo ou consultivo nas análises sobre os transgênicos. É importante lembrar que, em 1998, a CTNBio autorizou o plantio da soja Roundup-Ready da Monsanto, sem a realização de estudos prévios. A opinião dos parlamentares sobre liberar ou não os transgênicos vai além das bandeiras partidárias.

No PT, onde a maioria dos parlamentares é contrária à liberação, Gomes é um dos poucos defensores do uso da tecnologia: “Temos que ter o domínio tecnológico e nossas próprias patentes para resolver alguns problemas em caso de gargalos”, afirma.“Não somos contra dominar as pesquisas, mas queremos ter mais segurança de que este produto não vá prejudicar o meio ambiente e a saúde da população”, rebate Pretto. HEGEMONIA Outra preocupação dos grupos contrários aos transgênicos é de caráter econômico. Para os Estados Unidos, a adesão brasileira às sementes geneticamente modificadas nivela a produção e garante, assim, a posição dos EUA como maior exportador mundial de soja, seguido do Brasil e da Argentina. Essa liderança está ameaçada justamente porque os mercados europeus e asiáticos têm aumentado as restrições aos alimentos transgênicos - logo, eliminar o diferen-

cial da produção brasileira é crucial para o aumento das exportações estadunidenses. A ausência de informação verídica procedente dos órgãos de pesquisa estadunidenses coloca em dúvida as conseqüências da adesão aos transgênicos.“Queremos informações verdadeiras, não precisamos inventar números. Precisamos dos dados concretos da FAO, dos EUA, da Conab, que mostram a inviabilidade econômica. Os que não querem discutir meio ambiente ou saúde devem considerar pelo menos isso”, enfatiza a deputada federal Luci Choinacki (PT-SC), também do Núcleo Agrário do PT. As discussões sobre o futuro dos transgênicos no país se estenderão até setembro, quando o projeto de lei deve ser enviado à Câmara. “Mesmo depois de finalizado, o projeto pode ser alterado por meio de emendas e ninguém sabe quem tem a maioria sobre este assunto. Não é mais questão de esquerda ou direita”, analisa o deputado Adão Pretto. (CJ)

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

“O ministro é contra, mas mantém certa cautela porque a questão terá forte repercussão no Rio Grande do Sul, onde os produtores querem plantar transgênicos”, afirmou o deputado federal Adão Pretto (PT-RS) após a reunião do Núcleo Agrário do Partido dos Trabalhadores (PT) com o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. O ministro assegurou que o projeto de lei de biossegurança não será enviado à Câmara para votação em regime de urgência e que pretende discutir o PL também com a sociedade. “Mesmo se o projeto fosse favorável à liberação dos transgênicos, esse adiamento mantém a proibição dos transgênicos para a próxima safra”, garante Adão Pretto. Dirceu deve agendar, para as próximas semanas, uma reunião entre os deputados petistas e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que deverá bater o martelo sobre a contenda dos organismos geneticamente modificados (OGMs) no país.

José Cruz/ABR

Deputado assegura: Dirceu é contra transgênicos

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NACIONAL

O governo decidiu recriar superintendências regionais, com os mesmos objetivos de 40 anos atrás; enquanto falta dinheiro para educação, o ministro Cristovam Buarque defende a entrada de capital estrangeiro no ensino superior; a CPI do Banestado pede agilidade ao Banco Central

DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Jesus Carlos/Imagenlatina

Sudam e Sudene estão de volta Cláudia Jardim, da Redação, e Janaína Cesar, de São Paulo (SP)

A

pós muita polêmica, o governo Lula anunciou a recriação das extintas superintendências de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).Alvos de denúncias de corrupção e desvio de verbas públicas, elas foram fechadas pela administração anterior. Subordinadas à pasta do ministro de Integração Nacional, Ciro Gomes, a meta das agências continua a mesma: diminuir a secular desigualdade social e promover o desenvolvimento industrial e tecnológico regionais. De acordo com Gomes, a Sudene terá recursos anuais da ordem de R$ 1,9 bilhão.Tal valor é o dobro do que tinha a superintendência antes de sua extinção. Os benefícios fiscais para novos empreendimentos envolvem redução de 75% do Imposto de Renda, e de 37,5% para os existentes. Segundo dados oficiais, há, na Sudam, pelo menos 571 projetos parados, o que representa investimentos em torno de R$ 1,6 bilhão, dos quais R$ 184 milhões estão em fase de liberação pelo Banco da Amazônia. Para evitar as tradicionais fraudes e empresas fantasmas, os incentivos fiscais serão liberados na fase de pós-produção dos projetos e caberá aos bancos avaliar os riscos dos empreendimentos contemplados. RESGATE Em suas quatro décadas de existência, as superintendências não atingiram os objetivos para as as quais foram criadas, o que mantem atual o diagnóstico do idealizador da Sudene, o economista Celso Furtado: as regiões mais pobres do país precisam de um projeto de desenvolvimento. “É uma tentativa de resgatar o planejamento na economia brasileira. É a única arma , conforme disse o presidente, para quem não tem moeda forte no sistema internacional. Isso havia sido abandonado durante

■ Usina de açúcar em Santa Rita (PB): em 40 anos de Sudene, foram financiados 3.058 projetos todo o periodo neoliberal”, avalia o sociólogo Francisco de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo. No entanto, tanto para Oliveira como para Margret Althuon, pesquisadora da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), pensar em desenvolvimento regional só faz sentido se houver um projeto nacional para o país. Para os dois, tal projeto ainda não está claro no governo Lula. LIÇÃO “Sou crítica em relação à recriação da Sudam. Ela não deu certo”, diz Margret, para quem, ao ressuscitar programas regionais, é preciso olhar o passado e aprender com ele. “Qualquer programa regional de desenvolvimento só dará certo se houver articulação com outras partes do país. Na época da Sudam, houve privilégios em relação à Zona Franca de Manaus, mas como não havia um planejamento de desenvolvimento nacional, o deslocamento de mão-de-obra das regiões Sul e Sudeste acabou por inchar as regiões periféricas da cidade com favelas, pobreza e violência”, avalia a pesquisadora.

das agências, sem primeiro se construir um plano de desenvolvimento nacional, acabará com as desigualdades, fome, pobreza, desemprego e má distribuição de renda ou, se, mais uma vez, a elite se apropria de um discurso social para benefício de uns poucos.

O economista pernambucano José Lucas Alves concorda. “Nas últimas duas décadas, pelo fato de não ter havido planejamento do desenvolvimento nacional, o país ficou sem metas, entregue ao laissezfaire do neoliberalismo”, analisa ele. POLÍTICAS PÚBLICAS Ainda em 1959, Celso Furtado afirmava que o problema do Nordeste não era apenas a seca, e sim a ausência de políticas públicas. Era o auge da industrialização brasileira.“Hoje, o contexto é diferente. Em época de globalização, a industrialização está ameaçada, e se não se tomar cuidado, as regiões Norte e Nordeste vão se tornar apenas um depósito de pobres”, afirma Oliveira, ao avaliar o processo de entrada de empresas transnacionais nos Estados brasileiros. Contudo, Lucas Alves vê no Plano Plurianual (PPA) do governo Lula, uma tentativa de desenvolvimento nacional. “O planejamento estratégico, a partir do PPA, pode ser um elemento de recriação de uma previsão de futuro que o país havia perdido”. Mas, segundo Margret Althuon, da Fundap, o que se deve discutir é se a recriação

CORRUPÇÃO O presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou o fechamento da Sudam e da Sudene, e afirmou que não haverá mais brechas para corrupção nas novas agências. No entanto, o histórico das instituições não convencem que agora será diferente. Para Francisco de Oliveira, entre a blindagem anticorrupção, anunciada pelo ministro Ciro Gomes, e a prática, há um longo caminho a percorrer. “A corrupção é mais ou menos intrínseca ao capitalismo. Ainda está para nascer um modelo capitalista que consiga extingui-la. O que não quer dizer que não deva ser combatida”, pondera Oliveira. E o economista José Lucas lembra que, mesmo com todos os cuidados, sempre haverá um juiz Lalau mancomunado com empreiteiros/senadores. Somados, os desvios de dinheiro

EDUCAÇÃO

Victor Soares/ABR

Ministro apóia capital estrangeiro no ensino

BRASIL DE FATO De 21 a 27 de agosto de 2003

Tatiana Merlino, da Redação

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No Brasil, a educação corre o risco de se tornar um bem de consumo como outro qualquer.Afinal, são diversos os grupos estrangeiros interessados em investir em universidades e faculdades. Seu objetivo é comprar empresas particulares de educação universitária, injetar recursos e revendê-las por um preço multiplicado. As universidades particulares movimentam, anualmente, R$ 15 bilhões, de acordo com o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De 1995 para cá, o número de instituições privadas de ensino superior, nas quais estudam 2,1 milhões de alunos, passou de 684 para 1.762 - um aumento de 157%. O ministro Cristovam Buarque, da Educação, declarou, dia 21 de agosto, ao jornal O Estado de S. Paulo, que é favorável à entrada de capital externo na educação. Para ele, não importa a proveniência do dinheiro, mas a forma como será aplicado. A seu ver, o importante é seguir os parâmetros curriculares. Procurado pela reportagem do Brasil de Fato, o ministro disse, por meio de sua assessoria, que “todo investimento em educação é válido,

■ Contra a privatização, estudantes debatem com o MEC desde que tenha qualidade”. À pergunta sobre a possível interferência de grupos estrangeiros na cultura nacional, o assessor Luís Natal questionou, de forma irônica e pouco polida: “Mas os grupos estrangeiros só têm interesses nefastos? Qual a diferença do dinheiro brasileiro para o estrangeiro? Nós já temos um monte de faculdades particulares”. BEM PÚBLICO No MEC, há quem pense diferente do ministro. “O Brasil não admite a hipótese de que a educação seja tratada como um bem mercantil. Ela é um bem público e de incumbência do Estado”, afirmou Es-

tevão de Rezende Martins, coordenador geral de cooperação internacional do MEC, no seminário “O Ensino e a Organização Mundial do Comércio”, dias 20 e 21 de agosto, na Universidade de São Paulo (USP). Mas as declarações de Cristovam Buarque preocupam. Adilson Avansi de Abreu, pró-reitor de cultura e extensão universitária da USP, considera que a entrada de capital estrangeiro tem muitos desdobramentos problemáticos. Entre eles, o risco de colonização cultural e a dificuldade em manter um padrão de ensino. “Há um risco enorme de não conseguirmos manter os parâmetros curriculares. Não controlamos nem a

qualidade dos cursos que temos aqui, quanto mais a que vem de fora.Além do mais, algumas instituições sequer são reconhecidas em seus próprios países de origem”, diz Abreu. Ele acredita que as instituições podem até ser beneficiadas financeiramente, mas o ensino ficará desqualificado. PATRIMÔNIO O presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, GastãoVieira (PMDB-MA), também tem restrições em tratar a educação como mercadoria:“Vejo com desconfiança empresas estrangeiras adquirirem instituições brasileiras.Temos que ter cuidado”. Já para Nina Ranieri, secretária geral da USP, o ponto central é a qualidade: “Essas instituições virão carregadas da cultura de seus países de origem, e a cultura brasileira tem que ser protegida, pois constitui patrimônio nacional”. Para Nina, não existe qualquer empecilho legal para o investimento estrangeiro, desde que sejam atendidas as normas fixadas nas Lei de Diretrizes e Bases. Ela está preocupada com a rodada de negociações multilaterais da Organização Mundial do Comércio (OMC).“Liberar o serviço de educação é simplificar a legislação, e trocar um produto qualquer pela abertura da educação”, alerta ela.

público que levaram ao fechamento das superintendências, chegam a aproximadamente R$ 5 bilhões. Só na Sudam, as investigações e auditorias apontam para um rombo de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões. Na Sudene, fechada em 2001, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) apontou desvio de R$ 2,2 bilhões, envolvendo 531 projetos irregulares. Detalhe: até hoje, nem um real foi devolvido aos cofres públicos. Apesar das quatro décadas de existência e dos investimentos feitos, o Norte e o Nordeste continuam pobres. Lá, ainda prevalecem a concentração de terra, de renda e do conhecimento. As metas das novas Sudene e Sudam lembram o passado: promover o desenvolvimento e a integração econômica regional aos mercados interno e externo. Mas, segundo Margret, o principal problema ainda são os grandes latifundiários, que ditam as regras. “As agências, quando foram extintas, não levaram junto a oligarquia política. Ela continua lá, e no poder, o que pode ser muito perigoso”. Para Francisco de Oliveira, os resultados produzidos por essas oligarquias são o modelo concentrador de riquezas exitoso há um século.“O Brasil não é um fracasso econômico, é um fracasso político e social”.

BANESTADO

CPI cobra medidas contra evasão Da Redação O presidente da CPI do Banestado, senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), criticou a passividade do governo diante das evidentes falhas no combate a crimes financeiros pelas instituições brasileiras. Ele acredita que a CPI apurou informações suficientes para que as autoridades federais adotem medidas como a quebra do sigilo bancário para que a Receita Federal possa identificar movimentações financeiras suspeitas, foco da investigação. “É um absurdo que a Receita Federal não tenha acesso a informações sobre o levantamento de créditos tributários. De posse delas, a Receita teria condições de verificar se o Estado está sendo roubado ou não. Isto já deveria ter sido alterado, bastando o uso de uma medida”, protestou o senador. Ele explicou que só será possível recuperar o dinheiro enviado irregularmente ao exterior pelas contas CC5 com a atuação da CPI do Banestado, que já solicitou a transferência de dados do sigilo bancário para a Receita. Paes de Barros acusou o Banco Central de não cumprir de modo eficiente a sua missão, lembrando que a instituição vem se recusando a fiscalizar as empresas de factoring que, além de fomento comercial, acabam realizando operações de empréstimos e outras modalidades negócios, para as quais utilizam as contas CC5. “O mais grave é que o assunto já foi levantado na CPI, nas sabatinas com diretores do Banco Central, e apesar disso ainda não há fiscalização sobre estas operações. Isto é um absurdo”, criticou. No momento, um grupo de parlamentares membros da CPI faz visita técnica aos EUA em busca de maiores informações sobre operações financeiras suspeitas em contas de bancos da cidade de Nova York.


CONJUNTURA

NACIONAL

Em julho, a renda do brasileiro encolheu 16,4%, o que levanta dúvidas sobre os efeitos práticos da redução da taxa básica de juros na recuperação da economia; apesar do marasmo das atividades, a reforma tributária poderá aumentar ainda mais a carga de impostos

Trabalhadores perdem R$ 2,2 bilhões Lauro Jardim, de São Paulo (SP)

SEM OTIMISMO Os números do IBGE não autorizam muito otimismo em relação ao comportamento da economia nos próximos meses, ainda que as taxas de juros continuem caindo. Em julho, numa queda recorde, os rendimentos recebidos pela população ocupada sofreram baixa de

16,4%, em relação ao mesmo mês do ano passado - a sétima redução mensal consecutiva. Na média, a renda mensal de cada brasileiro saiu de R$ 996,92, em julho de 2002, em valores atualizados com base na inflação do período, para R$ 833,50. Além disso, o rendimento de julho diminuiu (em ter-

Quem vai pagar a conta da reforma tributária? A reação de especialistas em impostos parece quase unânime, embora tudo o que se tenha discutido até aqui possa mudar. Para eles, o relatório do deputado Virgílio Guimarães (PT/ MG) para a reforma tributária, aprovado no dia 22 pela comissão especial criada na Câmara dos Deputados para apreciar o assunto, vai aumentar os impostos e penalizar o contribuinte. Na visão do governo, a proposta seria neutra, ou seja, não reduziria, mas tampouco aumentaria o peso dos impostos, preservando a carga atual. Estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), antes da aprovação da proposta do governo naquela comissão, previa um aumento na arrecadação de impostos e contribuições de quase R$ 34,4 bilhões no primeiro ano de vigência do novo modelo tributário, se e quando este vier a ser aprovado. Aquele valor corresponderia a 2,7% do Produto Interno Bruto – PIB (a soma de todas as riquezas produzidas pelo país no período de um ano), e a perto de 14% da arrecadação total registrada pela Secretaria de Receita Federal em 2002. O levantamento considera, no seu cálculo final, a perspectiva de manutenção de uma alíquota de 0,38% para a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), em contraposição à previsão de redução daquela alíquota para 0,08% a partir de 2004, conforme determina a legislação em vigor. AUMENTOS Só a CPMF, que pode se tornar definitiva, como quer o governo, representaria uma receita adicional de R$ 23 bilhões (ou 67% do aumento projetado pelo IBPT). A mexida no Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que passaria a ter uma legislação única, concentrando ainda mais poderes nas mãos da União, traria um aumento estimado em R$ 10,5 bilhões. Segundo o novo desenho proposto para o ICMS, que representa hoje uma receita anual superior a R$ 104 bilhões, haveria cinco faixas de alíquotas - de 4% a 25% - cabendo aos Estados definir quais produtos seriam incluídos em cada faixa. Os

governos estaduais seriam, ainda, autorizados a aumentar em cinco pontos percentuais, durante três anos, as alíquotas do ICMS sobre três produtos.Além disso, há o temor de que os Estados tendam a adotar a alíquota mais elevada para um grupo maior de produtos. O conflito entre governos estaduais e União, até onde se pode enxergar, parece longe de ser solucionado, até porque os Estados não aceitam perder sua autonomia para decidir sobre política tributária (reduzir ou aumentar impostos, por exemplo, e mesmo definir quando receber os mesmos impostos) sem alguma forma de compensação.E esta compensação deveria vir sob a forma de uma maior participação na arrecadação total de impostos, contribuições e taxas. PERDÕES O cobertor parece curto para atender todo mundo? Só na retórica de lobbies dentro e fora do governo. Na verdade, se não houvesse tamanha disposição para perdoar sonegadores e uma aparente inapetência para cobrar dívidas, as dificuldades da União, dos Estados e prefeituras seriam de outra ordem. Em julho, apenas a União tinha a receber, por conta de impostos sonegados ou não pagos, quase R$ 337 bilhões, ou 39% mais do que toda a arrecadação federal em 2002, e duas vezes a receita registrada nos primeiros sete meses deste ano. Só o Refis, que autoriza o parcelamento de impostos em atraso a prazos a perder de vista e juros de apenas 12% ao ano (quando as empresas em geral estão submetidas a taxas anuais de 40% ou 60%), anistiou dívidas de R$ 124,5 bilhões, favorecendo grandes grupos como a Telemar, maior operadora de telefonia fixa do país e dona do provedor celular Oi. Com um faturamento líquido de R$ 6,5 bilhões apenas no primeiro semestre deste ano e um patrimônio total de R$ 26,4 bilhões, a Telemar e sua controladoraTele Norte Leste Participações parcelaram o pagamento de uma dívida de R$ 856 milhões, o equivalente a 13% de sua receita líquida em um único semestre.(LJ)

mos reais) 1,7% em relação a junho. Tomando um total de 18,3 milhões de ocupados no mês passado, nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE, a massa de rendimentos (ou seja, o total de salários, aluguéis e outras rendas recebidas por trabalhadores e empregadores) estaria próxima a R$ 15,3 bilhões em

julho, diante de R$ 17,5 bilhões no mesmo mês de 2002. Houve, portanto, uma perda de R$ 2,2 bilhões. ACHATAMENTO Num mero exercício matemático, projetando aqueles dados para um período de 12 meses, os brasileiros receberiam, nos 12 meses deste

■ Para o consumidor, a economia será apenas de tostões nas compras a crédito

Com a queda dos juros, alívio momentâneo à economia No final das contas, depois de ver seu salário escorrer literalmente pelo ralo nos últimos sete meses, o consumidor poderá economizar aí uns R$ 11 na compra financiada de uma geladeira, alguma coisa ao redor de R$ 0,92 por mês num empréstimos de 12 meses - ou um vale-esfiha todos os meses. De qualquer forma, embora o impacto sobre o bolso do consumidor ainda seja discutível, a decisão do governo de acelerar a redução das taxas de juros deve contribuir para aliviar, ao menos momentaneamente, o clima pesado que hoje ronda a economia. Na semana passada, a taxa básica de juros, utilizada pelos bancos e todos os demais setores da economia como ponto de partida para o cálculo do custo dos empréstimos e financiamentos a pessoas físicas e empresas, baixou de 24,5% para 22%. Foi a maior redução aplicada pelo Banco Central desde maio de 1999, quando os juros básicos cairam 3,5 pontos porcentuais. Foi uma resposta da equipe econômica às pressões que sofria para rever a política de juros altos.

Com a medida, insuficiente para tirar o Brasil de um dos primeiros lugares no ranking dos juros mais altos do mundo, a equipe econômica tenta demonstrar, ainda, alguma capacidade para reagir à rápida deterioração da economia, injetando algum fôlego na atividade econômica. UM RESPIRO O cor te de 2,5 pontos percentuais nos juros foi bem recebido tanto nos corredores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), quanto no mercado financeiro, que respondeu com alta das bolsas e ligeira queda do dólar. “Finalmente, o Papai Noel passou a fazer parte do governo Lula”, declarou o diretor do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Júlio Gomes de Almeida, em entrevista à imprensa. O reconhecimento, no entanto, não esconde o fato de que a retomada do crescimento dependerá de outros fatores, como a recuperação da renda dos assalariados e a retomada dos investimentos. “Falta desobstruir os caminhos bloqueados do investimento público e

das inversões privadas”, comentou, em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, o economista Paulo Rabello de Castro. EM CAUSA PRÓPRIA O maior beneficiário do corte dos juros será o próprio governo federal. Que poderá economizar quase R$ 8,7 bilhões, nos próximos 12 meses, nas despesas com os juros da dívida pública. Considerando, no entanto, que os juros estavam em 26,5% até maio, caso não ocorram novas mudanças nas taxas, pode-se projetar uma economia de praticamente R$ 15,7 bilhões no período de um ano. Se o governo decidisse ser mais agressivo, baixando a taxa, por exemplo, para 19%, conseguiria poupar R$ 26,2 bilhões - mais do que todo o déficit alardeado para a Previdência Social neste ano. Os dados ajudam, de resto, a desmistificar a retórica oficial para defender a reforma previdenciária: a redução dos juros, em doses mais ousadas, teria maior impacto sobre as contas públicas, vale dizer, na redução do rombo do governo. (LJ)

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

Fonte: IBGE

Otávio Magalhães/AE

A queda ininterrupta da renda dos brasileiros, neste ano, torna cada vez mais distante a perspectiva de retomada da economia neste segundo semestre, e confirma o diagnóstico do vice-presidente, José Alencar (PL/MG): este foi um ano perdido em termos de crescimento. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), as perdas têm sido agravadas pelo desemprego elevado, o que deixa os sindicatos em posição desconfortável para negociar reajustes salariais com as empresas. O resultado é que os salários sequer conseguem acompanhar a inflação nos acordos coletivos.

ano, perto de R$ 183,6 bilhões, frente a R$ 210 bilhões em 2002 (R$ 17,5 bilhões multiplicado por 12). Ou seja, a massa de rendimentos teria encolhido R$ 26,4 bilhões. Deve-se tomar cuidado com projeções como essa, porque tomam os números relativos a um único mês. Mas se trata de uma estimativa não muito distante da realidade. A aceleração da inflação entre o final de 2002 e o começo deste ano contribuiu para achatar rendas e salários, corroendo o poder de compra dos trabalhadores e empurrando a economia para o atoleiro atual. Segundo levantamento nacional realizado pelo Dieese, a situação crítica do mercado de trabalho levou a que 54% dos 149 acordos trabalhistas firmados no primeiro semestre deste ano tivessem reajustes abaixo do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). Mais grave: 17% dos dissídios de 2003 foram assinados com correções de cinco pontos percentuais abaixo do INPC, diante de 1,2% no primeiro semestre de 2002, e 33% dos reajustes acertados foram pagos parceladamente (9%, em 2002), o que agrava as perdas salariais.

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NACIONAL

Marcados pela impunidade, os crimes realizados pelo latifúndio compõem um assustador quadro de assassinatos e prisões arbitrárias; no Congresso, parlamentares se organizam em defesa dos ruralistas; ao suspender desapropriações, a Justiça aprofunda os conflitos sociais

REFORMA AGRÁRIA

Arquivo JST

Relatório revela os crimes do latifúndio Maria Luisa Mendonça, da Redação

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ntre janeiro e agosto de 2003, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) documentou 44 assassinatos de trabalhadores rurais. De 1985 a 2002, foram registrados 1.280 assassinatos de camponeses, advogados, técnicos, lideranças sindicais e religiosas ligados à luta pela terra. A impunidade é praticamente a regra geral nesses casos. Desses 1.280 assassinatos, apenas 121 foram levados a julgamento. Entre os mandantes dos crimes, somente 14 foram julgados, sendo sete condenados. Foram levados a julgamento quatro intermediários, sendo dois condenados. Entre os 96 executores julgados, 58 foram condenados. De 1985 a 2002, ocorreram 6.330 prisões arbitrárias de trabalhadores rurais. Durante o mesmo período, houve 715 casos de tortura e 19.349 agressões físicas. Somente em 2002, houve 43 assassinatos, 20 tentativas de assassinato e 73 ameaças de morte contra trabalhadores, além de 44 agredidos fisicamente e 20 torturados. Essas informações estão contidas no Relatório sobre os Crimes do Latifúndio, lançado dia 26 de agosto pela CPT, pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, pelo Centro de Direitos Humanos Evandro Lins e Silva e pelo Instituto Carioca de Criminologia. TERRAS OCIOSAS A concentração de terra no Brasil é uma das maiores do mundo. Menos de 50 mil proprietários rurais possuem áreas superiores a mil hectares e controlam 50% das terras cadastradas. Cerca de 1% dos

■ Dezenas de trabalhadores rurais são assassinados no Brasil anualmente, conseqüência da concentração fundiária e da impunidade proprietários rurais detêm em torno de 46% de todas as terras. Dos aproximadamente 400 milhões de hectares titulados como propriedade privada, apenas 60 milhões de hectares são utilizados como lavoura. O restante das terras estão ociosas, subutilizadas, ou destinam-se à pecuária. Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (Incra), há cerca de 100 milhões de hectares de terras ociosas. Por outro lado, existem cerca de 4,8 milhões de famílias sem terra no Brasil. Para o professor Manuel Domingos, da Universidade Federal do Ceará, as estatísticas cadastrais revelam uma persistente concentração da propriedade da terra. “De

Divulgação

Bancada ruralista continua forte

BRASIL DE FATO

De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

Áurea Lopes, da Redação

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A forte interferência da elite agrária nas definições da política e da economia nacional foi contabilizada em um levantamento realizado, em maio, pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Essa análise da bancada ruralista no Congresso mostra que, apesar de perder representatividade (de 117 deputados, em 1996, passaram para 73, em 2003), os ruralistas mantêm uma sólida capacidade de articulação em torno da ideologia conservadora que historicamente marca sua atuação no governo. De autoria do cientista político Edelcio Vigna, o trabalho analisa fatos recentes: “Os partidos da base do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT/PSB/PCdoB e PTB), associados ao PMDB e ao PSDB, fecharam um acordo para votar a medida provisória. Mas, como deixaram de fora as dívidas, os grandes produtores rurais, os ruralistas, aliados a setores dissidentes do PMDB, impediram a votação. Diante da sua primeira derrota no parlamento, o governo comprometeuse a editar uma nova medida, ampliando o prazo da rolagem das dívidas e incluindo os produtores de todo o Nordeste.” CONQUISTAS POLÍTICAS Depois de conquistas como as indicações dos ministros da Agricultura e do Desenvolvimento Rural de Fernando Henrique Cardoso, os ruralistas continuam influenciando a composição do governo: negociaram o nome do ministro da Agricultura, Roberto

■ Movimentos da Paraíba denunciam prisão arbitrária Rodrigues; apoiaram com sucesso o nome do ministro de Desenvolvimento e Interior, Luiz Fernando Furlan; indicaram o presidente da Comissão de Agricultura e Política Rural da Câmara dos Deputados, Waldemir Moka, e sustentaram na Empresa Nacional de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) alguns defensores de seus interesses, em especial no campo da biotecnologia. O estudo do Inesc chama atenção, ainda, para a integração da elite agrária com outros setores da burguesia nacional:“Em geral, os parlamentares têm pelo menos duas profissões: empresário e agropecuarista; médico e agropecuarista; agropecuarista e advogado; agropecuarista e comerciante etc.” Além disso, diversos parlamentares não exercem profissões ligadas à produção rural, mas se alinham com os ruralistas por pertencer a famílias de tradição agrária. Em termos estratégicos, esse

bloco está organizado para barrar a reforma agrária e investir contra a agricultura familiar. “A bancada ruralista é o braço parlamentar dos latifundiários armados”, diz Vigna. O estudo do Inesc comprova: “durante a legislatura de 1990 a 1994, sob a influência da União Democrática Ruralista (UDR), o grupo mostrou-se truculento e agressivo diante dos adversários. O domínio dos pecuaristas conduzia a bancada ao confronto constante. Depois de optar por uma representação diversificada, na legislatura de 1995/ 98, os ruralistas voltaram, agora, a depender do comportamento de algumas lideranças, como o deputado Ronaldo Caiado, ou outras que se impuseram, como os deputados Abelardo Lupion e Luís Carlos Heinze. Outra conclusão do Inesc atrela a bancada ruralista às crises no setor agropecuário. Se os problemas agrícolas fossem equacionados, segundo o documento, a bancada ruralista cumpriria, como as outras organizações patronais ou de trabalhadores, a sua função como grupo de interesse, defendendo a grande propriedade rural, a monocultura para exportação etc. o que, respeitados os princípios constitucionais e a legislação vigente, não é ilegal nem politicamente incorreto. Porém, o estudo conclui: “Enquanto essa alteração não ocorre, nada pode impedir, e seria ingênuo imaginar o contrário, que os ruralistas não manipulem de acordo com os ensinamentos de Maquiavel, nos momentos tensos da negociação, usando instrumentos de pressão estranhos à prática política”.

acordo com o Incra, entre 1992 e 1998, a área ocupada pelos imóveis maiores de 2 mil hectares foi ampliada em 56 milhões de hectares, o que representa três vezes mais que os 18 milhões de hectares que o governo Fernando Henrique Cardoso afirma ter desapropriado durante seis anos. A área ocupada por 10% dos maiores imóveis do país

cresceu, no período em referência, de 77,1% para 78,6% da área total”, diz Domingos. As melhores terras destinam-se à monocultura de cultivos para a exportação como cana, café, algodão, soja e laranja. Ao mesmo tempo, 40 milhões de pessoas passam fome no país, sendo que grande parte está no meio rural.

ANÁLISE

A Justiça e a luta Démerson Dias Em uma semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou três processos de desapropriação de terras. Resultado: 2 X 1 para o latifúndio. A História mostra que, se depender das regras, o país não terá Reforma Agrária. No único caso em que manteve a desapropriação, na Bahia, a votação foi apertada, 6 favoráveis e 5 contrários. Todos os casos julgados eram baseados em artifícios processuais. Quando as leis (regras) são pautadas pelo casuísmo não faltam meios para isso. No caso de Alagoas, a proprietária livrou-se da desapropriação dividindo as terras entre as duas filhas. E o STF ainda responsabilizou a incompetência do Incra! Fica claro o descompromisso das instituições com a justiça de fato. É a legitimação da falcatrua. O STF ser uma Corte política não chega a ser um problema, mas permite que nem sempre as decisões busquem realmente fazer justiça (para alguns, um conceito vago). Numa questão de grande alcance social é inadmissível relações de parentesco entre a relatora do processo de desapropriação e seus proprietários. Por mais que sejam legalmente válidos os argumentos, o STF fere gravemente a aura de imparcialidade que deveria pautar seus julgamentos. Mais grave ainda, no caso da fazenda Southall, em São Gabriel, a própria ministra Ellen Gracie não ter ficado constrangida em julgar questão dessa natureza em favor de pessoas de seu convívio.

Não basta cumprir quesitos legais, é preciso isenção moral também.Diz-se no meio jurídico que a lei não ampara aos que dormem. Em outras palavras, basta ter esperteza ou recursos suficientes. Quando a justiça social está legalmente desamparada, o império da lei não é mais do que a opressão dos pobres. Se a intenção do STF era acalmar os conflitos no campo, o efeito pode ser exatamente o contrário. Decisões contrárias à reforma agrária baseadas em manobras jurídicas desacreditam as instituições e aumentam desnecessariamente o tensionamento na sociedade. Na democracia, a função do Estado deveria ser mediar os conflitos sociais e não aprofundá-los agindo com parcialidade, ou descaso. E essa crítica não cabe somente ao Judiciário. O governo Lula não pode encarar essa questão com a concepção jurídico-formal herdada de 500 anos de exclusão. Mais do que um desafio e compromisso histórico, para o país trata-se de questão de política pública e justiça socioeconômica. Se as regras não garantem a Reforma Agrária, a alternativa que resta aos movimentos sociais é potencializar o único instrumento de que efetivamente dispõem – a mobilização. Démerson Dias é coordenador da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União (Fenajufe) e do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal do Estado de São Paulo (Sintrajud)


MOBILIZAÇÃO

NACIONAL

Plenária realizada em São Paulo reúne mais de 140 entidades; objetivo é reacender mobilizações populares em todo o Brasil; em entrevista, Plinio Sampaio fala dos desafios de se construir um novo projeto; Marcha das Margaridas leva 50 mil camponesas a Brasília

Renato Stockler

Movimentos articulam novo projeto Jorge Pereira Filho, da Redação

U

■ Plenárias dos movimentos sociais para organizar manifestações em defesa da soberania nacional

POVO NAS RUAS Para o advogado Plinio Arruda Sampaio, sem manifestações populares não haverá mudanças, mesmo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou os partidos queiram.“A história do Brasil mostra que só há avanços quando se altera a correlação de forças. Devemos colocar o povo na rua, independente de quem seja governo. Aí, sim, vamos ver o que Lula vai fazer”, afirmou Arruda Sampaio (veja entrevista abaixo). O integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) João Pedro Stedile avaliou que a unidade entre os movimentos sociais é um desafio

ENTREVISTA

É preciso pressão popular Representante da Coordenação dos Movimentos Sociais, Plínio Arruda Sampaio explica como a ação organizada das forças populares pode sensibilizar a população e impulsionar as mudanças necessárias ao país.

BF — Alguns setores da esquerda estão desanimados com o governo Lula. O jogo já acabou? Sampaio — Não participo da idéia de que já perdemos um ciclo favorável à ascensão das massas. Não podemos aceitar essa tese sem pelo menos articular um embate. Aí, aceitamos a derrota sem embate. É preciso pressão popular para sensibilizar a massa da população, e não apenas um segmento dela. Só então veremos se a energia transformadora que levou Lula à presidência ainda está acesa. Eu aposto que ainda há espaço.

Quem é Plinio Arruda Sampaio é exdeputado federal constituinte, promotor público, consultor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), professor universitário e ex-secretário agrário do Partido dos Trabalhadores (PT) e diretor do jornal Correio da Cidadania. BF — O cenário internacional é favorável às lutas da esquerda? Sampaio — Do ponto de vista do poder, não. Mas do ponto de vista popular, é favorável. Há manifestações populares em todos os lugares do mundo. A resistência iraquiana é uma prova de que a população não está disposta a aceitar a dominação militar. Mesmo dentro dos Estados Unidos, há um crescente movimento popular muito forte que está questionando o neoliberalismo, mas que infelizmente não é noticiado pela grande mídia. (JPF)

colocados para os movimentos sociais: manter a luta contra o neoliberalismo, construir um projeto alternativo, acumular forças populares articulando vários movimentos em um objetivo comum e estimular a mobilização social com um calendário unificado.“Vamos construir a unidade tendo um projeto que unifique e fazendo lutas de massas conjuntas”, explicou Stedile. UNIDADE DE AÇÃO Representantes das entidades que participaram da plenária em São Paulo defenderam a urgência da unidade de ação.“É importante essa troca entre as forças populares. Tem de existir unidade para que possamos articular o movi-

Milhares de agricultoras marcham em Brasília Sal Freire, de Brasília (DF)

Renato Stockler

Brasil de Fato — Quais são os desafios dessa articulação integrada entre os movimentos sociais? Plinio Arruda Sampaio — A unidade exige consciência política e generosidade. O instrumento mais importante é uma alternativa real ao modelo de desenvolvimento do país. Essa é uma das tarefas dos intelectuais orgânicos que fazem parte de todos movimentos populares, mas isso não supre a necessidade de responsabilidade e generosidade.

imposto pela conjuntura.“Existe uma crise no modelo capitalista de organizar a produção. A burguesia tentou, a partir dos anos 80, impor o neoliberalismo, que resultou em mais concentração e crise. O povo votou contra o modelo neoliberal, mesmo não tendo claro para onde queria ir”, avaliou Stedile. Segundo ele, a estratégia do império para sair desta crise está representada na Alca e na Organização Mundial do Comércio (OMC).“A burguesia nacional quer reciclar o modelo neoliberal, estão tentando disputar um projeto. Por isso, precisamos construir um projeto alternativo. Até agora, não temos tido capacidade de criar um acúmulo organizativo de forças para tanto”, disse Stedile. Quatro desafios principais foram

A Marcha das Margaridas, promovida todos os anos, desde 2000, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agr icultura (Contag), reuniu em Brasília, dia 26, cerca de 50 mil agricultoras. Pela manhã uma comissão de representantes da Marcha foi recebida, no Palácio do Planalto, pelo presidente em exercício, José Alencar, e pelos ministros José Dirceu, da Casa Civil; Jacques Wagner, do Trabalho, e Emília Fernandes, da Secretaria Especial dos Direitos da Mulher. As camponesas lutam por assistência de saúde à mulher do campo, salário mínimo digno, acesso à terra e à água e contra a violência sexista. As margaridas participaram de atividades culturais e de um ato público no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade.Ao meio-dia, iniciaram a marcha rumo à Esplanada dos Ministérios e, com chuva, fizeram o encerramento do ato, às 15h, diante do Congresso Nacional. Havia representantes de ONGs e do MST e compareceram a ministra Benedita da Silva (Promoção Social) e o ministro Miguel Rosseto (Desenvolvimento Agrário). A mobilização marcou os 20 anos do assassinato da líder sindical Margarida Maria Alves, em Alagoa Grande (PB). A titulação da terra e a concessão de créditos rurais em nome das mulheres são duas das principais

■ Marcha das Margaridas, dia 26 de agosto: as camponesas reivindicam direito à terra, à água e condições dignas no campo exigências da Marcha. Segundo a Contag, dos projetos Cédula da Terra e Crédito Fundiário, apenas 7% saíram em nome de mulheres. Diz Raimunda Damascena, coor-

denadora nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Contag: “A situação de pobreza vivida pela mulher do campo é o que a mantém refém do marido agressor”.

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

nicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Wilson Dias/ABR

nidade de ação e mobilização popular. Essas foram as palavras de ordem dos participantes da 1ª Plenária da Coordenação dos Movimentos Sociais da região Sudeste, realizada em São Paulo, dia 23. Participaram do encontro cerca de 500 pessoas, representando 140 organizações dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná (Estado convidado). A reunião foi mais uma da série de plenárias que estão sendo realizadas nas cinco regiões do Brasil. Os Estados do Nordeste já organizaram um encontro. Até o final de agosto, as regiões Norte, Sul e Centro-Oeste devem fazer o mesmo. O objetivo das plenárias é articular ações entre os movimentos sociais e formular um projeto alternativo ao modelo neoliberal. Dia 13 de setembro, as entidades vão promover uma grande mobilização popular nas capitais. Um documento intitulado “Soberania Nacional, Desenvolvimento, Trabalho, Distribuição de Renda com Inclusão Social” está sendo apresentado nas reuniões para discussão das reivindicações dos movimentos. “O documento resgata a soberania nacional. Queremos construir um debate com o governo para impedir a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e rejeitar o Fundo Monetário Internacional (FMI). Trata-se de uma disputa. E essa disputa não pode nos eximir de conscientizar o povo e construir grandes mobilizações nacionais”, afirmou Antônio Carlos Spis, secretário nacional de Comu-

mento. A mudança da conjuntura só dependerá das mobilizações dos trabalhadores”, avaliou Patrícia Soares, professora da rede estadual de São Paulo e integrante do Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino. Para ela, a mobilização do dia 13 de setembro pode representar o início dessa mudança. “É uma data importante. Essa manifestação tem caráter internacionalista e ocorrerá em toda a América Latina na luta contra a Alca, a OMC e o FMI. Tudo isso nos anima, no Brasil”, explica Patrícia. Segundo Wildener Rocha, da coordenação da torcida do Corinthians Gaviões da Fiel, é hora de ampliar a discussão com a sociedade. “Vamos participar da campanha por um plebiscito oficial sobre a Alca, colhendo assinaturas para os abaixo-assinados dentro dos estádios de futebol. E também marcaremos presença na marcha do dia 13”, disse Rocha. A partir de setembro, a Gaviões pretende levar aos estádios de futebol uma faixa contra a Alca e em defesa da soberania nacional. “O objetivo desse encontro foi alcançado. Conseguimos reorganizar o movimento”, constatou Bartíria Lima da Costa, representante carioca da Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam). Para ela, o momento é propício para intensificar as lutas sociais. “Temos de ampliar os movimentos sociais e populares. Não podemos ficar restritos aos nossos grupos. Chegou a hora de acumular forças para o governo Lula fazer as mudanças que prometeu”, avaliou Bartíria.

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NACIONAL

Os trabalhadores terão de se mobilizar para garantir direitos conquistados que a reforma trabalhista pode tirar; o programa Primeiro Emprego do governo federal dará prioridade aos jovens de baixa renda; a CUT comemora 20 anos com muitos desafios pela frente

REFORMA TRABALHISTA

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o final do ano, o governo federal pretende levar ao Congresso sua proposta de reforma trabalhista. O objetivo é modernizar o Direito do Trabalho brasileiro e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que, desde sua criação, há cerca de 60 anos, sofreu pouquíssimas modificações. Mas o assunto já é motivo de muita polêmica. Enquanto empresários defendem a flexibilização das leis trabalhistas, empregados lutam pelo fortalecimento dos sindicatos e a ampliação de direitos. Segundo os defensores do afrouxamento da CLT, a mudança pode atacar o desemprego, barateando a mão-de-obra. Para isso, os empregadores querem negociar diretamente com seus funcionários certos direitos, como 13º salário e férias, com isso cortar gastos com a folha de pagamento e, assim, poder contratar mais funcionários. Mas a redução dos custos da mão-de-obra não é geradora de emprego, afirma o economista Márcio Pochmann, secretário municipal do Trabalho de São Paulo. “Se o trabalhador recebe um salário menor, gasta menos e as vendas das empresas caem”, argumenta. Assim, a receita diminui e o em-

pregador é obrigado a reduzir a produção. Esse processo pôde ser observado em diversos países com leis trabalhistas flexibilizadas: na maioria deles, o desemprego e o emprego precário cresceram. Grijalbo Coutinho, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), diz que a lei atual não deve ser afrouxada, pois ela define os direitos mínimos dos empregados. Protegidos por eles, os trabalhadores podem negociar com os patrões sem ter seus benefícios ameaçados e, a partir daí, discutir livremente piso e reajuste salarial - os motivos centrais de uma disputa trabalhista. Porém, para tanto, os trabalhadores precisam ser representados por organismos fortes. DIREITOS MÍNIMOS Por isso mesmo, é urgente reformar a estrutura da organização sindical no país, acrescenta o advogado Estevão Mallet, professor de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo. Ele defende o fim da unicidade sindical, uma regra que atualmente proíbe a criação de mais de um sindicato por categoria, na mesma localidade. Com isso, o empregado pode se filiar à associação onde se sinta melhor representado e a ela destinar o imposto sindical. Segundo Grijalbo Coutinho, caso

■ Busca em classificados virou via-sacra para desempregados

PRIMEIRO EMPREGO

SINDICALISMO

Programa prioriza baixa renda

CUT comemora 20 anos Maíra Kubík Mano, da Redação

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DESAFIOS Marinho acredita que a herança política, econômica e social deixada por décadas de neoliberalismo é, simplesmente, assustadora. Segundo ele, o desafio agora é defender políticas públicas que gerem empregos: “nós ajudamos a eleger Lula presidente e temos compromisso com o governo eleito. Mas para garantir nossa autonomia em relação ao governo, o desafio que teremos pela frente nos próximos anos é mobilizar os trabalhadores para fazer com que o país retome o caminho do crescimento”.

Uma das prioridades da pauta atual da entidade é a reforma da Previdência. Solidária à greve do funcionalismo público, a entidade defende uma flexibilização do governo para mudanças no relatório como o aumento do teto para as aposentadorias e uma maior proteção das pensões até R$ 1.058,00. A CUT já discute as reformas trabalhista e sindical. Para Marinho, a estrutura corporativa dos sindicatos pouco mudou nas últimas duas décadas e a reforma seria uma oportunidade de garantir a autonomia sindical.

A taxa de desemprego entre jovens de 16 a 24 anos é de 17,8%, quase o dobro daquela encontrada entre as outras idades. É naquela faixa etária que estão 44% dos sem-ocupação no Brasil. É nesse cenário que o governo lança o Primeiro Emprego, um programa emergencial com o objetivo de abrir 250 mil vagas para jovens. Com um investimento previsto de R$ 234 milhões para os primeiros 12 meses de implantação, o programa oferecerá R$ 200 mensais às empresas, por cada vaga destinada ao Primeiro Emprego. No dia 20, o projeto de lei para conceder o incentivo foi aprovado na Câmara Federal. Em evento no Recife (PE), Jaques Wagner, ministro do Trabalho, afirmou que a recente queda na taxa de juros é propícia para os pequenos e microempresários investirem no programa.

HISTÓRIA A CUT surgiu durante as greves do início da década de 80, que reivindicavam, entre outras coisas, aumento salarial, melhorias nas condições de trabalho, direito à organização sindical e a redemocratização do país, então proibidos pela ditadura militar. Com militantes que se tornaram símbolo das lutas e do sindicalismo no país, como Chico Mendes e Margarida Alves, sua legalização só foi possível a partir da Constituição de 1988, depois de forte pressão e mobilização dos trabalhadores. Para as comemorações dos 20 anos da central, que acontecem entre os dias 25 e 29 de agosto, estão sendo organizados debates, homenagens e a posse da nova diretoria executiva nacional da entidade. Vera Jursys/Arquivo Nacional CUT

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

A Central Única dos Trabalhadores (CUT) está completando 20 anos de existência. Com 3.355 sindicatos filiados e 22 milhões de trabalhadores organizados, a entidade, fundada em 28 de agosto de 1983, tornou-se a maior central sindical do país. Para Luiz Marinho, presidente da CUT, um breve balanço mostra que a entidade teve um papel decisivo na construção de um regime democrático, na campanha por eleições diretas, pelo impeachment de um presidente da República, Fernando Collor de Mello, e na histórica eleição de uma liderança dos trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, para a presidência do Brasil.

esse tributo se torne facultativo, os sindicatos mais comprometidos com os trabalhadores serão os únicos sobreviventes. Para gerar empregos, o presidente da Anamatra possui uma série de outras sugestões. Ele defende medidas que incentivem a produção e valorizem salários, que dependem da implementação de uma política de desenvolvimento econômico. “Pequenas empresas devem ser incentivadas por políticas tributárias e melhor crédito, e não com redução de direitos dos trabalhadores. A convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que impede empresários de demitir sem motivos econômicos, ou justa causa, cancelada pelo ex-presidente Fernando Henrique, deveria ser reativada. E a jornada de trabalho reduzida, e horas extras proibidas”, propõe Coutinho. Transformar a CLT num estatuto do trabalhador é a posição de Pochmann. Segundo o economista, as leis atuais foram criadas para proteger os assalariados, mas, hoje, essa categoria abrange somente 54% da população economicamente ativa. O estatuto cobriria outras relações de trabalho, como o informal e as cooperativas. Assim, as regulamentações protegeriam a grande maioria do povo brasileiro.

■ Fundação da CUT: Central conta com 3.355 sindicatos

QUADRO ALARMANTE No entanto, o desemprego não pára de crescer. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IGBE), em julho a taxa chegou a 16,4%. Nessa situação, não é possível mudar um quadro tão alarmante com um programa de emprego, alerta Luiz Marinho, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT). “Somos favoráveis ao programa, porém precisamos que ele esteja casado com outras ações de retomada do crescimento da economia para responder à demanda geral do emprego”, observa. Para Marinho a troca de funcionários mais velhos pelos jovens subsidiados pode ser o maior problema do programa. Para resolvêlo, foi criada uma série de salvaguardas dentre as quais a mais importante é a obrigatoriedade de se manter o mesmo número de funcionários durante o primeiro ano do jovem na empresa. “Para essa medida ter efeito, será neces-

José Cruz/ABR

Luís Brasilino, da Redação

Tuca Vieira/Folha Imagem

Direitos precisam ser preservados

■ O ministro Jaques Wagner, no lançamento do programa sária muita fiscalização”, afirma Paula Montagner, analista da Fundação Seade. ESCOLHA POLÍTICA O governo, óbvio, defende a iniciativa. Remígio Todeschini, coordenador do projeto e secretário de Políticas Públicas de Emprego do Ministério do Trabalho e Emprego, acredita que o programa evita o efeito substituição, pois normalmente o empresário contrata o jovem com escolaridade maior ou de nível universitário. No caso do Primeiro Emprego, os beneficiados têm pouco tempo de escola. Dadas as dificuldades de emprego de adolescentes e pós-ado-

lescentes, o Primeiro Emprego privilegia as classes de menor poder aquisitivo. Além disso, dá absoluta prioridade aos jovens com renda familiar per capita de até meio salário mínimo, e escolaridade inferior ao ensino médio completo. Dessa forma, o governo opta pela capacitação da mão-de-obra por meio de experiência, em vez de investir em educação. Paula considera o programa uma escolha política. “Sua função social é mais importante do que a econômica, de criar empregos”, destaca. Segundo Marinho, o programa, de certa forma, impede que o crime organizado absorva esses jovens. (LB)


Ano I ■ Número 25 ■ Segundo Caderno

Ocupação militar estadunidense da América Latina

MÉXICO CUBA

PORTO RICO HONDURAS ARUBA GUATEMALA CURAÇAO PANAMÁ COLÔMBIA

EQUADOR

Bases e zonas de exercícios militares

PERU

BRASIL BOLÍVIA

Linhas de deslocamento estratégico e raios de ação Base militar de Alcântara e operações pretendidas pelos EUA

ARGENTINA

Bases e operações em processo de implantação FONTE: Ana Esther Ceceña

Bush reforça tropas na AL Paulo Pereira Lima, da Redação

D

isposto a fincar definitivamente a bandeira dos Estados Unidos em alguns países da América Latina e defender os interesses de transnacionais, George W. Bush vem estreitando o cerco sobre governos subservientes. Dia 19, enquanto os holofotes se voltavam para o atentado contra a sede das Nações Unidas no Iraque, ele enviou à Colômbia seu secretário de Defesa, Donald Rumsfeld. Em encontro com o presidente Álvaro Uribe - fiel servidor e principal aliado dos EUA na América Latina - Rumsfeld anunciou a retomada da cooperação militar para os vôos de controle aéreo antidrogas. Batizado de Airbridge Denial (Interceptação de vôos), o programa vai receber um incentivo de 50 milhões de dólares, que vão se somar aos 2 bilhões de dólares em ajuda militar injetados pelos Estados Unidos no Plano Colômbia nos últimos anos. Implementado em 1995 no Peru e na Colômbia, estava suspenso desde abril de 2001, após a derrubada de um avião civil por engano, provocando a morte de uma missionária estadunidense e de sua filha. Além dos vôos de interceptação, os EUA financiam as fumigações de plantações de coca, cujos agentes químicos já contaminaram mais de 1 milhão de hectares de floresta e mutilaram camponses e indígenas. Os militares estadunidenses somam cerca de 400 no país.

France Press

Os Estados Unidos voltam a fazer pressão sobre países latino-americanos para impor a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) via militarização do continente e pretendem expandir para outros países o modelo sanguinário do Plano Colômbia; em outubro, tropas estadunidenses realizam manobras nas províncias argentinas de Mendoza e San Luis

INTERNACIONAL

BRASILDEFATO

TRANSNACIONAIS Rumsfeld foi precedido de outros dois emissários de Bush, o general Richard B. Myers, comandante do Estado Maior das Forças Armadas, e o secretário de Comércio, Robert Zoellick. O general apresentou a Uribe alguns planos para intensificar a presença estadunidense no país e o programa das futuras ações da “guerra contra as drogas e o terrorismo”. De imediato ficou acertado que, usando parte do dinheiro originalmente programado para o combate ao narcotráfico, os EUA intensificarão o treinamento de soldados colombianos

■ Exército colombiano exibe “troféus” após combate com supostos guerrilheiros em Carimagua para combater os “terroristas” - como os estadunidenses e seus colaboradores colombianos se referem aos grupos nacionalistas e ativistas dos direitos humanos que atuam no país. Na avaliação do economista colombiano Héctor Mondragón, a visita dos representantes do alto escalão do governo Bush é mais uma prova de que o principal objetivo dos planos militares dos EUA na região é impor a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). “Eles vieram tratar de um acordo bilateral com os Estados Unidos. A idéia é enfraquecer as tentativas dos governos sul-americanos que procuram reforçar o Mercosul. Com acordos bilaterais como esse, os países não terão tanto poder de fogo na hora de negociar a Alca”, diz. Para Mondragón, a relação entre intervenção militar e negócios tornouse ainda mais evidente com a visita de Rumsfeld, homem de estreitas relações com duas empresas, a Searle e a Gulf Stream Aerospace, que hoje fazem parte de duas transnacionais envolvidas até o pescoço com o Plano Colômbia: a Monsanto (fabricante do glifosato usado nas fumigações contra as plantações de coca) e a General Dynamics (fabricante dos helicópteros Black Hawk, utilizados pelos militares colombianos). “Além disso, a Monsanto está sendo diretamente be-

neficiada com a abertura aos transgênicos por parte do governo de Uribe”, afirma o economista. De Bogotá, Rumsfeld seguiu para Honduras, em mais uma visita em nome da “estabilidade regional”. Leia-se: deter as lutas populares contra o neoliberalismo e a Alca. Após encontro com o presidente Ricardo Maduro Joest, dia 20, disse a jornalistas que seu país e a América Latina sofrem “um problema terrível causado pelo terrorismo e o narcotráfico”. Anunciou que o governo Bush irá discutir, em breve, o realinhamento das tropas estadunidenses no continente.“Precisamos decidir como vamos nos arranjar com os países amantes da paz aqui da região”, afirmou. GUATEMALA CEDE As ameaças de Rumsfeld surtiram efeito imediato na vizinha Guatemala. Um dia depois, o Congresso guatemalteco autorizou o envio de tropas dos Estados Unidos ao país, como meio de também colaborar com a “luta ao narcotráfico e ao terrorismo”. Aprovado com maioria absoluta, o decreto 39/2003, enviado pelo presidente Alfonso Portillo, prevê o d–ireito dos EUA de sobrevoar com aviões militares o espaço aéreo e de navegar nas águas territoriais guatemaltecas com a possibilidade de inter-

ceptar e parar qualquer embarcação considerada suspeita. Esse acordo segue outro assinado pelos dois países, o “Novos Horizontes”, segundo o qual militares estadunidenses poderão construir bases militares em ter r itór io guatemalteco de 1º de março a 1º de agosto de 2004, de acordo com a agência de notícias Misna. Analistas e ativistas dos direitos humanos consideram o acordo uma violação da soberania nacional. Para a Nobel da Paz de 1992, Rigoberta Menchú, a decisão do Congresso faz parte de “uma psicologia do terror” e pretende favorecer a candidatura do ex-ditador Efraín Ríos Montt. “Na Guatemala opera uma máfia corporativa que seqüestrou o Estado e ameaça a democracia e as eleições presidenciais de novembro”, disse a líder guatemalteca. Na verdade, os interesses dos Estados Unidos pela Guatemala se explicam, sobretudo, porque pode servir de base para futuros ataques ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que opera no sul do México e, duas semanas atrás, voltou à tona no cenário político mexicano. “O EZLN está criando um modelo de poder e administração popular que contradiz a infraestrutura da Alca e com a própria Alca”, conclui Mandragón.

Brasil de Fato – Como avalia a recente visita de representantes do primeiro escalão do governo Bush à Colômbia? Héctor Mondragón – É um recado às oligarquias da Bolívia, Venezuela, Peru, Equador, Argentina e Brasil, países afetados por uma grave crise e com a atuação de movimentos sociais fortes. Quer dizer que a repressão que vem sendo executada pelo governo colombiano tem a aprovação de Washington e pode servir de modelo para o que eles chamam de “estabilidade na região”.

■ Mondragón: recado às oligarquias Sob o pretexto de deter a guerrilha, Uribe está exterminando sindicalistas, líderes camponeses e a oposição política. Esse modelo de liquidação paramilitar está sendo já exportado para Venezuela, onde foram assassinados 120 camponeses que lutavam pela reforma agrária, para o Equador e Panamá. Trata-se de uma nova versão da Operação Condor.

BF – Uma experiência que vem sendo forjada dentro do Plano Colômbia? Mondragón – A visita de Donald Rumsfeld (secretário de Defesa dos EUA) acontece quando o governo de Uribe prepara um acordo com os paramilitares, que prevê o indulto de seus financiadores e verdadeiros chefes. Isso per-

mitirá patentear um modelo de terrorismo de Estado e de poder econômico impunes. A novidade dessa visita é a manobra utilizada para integrar também o governo equatoriano no Plano Colômbia. Um dia após a visita de Rumsfeld, Uribe esteve no Equador para pedir a adesão de Lucio Gutiérrez. Ele enfatizou que países vizinhos estariam amparando o terrorismo.

BF – Uribe tem sugerido publicamente uma ligação entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Mondragón – Os ataques a Chávez não cessam. Todos os dias, a imprensa colombiana fabrica supostas relações entre ele e as Farc. Essa montagem e os discursos de Uribe indicam que essa nova etapa do Plano Colômbia consiste na pressão sobre os governos vizinhos para se submeterem à política imperialista dos EUA, sob a ameaça tácita ou explícita de sofrerem as conseqüências de serem alvos do Plano Colômbia. (PPL)

Zanini H., de Buenos Aires Dia 8 de outubro, tropas militares dos Estados Unidos desembarcam nas províncias argentinas de Mendoza e San Luis para a implantação do “Exercício Águia III”. A operação contará com 80 aviões de combate, 1.200 homens e mais de 200 veículos de transporte terrestre estadunidenses. Participarão soldados estadunidenses e argentinos e observadores do Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia. Todos estarão sob comando militar dos EUA. Serão exercícios conjuntos e simulados. O objetivo será “desenvolver métodos e estratégias” na luta contra o terrorismo e a contrainsurgência popular. A base do “Bem”, que lutará contra os “terroristas”, será instalada no aeroporto de El Plumerillon, em Mendoza (a 1.600 quilômetros de Buenos Aires) e a do “Mal” em Villa Reynolds, província de San Luis. Nessa segunda base estará um suposto “comando insurgente”, cuja derrota e aniquilação será o objetivo da operação. Outras operações dessas já fo-

ram realizadas em território argentino e chileno. Todas elas tiveram por objetivo subordinar as Forças Armadas latino-americanas ao comando militar imperialista, embora sejam tratadas como “exercícios conjuntos de treinamento”. A Casa Branca tem-se mostrado por diversas vezes preocupada com os focos de insurgência existentes nesses países, além do forte interesse na região da Tríplice Fronteira Brasil-Argentina-Paraguai, que vem sendo acusada - tese jamais comprovada - de abrigar células terroristas ligadas à organização Al-Qaeda. O governo estadunidense ainda impõe ao governo argentino uma condição: seus homens devem ter imunidade total, não podendo ser detidos ou julgados no país por crimes eventualmente praticados durante a sua permanência. Ao mesmo tempo, o governo argentino enviou ao Congresso um projeto de lei que autoriza a entrada e a permanência de tropas estrangeiras de maneira permanente. A operação “Águia III”. é considerada a maior operação militar realizada em território latino-americano.

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

Nos anos 70, governantes militares do Cone Sul (Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Urugauai) fizeram um acordo espúr io, chamado de Operação Condor, para eliminar asilados estrangeiros opositores dos regimes. Para o economista colombiano e assessor do Conselho Nacional Camponês, Héctor Mondragón, os Estados Unidos estão patrocinando algo parecido na América Latina. O ponto de partida é o Plano Colômbia; os mentores: o presidentes George W. Bush e Álvaro Uribe.

Maria Luisa Mendonça

Ativista denuncia nova Operação Condor Tropas estadunidenses ocupam o Cone Sul

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INTEGRAÇÃO

Lula articula unidade da América do Sul Marcelo Casal Jr./ABR)

AMÉRICA LATINA

Em visita ao Peru e à Venezuela, o presidente Lula estimulou a integração da América do Sul e defendeu uma nova ordem mundial; Hugo Chávez, em encontro com Kirchner, propôs um caminho soberano para os países latino-americanos, em relação aos países do Norte

Jorge Pereira Filho, da Redação

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presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu, em visita à Venezuela e ao Peru, a integração da América do Sul para que os países da região não sejam sufocados pela Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A primeira visita presidencial de Lula aos dois integrantes da Comunidade Andina das Nações (CAN) foi marcada por discursos em favor de uma nova ordem mundial. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, mostrou entusiasmo. “Ouvindo Lula falar, conhecendoo como o conhecemos, e sendo o presidente do Brasil, posso dizer que agora, sim, chegou o grande dia da Amér ica do Sul”, disse CháSimón Bolívar – vez, dia 26. O Lutador venezuelano que liderou processos líder venezueda independência de lano se referiu a cinco países da uma frase de América do Sul: Simón Bolívar, Bolívia, Colômbia, que há quase Equador, Peru e Venezuela. O sonho 180 anos disse: de Bolívar era a “o grande dia integração da da América do América Latina. Sul ainda não chegou”. Um dia antes da visita de Lula à Venezuela, Chávez esteve com o presidente argentino Néstor Kirchner e pediu o fim do Fundo Monetário Internacional (FMI) (veja reportagem abaixo). Lula e Chávez prestaram homenagem a Simón Bolívar e, em declaração conjunta, classificaram de desumana a relação comercial dos países ricos com os países pobres. O presidente brasileiro afirmou que “as nações mais ricas querem ficar mais r icas, enquando as mais pobres empobrecem ainda mais”.

■ Lula e Toledo defendem a criação da comunidade sul-americana No encontro, Hugo Chávez expôs a Lula os objetivos da proposta de construção da Alternativa Bolivariana para América Latina (Alba), uma integração que centraria sua atenção na luta contra a pobreza e a exclusão social e aprofundaria a interação entre os países a partir de uma agenda econômica e social soberana. Os dois líderes atribuíram máxima prioridade ao combate à pobreza e se propuseram a executar ações de integração no âmbito bilateral e internacional. Os governos, entre outros pontos, acertaram também

programas de intercâmbio e cooperação para políticas públicas que garantam justiça social, como o direito universal à saúde já existente no Brasil, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Foi assinado um acordo para aprofundar a relação entre os dois países, e com as nações andinas. “Buscamos uma nova ordem internacional mais equilibrada e justa”, disse Lula. POVOS SUL-AMERICANOS Um dia antes da visita à Venezuela, Lula encontrou-se, em Lima, com o presidente peruano,

Alejandro Toledo, conhecido por ter afinidade com as políticas do governo dos Estados Unidos. Na véspera do encontro, o chanceler peruano, Allan Wagner, afirmara que a prioridade do comércio de seu país era com os EUA. Mesmo assim, Lula e Toledo defenderam a criação de uma comunidade sul-americana, que poderia ter início com a conclusão do processo de integração dos países do CAN (Bolívia, Colômbia, Peru e Venezuela) com os do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai). “Estou convencido de que, quanto mais próximos estivermos, mais chances teremos de fazer grandes negociações, sobretudo de quebrar barreiras protecionistas”, afirmou Lula, em discurso a empresários brasileiros e peruanos. Para o presidente brasileiro, o Brasil não quer uma posição hegemônica na região, mas parcerias de fortalecimento.“Engana-se quem pensa que conseguirá vantagem negociando sozinho com a parte rica do mundo”, disse Lula.

to oficial. Não há uma Alca possível, mesmo se for light. Queremos que o governo vote o projeto do senador Saturnino Braga( PT-RJ), que prevê a realização desse plebiscito”, afirma Basségio. O senador João Capiberibe (PSB-AP) afirmou que apóia a realização de um plebiscito para definir a postura do Brasil. “Seria importantíssimo porque se trata de uma decisão que mexe com a vida de todos. O plebiscito é muito justo, pois decidiríamos se queremos ser estadunidenses ou brasileiros”, analisou Capiberibe. Para ele, seria necessário ter espaços de discussão na televisão e no rádio para informar o povo e expor as diversas opiniões. Apesar de defender a permanência do Brasil nas negociações, Capiberibe não acredita que os países cheguem a um entendimento em relação à Alca.“Não vamos chegar a uma Alca light, mas a uma Alca ultra-light, uma espécie de carta de intenções entre os países”, projetou o senador. Para Capiberibe, o presidente Lula não teria adotados dois discursos nas viagens internacionais. Em relação ao compromisso assinado com Bush, de concluir as negociações em 2005, o senador afirmou que não há nada decidido.“O texto diz que vamos concluir de forma satisfatória as negociações. Para mim, quer dizer que será uma carta de intenções”, explica Capiberibe. Posição diferente, no entanto, manifestou o secretário de Relações Internacionais do Brasil, Marco Aurélio Garcia. Durante seminário internacional no Rio de Janeiro, dia 22, Garcia afirmou que se os Estados Unidos não estiverem dispostos a abrir mão da discussão do antidumping, dos subsídios agrícolas, o Brasil chegaria a um acordo diluído, “uma espécie de Alca light”. (Com agências internacionais)

DISCURSO E COERÊNCIA Embora com declarações mais moderadas do que as de Chávez e de Kirchner, Lula mostrou uma posição crítica em relação à Alca e aos países ricos. Uma postura diferente da adotada recentemente nas visitas ao presidente dos Estados Unidos, George Bush, e ao líder britânico, Tony Blair.“Dá a impressão que, no império, a conversa é uma e no continente latino-americano, é outra. Esperamos uma posição mais firme e constante do governo”, avalia Luiz Basségio, integrante da coordenação da Campanha Nacional Contra a Alca. Para Basségio, há maior possibilidade de resistência ao império. “Defendemos o protagonismo dos povos e a realização de um plebisci-

Dívida externa condena povos à pobreza

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

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Na primeira visita oficial do presidente venezuelano Hugo Chávez à Argentina, o discurso em favor da necessidade de os países latino-americanas trilharem um caminho soberano em relação aos países do Norte ganhou reforço. Chávez e o presidente argentino, Néstor Kirckner, criticaram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e pediram a redução da dívida externa. “Não se pode continuar condenando nossos povos à pobreza e à marginalização para simular o pagamento de uma dívida impagável”, declarou Kirchner, durante ato oficial. O presidente venezuelano, que um dia antes havia pedido o fim do FMI, apoiou:“Estamos sendo saqueados há 500 anos e pretendem continuar nos saqueando”. Os dois líderes assinaram acordos de cooperação nas áreas de energia, agricultura, alimentação, aeronáutica e medicina nuclear. Segundo Chávez, o aprofundamento do diálogo com a Argentina significa o início da construção de um projeto de integração. Ambos os presidentes criticaram o modelo neoliberal. “O fenômeno da globalização parece querer condenar o nosso povo ao esquecimento e à marginalização.As ironias desta civilização nos mostram que, enquanto defendem a existência de mercados livres na competição internacional, os países centrais recusam nossas ofertas de aber-

Alí Burafi/AFP

Da Redação

■ Os presidentes Chávez e Kirchner criticaram o FMI e pediram a redução da dívida externa tura, para proteger seus produtores”, avaliou Kirchner. Para o presidente argentino, o endividamento das nações no sistema financeiro internacional se transformou numa âncora que as imobiliza. LEMBRANDO BOLÍVAR As declarações dos presidentes fortaleceram a oposição aos projetos imperialistas. Kirchner surpreendeu, principalmente, ao

criticar a dívida externa, pois o país platino leva adiante uma trabalhosa negociação com o FMI para obter um acordo de médio prazo. Em seu discurso, Chávez citou San Martín e Simón Bolívar, líderes da independência da Argentina e Venezuela, respectivamente, e defensores da unificação da América Latina. O ex-presidente argentino Juan Domin-

go Péron também foi lembrado. “Ele disse que o século 21 abraçaria os latino-americanos unidos ou dominados. E aqui estamos, entramos no século 21 dominados, com modelos econômicos colonialistas e sob a ameaça de sofrer um colonialismo ainda maior, com sociedades divididas e fragmentadas, minorias pr ivileg iadas e uma maior ia empobrecida”, analisou Chávez.

Piracicaba sedia encontro contra a Alca Ativistas, intelectuais, advogados e militantes de movimentos sociais da América Latina se encontrarão, de 29 a 31 de agosto, em Piracicaba, São Paulo, para o Encontro Continental contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Participarão das plenárias intelectuais e líderes políticos de renome como o brasileiro Wilson Cano, o filipino Walden Bello, o colombiano Héctor Mondragón, o cubano Guillermo Molina e a estadunidense Elizabeth Drake. Serão discutidas questões como soberania e constitucionalidade, governabilidade e democracia, mundo do trabalho, crescimento econômico, acesso a mercados, meio ambiente, agricultura, direitos humanos e solução de conflitos. Haverá também um testemunho de Samuel Araújo, do sindicato dos trabalhadores rurais de Alcântara, sobre os remanescentes quilombolas e a base de Alcântara. O evento está sendo organizado por diversas entidades sociais como a Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal (Fenajufe), a Rede Social de Justiça, a Campanha Jubileu Sul Américas, o Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Grito dos Excluídos.Também apóiam o encontro a prefeitura de Piracicaba e a Universidade Metodista de Piracicaba. Mais informações: www.unimep.br/alca, alca@unimep.br,(19) 3124-1969. (JPF)


IMPERIALISMO

José Huesca/AFP

Representante do Unicef no Iraque denuncia miséria e abandono Leonardo Stamill, de São Paulo (SP)

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arel De Rooy deixou seu escritório em Bagdá na quarta-feira, dia 6 de agosto. O representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Iraque viajou para o Recife, onde passaria suas férias ao lado da família. De Rooy deixou a equipe de 300 funcionários sob o comando do amigo Chris Klein-Beekman. Na tarde do dia 19, Klein-Beekman participava de uma reunião com chefes de outros departamentos da ONU no Iraque, sobre o programa Petróleo por Comida, quando a sede das Nações Unidas foi atingida por um caminhão-bomba. O atentado matou 20 pessoas, entre elas Chris Klein-Beekman e o alto comissário da ONU no Iraque, Sérgio Vieira de Mello. “O Unicef está no Iraque desde 1993. É a primeira vez que a instituição recebe um ataque de tamanha proporção”, disse De Rooy, enquanto se preparava para retornar a Bagdá. Na opinião dele, apesar de inédito, o atentado não pode ser considerado como totalmente imprevisível, por causa da proximidade entre a ONU e os Estados Unidos. Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância no Iraque fala sobre a situação de miséria vivida pelos iraquianos, agravada após a invasão anglo-estadunidense, e sobre a difícil missão de reconstruir um país ocupado por mais de 200 mil militares.

BF – O alto-comissário da ONU no Iraque, Sérgio Vieira de Mello, disse que a construção da paz no país depende da devolução total da administração pública aos iraquianos e da retirada das forças de ocupação. De que maneira a presença do Exército dos Estados Unidos prejudica o trabalho do Unicef e das Nações Unidas como um todo? De Rooy – Esta é uma questão muito complexa. É preciso compreender que, para a maioria dos iraquianos, a derrubada do regime de Sadam Hussein é boa notícia. Por outro lado, a maioria da população do Iraque não considera como bem-

Carel De Rooy nasceu na Holanda em 5 de janeiro de 1952.Veio para o Brasil ainda muito jovem e se formou em geologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especializou-se em águas subterrâneas na Europa e ingressou no Fundo das Nações Unidas para a Infância em 1983, como consultor de recursos hídricos. Já em 1984 foi enviado como oficial de projetos para a Nigéria, onde ficou por 5 anos. Em 1989 foi transferido para a sede da organização em Nova Iorque e em 1993 comandou projetos do Unicef na Costa do Marfim. Em 1997 foi novamente transferido, desta vez para a Colômbia, permanecendo até o início de 2001. Em junho desse mesmo ano foi nomeado chefe da missão do Unicef no Iraque. tempo em que o aiatolá Khomeini chegou ao poder no Irã. Em 1980, o Iraque foi empurrado à guerra contra o Irã, para conter o que se chamava na época de “a ameaça xiita”. Desde então o país entrou em um período de oito anos de guerra e isso arrasou o Iraque já em meados da década de 1980.

vinda a presença de uma força ocupacional.

pação norte-estadunidense é um processo transitório.

BF – Existe algum tipo de ingerência das forças estadunidenses sobre as atividades da ONU? De Rooy – Há uma tentativa, obviamente, de coordenar as ações, mas nós trabalhamos de maneira totalmente independente. Nós temos um relacionamento de muitos anos com a administração local, com os iraquianos e, as vezes, há concordância nas ações, outras vezes não.

BF – Apesar de a invasão do Iraque ocupar boa parte do noticiário internacional no Brasil, sabemos pouco sobre a situação do povo iraquiano. De Rooy – A situação social do país é muito precária. Antes da guerra já era ruim, mas agora está muito pior. Precisamos entender um pouco a história do Iraque para compreendermos a situação atual. O país foi um dos primeiros no mundo árabe a nacionalizar a indústria do petróleo em 1972. Entre 1973 e 1984, o Iraque experimentou uma década de alto crescimento econômico e social. Em 1979, Sadam Hussein, que já era vice-presidente desde 1968, assumiu a presidência, ao mesmo

BF – Esta relação chega a ser tensa? De Rooy – (após pequena pausa) ...Não, não diria isso não. Mas não há acordo sempre. A posição das Nações Unidas é muito independente. Nós entendemos que a ocu-

BF – Quando o senhor diz que o Iraque foi empurrado à guerra contra o Irã, está se referindo ao incentivo dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan? De Rooy – O que aconteceu é que os Estados Unidos tinham medo que os xiitas se apoderassem de todo o petróleo do Golfo Pérsico e empurraram o Iraque a fazer a guerra contra o Irã. Houve apoio de todos os países do Golfo, da Arábia Saudita também, e o lamentável é que o Iraque se manteve nesta guerra por oito anos. Com isso a economia e as condições sociais se deterioraram de maneira muito drástica. Depois houve uma guerra civil contra os curdos no Norte do Iraque, entre 1988 e 1990 e, em seguida, aconteceu a guerra ou invasão do Kuait, que está vinculada ao não pagamento de dívidas com relação à guerra contra o Irã, pelo menos na interpretação da administração de Saddam Hussein.

Além dos resultados imediatos da Guerra do Golfo, o povo iraquiano sofreu 12 anos de sanções econômicas que acabaram de arrasar o país. Sabemos, por exemplo, que a taxa de mortalidade infantil, em 1999, era de 131 por mil, o que representa um aumento de 160% com relação à taxa de 1989. É o maior incremento registrado em todo o mundo. A taxa de alfabetização caiu drasticamente, principalmente entre as mulheres, e a desnutrição crônica de crianças com menos de 5 anos, que estava em torno de 20% antes da invasão do Iraque, hoje certamente está muito pior.

BF – Além das mortes de 20 funcionários da ONU, e entre elas a do alto comissário Sérgio Vieira de Melo, quais são as conseqüências para a continuidade do trabalho humanitário no Iraque? De Rooy – É provável que haja uma diminuição do pessoal internacional em Bagdá; não será de forma muito significativa, mas é preciso que se diminua a vulnerabilidade dos funcionários da ONU no Iraque. Hoje o Unicef tem 300 funcionários, dos quais 50 são estrangeiros, 20 deles em Bagdá. Cortaremos apenas aqueles postos que não são absolutamente necessários.

ONU condena mercenários Thalif Deen, de Nova York “Apesar das declarações de condenação aos mercenários, o fato é que estão aumentando”, lamentou Enrique Bernales Ballesteros, assessor da ONU. Em relatório para a próxima sessão da Assembléia Geral, em meados de setembro, Ballesteros destaca o surgimento de empresas que recrutam mercenários. A razão é que “os instrumentos jurídicos internacionais que condenam essa atividade são imperfeitos e incompletos”. A advertência chega no momento em que os Estados Unidos oferecem 25 milhões de dólares para a captura ou assassinato de Sadam Hussein. Os EUA anunciaram que pagariam 30 milhões de dólares ao informante do paradeiro dos filhos de Sadam, Qusay e Uday, assassinados dia 22 de julho. NEGÓCIO NA ÁFRICA No final de julho, se disse que grupos rebeldes da Libéria queriam contratar a empresa anglo-estadunidense Northbridge Services Group, para capturar o presidente Charles Taylor e entregá-lo a um tribunal especial em Serra Leoa. Taylor entregou o poder e partiu para o exílio na Nigéria, que lhe ofereceu asilo. Ballesteros propôs que as empresas que oferecem se-

■ Mercenário estadunidense em Freetown, capital da Serra Leoa gurança em nível internacional sejam regulamentadas e sujeitas a supervisão. A contratação de mercenários que cometem atividades ilícitas, definidas pela Convenção Internacional contra o Recrutamento, Uso, Financiamento e Treinamento de Mercenários (que entrou em vigor em 2001, mas não foi referendada por nenhum dos países membros do Conselho de Segurança da ONU e só foi assi-

nada por 24 dos 191 países da Organização), viola o direito internacional. “Tantos os mercenários quanto as agências que os contratam são passíveis de processo”, lembrou. Ele citou em especial o caso da Executive Outcomes, companhia de segurança sul-africana, que ofereceu treinamento militar a Serra Leoa,Angola, Libéria e Papua-Nova Guiné. A ONU criticou os gover-

nos de Angola e Serra Leoa, que contrataram mercenários para protegerem minas de ouro e diamantes em troca de uma participação nos ganhos. Na África, uma das causas do aumento dos mercenários pode ser o desemprego, “mas, certamente, essa não é uma das razões do aumento de mercenários na Europa”, ressaltou o relator especial. (IPS/ Envolverde)

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

BF – Como é o relacionamento entre as equipes das Nações Unidas e a comunidade iraquiana? Alguma vez houve algum tipo de incidente? De Rooy – Nós sempre tivemos um relacionamento muito bom, frutífero, com as lideranças ministeriais e da administração pública, mesmo depois da guerra. Tivemos algumas experiências mais hostis em Mossul, no norte do Iraque, quando alguns grupos atacaram equipes do programa mundial de alimentação, mas ninguém chegou a ficar ferido. O ataque contra a sede da ONU em Bagdá é, sem dúvida, o incidente mais grave que aconteceu no país.

Quem é

Jean-Philippe Ksiazek/AFP

Brasil de Fato – A incapacidade da ONU em barrar o avanço estadunidense sobre o Iraque pode ser apontada como um dos fatores que motivaram o atentado? Carel De Rooy - Na minha opinião, o ataque teve como alvo o processo de estabilização do Iraque. As Nações Unidas jogam um papel que pode ser confundido com o papel das forças de coalizão, lideradas pelos Estados Unidos, de estabilização da vida da população. Nosso trabalho humanitário e social tende a normalizar a vida cotidiana do povo e do país. O objetivo do atentado parece ser uma tentativa de expulsar a ONU do Iraque, o que, evidentemente, não vai acontecer. Nós temos uma longa história no país. O Unicef está no Iraque há dez anos e deverá permanecer por muito mais tempo.

INTERNACIONAL

Diz Carel De Rooy, representante do Unicef no Iraque: “A situação social do país é muito precária. Antes da guerra já era ruim, mas agora está muito pior.” Nascido na Holanda e radicado no Brasil, ele veio passar férias e deu entrevista exclusiva ao Brasil de Fato

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ÁFRICA AFRICA

Ruanda escolhe presidente pela primeira vez na história Marco Longari/AFP

INTERNACIONAL

Os ruandeses experimentaram um voto inédito, num pleito presidencial multipartidário desde 1962; o país, marcado pelo genocídio de um milhão de pessoas da etnia tutsi e hutus moderados pelo regime fascista hutu em 1994, tenta firmar um regime democrático

Marilene Felinto, da Redação

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Localização: África Oriental Nacionalidade: ruandesa Principais cidades: Kigali (capital), Ruhengeri, Butare Línguas: quiniaruanda, inglês, francês (oficiais) Divisão política: 12 prefeituras Regime político: república presidencialista População: 8,1 milhões (2002) Moeda: franco ruandês Religiões: católica, protestante, animista, islâmica Hora Local: + 5h

Exploração belga gerou genocídio

■ Simpatizantes do presidente Paul Kagame, candidato à reeleição, pelas ruas de Kigali, capital de Ruanda: dia 29 de setembro, haverá eleições parlamentares, também pela primeira vez te da Inglaterra. Cerca de 3,9 milhões de ruandeses (de um total de 8,1 milhões de habitantes) estavam aptos a votar na eleição presidencial do dia 25 último. Observadores internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), da União Européia (EU), da União Africana (UA), de várias organizações internacionais de direitos humanos e de associações da sociedade civil ruandesa foram encarregados de zelar pela boa condução e transparência do pleito. No dia 29 de setembro, haverá eleições parlamentares, quando os ruandeses escolherão também pela primeira vez seus representantes políticos. As duas eleições vão pôr fim a nove anos de um governo

de transição, no poder desde julho de 1994. Em maio deste ano, os ruandeses aprovaram em referendo a nova Constituição do país, regulamentando a atividade política, consagrando o sistema multipartidário e proibindo que os partidos políticos “se identifiquem com uma raça, etnia, tribo, clã, re-

ligião, sexo ou qualquer outro critério que possa servir de base para a discriminação”. Atualmente apenas a Tanzânia e o Quênia são considerados países de regime democrático na região dos Grandes Lagos da África, onde estão ainda Burundi, República Democrática do Congo e Uganda.

Mar Mediterrâneo

Gianluigi Guercia/AFP

ILEGALIDADE A candidatura de seu principal oponente, o ex-primeiro-ministro Faustin Twagiramungu, único capaz de lhe fazer frente, foi lançada de forma independente, pois Kagame pôs na ilegalidade recentemente o Movimento Democrático Republicano (MDR), partido de Twagiramungu, o segundo maior do país, acusando seus membros de incentivar os conflitos étnicos. Twagiramungu, tido como um hutu moderado, que perdeu 32 parentes durante o genocídio, nega as acusações. A Anistia Internacional vinha denunciando que o material da campanha eleitoral de Twagiramungu estava sendo confiscado pela polícia, que também perseguiria seus partidários. Apesar de freqüentes denúncias de violação aos direitos humanos nos últimos anos, Paul Kagame é o preferido dos investidores dos países do Ocidente, especialmen-

BRASIL DE FATO

De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

primeira eleição presidencial pluripartidária da história de Ruanda aconteceu dia 25 de agosto. Em 1998, o país elegeu o expresidente Habyarimana, que concorreu como candidato único na ocasião. O país da África Oriental, localizado na bela região dos Grandes Lagos africanos, teve seu passado recente marcado por um dos mais terríveis genocídios de todos os tempos. Em 1994, o governo da etnia hutu (então no poder) matou mais de um milhão de tutsis e hutus moderados, num período de três meses. O grupo de oposição política, a Frente Patriótica Ruandesa (FPR), composto majoritariamente por tutsis e hutus moderados, lançou no mesmo ano uma resposta militar ao massacre e tomou o poder. O atual presidente, Paul Kagame, é candidato à reeleição pela FPR. No ano 2000, com a renúncia do então presidente Pasteur Bizimungu, o vice-presidente Paul Kagame foi indicado pelo Legislativo a assumir o cargo - seria o primeiro tutsi a presidir o país desde a independência em relação à Bélgica, em 1962. Os tutsis chegaram à reg ião de Ruanda por volta do século 15. Eram pastores vindos da Etiópia. Submeteram a seu domínio os hutus, povo bantu da bacia do Congo, que ali já se encontravam em grande número. Paul Kagame tem sido acusado por organizações internacionais de direitos humanos e pela imprensa africana de usar a lembrança do genocídio para intimidar e coagir a população a votar em seu nome.

Ruanda

UGANDA Campala

QUÊNIA LAGO VITÓRIA RUANDA Nairóbi BURUNDI Kigali Kinshasa Bujumbura TANZÂNIA REP. DEM. Dodoma CONGO

OCEANO ATLÂNTICO

OCEANO ÍNDICO

■ Fila para votar em Shorongi, Ruanda, dia 25 de agosto

Entre os séculos 13 e 14, pastores guerreiros da etnia tutsi, originários da Etiópia, invadiram a região de Ruanda e Burundi, dominando os povos ali estabelecidos, entre os quais os agricultores da etnia hutu, que constituíam 83% da população. Dos hutus, os tutsis adotam o idioma, o quiniaruanda. Os europeus invadiram a região no século 19. Em 1899, a Alemanha declarou o território protetorado seu. Com a derrota dos alemães na Primeira Guerra Mundial, os belgas ocuparam Ruanda. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, em 1923, o mandato da Bélgica sobre os territórios dos atuais Burundi e Ruanda. Os belgas, um dos colonizadores europeus mais sanguinários, reforçaram o papel hegemônico dos tutsis, dotando-os de poder político, econômico e militar. Em 1950, e durante toda essa década, favoreceram a formação de uma elite hutu, aguçando a antiga rivalidade entre os povos locais - os tutsis e os hutus para melhor dominá-los. Estimularam os hutus a contestar a estrutura fundiária favorável aos tutsis. Unidos em um movimento republicano, os hutus se revoltaram em 1959 e depuseram o rei tutsi KigeziV. Os belgas logo perderam o controle da situação. Mais de cem mil tutsis buscaram refúgio nos países vizinhos. Proclamada a república, um plebiscito supervisionado pela ONU confirmou em 1961 a adoção do regime republicano sob administração dos hutus. Em julho de 1962, após rejeitar a união com o vizinho Burundi, onde persistia o predomínio dos tutsis, Ruanda obtém a independência. Os tutsis, que até então dominavam o país, passaram a ser perseguidos e fugiram para os países vizinhos, de onde passaram a lançar uma série de ataques ao território ruandês. O genocídio de 1994, em que civis hutus instigados por partidários do governo fascista de Juvénal Habyarimana (morto num atentado em abril daquele ano) assassinaram mais de um milhão de tutsis e hutus moderados, tem sua origem nesse pano de fundo histórico. A ONU e os Estados Unidos têm sido acusados por organizações internacionais de direitos humanos de terem feito vistas grossas para o massacre de Ruanda. A demora em intervir foi a responsável pelo inédito número de mortos em apenas três meses. (MF)


IMPERIALISMO

AMBIENTE

A transnacional suiça lidera a comercialização mundial de água; nos países pobres, aproveitou-se da falta de água potável; no Brasil, já danificou o sistema de fontes da região de São Lourenço - onde terá que modificar seus planos de exploração.

Nestlé domina mercado de água potável e danifica fontes brasileiras O

comércio do “ouro azul” está em alta. Mas é crescente o número dos que acreditam que “a água pertence a todos nós”. A seção referente a água, no mais recente relatório comercial da Nestlé, pode ser lida como se lia outrora o Pravda soviético:“excelente aumento de produção” aqui, “saltos impressionantes nos lucros” ali, e, em toda parte, “sucessos estrondosos”. Os Stachanows de Vevey estão no comércio de água e conquistam uma vitória atrás da outra. Dominando 17% do mercado mundial, a transnacional suíça para a produção de alimentos detém a liderança no mercado de água com um movimento de 7,7 bilhões de francos suíços, no ano passado. A empresa tem 77 marcas de água que enchem garrafas de plástico em 107 lugares do mundo. E todos os especialistas são unânimes: o comércio de água está apenas começando. O salto da Nestlé para o Clube dos Grandes da Água não tem nem doze anos. Naquela época, os gerentes da Nestlé compraram a francesa Perrier, que vende água mineral. “Nós sabíamos que a água se tornaria a matéria-prima mais importante do século 21”, diz o porta-voz da empresa, Hans- Jörg Renk ao WoZ. Desde então, a Nestlé compra uma fonte atrás da outra. E também deixou de ser especialista em “água mineral” para tornar-se “ator global no mercado de água”, como se lê num impresso de marketing da empresa. Em outras palavras: continua vendendo com exclusividade águas minerais como Perrier ou San Pellegrino; ao mesmo tempo, porém, torna-se cada vez mais significativo o lucro advindo da água de mesa cotidiana vendida barato em supermercados de países em desenvolvimento e países em transição como Brasil, Índia, Paquistão ou China. “Pure Life “ foi a marca criada para isso. A água captada em diferentes lugares do mundo é primeiramente desmineralizada. Em seguida, é adicionada sempre a mesma composição mineral. Em 2002, a água uniformizada foi introduzida no Uzbesquistão, na Turquia e no Egito. É a água da classe média urbana que não quer se sujeitar à água de torneira clorada ou até parcialmente venenosa. Para Renk, porta-voz da Nestlé, “falta água potável nos centros urbanos do Terceiro Mundo. Nossa água é um artigo de consumo barato. No entanto, estamos conscientes de que nem todos podem comprá-la.” ENTRADA AGRESSIVA A Nestlé começou 1999 com a introdução da “Pure Life” no Paquistão, um mercado para testes. Segundo um relatório do Asian Wall Street Journal, os métodos de comercialização utilizados foram, no mínimo, agressivos. Uma companhia contratada organizou vários seminários sobre o tema “qualidade da água”, dois meses antes do lançamento do produto. Nessa ocasião, representantes oficiais das autoridades do setor de saúde advertiram sobre as centrais municipais de tratamento de água. Além disso, denunciaram diversas águas engarrafadas locais, cuja qualidade seria prejudicial à saúde. Naquele momento, não estava claro que a Nestlé estava por trás da organização desses seminários.

Então a Nestlé iniciou o lançamento da “Pure Life”. Seis meses após a introdução do produto, sua parcela no mercado já perfazia mais de 50%. Com a “Pure Life”, a Nestlé tem agora grande participação também no comércio de água no Terceiro Mundo. Não é bem com aplausos que esse fato é recebido por entidades assistenciais e por organizações político-desenvolvimentistas. A transnacional aproveitou-se desavergonhadamente da falta de água potável limpa, critica Rosmarie Bär, da Cooperativa de Entidades Assistenciais na Suíça. Lara Cataldi, da Declaração de Berna, compara o comércio de água da Nestlé com as táticas do McDonalds. Só que água é imprescindível à vida; hamburguers, não. Some-se a isso o fato de que mais de um bilhão de pessoas não têm

acesso a água limpa. O precário abastecimento com água higienicamente inofensiva é a causa principal da alta taxa de doenças e mortalidade nos países do hemisfério Sul. FONTES PERDIDAS Mas a comercialização de água pela Nestlé encontra oposição crescente também onde a água é captada por bombeamento, como no Brasil: com a compra da firma Perrier, a Nestlé entrou na posse de um Parque de Águas na cidade de São Lourenço (MG). A produção da água mineral foi mantida. Ao mesmo tempo, a Nestlé iniciou, em 1998, a construção de uma nova fábrica muito maior. As perfurações devem ter chegado a 150 m de profundidade para trazer à superfície água de uma outra fonte, rica em ferro. Desde 1999, a

Nestlé produz a “Pure Life” com essa água. A localização da fonte é ideal, entre São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. “Há o risco de, com o tempo, todas as fontes aqui serem privatizadas”, diz Franklin Frederick, consultor ambiental e integrante de uma iniciativa civil local que luta contra a privatização da água. São Lourenço pertence à região do Circuito das Águas, a mais rica em águas minerais diversificadas em todo o planeta. Três dos quatro Parques de Águas ainda pertencem ao Estado. No século 19, foram desenvolvidos ali centros de hidroterapia. Mas a atração desses métodos de cura está em franco retrocesso desde que o Estado suspendeu o apoio a essas iniciativas, nos anos 50. “Cada vez menos pessoas estão informadas

Empresa precisa apresentar um novo plano de exploração em São Lourenço Edilene Lopes, de Belo Horizonte (MG) A transnacional Nestlé, proprietária da Empresa de Águas São Lourenço, tem 60 dias para elaborar um novo Plano de Aproveitamento Econômico das águas minerais do Parque das Águas de São Lourenço, no Sul de Minas Gerais. O prazo foi estipulado pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), que elaborou um laudo

a partir de uma vistoria técnica no parque. A Nestlé responde, no Ministério Público do Estado, a uma ação civil pública, instaurada para apurar denúncias de exploração indevida das águas do parque. A principal denúncia diz respeito à desmineralização da água retirada da Fonte Primavera, que contém alto teor de minerais, para a produção da água desmineralizada, comercializada como “Pure Life”.

O parecer do departamento foi exposto durante audiência pública, realizada dia 22, na cidade de São Lourenço. De acordo com o vereador Cássio Mendes (PT), o DNPM não afirmou que a exploração, por parte da Nestlé, tenha ocasionado danos ambientais. No entanto, o órgão admitiu que a desmineralização total das águas do parque é ilegal, e por isso solicitou que a empresa apresente um novo plano para exploração das águas de São Lourenço.

da força curativa das diferentes fontes”, lamenta Frederick. A região depende do turismo relacionado às fontes e corre o risco de empobrecer. Isso também é confirmado por Stefan Rist, do Centro para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento da Universidade de Berna. Rist visitou a região no ano passado e aconselha Freder ick no desenvolvimeto de conceitos alter nativos. Freder ick acusa a Nestlé de ter causado danos ao sistema de fontes local ao intensificar a extração da água por meio de bombas. Uma das fontes já secou, em outras houve mudança na composição mineral. Além disso, a Nestlé desdenha uma lei brasileira que proíbe a desmineralização de águas minerais. Por esse motivo está correndo um processo contra a Nestlé, o que é confirmado por HansJörg Renk. A Nestlé, entretanto, é da opinião que a água em questão não é água mineral por ser excessivamente turva. Frederick esteve na Suíça, em maio, para aumentar a pressão contra a Nestlé. “Se nós lutarmos apenas no Brasil, não temos chance. Os grandes jornais do meu país não trazem notícias sobre nós, certamente por medo de perder um anunciante de peso”,diz. Frederick teme que, com todo o seu poder, a Nestlé ainda protele por anos o processo. Nem o governo central quer ficar de mal com a multinacional. Afinal de contas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou, no último Fórum Econômico de Davos, um acordo importante com o chefe da Nestlé, Peter Brabeck. A Nestlé quer apoiar de forma ativa a luta de Lula contra a fome. Recuperou sua imagem: agora pertence ao clube das multinacionais que se comprometeram a normas ecológicas e sociais mínimas. OPOSIÇÃO NOS EUA O caso do Brasil parece quase não incomodar a Nestlé até agora. Mas os estrategistas do Lago de Genebra deveriam estar mais preocupados com a oposição “massiva” com que estão sendo confrontados também no país-mãe da privatização. Justo nos Estados Unidos, cresce a crítica contra o comércio de água da Nestlé. A empresa domina o mercado estadunidense e se impõe contra potências como a Pepsi e a Coca-Cola, que querem participar do mercado com água de torneira enriquecida.“Incomoda-nos que a Nestlé alugue terras, extraia gratuitamente água por bombeamento e ainda obtenha vantagens fiscais”, diz Holly Wren, ativista da Aliança pela Água Doce do Estado de Michigan. De lá vem a “Mountain Water”, da Nestlé, vendida em nove Estados. “Essa água pertence a todos”, diz Wren. Grupos de base organizam passeatas e escrevem cartas de protesto para pressionar os políticos. Exigem que a governadora democrática do Michigan, Jennifer Granholm, revogue a permissão de funcionamento da Nestlé.Também se teme que em pouco tempo outras transnacionais resolvam adquirir reservatórios de água locais. (ALAI) Reportagem publicada no jornal suíço WochenZeitung

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Daniel Stern, da Suíça

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DEBATE

NAÇÕES UNIDAS E IMPÉRIO

Ganhar a paz, não a guerra H

á quem venha ao mundo muito mais para fazer operações positivas como somar, em vez de subtrair, e multiplicar em lugar de dividir. Este é o caso de Sérgio Vieira de Mello. Um homem que vivia no meio de conflitos, bombas, balas e tanques, mas tinha apenas um objetivo: ganhar a paz. Sua morte e a comoção que provocou demonstra a dimensão e a importância de uma pessoa que trabalha para favorecer os acordos, para por fim aos conflitos. Sérgio era um ser humano pleno. Preferia o universo coletivo ao individual, mas não perdia a atenção especial com cada um, principalmente os amigos. Logo que foi indicado para o alto comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a ONU, no ano passado, quem o conhecia ficou aliviado: com ele nesse posto o mundo seria, com certeza, melhor. Para nós, brasileiros, ainda era fresca e saudável a memória de sua atuação no Timor Leste, com quem temos afinidade por ter sido colônia portuguesa. Num trabalho exemplar, ele levou aquele país à paz e o conduziu rapidamente às eleições democráticas, quando foi eleito presidente um outro democrata amigo dos brasileiros, Xanana Gusmão. Sérgio era culto, elegante e firme nas suas convicções em defesa dos direitos humanos. Com o equilíbrio entre a serenidade e a cautela, costumava descrever seu trabalho como “um campo minado”. Sabia que defender a ONU e a amizade entre os povos poderia colocá-lo na mira dos que se alimentam da guerra, seja do lado que for. Quem trabalha pela paz e pela liberdade costuma ter inimigos, ocultos e declarados. A história da humanidade tem muitos exemplos dessa tragédia. Com a morte de Sérgio Vieira

de Mello o Brasil perde duas vezes. Perde agora, com sua morte horrível, sob os escombros do prédio da ONU - sua casa de trabalho - em Bagdá, e perde historicamente, por não tê-lo tido como diplomata de carreira no Itamaraty. Em 1969, seu pai, o embaixador Alvaro Vieira de Mello, foi cassado pelo regime militar. Sérgio, então, desistiu das provas no Instituto Rio Branco, mas não da carreira diplomática. Foi direto para a ONU, onde desde cedo trabalhou na área de direitos humanos. No Camboja, no Sudeste Asiático, garantiu o retorno dos que fugiram do horror da guerra e de regimes cruéis. No Líbano, castigado por anos e anos de guerra civil, além dos conflitos ao sul com Israel, Sérgio desempenhou um papel fundamental em termos de ajuda humanitária. Sobre a guerra na região do Kosovo, na Tchetchênia, Sérgio dizia que, em determinado momento, não agüentou: chorou diante das cenas perversas. E agora Sérgio estava no Iraque. Imagino como ficou indignado ao ver a situação do país de perto, enquanto o mundo todo recebia a informação

de que as armas de destruição em massa eram apenas suposição de documentos oficiais americanos. Nada se provou até agora. Quando soube que Sérgio Vieira de Mello ia para lá, em maio, mandei-lhe uma carta. Sugeri que informasse às autoridades que controlavam o país sobre a Renda Básica Universal, como contribuição para a reconstrução do Iraque. Dei como exemplo o que já ocorre no Estado americano do Alasca, onde todos os habitantes recebem uma renda anual vinda de parte dos royalties da exploração dos recursos naturais, principalmente o petróleo. Era essa, na minha opinião, a melhor maneira de os iraquianos terem acesso à maior riqueza do seu país, coisa que nunca aconteceu. Sérgio me respondeu positivamente. Sim, ele entregaria minha sugestão às autoridades de-

Kipper

Eduardo Matarazzo Suplicy

cisórias do Iraque. Também via aí uma saída para uma situação criada pelos homens e pelo horror da guerra. Via, mais uma vez, que o saldo da guerra é o sofrimento humano, a dor das famílias, a fome, a falta de saúde, o atraso na educação, a destruição da vida dos civis, do povo, qualquer povo, que quer ter - e tem - o simples direito à vida. Esse direito que lhe tiraram. A guerra não é só um momento ruim. Ela marca gerações e levará outras tantas para que um país e sua população sejam de novo o que já foram. Acho que Sérgio entendia os libaneses, os cambojanos, os tchetchenos, os iraquianos. Creio que a Al-Qaeda cometeu um trágico erro ao atacar a sede da ONU no Iraque para matar Sérgio Vieira de Mello e outros funcionários daquela organização sob a alegação de que ele “era o homem nº 1 dos EUA”. Tanto essa afirmação não condiz com a verdade que, quando Sérgio externava sua opinião acerca das tropas de ocupação, afirmava que elas deveriam sair do país o mais rapidamente possível. Em entrevista, perguntado como os iraquianos sentiam aquela presença disse: “Eu (também) não gostaria de ver tanques estrangeiros em Copacabana.” Pensando na importância de Sérgio Vieira de Mello, na dimensão desse brasileiro que escolheu o mundo, subscrevi, junto com meu colega senador Pedro Simon, que ele seja indicado para o Prêmio Nobel da Paz postmortem. Acreditamos que a luta de Sérgio Vieira de Mello continua viva e seu exemplo deve ser seguido por muitos. O senador Eduardo Matarazzo Suplicy (PT-SP) é presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal

A ONU e o terrorismo de Estado Miguel Urbano Rodrigues

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atentado contra a sede das Nações Unidas em Bagdá suscitou repulsa universal. Justa, porque o terrorismo é uma aberração. Mas as atitudes emocionais não facilitam a compreensão deste tipo de crime em que morreram mais de duas dezenas de pessoas, inclusive o brasileiro Sérgio Vieira de Mello. A onda de pesar que correu pelo mundo torna incômodo recordar evidências quase esquecidas. O atentado não visou especificamente o representante de Koffi Anan; o alvo foi a ONU. Em março, durante algumas semanas, a imagem da ONU inspirava ainda, no mundo muçulmano, respeito. Esse sentimento foi reforçado quando o Conselho de Segurança recusou o seu apoio à agressão anglo-americana, então em preparo. Nesses dias, muito pelo mérito dos povos francês e alemão, a ONU apareceu a milhões de pessoas em todo o mundo como símbolo da resistência dos povos a uma escalada de barbárie comandada por um sistema de poder cuja teoria e práxis configuram um assalto à razão. Mas durou pouco a resistência do Conselho de Segurança. Quando a guerra terminou (aparentemente) o presidente Chirac e o chanceler Schroeder mudaram o discurso e deram o seu aval ao crime, levando a reboque o russo Putin. A Resolução do Conselho de Segurança en-

tão aprovada ficará na historia como um ato amoral que nega os princípios da Carta da organização. Ao aceitar o papel subalterno que os EUA lhe distribuíram no Iraque, a ONU passou a encarar a ocupação do país como um fato normal, conferindo legitimidade ao poder militar ali instalado. A caricatura de ajuda humanitária que pretende justificar-lhe a permanência esconde mal o desrespeito pelo Direito Internacional. A ONU está submetida no Iraque à vontade discricionária da potência responsável pela agressão. Ao definir como muito positivo o papel que a ONU estaria a desempenhar no Iraque, o presidente Lula foi infeliz. O secretário-geral Koffi Anan tem agido ostensivamente como um instrumento da estratégia da Casa Branca desde que, nas vésperas da guerra, ordenou unilateralmente a retirada dos inspetores, abrindo assim a porta aos bombardeamentos e à invasão. Não conheci pessoalmente Sérgio Vieira de Mello, mas a sua presença em Bagdá como representante da ONU foi suficiente para que me demarcasse dos elogios que vinha recebendo, ampliados, agora, pela sua trágica morte. Pode alegarse que cumpria como alto funcionário a missão para a qual fora nomeado. Mas a vida ensinou-me que há tarefas cujo cumprimento é incompatível com a ética política e o respeito pela dignidade dos povos. Incluo nessa categoria aquela que

Sérgio Vieira de Mello aceitou. Merece reflexão a ênfase posta por Paul Bremer na colaboração perfeita que dele recebeu. O procônsul americano qualificou-o de “amigo querido”. Devemos condenar com firmeza o atentado. Mas devemos também fazer um esforço para compreender o sentimento de indignação provocado no Iraque pela cumplicidade das Nações Unidas com os agressores do país. Seria, aliás, um erro confundir atos terroristas como o que atingiu a ONU - já assumido por um grupo islamista fanático - com a resistência iraquiana, que se manifesta no combate às forças militares de ocupação. A resistência merece a solidariedade daqueles que no mundo lutam pela independência de povos oprimidos. É significativo que a situação criada no Iraque, onde a desordem e a insegurança empurram para o caos, tenha levado a administração Bush a uma inflexão da política adotada para o país. Washington não quer partilhar ali o poder. Deseja mantêlo nas suas mãos. Mas a desmoralização que alastra nos quartéis, a inquietação suscitada pela morte diária de soldados, a consciência de que o antiamericanismo aumenta a cada dia, estão na origem das tentativas para ampliar, agora, o envolvimento da ONU, precisamente quando a organização se tornou alvo de um atentado terrorista. O governo Bush, sobretudo o Pentágono, desejaria ver tropas francesas,

alemãs e russas no país. O general Myers sabe que a presença dos espanhóis, dos polacos, dos hondurenhos e salvadorenhos não contribui para levantar o moral dos soldados dos EUA, que caiu para um nível muito baixo. Mas nem o próprio Koffi Anan se mostrou receptivo no atual contexto ao envio de cascos azuis. Quanto à França e à Alemanha, os respectivos governos já deixaram claro que em hipótese alguma forças militares dos seus países poderiam atuar no Iraque subordinadas ao comando da coligação que exerce o poder ali. Não se trata de um assomo de dignidade. Nem Chirac nem Schroeder estão dispostos a enfrentar a reação popular que uma tal decisão desencadearia. A evolução da conjuntura no Médio Oriente e na Ásia Central - no Afeganistão, o comando militar da OTAN somente controla hoje Kabul - anuncia novos desafios para os EUA. Acumulam-se no horizonte problemas na aparência insolúveis para o sistema de poder dos EUA. Um sistema de ambição planetária que apresenta já matizes neofascistas. A crise de civilização que vivemos é inseparável de uma estratégia irracional de dominação que, invocando a luta contra o terrorismo, faz do terrorismo de Estado um pilar da política externa dos EUA. Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e dirigente do Partido Comunista de Portugal


AGENDA

Confira algumas atividades populares, sociais e culturais desta semana. Para incluir seu evento nesta agenda, envie uma mensagem eletrônica para agenda@brasildefato.com.br

9º GRITO

MOBILIZAÇÕES VACINE-SE CONTRA A ALCA De 1º a 7 de setembro Semana de coleta de assinaturas do abaixo-assinado que exige do governo a convocação de plebiscito oficial para ouvir a população sobre a adesão do Brasil às negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A idéia é fazer uma ampla discussão com a sociedade civil para ver se interessa ao povo negociar um acordo que nega a soberania nacional. Para participar da mobilização, basta copiar o abaixoassinado disponível na página da campanha na internet e recolher assinaturas. Local: Em todo o Brasil Mais informações: www.jubileubrasil.org.br

SC - ATO

DE

SOLIDARIEDADE

A

DOS EXCLUÍDOS

Dia 7 de setembro Jornada de manifestações e atos públicos por todo o país. O tema deste ano será: “Tirem as mãos, o Brasil é o nosso chão”. O objetivo do Grito é denunciar o modelo econômico excludente e denunciar projetos que desrespeitem a soberania nacional. Representantes da Área Pastoral do Pecém (CE) farão uma manifestação com o lema “Tirem as mãos! Somos Indígenas e este é o nosso chão!”. Os subtemas vão abordar questões relacionadas à saúde, moradia, terra, reforma agrária, fome, mulher, violência, desemprego, salário, educação, prostituição e droga. Local: Em todo o Brasil

CUBA

Dia 8 de setembro, às 19 horas Entre os participantes estarão representantes de movimentos sociais, parlamentares e partidos que apóiam Cuba. Também estará presente o Embaixador de Cuba no Brasil, Jorge Lézcano Pérez. O ato tem como objetivo desenvolver ações de solidariedade ao povo cubano na sua luta contra o bloqueio econômico e as agressões que a ilha vem sofrendo. O ato também será um momento de reafirmação do movimento e do projeto socialista. Local: Auditório da Justiça Federal de Santa Catarina, Praça XV, ao lado da Catedral, Centro, Florianópolis

TERRA

Dia 31 de agosto Cerca de 40 mil pessoas estão sendo esperadas em Guaíra para lembrar os 25 anos da luta dos atingidos pela barragem de Itaipu. Elas vão denunciar a expulsão de inúmeras famílias de suas terras pela construção da hidrelétrica. Além disso, na memória de 7 Quedas, a Romaria pretende chamar a atenção da sociedade para a importância da água neste início de milênio, e para os projetos que matam os rios e ameaçam a vida da natureza e das pessoas. Guaíra é a terra da 1ª Romaria da Terra, realizada em 1985, comemorando a vitória dos ilhéus (moradores das ilhas do Rio Paraná que foram expulsos pelas águas). Muitas dessas famílias ainda lutam por indenizações. Organizada pela Comissão Pastoral da Terra e por várias outras entidades, a Romaria da Terra é um ato religioso ecumênico realizado anualmente para celebrar a fé no Deus da Terra e das Águas. Local: Saída da praça da Igreja Nossa Senhora Aparecida Mais informações: (41) 224 - 7433

DIREITOS HUMANOS SP - MOSTRA: DIREITOS HUMANOS E PAZ Dia 29 de agosto, a partir das 9h Organizada pelo Colégio Terra, a mostra irá abordar diversos temas, entre eles a fome no Brasil, o trabalho escravo, o programa Fome Zero, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e violência infantil. Local: Colégio Terra, Rua Carneiro Cunha, 451, São Paulo Mais informações: (11) 578 - 1978

EDUCAÇÃO RJ - III SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO Inscrições até dia 15 de setembro

Organização: Universidade Federal Fluminense, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Faculdade de Educação e Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) Local: Faculdade de Educação São Domingos, Niterói Mais Informações: (21) 2613-1762, seminariopenesb2003@vm.uff.br

MULHERES SP – DEBATE: APOSENTADORIA PARA A DONA DE CASA

Dia 5 de setembro,—às 19h A discussão será em torno da proposta de aposentadoria para a dona de casa, de autoria da deputada Luci Choinacki (PT/SC). A proposta prevê que as mulheres donas de casa com mais de 60 anos tenham direito a aposentadoria no valor de um salário mínimo, desde que não recebam nenhum outro benefício de prestação continuada, à exceção de pensão por morte de marido ou filho, e a renda familiar seja inferior a dois salários mínimos. Hoje, cerca de 8 milhões das mulheres brasileiras têm mais de 60 anos e metade delas não recebe pensão, aposentadoria ou qualquer tipo de renda, mesmo tendo trabalhado durante toda a vida. Local: Câmara Municipal de São Paulo,Viaduto Jacareí, 100, Plenarinho (1º andar), São Paulo Mais informações: (61) 318 - 5282

COMUNIDADE GO - III ENCONTRO E FEIRA DOS POVOS DO CERRADO De 11 a 15 de setembro Promovido pela Rede Cerrado de Organizações Não Governamentais em parceria com a prefeitura municipal de Goiânia, o evento servirá

para colocar em cena a sócio-biodiversidade do Cerrado, ampliar o intercâmbio de experiências, promover articulações políticas, vender e expor produtos e serviços desenvolvidos pelas comunidades, instituições, ONGs, universidades, empresas e governos em prol da sustentabilidade do Cerrado e seus povos. Paralelo à feira acontecerão atrações culturais, oficinas e grupos de trabalho. Local: Praça Universitária da Rede Cerrado / prefeitura municipal de Goiânia, Goiânia Mais informações: (62) 213-3033 ou povosdocerrado@ifas.org.br

DIVERSIDADE SP - DIA NACIONAL DA VISIBILIDADE LÉSBICA Dia 29 de agosto, concentração a partir das 15h Promovido pelo Setorial GLBTT (Gays, Lésbicas,Transexuais e Travestis) do PT/SP. Haverá atividades culturais para dar visibilidade às suas bandeiras de luta. Local: Praça Ramos de Azevedo, São Paulo Mais informações: vcampezatediniz@yahoo.com.br,

aprendiz_da_vida@ig.com.br

FOTOGRAFIA RS - MOSTRA: CUT 20

ANOS

LUTAS DOS TRABALHADORES DO

GRANDE

DO

- AS RIO

SUL

Até 1º de setembro Organização: CUT/RS, Cpers, Sindicato dos Professores, Sindicato dos Jornalistas, Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre e Região Metropolitana. Apoio: Núcleo de Pesquisa Histórica/IFCH/UFRGS. Local: Usina do Gasômetro, 4º andar, Porto Alegre Mais informações: (51) 3224 - 2484

RÁDIOS COMUNITÁRIAS SC - SEMINÁRIO REGIONAL DE RÁDIOS COMUNITÁRIAS Dia 30 de agosto, das 8h às 18h Entre os debatedores estarão representantes da Associação Brasileira de Radiofusão Comunitária (Abraço), da Federação Nacional dos Jornalistas, entidades comunitárias e experiências de rádio na grande Florianópolis. Local: Museu da Imagem e do Som (MIS), Centro Integrado de Cultura (CIC), Avenida Irineu Bornhausen, 5.600, Florianópolis Mais informações: (48) 233-4305

BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

TERRA PR – ROMARIA DA

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CULTURA

Um grupo de profissionais liberais funda uma ONC (Organização Não Capitalista) para resgatar a imagem do saci pererê e preservar a mitologia brasileira; dia 7 de setembro, no interior de São Paulo, haverá o Grito do Saci, com atividades que valorizam as raízes culturais nacionais.

RAÍZES

Acervo Companhia da Memória

Saci desbanca bruxas importadas Márcia Camargos, de São Paulo (SP) m grupo de pessoas preocupadas com o distanciamento progressivo das raízes brasileiras e a conseqüente perda da identidade nacional resolveu criar a Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci). Reunidos em São Luiz do Paraitinga, interior paulista, profissionais liberais - jornalistas, músicos, artistas plásticos e escritores - fundaram uma organização para pesquisar e difundir o riquíssimo repertório mitológico do Brasil. Embrião de um movimento que pode ter alcance nacional, posto que o seqüestro do nosso imaginário não é privilégio da região Sudeste, a Sosaci pretende, ao mesmo tempo, incentivar e promover eventos ligados às tradições populares brasileiras. Mas, se o consumo de produtos e valores importados vem se acentuando devido aos velozes meios de comunicação, que os trazem para dentro de casa, das escolas e das manifestações culturais com rapidez espantosa, vale lembrar que no início do século 20 estudiosos como Monteiro Lobato já enfrentavam esse problema. DENÚNCIAS DE LOBATO O hábito arraigado das elites de valorizar tudo o que vinha de fora, em detrimento do nosso folclore, mobilizou Lobato que, em 1910, denunciava o desenraizamento cul-

Arquivo Memórias

U

■ Saci, Pedrinho e Narizinho, segundo o artista plástico Voltolino, o primeiro a ilustrar as obras de Monteiro Lobato; ao lado, livro lançado em 1918, para “despertar consciências adormecidas” tural do país. Irritado com a estatuária d’além-mar reproduzida em ninfas, faunos e anõezinhos germânicos que “enfeiavam” nossos espaços públicos, como o Jardim da Luz, no centro de São Pau-

lo, ele questionava: “Por que tais niebelungices, mudas à nossa alma, e não sacis-pererês, caiporas, mães d’água, e mais duendes criados pela imaginação popular?”. Monteiro Lobato implementou

uma sondagem pioneira. Para estabelecer os contornos estéticos e antropológicos do “insigne perneta”, em janeiro de 1917, na edição vespertina do jornal O Estado de S. Paulo, ele convocou os leitores a dar

Saciólogos criam ONC - Organização Não Capitalista Ata de fundação e Carta de princípios da Sosaci Criada em São Luiz do Paraitinga, a Sosaci é uma ONC (Organização Não Capitalista) que reúne os interessados em valorizar e difundir a tradição oral, a cultura popular e infantil, os mitos e as lendas brasileiras. Seus integrantes acreditam no saci, na Iara, no boto, no curupira, na cuca, no boitatá e nos demais entes do folclore nacional. O objetivo da associação não é caçar nem manter em cativeiro o saci ou qualquer dos seus parceiros da tradição popular. A meta da Sosaci, como o próprio nome indica, é observar e estudar o insigne

sua versão sobre o saci. Numa acolhida surpreendente, choveram cartas. Embora estilizado de diferentes modos, na maioria delas o mito conservava nítidas feições africanas e a mesma origem - relatos de exescravos. À sondagem seguiu-se um concurso para pintores, escultores e afins desenvolverem trabalhos inspirados no “satirozinho pitoresco”. A repercussão daquele 7 de setembro artístico, nas próprias palavras de Lobato, levou-o a idealizar um livro. Ironicamente, O Inquérito sobre o saci foi lançado em 1918, na fase mais sangrenta da Pr imeira Grande Guerra que se desenrolava na Europa, modelo para nossa classe dirigente da época. Coincidência ou acaso da história, a Sosaci nasce também num contexto de conflagração, quando Estados Unidos e Inglaterra, potências admiradas e copiadas por um número cada vez maior de pessoas ao redor do planeta, desencadeiam guerras brutais para manter a hegemonia econômica. Jornalista e doutora em História pela USP, autora de Semana de 22: entre vaias e aplausos (Boitempo), entre outros, e co-autora de Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia (Senac São Paulo), é uma das fundadoras da Sosaci.

perneta e seus companheiros, em suas diversas manifestações, e divulgá-los por meio de textos, músicas e outras artimanhas. Busca, ao mesmo tempo, promover e incentivar a leitura e elaboração de obras comprometidas com nossos valores e raízes. Nesse sentido, pretende instituir o Dia do Saci, em data a ser definida. Porque o saci simboliza a resistência aos super-heróis e aos personagens dos filmes e desenhos importados, que infestam o imaginário de nossas crianças e jovens. Ele desafia e enfrenta os estrangeirismos que corroem o idioma nativo, em detrimento da nossa cultura e autonomia. A Sosaci não é uma entidade

xenófoba. Nem pretende trafegar na contra-mão da história do mundo globalizado. Mas ela tem orgulho de ser brasileira e, ao lado dos povos irmãos da América Latina, reivindica reciprocidade na relação com as nações hegemônicas do dito Primeiro Mundo. Ela crê que o repertório mitológico do nosso país é bastante rico, permitindo trocas de mão dupla com os cidadãos da comunidade planetária. Através de Ata, assinada por seus membros-fundadores, a SOSACI dá o pulo inicial. Aceita novos filiados, desde que se disponham a assumir e respeitar os princípios aqui estabelecidos.

O GRITO DO SACI São Luiz do Paraitinga, São Paulo PROGRAMAÇÃO Sexta-feira, 5 de setembro 19h – Abertura, 1ª Saciata, lançamento do Manifesto do Saci, roda de histórias com contadores tradicionais (Casa Oswaldo Cruz), apresentação musical (Restaurante Sol Nascente) Sábado, 6 de setembro 10h – Oficina de artesanato, com Benito Campos (Chafariz) 14h – Oficina de artesanato, com Geraldo Tartaruga, roda de histórias com contadores tradicionais (Praça do Jongo) 18h – Hora do Saci (Projeção do Filme O Saci), palestras em torno do tema “Cultura popular tradicional e indústria cultural” (Casa Oswaldo Cruz) 22h – Apresentação musical (Coreto da Praça) Domingo, 7 de setembro 11h – Roda de histórias com contadores tradicionais (Praça do Jongo) 13h – Apresentações de Regina Machado e Grupo Pé-de-Palavra, Girasonhos (contadores de histórias) e Valdeck de Garanhuns (teatro de mamulengos) – (Praça da Matriz) 16h – Apresentação musical Grupo Estrambelhados 17h – Encerramento Brincos e brincadeiras ocorrerão em vários momentos e locais da cidade durante o evento

Danem-se as abóboras do Halloween! BRASIL DE FATO De 28 de agosto a 3 de setembro de 2003

Mouzar Benedito

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Há uns três anos, cheguei na tarde de 31 de outubro a uma cidadezinha minúscula de Minas e vieram tentar me vender convite para um baile à noite, o Baile do Halloween. Fiquei meio pasmo. A maldição iniciada pelos americanófilos dos cursos de inglês que conheci em São Paulo já havia chegado aos lugares mais recônditos. Para muita gente, isso é um progresso. Festa com sotaque inglês, com espírito comercial/capitalista estadunidense, com mito estrangeiro festejado nos Estados Unidos é um progresso, uma coisa “de Primeiro Mundo”, nesta terra que, cada vez mais, vai perdendo a identidade nacional, com um povo que vai adquirindo vergonha de si mesmo e não tem vergonha de ser uma reles imitação. E nem é imitação de coisa que preste, imita um povo impregnado de babaquices consumistas. Nada contra as bruxas. Elas foram vítimas da Inquisição, morreram quei-

madas, eram contestadoras de uma ordem existente na Europa. E a festa em homenagem a elas era uma tradição celta, há cerca de dois mil anos. Mas os estadunidenses têm uma tradição de transformar tudo em comércio e não perderam a oportunidade de chupar essa festa celta e transformar na segunda maior festa consumista dos Estados Unidos. Lá, só o Natal movimenta mais dinheiro que o Halloween. Aliás, o Natal é outra festa que eles transformaram em babaquice. Um cartunista alemão que morava nos Estados Unidos bolou a figura do Papai Noel, no século XIX, e em 1931 a coca-cola deu umas modificadas na figura dele, vestindo-o de vermelho, a cor usada mundialmente na publicidade da beberagem que os italia-

nos chamavam de “água negra do imperialismo”, e espalharam a figura ridícula pelo mundo. No Brasil, custou a pegar, mas pegou. E com ele o espírito comercial do Natal, substituindo a festa religiosa. Se posso falar em inglês, por que falar em português? Uma moça que conheci, brasileira que pouco saiu do Brasil, fica horrorizada quando alguém fala inglês

com sotaque brasileiro ou não pronuncia “corretamente” as palavras. Orgulha-se por escrever e falar inglês com tanta perfeição que, numa viagem a Nova York, os gringos pensaram que ela era nativa de lá. Mas ela não sabe escrever nada em português. Erra na grafia e na concordância, nos tempos verbais e em tudo. É isso que estamos vendo acontecer com o Brasil. Antes, quando a gente tinha uma idéia luminosa, de repente, dizia que tivemos “um estalo”. Desde que começou essa mania de preferir palavras em inglês, pra ser gente normal, tem que ter um insight. São muitos os exemplos desse tipo, principalmente depois da proliferação de vendas por telemarketing e da era da informática. A bela língua brasileira, o português modificado em ritmo e vocabulário por índios e negros, é encarada como uma vergonha, uma tragédia, uma maldição. Para um povo ter identidade (franceses, espanhóis e portugueses,

por exemplo, entendem isso), é preciso respeitar-se, respeitar sua língua e sua cultura. E nossa cultura está indo pelo ralo, até os nossos mitos vão sendo substitutídos por coisas que não têm nada a ver, são puríssimo comércio. O halloween em especial me irrita demais, porque é uma imitação besta, mantém até o nome em inglês. E já aviso: nos dias 31 de outubro vou encarnar o saci. Se aparecer qualquer babaquinha vestido de bruxa falando “gostosuras ou travessuras”, vai receber travessuras típicas do saci: vou responder “travessuras” e dar nó nos cabelos, assobiar forte no ouvido dele, dar uma baforada de fumo de corda na cara dele, puxar o nariz, dar chute na bunda (isso é difícil para o saci ele cai), rodar a baiana. E repetir meu grito de guerra: Danem-se as fadas! Danem-se as bruxas do halloween! Danem-se os gnomos! Dane-se quem acredita em duendes! Viva o saci! Viva a Iara! Viva o boitatá! Viva o curupira! Mouzar Benedito é escritor, jornalista e fundador da Sosaci


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