Ano I ■ Número 27 ■ São Paulo ■ De 4 a 10 de setembro de 2003
R$ 2,00
Circulação Nacional
Shawkat Khan/France Press
Sem a moratória da dívida, o país não vai crescer, afirma Celso Furtado A
suspensão do pagamento da dívida externa é condição para a economia brasileira voltar a crescer, defende o economista Celso Furtado, indicado para o Prêmio Nobel de Economia de 2003. Para ele, a moratória é uma decisão política, e não técnica. “O país não pode mais acumular débitos, nem continuar
parado”, afirmou, em seminário no Rio de Janeiro, dia 1º. Furtado diz que a economia do Brasil é aleijada: ou vive-se em recessão, como agora, ou se adota uma política de endividamento, como no governo Fernando Henrique Cardoso. Na análise da economista Maria da Conceição Tavares, a concentração de renda é
o maior problema do país. Ela considera que não há chance de o governo renovar o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, ao mesmo tempo, garantir investimentos sociais.“Tenho sérias dúvidas de que algum governo na América Latina seja capaz de mudar as regras do FMI”, declarou. Pág. 7
Alca é uma grave ameaça de anexação acabar de vez com a democracia e a soberania dos países. Por isso, lutar contra a Alca é resistir ao domínio imperial. Esta foi a principal conclusão do Econtro Jurídico Internacional sobre a Alca, realizado em Piracicaba (SP), de 29 a 31 de agosto. Págs. 10 e 11
Há 30 anos, CIA decretava o fim de Salvador Allende
Físico denuncia sabotagem em Alcântara
■ Cerca de 150 trabalhadores de São Paulo iniciaram, dia 31 de agosto, marcha de 167 km até Aparecida do Norte para participar da nona edição do Grito dos Excluídos, dia 7 Pág. 8
Pág. 13
Zé Celso: Canudos ainda continua atual
Recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) são destinados à empresa francesa Suez, do setor da água, enquanto empresas públicas brasileiras não conseguem crédito para investir em saneamento básico. No primeiro semestre deste ano, o faturamento do grupo europeu chegou à R$ 67,3 bilhões, ou 4% do Produto Interno Bruto anual do Brasil. Pág. 5
E mais: ORÇAMENTO – O primeiro orçamento fiscal do governo Lula, enviado ao Congresso, apesar de manter o arrocho nos gastos, aumenta recursos destinados às áreas sociais. Pág. 3
Pág. 8
Depois da invasão, Iraque é privatizado
Fundo de garantia financia empresas estrangeiras de água
Márcio Baraldi
No dia 11 de setembro de 1973, um golpe militar, orquestrado pela CIA, dava início à mais sangrenta ditadura da América Latina sob o comando do general Augusto Pinochet. Com total apoio popular, Allende cometeu um grave erro frente ao projeto imperialista em curso: estatizou as empresas, fez a reforma agrária e governou para o povo chileno. Pág. 9
OMC - O economista estadunidense Joseph Stiglitz diz que os países em desenvolvimento não devem esperar nada da próxima reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio, que será realizada em Cancún (México), a partir do dia 9. Pág. 3 Sebastião Moreira/AE
■ Protesto em Dhaka, Bangladesh, contra as negociações na OMC
O Tratado de LivreComércio das Américas é o Tratado de Livre-Comércio da América do Norte ampliado; é a mais grave ameaça de anexação jamais sofrida pelos países da América Latina. O acordo é parte de uma investida conjunta do governo dos EUA, FMI e BIRD para
REFORMA TRABALHISTA – Para Elizabeth Drake, diretora da AFL-CIO, a maior central sindical dos Estados Unidos, acordos de livre comércio são ameaças aos direitos dos trabalhadores. Transnacionais migraram atrás de melhores condições para explorar a mão de obra. Pág. 4 IMPUNIDADE - Chacina da Favela de Vigário Geral completa 10 anos. Dos 52 envolvidos, apenas dois foram condenados. Pág. 7
Pág. 16 ÁFRICA - Sul-africanos processam empresas multinacionais que colaboraram com o regime racista do apartheid. Pág. 12 DEBATE – Os deputado federais Carlito Merss (PT-SC) e Paulo Pinheiro (PT-PE) comentam a reforma tributária defendida pelo governo Lula. Pág. 14
Fala, Zé!
Preparar a moratória da dívida
Ohi
NOSSA OPINIÃO
Os números fornecidos pelo Banco Central mostram uma realidade absolutamente insustentável: apenas entre janeiro e julho de 2003, o setor público consolidado (União, Previdência, Banco Central, Estados, municípios e estatais) pagou R$ 89,257 bilhões em juros da dívida. Não, caro leitor, não é um engano: o Brasil pagou aos bancos quase R$ 90 bilhões, só de juros da dívida pública, apenas nos primeiros sete meses de 2003. Esse valor equivale a 10% do Produto Interno Bruto (PIB, a soma das riquezas produzidas pelo país) ou, ainda, a 52 vezes a verba destinada ao programa Fome Zero (R$ 1,7 bilhão). Nesse mesmo período, o superávit primário (receitas menos despesas do setor público, sem incluir gastos com juros) foi de R$ 44,329 bilhões. Trocando em miúdos: tudo o que o governo deixou de gastar com saúde, educação, infra-estrutura pública (saneamento básico, manutenção de estradas etc.) e reforma agrária, e mais tudo o que ele arrecadou com impostos não foi suficiente para pagar sequer a metade dos juros. O resto foi pago com empréstimos obtidos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e outras instituições financeiras, que, por sua vez, cobram mais juros, aumentando exponencialmente a dívida, assim criando uma ciranda sem fim. Ciranda sem fim? Não. Ela tem um fim: a quebradeira generalizada, como aquela verificada na Argentina, em dezembro de 2001. Quem pode esquecer as imagens de mães desesperadas, incluindo senhoras bem vestidas de classe média, saqueando supermercados, para dar algo de comer aos seus filhos? É, portanto, pleno de sentido o alerta feito por Celso Furtado: o governo Lula deve preparar o país para decretar a moratória da dívida externa. Não existe outra possibilidade de estancar a permanente sangria dos recursos e das riquezas nacionais. E sem estancar essa sangria, será impossível gerar o número de empregos necessário para assegurar uma vida digna a dezenas de milhões de brasileiros – único caminho capaz de criar mercado interno e oferecer uma solução realista para o combate à fome e à miséria. Em dezembro, expira o acordo feito pelo Brasil com o FMI. O governo federal terá, então, uma excelente oportunidade de começar a “preparar o país” para uma outra via, que privilegie o desenvolvimento nacional, alocando recursos para a saúde, educação, infra-estrutura básica e reforma agrária, mesmo que isso contrarie a vontade dos banqueiros (que exigem a manutenção do superávit primário em níveis altíssimos e a estabilidade da moeda como prioridade absoluta). Ao temor daqueles que acreditam que enfrentar o FMI poderia “espantar” o capital internacional, Furtado responde: “Ninguém quer se fechar a negociar com o Brasil, que é um grande cliente.” A Rússia, por exemplo, decretou moratória de sua dívida, em agosto de 1998, e nem por isso deixou de ser procurada pelos investidores. Ao contrário. Entre 1999 e 2002, sua dívida externa caiu de 160 para 120 bilhões de dólares, contrariando as previsões terroristas feitas pelos “especialistas” da mídia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conhece, profundamente, as conseqüências da dívida para a nação. E sabe que poderá contar com o apoio popular para enfrentar as pressões dos banqueiros. É só uma questão de vontade política.
CONSELHO POLÍTICO: ■ Achille Lollo ■ Ari Alberti ■ Ariovaldo Umbelino ■ Assunção Ernandes ■ Aton Fon Filho ■ Augusto Boal ■ Cácia Cortez ■ Carlos Marés ■ Carlos Nelson Coutinho ■ Celso Membrides Sávio ■ Claus Germer ■ Dom Demétrio Valentini ■ Dom Mauro Morelli ■ Dom Tomás Balduíno ■ Edmilson Costa ■ Elena Vettorazzo ■ Emir Sader ■ Egon Krakhecke ■ Erick Schunig Fernandes ■ Fábio de Barros Pereira ■ Fernando Altemeyer ■ Fernando Morais ■ Francisco de Oliveira ■ Frederico Santana Rick ■ Frei Sérgio Gorgen ■ Horácio Martins ■ Ivan Valente ■ Jasper Lopes Bastos ■ ■ João Alfredo ■ João Capibaribe ■ João José Reis ■ João José Sady ■ João Pedro Stedile ■ Laurindo Lalo Leal Filho ■ Leandro Konder ■ Luís Alberto ■ Luís Arnaldo ■ Luís Carlos Guedes Pinto ■ Luís Fernandes ■ Luis Gonzaga (Gegê) ■ Marcelo Goulart ■ Marcos Arruda ■ Maria Dirlene Marques ■ Mário Augusto Jakobskind ■ Mário Maestri ■ Nilo Batista ■ Oscar Niemeyer ■ Pastor Werner Fuchs ■ Pedro Ivo ■ Raul Pont ■ Reinaldo Gonçalves ■ Renato Tapajós ■ Ricardo Antunes ■ Ricardo Rezende Figueira ■ Roberto Romano ■ Rodolfo Salm ■ Rosângela Ribeiro Gil ■ Sebastião Salgado ■ Sérgio Barbosa de Almeida ■ Sérgio Carvalho ■ Sérgio Haddad ■ Tatau Godinho ■ Tiago Rodrigo Dória ■ Uriel Villas Boas ■ Valério Arcary ■ Valter Uzzo ■ Vito Gianotti ■ Vladimir Araújo ■ Vladimir Sacheta ■ Zilda Cosme Ferreira ■ Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
BRASIL DE FATO De 4 a 10 de setembro de2003
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Cartas de leitores VIVA O MST! ABAIXO O PT! Por faltar, primeiro, capacidade, segundo, coragem, ao atual presidente de plantão, para enfrentar o latifúndio, é que continuamos como o único país capitalista que ainda não realizou sua reforma agrária. Sem esta, não há “Fome Zero” capaz de alimentar 53 milhões de brasileiros que passam fome. Sem redistribuição de terra não há reforma agrária, e o principal programa social do atual governo - “Fome Zero”- continuará sendo o fiasco que se tornou. Por isso, viva o MST que assenta milhares de trabalhadores sem terra em todo o país sem dar a mínima aos especuladores latifundiários improdutivos, ciente de que é impossível resolver o problema da fome no Brasil sem ir à sua raiz: reforma agrária já! Governado pela dívida, este paíscontinente segue traído por governantes incompetentes, subservientes aos ditames imperialistas. Também sem capacidade ou coragem de enfrentar os gringos, o governo do PT volta-se, então, contra os trabalhadores, especialmente os servidores públicos que o elegeram. Incapaz de solucionar proble-
mas iminentes, visíveis, propõe a reforma previdenciária, visando aposentadorias para daqui 15, 20 anos. Foi muito bem lembrado pela marcha dos servidores em Brasília o bordão carnavalesco “Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão”. Afinado com a cúpula do Judiciário, o Executivo petista conseguiu, manobrando, aprovar, em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, a “reforma” da previdência, que, sem tocar nos reais privilégios das três esferas de Poder, só prejudica a maioria esmagadora dos trabalhadores, inclusive e principalmente os servidores inativos que, de suas vidas, já deram o que tinham que dar. Paradoxal contra-senso: o PT, o partido que se diz de esquerda, em vez de avançar em conquistas socioeconômicas benéficas aos trabalhadores, os pune. Elio Bolsanello, São Paulo (SP) POVO DESARMADO A lei que acabará com o direito do cidadão comum de portar arma não é mais do que o total desarme de quase todos nós, que dessa forma, perdemos o
direito da autodefesa. Abrem-se assim as portas de nossas casas para o bandido roubar, estuprar e até matar nossos familiares, sem que possamos pelo menos defendê-los. Os autores da lei, mais os governantes em geral, bem como os membros das elites nada sofrerão, pois, além da proteção das autoridades policiais, podem dispor de seguranças particulares, que, aliás, proliferarão aos montões e compostos até mesmo por elementos de pouca ou nenhuma qualificação. João Carlos da Luz Gomes, Porto Alegre (RS) TAMANHO DA PROPRIEDADE Parabéns pelo jornal Brasil de Fato. Sugiro uma longa matéria, em mais de um número do jornal, sobre o tamanho da propriedade no Brasil. Como gosto muito deste tema tentei colocálo na Constituição, em assessoramento a setor competente, coordenado pelo saudoso Deputado Oswaldo Lima Filho, quando da elaboração do projeto constitucional brasileiro. Sugiro que se examine a situação do país. José de Jesus Moraes Rêgo Brasília (DF)
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OMC
NACIONAL
As exigências do FMI, do BID e do governo dos EUA em relação aos países menos desenvolvidos são uma receita que fracassou, segundo Joseph Stiglitz, ex-vice-presidente do Banco Mundial; se cumprido, o orçamento para 2004 dará certo desafogo à economia brasileira
Mariano Vinhas, de São Paulo (SP)
L
egítimo representante do establishment, estadunidense economista-chefe e vice-presidente do Banco Mundial, o professor Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em 2001, hoje é crítico contumaz, não apenas do Consenso deWashington, mas também do clássico receituário recessionista do Fundo Monetário Internacional (FMI) para os países do Terceiro Mundo, e das políticas do Banco Mundial, que considera semelhantes às do Fundo e às do governo dos Estados Unidos. Ele é absolutamente cético em relação às possibilidades de ganhos, para os países menos desenvolvidos, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). “Não tenho ilusões sobre a próxima reunião da OMC em Cancún. Aparentemente, os Estados Unidos vão fazer concessões menores, mas, no fundamental, nada mudará no tocante à proteção à agricultura e ao acordo sobre investimentos (TRIMS). Os Estados Unidos vão torcer os braços dos países menos desenvolvidos”, afirma Stiglitz, que esteve no Brasil na semana passada. INTERESSES Segundo o economista, as posições dos EUA na OMC não refletem os interesses do povo estadunidense, mas interesses privados, como os daqueles que financiam campanhas eleitorais. “O acordo sobre propriedade intelectual (TRIPS), que envolve medicamentos genéricos, nunca foi discutido no Congresso dos EUA. Nessas negociações, estão em jogo interesses empresariais. Os países da América Latina não devem aceitar acordos injustos para seus povos, como o TRIPS”, argumenta. Classificando a democracia como essencial ao desenvolvimento, o economista diz de os países do Terceiro Mundo têm de enfren-
tar obstáculos como as regras injustas da OMC com os recursos que têm. No encontro da organização em Doha (Catar), foi dito que os desequilíbrios entre pobres e ricos seria resolvido. Mas o desequilíbrio aumentou porque, ao fim e ao cabo, “nenhum negócio é melhor do que um negócio injusto”. Apesar de um ambiente internacional inóspito, e das regras injustas da OMC, o economista acredita que o desenvolvimento econômico ainda é possível para os países mais pobres. Porém, fora dos estreitos fundamentos preconizados pelo Consenso de Washington, pelo FMI ou pelo governo dos EUA: estabilização, privatização, liberalização dos mercados e do fluxo de capitais. Depois de uma década, essa receita, que inclui a redução do papel do Estado, fracassou em todo o mundo, segundo Stiglitz. Ele considera importante reduzir a inflação, ou obter equilíbrio orçamentário. Mas só isso não
Adalberto Roque/AFP
Cancún: nada para os países pobres
■ Para Stiglitz, os EUA vão torcer os braços dos menos desenvolvidos
leva ao crescimento. Outras variáveis como emprego, desigualdades sociais e crescimento econômico têm de ser levadas em conta. No caso do emprego, diz, a flexibilização das leis trabalhistas não se traduziu em aumento do emprego, mas da informalidade. Em relação à liberdade para o fluxo de capitais, o economista estadunidense é absolutamente crítico: quando os capitais saem, a situação dos países que os receberam fica pior ainda. “Qual a evidência de que a livre circulação de capitais promove o desenvolvimento? Não há qualquer evidência científica de que a desregulamentação do mercado de capitais propicie o desenvolvimento”, analisa. Quanto à privatização, as evidências também são ambíguas, de acordo com Stiglitz. Ele cita o exemplo das concessionárias de serviços públicos: as estatais francesas são muito mais eficientes do que as privadas estadunidenses.
Estado mínimo é uma falácia FMI, Banco Mundial e EUA defendem ardorosamente um Estado mínimo. Mas ao governo estadunidense aplica-se o ditado popular: faça o que digo, mas não faça o que faço. Concretamente, nos EUA, 25% do crédito disponível são, direta ou indiretamente, governamentais, o que tem dado estímulos iniciais importantíssimos para o início de atividades de empresas de pequeno porte. E é conhecido o apoio do governo estadunidense à agricultura e à pesquisa básica. Nesse último caso, Stiglitz lembra que a Internet não existiria caso o Estado não assumisse pesados investimentos em pesquisa básica.“O retorno desses investimentos é
enorme”, enfatiza. A presença do Estado também é fundamental em áreas como a seguridade social, segundo o economista. A privatização do setor, nos EUA, reduziu em 40% o total dos benefícios dos segurados. “O sub investimento em setores de interesse público não ajuda o desenvolvimento”, destaca.
dade de conhecimento. “Políticas adequadas de emprego foram o mais importante”, enfatiza. Fizeram a reforma agrária que, de acordo com o economista, deveria ser parte da receita do FMI. Suas políticas econômicas tanto resultaram em ganhos de eficiência, quanto de eqüidade social. A sua agenda social resultou na redução do desemprego de 7 para 3,8%, a inflação foi debelada, a produtividade aumentou. “Um círculo virtuoso”, observa. O contrário de falácias aceitas como verdades absolutas: “Liberalizar o mercado de capitais não traz crescimento. Dinheiro de curto prazo não aumenta o emprego. Taxas de juros elevadas para atrair capitais de curto prazo destroem o
BOM EXEMPLO Joseph Stiglitz gosta de citar a experiência positiva de países do Leste asiático. Embora cada nação tenha sua especificidade, há elementos comuns na sua trajetória de desenvolvimento. Esses países basearam o desenvolvimento na criação de emprego, na melhoria da produtividade, na redução da desigual-
emprego e o desenvolvimento. O mundo das finanças não tem a ver com a economia real”. Defendendo a necessidade de ações coletivas, de mobilização social e da presença do Estado em áreas tão importantes como a seguridade social, saúde, educação, reforma agrária, crédito agrícola, financiamento de longo prazo, Stiglitz alerta para os perigos que envolvem a adesão de países em desenvolvimento a acordos de livre-comércio como o da América do Norte (Nafta). “O México fez sacrifícios em vão. Apesar dos baixos salários dos trabalhadores do país, eles ficaram desempregados”. (Ver mais Alca, OMC e FMI nas págs. 4,5,10, 11 e 13)
ORÇAMENTO
Não é extamente o orçamento dos sonhos,como reconheceu um acabrunhado presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT/ SP), mas permitirá um pequeno desafogo à economia em 2004. A proposta orçamentária encaminhada pelo governo federal ao Congresso, semana passada, mantém todas as metas do arrocho fiscal acertado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Entretanto, o projeto abre espaço para algum crescimento, ao reservar cerca de R$ 32,4 bilhões para investimentos, quase 26% a mais do que a previsão mais atualizada para 2003, e 40% acima do que a União e suas estatais investiram no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso. Os R$ 32,4 bilhões são a soma da previsão de investimentos da União, de R$ 7,8 bilhões, e das estatais, ao redor de R$ 24,6 bilhões, segundo dados do Ministério de Planejamento. Tomando-se apenas a União,os investimentos previstos devem saltar mais de 81%, frente ao total mais provável a ser realizado neste ano (em torno de R$ 4,2 bilhões). A injeção de mais recursos para investimentos, no setor público, ajudará a lubrificar a economia, permi-
tindo alguma recuperação em relação à recessão atual. Para 2004, o governo projeta um crescimento de 3,5%, mas ainda é cedo para diagnosticar como a economia vai reagir. Entretanto, agora, cabem algumas ressalvas. A proposta orçamentária ainda terá de ser aprovada pelo Congresso, onde poderá ser modificada, emendada, reduzida, ou ampliada. Isto é, não se trata, ainda, do orçamento definitivo. Mesmo que a proposta seja votada sem alterações, nada garante que o governo vai, efetivamente, realizar todos os gastos previstos. ORA, A LEI Em 2003, com o orçamento já em vigor, a equipe econômica do governo Luiz Inácio Lula da Silva impôs cortes generalizados de gastos de R$ 14 bilhões, não poupando sequer investimentos na área social. Este ano, a União foi autorizada a gastar R$ 14,1 bilhões com investimentos, quantia reduzida para apenas R$ 4,3 bilhões, dos quais só 10% haviam sido desembolsados até o começo de agosto. O governo petista não inovou na sua política econômica, em relação à gestão passada: em 2002, o governo FHC anunciou uma previsão de investimentos de R$ 18 bilhões, e só gastou R$ 4,5 bilhões, um quarto do que fora estabelecido no orçamento. Portanto, trata-se de saber se o
■ Mantega: o orçamento de 2004 vai ser cumprido governo manterá a prática de descumprir a lei orçamentária, antes de antecipar previsões. Segundo o ministro Guido Mantega, do Planejamento, o orçamento de 2004 foi feito para ser cumprido. “É um orçamento realista”, declarou. O discurso também não é novo, e repete o que outros ministros do passado gostavam de afirmar sempre que o governo encaminhava a sua proposta de orçamento fiscal ao Congresso. DÍVIDA Tomando-se como séria a afirmação de Mantega, as despesas da União devem crescer mais depressa do que
suas receitas. A estimativa de gastos é de quase R$ 300 bilhões, em 2004, 13% mais do que os previstos para este ano. As receitas, incluindo apenas a arrecadação de impostos, taxas, contribuições e, somando, ainda, o orçamento da Previdência, estão previstas em R$ 402,2 bilhões, o equivalente a um avanço nominal de 11,3% sobre 2003. Comparadas a 2002, despesas e receitas indicam incremento próximo a 24%. A diferença entre receitas e despesas fiscais, excluídas as transferências de recursos que a União obrigatoriamente deve fazer para Estados e municípios, e também descontados os gastos com juros e prestações da dívida pública federal, deverá deixar um superávit de R$ 42,4 bilhões. Esse dinheiro, que representa 2,45% do Produto Interno Bruto (PIB – a soma de todas as riquezas produzidas pelo país), vai todo para o pagamento dos juros da dívida. E, ainda assim, cobrirá menos da metade dos R$ 85 bilhões previstos, a despeito de uma estimativa de queda dos juros para alguma coisa ao redor de 15% ao ano (frente a 22%, hoje). ARROCHO O governo, de fato, manteve as metas espartanas fixadas para 2003,
superiores ao que exigia o FMI. Aquele resultado repete, proporcionalmente, o percentual do PIB que a União gastará para pagar uma parte dos juros de sua dívida neste ano (os mesmos 2,45% do PIB). Comparado a 2002, o superávit vai crescer 33%, uma alta salgada, embora, em relação ao PIB, praticamente não tenha havido variação (o saldo foi de 2,43% do PIB no ano passado). Como compensação, mesmo parcial, as despesas “discricionárias” (aquelas que o governo tem poder para alterar), que somam gastos com custeio e investimentos, devem aumentar 23,6%, passando de R$ 48,8 bilhões, em 2003, para R$ 60,3 bilhões. Desse valor, em torno de 70% devem ser destinados a projetos sociais, que vão receber R$ 42,7 bilhões em 2004 – 21% mais do que neste ano, e 25% acima dos R$ 34,3 bilhões gastos em 2003. Os programas de transferência de renda a famílias com rendimento inferior a meio salário mínimo devem consumir R$ 5,35 bilhões no próximo ano, 24,4% mais do que os R$ 4,30 bilhões previstos para 2003. Para os salários dos servidores, a União pretende gastar R$ 84,3 bilhões, um aumento inferior a 7% em relação a 2003, que não repõe as perdas do passado, e supera em apenas 1,4% a
BRASIL DE FATO De 4 a 10 de setembro de2003
Lauro Jardim, de São Paulo (SP)
José Cruz/ ABR
Um ligeiro sopro sobre a economia em 2004
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NACIONAL
Em evento promovido pelo Sebrae, economistas concluem que pequenas empresas poderão sofrer com a implantação da Alca; diretora da maior central sindical dos EUA diz que o acordo só beneficiará as grandes corporações; dia 7, acontece a nona edição do Grito dos Excluídos
LIVRE COMÉRCIO
Economistas propõem despolitizar a Alca A
lguns economistas, presentes dia 28 de agosto no 19º Simpósio Latino-Americano da Micro, Pequena e Média Empresa (Slamp) na capital paulista, começam uma campanha pela despolitização da discussão da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Para Lia Vals, economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ainda não é hora de se posicionar a favor ou contra o tratado. “Os estadunidenses o enxergam como um negócio e nós, brasileiros, precisamos começar a discuti-lo também dessa forma”, afirma. Silvano Gianni, diretor presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (Sebrae), promotor do Slamp, concorda. Ele acredita que as médias e pequenas empresas (MPEs) não devem temer a Alca, mas sim vê-la como uma oportunidade. Segundo Luciano Coutinho, economista da Universidade de Campinas (Unicamp-SP),“estamos tratando de um processo de integração comercial” e a negociação é quase inescapável. “Se o Brasil não negocia, entrega de bandeja todo o mercado sul-americano para o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte)”, explica. Nesse contexto ele ainda ressalta a necessidade de fazer estudos preparatórios. Estes devem ser apresentados ao público em geral e discutidos para, dessa forma, definir claramente o que fica na esfera política e o que vai para a econômica. No entanto, César Franco, presidente da Câmara da Pequena Indústria (Capeipi) do Equador, lembra um dado esquecido pelos demais palestrantes do simpósio: “Não podemos continuar numa discussão em que o poder de negociação de uns é
maior que o de outros.” Para o empresário, decisões políticas são a única forma de evitar que os países latino-americanos sofreram com a Alca o que o México sofreu com o Nafta. PARTICIPAÇÃO Ainda segundo Franco, esse respaldo político só pode ser conquistado com a participação dos parlamentos na discussão do tratado.“Dessa forma, o tema sai de esferas burocráticas e pode ser socializado; ou seja, discutido com toda a sociedade”, afirma. Durante o simpósio, em apenas dois temas houve consenso entre os participantes: a destruição das pequenas e médias empresas (MPEs) da América Latina com a abertura de mercado pretendida pelo tratado e a
necessidade de se investir nas alianças entre os países latino-americanos. Para Gianni, apesar de encarar a Alca como uma “oportunidade”, as MPEs latino-americanas são fracas para competir até no mercado interno. E, como forma de incentivar esse mercado, Juan Pablo Lohlé, embaixador da Argentina no Brasil, defende o fortalecimento do Mercosul e a intensificação dos acordos entre os países do continente. “Lula e Kirchner (os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner, da Argentina) estão trabalhando para estreitar suas relações e fortalecer esse bloco de forma equilibrada.A Alca pode ser benéfica em casos complementares, mas antes precisamos estimular nosso mercado interno”, diz.
Corporações querem reduzir direitos trabalhistas “As grandes corporações travam uma guerra desigual contra os trabalhadores”, afirma Elizabeth Drake, diretora da maior central sindical dos Estados Unidos, a Federação Estadunidense do Trabalho – Congresso de Organizações Industriais (AFL-CIO, a sigla em inglês). Segundo Elisabeth, os patrões usam armas contra as quais a frágil lei trabalhista de seu país não têm defesa. Por exemplo: a demissão de funcionários que ameacem fundar um sindicato. Pior que isso são as manobras que utilizam para impedir a criação de entidades de defesa dos direitos dos trabalhadores. Existem até consultorias especializadas em combater organizações de empregados. Além disso, as leis trabalhistas nos Estados Unidos são mais flexíveis em comparação com as dos países da América Latina. Para se ter uma
Renato Stockler
Luís Brasilino, da Redação
■ Elisabeth Drake: trabalhadores sempre levam a pior nos acordos idéia, em caso de greve, os patrões podem chamar novos empregados para repor os cargos vagos e, posteriormente, contratá-los em definitivo. “Os salários só são mais altos porque a economia estadunidense é infinitamente mais rica do que a dos
países latino-americanos”, analisa Elisabeth. Mesmo assim, no início do século XX os direitos dos trabalhadores eram garantidos por uma forte organização sindical. Porém, nas últimas décadas, com a globalização, as grandes corporações se
transferiram para países onde os custos do trabalho são menores. Principalmente por não haver organizações de defesa dos empregados. A aprovação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) deve agravar ainda mais esse quadro. Segundo Elizabeth, as empresas poderão se transferir para qualquer país, ou seja, para aqueles onde há menos direitos trabalhistas.“A Alca vai nivelar por baixo os direitos dos trabalhadores, a exemplo do que aconteceu com o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) – quando os estadunidenses perderam emprego e salário; os mexicanos herdaram subempregos. Exceto as grandes corporações, ninguém ganhou”, diz a líder sindical. (LB) Leia mais sobre Alca nas páginas 10 e 11.
Moisés Araújo
Grito dos Excluídos defende soberania nacional
BRASIL DE FATO De 7 a 13 de agosto de 2003
Demétrio Valentini, de Jales (SP)
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No Dia da Pátria, 7 de Setembro, realiza-se neste ano, pela nona vez consecutiva, o Grito dos Excluídos. Seu lema é incisivo e contundente:“Tirem as mãos... O Brasil é nosso chão!”. Como em todos os anos, o Grito alerta para causas com evidente incidência nos destinos da Pátria. Está clara a advertência sobre a importância de salvaguardar nossa soberania. O destino do país não pode ser entregue a mãos estranhas, guiadas por ambições de exploração e de submissão do Brasil a interesses hegemônicos de impérios que pretendem se impor pela ameaça da força e pelos ardis do mercantilismo. Por isso, em coerência com a causa, o Grito promove uma campanha contra a implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Dado que a proposta pode ser tentadora, com promessas ilusórias de chegarmos com rapidez aos delírios do primeiro mundo rico e esbanjador, a campanha convida para a necessária precaução: “Em defesa da nossa soberania, vacine-se contra a Alca!”. A melhor vacina contra a alienação é a consciência crítica da cidadania. Por isso, a campanha abre espaço para a participação popular e promove um abaixo-assinado, para solicitar a convocação de um plebiscito oficial sobre a Alca. “PÁTRIA GRANDE” No projeto da Alca estão envolvidos todos os países da América
■ O Grito dos Excluídos ajuda a elevar a consciência crítica dos trabalhadores Latina. Nascido no Brasil, o Grito dos Excluídos já inspirou a mesma postura de alerta e de vigilância nos países irmãos da América Latina. A afirmação da própria nacionalidade não significa ignorar a existência de pátrias irmãs, com quem somos chamados a realizar a “Pátria Grande”, no respeito pela identidade de cada nação e na solidariedade em busca das soluções que vão entrelaçando cada vez mais nossos destinos. É’ diferente a postura hegemônica de quem quer dominar da postura solidária de quem quer promover o respeito e o relacionamento fraterno entre os po-
vos. Por isso, o Grito já tem sua expressão continental, que neste ano clama “Por Trabalho, Justiça e Vida”. Poucas iniciativas tiveram uma receptividade tão grande como o Grito dos Excluídos. A essa altura, é conveniente conferir as razões de sua rápida afirmação, que o tornaram um fato de referência nacional e de significado mundial. Ainda lembro o contexto em que pela primeira vez surgiu a idéia. Estávamos numa reunião da coordenação nacional da Cáritas Brasileira. Era o início de 1995, ano da Campanha da Fraternida-
de sobre os excluídos. Na tempestade de idéias para levar adiante o tema do ano e inseri-lo nas atividades do Setor Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), alguém propôs realizar o “Grito dos Excluídos”, à semelhança de outras mobilizações, como o “Grito da Amazônia” e o “Grito da Terra”. Não demorou para todos darmos conta do potencial da sugestão, se encontrássemos maneiras de mobilizar os excluídos, e dar-lhes oportunidade para que, de fato, gritassem para o Brasil o que estavam sentindo e vivendo.
A partir daí, aceita a idéia, tratou-se de encontrar as estratégias de implementá-la. A primeira delas foi amparar a nova iniciativa no processo já em andamento. Para isso, nada melhor do que acoplar o Grito dos Excluídos com a Romaria dos Trabalhadores a Aparecida do Norte (SP). Como data simbólica, emergiu com evidência o 7 de setembro, Dia da Pátria, dia de afirmar a inclusão como direito de todos os cidadãos. Realizada com sucesso a primeira edição do Grito, em 1995, a iniciativa contou com a pronta articulação do Setor Pastoral Social da CNBB, que no ano seguinte conseguiu inserir o Grito dos Excluídos nas atividades de preparação do Jubileu do ano 2000.Assim, o Grito era assumido oficialmente pela CNBB e passava a contar com a pronta e eficaz adesão dos movimentos sociais, que se identificaram com os seus objetivos e com a sua organização. Mas o sucesso do Grito não se baseia tanto na estratégia de sua promoção. Ele continua tendo repercussão pelo acerto da causa que aponta. Coloca o dedo na moleira. Toca a ferida central do sistema neoliberal, que produz concentração e exclusão. Essa causa merece ser identificada com mais clareza, para desnudar suas entranhas. Por hoje, vamos escutar o Grito dos Excluídos. Ele impõe respeito e pede consideração, simplesmente por vir de onde vem. Demétrio Valentini é bispo da diocese de Jales (SP)
PRIVATIZAÇÃO
NACIONAL
Acordo com Fundo Monetário Internacional obriga o país a abrir mercado de saneamento a grupos estrangeiros do setor de engenharia e veta liberação de recursos para empresas públicas; não faltam recursos para financiamento do setor
FGTS financia transnacionais da água Marlene Bergamo/Folha Imagem
Lauro Jardim, de São Paulo (SP)
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grupo Suez, antiga Lyonnaise des Eaux, de origem francesa, segunda maior empresa do setor de água em todo o mundo, registrou, no primeiro semestre, um faturamento de 20,7 bilhões de euros, ou R$ 67,3 bilhões, dos quais 30%, ou 833 milhões de euros (R$ 2,7 bilhões) vieram da América do Sul. Em apenas seis meses, o grupo francês faturou perto de 4% de todas as riquezas e de todo o patrimônio acumulado pelos brasileiros em um ano. É esse grupo que vai receber recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), dinheiro do trabalhador, para ampliar seus negócios e seus lucros na cidade de Manaus, onde é dono da Águas do Amazonas desde 2000. Ao mesmo tempo, as companhias estaduais e autarquias municipais de saneamento básico são virtualmente impedidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) de tomar empréstimos ao FGTS e, por isso, não conseguem financiar seus investimentos. LIMITES Como resultado do acordo firmado com o FMI ainda no governo passado, (e ratificado em fevereiro pelo governo Lula), o Conselho Monetário Nacional (CMN), que reúne os ministros da Fazenda, do Planejamento e o presidente do
■ Estação de tratamento de água de São Paulo: dinheiro de trabalhadores vai para estrangeiros Banco Central, baixou a Resolução 2.927, em março de 2001, que, entre outras coisas, limita o endividamento de órgãos e empresas públicas. O objetivo declarado é evitar que a dívida dessas empresas continuasse a subir. Para 2003, o limite de empréstimos para saneamento, fixado pela Resolução 3.049, foi de R$ 200 milhões – menos de 10% do que o setor precisaria investir para assegurar o avanço do atendimento à população, e a renovação dos sistemas de abastecimento de água, co-
leta e tratamento de esgoto. Para favorecer grupos estrangeiros, e obrigar o Brasil a importar o que não precisa, o FMI abriu duas exceções, prevendo situações em que os limites de endividamento poderiam ser ultrapassados sem gerar punições ao país. PRIVILÉGIOS No primeiro caso, Estados e prefeituras que renegociaram suas dívidas com a União, e ainda têm folga para contratar novos empréstimos, sem que isso afete sua capa-
cidade de pagamento, podem extrapolar os limites ditados pelo FMI (e acatados pelo governo). Nesta hipótese, uma avaliação da Caixa Econômica Federal (CEF) é que vai definir se o dinheiro pode ou não ser liberado. De acordo com Abelardo de Oliveira Filho, secretário nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, a Sanepar (empresa estadual de saneamento do Paraná) deve contratar R$ 64 milhões para investir em 15 municípios paranaenses. As empresas da
Bahia e do Ceará, aprovadas pela CEF, pretendem receber, respectivamente, R$ 85 milhões e R$ 110 milhões. A outra exceção, no entanto, impõe condições mais severas, ao obrigar o Brasil a abrir licitação internacional para realizar obras de saneamento com recursos do FGTS. Numa palavra, obriga a destinar o dinheiro compulsoriamente poupado pelos trabalhadores para fazer frente a períodos de desemprego, doenças e aposentadoria, e utilizado pelo governo para financiar investimentos em habitação e saneamento básico, aos grandes grupos que dominam o mercado mundial da água. A operação foi aprovada pelo conselho curador do FGTS, formado por representantes do governo federal, que detém metade dos 16 assentos no conselho, das centrais sindicais (quatro membros) e dos empregadores (quatro). Só neste ano, estão disponíveis R$ 1,4 bilhão, para uma demanda total estimada em R$ 2,7 bilhões pelo Ministério das Cidades, incluindo apenas as companhias estaduais e autarquias municipais. Mas o FGTS teria um estoque de recursos entre R$ 14 bilhões e R$ 15 bilhões para fazer frente a futuros investimentos, de acordo com Silvano Silvério da Costa, presidente da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae).
EMPRÉSTIMOS O presidente da Assemae mostra onde está o dinheiro.Todos os anos, diz, as empresas estaduais e as autarquias municipais investem, em média, R$ 1,8 bilhão com recursos próprios. “Este é um dado histórico”, reforça Costa. O retorno de empréstimos com recursos do FGTS
■ Não é privatização que vai resolver o problema de 25 milhões de brasileiros sem acesso a água alcança, anualmente, perto de R$ 2 bilhões, e o BNDES teria mais R$ 1 bilhão para emprestar ao setor. Só aqui, a soma atinge R$ 4,8 bilhões, aos quais Costa acrescenta perto de R$ 1 bilhão a serem arrecadados quando a Agência Nacional de Águas (ANA) regulamentar e entrar
em vigor a cobrança pelo uso da água em todo o país, e mais R$ 700 milhões poderiam vir do orçamento geral da União, sem causar problemas de caixa para o governo. Seriam exatos R$ 6,5 bilhões por ano, recursos considerados suficientes para universalizar o acesso à água
e ao esgoto, coletado e tratado, cobrindo praticamente 100% da população, em 20 anos, de acordo com Costa. O que é inaceitável, ressalva o professor da UFBa, é desviar esse dinheiro para grupos privados. “O grande discurso em favor da privatização alega que o setor públi-
co brasileiro faliu e não tem dinheiro para financiar as metas de universalização do saneamento básico. As empresas privadas deveriam, então, trazer dinheiro novo para o setor. O que não pode é dizer que o Estado está quebrado e, em seguida, bater às portas do FGTS e do BNDES atrás de recursos”, dispara Morais. Além da Águas do Amazonas, do grupo Suez, que deve receber R$ 20 milhões do FGTS, o consórcio Prolagos (formado pelas empresas Planup, Epal e Monteiro Aranha) espera contratar R$ 51 milhões. O consócio assumiu plenamente os sistemas de água e esgoto da região dos lagos, no Estado do Rio de Janeiro, que atende quatro cidades, com população de cerca de 220 mil habitantes. Com base na exigência de abertura de concorrências internacionais, onde o crédito será contratado, na prática, pelo fornecedor do serviço, estão na fila a Sabesp (SP), com pleito de R$ 275 milhões; a Copasa (MG), R$ 45 milhões; a Sanasa, da prefeitura de Campinas, R$ 13 milhões; e a Saneago (GO), com um pedido em análise de R$ 88 milhões, entre outras.
Os donos do mercado mundial Enquanto o Congresso discute o futuro do setor de saneamento básico e quem deverá deter o poder de autorizar as concessões de serviços no setor (Estados ou municípios), a privatização avança. Até setembro de 1996, segundo levantamentos do BNDES e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 12 municípios, (11 em São Paulo), tinham privatizado seus serviços de água ou de esgoto, incluindo Limeira, onde a concessão foi transferida para um consórcio formado pela
francesa Suez e pela empreiteira baiana Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO). Ribeirão Preto, ainda na administração do hoje ministro petista Antonio Palocci, também entrou na onda da privatização, transferindo a operação do serviço de água para a REK Construtora e para a CH2M Hill, dos Estados Unidos. Detalhe: dos R$ 43 milhões desembolsados pelas duas empresas, 70% (R$ 30 milhões) foram financiados pelo BNDES, com prazos de 10 anos e juros abaixo dos de mercado.
Em 1998, os serviços estavam privatizados em 32 cidades (20 em São Paulo), com as concessões dominadas por grandes empreiteiras – além da CBPO, participavam os grupos Monteiro Aranha, Cowan, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez (que comprou uma parte do capital da Sanepar, do Paraná, em conjunto com a francesa Vivendi e a geradora paranaense de energia Copel), Camargo Corrêa, Planup, Epal, Tejofran, Multiservice e outras. Hoje, segundo estimativa da Assemae, 57 municípios (ou 1% do total)
privatizaram os serviços de água e de saneamento, cujas concessões passaram às mãos de 44 empresas. O setor privado responde pelo abastecimento de água para 4% da população mundial, segundo o professor Luiz Roberto Santos Morais, especialista em abastecimento da Universidade Federal da Bahia. E 81% desse mercado estão nas mãos de quatro grandes grupos: as francesas Vivendi (32%), Suez (31%) e Saur/Bouygues (10%), e a alemã RWE (8%).
BRASIL DE FATO De 4 a 10 de setembro de 2003
A solução, que expõe o Brasil ao risco de contratar serviços de engenharia de transnacionais em uma área na qual as empresas brasileiras têm competência e excelência reconhecidas internacionalmente “não é a ideal”, reconhece Abelardo de Oliveira Filho, secretário Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades. Dentro das circunstâncias (leia-se, devido ao acordo com o FMI), acrescenta, foi o caminho encontrado para financiar a expansão dos sistemas de água e esgoto, que hoje deixam sem água quase 25 milhões de brasileiros, nos cálculos de Luiz Roberto Santos Morais, professor titular da cadeira de Saneamento da Universidade Federal da Bahia. Oliveira Filho acredita que, exatamente por causa da competência da engenharia nacional, as transnacionais não podem ser consideradas, automaticamente, vencedoras das licitações. “O fato de abrirmos concorrências internacionais não significa que as estrangeiras vão vencer”, diz ele. Silvano Silvério da Costa, da Assemae, também acredita que não há intenção de favorecer o capital estrangeiro. Mas ambos reconhecem que há risco de importação desnecessária de serviços de engenharia. O mais grave, acentuam Costa e Morais, é que não falta dinheiro para o setor, ao contrário do mito construído para justificar a privatização e a entrada de grupos estrangeiros.“O problema não é a falta de recursos, mas a cláusula do acordo com o FMI que impede as empresas públicas (estaduais e municipais) de fazer investimentos”, observa Costa.
Maurício Lima/AFP
O mito da falta de recursos financeiros
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Duas faces da Justiça no campo: o juiz Victor Sebem Ferreira, da Vara Agrária de Santa Catarina, vai ao lugar onde há conflitos para fazer acordos; no STF, a relatora do processo do complexo Southall, ministra Ellen Gracie, foi casada com um primo da dona de metade da área
REFORMA AGRÁRIA
Olívio Lamas
Juiz prova: há solução pacífica no campo Guido Schvartzman, de Florianópolis (SC)
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SIMPLIFICANDO Ferreira fez o contrário, se deslocando pessoalmente até o local do conflito. Lá, conversava com as partes, facilitando o diálogo. Iniciada a negociação, os passos iniciais para a resolução do problema eram dados no Fórum da região. Lá nascia um primeiro acordo, mesmo que provisório, garantindo a manutenção do acampamento até o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) encontrar uma área definitiva. Segundo Ferreira, uma saída pacífica beneficia as duas partes. “Os acampados não têm de se retirar do
■ Ferreira (à esq.) visita acampamento no interior de Santa Catarina: diálogo como solução
Uma lembrança inesquecível Victor Sebem Ferreira lembra-se até hoje da primeira ação como Juiz agrário do Estado de Santa Catarina. Como em toda estréia, a ansiedade e a expectativa são comuns; no entanto, nesse caso, tudo parecia mais desafiador. Principalmente porque a polícia e os acampados já tinham chegado às vias de fato. Chegando a Fraiburgo, região do confronto, situada cerca de 300 quilômetros de Flor ianópolis, o juiz foi alertado pelo comandante da Polícia Militar que não deveria se
Laços de família: STF suspende desapropriação
BRASIL DE FATO De 4 a 10 de setembro de 2003
Miguel Stedile, de Porto Alegre (RS)
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A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 14 de agosto, de suspender a desapropriação dos 13,2 mil hectares do complexo Southall, em São Gabriel (RS), não foi tomada por critérios técnicos ou jurídicos, mas, sim, por motivos familiares. Segundo denúncia feita pelo deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT), a relatora do processo, ministra Ellen Gracie, possui afinidade de parentesco com a esposa do proprietário da área em disputa. A ministra foi casada e tem uma filha com um primo-irmão da esposa do latifundiário Alfredo Southall, proprietária da metade da fazenda em disputa.“Isso explica todo o comportamento da Ministra no julgamento, cheio de suspeitas e falhas”, afirma Görgen. Entre os erros apontados no processo estão os fatos de ter tornado pública a liminar que suspendia a desapropriação no mesmo dia e horário em que os fazendeiros de São Gabriel encontravam-se reunidos em assembléia, ter acatado um mandado de segurança sobre matéria transitada em julgamento e de ignorar a presença do proprietário nas barreiras que impediram as vistorias, apesar das fotos comprovarem o contrário. “Um caso que envolve o destino de 600 famílias, que necessitam da terra para ganhar o pão, tem o seu julgamento eticamente contaminado por laços de família”, conclui o deputado Görgen.
A ministra Ellen Gracie limitou-se a responder as acusações através de uma nota à Imprensa, distribuída pelo STF, onde afirma que “não é parente dos proprietários” e que “a ministra sequer conhece os proprietários das referidas terras”. O proprietário da área Alfredo Southall, no entanto, confirmou à imprensa o parentesco da ministra com sua esposa. Segundo o artigo 1.839 do novo Código Civil, em tese, pode haver benefício econômico da filha da ministra através de sucessão de herança da Fazenda Southall. DECISÃO POLÍTICA Para Jurandir da Silva, advogado do MST no Estado, a denúncia reforça a opinião de que a decisão do STF foi política, “a indicação para os cargos do STF é política, as decisões também são” afirma o advogado, para quem a decisão também foi um recado para o governo federal: “o Judiciário acendeu a luz vermelha para o governo, avisando que terá que negociar com os interesses do Judiciário”. O deputado Görgen deverá encaminhar as denúncias ao Ministério Público esta semana. Apesar da suspensão da desapropriação, o MST no Rio Grande do Sul espera que o governo federal transforme a área em assentamento, executando as dívidas do proprietário com os cofres públicos, em torno de R$ 27 milhões, superior ao próprio valor da área.
dirigir ao local, sob pena de comprometer a sua segurança. Acostumado a viver entre os caboclos de sua terra natal, Curitibanos, Ferreira não teve receio, porém, foi ouvir outras opiniões. Jaime Vicari, coordenador dos magistrados, sugeriu que procurasse um padre local, que poderia ter acesso aos acampados. Juiz, o padre da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e um oficial da polícia foram ao acampamento, procurando conversar com algum representante do movimento. “Fui muito bem recebido, como
teria sido sem qualquer outro preparativo.Ali, verifiquei as péssimas condições de vida das famílias acampadas, conversamos, procuramos uma solução pacífica para a questão”. No dia seguinte, foi realizada a audiência no fórum de Fraiburgo, quando tanto os representantes do Movimento dos Sem-Terra quanto o proprietário rural concordaram em assinar um acordo que permitia a permanência provisória do acampamento no local. Esse foi apenas um dos tantos conflitos resolvidos pelo juiz que, além de procurar uma solução pacífica, pas-
sou a colaborar com os Sem-Terra, levando doações e lembranças para as crianças, sempre que possível.“Eu passei a levar balas e doces, a princípio, porque, quando estávamos saindo do acampamento, meu motorista, o Pedrinho, tinha um pacote de balas que foi distribuído entre as crianças.A felicidade foi tanta, que percebi a carência deles. Então passei a levar roupas e comida que, além ajudar, gerava um laço de confiança que mais tarde seria importante para as negociações”.
DIREITOS
Índios Terena enfrentam invasores Divulgação
um Brasil marcado por dificuldades em aprovar a reforma agrária e com os conflitos de terra deixando rastros de mortos e feridos, a trajetória de um juiz de Santa Catarina mostra como é possível administrar conflitos sem derramamento de sangue, um caminho para a solução na difícil tarefa de votar a reforma agrária. Com respaldo do Artigo 126, parágrafo único da Constituição de 1988, todos os Estados brasileiros podem nomear um juiz que trate exclusivamente da questão da terra. À exceção da Paraíba, que saiu na frente, apenas em 2000 surgiram as primeiras varas agrárias. As ações deVictor Sebem Ferreira, juiz nomeado para o cargo em Santa Catarina, mostram a viabilidade de resolução pacífica de conflitos A começar pela simplificação de procedimentos como o transporte das partes envolvidas. Nos Estados que têm varas agrárias, tanto os proprietários de terras quanto os representantes dos acampados são obrigados a se deslocar até a sede da Justiça, o que, no campo, é um problema.
local para se instalar num outro local, o proprietário evita que a sua propriedade seja reocupada e passa a conviver pacificamente com os acampados até o Incra encontrar outro local”. Nos acampamentos provisórios, permitidos judicialmente, os acampados podem cultivar uma pequena horta que lhes garanta um alimento adicional. Mas não podem lançar mão de produtos cultivados na propriedade, ou in natura, nem poluir um córrego, ou rio que passe próximo ao acampamento. Victor Sebem Ferreira se aposentou, mas o juiz Jânio Machado, que o substituiu, trabalha da mesma forma. Ferreira acredita que é possível implantar definitivamente a reforma agrária no Brasil, ainda neste governo, mas alerta para a necessidade de um plano que apóie com recursos e investimentos os assentados, que não terão como se tornar auto-suficientes apenas com um terreno à disposição.
Jorge Vieira, de Campo Grande (MS) Liliane Luchin, de Brasília Os mais de 500 índios Terena da aldeia Buriti, localizada em Sidrolândia, a 98 km de Campo Grande, encerraram a última semana de agosto com uma grande vitória. Após ter retomado parte de suas terras invadidas por onze fazendas da região, eles fecharam acordo com o juiz federal Odilon de Oliveira e aceitaram desocupar quatro propriedades. Mas, pela negociação, poderão continuar acampados em sete fazendas até a conclusão de um novo laudo que deverá indicar, em 120 dias, se a área pertence ou não ao território Terena. Apesar de a Constituição de 1988 ter determinado um prazo de cinco anos - a partir de sua promulgação - para o governo federal demarcar todas as áreas indígenas do país, a maioria das terras dos Terena sequer foi identificada; outras se arrastam em fase de estudo e as que tiveram os relatórios concluídos estão sob processo. As quatro fazendas retomadas dia 25 estão na aldeia Buriti. Parte do território foi homologado em 30 de outubro de 1991, com 2.090 hectares. Em 2000, uma revisão de limites e novo estudo antropológico ampliou a área para cerca de 17 mil hectares. Até agora, eles retomaram onze das 30 fazendas que estão dentro da área, totalizando 2.113 mil hectares. Os outros 14 mil hectares
■ Índios Terena denunciam lentidão da Justiça estão nas mãos de grandes fazendeiros da região, que entraram com 108 ações questionando na Justiça o laudo antropológico. Um dos maiores povos indígenas do Brasil, com mais de 30 mil pessoas, os Terena estão organizados em 33 aldeias, sendo a maioria concentrada na vasta região pantaneira do Mato Grosso do Sul. Parte de sua população habita a periferia de grandes cidades do Estado, como Campo Grande, Dourados, Sidrolândia e Aquidauana, além de outras de São Paulo e Mato Grosso. Os fazendeiros invasores vêm contando com apoio de políticos do Estado. Dia 23 de abril, em audiência pública realizada pela Assembléia Legislativa do Estado, o
deputado estadual Zé Teixeira (PFL-MS) alegou ter documentos que comprovam a compra de suas propriedades, como sendo “direitos históricos dos fazendeiros”. PRESSÃO DE POLÍTICOS As forças políticas e econômicas contrárias à demarcação das terras indígenas também encontram guarida nos altos escalões do judiciário. As ações propostas pelos fazendeiros na primeira instância da Justiça Federal são sempre aceitas. Como exemplo, basta lembrar a decisão que anulou o laudo antropológico realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e as concessões de liminares de reintegração e manutenção de posse das fazendas na aldeia Buriti.Tais ações se encontram no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, nas mãos da desembargadora Suzana Camargo, relatora da 5ª turma. Segundo informação veiculada na imprensa sulmatogrossense, a desembargadora recebeu homenagens dos fazendeiros recentemente por “serviços prestados” ao Estado. A reação da Federação da Agricultura do Mato Grosso do Sul (Famasul) contra os povos indígenas da região, tem ocorrido de forma preconceituosa e violenta. Mas os Terena não se deixam intimidar. Avisam que estão mobilizados e acompanharão os trabalhos técnicos para a garantia e a conquista do seu território tradicional.
DÍVIDA EXTERNA
NACIONAL
Indicado para o Prêmio Nobel de Economia, Celso Furtado defende, no Rio de Janeiro, a suspensão do pagamento da dívida; Maria da Conceição Tavares não crê que FMI será mais flexível; chacina de Vigário Geral completa dez anos e assassinos continuam impunes
deve se preparar para “O Brasil enfrentar uma moratória
que poderá ser uma saída inevitável para o país voltar a crescer”, analisou o economista Celso Furtado, na abertura do Ciclo de Seminários “Brasil em Desenvolvimento”, dia 1º no Rio de Janeiro (RJ). Furtado classificou, na sua apresentação, a economia do Brasil de “aleijada”. Ou se adota uma política de endividamento externo - como foram os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso - ou então vive-se em recessão - como atualmente. “Isso é uma coisa absurda e mostra as contradições profundas da sociedade brasileira”, assinalou.
Segundo o economista, a moratória funcionaria como um instrumento para o governo brasileiro renegociar sua dívida. “O país não pode mais acumular débitos e nem continuar parado por um ou dois anos”, disse. DECISÃO POLÍTICA Furtado entende que a suspensão do pagamento da dívida, para enfrentar a crise atravessada pelo País, é uma decisão política e não técnica. Para ele, o Brasil reúne, hoje, melhores condições de enfrentar as eventuais conseqüências de uma moratória do que em outros períodos, como por exemplo, quando o próprio Furtado integ rava os gover nos Juscelino Kubistchek e José Sarney. Indicado para o Prêmio Nobel de Economia de 2003, o econo-
■ O economista Celso Furtado, na abertura do seminário mista considera, no entanto, que a moratória não poderia ser declarada imediatamente, pois seria um projeto de longo prazo, a ser preparado com antecedência. Uma das medidas necessárias seria o controle
de câmbio, algo em que o Brasil tem longa tradição e meios para fazer. Furtado mostrou confiança no efeito que uma moratória teria no mercado financeiro.“O mercado financeiro encolhe até certo ponto,
VIOLÊNCIA URBANA
Nestor Cozetti, Cláudia Santiago e Daniel Castro, do Rio de Janeiro (RJ) Dia 29 de agosto de 1993, há dez anos, ocorreu a chacina da Favela de Vigário Geral, na região da Leopoldina; uma semana antes acontecera a chacina da Candelária, no Centro, ambas no Rio. Em Vigário Geral, 52 encapuzados fuzilaram 21 homens, mulheres e adolescentes, a maioria sem ficha na polícia, dois dias depois da morte de quatro PMs por traficantes. Na casa nº 13 da Rua Antônio Mendes, que teria pertencido a um exdetento, segundo a PM, oito pessoas da mesma família foram simul-
tâneamente executadas em cinco pontos da favela. Os exterminadores deixaram o local a pé. Antes da matança, os assassinos destruíram orelhões e deixaram ruas às escuras. Dez anos depois, dos 52 envolvidos na chacina, apenas dois foram condenados. Vinte e sete expoliciais militares envolvidos na chacina deram entrada em mandado de segurança coletivo, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), para conseguir reintegração à PM, com direito a pedido de salários atrasados, promoções e até indenização milionária por danos morais. Entretanto, as chacinas continuam.
Movimentos sociais discutem criminalidade No contexto da lembrança dos 10 anos da Chacina de Vigário Geral realizou-se dia 23, na Favela do Borel, zona Norte do Rio, um seminário sobre Criminalidade e Violência na Visão dos Movimentos Sociais. Participaram militantes da Frente de Libertação Popular – FLP, Associação de Familiares dos Presos, Grupo Tortura Nunca Mais e dos movimentos Hip Hop, Direitos Humanos, Universidade Popular MUP, Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Negro da Universidade Federal do Rio de Janeiro MN/UFRJ e Central dos Movimentos Populares. Presentes moradores do Borel e comunidades vizinhas, estudantes e gente do Favelania (os que reivindicam cidadania para as favelas). CAMINHADA DIFERENTE O morro do Borel inaugurou um tipo de luta quando cerca de mil pessoas desceram para protestar contra quatro assassinatos (um estudante, um taxista, um mecânico e um pintor) ali ocorridos. Fizeram uma caminhada pela rua Conde de Bonfim, a principal da Tijuca. Diz Jonas Gonçalves Lima Filho, presidente da Associação de Moradores do Borel: “Fizemos assembléias com os familiares das vítimas e houve uma grande participação dos moradores. A comunidade se redescobriu na luta contra a violência policial e percebeu outras formas de agir”. A escolha do Borel para sediar
o seminário visou fortalecer entre os moradores um sentimento de dignidade que vem crescendo desde a passeata. A mobilização provocou a visita dos secretários nacionais de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e de Segurança Pública, Luís Eduardo Soares. Na opinião da moradora do Borel, Sônia Maria de Araújo, presente no Seminário, a violência não é só espancamento.“É desemprego, não ter um lugar decente para morar, não ter comida para comer, é uma lei não cumprida”. Acrescentou: “No mesmo dia em que a Gabriela foi assassinada” – Gabriela Prado Maia Ribeiro, estudante de classe média, 14 anos, vítima de bala perdida numa saída do metrô na Tijuca (o bairro de maior concentração de renda da zona Norte do Rio de Janeiro), dia 25 de março de 2003, morreram, também de bala perdida, um rapaz de 16 anos, no Jacaré, e uma criança de seis, em Padre Miguel. Ninguém se revoltou. No dia da passeata da Gabriela, o Viva Rio (ONG também criticada pelas comunidades com o nome de Viva Rico) distribuiu vale-transporte nas salas de aula do telecurso”. No final do seminários, os participantes decidiram criar uma rede popular de combate à violência; estruturar as redes de integração dos movimentos; unificar a luta contra o capitalismo; e lutar contra novas chacinas.
Felipe Varanda/ folha imagem
Dez anos da chacina de Vigário Geral
■ Moradores plantam 21 mudas para lembrar os mortos da chacina
mas ninguém quer perder o Brasil, um bom cliente”, explicou o economista. Para ele, a economia brasileira não seria paralisada com a suspensão do pagamento da dívida. A economista Maria da Conceição Tavares, outra palestrante do evento, também se mostrou crítica em relação à dívida brasileira. “Temos um passivo de 450 bilhões de dólares nas mãos. O que é que se faz com isso?”, perguntou a ex-deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Maria da Conceição disse estar cética quanto à uma renegociação do acordo com o FMI que garanta mais soberania ao Estado brasileiro. “Tenhos sérias dúvidas de que algum governo na América Latina seja capaz de mudar as regras do FMI. Se nem a Anne Krueger conseguiu...”, afirmou, citando à vice-diretora gerente do FMI. Para a economista, o maior problema do Brasil não é econômico, mas social, decorrente dos índices “vergonhosos” de concentração de renda. Por isso, a prioridade hoje deveria ser a criação de empregos. Furtado explicou que a tendência da concentração de renda no país é estrutural. “As altas taxas de juros, por exemplo, decorrem de razões históricas; a economia crescendo um por cento ao ano e a taxa de juros em torno dos 20, nos faz imaginar como a renda não está concentrada. Enquanto isso continuar, o sistema não vai deixar de ser perverso”, afirma. O economista também comentou a situação no campo: “o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) o mais corajoso e bonito movimento social do Brasil.”
ENTREVISTA
Os “Cavalos Corredores” O diretor de cultura e divulgação da Associação de Moradores e Amigos de Vigário Geral (Amavig), João Ricardo JR, nasceu e foi criado no Parque Proletário de Vigário Geral. Aos 39 anos, é também dirigente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele relembra a chacina e diz que não mudou nada nestes dez anos. E acrescenta: “a garotada que está hoje no tráfico são filhos da chacina”. Brasil de Fato – Como foi a chacina de Vigário Geral? João Ricardo (JR) – Os caras mataram aleatoriamente pessoas indefesas. Um grupo de policiais do 9º Batalhão de Rocha Mi-
randa, chamados de “Cavalos Corredores”, cúmplices do tráfico, que extorquiam. Suspeita-se que os quatro policiais mortos na antevéspera teriam ido lá para fazer alguma transação com drogas, que não deu certo, e foram então mortos. Os “Cavalos” foram”lá para se vingar e retomar o dinheiro perdido, é o que se comenta, mas sem provas.
de Federal Fluminense para os dirigentes comunitários das favelas.
BF – As ONGs que surgiram logo após à chacina não ajudaram em nada? JR - Não, não mudaram nada, nenhuma delas ajudou a mudar nada... Quem tem que fazer é o governo, é para isso que pagamos os impostos.
BF – E o que aconteceu depois? JR – Nesses dez anos não se colocou uma escola de 2º Grau, não aumentou o número de escolas em Vigário Geral. Não tem um posto de saúde. Hoje, pra você ter uma idéia, a imprensa está incomodada porque o MST tem um curso na Universida-
BF - O tráfico entra neste vácuo de poder aí? JR – Com certeza. O tráfico muitas vezes cumpre o papel do governo dando remédios e transporte às pessoas doentes. A garotada que está hoje no tráfico são filhos daquela época, os que tinham 12 têm hoje 22 anos, são os filhos da chacina.
Comunidade propõe marcha em Brasília Outro seminário, Mídia e Favelas, ocorreu dia 26 de agosto na Associação Brasileira de Imprensa ABI, no Rio, organizado junto com o Movimento Popular de Favelas – MPF e o Brasil de Fato, havia sido proposto na comunidade do Jacarezinho. Lá surgiu a idéia da caminhada até Brasília, onde deverão ser entregues ao presidente Lula no dia de Zumbi dos Palmares – 20 de novembro - as propostas de inclusão social dos setores excluídos do mercado de consumo, habitação, educação, saúde e emprego. O primeiro a falar foi o diretor e
conselheiro da ABI Osvaldo Peres Maneschy, para o qual “o domínio do povo começa pelo controle dos meios de comunicação. Esse seminário tem como objetivo garantir o espaço de quem tem dificuldades para furar a chamada grande mídia” Numa das duas mesas, afirmou o professor universitário Hélio Santos: “Ao mesmo tempo em que o Brasil produz aviões para o mercado internacional, não consegue manter uma rede de distribuição de soro para combater a desidratação infantil, uma das maiores causas de mortalidade no Brasil”. Para o jor-
nalista Marco Morel, autor do estudo “Jornalismo Popular nas Favelas Cariocas”, os jornais de favela, que na década de 80 “existiam aos montes”, hoje estão extintos, principalmente em função de os grandes veículos de comunicação terem passado a dar espaço às questões das favelas, mesmo que de forma reduzida e distorcida. Afirmou o coordenador executivo do MPF, Rumba Gabriel: “As leis são e foram feitas pelos brancos e burgueses. Pelo artigo 5º da Constituição somos todos iguais, mas na prática valemos pela nossa conta bancária”.
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Mário Augusto Jakobskind, especial para o Brasil de Fato
Felipe Varanda/Folha Imagem
Moratória é inevitável, diz Furtado
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NACIONAL
Houve sabotagem em Alcântara e mais uma vez os olhares se lançam para os EUA. Para Bautista Vidal, a explosão é resultado do servilismo de técnicos brasileiros que não defendem o Brasil. Em contrapartida, remanescentes de quilombos permanecem resistentes à ocupação.
SOBERANIA
Alcântara, a grande sabotagem Denio Hurtado/AE
Beto Almeida, de Brasília (DF)
A
explosão que matou 21 técnicos e destruiu a plataforma de lançamento do VLS em Alcântara (MA) foi, sim, produto de sabotagem. Não de uma sabotagem no varejo, mas de uma grande sabotagem que, destruindo o parque produtivo e os centros tecnológicos brasileiros, está estrangulando projetos estratégicos prioritários para o avanço do país. “A explosão é fruto de anos e anos de imposição externa e de servilismo de dirigentes que não se respeitam e não defendem os interesses brasileiros ante os interesses externos”, diz o professor BautistaVidal, da Universidade de Brasília, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
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BF – Poderia ter havido falhas de segurança? Vidal – Nesse caso, entra outra hipótese de uma intervenção externa não prevista, que rompe com tudo isso. Todas as precauções adotadas podem ser superadas por intervenções eletromagnéticas à distância, com grande potência, que provoquem correntes adicionais não previstas. Essas correntes podem inclusive acionar à distância a operação de um dos motores sem que houvesse previsão para esse motor funcionar naquele momento. Uma parafernália como uma Central de Lançamentos de Foguetes envolve um grande número de produtos industriais, componentes de altíssimo nível de qualidade, que, por sua vez, exigem um patamar muito elevado da produção industrial. O próprio Centro Tecnológico Aeroespacial (CTA) vem trabalhando há cerca de meio século nesses projetos aeronáuticos e de lançamento de foguetes com etapas sucessivas. Em cada uma dessas etapas, o CTA procura informações nos países de maior desenvolvimento tecnológico, mas, em geral, essas informações são sistematicamente negadas. Então o CTA arregaça as mangas e desenvolve. Há uma quantidade enorme de novos produtos, novos componentes,
José Walter Bautista Vidal é físico e engenheiro, formado na universidade de Santiago de Compostela (Espanha) e em Stanford (Estados Unidos). Foi três vezes Secretário de Tecnologia Industrial e é o principal responsável pela implementação do programa Pró-álcool, criado na década de 70 para enfrentar a crise de abastecimento de petróleo, durante o governo do general Ernesto Geisel. Autor, entre outras obras, de A reconquista do Brasil e o Poder dos trópicos, Bautista Vidal é um dos principais críticos do modelo atual brasileiro de desenvolvimento da área energética.
sistemas novos de engenharia, todos desenvolvidos aqui no Brasil, sempre em conjugação do Estado com as indústrias de capital nacional. As indústrias estrangeiras não têm permissão da matriz para que as subsidiárias desenvolvam tecnologia. Já fizemos com total sucesso o lançamento da Sonda I, depois o da Sonda II, depois, aumentando o peso, o da Sonda III. Tudo isso vai capacitando a indústria nacional na fabricação dos componentes. É aí que vem a ques-
tão que estou analisando, um terrível terremoto que foram esses anos do governo Collor, mas principalmente do governo FHC, que destruiu grande parte dessa indústria sofiticada. Houve uma verdadeira devastação, uma destruição, o que não foi internacionalizado foi fechado, centenas e centenas de empresas da área metalúrgica, de componentes eletrônicos, foram fechadas. Isso representou uma verdadeira hecatombe! O governo FHC foi um desastre nacional.
BF – Quais os efeitos dessa destruição? Vidal – Essa sabotagem é mil vezes mais complexa e mais importante do que a outra em que o bandido chega lá, aciona um dispositivo que pode, em tese, com alguma competência nossa, ser evitado. A outra destruição, não: leva mais de vinte anos para recompor as perdas, os investimentos feitos, o nível alcançado, a especialização de um corpo de técnicos do mais alto nível que,
depois de anos de preparação, perdem o emprego. Estive em São José dos Campos há dois anos e era desolador verificar milhares de apartamentos vazios porque houve o fechamento de vários ramos industriais, causado pelas políticas neoliberais, na qual o Brasil retirou todas as suas proteções, em troco de absolutamente nada, enquanto os estadunidenses, os ingleses, os franceses mantém restrições aos nossos produtos altamente competitivos.
Rose Brasil/ABR
Brasil de Fato – Como o senhor analisa a hipótese de uma sabotagem ? Bautista Vidal – Há fatos trazidos pela imprensa, como a presença de navios estrangeiros na baía de São Marcos durante as experiências, e de um grande número de cidadãos estadunidenses na vizinhança. A Base de Alcântara é, disparado, a melhor base de satélites do mundo: situada no Equador, permite uma economia enorme de energia nos lançamentos. Os países do grupo anglo-saxão, liderados pelos Estados Unidos, montaram uma estrutura gigantesca de espionagem industrial e tecnológica. Claro que é uma estrutura de sabotagem. Tudo isso são fatos conhecidos. Mas eu me sinto incompetente para entrar nos meandros dessa história. Não é uma questão científica, é uma questão de técnicas de suborno, técnicas de todo tipo. Então, sem ter acesso às informações, é difícil fazer um julgamento mais concreto de todas as variáveis. Provavelmente, as Forças Armadas terão condições e especialização para julgar concretamente o ocorrido. A outra questão está relacionada a possíveis erros técnicos e até humanos. Os erros humanos são imprevisíveis. Por isso, nessas experiências com grandes massas de energia, com possibilidades de explosões, existem vários sistemas de segurança, com várias fases. Se um falhar, vem o outro dispositivo, reduzindo as falhas humanas, que são conhecidas.
Quem é
■ Técnico vistoria destroços da plataforma de lançamento de satélites em Alcântara: espionagem industrial e tecnológico
A luta pelo controle da base Maria Luisa Mendonça, da Redação Após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, o governo decidiu suspender a votação, na Câmara dos Deputados, do acordo que permitiria o uso da Base de Alcântara pelos Estados Unidos. Essa decisão foi resultado de uma grande mobilização em nível nacional e continental, por meio da Campanha contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), e da resistência das comunidades remanescentes de quilombos em Alcântara. No ano passado, o plebiscito popular sobre a Alca incluiu uma pergunta sobre o controle da Base de Alcântara pelos Estados Unidos, rejeitado por mais de dez milhões de votantes. Atualmente, a Câmara dos Deputados analisa um acordo entre Brasil e Ucrânia para a utilização da base. O documento foi aprovado na Comissão de Relações Exteriores, com parecer favorável de seu relator, deputado Jorge Bittar (PT-RJ). A proposta da Ucrânia é muito semelhante ao acordo com os Estados Unidos, que procurava delimitar áreas restritas e proibir o
governo brasileiro de inspecionar o conteúdo dos equipamentos. A proposta do deputado Bittar alerta para esses problemas, mas não assegura o controle da base ao governo brasileiro. As cláusulas abaixo estabelecem apenas que Brasil e Ucrânia “envidarão seus melhores esforços”, na garantia desses direitos. A proposta prevê: I – em relação ao disposto no artigo IV, parágrafo 3, o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da Ucrânia envidarão seus melhores esforços para assegurar que autoridades brasileiras participem também do controle das áreas restritas, respeitada a proteção da tecnologia de origem ucraniana; II – no que tange ao estabelecido no artigo V, o Governo da República da Ucrânia envidará seus melhores esforços para autorizar os seus Licenciados a divulgar informações referentes à presença, nas Cargas Úteis ou nos Veículos Lançadores e Espaçonaves, de material radioativo ou de quaisquer substâncias que possam ser danosas ao meio ambiente ou à saúde humana, bem como dados relativos ao objetivo do lançamento e ao tipo e às órbitas dos satélites lançados, respei-
tada a proteção da tecnologia de origem ucraniana; III – em referência ao estipulado no artigo VI, parágrafo 2, as Partes envidarão seus melhores esforços para assegurar que pessoas autorizadas pelo Governo da República Federativa do Brasil participem também, no que couber, do controle do acesso a Veículos de Lançamento, Espaçonaves e Equipamentos Afins, respeitada a proteção da tecnologia de origem ucraniana; IV – em relação ao disposto no artigo VI, parágrafo 5, as Partes envidarão seus melhores esforços para assegurar que os crachás de identificação a serem utilizados pelos indivíduos que controlarão as áreas restritas serão emitidos pelo Governo da Ucrânia ou pelo Licenciado Ucraniano, para o pessoal ucraniano, e pelo Governo da República Federativa do Brasil, para o pessoal brasileiro, respeitada a proteção da tecnologia de or igem ucraniana; V – em referência ao determinado no artigo VII, parágrafo 1.B, as Partes envidarão seus melhores esforços para assegurar que os containers lacrados poderão ser abertos para inspeção por
autoridades brasileiras devidamente autorizadas para tal pelo Governo da República Federativa do Brasil, na presença de autoridades ucranianas e em áreas apropriadas, sem que isto implique estudo técnico indevido do material ali contido e preservada inteiramente a proteção da tecnologia de origem ucraniana. VI – no que tange ao estipulado no artigo VIII, parágrafo 3, alínea “a”, o Governo da República Federativa do Brasil assegurará, em prazo condizente com o Acordo sobre o Salvamento de Astronautas e Restituição de Astronautas e de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico, de 22 de abril de 1968, a restituição aos Participantes Ucranianos de todos os itens associados ao Veículo de Lançamento ou Espaçonaves recuperados pelos Representantes Brasileiros, sem examiná-los ou fotografá-los de nenhuma maneira, excetuados os casos em que as autoridades brasileiras julguem por bem assim proceder no interesse da saúde e segurança públicas e da preservação do meio ambiente, respeitada a proteção da tecnologia de origem ucraniana. Art. 4º Este decreto legislativo entra em vigor na data de sua publicação.
Claudia Jardim, da Redação Terça-feira,11 de setembro. A cidade amanhece sob barulho de aviões em vôos rasantes.As rádios estão tomadas por hinos militares e por uma voz de comando até então desconhecida. Tanques e tropas começam a circular pelas ruas, esses que por anos tomariam o cenário. A população, aflita, ouve no rádio o último discurso do presidente Salvador Allende, antes do bombardeio ao Palácio de La Moneda.“Não renunciarei. Pagarei com a minha vida a lealdade do povo. A batalha em La Moneda é apenas o começo. Assim escrevemos o primeiro capítulo da história. O povo deve estar alerta e vigilante, deve defender os direitos de construir com seus esforços uma vida digna e melhor”. A partir desse momento, o general Augusto Pinochet sacramentava o golpe e dava início a 17 anos de terror com a ditadura militar mais sangrenta da América do Sul, arquitetada pela CIA (serviço de inteligência dos Estados Unidos). A eleição de Salvador Allende, em 1970, significou para os EUA uma enorme barreira para a Operação Condor, planejada para conter os movimentos de resistência às ditaduras militares que dominavam os países sul-americanos nas décadas de 60 e 70.A Unidade Popular, formada principalmente pelos Partidos Comunista e Socialista, ganhava as eleições com um projeto de profundas transfor mações, como a estatização de cerca de 150 empresas, a maioria sob autogestão dos trabalhadores, e a reforma agrária. “Pensávamos que estava nascendo um novo mundo. Agora era o nosso governo, éramos todos iguais”, recorda Tomaz Taylor, artista plástico chileno. Renan Morales, do Partido Comunista Chileno, conta que os
■ Homenagem a Allende e às vítimas do 11 de setembro chileno salários dos trabalhadores aumentaram em 30%, o sistema de saúde havia melhorado substancialmente e todas as crianças tinham direito a pelo menos meio litro de leite diariamente. DESABASTECIMENTO Se o apoio popular a Allende era maciço, no governo ele não tinha ampla maioria.Eleito com apenas 36% dos votos, sua vitória tinha de ser referendada pelo Congresso Nacional em 24 de outubro, dois dias depois do assassinato do general
José Arbex Jr., da Redação Há 30 anos, em 11 de setembro, uma ditadura terrorista foi instalada no Chile pelo general Augusto Pinochet, fiel vassalo do imperialismo estadunidense, então comandado pelo presidente Richard Nixon (o mesmo mentiroso que seria forçado a renunciar, um ano depois, sob o impacto do escândalo de Watergate, não antes de ser obrigado a reconhecer a humilhante derrota no Vietnã). O presidente Salvador Allende - o primeiro marxista democraticamente eleito pelo povo na América Latina, em 4 de setembro de 1970, em nome de uma aliança de esquerda (a Unidade Popular) -, foi levado a cometer suicídio, no palácio presidencial de La Moneda (centro de Santiago), cercado e submetido a bombardeio aéreo pelas tropas golpistas. A humanidade jamais esquecerá os crimes do carrasco Pinochet, cujo nome será permanentemente repudiado pelos gritos de milhares de militantes, artistas, intelectuais, lideranças indígenas, camponesas e operárias que abarrotaram o Estádio Nacional de futebol de Santiago, transformado em campo de concentração pelos gorilas do general. Tampouco esquecerá o heroísmo de gente como o cantor e compositor popular Victor Jara, autor, entre muitas outras, da belíssima canção “Te recuerdo Amanda”, que, sob bárbara tortura (suas duas mãos foram quebradas), teimava em cantar o hino da UP, “Venceremos”, até ser assassinado, no próprio estádio, em 16 de setem-
Victor Rojas/AFP
Te recuerdo Allende
■ Dia 30 de agosto chilenos foram às ruas contra a impunidade bro. Em três anos de governo,Allende estatizou e nacionalizou transnacionais estadunidenses (carvão, cobre, telefônica), iniciou a reforma agrária e realizou um vasto programa de reformas sociais, destinadas a assegurar emprego e dignidade ao povo pobre do Chile. Foi o suficiente para provocar a ira de Washington, que temia uma “nova Cuba”. Nixon adotou os passos já amplamente conhecidos: combinou pressões econômicas externas (organizou o bloqueio comercial, forçou a queda do preço internacional do cobre etc.) com ações desestabilizadoras da CIA (serviço secreto), que incluíam sabotagens, recrutamento de chilenos de direita (principalmente militares e da classe média) e assassinatos, como o do general legalista René Schneider (em 22 de setembro de 1970). No caso de Allende, como em todos os outros (incluindo o caso mais recente da Venezuela de Hugo Chá-
vez), o imperialismo demonstrou sua absoluta e total intolerância para com governos populares. Por outro lado, o povo chileno sempre atendeu aos chamados de Allende, assim como, no caso da Venezuela, foi a mobilização popular que frustrou o golpe de abril de 2002. No Chile, a traição de Pinochet (chefe das Forças Armadas de Allende), no quadro da Guerra Fria, possibilitou a preparação do golpe sem dar tempo de reação às forças populares. A história já demonstrou muitas vezes: não há como fazer reformas que de fato atendam aos interesses do povo, e ao mesmo tempo manter uma interlocução “amigável” com o império.Apenas um idiota incurável pode ignorar essa lição.A conclusão se impõe: qualquer governo que se pretenda popular só poderá contar com o apoio do próprio povo organizado. O resto são sonhos de uma noite de verão. Ou pior: traição.
René Schneider, que recusava-se a impedir a posse de Allende. Tornava-se cada vez mais arriscada a convivência pacífica com a direita, que já arquitetava o golpe militar. “Desde o começo, ele encontra obstáculos fundamentais dentro do aparelho do Estado. Tem o cerco das Forças Armadas, do Judiciário e do Parlamento e uma mídia substancialmente contra”, explica o sociólogo Emir Sader. Para fomentar o descontentamento popular, os empresários geraram o desabastecimento orientados pela CIA. Para isso financiaram uma grande greve dos caminhoneiros.Além de os alimentos não chegarem às cidades, a classe média, que se opunha ao governo, passou a estocar os produtos, para criar um falso desabastecimento no país. “Não tínhamos nem pasta de dentes, papel higiênico, leite em pó, fraldas. Eles estocavam tudo e vendiam no mercado negro, com preços até 5 vezes mais caros. Algumas coisas faltavam porque não tinha produção. Sabíamos que a crise era artificial” conta a chilena Verônica Ytier, da Associação BrasileiroChilena de Amizade. Para amenizar o problema, os moradores se organizavam em grupos e os alimentos que eram apreendidos nos “estoques” eram vendidos nos bairros. DIVISÃO INTERNA Além da evidente luta de classes, outros grupos de esquerda tentavam organizar um poder popular externo ao aparelho de Estado. “Esses grupos estavam conscientes de que o Estado era um espaço minado, favorável na verdade à burguesia. A tentativa era refundar o Estado a partir dos pilares do governo popular”, avalia Sader. Faltava unidade entre a esquerda. Alguns setores mais moderados hostilizavam os mais radicais, e esses por sua vez agiam da mesma forma com a UP.“Não entendiam que certas reformas, como a expropriação de grandes conglomerados, eram reformas progressistas, impossível de serem recuperadas pelo capitalismo”, acrescenta o sociólogo. Muitos acreditavam que, com a explícita ameaça de golpe, Allende deveria enfrentar a oposição mais fortemente e se preciso fosse, com o uso das armas. Renan Morales, explica que a a estratégia da UP era manterse dentro dos marcos legais para conseguir se manter no governo: “A direita esperava qualquer deslize para
apontar o ato como inconstitucional para justificar e antecipar o golpe”. Esse impasse fortaleceu a direita. De um lado, os moderados não perceberam que era necessário se preparar para a luta armada e, de outro, os grupos mais radicais não entendiam que também era importante defender a legalidade. No entanto, se a esquerda não sabia por onde seguir a oposição mostrou o contrário. No dia 29 de junho, os tanques a caminho do La Moneda anunciavam a primeira tentativa de golpe, liderada pelo coronel Roberto Souper. O comandante-em-chefe das Forças Armadas, o general Carlos Prats, ordenou que os oficiais se rendessem e Souper foi preso. Pouco tempo depois, Prats, que era a peça fundamental para assegurar a fidelidade do exército ao governo, não resistiu às pressões e renunciou ao cargo. Após a tentativa fracassada de golpe, milhares de chilenos foram à sede do governo para mostrar apoio ao presidente.“Apesar daquela multidão toda,Allende estava muito só”, conta o diretor teatral e exilado político Ilo Krugli. “O golpe estava próximo”. 11 DE SETEMBRO “Nós ouvimos os aviões e imaginamos o que estava acontecendo. Muitos se arriscaram e saíram de casa para defender seus locais de trabalho. Liguei o rádio e ouvi o último discurso de Allende. Foi terrível”, recorda Verônica a terça-feira que jamais sairia da memória. O país estava cercado pelas tropas comandadas pelo então comandante-em-chefe Augusto Pinochet. Os generais queriam que o presidente chileno renunciasse.“O lugar do presidente da república é no La Moneda e nenhum outro. Pagarei com a minha vida a defesa dos princípios que são caros a esta Pátria “. Era o último discurso de Salvador Allende. Às 11h52 começaram os bombardeios contra a sede do governo. Allende estava armado com um fuzil soviético e vestia um capacete dos trabalhadores mineiros e permaneceu em combate, até a destruição total do La Moneda, onde morreu. “Naquele momento estava sendo destruída a legalidade burguesa. O golpe significa que o capitalismo na democracia liberal não permite uma opção em relação aos sistemas sociais”, avalia Sader. Para Plinio Arruda Sampaio, advogado, exilado político no Chile, durante a ditadura militar brasileira, o equívoco foi acreditar que sozinho o país poderia se libertar do imperialismo no momento de intensa disputa internacional entre EUA e União Soviética. FERIDA ABERTA Com a velocidade com que o palácio era bombardeado, os chilenos sentiam na pele o que seria do país sob o comando de Pinochet. As casas foram invadidas e muitos foram assassinados. O Estádio Nacional do Chile foi transformado em um enorme campo de concentração, onde milhares de chilenos foram torturados e executados. Durante os 17 anos de ditadura, entre 1973 e 1990, mais de 3 mil pessoas foram assassinadas. Nesse período Pinochet criou a Lei de Anistia, eximindo de qualquer julgamento os militares que cometeram crimes contra os direitos humanos. Após 30 anos, a impunidade mantém a ferida aberta. “Foi uma derrota muito dura e demonstrou que não se pode ingenuamente superar o capitalismo por meio das próprias regras do capitalismo”, analisa o sociólogo Emir Sader. “Nunca esquecer, para que esta história não aconteça novamente, em lugar nenhum” afirma Verônica Ytier.
BRASIL DE FATO De 4 a 10 de setembro de 2003
Cris Bouroncle/AFP
Chile ainda chora o golpe
A eleição de Salvador Allende no Chile, em 1970, mostrou a capacidade de realizar transformações sociais com a participação popular e as conseqüências de fazê-las sob a “legalidade” capitalista imposta pelo imperialismo. Os resultados foram um golpe militar, a morte do presidente democraticamente eleito e 17 anos da mais cruel ditadura da América, comandada por Augusto Pinochet.
INTERNACIONAL
Ano I ■ Número 27 ■ Segundo Caderno
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ALCA-OMC
Acordo vai aniquilar soberania nacional Jorge Pereira Filho e Tatiana Merlino, enviados a Piracicaba (SP) “Bem-vindos à ameaça da Alca”, dizia, ironicamente, Lori Wallach, diretora da organização estadunidense Public Citizen, após contar uma pequena anedota sobre o que ocorreu no México, depois de o país ingressar no Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). No caso relatado, uma empresa dos Estados Unidos comprou um aterro sanitário tóxico no território mexicano, mas o local foi interditado após o governo comprovar que a mesma empresa contaminava a água da região. O que aconteceu depois? A empresa foi multada? Não. Mas um tribunal do Nafta obrigou o governo mexicano a pagar uma indenização de 17 milhões de dólares à empresa por prejudicar as possibilidades de lucro da mesma.
Para Lori, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) será como o Nafta. “E naquilo que for diferente será para favorecer os Estados Unidos”, afirmou. Essa foi apenas uma das diversas análises sobre os efeitos da Alca compartilhadas com cerca de mil pessoas que participaram do Encontro Jurídico Continental sobre a Alca, realizado em Piracicaba (SP), de 29 a 31 de agosto. Entre as 20 entidades organizadoras, estão a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), a Asociação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Grito dos Excluídos. Os participantes chegaram à conclusão de que a Alca se apresenta como mais um instrumento de subordinação dos povos da América Latina aos interesses das trans-
nacionais estadunidenses. Além do acordo, a dívida externa, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), os tratados bilaterais e a estratégia militar mundial dos Estados Unidos completam o cerco à democracia e ao direito de cada povo definir como pretende viver. O capítulo 11 da Alca foi visto como um grande ataque à soberania nacional. Na avaliação dos especialistas presentes no evento, esse item criará um marco jurídico que vai destruir o princípio soberano das Constituições dos Estados nacionais (leia reportagem na página ao 11). “Os resultados dessa atual estrutura de poder são conhecidos e produziram fome, guerra e exclusão. É preciso uma transformação radical dessa relação”, afirmou a argentina Beverly Keene, coordenadora da Campanha Jubileu Sul (veja entrevista abaixo).
Renato Stockler
AMÉRICA LATINA
Para participantes do Encontro Jurídico Continental sobre a Alca, o acordo aumenta poder das empresas transnacionais; análises reforçam posição da Campanha Continental contra a Alca; Beverly Keene, da Campanha Jubileu Sul, defende unidade para transformar as relações de poder
■ Encontro conclui que a Alca vai subordinar os povos da América Latina aos interesses das transnacionais dos EUA
ENTREVISTA
Jorge Pereira Filho, de Piracicaba (SP) A assinatura da Alca significa mais exclusão social e a consolidação de relações de poder desiguais no nosso continente. Essa é a avaliação de Beverly Keene, coordenadora da Campanha Jubileu Sul na Argentina. Além de questionar o endividamento dos países pobres, Beverly defende que só um processo de transformação radical, que altere as relações de poder, poderá barrar a ofensiva dos EUA e das transnacionais.
BRASIL DE FATO De 4 a 10 de setembro de 2003
Brasil de Fato – Qual a relação entre a dívida externa dos países da América Latina com a Alca? Beverly Keene – O acordo vai legitimar relações injustas de poder, de comércio e de finanças. O mais importante da Alca não é a liberalização do comércio de produtos tradicionais. Mas, sim, o comércio da saúde, da água, da eletricidade, dos investimentos. A Alca é a institucionalização de novas relações jurídicas que representam o fim da soberania nacional e causam mais endividamento. Um exemplo disso é a situação do México, depois do Nafta, ou os últimos quinze anos de aplicação das políticas neoliberais na América Latina, com o aumento do fluxo negativo de investimentos e crescimento da pobreza.
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BF – Os países da América Latina ficarão mais vulneráveis? Beverly – Hoje em dia, a decisão das políticas econômicas nesse países já é fortemente condicionada pelos credores: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird). Há um processo de convergência de exigências. Antes, o FMI fazia uma série de exigências nos seus acordos e o Banco Mundial, outras. Hoje, o Banco Mundial, antes de liberar um empréstimo, pede o atestado de boa conduta do país ao FMI. E o fundo, antes de fazer um empréstimo de estabilização, pede aval do Banco Mundial. Os países têm de estar bem com os dois organismos. Com os processo de nego-
Renato Stockler
“Relações de poder devem ser transformadas” Quem é Beverly Keene é economista, coordenadora da entidade argentina Diálogo 2000 e faz parte da campanha Jubileu Sul. Assistente de Adolfo Perez Esquivel, prêmio Nobel da Paz, ela participou da organização do Fórum Social Argentino, ocorrido em 2002 e que teve a participação de 15 mil pessoas. Hoje integra também a Autoconvocatória Argentina contra a Alca.
ciação comercial, essas exigências cruzadas já incorporam também as novas regras comerciais. Chegamos, então, a uma situação em que cada vez mais nossos países são pressionados pelo FMI, pela dívida externa, pelo Banco Mundial e, agora, pela Organização Mundial do Comércio (OMC) para aceitarem as novas regras comerciais. A Alca é uma nova exigência a mais e se relaciona de uma forma indivisível com essas outras. E a dívida é um instrumento de pressão que, nesse momento, está sendo usado contra nossos governos para que aceitem a Alca.
mos como nações. As estruturas de poder, o FMI, a OMC e o governo estadunidense encontram-se em dificuldades. Não quero dizer que os Estados Unidos estejam em sua crise final, porque eu não creio nisso (risos). Mas há uma crise de legitimidade no uso de seu poder. Vemos um grande questionamento popular contra as medidas do FMI e a política mundial de guerra dos Estados Unidos. Além disso, a Argentina é o maior devedor do Banco
BF – Qual é o custo social de tudo isso? Beverly – O custo é a vida das pessoas, a dívida social e ecológica, que só aumentou. Esse custo cresce à medida que a dívida e o comércio se aliam para impor, contra o desejo de nossos povos, uma nova estrutura de participação no mundo econômico. Outra relação importante que deve ser feita é com a militarização. Estamos vendo que o processo de fortalecimento da presença militar dos Estados Unidos na América Latina e Caribe está sumariamente relacionado com a dívida externa e as negociações comerciais, na Alca e a OMC.
Maria Luisa Mendonça, de Piracicaba (SP)
BF – No Brasil, há um debate sobre um novo acordo com o FMI. Na Argentina, o governo já está negociando... Beverly – Está em jogo o futuro de nossos países. O lamentável é que os governos não se dão conta ou não estão dispostos a usar a força que te-
Mundial. Isso dá aos grandes devedores, como Brasil, México e Venezuela, um poder no processo de negociação que países menores não têm. Mas nossas nações, no entanto, não vêm assumindo esse poder.
BF – E há países que contestam esses acordos? Beverly – Há alguns meses, a Nigéria, um grande devedor, cortou relações com o FMI. A Tailândia não assinou novo acordo com FMI. BF – Rejeitar a dívida resolveria o problema dos nossos países? Beverly – Nem a dívida isolada, ou o comércio, são os eixos do mundo. Formam parte de um sistema de dominação. Se não pagarmos a dívida, cancelando-a ou a repudiando, não vamos resolver de uma vez as relações desiguais de poder entre os nossos países e o poder central — ou mesmo dentro de nossos países. Mas seria um passo na direção de confrontar os outros
aspectos do sistema de dominação. BF – Como conseguir isso? Beverly – Temos de fortalecer a possibilidade de atuarmos em unidade. Essa será a nossa força. Cada um em seu país, todos em nível continental e juntos também com os movimentos da classe trabalhadora nos países do Norte. Precisamos reconhecer a convergência de interesses que existem. Só vamos conseguir defender e promover os direitos humanos se avançarmos em um processo de transformação radical, modificando as relações de poder. Os resultados dessa atual estrutura de poder são conhecidos: o crescimento da exclusão, fome e guerra. O século XX foi de massacres. Estamos diante de uma capacidade humana, provada cientificamente, de dar conta das necessidades da população mundial. Mas, para chegarmos a isso, precisamos de uma transformação radical das estruturas que hoje determinam tais níveis de desigualdades. Para o processo avançar, a unidade é nossa força.
Encontro fortalece campanha contra a Alca O encontro jurídico reforçou a posição da Campanha Continental contra a Alca, que tem como objetivo barrar a implementação desse acordo, assim como de políticas que favoreçam sua efetivação, por meio do Fundo Monetár io Internacional (FMI), da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou de tratados bilaterais. Nos Estados Unidos, México e Canadá, a oposição ao Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte) cresce, na medida em que se constata o aumento da desigualdade, da pobreza, do desemprego, da destruição ambiental e, principalmente, a incapacidade dos governos para traçar políticas econômicas e sociais. Segundo Lori Wallach, diretora da organização Public Citizen, o
Nafta e a OMC funcionam como “constituições globais”, que obrigam os Estados a adaptar suas legislações nacionais para favorecer os interesses de grandes empresas. Na América Latina, as políticas de ajuste estrutural e as privatizações servem para “preparar o terreno” para a implementação da Alca. Ao mesmo tempo, cresce a oposição popular a esse modelo. Existe hoje uma maior articulação entre a luta contra a Alca, os movimentos que se opõem ao pagamento da dívida externa e ao processo de militarização no continente. NEGOCIAÇÕES A campanha reconhece que a posição do Brasil será definitiva para determinar os rumos das negociações da Alca, mas critica a proposta do governo brasileiro de dividir as negociações em duas fases. A primeira incluiria os acordos sobre comércio, indústria e agricultura e
seria ratificada até 2005. Dessa forma, o Brasil estaria aceitando o modelo da Alca. De 2006 a 2010, o governo brasileiro se comprometeria a aceitar os acordos sobre investimentos, serviços, compras governamentais e outros temas polêmicos. Segundo as organizações estadunidenses, o governo dos Estados Unidos já estaria buscando apoio do Congresso e de empresários para aceitar a proposta brasileira. Dessa forma, poderia minimizar a oposição à Alca no Brasil e garantir a aprovação de todos os acordos. A Campanha Continental critica também a proposta brasileira de incluir acordos sobre investimentos e serviços no âmbito da OMC, por acreditar que essa instituição poderia criar mecanismos poderosos contra a possibilidade de os Estados promoverem políticas públicas e determinarem seu próprio modelo de desenvolvimento.
ALCA-OMC
Fotos: Renato Stockler
A ordem é resistir ao domínio dos EUA Anamárcia Vainsencher, de Piracicaba (SP) O Tratado de Livre-Comércio das Américas (Alca), na prática o Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta) ampliado, é a mais grave ameaça de anexação jamais sofrida pelos países da América Latina. Apesar do nome, o acordo tem muito menos de livre-comércio, e muito mais de uma investida concertada para acabar de vez com Estados nacionais soberanos. Por isso, lutar contra a Alca é resistir ao domínio imperial dos Estados Unidos, afirma Beinusz Szmuckler, professor de Direito Constitucional e presidente da Associação Americana de Juristas.“O mundo, atualmente, vive seu momento mais difícil desde a Segunda Guerra”, compara. Hoje, acrescenta, o conceito de soberania é questionado, está fora de moda.A única soberania que vale é a dos EUA, que se estende a todo o planeta. “Isso nada mais é do que
■ Szmuckler alerta para o perigo da anexação da América Latina uma cópia modernizada do nazifascismo, no caso, a superioridade militar estadunidense. O discurso de Bush afirma a superioridade do
modelo e do povo dos EUA”, diz Szmuckler, lembrando declaração do ministro da Cultura da Alemanha, segundo a qual o discurso de
Bush é semelhante ao de Hitler. Para o especialista, a Alca é absolutamente incompatível com a soberania nacional, e com as Constituições dos países latino-americanos.“A América Latina precisa criar um novo pólo de poder. Juntos, somos uma força imensa. Do contrário, haverá o fortalecimento de uma nova soberania, a dos EUA”, defende ele. Faz tempo que os EUA querem “colocar uma cerca no quintal”, emenda o economista Wilson Cano, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A Alca, argumenta, não é apenas um acordo de livre-comércio, destinado a liberar o trânsito de mercadorias, mas inclui serviços, compras governamentais, investimentos, propriedade intelectual, patentes. “Representa a recolonização da América Latina”, adverte. E, a seu ver, a Organização Mundial do Comércio (OMC) não é um campo de disputa melhor do que a Alca. A mobilização social, ensina, é a alternativa para enfrentar
INTERNACIONAL
Na Índia, duas transnacionais competem em crimes ambientais: a Coca Cola entrega dejetos tóxicos a camponeses e coloca pesticida nos refrigerantes; empresa da Dow Química continua contaminando solo e água; nos EUA e na Europa, os trágicos efeitos do consumismo exacerbado.
essa dominação. “A lógica da Alca é a lógica da conquista, não da integração, e o investimento estrangeiro direto é a linha de frente desse movimento”, acrescenta o economista Plínio de Arruda Sampaio Jr., professor da Unicamp. O acordo, enfatiza, significa o fim do direito do Estado de executar políticas de interesse da sociedade, além de impor padrões de consumo a nossos povos e um ritmo de modernização adequado aos planos das transnacionais, não às necessidades das economias locais. Em resumo, significará mais concentração de renda, exclusão social, desnacionalização da economia. Em perspectiva, conclui, a Alca inviabiliza um país como projeto nacional, está na contramão das necessidades dos países da América Latina.“Nossa agenda é de emprego, habitação, terra, soberania nacional. Em resumo, teto, terra, trabalho”, afirma o economista.
Democracia ou ditadura das transnacionais
DIVERGÊNCIAS Analisadas as expectativas e as conseqüências reais do IED, o que se vê é a frustração das primeiras e seus efeitos nocivos nos países latino-americanos. Esperava-se que o IED proporcionasse aumento do emprego, modernização tecnológica, expansão do Produto e melhor inserção dos países na economia internacional. O que, de fato, aconteceu, foi o aumento da presença dos Estados Unidos na região, o que consolidou as privatizações e a hegemonia estadunidense, e o controle estrangeiro de recursos estratégicos (como o petróleo, no México). Em inúmeros países do continente, observa Lourdes, o investimento estrangeiro acabou substituindo, nocivamente, a oferta interna própria de crédito. Até 1998, informa, 40% do IED se destinaram à aquisição de ativos, via fusões e aquisições de empresas. O resultado disso foi a substituição de setores que geravam mais emprego, o aumento das importa-
Valor da produção local? Quase nenhum: enquanto o valor agregado das empresas estadunidenses, em 1998, era de 1,3 bilhão de dólares, o de suas subsidiárias na América Latina não passava de 236,2 milhões de dólares. Mais: as decisões sobre investimento são tomadas no exterior e acabam determinando a estrutura exportadora do país receptor de tais recursos. E nem sempre os interesses de empresas e de Estados nacionais são coincidentes. ■ Lourdes Bello: qualquer alternativa é incompatível com a Alca ções, menor conteúdo nacional da produção, aumento do comércio
intra-firmas (filiais e suas matrizes estrangeiras).
ROMPIMENTO Em resumo, alerta Lourdes Bello, o capítulo de investimentos da Alca pretende ser referência para
um acordo global de investimentos, desenhado e regulamentado segundo os interesses das empresas transnacionais; radicalizar o processo de privatização; eliminar quaisquer obstáculos ao desempenho das transnacionais; impedir o Estado de executar políticas industriais ativas. A pesquisadora cubana considera absolutamente impossível mudar esses constrangimentos dentro da Alca. “Qualquer alternativa é incompatível com a Alca, supõe um rompimento radical com o acordo. Que democracia é viável sob a ditadura das empresas transnacionais?”, pergunta Lourdes Bello. (AMV)
Briga das elites contra o resto do mundo Tatiana Merlino, de Piracicaba (SP) “A Alca significa um cerco à democracia e o fim da soberania nacional”, afirma Lori Wallach, advogada especialista em comércio internacional e diretora da organização estadunidense Public Citizen. Ela considera acordos como Nafta e Alca, uma briga de ricos contra pobres, das elites contra o resto do mundo. Na sua opinião, a Alca será a extensão do Nafta que, entre outras regras, prevê a obrigatoriedade de eliminação tarifária progressiva, até sua eliminação total, em dez anos. A experiência do Nafta, que dura mais de oito anos, serve de alerta para as trágicas conseqüências da implementação da Alca. O exemplo do desastre econômico e social dessa integração perversa é o México, que teve sua economia sucateada e sua produção subordinada às necessidades dos Estados Unidos. Lori explica que o suposto acordo de livre comércio beneficia apenas as corporações transnacionais estadunidenses.“A Alca é o Nafta com esteróides”, diz. “O México teve de mudar suas leis para se adequar ao Nafta. Houve muitas violações em relação às políticas nacionais. Foi um golpe de Estado que aconteceu aos poucos. E a Alca representará um duro golpe na soberania das nações, além de um retrocesso nas normas democráticas e regressão nos direitos sociais”, afirma. A indústria mexicana foi substituído pelas maquiladoras, como são chamadas as montadoras trans-
nacionais instaladas no país. A lógica adotada é utilizar a mão-de-obra barata mexicana – mais de 50% dos assalariados mexicanos recebem menos da metade do que recebiam há 10 anos – e não obedecer a nenhuma regra de proteção ambiental ou trabalhista. Com as reformas na legislação trabalhista, os mexicanos não podem se organizar para lutar por aumento de salários. Para a especialista, o Nafta e a Organização Mundial do Comércio (OMC) são como “constituições globais”, que obrigam os Estados a adaptar suas leis nacionais
para favorecer os interesses de grandes corporações transnacionais. Com a implantação da Alca, as corporações terão novos direitos,“o que significa o fim da democracia, da forma mais profunda. São políticas devastadoras”, destaca Lori. Para evidenciar a inversão da lógica, a diretora da Public Citizen conta que as transnacionais passaram por cima da constituição mexicana. Uma empresa estadunidense comprou uma área de aterro sanitário tóxico no México, e como ele estava contaminando as águas, o governo fechou o espaço, “o que deveria ser o fim da
história”. Mas o que aconteceu foi diferente: a empresa, como investidor internacional, teve direito a passar por cima da legislação do país e levou o caso para um tribunal do Nafta. A alegação da empresa é que as leis de zoneamento a impediram de obter lucros e exigiu compensações financeiras. O tribunal acatou e determinou que o governo mexicano pagasse 17 milhões de dólares à transnacional.“Bem vindos à ameaça da Alca”, alerta Lori, que avalia que a Alca será como o Nafta e, naquilo que for diferente, será ainda mais favorável aos EUA.
Capítulo 11, uma grande ameaça Algumas das cláusulas mais controvertidas do Nafta estão incluídas nas minutas do acordo do Tratado de Livre Comércio das Américas (Alca). Entre elas o Capítulo 11, sobre investimentos, que concede garantias, proteções jurídicas especiais e novos direitos às empresas de um país-membro do Nafta que queira investir em outro país signatário do acordo. Eis algumas disposições do Capítulo 11: ■ Os novos direitos dos investidores podem estar submetidos, ser apreciados e julgados em tribunais privados (no âmbito do Banco Mundial), ignorando, assim, os sistemas jurídicos dos países signatários do acordo.
■ Mais garantias e facilidades para empresas estrangeiras comprarem empresas, terras e recursos em outros países-membros do tratado. ■ Permissão às empresas estrangeiras para mover ações contra determinadas políticas básicas dos governos, com base no argumento de que tais políticas violam os novos direitos e privilégios que o Nafta concede aos investidores. Isso significa que, quando uma empresa considera que, à luz do Capítulo 11, seus direitos de investidor foram violados, ela pode impugnar leis ou políticas do governo que hospeda seus investimentos, através de um sistema especial de solução de controvérsias. Ou, em outras palavras, um investidor privado pode mover ação contra qualquer gover-
no membro do tratado que se recuse a lhe conceder os privilégios previstos no acordo. Os signatários do Nafta defenderam tais garantias como proteção aos investidores contra apropriação de sua propriedade privada pelo Estado, isto é, protege-los de nacionalizaçãoes. Entretanto, a maioria das ações movidas até hoje por empresas contra Estados impugnam normas ambientais,regulações e decisões governamentais nas esferas federal, estadual e municipal. Estudo da Universidade Tufts, dos EUA, mostra que a extensão do Capítulo 11 do Nafta para a Alca permitiria que empresas estrangeiras reivindicassem, anualmente, 32 bilhões de dólares em indenizações.
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O capítulo 11 é o núcleo duro da Alca. Sob o guarda-chuva do livre-comércio, o que de fato se discute são investimentos e relações de propriedade. Assim, Lourdes Maria Regueiro Bello, pesquisadora do Centro de Estudos sobre América (CEA), de Cuba, iniciou sua palestra sobre Investimentos, no Encontro Jurídico Continental sobre a Alca. “A Alca, ainda que formalmente mantenha o caráter intergovernamental de integração, na realidade implica na subordinação do Estado soberano às empresas, e transforma a empresa transnacional em sujeito do direito internacional, na medida em que os Estados mudam suas funções e se tornam facilitadores desse processo”, avalia. A seu ver, o livre-comércio é apenas um objetivo aparente ou marginal do acordo. Os investimentos, enfatiza Lourdes, são uma das questões mais dificeis e controvertidas no âmbito do tratado. Desde a segunda metade do século XX, a questão central do tema investimentos tem sido a relação e o papel do investimento estrangeiro direto (IED) no desenvolvimento. Uma relação que ganhou novos ingredientes com a globalização, segundo a pesquisadora.
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ÁFRICA AFRICA
Sul-africanos processam transnacionais que lucraram com regime racista Fabienne Pompey, de Johannesburgo (África do Sul)
Vivant Univers
INTERNACIONAL
O governo da África do Sul tenta dissuadir vítimas do apartheid de levar à Justiça empresas internacionais que colaboraram com o regime de segregação racial (1911-1994); muitos processos estão sendo abertos em cortes dos Estados Unidos
“O
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s seus dias passados na impunidade estão contados! Agora, vocês vão ter de ceder e pagar. Nós não queremos promessas vagas e sim saber de quantias precisas, em rands (a moeda sul-africana) e em centavos”. Muito irritado, o frei Mickaël Lapsey agita no ar os dois ganchos de ferro que lhe servem de mãos. Este padre foi amputado, vítima de um atentado perpetrado por meio de um pacotebomba, que havia sido tramado pelo regime do apartheid. Ele ataca com violência as companhias estrangeiras e sul-africanas que se aproveitaram do antigo regime. Mickaël Lapsey fala em nome das vítimas “frustradas e desesperadas” que tomaram a decisão de processar várias companhias multinacionais, entre as mais importantes hoje em atividade, perante a Justiça estadunidense, para exigir compensações financeiras. Ele participou da Conferência Nacional sobre as Indenizações, que aconteceu em Johannesburgo nos dias 27 e 28 de agosto último. Organizado pelo Conselho Nacional das Igrejas, esse encontro teve por objetivo permitir conciliar o ponto de vista do governo, que se posicionou contra os processos, e o das vítimas. Desde junho de 2002, várias queixas na Justiça foram apresentadas em Nova York contra empresas, inclusive contra bancos suíços e alemães, e companhias multinacionais tais como IBM, British Petroleum, Exxon, Ford e Total. Os advogados consideram que essas companhias, ao emprestarem dinheiro ao governo de então, ou ao fazerem comércio com a África do Sul, se tornaram cúmplices do regime do apartheid.
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DELAÇÃO “Nunca aquele governo teria permanecido por tanto tempo no poder se ele não tivesse obtido empréstimos bancários no mercado internacional”, explica John Ngcebesha, um dos advogados sul-africanos.“Eu fui presa, torturada e violentada pelos meus carcereiros. Jamais eles teriam me encontrado sem dispor do sistema de informática da IBM e sem o combustível que a BP fornecia à polícia”, considera Thandi Shezi, uma antiga integrante da facção armada do ANC (sigla em inglês de Congresso Nacional Africano), e que é hoje membro da Khulumani, uma das organizações mais ativas em promover esses processos. Por sua vez, a Comissão Verdade e Reconciliação (em inglês, TRC), que, desde 1995, tem entrevistado cerca de 20 mil vítimas e os seus carrascos, também chegou à conclusão de que aquelas empresas devem ser responsabilizadas. No seu relatório final, a TRC conclui que “o mundo dos negócios se beneficiou amplamente da era do apartheid (...) e que ele tem agora uma obrigação moral de ajudar na reconstrução e no desenvolvimento da África do Sul”. Em NovaYork, vários advogados estadunidenses se apoderaram do dossiê, entre os quais o célebre Edward (“Ed”) Fagan. Reputado pelo seu estilo espetacular e os seus “métodos de caubói”, ele se tornou conhecido quando combateu os bancos suíços no caso dos fundos judeus que foram espoliados durante o regime nazista. Um outro personagem dos meios advocatícios estadunidenses, Mickaël Hausfeld, também se ilus-
■ Cartaz convoca vítimas e culpados do apartheid a deporem na Comissão Verdade e Reconciliação, criada na África do Sul para passar a limpo os crimes do regime racista; no destaque, Nelson Mandela se dispõe a contar sua história à Comissão trou no caso dos fundos judeus e sobretudo pela sua participação em importantes processos contra os fabricantes de cigarros americanos. Ao longo dos meses, novas companhias têm sido atacadas pelas vítimas sul-africanas do apartheid, sendo que as últimas a serem acionadas foram as gigantes da indústria mineradora, De Beers, Anglo-American e Goldfields. Em Johannesburgo, John Ncgebesha faz rapidamente as contas em voz baixa:“Anglo, 6,1 bilhões, Goldfield, 7,4 bilhões... nós deveríamos poder chegar a cerca de 100 bilhões de dólares ”. Os números alcançam alturas vertiginosas. Estamos muito longe dos 3.500 dólares que foram prometidos a cada uma das 22 mil vítimas recenseadas pela TRC e cujo pagamento o governo sul-africano ainda não efetuou até hoje. Quando as primeiras queixas fo-
ram apresentadas perante a Justiça estadunidense, o governo sul-africano anunciou sobriamente que ele não as apoiaria, embora ele nada tivesse feito para impedi-las. Mas o tom mudou e, nos últimos meses,o presidente Mbeki resolveu tomar a iniciativa para denunciar esta onda de processos.“Nós consideramos inaceitável que estas questões, centrais para o futuro do nosso país, sejam julgadas por um tribunal estrangeiro”, declarou Mbeki, acrescentando que não se podia permitir que as relações entre a África do Sul e os investidores estrangeiros sejam ameaçadas por esta onda de processos. Com isso, o governo sulafricano interveio recentemente junto à Justiça de Nova York para pedir que as queixas sejam rejeitadas. Para o ministro da Justiça, Penuell Maduna, esta onda de processos não condiz com a tradição da “nova”
África do Sul, que “soube evitar a guerra civil promovendo acordos e compromissos. O mundo inteiro e a História já julgaram o apartheid, e nós não devemos recomeçar”, diz. “O nosso país é parte integrante da globalização, os investidores esperam lucros e contam com a proteção de seus investimentos. O crescimento econômico será a reparação pelos danos que foram causados pelo apartheid”. GUERRA NA JUSTIÇA Penuell Maduna, que leu o seu discurso num tom ríspido e autoritário, provocou a indignação da platéia presente no auditório quando se referiu à TRC: “As recomendações da TRC não são nada mais do que elas são de fato: recomendações. E não se esqueçam de que fomos nós (a ANC, no poder) que a implantamos”. ”Os argumentos do senhor são
Mandela é contra interferência externa O ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, 85 anos, criticou os processos de vítimas do apartheid contra multinacionais em cortes estrangeiras. Em evento organizado pela De Beers, no dia 25 de agosto último, na cidade do Cabo, Mandela disse que os sulafricanos não precisam de “interferência de fora” para lidar com questões de reconciliação, reparação e transformação. “Nós tratamos de nossa transição política desta forma e somos capazes de lidar com outros aspectos de nossa transformação de modo semelhante”, afirmou. Na ocasião, Mandela recebeu da De Beers – uma das maiores minerados do país e uma das grandes empresas que estão sendo processadas em cortes dos Estados Unidos por sua conduta durante o regime segregacionista – um prédio de seis andares onde funcionará a fundação Mandela Rhodes, referência a Cecil John Rhodes, fun-
dador da mineradora. A Comissão Verdade e Reconciliação (TRC, em inglês) foi criada em 1995 com três objetivos: ouvir todos aqueles que supostamente cometeram violação dos direitos humanos durante o apartheid, tanto nas mãos do governo quanto nas mãos dos libertadores; receber requerimentos dos que cometeram violações e pleiteiam anistia por suas confissões; oferecer recuperação adequada às vítimas do regime. Em abril deste ano, o presidente sul-africano Thabo Mbeki anunciou o primeiro pagamento de indenizações a 22 mil vítimas identificadas pela TRC. Cada uma delas receberia 30 mil rands em dinheiro (cerca de 3,9 mil dólares ou 12 mil reais), quantia considerada “ultrajante” por muitos, por estar longe do valor inicialmente recomendado pela comissão em março: cerca de quatro vezes maior. Mas o processo de reparação tem gerado protestos jun-
to à opinião pública por excluir de taxações e impostos indústrias e grandes conglomerados comerciais que se beneficiaram do apartheid. O regime de segregação racial sul-africano começou a ser forjado pela minoria branca em 1911, quando os africânderes (descendentes dos colonizadores holandeses) e britânicos promulgaram uma série de leis que consolidava seu poder sobre a maioria negra. Em 1948, o apartheid foi oficializado, retirando dos negros todos os direitos civis, impedindo o acesso deles à propriedade da terra e à participação política e obrigando-os a viver em zonas residenciais segregadas. O regime racista durou 46 anos. Só terminou em 1994, após décadas de “boicote” internacional ao governo branco e muita resistência interna. Nelson Mandela, eleito em 1994, depois de passar 30 anos na cadeia, foi o primeiro presidente negro da África do Sul.
inaceitáveis”,respondeu-lhe duramente o frei Lasley.“Está ficando claro que o governo vem dando muito mais atenção ao mundo dos negócios que às vítimas”, prosseguiu o padre, muito aplaudido. As posições são difíceis de conciliar. Diante desta situação, os advogados têm duas opções: a guerra judiciária ou o acordo amigável.“Se conseguirmos sentar em volta de uma mesa de negociação, nós estamos dispostos a retirar as nossas queixas”, garante John Ngcebesha.“Cabe às empresas fazerem as suas propostas”. O arcebispo anglicano, Njongonkulu Ngungane, presidente dessa conferência, argumentou em favor de uma solução negociada. “Na África do Sul, nós sempre demos preferência ao diálogo em detrimento da vingança”. Ele está convencido de que as companhias mudaram as suas atitudes e que elas estão dispostas a fazer concessões. Entretanto, apesar de terem sido convidadas, estas últimas se recusaram a participar desse primeiro encontro. (Le Monde)
■ Ruanda Eleições sob risco O líder da oposição ao governo de Ruanda, Faustin Twagiramungu, entrou com recurso na Corte Suprema do país pedindo anulação da eleição presidencial do dia 25 de agosto. O atual presidente, Paul Kagame, reeleito com 95,5% do votos, está sendo acusado de intimidação de eleitores e violação das leis eleitorais.
IMPERIALISMO
France Press
Governo Bush privatiza o Iraque Paulo Pereira Lima, da Redação
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iante da resistência iraquiana, o governo Bush acena com uma mudança de rumo em sua política de invasão do país. Até o momento, vinha insistindo em que todas as questões de ordem militar, econômica e política no Iraque permanecessem sob total controle dos Estados Unidos. Agora, estuda a possibilidade de permitir que uma força multinacional opere sob a responsabilidade da Organização das Nações Unidas (ONU), contanto que seja liderada por um comandante estadunidense. Mera maquiagem, afirmam analistas. Não passa de mais uma estratégia de Bush para obter o apoio do Conselho de Segurança, tendo em vista uma nova resolução que autorize sua aventura no Iraque. Mas, antes de ceder qualquer passo à internacionalização da reconstrução do Iraque, os Estados Unidos estão colocando em ação a liquidação do país por meio de concessões a suas transnacionais. O “Plano para a retomada econômica, a reforma e ajuda ao crescimento”, como foi batizado, foi lançado em julho, e segue padrões de produção internacionais, e um sistema fiscal de olho nos investimentos estrangeiros.
O roteiro da espoliação RÚSSIA
MAR NEGRO
GEÓRGIA ARMÊNIA
AZERBAIJÃO
TURQUIA
MAR CÁSPIO
Mossul SÍRIA
MAR MEDITERRÂNEO
Kirkuk Bagdá
ISRAEL
IRÃ
IRAQUE JORDÂNIA KUWAIT
O LF O G
ARÁBIA SAUDITA
O IC RS PÉ
EGITO
ER RV ME LH O
O Iraque possui a segunda maior reserva de petróleo do planeta (além das áreas inexploradas por causa de anos de conflitos): são 112,5 bilhões de barris, que representam 11% do total mundial. No primeiro semestre, os EUA importaram, em média, 10,3 milhões de barris de petróleo por dia, segundo o Conselho de Defesa dos Recursos Naturais estadunidense. Quase 1 milhão saíram do Iraque. Apesar das dificuldades que as forças anglo-estadunidenses vêm encontrando, como sabotagens aos poços e atentados, Philipp Carrol, ex-presidente da Shell e quem, de fato, comanda o Ministério do Petróleo iraquiano, assinou contratos de exportação de 650 mil barris por dia. Os principais beneficiados são as companhias estadunidenses Chevron Texaco, Exxon Mobil, Conoco Philipps, Marathon e Valero Energy, e as européias Shell, Total, Britsh Petroleum, além da RepsolYpf. Em breve, deve ser retomada também a exportação de petróleo de Kirkuk, responsável por um terço do petróleo iraquiano, através do oleoduto de 965 quilômetros, que chega ao porto turco de Ceyhan, no Mediterrâneo. A previsão inicial é exportar cerca de 250 mil barris por dia, mas a médio prazo, esse número pode dobrar.
MA
O NEGÓCIO DO VICE Desde o início da invasão angloestadunidense, em 24 de março, uma das transnacionais que mais vem se aproveitando dessa corrida ao ouro é a Kellogg, Brown & Root (KBR), subsidiária da Halliburton, uma das maiores empresas de petróleo dos EUA, com sede em Dallas, dirigida entre 1995 e 2000 pelo vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney. Depois de atuar como secretário de Defesa durante a operação que pôs fim à invasão iraquiana do Kuait, em 1991, Cheney tornou-se o executivo-chefe da Halliburton. Quando a ONU relaxou as sanções a Bagdá, e permitiu que o Iraque comprasse peças de reposição para seus campos de petróleo, em 1998, foi a Halliburton, sob o comando de Cheney, que arrematou o contrato para reparar os danos causados pela guerra e fazer com que os oleodutos fluíssem melhor. A KBR começou apagando incêndios dos poços de petróleo, mas sua missão foi muito além, e o dinheiro embolsado também. Além de 1,7 bilhão de dólares no come-
■ Ativistas protestam contra o saque do Iraque por transnacionais estadunidenses, em San Francisco (EUA)
- Cerca de 2,5 milhões de dólares é quanto os Estados Unidos pagaram à Skylink para a gestão dos três principais aeroportos iraquianos (Bagdá, Bassora e Mossul). Até agora utilizados para vôos militares e “humanitários”, em breve deverão voltar ao uso civil. As companhias mais cotadas a conseguir a gestão do negócio das viagens de técnicos e funcionários de governo são estadunidenses: American Airlines, United Airlines e Delta.
◆ Aeroportos
- Entre os vários projetos para reconstruir a rede de comunicação no Iraque, a Bechtel está encarregada da implantação de 2 mil
◆ Celulares
quilômetros de fibra óptica, de Mossul a Um Qasr, passando por Bagdá e Nassiriya, e a reparação de 120 mil linhas telefônicas. Recentemente, soube-se também que a também estadunidense Iridium instalará linhas celulares. ◆ Hospitais - A desconhecida Abt Associates ficou de fornecer suporte técnico ao Ministério da Saúde iraquiano. Um importante detalhe: todas as máquinas e instrumentos médicos deverão responder aos padrões estadunidenses, ou seja, serão importadas dos Estados Unidos, e não da Europa. (Il Manifesto)
INTERNACIONAL
As autoridades de ocupação estão entregando os principais ramos empresariais iraquianos a transnacionais estadunidenses — como a Halliburton e a Bechtel, que entre seus executivos contaram com os atuais vice-presidente, Dick Cheney, e secretário da Defesa, Donald Rumsfeld
ço dos trabalhos, a empresa deverá receber mais 400 milhões de dólares por operações de serviço e distribuição de produtos petrolíferos e de logística, como construção de um campo para prisioneiros no Iraque e no Kuait, segundo pesquisou nas contas do Pentágono o jornal The Washington Post. AMIGOS DE SADAM Outra grande fatia do negócio foi para a Bechtel, que teve entre seus presidentes George Shultz, ex-secretário de Estado de Ronald Reagan (1980-1988). Explica-se: em 1983, Shultz tinha enviado Donald Rumsfeld (atual secretário de Defesa) ao Iraque para tratar de negócios com o então amigo Sadam Hussein. A Bechtel tinha larga experiência no Iraque nos anos 80 – entre outras coisas, construiu uma represa no Norte do país, e um complexo petroquímico ao Sul de Bagdá. Em julho, fechou um contrato de mais de 1 bilhão de dólares para a reconstrução de escolas, estradas, os sistemas elétrico, hídrico e de saneamento básico. Também vai reestruturar o porto de Um Qasr, o único do país para a exportação de petróleo. A administração do porto, mesmo estando sob controle inglês, foi concedida à Stevedoring Services of America. Em uma entrevista publicada, dia 27, no The Washington Post, Paul Bremer, o principal emissário de Bush no Iraque, disse que o país precisa de “várias dezenas de bilhões de dólares” em verbas externas para reconstruir os seus sistemas de eletricidade, água e outros, e para ressuscitar a sua economia. Afirmou, ainda, que o custo para atender à atual demanda por eletricidade seria de 2 bilhões de dólares, enquanto que um sistema nacional para a distribuição de água potável demandaria investimentos de cerca de 16 bilhões de dólares, durante um período de quatro anos. Bremer falou no mesmo dia em que o Congresso dos EUA anunciava um déficit orçamentário de 480 bilhões de dólares para 2004 – o Produto Interno Brasileiro (PIB) foi de 450 bilhões de dólares em 2002. O negócio entre amigos promovido por Bush é tão escandaloso que especialistas independentes calculam que um terço dos cerca de 4 bilhões de dólares necessários todo mês para bancar a ocupação do Iraque vai parar nas contas das transnacionais estadunidenses.
OMC
Sanjay Suri, de Londres (Inglaterra) Empresas transnacionais tentam controlar as decisões da V Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que acontecerá entre os dias 10 e 14 em Cancún, México. “Há mais de 250 grupos de pressão que defendem os interesses das transnacionais, que obtiveram credenciamento para a reunião”, adverte relatório da rede ambientalista Amigos da Terra Internacional, e de seu grupo filiado, Corporate Europe Observatory (CEO). O relatório, intitulado “As empresas mandam: quem paga a conta?”, analisa a influência das transnacionais sobre decisões em matéria de alimentação, normas sanitári-
as e ambientais, acesso a medicamentos essenciais, controle sobre os investimentos estrangeiros e acesso a serviços essenciais. Segundo o documento,“os agricultores e consumidores da Europa e do mundo inteiro serão os mais prejudicados se os Estados Unidos tiverem êxito em sua campanha para obrigar o mundo a alimentar-se com transgênicos”.A empresa de biotecnologia Monsanto e a American Farm Bureau Federation (Federação Estadunidense de Fazendeiros) pressionam Washington para que impugne, na OMC, as restrições que a União Européia impôs aos alimentos geneticamente modificados. Somente em 2000, a Monsanto desembolsou mais de 2 milhões de dólares para pressionar o governo
estadunidense a apoiar e defender o desenvolvimento dos transgênicos. Isto lhe deu acesso direto a funcionários e negociadores, e atualmente a empresa tem representação no Comitê Assessor de Políticas Agrícolas para o Comércio, e no Painel Assessor sobre Biotecnologia. A Amigos da Terra e o CEO também denunciaram a campanha de transnacionais para enfraquecer, através da OMC, os acordos multilaterais sobre meio ambiente, debilitando a luta contra alteração do clima. PRESSÕES Os 38 grandes grupos industriais que integram o Comitê Assessor de Indústria e Comércio da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) lide-
ram essa campanha. O informe também adverte para as pressões da indústria farmacêutica para enfraquecer as reformas realizadas na OMC, com objetivo de garantir o acesso OCDE: composta pelos a medicamentos países mais ricos do essenciais. O mundo, é um fórum Acordo sobre os para discussão, consulta e coordenação Aspectos dos Dida política econômica e reitos de Proprisocial. edade IntelectuÁfrica subsaariana: al Relacionados abrange os países de população negra com o Comérsituados ao Sul do cio (TRIPS) esdeserto do Saara tabelece direitos de patente por 20 anos, tornando muitos remédios inacessíveis aos pobres. Entretanto, na última conferência ministerial da OMC (em Doha,
Catar, em 2001) chegou-se a um acordo para colocar ao alcance de todos medicamentos para Aids, malária e tuberculose. Mas esse acordo está em perigo devido a uma campanha da indústria farmacêutica. O faturamento conjunto das cinco principais indústrias farmacêuticas do mundo é o dobro Produto Interno Bruto combinado de toda a África subsaariana, destaca o relatório. Além disso, as empresas que dominam a indústria da água, como as européias Suez eVivendi, promovem reformas nos países onde atuam, com a finalidade de conseguir maior intervenção privada no setor, e tornar irreversíveis as privatizações que, em muitos casos, têm conseqüências negativas para as comunidades e o meio ambiente.(IPS/Envolverde)
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Transnacionais preparam ofensiva para Cancún
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DEBATE
REFORMA TRIBUTÁRIA
É preciso mudar para crescer Carlito Merss
O
Kipper
governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso aumentou a carga tributária de 26% para 36%. A dívida interna passou de R$ 68 bilhões para R$ 881 bi. Não bastasse essa irresponsabilidade fiscal, 76% do patrimônio público foi privatizado, reduzindo o tamanho do Estado e acovardando sua relação com a comunidade financeira. Ficamos cada vez mais endividados e vulneráveis aos ataques especulativos. Esta fragilidade exigiu três empréstimos do Fundo Monetário
Internacional, o que nos tornou seu maior devedor e vítimas de suas políticas liberalizantes e equívocos econômicos. O resultado daquele governo, além da derrota eleitoral, foi o aumento da pobreza, da violência, a falta de investimentos sociais e em infra-estrutura. O povo brasileiro pagou uma conta salgada com impostos cumulativos da produção ao consumo. Perde o produtor rural, com insumos dolarizados e sua produção tributada progressivamente em todos os níveis; perde o empresário, que tem uma extensa e confusa folha de impostos a pagar, além de enfrentar a competição desigual de mercadorias que chegam subsidiadas ou sem nenhum tributo do exterior; perde o trabalhador, que paga uma elevada carga de impostos sobre a sua renda e sobre o seu consumo; perdem os governos, porque a guerra fiscal promove subsídios e isenções que prejudicam a arrecadação e penalizam as contas públicas; perde o país, porque apesar de arrecadar demais, vê seus recursos se esvaírem em endividamentos, sem restar um tostão para investir e crescer. O governo Lula herdou esta situação caótica e está enfrentando com coragem a mudança do modelo econômico. Sem a retomada do crescimento, com mudança na distribui-
ção de renda e a consistente redução da taxa de juros, não teremos condições de enfrentar a desigualdade social e mazelas como o analfabetismo, a baixa escolaridade, o desemprego e a questão agrária. A reforma vem nesta direção. Sem reduzir a carga tributária, o que é impossível diante do endividamento assumido, a proposta simplifica e desonera o sistema, eliminando a sonegação, a elisão e a fraude fiscal. Ao unificar o ICMS e com o fim das isenções, incentivos e benefícios, estamos acabando com a guerra fiscal, em que todos são derrotados. Além disso, a proposta desonera a cesta básica, colaborando diretamente para a política de segurança alimentar do Fome Zero e aumento da renda do produtor rural; as contribuições patronais sobre a folha de pagamento serão reduzidas, fomentando a criação de novos empregos; a exportação de bens e serviços também terá isenção, assim como a tributação sobre a aquisição de bens de capital, o que incentiva novos investimentos e negócios com o exterior; imposto sobre a transmissão de patrimônio, tanto por doação, morte ou intervivos, será progressivo, estabelecendo maior justiça social, porque vai permitir simultaneamente a criação de programas de renda mínima, combate à pobreza e fomento à≠ cultura. Para compensar a redução dos tributos na exportação será criado um fundo especial. Da mesma forma, o novo imposto territorial rural será repartido com Estados e municípios, regulado por lei que desincentivará a terra improdutiva e não incidirá sobre
pequenas glebas rurais de quem não tiver outra propriedade. Por fim, a proposta do governo Lula mantém a cobrança da CPMF e a desvinculação de receitas até 2007. A CPMF não só garante o custeio da seguridade social, como serve para que a Receita Federal compare as rendas declaradas e combata à sonegação e a lavagem de dinheiro. A desvinculação é uma necessidade que se impõe perante as dificuldades atuais. Sem comprometer suas obrigações o governo administra melhor a escassez fiscal herdada. Essa não é uma reforma para alterar o pacto federativo, mas para sanear um sistema falido, em que se arrecada mal, se gasta mal, a economia não cresce e o contribuinte paga muito e não tem retorno de sua contribuição. Depois de oitos anos tramitando no Congresso, onde municípios, Estados, União e contribuinte não se acertavam na repartição dos tributos, a reforma enviada pelo presidente Lula não vem para resolver em definitivo este problema, mas é decisiva para uma nova tributação, transparente e menos onerosa. O PFL, que esteve no governo desde sempre, tem a desfaçatez de propor um código do contribuinte, verdadeiro manual de sonegação fiscal, e patrocinar uma campanha contra a reforma. Sem pudor e demagogicamente, não assume a autoria intelectual, moral e material da forca fiscal que ele mesmo colocou na cabeça da economia do país. Carlito Merss (SC) é deputado federal pelo PT e integrante da Comissão Especial da Reforma Tributária.
Reforma por que e para quem?
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Paulo Santiago
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Chega ao plenário da Câmara dos Deputados no início de setembro o Relatório do Deputado Virgílio Guimarães sobre a Proposta de Emenda Constitucional Nº 41/03, aprovada na Comissão Especial criada para analisar a matéria. O assunto foi ofuscado pela discussão da reforma da previdência, mas parece tomar agora ares de batalha nacional. Empresários, líderes do PFL e do PSDB, governadores e prefeitos se lançam numa cruzada contra o projeto. Aumento da carga tributária e esvaziamento financeiros dos entes federativos são, no mínimo, os argumentos mais usados pela oposição contra o Governo Lula. Entendemos que a reforma tributária é a mais importante das reformas em discussão no Congresso. Mexe com o financiamento do Estado, com a participação da sociedade na formação da receita pública, além de trazer uma oportunidade única de mudar a natureza dos impostos e seu peso sobre os diferentes agentes econômicos e segmentos da sociedade. As críticas apresentadas pelo PFL e pelo PSDB são cínicas e sem fundamento. Esses partidos governaram o País por oito anos e foi na dupla gestão de FHC que, sem nenhuma reforma, a carga pulou de 26,7 % para 37,8 % do PIB. Pior do que isso é sabermos que nesse mesmo período a dívida pública pulou de R$ 60 bilhões
para quase R$ 850 bilhões. Fica evidente que submeteram o País a uma lógica criminosa. Aumentou-se progressivamente a carga tributária através de elevação das alíquotas do PIS e COFINS, elevou-se a CPMF a 0,38% , além de ter sido evitada a correção da tabela do Imposto de Renda. Do outro lado foi-se adotando uma política cada vez mais frouxa no tocante à sonegação fiscal, extinguindo-se a punibilidade nos casos de crimes fiscais e tributários e concedendo-se cada vez mais prazos e prazos para parcelamento dos débitos das empresas contra a Previdência e a Fazenda pública, por meio do Programa Refis. Por fim, levou-se a alta arrecadação para o régio pagamento dos credores cada vez mais ávidos da dívida pública. O governo priorizou nessa jornada a reforma da previdência. Não montou estratégia para levar à opinião pública a essência de sua proposta tributária, tendo sido incapaz de explicar claramente quem mais paga impostos no País e o que foi feito entre 1995 e 2002 com a carga tributária existente. Com a maior bancada no Congresso – do PT, com 93 deputados –, sequer estimulou sua própria base a debater um assunto estratégico para a reconstrução do País. O resultado dessa fragilidade pode ser observado nas últimas semanas em toda a imprensa. Páginas e páginas de ataques à proposta, o lançamento da “campanha da forca” e outras artimanhas do PFL e PSDB para
impedir que avancem no texto da proposta a progressividade, a unificação do ICMS, o fim da guerra fiscal entre os Estados, além do controle externo dos incentivos já concedidos. Votado o relatório na Comissão Especial, as pressões empresariais continuaram e até arrancaram nova comissão de líderes partidários para realizarem novas rodadas de reuniões já realizadas com governadores e prefeitos, empresários e (só agora) sindicalistas das maiores centrais do País. Sem estratégia e sem prioridade, o governo corre o risco de ter a reforma tributária limitada à prorrogação da CPMF até 30 de setembro desde ano, para que possa ser arrecadada até 2007, o que também deve ocorrer com a prorrogação da DRU (Desvinculação das Receitas da União), herdada do governo FHC e inicialmente criada em fevereiro de 1994 como Fundo Social de Emergência, pelas quais 20% das receitas do tesouro são retidos na arrecadação federal antes da vinculação de receitas e da repartição com os demais Poderes. Essa desvinculação já provocou entre janeiro e abril deste ano a redução de R$ 8 bilhões da base de cálculo das receitas federais sobre as quais devem ser aplicados 18% das receitas federais para a educação. Mantida a projeção, as perdas podem chegar ao final de 2003 a R$ 5,6 bilhões a menos para o ensino superior e tecnológico públicos no País. Em nome do ajuste fiscal e do superávit primário.
Limitada às mudanças no texto constitucional, a reforma tributária estará incompleta se não avançar depois em outras campos da lei, como no cadastro mercantil das empresas, na retomada da punição à sonegação e aos crimes fiscais e tributários, além de mudanças na lei das execuções fiscais e nos chamados tribunais administrativos-tributários, onde contribuintes se defendem dos autos de infração feitos pela fazenda pública. Para um governo eleito com propostas claras de promover justiça social, a forma como vem sendo encaminhada a discussão da reforma tributária pelo Governo Lula demonstra enorme dificuldade em se fazer ampla articulação com a sociedade, com os assalariados e os consumidores de baixa renda, para fazer frente aos ataques conservadores das elites que não querem imposto progressivo nem ao firme combate à sonegação, uma dos ramos que mais têm crescido no crime organizado no País. Ainda há tempo para se avançar. Vamos ampliar o debate junto aos movimentos sindicais, às entidades do fisco e do Ministério Público, consolidando passos necessários para que não haja retrocessos na PEC 41/03 e sejam lançadas as bases para as mudanças na fase infraconstitucional seguinte.
Paulo Rubem Santiago é deputado federal pelo PT de Pernambuco.
Moises Araújo
AGENDA
Confira algumas atividades populares, sociais e culturais desta semana. Para incluir seu evento nesta agenda, envie uma mensagem eletrônica para agenda@brasildefato.com.br
7 DE SETEMBRO - INDEPENDÊNCIA E SOBERANIA 9º GRITO DIA 7
DOS EXCLUÍDOS
Jornada de manifestações e atos públicos por todo o país. O tema deste ano será: “Tirem as mãos, o Brasil é o nosso chão”. O objetivo do Grito é denunciar o modelo econômico excludente e denunciar projetos que desrespeitem a soberania nacional. Local: Em todo o Brasil Mais informações: www.gritodosexcluidos.com.br
AÇÃO MUNDIAL
CONTRA A
OMC
DIA 9 Será realizado em todos os países protesto contra as negociações da OMC Local: Em todos os países
PROTESTO NO DE 8 A 14
VACINE-SE ATÉ 7
ALCA
Semana de coleta de assinaturas do abaixo assinado que exige do governo a convocação de pelbiscito oficial para ouvir a população sobre a adesão às negociações da àrea de Livre Comércio das Américas (Alca) Local: Em todo o Brasil Mais informações: www.jubileubrasil.org.br
CAMPO
Durante a semana haverá mobilizações de camponeses em toda a América Latina contra o neoliberalismo e a Organização Mundial do Comércio (OMC) Local: América Latina
DIA
CONTRA A
DE MOBILIZAÇÕES POPULARES POR SOBERANIA NACIONAL,
DESENVOLVIMENTO E TRABALHO
DIA 13
MOBILIZAÇÃO BOICOTE
MARCHA
AOS PRODUTOS
MARCHA
CONTRA A GLOBALIZAÇÃO
ESTADUNIDENSES
E A GUERRA
DE 8
DIA 13
A
14
Boicote dos produtos de quatro transnacionais estadunidenses: McDonald´s, Coca-Cola, Texaco e Esso, em protesto contra o imperialismo. Local: Em todos os países Mais informações: www.jubileubrasil.org.br
LITERATURA SP - LABORATÓRIO
DA
ESCRITA
Último sábado de cada mês, às 14h. O grupo de produção literária reúne-se mensalmente e está aberto a novos integrantes. Entre as discussões estão vários aspectos da produção literária e são realizadas criações coletivas Local: Casa da Palavra - Praça. Do Carmo, 171, Santo André Mais informações: (11) 4992 7218
ACAMPAMENTO DF - CONTRA OS TRANSGÊNICOS, PELA SOBERANIA NACIONAL E ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL
DE 12
DE SETEMBRO A
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DE
OUTUBRO
Organizado pelos movimentos sociais do campo vinculados à Via Campesina, o acampamento irá reunir cerca de 500 trabalhadores para discutir formas de luta contra a liberação dos transgênicos. No dia 12 haverá uma plenária popular com análise de conjuntura nacional com João Pedro Stedile. Local: área verde do Ginásio Nilson Nelson, Brasília Mais Informações: (61) 322-5035
Manifestações contra o neoliberalismo e a militarização Local: Em todo o mundo
CAMINHADA RS - CAMINHADA PELA REDUÇÃO JORNADA DE TRABALHO DIA 11
DA
O objetivo da caminhada é entregar ao ministro do Trabalho um documento com as propostas da CUT para as reformas sindical e trabalhista, na abertura da Conferência Estadual do Trabalho. Local: A concentração inicia-se às 7h, no Laçador. A caminhada percorrerá toda a avenida Farrapos até o Hotel Embaixador, Porto Alegre Mais informações: (51) 3224-2484
EDUCAÇÃO RJ - III SEMINÁRIO NACIONAL RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO INSCRIÇÕES ATÉ 15 DE SETEMBRO Organização: Universidade Federal Fluminense, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Faculdade de Educação e Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) Local: Faculdade de Educação São Domingos, Niterói Mais informações: seminariopenesb2003@vm.uff.br
ARTES PLÁSTICAS SP - NOITE CULTURAL PLÁSTICA DIA 13, DAS 19 ÀS 22H Organizada pelo Brasil de Fato e pelo
Curso Realidade Brasileira, a noite cultural terá como tema: “Brasilidades contemporâneas: arte e realidade”. Os palestrantes serão Gilberto Mariotti e Mônica Nador Local: Museu de Arte Contemporânea (MAC), Rua da Reitoria, 160, Cidade Universitária (USP) Mais informações: realidadebrasileira@terra.com.br
ARTESANATO RS - 13ª FEIRA LATINO-AMERICANA DE ARTESANATO ATÉ DIA 7 Entre os principais objetivos da feira, destacam-se a promoção, difusão e comercialização do produto artesanal originário das mais significativas culturas da América Latina; o intercâmbio de técnicas de produção artesanal; o fortalecimento do conhecimento das raízes culturais latino-americanas e a conservação da identidade cultural e patrimônio artesanal. A entrada é gratuita Local: Usina do Gasômetro Mais informações: seculo21assecom@terra.com.br, (51) 9818-0431
AMBIENTE CE – DEBATE: 1ª QUINTA AMBIENTAL DIA 4, ÀS 17H Projeto de discussão entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e os movimentos sociais. O tema do encontro será a definição de competências entre os órgãos que cuidam do meioambiente no Estado. A intenção do debate é criar um fórum de interlocução entre o Instituto e a sociedade a fim de que todos possam participar da elaboração, execução e acompanhamento do planejamento das atividades do órgão. Pretende-se discutir com mais aprofundamento questões como: o manejo e sustentabilidade na caatinga, a desertificação, agrotóxicos, carcinicultura, turismo e especulação imobiliária. A Quinta Ambiental está dentro da nova estrutura organizacional do Ibama e vai acontecer a cada quinze dias. Local: sede do Ibama, Avenida Visconde do Rio Branco, 3900, Fortaleza Mais informações: (85)272.1144
AMÉRICA LATINA
LIVRO RJ – LANÇAMENTO: “DA
Mais informações: carpf@terra.com.br, (54) 3122628
SP - DEBATE: NUNCA FAVELA
ESQUECER:
ANOS DO ASSASSINATO DE
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ALLENDE
PARA O MUNDO”
DIA 11, ÀS 19H30
DIA 9, ÀS 20H
Debatedores: João Pedro Stedile- MST; Ilu Krugli, Diretor de Teatro; Renan Morales Jaque, Associação BrasileiroChilena de Amizade; Fábio Luis; Associação Nossa América Apresentação do Livro Histórias da Idéias Socialistas no Brasil - Leandro Konder Realização: Brasil de Fato, Associação Nossa América Apoio - Teatro Ventoforte, Associação Nossa América, MST. Local: TeatroVentoforte, Rua Brigadeiro Haroldo Veloso, 157, Itaim Bibi, São Paulo Mais informações: (11) 2131-0802
Promoção: Grupo Cultural Afro Reggae Local: Arte Sesc, Rua Marquês de Abrantes, 99, Rio de Janeiro Mais informações: www.afroreggae.org
CULTURA
LOCAL RS - CALÇADÃO DA SOLIDARIEDADE DIA 6, DAS 9H ÀS 16 H Exposição com trabalhos alternativos e apresentações com grupos artisticos locais Local: Em frente da Catedral, Passo Fundo
BRASIL DE FATO De 4 a 10 de setembro de 2003
Grandes mobilizações populares puxadas por diversos movimentos sociais contra o neoliberalismo e em favor de um modelo de desenvolvimento justo e igualitário Local: Em todas as capitais do país
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TEATRO Fotos divulgação
CULTURA
A adaptação da segunda parte de Os Sertões, de Euclides da Cunha, revive o conflito de Canudos, na Bahia do final do século 19. Em um paralelo com a situação de hoje, o espetáculo aborda a situação fundiária, questiona o latifúndio e a noção de liberdade
Quem é Homem de teatro desde a época em que estudava Direito na Faculdade São Francisco, Zé Celso Martinez Corrêa está à frente do Teatro Oficina desde a sua criação, em 1958. Com projetos ousados e inovadores, tornou-se parte da história das artes cênicas no Brasil ao fundir estética e conteúdo em obras como O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, em 1967. Preso em 1974, vítima da ditadura militar, exilou-se em Portugal acompanhado pelo grupo, e lá retomam seus trabalhos. Em 79, o Teatro Oficina é reaberto e, em 82, é tombado como patrimônio cultural. O espaço, antes alugado, mantémse sob sua direção. Em 89, promove uma oficina com o texto Os Sertões, de Euclides da Cunha, em homenagem ao centenário da República. Em 2001, as peças do grupo – Cacilda!, Boca de Ouro, Bacantes e Ham-Let – são reapresentadas em um festival do Oficina.
■ Zé Celso revive Canudos para mostrar a realidade agrária atual
Zé Celso revive Canudos para mostrar a realidade agrária atual Tatiana Azevedo e Tatiana Merlino, da Redação
C
BRASIL DE FATO De 4 a 10 de setembro de 2003
om a encenação da segunda parte da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, Zé Celso transpõe para 2003 o conflito vivido em Canudos, interior da Bahia, em 1896, agora sob o ponto de vista do Homem, título desse segundo momento da adaptação do livro para o teatro. A vontade de trabalhar esta obra, um documento histórico sobre o Brasil do final do século 19, acompanha o diretor desde 1989. Mas foi apenas em 2000 que o projeto começou a ser desenvolvido, e a primeira parte – A Terra – ficou pronta dois anos depois, sustentada por um mergulho intenso na obra e no panorama social do Brasil de Canudos em comparação ao Brasil atual. A estréia ocorreu exatamente no dia em que o livro de Euclides da Cunha comemorou cem anos, e a sua atualidade provou que a obra transcende a documentação histórica de uma determinada época para explorar relações ainda mantidas nos dias de hoje. Dedicado aos movimentos sociais, o espetáculo agrega cerca de 60 pessoas. Entre elas, estão crianças do bairro do Bixiga, na capital paulista, envolvidas no projeto Bixigão, uma “universidade popular de arte para a meninada dos cortiços”.
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Brasil de Fato – Por que a escolha da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha? Zé Celso Martinez Corrêa – Acho que ela que nos escolheu. Era o momento de fazer Os Sertões por ser uma metáfora. Em grego, metáfora quer dizer transporte. Transporte que nos daria energia, força, vitalidade, compreensão para travar essa luta pelo sertão, pela terra. Passar por uma fase de transição, por uma luta, implica se organizar, enfrentar uma série de sacrifícios, derrotas e vitórias. E principalmente Os Sertões, que aglutina tanta gente. Que, do ponto de vista do realismo mercantilista, só pode ser feita a partir da invenção de um espaço que não existe dentro do mercado. BF - E o tema continua atual, que é a luta pela terra.
Zé Celso – Pela terra e pela liberdade de se organizar da maneira com a qual se quer trabalhar. Não é um tema intelectual, mas algo que vivemos. Passamos a viver essa experiência, como os semterra e os sem-teto estão vivendo, como as pessoas que são excluídas do sistema. Aliás, ouvi uma coisa maravilhosa: que tudo o que diziam sobre o socialismo era mentira, mas que tudo o que diziam sobre o capitalismo é verdade. Uma obra como essa está excluída. Eu estou absolutamente empenhado em fazer esse trabalho, e não vou deixar que nenhum terrorismo econômico impeça. Não me conformo com a censura econômica, e ela está introjetada em nós. E, assim como eu, são 60 pessoas lutando por isso, porque não virá nenhuma solução de cima. Como em Canudos: na época, no mundo inteiro, teve uma seca que matou milhões de pessoas. Era o apogeu do imperialismo do século 19, e as pessoas não ligavam para aquela multidão que ia morrer. Graças à iniciativa das pessoas que Antônio Conselheiro aglutinou, em quatro anos foi possível organizar uma cidade de 25 mil habitantes, que depois seria massacrada pelo exército, pelas mesmas razões que hoje querem massacrar os sem-terra. Acusaram Canudos de querer reimplantar a monarquia no Brasil, como acusam hoje os sem-terra de querer o comunismo. Estamos na fase do Homem, que termina com a revolta. Até então, é a história do homem brasileiro, que chega em um momento muito parecido com o atual. A segunda parte, que lançaremos em novembro, remete ao que acontece hoje no Pontal do Paranapanema (SP), de mobilização de pessoas.
BF – Qual a importância de se fazer este espetáculo num momento histórico em que, apesar de termos um governo do campo da esquerda, a mídia insiste em criminalizar os movimentos sociais? Zé Celso – A tendência de demonização faz parte do capitalismo puritano dominante. Eu detesto esse simplismo maniqueísta. Uma das coisas belas do livro do Euclides é que ele é contraditório, pois nós somos contraditórios. Estamos fa-
zendo Os Sertões porque o Euclides foi além da documentação: escreveu uma obra de arte extraordinária, um poema do valor dos clássicos. Ele tinha ido lá com uma visão preconceituosa do movimento, era republicano e ignorante. Mas, em contato com as estratégias e a inteligência dos canudenses, percebeu que ali tinha um outro Brasil se organizando. Um sertanejo que era, antes de tudo, um forte. Nossa luta é exatamente para que não haja mais massacres. Ficaria feliz de fa-
quina do sistema guardam uma inteireza humana maior do que aquelas que entram e ficam condicionadas. Quem tem alguma coisa procura segurar e se fecha de forma muito individualista, pois tem medo de perder o privilégio. Agora, quem não tem nada a perder, se dá. E dessa dádiva nasce o movimento e nasce uma riqueza. Os Sertões toca em todos os tabus da sociedade.
BF – Como o teatro pode atuar na mobilização social? Zé Celso – Quem atua se transforma e se cura num certo sentido. Nós desenvolvemos o poder de atuação humana, que é muito desestimulado pelas grandes estruturas e pelo capitalismo e relegado para as máquinas burocráticas. O teatro trabalha com as máquinas do desejo, que é muito poderoso. O desejo é recalcado pelo capitalismo, que castra o seu poderio. O capitalismo gira em torno dos interesses individuais, e no teatro você tem de deixar o seu ego de ■ Imperialismo do século 19 e de hoje na lado. Descobrimos encenação da segunda parte de Os Sertões o poder que todo mundo tem e que o zer a estréia da segunda parte de sistema desvaloriza. Aqui o ator deO Homem no Pontal do Paranapa- senvolve o seu máximo, ele dança, nema. E ano que vem montaremos canta, trabalha todo seu poderio. A Luta, a parte que eu mais gostaria de levar para os ruralistas, para BF – Qual a sua avaliação o exército. Quero mostrar a força do atual momento político de Canudos e a possibilidade que o do país? ser humano tem de se organizar de Zé Celso – O mundo inteiro uma maneira diferente. está se esfacelando com o capitalismo, está uma tragédia. O poderio econômico determina o terrorisBF – Como Os Sertões é mo, penetra em nós mesmos, é concebido pelo grupo? Zé Celso – O movimento dos muito pior que a censura militar. Sertões é todo inclusivo, a gente não A autocensura econômica que famandou ninguém embora, não ex- zemos é muito grande. Temos de cluiu ninguém. Quem não agüenta superar o terror econômico dentro sai. Mas, se de repente tem um ga- de nós e ter coragem de ir à luta. É roto que está a perigo para entrar o que estão fazendo os sem-terra, no tráfico, a gente traz o menino os sem-teto. O Brasil tem uma depara cá. E eu não faço isso por ca- mocracia no sentido grego, que é ridade ou dever social. Faz parte do horrível. É democracia para uma movimento e da beleza, porque es- classe, os deputados todos são da sas pessoas que não entram na má- pequena burguesia para cima. Não
se tem representação popular. A grande representação, mesmo no conselho do governo, é toda de banqueiros, da alta burguesia. O país precisa muito mais de investimento na cultura para que as pessoas aprendam a lutar, em vez de esperarem por caridade. Eu procuro transformar a realidade, não aceitá-la. Ao meu trabalho, procuro dar a maior extensão possível para o social, para a liberdade, a beleza. Procuro não me subjugar às leis do mercado.
BF – Você disse que, enquanto a reforma agrária não fosse feita, o fantasma de Canudos continuaria rondando o país. Você acha que agora ela será feita pelo governo Lula? Zé Celso – Tudo isso é uma questão de correlação de forças. Num determinado momento pode ser que a força do povo seja maior do que a força das pressões das transnacionais, do FMI. Quem está no poder joga com isso mesmo. Eu acho que o Brasil tem a possibilidade de romper com isso, porque o governo é todo dividido. Ele tem uma parte que está ligada aos movimentos sociais e, se forem rejeitados, vão crescer mais ainda. BF – Mas você acha que o governo vai atender a esses anseios da população? Zé Celso – Eu tenho confiança na pressão popular. O crescimento da sociedade não depende só do governo, mas de todo o mundo. Eu tenho 66 anos, e nunca vi, em toda a minha vida, uma época como agora, em que só se fala em violência e em mercado. É o fetichismo da mercadoria, como Marx falava. E todo o mundo tem medo de abandonar isso, não é só o Lula. A classe média tem medo de mudar a conjuntura. Porque assim, pelo menos os que estão sobrevivendo sobrevivem. Se houver uma pequena mudança, todos têm medo do que pode ocorrer, de que as coisas piorem. Porém, a maioria do povo tem de se virar e pressionar o governo, que se diz de centro-esquerda, para caminhar mais para a esquerda. Eu acho que o banqueiro é um fraco, apoiado em uma estrutura de poder. O sertanejo é um forte, sem essa estrutura de poder.