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Governo cede às pressões por transgênicos M

ais uma vez o governo coloca em risco a agricultura e o consumidor brasileiros, ao se posicionar em favor das transnacionais e do governo gaúcho, que forçam a liberação da soja transgênica. Depois de reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dia 19, o governador Germano Rigotto (PMDB/RS) divulgou que uma nova medida provisória (MP) iria liberar a soja geneticamente modificada na safra deste ano. Segundo o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, a decisão política já está tomada. A dúvida está em liberar o culti-

vo em âmbito nacional ou apenas no Rio Grande do Sul. Além da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e dos movimentos sociais, o presidente Lula terá de enfrentar o Judiciário. Segundo o desembargador Antônio Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília, a edição da MP é inconstitucional: “Existem duas liminares que suspendem o plantio e a comercialização de transgênicos. Se o presidente atentar contra essas sentenças, deverá responder por crime de responsabilidade, passível de impeachment”. Pág. 3

Victor Soares/ABR

Monsanto e grandes produtores gaúchos fazem lobby e medida provisória pode liberar soja geneticamente modificada

Lula condena militarismo dos EUA “Pode-se, talvez, vencer uma guerra isoladamente. Mas não se pode construir a paz duradoura sem o concurso de todos”, afirmou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no discurso de abertura da Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU), dia 23, em Nova York. Para o presidente, o caminho em direção à paz passa pela justiça social, e não pelas decisões unilaterais. Lula, que não chegou a citar diretamente os Estados Unidos, defendeu o fortalecimento da ONU e do

Brasil, um campeão da exclusão social São pouquíssimos os brasileiros que têm um padrão de vida digno. O que não é muito: ter renda individual igual ou superior a 1,5 salário mínimo (R$ 360, hoje), o que corresponderia a uma renda familiar de R$ 1.296, casa própria, acesso a ser-

viços de água, esgoto, coleta de lixo, iluminação, escolaridade e cobertura previdenciária. Ou seja, tudo que 94,5% dos brasileiros, ou mais de 150 milhões de pessoas, não têm. Enquanto isso, vêm ocorrendo uma brutal transferência de renda para gran-

des grupos empresariais, bancos e especuladores nacionais e internacionais: nos últimos anos, esses setores receberam um PIB inteiro, cerca de R$ 1,5 trilhão. Às custas das condições de vida das legiões de deserdados. Pág. 5

A luta dos camponeses na América Latina

Milhares de palestinos saem às ruas para pedir a punição do primeiro-ministro isralenese Ariel Sharon pelo massacre de mais de 3 mil refugiados nos acampamentos em Sabra e Shatila, no Líbano, há 21 anos Pág. 11

E mais: MORTES NO CAMPO – Para dom Pedro Casaldáliga, a omissão do governo favorece a formação de milícias, responsáveis pelos assassinatos no campo. Pág. 6 ÍNDIOS – Ademir Martins é o vigésimo indígena assassinado no Brasil, este ano. O jovem líder kaigang foi morto dia 21, na cidade de Palmas (PR), em uma área em processo de demarcação. Pág. 8 REFORMA TRIBUTÁRIA – O projeto de reforma tributária em tramitação no Congresso é antiecológico. A constatação é de um grupo de entidades ambientalistas, que lançaram uma campanha pela Reforma Tributária Sustentável. Pág. 8 ÁFRICA – Dia 25, um tribunal islâmico julga apelo da nigeriana Amina Lawal, acusada de adultério e condenada a morte por apedrejamento. A acusação está fundamentada nos preceitos do sistema de leis muçulmano chamado sharia. Pág. 12 OMC – Na seção Debate, o professor de Economia Internacional Reinaldo Gonçalves e o deputado federal Tarcísio Zimmermann (PT/RS) analisam a posição assumida pelo Brasil na 5ª reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), no México. Pág. 14

Márcio Baraldi

Se depender do atual governo, a história da guerrilha do Araguaia permanecerá em segredo, já que a Advocacia Geral da União recorreu da decisão que permitia a abertura dos arquivos sobre aqueles acontecimentos. Ou seja, sob a argumentação de revanchismo, o governo se exime de reconhecer os culpados pelos assassinatos dos militantes do PCdoB durante a ditadura militar. E acabou se limitando ao compromisso de montar uma comissão interministerial para identificar os corpos dos desaparecidos. Pág. 7

Camponeses protestam contra a liberação de transgênicos, em frente ao Ministério da Agricultura, em Brasília, dia 23

Joseph Barrak/AFP

União mantém sigilo sobre Araguaia

multilateralismo. “Não podemos confiar mais na ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da história e à luz da razão”, disse. Lula, no entanto, se pronunciou a favor do livre comércio “desde que haja oportunidades iguais de competir”. O presidente também defendeu sua política econômica: continuará trabalhando para manter o equilíbrio das contas públicas, e não medirá esforços para aumentar as exportações. Pág. 11

Representantes de movimentos indígenas e de camponeses da América Latina se reuniram em Caracas, Venezuela, no anúncio da reforma agrária no país andino. Os ativistas defenderam o uso comunitário da terra, a produção de alimentos voltada para o mercado interno, a manutenção dos recursos naturais nas mãos da população e contaram a história de seus povos. Entre outras personalidades, particiram do evento Blanca Chancoso (Equador), Rafael Alegría (Honduras), Evo Morales (Bolívia) e Juan Tiney (Guatemala). Pág. 10

Controle do fluxo de capitais é necessário Pág. 4

Farsa de Gugu comprova falta de ética na mídia Pág. 13

SP mostra riqueza cultural Pág. 16


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De 25 de setembro a 1º de outubro de 2003

NOSSA OPINIÃO

Contra o terror de Estado

FALA ZÉ

“A ONU não foi concebida para remover os escombros dos conflitos que ela não pôde evitar”, afirmou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dia 23, em discurso de abertura da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas. No quadro de uma conjuntura internacional normal, de convivência relativamente pacífica e estável entre as nações, a declaração teria um efeito meramente retórico. No mundo contemporâneo, ela soa como um desafio à política externa de George W. Bush, marcada pela prepotência e desprezo para com as instâncias de diálogo e decisão multilaterais. A invasão do Iraque demonstrou que, do ponto de vista da Casa Branca, a ONU já não cumpre qualquer função. Rigorosamente, claro, isso não é nenhuma grande novidade: durante a Guerra Fria, o direito de veto exercido pelos cinco integrantes permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, União Soviética, China, Inglaterra e França) já era uma demonstração de impotência da entidade. Mas, o jogo entre as superpotências impunha um certo limite à capacidade de intervenção imperial. A novidade, no mundo contemporâneo, está no grau de cinismo e intolerância com que Washington exerce o seu poder agora incontrastável. Para a equipe que comanda a Casa Branca, a força justifica o emprego da força, eis tudo. Não há como evitar o paralelo com a lógica da política externa de Adolf Hitler, que, em nome do lebensraum (espaço vital) invadiu o resto da Europa. As firulas diplomáticas foram abandonadas: Bush diz, claramente, que mentiu para justificar a invasão do Iraque; Ariel Sharon, protegido por Bush, proclama seu desejo de assassinar Yasser Arafat, presidente democraticamente eleito da Autoridade Palestina; a Casa Branca multiplica pressões de todos os tipos para impedir que os países signatários do Tribunal Penal Internacional (TPI) levem a julgamento, por crimes contra a humanidade, oficiais estadunidenses e seus aliados (entre eles, Ariel Sharon). Trata-se de uma conjuntura, portanto, em que a única superpotência pratica abertamente o terror de Estado (em todos os níveis: militar, diplomático, econômico e financeiro), em nome de uma suposta “guerra ao terror”. Aqueles que se comportam bem, como a Polônia (ao apoiar a invasão do Iraque), são premiados pelo Império. Os “rebeldes”, mesmo antigos e importantes aliados, como França e Alemanha (ao criticarem o ataque a Bagdá), sofrem os efeitos da ira de Washington. Nesse quadro, sumamente perigoso para a civilização enquanto tal, o discurso de Lula ganha uma enorme relevância, ainda mais por ter sido pronunciado logo após uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Cancún (México), em que o Brasil teve um papel importante na liderança da resistência às pressões neoliberais. Ele demarca um terreno importante, que permite a aglutinação de todas as forças que rejeitam o uso da força bruta como fundamento único da política externa. Melhor ainda seria, para todo o povo brasileiro, se Lula adotasse, dentro do país, a mesma ousadia e independência que demonstra nas grandes ocasiões da política mundial.

CONSELHO POLÍTICO

Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino • Assunção Ernandes • Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • Claus Germer • Dom Demétrio Valentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes • Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL

Alípio Freire • César Benjamim • César Sanson • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Eduardo Greenhalgh • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim • Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Bernardete Toneto, Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre Peschanski, 55 Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 55 Carlos, João R. Ripper, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício 55 Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 55 Natália Forcat, Nathan • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana. Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistentes de redação: Letícia Baeta, Maíra Kubík Mano e 55 Tatiana Azevedo 55 Sistemas: Sérgio Moreira 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 5555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 5555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 5555555555 redacao@brasildefato.com.br 5555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

Brasil de Fato estimula o debate Brasil de Fato completa oito meses de existência. O caminho até agora percorrido foi muito longo, árduo e gratificante. Multiplicamos a criação de comitês de apoio por todo o país, estampamos em nossas páginas as notícias do Brasil e do mundo ignoradas pela grande mídia, oferecemos perspectivas distintas de interpretação dos fatos políticos, culturais e econômicos, e criamos feição e estilos próprios. Não é pouco, mas ainda não é suficiente. Faz parte do nosso desafio

incorporar ao processo de produção, divulgação e distribuição do jornal um número cada vez maior de pessoas, movimentos sociais e mídias independentes. Queremos multiplicar os comitês de apoio, ampliar a rede nacional de todos os envolvidos na sustentação do jornal. Com esse objetivo, resolvemos intensificar a organização, em todo o território nacional, de debates, palestras e mesas-redondas envolvendo os integrantes de nosso Comitê Editorial. Consideramos isso tão importante que

Cartas dos leitores SONHO Escrevo não apenas para elogiar o jornal, mas também para dizer o quanto gostei do trabalho de vocês aqui no Estado. Quando criança, tinha um sonho: ao crescer queria ser poeta, pois gosto da história do povo. Creio que já chegou a hora de realizar este esperado sonho. Sou adulta, tenho meus poemas, provérbios, cartas e pensamentos. Enfim já sei dizer às pessoas de uma forma diferente qual é a conjuntura no Brasil de hoje. Basta agora divulgar. Não há ninguém que conheça o meu trabalho, já tentei divulgálo, não consegui. Recorro ao Brasil de Fato na tentativa de conseguir um espaço onde possa mostrar minhas obras. Só vocês podem realizar esse sonho. Ivony da Silva Ariquemes (RO) UNIÃO Parabenizo o jornal Brasil de Fato pela união de diversas pessoas e movimentos sociais. Realmente não podemos só esperar, pois já dizia o verso da música de Geraldo Vandré: “Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Everaldo Ferreira de Souza Lima Suzano (SP)

SAUDAÇÕES É com muito carinho que eu escrevo para parabenizar vocês, pelo excelente trabalho, o jornal de primeira linha, que é o melhor do Brasil. Parabéns a toda equipe pela iniciativa. Gosto muito de ler o jornal. Eu sou um jovem de 24 anos, simples, fiel, honesto, capaz, humilde e trabalhador. Estou muito agradecido por tudo. Francimar Pereira Gomes da Cruz Abaira (BA) EDIÇÃO 28 Parabenizo o jornal Brasil de Fato pelas excelentes matérias da edição 28, com destaque para a entrevista do presidente da Comissão Pastoral da Terra, Dom Tomás Balduíno. Temos que parar com essa hitória de troca-troca no governo só porque a burguesia agrária critic o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de estar ligado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Não tenho dúvidas do compromisso do nosso presidente com as causas sociais e principalmente com a reforma agrária. O que não podemos deixar é que as questões políticas sejam resolvidas pelos burocratas. Se isso acontecer, vamos cometer os mesmos erros do passado. José Rainha Júnior Dracena (SP)

resolvemos liberar o jornalista José Arbex Jr. de suas funções como editorchefe do Brasil de Fato para dedicar a essas atividades um tempo ainda maior do que o já dispensado. Estamos certos de que a aposta na crescente interação entre o Comitê Editorial e os comitês de apoio já formados, as universidades, os sindicatos e os movimentos sociais é o caminho mais seguro para a consolidação do Brasil de Fato como um jornal independente de expressão nacional.

ERRAMOS Na edição 28, página 16, o crédito da foto da matéria “Grupo encanta com cordel” é divulgação. Na matéria “Da feira para a universidade”, o crédito da foto é de José Ericleidson.

Participe do jornal O Brasil de Fato foi criado a partir da colaboração e da união de diversas pessoas e movimentos sociais comprometidos com um projeto popular para o país. Por isso, as reportagens publicadas no jornal podem ser reproduzidas em outros veículos - jornais, revistas, e páginas da internet, sem qualquer custo, desde que citada a fonte. Basta entrar em contato com a redação ou com os comitês de apoio. As pessoas também podem se tornar colaboradoras do Brasil de Fato e propor reportagens, enviar eventos e ajudar a divulgar o jornal.

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Quem somos Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores.

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De 25 de setembro a 1º de outubro de 2003

NACIONAL TRANSGÊNICOS

Liberação recebe aval do governo E m meio a polêmicas no governo e protestos de movimentos sociais, é dado o sinal verde para a soja modificada

P

ressionado pelos grandes produtores gaúchos, pelo governador Germano Rigotto e pela transnacional Monsanto, o governo cedeu e deve liberar o cultivo de soja transgênica na safra deste ano. Porém, o jogo de empurra-empurra continua. Até o fechamento desta edição, na noite do dia 23, a já tomada decisão política favorável à liberação não tinha sido oficializada pelo presidente interino José Alencar. De acordo com parlamentares do PT, Alencar temeu assinar a medida provisória (MP) e adiou a decisão. Além do protesto realizado pelos trabalhadores rurais sem-terra e da resistência de parte do ministério, o governo está sujeito a uma batalha ainda maior. Se liberar o cultivo por meio de MP, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode ter de responder a processo de impeachment. Essa é a avaliação do desembargador do Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília, Antônio Souza Prudente, à possível decisão do governo. A explicação do desembargador é simples: há duas decisões judiciais do TRF proibindo o plantio, venda e consumo de soja transgênica no país – uma de 1999 e outra de 2000. “Se algum ato do presidente, como uma medida provisória, atentar contra essas sentenças, a Constituição estabelece que ele responda por crime de responsabilidade, passível de impeachment”, afirma o desembargador. Outro aspecto questionado pela 4ª Câmara de Coordenação e Revi-

são do Ministério Público Federal – responsável pelos assuntos de proteção ao meio ambiente – é que, com a edição da MP, será desrespeitada a resolução 305 do Conama, que exige licenciamento da soja. “De modo algum é aceitável que uma MP, de âmbito nacional, possa eximir um Estado da Federação do cumprimento da Constituição e das leis em detrimento dos demais”, explica a nota. “Essa medida, caso confirmada, será uma das mais profundas agressões aos direitos dos cidadãos brasileiros. O governo Lula enfrenta uma séria crise de credibilidade, que nos causa perplexidade”, avalia a coordenadora do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Marilena Lazzarini. Para ela, além de não estar cumprindo seus compromissos de campanha, o governo sequer respeita sua própria lei, de liberação apenas da soja da safra 2003. “Nenhum produto dessa safra foi rotulado nem foi fiscalizado”, afirma Marilena.

José Cruz/ABR

Claudia Jardim da Redação

Presidente reúne o governador Germano Rigotto, ministros e líderes políticos

tipo de biotecnologia. “Não podemos copiar pesquisas feitas nos Estados Unidos e aplicar na realidade do cerrado, na Amazônia, na Mata Atlântica e na caatinga”, declarou a ministra. Para ela, a solução deve contemplar um marco regulatório, por meio de uma lei duradoura. Além disso, a discussão não deve se restringir apenas ao Rio Grande do Sul. Roberto Rodrigues faz outra avaliação. Em entrevista no dia 23, afirmou que se não regulamentar o plantio da soja transgênica, o Brasil pode perder “a corrida tecnológica” e ficar “dependente de algumas empresas”, sem conseguir desenvolver produtos próprios. Ainda falta definir se a medida provisória do governo permitiria o plantio transgênico apenas no Rio Grande do Sul ou em todo o país. Com a primeira opção, o governo gaúcho terá problemas porque o

INTOLERÂNCIA Em Nova York, o ministro da Agricultura Roberto Rodrigues anunciou que “o cultivo deve ser liberado por mais um ano ou até a aprovação de um projeto de lei sobre biotecnologia”. Para Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e principal opositora dos transgênicos, a decisão do governo teria de respeitar a Convenção de Biodiversidade, da qual o Brasil é signatário. A convenção exige o princípio de precaução e estudos de impacto ambiental antes do uso de qualquer

governador do Paraná, Roberto Requião, proibiu o plantio e o transporte de transgênicos no Estado. Ou seja, os produtores gaúchos teriam dificuldades em escoar a soja transgênica, proibida de passar pelo porto de Paranaguá (PR). Além disso, o governo do Paraná vai fechar um acordo com o mercado asiático. O compromisso do terminal brasileiro é a oferta de soja com qualidade. Em contrapartida, a China irá aumentar o volume de compra de cerca de 4,5 milhões de toneladas registradas até agora para 6 milhões de toneladas do grão - volume total previsto de exportação por Paranaguá este ano.

OMISSÃO “O problema é fruto da omissão do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, que não garantiu o cumprimento da lei de proibição do cultivo”, avalia o deputado estadual

Frei Sérgio Görgen (PT/RS). Para ele, Rodrigues auxiliou a transnacional Monsanto e prejudicou os produtores de sementes que confiaram no governo e investiram na produção convencional. “Lula deveria ser mais coerente e nomear o presidente da Monsanto ministro da Agricultura”, criticou Görgen. Um argumento utilizado pelo governador gaúcho é a escassez de sementes. “Se não há sementes convencionais suficientes não se pode proibir a utilização das transgênicas”, justificou Rigotto. Mas os produtores de sementes do Estado garantem que existem sementes de soja suficientes para a próxima safra. Segundo a Fundação PróSemente, os produtores gaúchos receberam 260 mil toneladas de sementes de soja da Secretaria Estadual de Agricultura. A ministra do Meio Ambiente disse que a estratégia do governo, de distribuir sementes convencionais para substituir o plantio de transgênicos, é fundamental e válida porque a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem tecnologia de ponta no plantio de soja convencional. “É uma solução legal, de criação de um marco regulatório, que devemos estudar”, analisou Marina Silva. O plantio da safra gaúcha deve começar dia 1º de outubro, com a ausência do presidente Lula, em viagem ao exterior, a decisão de editar a MP ficou nas mãos do ministro Dirceu e do presidente em exercício, José Alencar, que pelo visto não quer ficar com o ônus da contaminação da safra brasileira.

Rodrigo Baleia/ Greenpeace

Monsanto reinicia terrorismo agrícola

A Bunge utiliza soja transgênica em ração para aves e não informa o consumidor

Ração é vendida sem aviso ao consumidor Maíra Kubík Mano da Redação Cuidado: produtos transgênicos estão sendo vendidos sem aviso. Teste realizado na ração para aves fabricada pela empresa Bunge, de Porto Alegre (RS), constatou a presença de 30% de soja geneticamente modificada. Contudo, o rótulo do produto não traz a informação, deixando o consumidor sem escolha. O decreto 4.680, assinado há quatro meses pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, obriga a rotulagem de qualquer produto que contenha mais de 1% de organismos geneticamente modificados (OGM). Entretanto, até agora não há qualquer tipo de fiscalização. A organização não-governamental

Greenpeace organizou manifestação na porta da fábrica da Bunge, que admitiu não ter tomado nenhuma providência após o teste. Os órgãos responsáveis – Ministério da Agricultura e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) –, alegam que a fiscalização não começou porque o decreto não foi regulamentado pelo Ministério da Justiça, que prefere ainda não se pronunciar sobre o assunto. Como o decreto vale também para animais alimentados com rações transgênicas, o caso pode dificultar a exportação de frango. Até o momento, no mercado internacional a avicultura brasileira é vista como isenta de transgênicos, o que facilita a comercialização para a União Européia, principal crítica dos OGM.

Às vésperas do início do plantio da soja no Rio Grande do Sul, a transnacional Monsanto anunciou: os agricultores que cultivarem a soja transgênica Roundup Ready (RR) terão de pagar royalties. A notícia foi veiculada em jornais gaúchos e preocupa os produtores do Rio Grande do Sul, para quem as sementes são do ano anterior e, portanto, não podem ser cobradas pela empresa. Os lavradores ainda não entenderam que as regras de agricultura que cumpriram durante toda a vida não valem para as sementes geneticamente modificadas. Para eles é difícil compreender que têm de pagar à transnacional ao cultivar a soja transgênica, mesmo utilizando sementes guardadas da safra anterior. Ezídio Pinheiro, presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetag), alega que há cinco anos guarda sementes, já cruzadas com outras, o que na sua opinião não justificaria

a cobrança. Porém, os agricultores não foram avisados de que teriam de pagar pelo uso da tecnologia desenvolvida na soja RR. A desinformação pode ser atribuída a quem fez propaganda do cultivo transgênico. Para o deputado federal gaúcho Adão Pretto, do Núcleo Agrário do PT, “essas pessoas deveriam ser responsabilizadas judicialmente”. Carlos Sperotto, presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) e defensor declarado dos transgênicos, considera “prematura” a conversa sobre royalties. E admite que as opiniões podem ficar divididas. No entanto, a situação é mais complexa do que os agricultores imaginam. A lei de proteção de cultivares (nº 9.456) concede à indústria o direito de cobrar pelas sementes e uso da tecnologia. A polêmica, judicial, é: a Monsanto tem ou não o direito de cobrar pelo plantio ilegal da soja?

Para Osíris Lopes Neto, consultor jurídico do Ministério de Ciência e Tecnologia, qualquer cobrança seria ilegal. “A indústria não pode cobrar efeitos patrimoniais de um produto ilícito. A soja Roundup Ready é contrabandeada”, explica. Mesmo se o cultivo fosse liberado, a Monsanto teria de submeter suas sementes ao estudo de impacto ambiental (EIA/Rima), o que, de acordo com Lopes Neto, levaria no mínimo dois anos. Jaques Alfonsin, advogado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), lembra que para exigir o pagamento, a transnacional pode alegar enriquecimento injustificado. Ou seja, argumentaria que, em tese, os produtores brasileiros sabiam que a soja era patenteada e não quiseram pagar. “Esse vai ser o pretexto que a Monsanto utilizará para levar a questão a julgamento. O resultado vai depender do Judiciário”, explica. (CJ)

AMBIENTE

Cerrado é reconhecido como bioma Denise Moura de Goiânia (GO) O Cerrrado, região com mais de 2 milhões de quilômetros quadrados, foi reconhecida oficialmente como bioma nacional. A portaria de reconhecimento foi assinada pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na abertura do III Encontro e Feira dos Povos do Cerrado. O evento reuniu mais de 6 mil pessoas entre os dias 11 e 15, na Praça Universitária, em Goiânia. O público era formado por estudantes, professores, microempresários, agricultores, donas-de-casa e crianças. O número de visitantes foi 40% superior ao de 2002, conforme avaliação de Irene Maria dos Santos, integrante do colegiado da Rede Cerrado, entidade que reúne

mais de 60 organizações não-governamentais e promove o encontro anual. Cerca de 300 instituições e mais de 600 pessoas identificadas com a sustentatibilidade socioambiental no Cerrado mostraram e venderam seus produtos e participaram de palestras, oficinas e debates. Entre elas, estavam trabalhadores rurais, indígenas, extrativistas, quilombolas, pescadores, artesãos e estudantes. Estavam na solenidade de abertura, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva; o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Marcos Lima Barroso; e o prefeito de Goiânia, Pedro Wilson. A mais importante ação foi a assinatura de uma portaria conferindo oficialmente ao Cerrado o status de bioma – grande região cujas carac-

terísticas como sistema ecológico específico as diferenciam das regiões vizinhos. O Cerrado abriga as três principais bacias hidrográficas do Brasil, estendendo-se por 13 Estados brasileiros. Trata-se do segundo maior bioma em biodiversidade e extensão territorial do país, com 2 milhões de quilômetros quadrados. A portaria recém-assinada determina a constituição de um Grupo de Trabalho (GT) no Ministério do Meio Ambiente, responsável pela regulamentação de políticas de valorização da região. A ministra Marina Silva garantiu que o governo federal com o destino de um ecossistema presente em 25% do território nacional. A partir deste ano, o 11 de setembro passa a ser o Dia do Cerrado.


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De 25 de setembro a 1º de outubro de 2003

NACIONAL CONJUNTURA

Controle de capitais, necessidade urgente Marcello Casal Jr./ABR

O Brasil depende demais do capital estrangeiro, cuja liberdade de entrar e sair é prejudicial ao crescimento Lauro Jardim de São Paulo (SP)

E

m algum momento, o governo brasileiro terá se centralizar o câmbio, adotando mecanismos de controle da entrada e da saída de dólares, para escapar da armadilha em que o governo Fernando Henrique amarrou a economia. A proposta, que dá urticária nos economistas ortodoxos, e na atual equipe econômica, continua sendo defendida pelo economista Décio Garcia Munhoz, professor da Universidade de Brasília (UnB). Hoje, os dólares trazidos por investidores, ou obtidos com as exportações de produtos, bens e serviços são comprados pelo Banco Central (BC), que devolve reais a exportadores e investidores, com base na cotação do dia da moeda estadunidense aqui dentro. Inversamente, quando desejam remeter dólares, investidores e importadores entregam reais ao BC, e recebem os dólares equivalentes. Esse fluxo é mais ou menos livre, ou seja, qualquer um, desde que tenha registro no BC, pode comprar e vender, trazer ou enviar dólares para o exterior. Num regime de centralização cambial, o BC controla com mais rigor a entrada e, especialmente, a saída de dólares.

CONDIÇÕES Adotando o controle de câmbio, o BC pode impor prazos para permanência dos dólares no país, e evitar sua fuga. Pode, ainda, criar cotas para remessas de dólares, e indicar os setores que terão prioridade para importar. Assim, atividades essenciais ao funcionamento da economia teriam maior liberdade para importar produtos e serviços, ao passo que a compra externa de

bens menos essenciais, ou supérfluos, seria limitada, ou proibida. Tais medidas deixariam o Brasil menos vulnerável a crises de fuga de dólares porque os especuladores teriam maior dificuldade para remeter a moeda para outros centros financeiros. Críticos do controle de capitais e da centralização argumentam que tais políticas fariam fugir reais investidores, deixando o Brasil sem dólares para pagar compromissos no exterior, o que empurraria a economia para novas crises. Países como Cingapura e Chile adotaram políticas semelhantes e não amargaram falta de dólares. Em entrevista ao Brasil de Fato, Décio Munhoz defende o controle de câmbio para resolver um problema meramente financeiro. A lógica da proposta parte da necessidade de solucionar a elevada dependência de dólares da economia e, ao mesmo tempo, reduzir o peso dos serviços (juros e prestações) das dívidas externa e interna sobre os gastos do setor público. O Brasil, diz ele, contratou empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) não para financiar o crescimento, mas para “deixar na prateleira”, ou seja, reforçar as reservas internacionais. O objetivo é “agradar os investidores internacionais”, demonstrando que o país poderá manter a “conversibilidade da moeda”.

Henrique Meirelles, presidente do BC, não aceita controle do câmbio

Trocando em miúdos, os investidores continuariam trazendo seus dólares porque teriam a certeza de que seriam devolvidos quando decidissem sair. Mas essa política tem um custo alto e, afinal de contas, “capital especulativo é capital especulativo”, argumenta Munhoz. Isto é, qualquer que seja a política, aqueles capitais vão mesmo sair, e podem evaporar à menor mudança de humor do mercado.

CÍRCULO VICIOSO Acontece que, para trocar os dólares por reais, o BC emite títulos públicos, endividando-se, internamente, a um custo elevado. Para pagar esse custo, o governo, nos últimos oito anos, produziu um aumento inédito da carga tributária, ou seja, do total de impostos pagos por todos os brasileiros. Cortaram-se despesas públicas essenciais para economizar recur-

sos, desviados para o pagamento de juros da dívida interna, que disparou, chegando a quase R$ 900 bilhões, hoje, porque o país precisava atrair dólares para pagar suas contas. Uma armadilha que deve ser desarmada para que a economia volte a crescer. O aumento dos impostos, prossegue Munhoz, aconteceu às custas de uma queda da massa salarial (total de salários pagos na economia), que encolheu 30% nos últimos anos. “Isso amarrou a economia”, afirma. E acrescenta: “Para sair da crise, é preciso reduzir a carga tributária, o que só poderá ser feito se houver um novo esquema para giro da dívida pública interna”. Traduzindo: o Tesouro terá de reduzir o tamanho de sua dívida, sem calote a investidores, e cortar o gasto com juros, o que abriria espaço para a cobrança de impostos menores, destravando a economia. Munhoz defende medidas já adotadas no Brasil. Para fazer a dívida encolher gradativamente, pode-se criar mecanismos de correção dessa dívida (e, portanto, de remuneração aos bancos e investidores que compram títulos do Tesouro Nacional) que levem em conta uma projeção de taxas decrescentes para a inflação nos meses seguintes. “O que não pode é o BC pagar juros mensais de 1,8% ao mês a investidores e especuladores do mercado financeiro, quando a inflação está na faixa de 0,5% ao mês”, argumenta. Feita essa mudança, claro, o capital que entrou para lucrar no cassino dos juros altos vai, inevitavelmente, fugir. Por isso, o BC teria de controlar o câmbio. Caso contrário, a alternativa será continuar patinando na crise atual.

Calculadora na mão, tente fazer umas continhas básicas para saber se o governo pode atingir os objetivos que pretende com as medidas de abertura de linhas de microcrédito para consumidores de baixa renda: baixou um pacote que oferece crédito para quem se disponha a consumir eletrodomésticos, e autoriza a contratação de empréstimos de pequenos valores em regime de consignação (ou seja, com desconto direto na folha). Parece certo que os juros, em todos aqueles casos, serão bem menores do que as taxas cobradas atualmente por bancos e lojas. No caso do crédito para a compra de eletrodomésticos, por exemplo, os juros estarão limitados a 2,95% ao mês. Abaixo do mercado, sem dúvida, mas uma taxa ainda ligeiramente salgada quando se compara com uma inflação mensal na casa de 0,6%. O governo sabe, porém, que o incentivo só chegará às camadas mais pobres da população se os bancos oficiais fizerem exigências de garantia compatíveis com os objetivos do programa, como afirmou Bernard Appy, secretário-executivo do Ministério da Fazenda. As taxas de juros anunciadas tanto pela Caixa quanto pelo Banco do Brasil serão de 2,53% ao mês, mas as duas instituições já avisaram que vão exigir as garantias habituais para o retorno dos empréstimos.

REFRESCO O total de recursos que entrará na economia, obviamente, dependerá da procura. Será tanto maior e, portanto, terá maiores chances de produzir algum impacto, ainda que isolado, quanto maior for a propensão do consumidor para se endividar e consumir, neste momento.

Cleo Velleda/ Folha Imagem

Mais crédito, menos renda. A conta não fecha Suponha que o brasileiro pretenda mesmo retornar às compras. Como não há números disponíveis para as demais linhas de crédito, tome-se o programa de financiamento de eletrodomésticos, setor que vem de dois anos seguidos de baixa e experimenta, neste ano, quedas de vendas entre 10% (eletrodomésticos portáteis) e quase 18% (linha branca, como geladeiras e fogões). Serão, a princípio, R$ 200 milhões, com limite de R$ 800 por tomador, o que significa que 250 mil consumidores poderão ser beneficiados. Agora, imagine que todos eles decidam gastar os R$ 800 na compra de fogões e geladeiras; e cada um daqueles equipamentos tenha um preço médio de R$ 400. O dinheiro seria suficiente para comprar, portanto, 500 mil fogões e geladeiras. Parece muito, mas não é tanto assim. Serviria como um refresco. Talvez alguns novos empregos na indústria, mas não parece ser suficiente para deter a queda das vendas.

TOMBO A indústria de fogões e geladeiras já chegou a produzir e vender, em 1996, mais de 11 milhões de unidades. Mas as vendas desabaram para 8,6 milhões em 2000 e recuaram para cerca de 8,5 milhões em 2002. Com o tombo do primeiro semestre, as vendas anuais devem rondar a casa das 7,1 milhões de unidades. Os 500 mil novos fogões e geladeiras hipoteticamente vendidos, no nosso cálculo, elevariam aquele total, portanto, para uns 7,6 milhões, algo como 10% menos do que em 2002 (fundo do poço, até aqui). Haveria uma redução no ritmo de

Setor de eletrodomésticos é um dos que enfrentam as maiores baixas

queda, supondo-se, frise-se, que todos os 250 mil consumidores em potencial decidam se endividar para comprar geladeiras. No cenário atual, não parece ser a perspectiva mais realista.

Segundo avaliação do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), é necessário “injeções de ânimo” como a queda de juros na ponta para que o consumidor volte ao crédito. E,

para a Associação Comercial de São Paulo (ACSP), o temor é que a extensão do desemprego e a falta de renda seja um empecilho maior que todos. O ano está perdido, avalia Emílio Alfieri, economista da entidade. De fato, os números da última semana não ajudam: • Nos supermercados, segundo associação do setor, as vendas caíram 4,37% em agosto, em relação a agosto de 2002; no ano, a baixa é de 1,88%. Nos supermercados, só no município de São Paulo, as demissões devem superar a marca de 8 mil em 2003. • No comércio de São Paulo, em agosto, as vendas caíram 4,9%, apesar da queda dos juros. Foi o quarto mês de queda. Segundo o Clube de Diretores Lojistas do Rio, o índice de vendas do comércio varejista no Rio de Janeiro registrou queda de 24,92% em agosto, em relação ao mesmo mês do ano anterior. Em comparação com julho, o índice foi 3,57% menor. • O emprego e a renda na indústria diminuíram, respectivamente, 1,2% e 3,4% entre julho deste ano e idêntico mês de 2002. De janeiro a julho de 2003, o nível de emprego industrial encolheu 1,8%. O valor real da folha de pagamento da indústria nacional subiu 0,4% em julho, relativamente a junho. Na comparação com julho de 2002, porém, o total da folha ficou 3,4% menor. No acumulado do ano, o valor real da folha recuou 6,1%. A retração em São Paulo foi de 6,6%; no Rio, de 11,4%; na Bahia, de 10,1%. • Em agosto, segundo o BC, o valor dos cheques sem fundos foi da ordem de R$ 5,0 bilhões, em todo o país, um número 16% maior do que em agosto de 2002. (LJ)


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NACIONAL INDICADORES SOCIAIS

O Brasil tem 150 milhões de excluídos Comboni Press

Esse é o contingente de brasileiros que sequer consegue alcançar as condições básicas para uma existência digna Lauro Jardim de São Paulo (SP)

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té o conservador mais empedernido teria dificuldades para refutar o fato de que os indicadores sociais do Brasil estão entre os mais injustos do planeta. O que não se sabia, até aqui, é que os níveis de injustiça fossem muito mais assustadores do que se pensava. Economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), fundação vinculada ao Ministério do Planejamento, Ronaldo Coutinho Garcia criou um novo indicador, destinado a medir o nível de iniqüidade social, uma situação que está um passo além da desigualdade. Os resultados são chocantes: apenas 5,5% dos brasileiros podem se considerar acima, ou na mesma linha mínima que distingue cidadãos que têm condições de vida dignas, daqueles que não conseguem ser nada além de meros sobreviventes. O estudo “Iniqüidade social no Brasil: uma aproximação e uma tentativa de dimensionamento”, publicado no mês passado, mostra com uma nitidez poucas vezes esboçadas o “grau de estupidez” ou, como prefere o autor, a “ganância infecciosa” que produziu, no país, uma legião de deserdados de toda a sorte. E “sorte”, neste caso, tem muito pouco a ver com o cenário de descalabro revelado pelo estudo.

GANÂNCIA Numa série mais longa de dados preparada pelo economista, percebe-se que não foi por falta de crescimento que os índices de iniqüidade chegaram a tal descalabro. “Não faltaram condições materiais e meios objetivos para reduzir a iniqüidade”, atesta Garcia. Enquanto os indicadores da concentração da renda e da propriedade mantinham-se inabaláveis, a economia cresceu 13 vezes entre 1950 e 2001. É certo que o ritmo de crescimento sofreu radical desaceleração nas duas últimas décadas, mas o país continuou produzindo riquezas: estas cresceram 34 vezes em período quase idêntico. No entanto, diz Garcia, a riqueza já existente, as novas riquezas geradas pelo país e a renda criada no período “foram apropriadas concentradamente por minorias que sofrem de um estado crônico de ‘ganância infecciosa’”.

HAJA INJUSTIÇA A distribuição extremamente desigual da renda e do patrimônio, com os níveis de concentração mantidos praticamente inalterados nas últimas décadas, foi meticulosa e premeditadamente construída ao longo do tempo, por decisões de governo em favor de grandes grupos, por subsídios e perdões de impostos concedidos aos mais favorecidos, pela cobrança injusta de impostos sobre os salários, cortes de despesas e de investimentos sociais para economizar recursos e pagar juros aos credores do governo. Mais claramente, anos e anos de política econômica neoliberal,

1.296, escolaridade adequada e algum tipo de cobertura previdenciária. Ou seja, tudo que 94,5% dos brasileiros, ou mais de 150 milhões de pessoas não têm. Os dados coletados por Garcia confirmam, mais uma vez, a existência de dois “Brasis”, apartados por um verdadeiro abismo social, e mostram que, ao ritmo verificado nos anos Fernando Henrique, o país levaria quase 350 anos para elevar todas aquelas famílias para o nível mínimo de dignidade. Na área rural, onde os índices são ainda mais graves, seriam necessários 3,9 mil anos. “Não faz sentido algum pedir tais tempo e paciência à grande maioria da população brasileira, carente de tudo. Não é possível prosseguirmos nesta marcha da insensatez, quando existem condições objetivas para sermos um país diferente, uma sociedade mais eqüitativa”, desabafa Garcia. Na região Norte, apenas 1,7% das famílias vivem com mínima dignidade, índice que alcança apenas 1,84% dos nordestinos e 4% dos moradores do Sul e do Centro-Oeste. No Sudeste, aquela fatia atinge 9,2% das famílias.

Só 5,5% dos brasileiros, 9 milhões de pessoas, conseguem ter um padrão de vida com um mínimo de dignidade

preservada agora pelo governo petista, contribuiu pesadamente para a montagem desse cenário. Menos de 9 milhões de brasileiros, entre quase 160 milhões, segundo dados utilizados por Garcia, “atendiam aos requisitos propostos”, ou seja, atingiam um Patamar Mínimo de Existência Digna (PMED), um outro indicador proposto pelo eco-

nomista, que também sugere a criação de um Indicador de Iniqüidade Social (Iniq). Para chegar àquele nível mínimo de dignidade, uma família de brasileiros deveria ter casa própria, situada em bairros normais, construída com material permanente, com banheiro, no máximo dois moradores por dormitório, acesso

a água, esgoto, coleta de lixo, iluminação, telefone, fogão, geladeira, filtro de água, rádio e televisão.

INSENSATEZ Para completar, aquelas famílias deveriam ter renda individual igual ou superior a 1,5 salário mínimo (R$ 360, hoje), o que corresponderia a uma renda familiar de R$

No mesmo estudo, o economista Ronaldo Coutinho Garcia mostra que a propriedade da terra prosseguiu concentrada nas mãos de poucos, assim como a renda, que indicava, em 2000, o mesmo grau de concentração verificado em 1978. Em todos aqueles anos, o Brasil desperdiçou oportunidades de se aproximar, levando junto a maioria dos brasileiros, dos países mais ricos. Fez-se, aqui, exatamente o inverso do que fizeram Coréia do Sul, Itália, França e Japão nos anos do pós-guerra, que construíram “verdadeiros mercados de massa e sistemas de welfare (bem-estar social, com socialização da saúde e da previdência), no bojo de autênticos e soberanos projetos nacionais”. Enquanto aqueles países ampliavam a participação dos salários na renda total, dando condições para que as famílias pudessem consumir produtos industrializados e bens duráveis (como geladeiras, fogões, televisores etc), multiplicando empregos, no Brasil, foram necessários apenas oito anos para fazer os salários perderem quase um quarto de sua participação, desabando de 34,6% do Produto Interno Bruto (a soma de todas as riquezas produzidas pelo país, em um ano) em 1992, para 26,5% em 2000. Nos seis primeiros anos do Plano Real, o tombo foi de 17%. Com a renda dos salários murchando, o consumo caiu, a

Adrovando Claro

Um PIB só para milionários e banqueiros

Enquanto governos sucessivos reforçam os privilégios de uns poucos, a esmagadora maioria do povo vive excluída

produção das indústrias também e aumentou o desemprego, gerando mais iniqüidade. Ao mesmo tempo, a fatia dos “detentores de riquezas” (milionários, grandes empresas, bancos, especuladores do mercado financeiro), correspondente ao acúmulo de juros, lucros, aluguéis e rendas financeiras, passou de 35,3% do PIB em 1993, para 40,5% em 2000, depois de chegar a atingir 42,8% em 1997. A recente elevação dos juros pode ter produzido novos

avanços na concentração, mas os dados ainda não estão disponíveis.

CASO ÚNICO Num caso inédito na história do capitalismo, conforme anota Garcia, o Brasil foi o único país em todo o globo a pagar taxas de juros reais (ou seja, sistematicamente acima da inflação) sobre a dívida do setor público por um período superior a 10 anos. Entre julho de 1994 e junho de 2002, a

dívida pública praticamente triplicou em termos reais (ou seja, cresceu três vezes mais do que a inflação) e as despesas com juros também entraram em disparada, protagonizando uma brutal transferência de renda em favor de grandes grupos empresariais, bancos e especuladores nacionais e internacionais. Nas contas de Garcia, em nove anos, o governo transferiu para aqueles setores nada menos do que

um PIB inteiro, coisa ali de quase R$ 1,5 trilhão, em valores de hoje. Para bancar essa transferência, o governo cortou despesas e investimentos que poderiam ajudar a reequilibrar a balança em favor dos mais pobres (ou, ao menos, reduzir o desequilíbrio). Para agravar a injustiça, enquanto a arrecadação do Imposto de Renda (IR) das pessoas físicas aumentou quase 100% entre 1994 e 2001, a participação do setor financeiro emagreceu de 10,4% para menos de 8% da receita total do IR, embora os bancos tenham (e continuem a) registrado lucros recordes. Um outro dado, prossegue Garcia, ajuda a desvendar os caminhos da concentração no Brasil. Além da menor cobrança de impostos, proporcionalmente, o capital recebe proteção excessiva, com a destinação às empresas de subsídios fiscais (perdões temporários ou definitivos de impostos diversos), crédito favorecido, a juros baixos, concedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e “favores diversos”, que assumem a forma de doações de terrenos e de infra-estrutura de transporte (estradas, asfalto), comunicações (telefones e linhas) e energia de governos estaduais e municipais”. “No Brasil”, conclui Garcia, “o mais essencial dos direitos, o direito a ter direitos, (...) é um sonho em destruição”. (LJ)


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NACIONAL ENTREVISTA

Omissão aumenta a violência no campo Cláudia Jardim da Redação

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violência praticada contra os trabalhadores rurais no Brasil tem dois motivos principais: omissão e concentração de terras. Essa é a avaliação de dom Pedro Casaldáliga, que se surpreende ao ver as milícias “mostrando siglas e rostos” em um governo popular para combater os movimentos sociais. Para ele, é no mínimo escandalosa a criminalização ao MST feita pelo Judiciário com a ajuda dos meios de comunicação. Apesar das pressões dos Estados Unidos para efetivar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), dom Pedro acredita que o governo será prudente na decisão que pode ser “fatal” para toda a América Latina.

Marcos Muzi/ Caros Amigos

Bispo diz que governo não enfrenta o latifúndio e que a falta de reforma agrária provoca maior violência no campo

Quem é Missionário da Ordem dos Claretianos, o espanhol dom Pedro Casaldáliga está à frente da prelazia de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, há 35 anos. Chegou à região em plena ditadura militar, em julho de 1968. Foi o primeiro a denunciar a existência de trabalho escravo no Brasil, em outubro de 1971. No mesmo ano divulgou sua primeira carta pastoral, Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. A partir dessas denúncias, a prelazia tornou-se referência para os movimentos de oposição à ditadura, mas também alvo de ataques pelo fato de ser encarada como foco de guerrilha. Por isso, Casaldáliga foi preso e torturado pelos militares. nas monoculturas, por causa da obsessão exportadora e da dívida externa, estamos perdidos. Em nossa região estamos ameaçados pelas monoculturas de soja e algodão. São duas culturas deletérias, que acabam com a terra, os rios e a saúde dos agricultores.

Brasil de Fato – Qual sua avaliação da violência contra trabalhadores rurais, com chacinas como a que ocorreu no Pará? Dom Pedro Casaldáliga – A violência está aumentando. É resultado da falta de autêntica reforma agrária e reforma agrícola, de não enfrentar o latifúndio com vontade política. Ainda se quer manter esse nosso Brasil arcaico, com capitanias. Tanto o sul do Pará como nossa região e outras áreas do país são frutos do latifúndio. BF – Quais são os outros problemas? Dom Pedro – A violência é resultado da migração descontrolada, da total falta de infra-estrutura da administração, segurança ou comunicações. É fruto da precariedade das administrações municipais, pois os órgãos públicos que deveriam agir e controlar com freqüência são desaparelhados. Todos sabemos em que situação estão a Funai, o Incra e o Ibama, por exemplo. O próprio ministro José Dirceu reconhece que a Funai está sucateada. Presidentes são trocados, mas não se promove a reforma da estrutura desses órgãos, que ficam sem condições para agir. BF – De que maneira essas instituições podem ser reestruturadas? Dom Pedro – Em primeiro lugar, deve-se limpar o que há de corrupto nesses órgãos. Há funcioná-

BF – Isso significa um retrocesso? Dom Pedro – Além de ser uma ameaça à agricultura brasileira, por causa do desmatamento, é um retrocesso. A natureza é pluricultural e a monocultura extensiva, fatal para a terra, a ecologia e o povo, inclusive economicamente. Depois de 4 ou 5 anos de plantações, para gerar lucro para poucas pessoas, cria-se um deserto.

rios mantidos em seus postos mesmo com histórias de corrupção ou omissão. Em segundo lugar, fazer com que cada órgão se dedique às suas funções. Às vezes, os próprios funcionários não sabem o que lhes cabe e as responsabilidades são jogadas de um órgão para outro, ou de um Estado para outro. É necessária a reforma das polícias, com unificação, aparelhamento, salário digno para os policiais. BF – Há omissão do governo no controle das milícias no campo? Dom Pedro – Evidentemente. É curioso que em um governo popular os latifundiários sintam-se com coragem para mostrar o rosto. Antes, a UDR (União Democrática Ruralista) era quase clandestina e agora aparece exibindo armas. Em parte, isso se explica por que

BF – O que o senhor acha da liberação do cultivo de soja transgênica? Dom Pedro – É uma gravíssima imprudência e uma terrível concessão às multinacionais. Lamento profundamente que o governo não seja mais coerente. No mundo inteiro, técnicos alertam para os riscos dos transgênicos. É fatal expor a natureza e a humanidade a conseqüências imprevisíveis. E há o aspecto econômico, pois a Monsanto leva tudo e os lavradores ficarão desamparados.

estão aparecendo as contradições. Mas há uma certa omissão. Eu sinto que o latifúndio não é enfrentado como se deve, como um mal maior. BF – Qual sua avaliação do programa de reforma agrária? Dom Pedro – Há vários gestos bons, significativos, mas secundários. Não se assume a reforma agrária como tão necessária quanto a tributária ou a da Previdência. A reforma agrária é matriz, resolveria muitos problemas na área de segurança, paz no campo, emprego, alimentação e a economia do país.

BF – E na política externa, o governo está acertando? Dom Pedro – O governo tem sido correto em sua política externa, em suas posições frente à guerra e ao intensificar relações com países da América do Sul. E ao tratar da Alca, manifesta prudência, que eu espero que seja uma firmeza explícita. A Alca seria fatal não só para o Brasil, mas para toda a América Latina.

BF – Como o senhor vê a política agrícola? Dom Pedro – O Brasil é um país com potencial para agricultura diversificada. Mas se investimos

RIO DE JANEIRO

Comitê popular vai combater trabalho escravo O trabalho escravo é uma prática comum nas regiões mais pobres do Estado do Rio de Janeiro. Essa foi uma das conclusões do 1º Seminário sobre Trabalho Escravo e Degradante do Norte e Noroeste Fluminense, realizado entre os dias 17 e 19, em Campos (RJ). No encontro, trabalhadores rurais e movimentos sociais denunciaram usinas de cana-de-açúcar que atrasam salários em até seis meses. Também foram relatadas histórias como a do capataz que obrigou um camponês com malária a trabalhar dois meses de graça, para receber um medicamento analgésico. O objetivo do seminário foi criar um Comitê Popular de Combate ao Trabalho Escravo. “Queremos sensibilizar a sociedade para a inclusão desses trabalhadores como cidadãos. O comitê vai dar sustentação para que isso aconteça”, explica Inês Fátima Polidoro, da coordenação estadual da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

João Roberto Ripper

Nestor Cozetti de Campos de Goitacazes (RJ)

Polícia Federal liberta trabalhadores em regime de semi-escravidão

O Comitê tentará estimular trabalhadores submetidos a condições desumanas a denunciar seus patrões. Segundo Inês, a crise econômica e a pressão dos usineiros e canavieiros intimidam os camponeses. Desde a década de 80, o número de usinas na região de Campos caiu de 16 para 4. “Se o trabalhador identifica e denuncia a

degradação de seus direitos, pode ficar desempregado”, conta Inês. Além disso, os patrões têm usado métodos criminosos para inibir os camponeses. Cinco dias antes do início do seminário, um trabalhador rural levou cinco tiros. Por sorte, o camponês sobreviveu e, quando recuperou a voz, conseguiu denunciar um dos pistoleiros. “O

trabalho escravo é comum na região”, constatou Marinalva Cardoso Dantas, representante do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Para alguns dos palestrantes, as leis dificultam o cumprimento dos direitos dos trabalhadores. “A legislação favorece o grande latifúndio. Mesmo na desapropriação é obrigatória a indenização, o que acaba sendo um prêmio para o ex-senhor de escravos”, concluiu João Teixeira, procurador-geral do Trabalho. As denúncias atingiram também deputados da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Os parlamentares Alessandro Calazanas (PV), Roberto Dinamite (PMDB), Paulo Melo (PMDB) e Geraldo Moreira (PSB) foram acusados de ser coniventes com trabalho escravo. Segundo o ator Leonardo Vieira, esses parlamentares votaram contra a abertura de uma Comissão Paralamentar de Inquérito (CPI), que investigaria o presidente da Assembléia, Jorge Picciani, acusado de escravizar trabalhadores em uma fazenda no Mato Grosso.

BF – Qual sua avaliação sobre a Alca? Dom Pedro – A Alca não é apenas um projeto econômico, mas um projeto cultural e militar. É a nova desculpa do antiterrorismo. Atualmente, na Costa Rica discute-se a criação de uma escola de observadores de leis mundiais, que acabaria sendo uma nova escola de torturadores, a exemplo da ainda viva Escola das Américas. É o controle estadunidense sobre o continente, agora com mais urgência porque eles sabem que devem respeitar a Europa e outros países asiáticos. Os EUA querem firmar de uma vez por todas o conceito que a América Latina é o pátio traseiro do mundo. BF – Como resistir aos governos favoráveis à Alca? Dom Pedro – Infelizmente há subserviência e interesses de grupos. Na Nicarágua houve uma grande manifestação contra um tratado imediato com os EUA. Se eles não puderem assimilar toda a América Latina, farão questão de nos dividir. Esses acordos bilaterais são uma traição ao continente latino-americano, uma traição à pátria grande, à nossa América. BF – O que o senhor acha das negociações com o FMI? Dom Pedro – Lamento profundamente. O que é bom para o FMI não é bom para o Brasil. Sem dúvida a moratória seria uma saída. Poderíamos agilizar a criação de empregos, atender às dívidas internas. Quanto mais atendemos à dívida externa, menos atendemos às dívidas sociais.

Mandante de crime de padre Josimo é condenado No dia 17, foi condenado Osmar Teodoro da Silva, mandante do assassinato do padre Josimo Tavares. Julgado pelo Tribunal do Júri de Imperatriz (MA), ele recebeu a pena máxima prevista para o crime: 19 anos de reclusão. Padre Josimo foi assassinado em 10 de maio de 1986, nas escadas da CPT do Araguaia-Tocantins, em Imperatriz (MA). O pistoleiro Geraldo Rodrigues da Costa, preso e condenado, encontra-se foragido. Vilson Nunes Cardoso, co-autor do assassinato, também foi preso, mas fugiu antes de ser levado a julgamento. Em 1997, 11 anos após o assassinato, foram julgados e condenados três dos seis acusados de serem mandantes do crime – Guiomar Teodoro da Silva, Adailson Gomes Vieira e Geraldo Paulo Vieira. Teodoro da Silva, suspeito de ser o principal mandante, foi preso somente no final de 2001, no interior do Pará, portando identidade falsa.


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NACIONAL REPRESSÃO

Tese de revanchismo protege torturadores Governo ajuda as famílias na localização dos corpos dos guerrilheiros mas não quer abrir os arquivos do exército Arquivo CPV

Claudia Jardim da Redação

R

LEI DA DITADURA Para garantir impunidade aos violadores dos direitos humanos, o general João Baptista Figueiredo assinou, em agosto de 1979, a Lei de Anistia. Foram, assim, eximidos de julgamento todos os que cometeram crimes políticos ou conexos, entre os anos de 1961 e 1979. “Essa lei foi um benefício fraudulento”, avalia Fábio Konder Comparato, jurista e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. De acordo com a lei, são considerados crimes conexos os atos relacionados a crimes políticos ou praticados por motivação política. No entanto, explica Comparato, não poderiam ser avaliados da mesma maneira os réus dos crimes – os torturadores – e as vítimas. “Na época, vivíamos um regime arbitrário; por isso essa interpretação passou a valer”, conclui. “O governo está repetindo a interpretação dos juristas da ditadura”, acrescenta Cecília Coimbra.

CINZAS DA HISTÓRIA

Família consegue exumação do corpo de guerrilheira Depois de uma longa batalha judicial, o corpo da guerrilheira Iara Iavelberg foi exumado, dia 22, para que seja investigada a causa de sua morte, em 1971. Pela versão oficial, a companheira do capitão Carlos Lamarca teria se suicidado. Mas a família acredita que ela foi assassinada, após a polícia invadir seu apartamento na cidade de Salvador (BA).

De família judaica, Iara foi sepultada com desonras no Cemitério Israelita de São Paulo, “por ter cometido suicídio”. Além de esclarecer os fatos que envolvem sua morte, a família quer provar que não houve suicídio para poder enterrá-la segundo os preceitos religiosos judaicos. O corpo será analisado por peritos da Universidade de São Paulo.

e psicológicas. “Como eu estava grávida, as sessões de tortura eram acompanhadas por um médico que orientava os policiais”. Criméia deu à luz a seu filho na prisão. Durante a gestação, os militares ameaçaram ficar com a criança se fosse um menino, branco e saudável. “Eu rezava para ser menina, ou, na pior das hipóteses, não ter saúde”, conta. Criméia teve um menino saudável, mas conseguiu mantê-lo

em segurança. Hoje ela faz parte da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e ainda procura a ossada de seu companheiro, André Grabois, e do pai dele, Maurício Grabois.

Militares embarcam num avião na região do Araguaia

tável é defenderem essa postura ex-presos políticos ou antigos integrantes das comissões de direitos humanos”, constata Criméia. Para Nilmário Miranda, não faz sentido reabrir um debate de 30 anos e voltar a discutir lutas passadas. “Não dá para transfomar os militares em inimigos”, afirma o secretário, também ex-preso político. O presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo, partido

QUAL DEMOCRACIA? “Apesar do país ter se democratizado, os militares ainda mandam e desmandam. O governo teve uma atitude covarde. O mais lamen-

JÁ PASSOU DA HORA “Com a desculpa de não abrir feridas, deixamos passar, e continuaremos acumulando feridas”, analisa o bispo de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, para quem já passou da hora de trazer à luz a história da guerrilha. Aqueles que resistiram às repressões da ditadura nas matas do Norte do país ficaram indignados com a decisão. “Revanchismo se tornou sinônimo de impunidade”, avalia Criméia de Almeida, uma das sobreviventes da guerrilha. Criméia chegou no Araguaia em 1969. Foi presa no primeiro confronto com o exército e, como todos os guerrilheiros, submetida a severas torturas, físicas

Reprodução/ O Globo

Soldados do exército cortavam e separavam as cabeças dos corpos dos guerrilheiros

Crédito: Celso Júnior/AE

evanchismo. Assim passou a ser caracterizada a questão da abertura dos arquivos sobre a guerrilha do Araguaia, para justificar a decisão do governo de não “reabrir feridas”. Entre 1972 e 1974, no auge da ditadura militar, mais de 60 militantes do PCdoB e um número incalculável de camponeses foram dizimados pelas Forças Armadas, em uma guerrilha no sul do Pará. Após 30 anos, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva - preso político durante a ditadura - resiste em esclarecer um episódio histórico de violação aos direitos humanos no Brasil. No final de agosto, a Advocacia Geral da União (AGU) recorreu parcialmente do pedido de localização dos corpos, feito pela juíza Solange Salgado, da 1ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, dentro de um processo iniciado em 1982 por parentes de vítimas. O governo reconhece o direito dos familiares de localizar os restos mortais e sepultá-los, mas questiona a quebra do sigilo das informações e o fornecimento de dados sobre operações militares relacionadas à guerrilha. “A juíza concedeu mais do que foi pedido pelas famílias. O importante, neste momento, é identificar os corpos”, alega o secretário especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda. “Ao recorrer dessa sentença, o governo assassinou pela segunda vez os militantes que lutaram no Araguaia”, sentencia Cecília Coimbra, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. Para ela, o governo perdeu a oportunidade de revelar como Guerrilha do Arae onde foram guaia - dois anos mortos os após o golpe militar de 1964, os primeiguerrilheiros, e ros militantes do quem foram os PCdoB começaram responsáveis a chegar na região do Bico do Papapelos crimes. gaio, sul do Pará. Ao contrário Nas cidades, audo que declamentavam as perseguições, as torturas rou o ex-guere os assassinatos. rilheiro e atual Diante desse cenápresidente do rio, o PCdoB orgaPT, José Geniza a resistência armada no campo. noíno, Cecília acredita que não se trata de revanchismo e que esse assunto diz respeito a toda a sociedade, não somente aos familiares. O recurso da AGU também foi atacado pelo deputado federal e advogado das famílias, Luís Eduardo Greenhalgh: “A opção por não ´reabrir feridas serviu para acolher os militares. Dar explicações às famílias significa cicatrizar as feridas”. Porém, apesar de pretender entrar com recurso contrário à decisão do governo, o advogado acredita que a localização dos corpos é o suficiente para esclarecer os fatos. “Não quero a punição dos culpados, nem o Exército no banco dos réus”, admite. Para Greenhalgh, se os militares indicarem as sepulturas já será um sinal de reconhecimento dos erros”.

que organizou a guerrilha, defende a ação da União na localização dos corpos, mas é partidário da teoria do revanchismo: “Não podemos transpor a lei de Anistia, que serve para os militantes e para os militares”.

Marcha das mulheres do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que iniciou-se próximo ao aeroporto e terminou na catedral da cidade de Presidente Prudente, na região do Pontal do Paranapanema, Oeste de São Paulo. Os manifestantes reivindicam a libertação dos militantes do movimento, entre eles Diolinda Alves de Souza, seu marido José Rainha e Mineirinho, dia 19

Pouco antes de morrer, no ano passado, o então presidente do PCdoB, João Amazonas, escreveu um bilhete com um pedido: “Minhas cinzas devem ser espalhadas na região do Araguaia. É uma forma de juntar-me aos que lá tombaram”. Contar a história, afirma dom Casaldáliga, é mostrar ao povo brasileiro o heroísmo de quem, acertando ou errando certos detalhes, foi capaz de dar a vida por uma causa. “Com ditaduras militares, com repressão, nunca se constitui cidadania e democracia para o futuro”, completa. Para viabilizar a busca dos desaparecidos, o presidente Lula deve assinar um decreto criando uma comissão interministerial. “Vamos ajudar as famílias a localizar os corpos. Se eles souberem como e onde morreram seus parentes, é possível emitir pelo menos um atestado de óbito”, diz o secretário especial de Direitos Humanos. O Alto Comando do Exército, que nega a existência de qualquer documento, terá de apresentar os arquivos à comissão interministerial. “Quando não se quer fazer nada, cria-se uma comissão. Espero que funcione”, critica a vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. A ex-guerrilheira Criméia de Almeida concorda que a localização dos corpos não será tarefa fácil, mesmo com a ajuda dos militares: “Ouvimos dos camponeses que os soldados levavam as cabeças para identificar e abandonavam os corpos”.

Brasileiro ganha indenização, em primeira instância Cláudio Curado de Goiânia (GO) A possibilidade de receber R$ 200 mil de indenização não alterou a rotina do jornalista Antônio Pinheiro Salles, 65 anos, hoje secretário especial da Prefeitura petista de Goiânia (GO). Ele ganhou, em primeira instância, na Justiça Federal, uma ação que para ele representa “mais um passo no sentido de o Brasil acertar as contas com sua própria história”. Pinheiro Salles pleiteou a indenização buscando reparar os danos resultantes de nove anos de prisão durante a ditadura militar. Capturado em Porto Alegre, em 1970,

foi torturado no Departamento de Ordem Política e Social gaúcho e na Operação Bandeirantes, em São Paulo. Como seqüelas, ficaram a surdez do ouvido direito, dificuldades de movimentos na mão direita e problemas psicológicos. Libertado em 1979, com a anistia, Pinheiro Salles participou da fundação do PT em Goiás. Foi presidente regional e ainda candidato a vice-prefeito de Goiânia em 1988. Para Pinheiro Salles, “não pode haver democracia plena sem a apuração dos crimes e a punição dos criminosos e nenhum governo até hoje teve um compromisso democrático de realmente enfrentar essa questão”.


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De 25 de setembro a 1º de outubro de 2003

NACIONAL REFORMA TRIBUTÁRIA

Projeto ignora a questão ambiental Ambientalistas lançam a campanha Reforma Tributária Sustentável, que contempla empresas ecologicamente corretas Agência Brasil

Luís Brasilino da Redação

A

ÍNDIOS

Líder kaigang é assassinado no Paraná

CONGRESSO

Com a proposta de reforma tributária do governo, diminui a participação popular no planejamento de prioridades locais

sível proteger o meio ambiente e manter economicamente uma empresa. “Com esses incentivos, pode-se utilizar com qualidade os recursos naturais, sem prejudicar o ecossistema. A preservação não deve ficar restrita ao não-uso de certas reservas. A preservação ambiental pode ser feita por meio do aproveitamento responsável do ambiente”,

explica Cristine. Sem garantir o meio ambiente, resta ao governo a repressão. Essa tem sido a principal arma para garantir a preservação da natureza. Ou seja, em vez de investir em prevenção, a União opta por gastar em recuperação ambiental. Para Cristine, os problemas não param por aí. O governo federal

transferiu aos Estados o poder de determinar a cobrança ou não do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) Ecológico, diminuindo a participação popular no planejamento de prioridades locais. Um outro ponto incomoda os ambientalistas: a cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR) sobre

BANESTADO

Ex-gerente confirma remessas ilegais Patricia Roedel de Brasília (DF)

da Redação

CONFLITO Segundo o cacique de Palmas, a região vive sob tensão porque o governo federal prometeu demarcar as terras em 3 de outubro. No entanto, Veri soube em Brasília que a definição será adiada. “Temo um conflito. As 173 famílias indígenas não esperarão mais”, diz. Atualmente, a área indígena é ocupada por oito propriedades de colonos. Jair Zuco, investigador da delegacia de Palmas e responsável pelo caso, tem uma lista de suspeitos – índios e brancos – de matar Mendes. (L.B.)

O ex-gerente Eraldo Ferreira confirma: o Banco do Estado do Paraná (Banestado) utilizou doleiros e casas de câmbio para remeter dinheiro de clientes brasileiros à agência de Nova York. Ele afirma que o banco adotou um sistema de cobrança para subfaturar exportações e desviar recursos para o exterior. Segundo Ferreira, as operações ilegais eram do conhecimento da direção e controladas manualmente, não figurando na contabilidade oficial do Banestado. Em depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a evasão de divisas, Ferreira revelou que, entre 1993 e 1995, movimentou cerca de 4,5 milhões de dólares em 150 contas de clientes brasileiros, abertas na agência do Banestado em Curitiba. “Muitas contas eram abertas com nomes fictícios, a pedido dos clientes. Os depósitos eram entregues às casas

de câmbio. A responsabilidade pela remessa do dinheiro era dos próprios clientes. Nós creditávamos os depósitos que chegavam legalmente à agência”, disse. Perin assegurou que “todas as contas abertas na agência de Nova York obedeciam à legislação americana”.

PRESSÃO No último depoimento à CPI, o ex-funcionário do banco nas Ilhas Cayman, Ricardo Franczyk, disse ter sido pressionado por diretores do banco para liberar empréstimos a quatro empresas. Franczyk era responsável pela documentação da captação de recursos para o Brasil e também de empréstimos. Ele disse que a diretoria do banco queria que ele liberasse, por telefone, empréstimos de R$ 4,7 milhões para quatro empresas brasileiras: Tucumã Engenharia, Redan, Trégua Informática e Jabour Veículos. Os empréstimos nunca foram pagos. (Agência Câmara)

Ex-gerente de câmbio do Banestado, em Curitiba, Eraldo Ferreira depõe na CPI

de câmbio, que faziam a remessa, e então apareciam creditados nas contas de Nova York”, disse. Segundo Ferreira, 80% dos recursos transitavam pela Transoceânica Câmbio e pela Santa Clara Factoring, empresas com sede em Curitiba que detinham contas na agência de Nova

York para facilitar as operações. Ex-gerente da agência do Banestado em Nova York entre 1994 e 1998, Valdir Antonio Perin desmentiu Eraldo Ferreira. “Nós abríamos as contas por indicação dos representantes do Banestado no Brasil e no Paraguai. Desconheço que as remessas fossem feitas pelas casas

VOTO

Especialistas criticam urna eletrônica Rose Brasil/ABR

Ademir Mendes, indígena da nação kaigang, teve a garganta cortada quando voltava para a área demarcada na qual viva, em Palmas, interior do Paraná. O assassinato do jovem de 24 anos aconteceu na madrugada do dia 21. Esse é o 20º indígena assassinado em 2003. Na região Sul, onde há várias áreas indígenas em processo de demarcação e pequenas propriedades de terra, foram registradas quatro mortes. “O problema é que os donos dessas terras são colonizadores, ou seja, invadiram o território indígena”, afirma Roberto Liebgott, coordenador do Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Ele explica que os políticos da região jogam a população contra os índios, prometendo impedir em Brasília os avanços nos processos de demarcação. Do outro lado, representantes dos povos indígenas resolveram se unir. Para tanto, criaram o Conselho de Caciques do Sul. A organização fortaleceu o movimento porque “todos os índios olham por todos”, conforme define Liebgott. Os indígenas querem pressionar os órgãos federais (únicos com poder de administrar a questão indígena) para agilizar a demarcação das terras. Era isso que o cacique Albino Veri, tio de Ademir Mendes, fazia em Brasília quando o jovem foi assassinado. Ele informa que Mendes nunca se envolveu em brigas. “Era um rapaz trabalhador, tinha emprego na cidade e ajudava o pai em casa”, relata Veri.

Para conseguir alterar o texto da reforma tributária, os ambientalistas contam com o apoio da Frente Parlamentar Pró-Reforma Tributária Ecológica, da qual participam 19 deputados de quase todos os partidos. Cristine lamenta a limitada participação do Partido dos Trabalhadores (PT) na discussão, apesar de quatro parlamentares integrarem a Frente. “Infelizmente as manifestações do PT são orientadas pelo (José) Genoíno (presidente do partido), não havendo espaço para debate o interno”, constata.

Célio Azevedo/Agência Senado

reforma tributária é antiecológica. A afirmação é de um grupo de ambientalistas que analisou o projeto de reforma aprovado em primeiro turno na Câmara Federal, no dia 17. Eles esperam que as mudanças na tributação transformem-se imediatamente em benefícios para empresas social e ambientalmente responsáveis. Para Cristine Branco, assessora de políticas públicas da organização não-governamental Amigos da Terra, o texto representa um retrocesso em relação ao projeto apresentado em julho pelo próprio relator da reforma, deputado Virgílio Guimarães (PT-MG). O parlamentar, no entanto, diz que a questão ambiental é abordada globalmente, pois a Constituição federal não permite que temas específicos ganhem destaque. Guimarães afirma: “A reforma tributária atende integralmente a implicações ambientais”. Para ele, devem ser criados dispositivos por meio de leis complementares, a serem elaboradas rapidamente. Os ambientalistas discordam e pedem incentivos tributários que viabilizem companhias preocupadas com seus funcionários e com a ecologia. Os ecologistas dizem ser pos-

reservas florestais, que são áreas proibidas para o plantio. De acordo com Cristine, pagar pela terra sem poder usufruir de seus benefícios para o plantio representa um incentivo para o desmatamento, enquanto a arrecadação da União com a medida é pouco representativa. Para expressar sua indignação, os ecologistas lançaram a campanha Reforma Tributária Sustentável. Além da Amigos da Terra, participam da mobilização: Greenpeace, Grupo de Trabalho Amazônico, Imazon, Instituto Socioambiental, Rede de ONGs da Mata Atlântica, Vitae Civilis e WWF Brasil. Outras informações podem ser encontradas em: www.reformatributariasus tentavel.org

Maíra Kubík Mano da Redação A urna eletrônica não é segura. O alerta vem de professores e especialistas em informática de diferentes universidades públicas brasileiras, que questionam a transparência do projeto de Lei do Voto Virtual (PL 1503/03), em trâmite no Congresso. Segundo o professor Jorge Stolfi, do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), “da forma como a urna eletrônica foi elaborada, é perfeitamente possível que uma única pessoa fraude as eleições no país inteiro”. O principal problema é a falta de registro físico do voto. Na atual

Votação no Senado: especialistas suspeitam da urna eletrônica

legislação, que será revogada, é obrigatória a impressão do voto em papel, para o eleitor conferir sua escolha. Pelo projeto, também

será dispensada a auditoria aberta do sistema, antes do resultado final da eleição ser divulgado – o que facilita a manipulação. “É muito

fácil acrescentar 10% de votos para um determinado candidato se você tem acesso ao programa de informática utilizado”, afirma Stolfi. O programa, embora secreto, pode ser acessado por centenas de pessoas que trabalham nessa área no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Apesar das críticas, um grupo de especialistas da Unicamp, contratado pelo TSE, referendou o projeto e ressaltou a importância dessa tecnologia ter sido desenvolvida no Brasil. Para Stolfi, o relatório do grupo analisou aspectos muito limitados do sistema. Além disso, fez várias ressalvas para garantir um nível mínimo de segurança, as quais foram omitidas pelo TSE.


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Fotos: Renato Stockler

SEGUNDO CADERNO CANCÚN

Resistência vence estratégia de concessões Pressões dos países pobres quebram a tática estadunidense e européia de negociar questões agrícolas por acordos nos “novos temas” Maria Luisa Mendonça da Redação

O

que muitos analistas não esperavam na 5ª reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún, México, era a radical intransigência dos Estados Unidos e da União Européia. O risco inicial nas negociações era de que esses países aceitassem tímidas concessões na abertura de seus mercados agrícolas, em troca de acordos sobre os chamados “novos temas”, que incluem serviços, investimentos e compras governamentais. Muitos previam a possibilidade de os Estados Unidos utilizarem o acordo agrícola como última cartada para avançar Nafta - Assinado na negociação entre EUA, México e Canadá; entrou em de novos temas vigor em janeiro de – o que signifi1994, com um prazo caria forçar os de 15 anos para a liberação total das demais países a tarifas e barreiras adotar políticas alfandegárias. de privatização e enfraquecimento do setor público. Esse objetivo foi frustrado pela resistência do chamado Grupo dos 21 (G-21), na área agrícola, e pela oposição de mais de 70 países aos

Documento assinado por mais de 3 milhões de brasileiros pede ao governo um plebiscito oficial sobre a Alca

novos temas. Diante desse quadro, diminui também o otimismo em relação ao sucesso das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Até mesmo setores conservadores que defendem, por exemplo, políticas de “livre comércio” para a agricultura perceberam o que os movimentos sociais já sabem há muito tempo: o objetivo dos Estados Unidos é submeter nossos países aos seus próprios interesses.

AUMENTO DA POBREZA A reunião de Cancún serviu ainda como palco de denúncia ao modelo agrícola voltado para o mercado externo. Desde sua inclusão no Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, a sigla em inglês), o México triplicou suas exportações agrícolas e, ao mesmo tempo, cerca de 3 milhões de camponeses deixaram de produzir alimentos. O resultado foi o aumento da fome e da pobreza. O manifesto da Campanha contra a Alca, divulgado dia 16, em Brasília, resume: “Em condições tão assimétricas e desiguais, nas quais todos os países da América Latina estão envolvidos na discus-

Governo defenderá soberania A coordenação nacional da Campanha contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) esteve em Brasília, dia 16, para defender a realização de um plebiscito oficial sobre o acordo. O ministro Luiz Dulci (Secretaria Geral da Presidência da República), que recebeu a delegação em nome do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, disse que a política externa do governo pretende defender os interesses do povo brasileiro e afirmar a soberania do país. “Este governo tem preocupações muito semelhantes às dos movimentos sociais que são dos termos de um acordo de livre comércio com os EUA, consideramos que a Alca representa uma ameaça à soberania, à autonomia e à liberdade do Brasil. Se fosse necessário mostrar o imenso perigo que representa tal projeto de ‘livre’ comércio, bastaria indicar os dramáticos resultados no México do Nafta tanto no campo (mais de 1,8 milhão de pequenos produtores

compõem a Campanha contra a Alca.” De acordo com o ministro interino das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães, o governo busca “assegurar o interesse brasileiro, a soberania e o amplo conhecimento e participação da sociedade”. Representantes da Campanha estiveram também em audiência com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa. “Aplaudo a iniciativa do plebiscito e espero que o presidente preserve nossas fronteiras econômicas”, afirmou. (MLM) de milho perderam seu trabalho), como no aumento do desemprego, da desigualdade e da pobreza (que passou de 50% a 75% da população)”.

PLEBISCITO OFICIAL A Campanha realizou o maior abaixo-assinado do Brasil, com mais de 3 milhões de assinaturas reivindicando a realização imedia-

ta de um plebiscito oficial sobre a Alca. A consulta está prevista em um projeto de lei do senador Saturnino Braga (PT-RJ), que tramita atualmente na Comissão Mista do Mercosul e depende do parecer da senadora Ideli Salvati (PT-SC). Em audiência com a Frente Parlamentar de Acompanhamento da Alca, representantes dos movimentos sociais denunciaram a relação entre imposições comerciais e a dependência econômica causada pela dívida externa. “De janeiro a julho de 2003, o Brasil gastou R$ 90 bilhões com o pagamento de juros, que consomem 10,18% do Produto Interno Bruto (PIB) e 40% da arrecadação de impostos. Essa política é suicida”, afirma Maria Lúcia Fatorelli, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Unafisco). A Campanha contra a Alca reivindica a auditoria da dívida externa e a retirada definitiva do acordo entre Brasil e Estados Unidos para controle da Base de Alcântara, “engavetado” na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Colaboraram Luiz Bassegio e Luciane Udovic, do Grito dos Excluídos Continental

Cuba está fora da Alca porque é “diferente” Claudia Jardim da Redação Para a jurista cubana Lydia Guevara, a exclusão de seu país no processo de negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca)” apenas reforça o bloqueio político, econômico e social imposto pelos EUA desde 1959. “Dizem que Cuba é diferente”, denuncia. Ela critica o modelo de integração econômica proposto e aponta alternativas pela quais os direitos humanos e a soberania dos países sejam respeitados nos acordos comerciais. Brasil de Fato – Os EUA defendem que, sem a Alca, os países estarão isolados da economia mundial. Cuba, que vive sob o embargo econômico, é um exemplo de que é possível resistir? Lydia Guevara - Uma coisa é o embargo; outra, o bloqueio. Embargo é uma medida em resposta a um país no processo de uma negociação comercial. Poderia ser uma resposta à opção do governo cubano em atender às necessidades do povo e ao plano de implantação de um projeto realizado em 1953, que tinha como premissas industrialização, nacionalização, distribuição de terras, educação, saúde e emprego. Resolvendo esses problemas, Cuba poderia seguir e desenvolver-se como país. No entanto, os EUA nos aplicam um bloqueio

político, social, para render o povo pela fome. A intenção é evitar o desenvolvimento, negar o direito à vida. Apesar do bloqueio, Cuba tem atingido índices de desenvolvimento mais altos do que muitos países ricos. Em Cuba ninguém pode viver na rua, todos têm que ter um teto. Na América Latina pode-se dizer que milhões de crianças vivem nas ruas, mas nenhuma delas é cubana. Mesmo com o bloqueio, temos educação, alto nível de desenvolvimento cientifico, reconhecido internacionalmente. Tivemos que desenvolvê-lo e contrapor a tentativa de rendição do povo, para que se submetesse ao destino manifesto dos EUA, que é: “Cuba cairá como uma fruta madura em nossas mãos”. Mas não vamos cair. BF – Derrubá-la seria acabar com o modelo de resistência ao neoliberalismo. Lydia - Claro, por isso nos excluíram da Alca e de qualquer tipo de medida. “Cuba não pode estar porque é diferente”, dizem. Cuba tem um modelo diferente de desenvolvimento, de democracia alternativa. Temos de ser como os outros querem? Dizem que no país não há eleições, mas há. Existe uma lei eleitoral, elegemos os delegados, os deputados, e acredito que é melhor do que as eleições nos EUA, onde apenas 30% da população vota. Em Cuba, 98% da população exercem o direito de voto, e mais de 92% aprovaram o

ses deles. Mas eu asseguro: o que aconteceu no Iraque não acontecerá em Cuba. Isso se pode ouvir da boca de qualquer cubano. Quem tentar se apoderar de Cuba terá de derrubar seu povo e regar o solo com sangue dos que vencerem a luta. Não invadirão Cuba, só conseguirão invadir se os cubanos estiverem mortos. Demonstramos isso nesses mais de quarenta anos, não vão nos vencer.

Quem é A advogada Lydia Guevara Ramírez é diretora da Sociedade Cubana de Direitos do Trabalho e Seguridade Social, da União Nacional de Juristas de Cuba. Um dos mais importantes nomes na luta pela preservação dos direitos dos trabalhadores, Lydia tem criticado com veemência a perversidade do modelo de integração proposto pelos EUA como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). projeto da revolução, novamente, este ano. Por isso não entendemos por que insistem em dizer que não damos liberdade às pessoas de recorrer ao sistema de governo que queiram. Penso que

essa é uma das medidas utilizadas não só com Cuba, mas com outros países da América. A Colômbia, com a “narcoguerrilha”, como eles dizem. Mas que não são narcotraficantes e sim lutadores, que lutam contra o governo e o capital. Ou estamos com eles ou contra eles, por isso não podemos observar o mundo sob uma ótica tão estreita como essa, e condenamos qualquer medida que seja utilizar o terrorismo, a chantagem, uma agressão ou invasão para justificar suas ações. BF – Cuba será o próximo alvo dos EUA? Lydia - Para os EUA, o que interessa é destruir o governo, não importam as pessoas. É interessante que não haja governo para que prevaleçam os interes-

BF – Quais as alternativas ao modelo da Alca? Lydia - Já há uma alternativa apresentada pela Aliança Social Continental, na qual as negociações são abertas – não podem ser fechadas. Tem que haver a participação da sociedade civil, o povo não pode ficar à margem das discussões. Nesse projeto, se incluem capítulos sobre a proteção do ambiente, o uso de tecnologias limpas na agricultura. Outro capítulo considera a inclusão e a preservação dos direitos humanos e aí está incluido os direitos dos trabalhadores. Portanto essa alternativa seria muito mais viável, com maiores possibilidades de serem implementadas do que a Alca, que não é nada mais, nada menos que o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), incrementado ao restante dos 31 países do continente. Acredito que os povos americanos não vão permitir que a Alca entre em vigor.


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De 25 de setembro a 1º de outubro de 2003

AMÉRICA LATINA ENTREVISTA

Lutar pela terra e aprender com a luta Gerardo Lazzari/NAU

Thierry Deronne de Caracas (Venezuela) “Voltarei e serei milhões…”, Tupaj Katari, 1781

Blanca Chancoso é quíchua, tem 46 anos e cuida das Relações Internacionais da Confederação das Nações Indígenas do Equador (Conaie). Participou, em 21 de janeiro de 2001, da tomada do palácio do governo equatoriano, que resultou na deposição de Jamil Mahuad.

E

les representam milhões de camponeses e indígenas latinoamericanos: o boliviano Evo Morales, deputado nacional (equivalente a federal) pelo Movimento para o Socialismo (MAS); Blanca Chancoso, dirigente da Confede-ração de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie); Juan Tiney, da Coordenação Latino-Americana de Organizações Camponesas (Cloc) e da Coordenação Nacional Indígena e Camponesa (Conic); e o hondurenho Rafael Alegría, secretário Internacional da Via Campesina, a maior organização de movimentos camponeses do mundo. Seguem trechos de uma entrevista coletiva que concederam ao lado de Ricaurte Leonett, novo presidente do Instituto Nacional de Terras da Venezuela (Inti), quando do anúncio da reforma agrária do governo Hugo Chávez, há duas semanas.

Evo Morales é deputado e o maior líder do Movimento para o Socialismo (MAS), principal foco de oposição ao governo boliviano. Na disputa presidencial de 2002, conquistou amplo apoio popular com um discurso contra o neoliberalismo e os Estados Unidos, mas foi derrotado nas eleições indiretas.

Juan Tiney é responsável pela Secretaria Operativa da Coordenadoria Latino-Americana de Organizações Camponesas (Cloc), na Guatemala. Também é membro da Coordenadoria Nacional Indígena e Camponesa (Conic) de seu país.

Thierry Deronne – Blanca Chancoso, você fala em vestir a terra. Para isso, são necessárias muitas mãos, é necessária uma organização. Qual é a mensagem que a Conaie traz aos camponeses e indígenas da Venezuela?

Deronne – Quais são os pontoschave de um processo de reforma agrária? Blanca – Para a reforma agrária ser duradoura, tem de corresponder às necessidades das pessoas. A entrega da terra é básica, mas tem de ser de maneira integral, com crédito, apoio técnico e abertura de espaços no mercado. A terra gera emprego, mas gera também o básico: alimentação. Os grandes proprietários só geram empregos e produzem para exportar. É preciso produzir para assegurar a alimentação básica do povo, e com um custo diferente, é claro. Mas, junto com isso, é necessário desenvolver políticas importantes, como a de democratização, de participação da cidadania, para aprofundar a mudança. Também a política de formação, de educação, inspiradas na história do povo. Não somente formando leitores que conheçam números e letras, mas que saibam somar e multiplicar em benefício do país. Deronne – Uma pergunta ao hondurenho Rafael Alegría. Você citava Francisco Morazán que, como Simon Bolívar aqui, representou o sonho da unidade latino-americana. Como imagina, hoje, que se possa construir essa unidade? Rafael Alegría – A América Central foi uma só pátria, um único país na época da união, segundo o pensamento de Morazán, nosso herói. Depois vieram as divisões, os interesses das oligarquias, e os países se separaram. Mas con ti-

• Rafael Alegría é hondurenho e secretário In-

ternacional da Via Campesina, amplo movimento que reúne mais de 60 milhões de camponeses em todo o mundo. A organização defende a soberania alimentar dos povos e se posiciona contra os alimentos transgênicos e a “mercantilização” da alimentação humana. Evo Morales: “Hoje, as lutas na América nascem a partir dos movimentos sociais” da população. Eu falava de 500 deada uma política de extermínuou impregnado esse pensamen- pelos governos, essas decisões do anos de submissão. Falam a vo- nio contra nós. Foram reduzidas to integracionista que os povos povo seriam a base para, a mé- cês das ruínas maias de Tikal, de a cinzas 440 aldeias, obrigando e os movimentos sociais agora dio prazo, unir a América Latina. Chichen Itza. Para nós, não são nossa gente a se transformar em ruínas, são cidades destruídas. As patrulhas paramilitares. Porém, recuperam. Por exemplo, nós, os camponeses, estamos organiza- Deronne – E a luta do povo gua- igrejas católicas foram erguidas dizemos com orgulho que jamais sobre templos maias. Essa ocupa- nos submetemos. Em 1986, em dos em âmbito centro-americano, temalteco? agora temos blocos populares Juan Tiney – Eu destacaria a im- ção significou a morte de milhões meio de um cerco militar incrível, portância da unidade do povo. e milhões de irmãos indígenas na conseguimos reconstruir uma comuns à América Central. organização indígena e camPor isso eu dizia que Morazán Se sua organização e sua resis- América Central. ponesa para reivindicar nossos rompeu com o poder oligárquico tência são fortes, ninguém consedaquela época, da Igreja, que gue submetê-lo. Deixe-me contar Deronne – E quando é que a situ- direitos trabalhistas, nossos direitos à terra, embora isso nos era um verdadeiro latifúndio; deu primeiro nossa experiência como ação mudou? impulso à reforma agrária. Igual- indígenas e camponeses da Gua- Tiney – Foi só em 1944 que se tenha custado muitas vidas. mente, Bolívar falava do acesso à temala, e como povo maia. O po- abriu um pequeno espaço deterra, de sua justa distribuição aos vo da Guatemala foi submetido mocrático. Pela primeira vez, Deronne – Como foi a resistência? camponeses. Há agora um pen- às provas mais cruéis da História. permitiu-se a organização dos Tiney – A resistência significou samento continental. É interessan- Dissemos que acabou um conflito diferentes setores, e foi reconhe- andar na montanha sem roupa, te a proposta do presidente Chá- de 30 anos quando se assinou a cido o trabalho remunerado dos sem comida, comer raízes, fovez, que, ao invés da Alca (Área paz em 1986, mas nós, os povos povos indígenas e a seguridade lhas, animais. Viver uma década de Livre Comércio das Américas), indígenas, não somente sofremos social. Mas isto não durou mui- assim não é fácil. No acordo de falemos da Alba, ou seja, a Alter- as conseqüências dessa guerra, to, porque a reforma agrária de paz não se ouviu suficientemente nativa Bolivariana dos Povos. Ela mas as conseqüências de 500 1952 a 1954 acelerou a inter- o povo. No entanto, estamos hoje é correta e se enquadra no pen- anos de submissão. Para nós, venção estadunidense, através enriquecendo o conteúdo desses indígenas, não houve paz. Não da CIA, que derrubou o governo acordos. Não temos o apoio do samento desses grandes heróis. foram reconhecidos nossos di- Jacobo Arbenz. Nós, indígenas, governo, mas ali estamos, e estaDeronne – Poderíamos dizer reitos, nem fomos reconhecidos havíamos sido beneficiados com mos nos organizando. então, Evo Morales, que, depois como povo. A Constituição não terras, com uma série de serviThierry Deronne é jornalista, da hora dos dirigentes, chegou a se refere aos direitos dos povos ços sociais – tudo foi cortado em co-fundador da emissora indígenas. É uma Constituição 1954 e foi substituído pelos prohora dos povos? de televisão comunitária Evo Morales – Hoje, as lutas na excludente, que regulamenta a gramas de contra-insurreição Teletambores, de Maracay, América nascem fundamental- vida de uma minoria da popula- dirigidos contra os povos indígeVenezuela. mente a partir dos movimentos ção. Nós, indígenas, somos 68 % nas. Nos anos 80, foi desencasociais, sobretudo dos movimentos indígenas e dos camponeses em defesa dos recursos naturais. Porque não é possível que as BOLÍVIA transnacionais se apropriem desses recursos. Alguns Estados ainda controlam essas riquezas, mas em muitos países já perdeda Redação mos a propriedade, por exemplo, do petróleo. Toda unidade latinoO dia 21 foi de extrema tristeza americana, à margem das lutas sociais, tem de nascer na recupe- para a população de Warisata, a cerração dos recursos naturais, não ca de 100 km de La Paz, capital da renováveis e renováveis. Claro Bolívia. A população uniu-se para que existem mecanismos legais velar sete mortos, entre eles uma meou legítimos que podem unir a nina de oito anos, atingidos durante um confronto entre civis e militares. América Latina. A Conferência Sindical Única O Parlamento Latino-Americade Trabalhadores do Campo da Bono deveria gerar essa unidade. Mas, diante de governos que ge- lívia (CSUTCB) declarou guerra ao ralmente são dependentes do im- presidente Gonzalo Sanchez de pério, de um modelo, de um sis- Lozada depois do conflito. Felipe tema, deveria haver uma espécie Quispe, conhecido também como de lei, de consulta ao povo, que “Mallkuá” (autoridade suprema em tem o direito de decidir seu des- língua nativa), afirmou que ampliarão tino. Que haja uma democracia os bloqueios de estradas na região oci- Seis cidades bolivianas paralisaram contra a exportação de gás para os EUA participativa e não simplesmente dental do país. “O bloqueio de estrarepresentativa, e que, através de das continuará. Se possível, vamos nifestantes incendiaram vários edi- tradas, por mais de 10 mil pessoas. consultas populares, os povos se manter os protestos por três, quatro fícios públicos e um hotel, durante a Elas protestam contra o projeto godefinam, à margem, digamos, dos meses até que esses assassinos saiam passagem de um comboio, sob prote- vernamental de exportação de gás ção militar, de cerca de dois mil tu- boliviano para o México e EUA, utipartidos e dos governos depen- do Palácio do Governo”, disse. Nos incidentes morreram cinco ristas, fiéis e folcloristas. A origem lizando um porto chileno. A ação está dentes do império. Essas consultas, que deveriam ser respeitadas camponeses e dois militares. Os ma- do protesto está na ocupação de es- sendo chamada de “guerra do gás”.

Sete mortes na “guerra do gás” Aizar Raldes/AFP

Blanca Chancoso – Quando lembramos que a terra é nossa mãe, quer dizer que, uma vez que consigam as terras de volta, devem procurar produzir coletivamente. Como dizemos, “nossa mãe nunca deve estar à venda”. É ela que garante a vida dos povos. Hoje, de seus filhos; amanhã, de seus netos. É importante também recuperar a forma de cultivo. Hoje, mais do que nunca, é a oportunidade para nossos irmãos da Venezuela voltarem a demonstrar essa sabedoria. É necessário trocar conhecimentos de um país para o outro. No Equador, nos custou muitas vidas recuperar a terra novamente. Nos custa muito conseguir a vontade política para reconhecer esse direito.

Quem é


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INTERNACIONAL

ONU

Lula critica o unilateralismo dos EUA Hermínio Oliveira/ABR

Em Assembléia das Nações Unidas, o presidente do Brasil defende o fortalecimento da instituição Jorge Pereira Filho da Redação

O

presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou a política belicista dos Estados Unidos no discurso de abertura da 58ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), dia 23, em Nova York. “Não podemos confiar mais na ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da história e à luz da razão”, disse Lula. Seu discurso foi pontuado por críticas indiretas à política do presidente estadunidense, George W. Bush, sem citá-lo explicitamente. “As tragédias do Iraque e do Oriente Médio só encontrarão solução num quadro multilateral, em que a ONU tenha papel central”, afirmou. Lula defendeu o fortalecimento da instituição: “A ONU não foi concebida para remover os escombros dos conflitos que não pôde evitar, por mais valioso que seja o seu trabalho volunConselho de Segurança – criado com tário”. Defia formação da ONU, nindo a reforno final da Segunda ma da ONU Guerra Mundial. Os cinco países vencomo imperacedores do conflito tiva, sob pena (Estados Unidos, de um retroFrança, Inglaterra, cesso no ordeChina e Rússia) têm cadeira cativa, com namento popoder de veto. lítico internacional, Lula considerou indispensável que as decisões do Conselho de Segurança tenham legitimidade. “Para isso, sua composição, em especial no que se refere aos membros permanentes, não pode ser a mesma

LIVRE COMÉRCIO

Em discurso na Assembléia das Nações Unidas, presidente Lula criticou mais uma vez a invasão do Iraque pelos EUA

de quando a ONU foi criada, há 60 anos”, enfatizou, defendendo a participação do Brasil no conselho. A Assembléia da ONU ocorreu um dia depois de mais um ataque à sede da organização, em Bagdá – 19 pessoas ficaram feridas e um policial morreu. Um porta-voz da instituição no Iraque informou que a ONU vai reduzir operações no país. A crise da instituição e o impasse sobre a invasão do Iraque foram temas das falas dos presidentes. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, defendeu a reforma da ONU e a ampliação do Conselho de Segurança. Será criada uma comissão com “personalidades eminentes” para propor reformas.

Em mais um discurso polêmico, Bush defendeu a invasão do Iraque: “Regimes autoritários, redes terroristas e armas de destruição em massa não podem ser permitidos. Foi por ter armas de destruição em massa que o Iraque foi atacado”. Até hoje, os EUA e a Inglaterra não encontraram nenhuma prova do suposto poderio militar iraquiano. Bush pediu, ainda, que a ONU participe da reconstrução do Iraque. Depois das sucessivas mortes de militares estadunidenses, os EUA tentam aprovar, no Conselho de Segurança, o envio de uma força multinacional para o Iraque. Alemanha, França e Rússia se opõem. Para o presidente francês, Jacques Chirac,

que também discursou na Assembléia da ONU, a reconstrução do Iraque requer a transferência de poder para os iraquianos. Segundo o líder francês, a decisão dos EUA de invadir o Iraque sacudiu o sistema multilateral da ONU.

COMBATE À FOME Em seu discurso, Lula criticou a solução militar para os conflitos e fez novo apelo ao combate à fome. “O verdadeiro caminho para a paz é o combate sem tréguas à fome e à miséria, numa formidável campanha de solidariedade, capaz de unir o planeta em vez de aprofundar as divisões e o ódio que conflagram os povos e semeiam o terror”, disse.

O discurso de Lula carregou também as ambigüidades do seu governo. Ao mesmo tempo em que pregou a justiça social e o combate à fome, Lula defendeu sua política econômica e o liberalismo comercial. Na avaliação do presidente, as barreiras comerciais dos países ricos são o maior obstáculo para que o mundo possa ter uma nova época de progresso econômico e social. “Somos favoráveis ao livre comércio, desde que tenhamos oportunidades iguais de competir. A liberalização deve ocorrer sem que os países sejam privados de sua capacidade de definir políticas”, enfatizou. O presidente garantiu que continuará trabalhando com vigor para manter o equilíbrio das contas públicas, não medindo esforços para aumentar as exportações e atrair investimentos. Ele acha possível conciliar esses objetivos com as reformas sociais: “Devemos ser capazes, ao mesmo tempo, de atender às necessidades de alimentação, emprego, educação e saúde de dezenas de milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza”.

IMPERIALISMO

PALESTINA

Joseph Barrak/AFP

Beirute não esquece o massacre Stefano Chiarini de Beirute (Líbano) Entre 16 e 18 de setembro completaram-se 21 anos do massacre de palestinos nos acampamentos de Sabra e Chatila, no Líbano, em 1982. Cerca de 3 mil pessoas foram executadas por milícias cristãs libanesas instigadas por autoridades israelenses, como o atual primeiroministro Ariel Sharon. A vida de um palestino tem o mesmo valor que a dos outros – em particular, que a nossa, dos ocidentais: israelenses, estadunidenses, europeus? Ou, como disse o chefe do Estado-Maior de Israel, Rafael Eitan, durante a invasão do Líbano, cada palestino é uma barata com duas pernas? São essas as perguntas incômodas, com raízes na “questão palestina” e nos trágicos fatos daqueles dias lembrados em manifestações promovidas pela Coordenação das organizações não-governamentais palestinas e libanesas, pelo jornal progressista As-Safir, por advogados e familiares das vítimas, e pela Coordenação Para Não Esquecer Sabra e Chatila, fundada há quatro anos, por iniciativa do jornal italiano Il Manifesto. As manifestações visaram recordar jovens, mulheres, idosos e crianças despedaçados pela milícias falangistas das direitas libanesas cristãs maronitas, sob a coordenação do exército israelense. As tropas israelenses, contrariando os compromissos acertados pelo governo de Telavive com o enviado dos Estados Unidos, Philip Habib, tinham acabado de entrar em Beirute Ocidental e tinham cercado os campos de refugiados palestinos – naturalmente, como hoje, para “limpar” Sabra e Chatila dos mais de 2 mil “terroristas” que, segundo Sharon, ali se aninhavam. Algumas semanas antes, as forças da Organização para Libertação da Palestina, sob ordens de Iasser Arafat, haviam concordado em deixar

Apesar do fracasso dos modelos que privilegiam a geração de riqueza sem reduzir a miséria, na opinião do presidente brasileiro, a miopia e o egoísmo de muitos ainda persistem. “É hora de chamar a paz pelo seu nome próprio: justiça social”, afirmou, antes de propor a criação de um Fundo Mundial de Combate à Fome, composto por chefes de Estado e de Governo, para unificar sugestões.

Palestina reza pelos parentes assassinados há 21 anos, durante o massacre

a capital libanesa para evitar mais lutas na parte ocidental da cidade, cercada e bombardeada desde os inícios de junho, sem água e sem luz. Washington havia se comprometido a obrigar Telavive a respeitar a promessa de que o exército israelense não entraria em Beirute Ocidental e a enviar uma força multinacional (tropas estadunidenses, francesas e italianas), para controlar a retirada

dos combatentes palestinos e vigiar os acampamentos de refugiados deixados sem defesa. Mas, tendo saído os fedayin (combatentes, em árabe), as forças multinacionais, sob pressão de Washington, provavelmente sabedora das reais intenções de Sharon, se retiraram às pressas, deixando mãos livres aos carniceiros. Todos somos culpados. (Il Manifesto)

Bush amplia controle sobre a Eurásia José Arbex Jr. da Redação A notícia, divulgada no início de setembro, passou relativamente despercebida: a Polônia recebeu do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, a missão de liderar as tropas multinacionais que vão patrulhar a região central do Iraque, exército que reúne 9 mil soldados de 21 países. Segundo a Casa Branca, trata-se de um gesto de reconhecimento ao apoio dado pela Polônia à invasão do Iraque. Mas isso é só a ponta do iceberg, é só o indício visível de uma mudança na estratégia global dos Estados Unidos, agora orientada para a disputa do controle da Eurásia e de outras áreas ricas em recursos naturais (incluindo a Amazônia). Essa mudança estratégica não começou com Bush, mas foi anunciada, em 1992, por uma resolução do Pentágono intitulada Defense Planning Guidance (Guia de Planejamento de Defesa). O documento estabelece, como um dos objetivos centrais, “neutralizar” e “impedir o renascimento” da rival Rússia. Isso tinha como conseqüência “ampliar a presença” dos EUA nos países que faziam parte da União Soviética, assim como nos Bálcãs e no antigo Leste europeu. Essa perspectiva é também defendida por Zbigniew Brzezinski, ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional estadunidense. Brzezinski explicita três razões principais para “neutralizar” a Rússia: é o país que liga a Europa à Ásia, é dona de vastos recursos naturais e, instável do ponto de vista político, pode permitir que novos movimentos comunistas ou nacionalistas tomem o poder, assim como provar-se incapaz de conter a “expansão islâmica”. A “conquista da Eurásia” é a pedra angular de sua estratégia. “(...)

Cerca de 75% da população mundial vive na Eurásia, que dispõe da maior parte dos recursos naturais da Terra (...) Ali estão 60% do Produto Interno Bruto do planeta e cerca de 75% de suas reservas conhecidas de energia (...) Depois dos Estados Unidos, as outras seis maiores economias e os seis maiores investidores em armas estão localizados na Eurásia (...)” (v. Zbigniew Brzezinski, The Grande Chessboard: American Primacy and its Geostrategic Imperativs, New York, Basic Books, 1997). Essa estratégia explica a proposta de “Parceria pela Paz”, feita pelo então presidente Bill Clinton, em janeiro de 1994: uma “cooperação política e militar” permanente com os Estados da Europa central e oriental, incluindo manobras militares conjuntas. A idéia era estender as fronteiras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) até a Rússia. Fiel a essa perspectiva, a Otan já incorporou a Polônia, a República Tcheca e a Hungria. Outros países da Europa centro-oriental devem se integrar nos próximos anos. A atuação da Otan nos conflitos balcânicos, no final dos anos 90, assim como a manutenção de 200 mil soldados estadunidenses na Europa e Ásia demonstram que a estratégia foi rigorosamente aplicada. As tensões entre EUA e os principais países da Otan, exceto a Grã-Bretanha, provocadas pelo ataque ao Iraque, foram resultado da radicalização dessa estratégia: a Casa Branca assume seus planos como superpotência, ainda que isso implique romper com antigos aliados. As ocupações do Afeganistão e do Iraque nada têm a ver com a “guerra ao terrorismo”, mas são conseqüência dessa estratégia. O mesmo pode ser dito sobre a “captura política” da Polônia para a esfera de influência direta dos EUA, à revelia da Otan.


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Corte julga apelo sobre apedrejamento Marilene Felinto da Redação

S

erá divulgada dia 25 a decisão do tribunal de apelações islâmico que julga o recurso da nigeriana Amina Lawal, acusada de praticar relações sexuais e engravidar sem ser casada. Por isso ela foi condenada, em março de 2002, à morte por apedrejamento. Amina, 31 anos, teve um filho dez meses após se divorciar. Sua sentença foi instituída por uma corte religiosa de Futua, no Estado de Katsina, norte da Nigéria, que segue os preceitos do sistema de leis muçulmano chamado sharia (veja o quadro ao lado). A corte usou a gravidez como evidência de que Amina teria cometido adultério, considerado crime pela sharia. Em doze Estados do norte do país, região de maioria muçulmana, a sharia é aplicada. A população da Nigéria (120 milhões de habitantes) é dividida entre 50% de seguidores da religião muçulmana (no norte) e grande parcela de cristãos (especialmente protestantes), no sul. A sessão para o julgamento do apelo de Amina Lawal foi adiada várias vezes desde sua condenação no ano passado. O último adiamento ocorreu em 27 de agosto. O caso de Amina tem provocado comoção no mundo e mobilizado movimentos em defesa de clemência para a nigeriana (encabeçados por organizações como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch).

O governo do presidente Olusegun Obasanjo (protestante) tem se manifestado contrário à condenação de Amina. Segundo a Constituição da Nigéria, os processos que resultam em condenação por penas de morte devem passar pela aprovação ou pelo veto do presidente. Especialistas internacionais afirmam que o aumento de sentenças de morte decretadas por tribunais muçulmanos na Nigéria é resultado da falta de credibilidade da Justiça e dos governantes do país, considerados um dos mais corruptos do mundo. A Nigéria é o oitavo produtor de petróleo mundial, mas a maioria de sua população vive abaixo da linha de pobreza. No ano passado, outra sentenciada à morte por apedrejamento, Safiya Hussaini Tungar-Tudu, teve sua condenação anulada por um tribunal de apelações, o que é visto como precedente favorável ao caso de Amina Lawal. Em agosto, a sentença de morte de Sarimu Baranda (um homem acusado de estupro) também foi revogada. Há outros três condenados à morte pela sharia no país, atualmente: Ahmadu Brahim (homem), Fatima Usman (mulher) e Yamusa Rafin Chiyawa (homem). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou este ano carta ao nigeriano Obasanjo pedindo o perdão para Amina Lawal e oferecendo asilo político a ela no Brasil, a exemplo do que fez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no caso de Safiya Hussaini Tungar-Tudu.

France Press

Após vários adiamentos, tribunal islâmico decide esta semana se acata recurso de nigeriana condenada por adultério

O que é a sharia Sistema de leis inspirado no Alcorão – livro sagrado dos muçulmanos, coletânea das revelações de Deus, chamado Alá, ao profeta Mohammed (Maomé – 570-632), que contém a doutrina religiosa e a codificação da vida civil e social islâmica – a “sharia” é um código de comportamento, ao qual todos os muçulmanos devem aderir. Vai muito além da esfera da justiça criminal. O sistema de leis regula os rituais religiosos e a conduta na vida civil. Além de instituir penas como o corte das mãos para ladrões ou o apedrejamento para adúlteras, é a sharia que determina que as muçulmanas devem cobrir seus corpos dos pés à cabeça e que seus fiéis devem jejuar e fazer oferendas aos pobres. Mas, como instrumento de justiça criminal, a lei gera controvérsias até mesmo entre as várias correntes do islamismo. Poucos países do mundo islâmico aplicam a interpretação mais rígida da sharia: apenas a Arábia Saudita, o Irã e o Paquistão. A Nigéria é o único país africano a utilizar a lei para questões criminais, e somente desde o ano 2000. Até hoje, porém, ninguém foi executado em território nigeriano por sentença condenatória de um tribunal islâmico.

Sentenciada a morrer apedrejada por engravidar sem estar casada, a muçulmana Amina Lawal aguarda o julgamento de recurso em liberdade

Governo nigeriano garante perdão a Amina Como a Nigéria é um Estado secular, que não admite a precedência da religião sobre a Constituição, a sharia, está subordinada à Constituição nigeriana, que não permite a pena de morte. Assim Akin Yeme, adido de informação da embaixada da Nigéria em Brasília, explica a disposição do governo de seu país de conceder indulto (perdão) à muçulmana Amina Lawal, julgada por adultério e condenada à morte por apedrejamento. Em entrevista ao Brasil de Fato, Yeme confirmou que o presidente nigeriano Olusegun Obasanjo vai vetar a pena de morte de Lawal, caso ela não seja revogada pelo tribunal de apelações islâmico dia 25. “A lei da sharia está subordinada à Constituição da Nigéria”, disse Yeme, “isso (pena de morte por apedrejamento) nunca aconteceu no meu país e não vai acontecer”. Ele acrescentou que a sharia está sendo aplicada no país por razões políticas e não religiosas. Para ser reeleito no ano passado, o presidente Obasanjo contou com os votos de lideranças políticas do norte do país, predominantemente muçulmano, que agora estariam usando a lei islâmica para enfraquecer seu governo. Brasil de Fato - Qual a posição do governo da Nigéria sobre o caso de Amina Lawal? Akin Yeme – A posição do governo é a posição da Constituição da Nigéria. A atual Constituição reconhece a sharia como uma forma de culto, e reconhece os aspectos civis de sua aplicação. O que a Constituição não reconhece é a aplicação dos aspectos criminais da sharia. Em outras palavras, uma pessoa não pode ser apedrejada até a morte porque alguém disse que ela cometeu adultério. A Constituição da Nigéria não permite isso. É por isso que o governo está deixando os dois processos da lei acontecerem. É deixar

Estados nigerianos que aplicam a lei islâmica da sharia 1 2 3 4 5 6

– Sokoto – Zamfara – Katsina – Kano – Jigawa – Yobe

7 8 9 10 11 12

– Borno – Kebbi – Niger – Kaduna – Buchi – Gombe

NÍGER CHADE Benin

Abuja Ibadan

NIGÉRIA

Lagos

CAMARÕES

1 3 2

8

5

6

4 9

10

7 11

Oceano Atlântico

12

Abuja

Ibadan NIGÉRIA Lagos

Fonte: Anistia Internacional

que as pessoas sejam chamadas pela corte, é explorar todos as opções, deixar a sharia cumprir seu dever. E o governo acredita que mesmo que, eventualmente, o caso vá para a Corte Suprema, que é a corte mais alta da Nigéria, qualquer decisão por condenação que seja tomada por qualquer corte jurídica, da sharia ou da corte civil de apelação, não está de acordo com a Constituição da Nigéria. Seja lá o que aconteça, o presidente da Nigéria já disse que, nesta era ou século, não vê a possibilidade de ninguém ser apedrejado até a morte na Nigéria, pois a pessoa

tem a prerrogativa do perdão presidencial. De modo que toda a preocupação e toda a ansiedade manifestada por todo o mundo é compreensível, mas ninguém, o presidente já disse, ninguém será apedrejado até a morte na Nigéria. Não é possível.

alguém possa fazer isso. Isso não pode ser comum em nenhum lugar do mundo. A sharia está sendo usada na Nigéria não por razões religiosas, mas por razões políticas. A Constituição é suprema. E nós estamos tratando o caso desse modo.

BF – O senhor afirma que o presidente Obasanjo vai conceder indulto a Amina caso a sentença seja mantida? Yeme – Sim, ele vai conceder. Mas eu também estou dizendo que ela não vai ser condenada. A Constituição não permite. Não está em nossa Constituição que

BF – As preocupações ocidentais com o caso seriam infundadas, por falta de conhecimento sobre a sharia e o islamismo? Yeme – Não. Acho que as preocupações são legítimas. Todo mundo está preocupado. Eu também estava preocupado. Todo ser humano que tem os

preceitos da lei em seu sistema deve se preocupar quando alguém é condenado à morte por ter cometido adultério. Até mesmo os muçulmanos da Nigéria não querem isso. Isso nunca aconteceu na Nigéria e não vai acontecer. (MF)


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NACIONAL COMUNICAÇÃO

Aumenta o grito pelo fim da baixaria da Redação

O

grotesco espetáculo veiculado no Domingo Legal elevou os índices de audiência tanto de Gugu Liberato quanto dos apresentadores “ameaçados” de morte pelos supostos membros do PCC Ð comprovadamente atores que receberam pela atuação. Numa decisão inédita na Justiça brasileira, o Ministério Público Federal suspendeu a exibição do programa do dia 22. E sugeriu mais: que o SBT suspenda a exibição do programa por até 30 dias ou até que comprove a contratação de diretor e equipe técnica qualificada. A procuradora Eugênia Fávero consultou o SBT sobre a possibilidade de firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) , que estipularia condutas éticas à programação da emissora. Contudo, a emissora não se pronunciará sobre o TAC antes da conclusão das investigações da polícia. O caso foi parar também na 2ª Promotoria de Justiça do Consumidor de São Paulo. “As evidências são fortes e demonstrativas da ilicitude e a imoralidade da conduta, tomada com intuito exclusivo de lucro e em benefício próprio”, disse a promotora Débora Pierri. Segundo ela, os responsáveis pela condução e direção do Domingo Legal envolveram-se na prática do abuso do direito de informar e da liberdade de expressão assegurados às emissoras de televisão, configurando “agressão aos princípios morais e éticos regentes da sociedade brasileira”. Outra condenação recente refere-se ao chamado “Caso Escola Base”. No início do mês, a Folha

José Nascimento/Folha Imagem

Justiça decide punir programa que veiculou entrevista forjada, abrindo espaço para o debate sobre a ética na mídia

Gugu Liberato não comparece a depoimento na Comissão de Segurança Pública da Assembléia Legislativa de São Paulo

da Manhã S.A., editora do jornal Folha de S.Paulo, foi condenada a pagar indenizações de 1.500 salários mínimos a cada um dos três responsáveis pela Escola Base. A sentença foi proferida pelo juiz da 29ª Vara Cível, Manoel Justino Bezerra Filho. Ele considerou que Ichshiro Shimada, Maria Aparecida Shimada e Mauricio Monteiro de Alvarenga sofreram danos morais irreversíveis. O jornal recorreu da sentença.

Em março de 1994, a mídia paulistana denunciou seis pessoas por envolvimento em suposto abuso sexual de alunos da Escola Base, na capital paulista. As matérias baseavam-se em fontes oficiais (polícia e laudos médicos) e depoimentos de pais de alunos. O fato não existiu, mas depois da Folha, diversos jornais e programas de rádio e tevê exageraram nas cores da notícia. A escola foi fechada e os acusados sofreram humilhações públicas. A

acusação era falsa e o inquérito foi arquivado na Justiça.

ÉTICA EM DEBATE O Código de Ética da Programação de Televisão (Projeto de Lei nº 1600/03) será tema de audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos, em data a ser definida. O autor do projeto é o deputado Orlando Fantazzini (PT-SP), para quem é necessário debater a ética e o direito na radiodifusão

Maíra Kubík Mano da Redação O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) realizou entre os dias 19 e 21, em São Paulo (SP), sua décima plenária. A instância reúne organizações envolvidas na luta pela democracia nos meios de comunicação do país. O FNDC foi criado em 1991 como resultado do processo de redemocratização do Brasil. Obteve visibilidade ao conseguir aprovar no Congresso Nacional os “canais da cidadania” (TV Câmara, TV Senado, Canal Universitário, Canal Comunitário e TV Legislativo), na lei que regulamenta a televisão a cabo. Chegou a reunir 364 organizações representativas de diversos setores da sociedade. Apesar de passar por um período de reestruturação, com apenas 14 filiados, pretende lançar uma campanha contra o monopólio dos meios de comunicação entre os dias 17 de outubro e 8 de novembro.

Moisés Araújo

Fórum discute comunicação livre

Dezenas de entidades e veículos de comunicação alternativos estão empenhados na Jornada pela Democratização da Mídia, que abrange reuniões de articulação, debates, manifestações de rua e pelo menos três grandes atos públicos: um no Mineirinho, em Belo Horizonte, dia 8 de novembro; outro no Rio de Janeiro, dia 10 de novembro; e um terceiro em São Paulo, no Teatro da Universidade Católica (Tuca), no dia 11 de novembro. Participam da jornada Brasil de Fato, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),

EUA tentam fazer a cabeça de jornalistas Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro

Integrantes de movimentos sociais reivindicam comunicação para todos e o fim do monopólio

Na abertura da plenária, Márcio Wholers, assessor do Ministério das Comunicações, afirmou que mais de 500 rádios comunitárias devem ser habilitadas em até dois meses. Em 2003, o ministério concedeu 164 autorizações definitivas

para o funcionamento de rádios comunitárias. Apesar da promessa de atuação mais efetiva do governo, a legislação referente a rádios comunitárias, de 1998, continua causando polêmica. Pontos como

a restrição a um quilômetro do raio de freqüência da emissora e a obrigatoriedade de a antena ter no máximo 25 watts de potência são criticados pelo movimento de democratização dos meios de comunicação.

Uma jornada de luta pela democratização Hamilton Octavio de Souza de São Paulo

brasileira, com postura contrária à censura e ao dirigismo. Fantazzini, que também coordena a campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”, explica que o projeto foi aprimorado com base em sugestões das mais de 40 entidades parceiras da campanha. Entre as várias ações, a comissão está recebendo denúncias e reclamações da população sobre conteúdo da programação, por meio do site www.eticanatv.org.br, e do serviço 0800-619619.

Central Única dos Trabalhadores (CUT), União Nacional dos Estudantes (UNE), Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos), grupo Intervozes, Central de Mídia Independente, Rede Social e entidades, organizações e movimentos interessados na democratização da comunicação. Engrossam a jornada as revistas Caros Amigos, Sem Fronteiras, Fórum, Sem Terra; os jornais Correio da Cidadania e Unidade; os sites Vermelho e Oboré; as rádios comunitárias Anúbis e Camponesa. A jornada tem como eixos, em primeiro lugar, a luta por um sistema de comunicação mais democrático, que abra espaço e faça

a intermediação de informações na sociedade brasileira, sem restrições ou exclusões. O Brasil precisa de um sistema que contemple na comunicação de massas (rádio, TV, jornais, revistas e internet) a participação e a opinião dos setores mais discriminados social e economicamente. Em segundo lugar, quer chamar a atenção da sociedade para a forma preconceituosa e distorcida com que os principais veículos comerciais (TV Globo, revista Veja, jornal O Estado de S. Paulo e tantos outros) tratam os movimentos sociais. Eles tentam – o tempo todo – criminalizar as lutas e as manifestações populares; tentam

desmoralizar e tirar a legitimidade dos lutadores, de suas lideranças e de suas entidades Em terceiro lugar, a jornada quer fortalecer, no seio do governo Lula, o compromisso com a democratização do rádio e da televisão, tanto através de novas concessões de canais para sindicatos, movimentos sociais e populares, como para impedir a renovação de concessões aos grupos empresariais que monopolizaram um grande número de veículos durante a ditadura militar e nos governos conservadores que a sucederam. Hamilton Octavio de Souza é jornalista, professor da PUC-SP e editor da revista Sem Terra

A resposta veio rápida. Setenta e duas horas depois de milhares de pessoas em todo o Brasil aderirem ao abaixo-assinado da campanha “Vacine-se contra a Alca”, o consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro reuniu jornalistas em um debate sobre a Alca. O encontro, no dia 10, foi organizado em conjunto com o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), para profissionais especializados em economia do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Ceará. “Área de Livre Comércio das Américas: questões reais e cobertura da imprensa” foi o tema abordado pelo economista Mário Marconi, diretor-executivo do Cebri. Martha Steffens, jornalista e professora de jornalismo financeiro da Universidade de Missouri, nos EUA, falou sobre imprensa nos Estados Unidos, com foco nas questões financeiras. O moderador foi o jornalista Nélson Franco Jobim. Usando o dialeto “economês”, tanto Marconi quanto Martha Steffens argumentaram que temas “complexos” como o da Alca precisam ser “despolitizados”, sem “paixões”. Indagada sobre a importância da opinião popular nos rumos da Alca, a professora estadudinense não pensou duas vezes para responder: “Não é algo para ser necessariamente decidido pelo povo”. O professor Marconi fez o possível para não se posicionar. Depois de alguma insistência, respondeu que “não daria mais tempo” de fazer uma consulta popular. Admitiu também que os governos brasileiros nunca tiveram interesse político em preparar a opinião pública para uma eventual consulta.


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DEBATE OMC

Uma posição para a história Brasil terá um papel de destaque na próxima reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún, no México. Essa afirmação foi feita pelo presidente Lula, durante a abertura da Expointer, no Rio Grande do Sul, e antecipava um protagonismo que nós pudemos testemunhar ao longo das reuniões e atividades desenvolvidas naquela cidade mexicana. A posição liderada pelo Brasil e pela Índia polarizou os debates que antecederam à 5ª Reunião Ministerial da OMC. Obteve o apoio de outros países, entre os quais a China, a África do Sul, o México e a Argentina, conhecidos como G-21. O Manifesto da Rede Parlamentar Mundial, subscrito por mais de 350 parlamentares dos 5 continentes, as ONGs e os movimentos sociais presentes em Cancún também referendaram as propostas do G-21, ao lado de outras exigências para um comércio mais justo. O Brasil e mais vinte países exigem dos Estados Unidos e da União Européia ações concretas que ponham fim aos subsídios para a produção e exportação agrícola – superiores a U$ 1 bilhão por dia – e das sobretaxas e quotas de importação. As negociações de outros pontos de interesse dos mais ricos, como o comércio de bens industriais, serviços e propriedade intelectual, ficaram condicionados a avanços nesta questão. Os Estados Unidos e a União Européia, que ao longo dos anos obtiveram grandes concessões

O

dos países pobres no comércio de produtos industriais e de serviços, bloqueiam o livre comércio dos produtos agrícolas, setor em que o Brasil e os demais países em desenvolvimento são mais competitivos. No que eles são bons, exigem de nós concessões e facilidades, e no que nós somos fortes, impõem restrições e vantagens artificiais para a produção. Os grandes interesses em jogo

tornaram as negociações complexas e difíceis. A manutenção da unidade nas posições do G21 esteve sempre no centro das preocupações da diplomacia brasileira. O próprio ministro Celso Amorim, durante as reuniões com parlamentares e demais setores presentes em Cancún, reconhecia as dificuldades para o avanço, mas também enfatizava a importância da posição liderada pelo

Brasil, na medida em que o G-21 representa quase 65% da população mundial e garante mais de 55% da produção agrícola. O fracasso dessa rodada de negociações resulta da intransigência dos países desenvolvidos. No entanto, esta 5ª Reunião Ministerial da OMC vai entrar para a história como o momento em que a lógica egoísta e injusta imposta pelos mais ricos foi desafia-

da e contestada e em que os países em desenvolvimento tiveram a coragem e a iniciativa de afirmar, na mesa de negociações, sua soberania e os interesses de seu povo. E nós brasileiros podemos nos orgulhar porque nosso país esteve na dianteira da defesa de regras que possibilitem aos povos pobres esperanças de desenvolvimento, dignidade e qualidade de vida. Tarcísio Zimmermann é deputado federal do Partido dos Trabalhadores pelo Rio Grande do Sul

Kipper

Tarcísio Zimmermann

Respeito qualificado Reinaldo Gonçalves Há cerca de vinte anos perguntei a um experiente embaixador indiano o que ele pensava da diplomacia brasileira. E ele respondeu: respeito qualificado. Para quem não entende “diplomatiquês”, essa expressão tem muitos equivalentes, inclusive, desqualificações pesadas e impublicáveis. Esse embaixador havia participado de inúmeras negociações internacionais ao lado de diplomatas brasileiros e a sua desconfiança derivava de dois aspectos: a vulnerabilidade externa da economia e o despreparo dos diplomatas do Brasil. O fato é que havia (e continua havendo) um forte contraste entre a situação e o poder de negociação internacional da Índia, país com baixa vulnerabilidade externa, e o Brasil. Naquela ocasião, discutia-se a abertura de uma nova rodada de negociações multilaterais no âmbito do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), antecessor da OMC (Organização Mundial do Comércio). O maior conflito era a inclusão, exigida pelo governo dos Estados Unidos, dos temas de serviços, propriedade intelectual e investimento externo direto na nova rodada de negociações. Um grupo de países liderados pela Índia e pelo Brasil resistia à inclusão de novos temas. Encurtando a história, o Brasil encontrava-se mergulhado na crise da dívida externa e a

liberação de recursos de créditos do Eximbank dos Estados Unidos amoleceram a posição inicial do governo brasileiro. Enquanto a Índia já tinha pronto inúmeros estudos sobre o impacto dos novos temas e se preparado para as negociações, a diplomacia brasileira mostrava-se completamente inerte e despreparada para as negociações. Em síntese, a Índia terminou praticamente sozinha na liderança da resistência e foi finalmente derrotada pelo rolo compressor dos Estados Unidos e da Europa. A história parece que se repete mais uma vez. Depois de toda reunião do GATT/OMC a diplomacia brasileira retorna “arrotando” grandes vitórias. Na realidade, não passa de “lorotagem” diplomática, puro exercício de propaganda e marketing. Para aqueles que pensavam que no governo Lula as coisas seriam diferentes, houve mais uma frustração. Na reunião de Cancún, o Brasil, a Índia e outros países reformataram o antigo grupo de Cairns, que representava os principais produtores agrícolas. Rebatizado com o nome de G-20, G-21 ou G-22 ou qualquer coisa do gênero, esse grupo de países focou sua estratégia na obtenção de maiores compromissos quanto ao comércio mundial de produtos agrícolas. Esses compromissos incluem temas como a concessão de incentivos e subsídios à produção de produtos agrícolas,

os estímulos à exportação e as restrições à importação. Vejamos, agora, os fatos. Como, praticamente toda organização multilateral, a OMC é uma organização cujo processo de tomada de decisão depende, em grande medida, do consenso existente entre os Estados Unidos e a União Européia. Isso não impede, naturalmente, que concessões marginais sejam feitas com o intuito de cooptar outros países. O custo de cooptação varia inversamente com a vulnerabilidade externa de cada país. A Índia e a China, por exemplo, têm grande capacidade de resistência a pressões, fatores desestabilizadores

e choques externos provenientes dos Estados Unidos, da Europa e do resto do mundo. O Brasil, por outro lado, é um país extremamente frágil e, portanto, o custo de cooptação da diplomacia brasileira é baixo. A vulnerabilidade externa do Brasil é hoje maior do que há vinte anos. Atualmente, o Brasil recebe o “auxílio-funeral” do FMI que, como todos sabem, é um instrumento de política econômica externa do governo dos Estados Unidos. Ademais, cerca de 40% do famigerado superávit da balança comercial do Brasil depende das compras estadunidenses, o que envolve grande de-

pendência bilateral da economia brasileira. Em Cancún, da mesma forma que outros países em desenvolvimento, marcados por forte vulnerabilidade externa e que aceitaram fazer concessões iniciais, o Brasil também se prontificou a afrouxar com relação ao polêmico tema de compras governamentais, contrariamente à Índia. Assim, a posição do Brasil em Cancún deve ser vista com ceticismo, pois no contexto da realpolitik o poder de barganha de qualquer país não depende da “garganta” mas de fatos concretos. O fato é que o Brasil continua acocorado na arena internacional, com seu comércio internacional dependente de produtos agrícolas, passivo externo altíssimo e divida enorme com o FMI. E mais, o processo de ajuste externo (o superávit comercial) depende da boa vontade de parceiros importantes como os Estados Unidos. Não se esqueçam jamais que o anúncio do nome do presidente do Banco Central do governo Lula foi feito em Washington, após uma visita ao governo dos EUA. Isso tudo expressa vulnerabilidade e submissão. E não me venham, mais uma vez, com paparrotadas. No exercício do poder, o distanciamento entre o discurso e a realidade só merece mesmo é respeito qualificado. Reinaldo Gonçalves é professor titular de Economia Internacional da UFRJ


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AGENDA

agenda@brasildefato.com.br

LIVRO CE - Cone Sul, Uma Igreja para a Liberdade 25 de setembro, às 19h Organizado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (Adital), o livro é uma reunião de cinco reportagens sobre a igreja profética no Cone Sul, que compreende Argentina, Brasil, Paraguai, Chile e Uruguai. As reportagens foram publicadas em 2002, pela Adital. A publicação retrata a realidade da Igreja Católica na América Latina, tendo como pano de fundo a prática da Teologia da Libertação. Os textos foram produzidos por jornalistas, teólogos, sociólogos, analistas e agentes de pastoral das comunidades abordadas. A ocasião será marcada por uma palestra do presidente da entidade, Manfredo Araújo de Oliveira. A apresentação do livro ficará a cargo do diretor da Adital, Ermanno Allegri. Local: Auditório do Seminário da Prainha, avenida Dom Manuel, 3, Fortaleza Mais informações: (85) 257-9804, adital@adital.org.br

FOME ZERO BA - I Encontro do Talher do Programa Fome Zero 26 e 27 de setembro O evento é uma promoção das pastorais sociais, Comissão Pastoral da Terra, Pastoral da Juventude do Meio Popular, Cáritas, Comunidades Eclesiais de Base e sindicatos da Diocese de Iguatu. O objetivo é capacitar educadores e educadoras populares da sociedade civil organizada e membros de sindicatos, associações comunitárias, pastorais sociais, fóruns, partidos e organismos públicos para alimentar, com informação e formação cidadã, os Comitês Operativos do Fome Zero. Serão convidados aproximadamente 150 participantes de paróquias, entidades, áreas de assentamentos e movimentos. O encontro tem assessoria do Talher Nacional e Regional. Local: Rua Eduardo Lavor, bairro Planalto, Igatu Mais informações: (88) 581-8172, (88) 9967-7296

JORNALISMO GO - II Congresso Estadual de Jornalistas de Goiás 26 a 28 de setembro O congresso vai discutir a regulamentação da profissão e a qualidade da informação Local: Hotel Kananxuê, Goiânia Mais informações: (62) 213-6701, jornalistasgo@cultura.com.br

PASTORAL DA CRIANÇA CE - Encontro da Coordenação da Pastoral da Criança da Arquidiocese de Fortaleza 26 a 28 de setembro Haverá estudo sobre o Documento 71 - Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil e sobre o Plano Pastoral da Arquidiocese de Fortaleza. Além disso, será avaliada a atuação da pastoral nas regiões episcopais no primeiro semestre de 2003. Participarão as co-

AMÉRICA LATINA

CONJUNTURA NACIONAL César Benjamin, Emir Sader e Laura Tavares iniciaram um projeto de acompanhamento da conjuntura brasileira, discutindo economia, política econômica, política nacional e internacional e questões sociais. A descrição da rotina de trabalho e de suas análises (que serão mensais) estão publicadas na página www.outrobrasil.net. O acesso é gratuito. ordenações das regiões episcopais da pastoral e a assessoria será da coordenação da pastoral da Arquidiocese de Fortaleza. Local: Praia do Iguape, Fortaleza Mais informações: (85) 231-2845

TRANSGÊNICOS CE - Lançamento da cartilha: Transgênicos - Gostando de Aprender 29 de setembro, às 19h A cartilha nasceu de uma parceria entre a Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Seu objetivo é levar para as escolas públicas de ensino fundamental o debate sobre os transgênicos e a agricultura alternativa. Dentro do projeto, cada escola recebe um jornal mural, feito pelas duas campanhas, que fala de práticas saudáveis de alimentação para os alunos, de experiências com agricultura ecológica e sobre transgênicos. Esse mural é utilizado para dar partida à discussão sobre o assunto. Aí entra o papel da cartilha, que será distribuída entre os professores, para ajudá-los a trabalhar estas temáticas com os alunos em sala de aula. A distribuição será feita em doze Estados do país. Local: Casa Socialista, Av. Santos

Dumont, 1028, Fortaleza Mais informações: (85) 252-2410, (85) 253-5423

ALCA BA - Lançamento documentário “Contra a Alca” 30 de setembro, às 20h Lançamento do vídeo de Carlos Pronzato. Com 35 minutos, traz depoimentos de importantes lideranças da América Latina no combate à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e as manifestações ocorridas no Fórum Social Argentina (2002), no Fórum Social Uruguai (2002), no Fórum Social Mundial (2003) e na 7ª Marcha dos Sem (2002), reunindo trabalhadores do Brasil, Argentina e Uruguai em um único protesto contra a Alca. Entrada franca. Local: Teatro Sesi, Rua Borges dos Reis, 9, Rio Vermelho, Salvador Mais informações: (71) 334-6800 ou 345-1268, lamestiza@zipmail .com.br

SEMINÁRIO RJ - Religião e Sexualidade: Convicções e Responsabilidades 1 e 2 de outubro, das 9 às 18 horas Local: Hotel Novo Mundo Praia

do Flamengo, 20, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2234-7343

da Redação

século 20, uma denúncia da insanidade burguesa, que não tem limites quando se trata do poder. Durante o terror do 3º Reich, o presente e o passado se confundem e o futuro é apenas uma palavra vazia, que não se aplica ao amanhã, apenas uma reedição do horror que foi o hoje.

CONFRATERNIZAÇÃO SP - I Noite Latino-Americana 4 de outubro, a partir das 19h O Grupo Abia Yala reúne brasileiros e pessoas de outros países da América Latina para um momento de integração e fraternidade. Haverá música, exposição e venda de artesanatos regionais. Local: Espaço Livre da Juventude Rua Francisco Rafael, 184, Centro, São José dos Campos Mais informações: (11) 3941-7623

FOTOGRAFIA COMUNICAÇÃO SC - Seminário: “CUT construindo uma Política de Comunicação para a região Sul” 1 a 3 de outubro A promoção é da Escola Sindical Sul, em parceria com as CUTs da região e o Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Entre os participantes estarão o Secretário de Comunicação da CUT, Antônio Spis, o escritor Vito Gianotti, e o jornalista Celso Schröder, além de dirigentes, pesquisadores e profissionais da

Toda uma gama de atitudes humanas aflora no palco da guerra, retratando o drama e os sofrimentos das populações civis, cujo sonho se resume à ousadia de querer continuar vivendo. Somos conduzidos aos horrores através de vários pontos de vista: do nazista, mantido armado pela social-democracia para combater o advento do povo; do indiferente; do militante da resistência; das pessoas simples, sobreviventes à procura de um olhar, de uma mão, de uma palavra... E o palco dessa luta, transformado em escombros e ruínas, é o resultado do capitalismo sem freios – o nazi-fascismo – arquitetado pela burguesia em seu sonho de perpetuação do poder. (GA)

Os mortos permanecem jovens Anna Seghers, pseudônimo de Netty Radvanyi, nasceu em Metz, Alemanha, em 1900. Membro do Partido Comunista Alemão desde 1928, foi para a França em 1933 e, depois, para o México, fugindo do nazismo por ser antifascista e judia. Retorna à Alemanha Oriental em 1947, para ajudar, com sua obra, na reconstrução do seu país. Praticamente desconhecida do leitor brasileiro, foi uma das mais importantes escritoras alemãs de sua época, vivendo uma existência de luta, de perseguição, de exílio, mas também de esperança. Com Os Mortos Permanecem Jovens a autora apresenta um panorama histórico do que foi a Alemanha na primeira metade do

SP - O Outro Mundo é Possível 26 de setembro, às 19h Festa de lançamento da agenda latino-americana mundial 2004, organizada pelo grupo Solidário São Domingos, pelo Parlamento Latino-Americano e pela Prelazia de São Félix do Araguaia. Participarão da festa dom Pedro Casaldáliga, Kathleen Long, Escola Manacá, Rádio Heliópolis, Papel de Gente, Artecom, Guaçatom, Cia Paulista Coral, Cúpula Mundial de Jovens pelo Desenvolvimento Sustentável, Agricultura Urbana, Cepis. Local: Av. Auro Soares de Moura Andrade, 564, São Paulo Mais informações: (11) 3824-6325

área. O Seminário é voltado para dirigentes e assessores responsáveis pela comunicação, pois seu objetivo é elaborar uma estratégia de ação conjunta para a região a partir dos debates: “O papel da CUT na Democratização da Comunicação” e “O desafio dos 20 anos e as Estratégias de Comunicação da CUT”. Os temas e propostas serão debatidos em oficinas temáticas, que acontecerão no período da tarde, desenvolvendo temas como Comunicação Alternativa, Ética na Produção da Informação, Políticas Públicas de Comunicação, Relação com a Mídia, Rede de Informação e Papel dos Dirigentes e Assessores. Local: Escola Sindical Sul, Av. Luiz Boiteux Piazza, 4810, Florianópolis Mais informações: (51) 3224-2484 / 9173-6899

CONFIRA Os mortos permanecem jovens Anna Seghers 720 páginas Preço: R$ 18,00 (+ reembolso postal)

SP - Os cantos de São Paulo A mostra fotográfica tem por objetivo reunir imagens tiradas pelos moradores da cidade, profissionais ou não da fotografia. As inscrições podem ser feitas até 15 de novembro. Para obter a ficha de inscrição e o regulamento, entrar em contato com a Central de Atendimento do Sesc Santo Amaro. Mais informações: Sesc Santo Amaro: (11) 5525-1855

PLANO DIRETOR Para quem quer se inteirar sobre o planejamento e a gestão da cidade e participar de suas decisões: ficou pronta uma nova versão da Cartilha de Formação sobre o Plano Diretor Estratégico, elaborada pela equipe do vereador Nabil Bonduki (PT). A segunda edição, revisada e com acréscimo de dados e de mapas, sai com 10 mil cópias, que serão distribuídas gratuitamente pelo gabinete do parlamentar. Ela deve ser especialmente útil na discussão dos planos regionais e do novo zoneamento na Câmara Municipal, que recebeu esses projetos de lei no fim de agosto. A primeira parte da cartilha explica pontos da legislação urbana e mostra a relação do Plano Diretor com os problemas da cidade, a partir dos quais apresenta os instrumentos para tentar solucioná-los. A segunda parte aponta as etapas previstas no plano aprovado, particularmente as duas citadas. A nova cartilha está disponível na página da internet www.nabilbonduki.com.br Mais informações: (11) 3111-2530, nabil.bonduki@uol.com.br

ESPECIAL “ A LUTA PELA REFORMA AGRÁRIA É A MAIOR QUESTÃO DE TODOS OS SÉCULOS E DE TODOS OS POVOS ”. FRANCISCO JULIÃO

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CULTURA

De 25 de setembro a 1º de outubro de 2003

TRADIÇÃO

A riqueza multicultural de São Paulo Festival de manifestações populares, Revelando São Paulo, mistura comida, artesanato e danças típicas do Estado Fotos: Renato Stockler

Tatiana Azevedo, da Redação

P

elo sétimo ano consecutivo, a cultura tradicional do Estado de São Paulo veio à capital exibir as peculiaridades e costumes de cada município. O VII Revelando São Paulo, mostra de cultura popular realizada de 13 e 21, no Parque da Água Branca, na cidade de São Paulo, foge do conceito segundo o qual cultura tradicional não tem valor, é essencialmente rural, de comunidades analfabetas e atrasadas. Durante nove dias, diversas tradições se cruzaram na troca de experiências, contribundo para a divulgação do turismo regional, o calendário de festas tradicionais e, sobretudo, estimulando a pesquisa e a divulgação dessas manifestações populares. Neste ano, mais de 415 mil pessoas foram ver o trabalho dos 175 municípios e dos seus 3 mil participantes, entre artesãos, grupos de dança e romeiros, temperados com a culinária típica de cada região. Toninho Macedo, idealizador do projeto e diretor artístico do evento, explica que, desde sua primeira edição, o Revelando São Paulo segue os princípios da Unesco para festivais internacionais de folclore: a iniciativa é do governo estadual, em parceria com as prefeituras, que se mobilizam para que grupos levem suas manifestações tradicionais a um novo público. A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo investiu cerca de R$ 500 mil, valor baixo se se considera o porte do festival, o número de pessoas e de apresentações que envolve. O projeto Revelando São Paulo foi desenvolvido pela Abaçaí Cultura e Arte, uma organização não-governamental criada em 1973 que desenvolve programas de ação cultural baseadas na cultura popular.

BAMBU, BONECAS, IMAGENS Entre bicicletas de bambu, bonecas de pano, imagens dos mais diversos santos e até charretes de luxo à venda por R$ 2.500, José Pedro Goes, de Bragança Paulista, oferecia suas esculturas em bambu. Pela primeira vez no Revelando São Paulo, Zé do Bambu, como é conhecido em sua cidade, conseguiu vender em nove dias o equivalente

Imagem de Bom Jesus de Pirapora; bonecões de papel marchê; cantador da cavalhada de São Luís do Paraitinga e dona Ester em um samba de roda

a um ano de produção. “Na minha região, tem mais de mil artesãos. Lá o consumo é baixo, mas aqui tudo é novidade, a gente vende bem”, diz. Único representante de Bragança Paulista, Zé do Bambu recebeu convites para ministrar oficinas em três cidades diferentes. “O Revelando dá a oportunidade de divulgar a cidade, e também de a gente fazer amizade e saber onde tem mais eventos como este para expor nosso trabalho”, esclarece. Maria Aparecida da Dalto Jacó, de Bariri, veio pela terceira vez. Nove dias de vendas de tecidos com o amarrio de Bariri (fios desfiados presos por nós) representaram quase 365 de trabalho em sua cidade. “Mas, mais que o lucro, a importância de um evento assim é o contato que se faz com outros

Pequeno dicionário cultural Congada paulista – Congado é sinônimo de encontro ritual de vários grupos de Congos, Moçambiques e assemelhados. Cortejos de forte raiz africana, existem nos mais diversos pontos do país, em festas religiosas, principalmente nas dedicadas à Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito.

Samba de Bumbo e Samba de Lenço – Duas variantes do samba tradicional em São Paulo, consideradas como os ancestrais do samba cosmopolita. Guardam traços que os aproximam do jongo e do batuque. O de Bumbo é característico da festa do Bom Jesus, em Pirapora. O de Lenço é em devoção a São Benedito.

Reisado – Folias de Reis são grupos que, em forma de ranchos, recontam a lendária viagem dos Três Reis Magos do Oriente para adorar o Deus Menino.

Catira – Outra dança de palmeados e sapateados, acompanhados, sempre, por duplas de violeiros, que alternam as modas com a atuação dos catireiros. De tradição masculina, muitos grupos já admitem a participação de mulheres.

Jongo – Dança de origem banto, do mesmo tronco do batuque, ambos ancestrais do samba e do pagode, que resiste em alguns pontos do Vale do Paraíba. Nela, são homenageados São Benedito e antepassados negros. Fandango de Tamancos – Fandango, no interior Sul e litoral Sul, continua a designar os bailes de sítio, as folganças que animam ocasiões especiais (casamentos e aniversários). Neles, sapateados e palmas se alternam com valsados e danças de sapateado forte (fandango de tamancos e fandango de chilenas).

municípios, e a possibilidade de divulgar o nosso produto”, comenta. Segundo ela, o crescimento do Revelando São Paulo é visível: tanto a qualidade dos produtos, quanto a quantidade de pessoas que visitam o parque aumentou.

FEIJÃO, PEIXE, DANÇA O espaço das artes culinárias também estava concorrido. Na hora do almoço, havia filas para um prato de feijoada, com direito a paçoca de carne seca, ou para enormes postas de peixe servidas com banana verde. De sobremesa, compotas de doces típicos para todos os gostos. De Dois Córregos, Maria de Lurdes se arrependeu de não ter trazido mais da sua goiabada cascão. Chegou com 150 quilos que evaporaram. Depois conseguiu que trouxessem mais 20 quilos, que tampouco deram para o gasto, assim como a paçoça e a laranjada de sua barraca. Na manhã do último dia não sobrava mais nada, e ela ganhou cerca de R$ 1 mil. No sítio onde mora e trabalha, Maria de Lurdes trabalharia um mês para receber este dinheiro. Entre os grupos de dança, apresentações de folias de reis, congadas, moçambiques, catira e folias do divino. Muita cor, muita música e muita descontração contagiavam a platéia, que procurava seguir os passos dos grupos e acompanhava com palmas o ritmo caipira. Entidades como dona Maria Ester, de Pirapora do Bom Jesus, cativaram o público com suas rimas

improvisadas e seu bom humor no palco. Puxando um samba de roda com disposição surpreendente para uma senhora de 80 anos, dona Ester, tetra-campeã pela escola de samba Vai Vai, carrega consigo a história do samba. Aos 13 anos, era a única branca que entrava na roda de negros vindos de Minas Gerais. Hoje, com a mesma vitalidade e alguns anos a mais de experiência, ensina com prazer os segredos do samba de roda, também chamado de samba de bumbo, e oferece versos para todos com quem conversa.

JONGO, MARACATU, COCO Além das danças tradicionais, manifestações modernas da cultura popular. Apresentações de jongo, maracatu, coco e ciranda estabeleceram um diálogo entre o arcaico e

o contemporâneo, estimulando o intercâmbio, que favorece a renovação das linguagens e enriquece todos. A cultura viva, presente no dia-a-dia do interior paulista, é capaz de reunir em um mesmo grupo pessoas das mais diversas classes sociais. Para Toninho Macedo, o Revelando São Paulo consegue mudar o costume de valorizar as classes menos favorecidas apenas por condescendência. “Eles não são ‘coitadinhos’. Um dos grupos de folia de reis do Oeste de São Paulo tem à frente profissionais liberais, dentistas e universitários promovendo a cultura tradicional porque esta é a realidade deles. A classe social perde a importância, pois a preocupação é de passar para frente os valores de sua cultura, e isso pode envolver qualquer pessoa”, explica.

Coco – Dança típica das regiões praieiras, e comum no Norte e Nordeste. O coco vem do canto dos tiradores de coco. Tem uma coreografia básica: os participantes formam filas, ou rodas, sapateiam, respondem o coco, trocam umbigadas e batem palmas marcando o ritmo. A dança tem influência dos bailados indígenas Tupis e dos negros, nos batuques africanos. Os instrumentos mais utilizados de percussão: ganzá, bombos, zabumbas, caracaxás, pandeiros e cuícas. Cavalhada e tocador de berrante foram algumas das atrações do VII Revelando São Paulo


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