Ano 1 • Número 31 • São Paulo • De 2 a 8 de outubro de 2003
Circulação Nacional
Governo de SP esconde mortes na Febem uestionado sobre mortes de adolescentes nas unidades da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), o governo do Estado de São Paulo mentiu à relatora da Organização das Nações Unidas, Asma Jahangir. Foram omitidos oito assassinatos de internos verificados em 2003. “Se as informações prestadas pelo governo estiverem erradas, vou acreditar que há alguma razão muito sinistra para esconderem o fato”, afirmou. Na capital paulista, Asma Jahangir ficou chocada com a precariedade das condições da unidade Brás da Febem. Com capacidade para abrigar 62 jovens, a unidade mantém 500 adolescentes em regime de cárcere. “Eu perguntei três vezes se alguém tinha morrido, e disseram que não”, conta. Este é o segundo incidente da visita da relatora de execuções sumárias da ONU ao Brasil. Na Paraíba, ela ouviu uma testemunha que revelou a existência de grupo de extermínio. Quatro dias depois, o depoente foi assassinado no interior do Estado. Asma pretende apresentar o relatório durante reunião da Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra, em 2004. Pág. 7
Aizar Raldes/AFP/AE
Sem-teto sofrem repressão em Osasco e Recife
Marcos Michael/JC Imagem/AE
Relatora da ONU perguntou sobre casos de extermínio, e oito assassinatos em 2003 foram omitidos
Bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha, vinte pessoas detidas. Esse foi o saldo de dois despejos realizados pela polícia militar, dias 25 e 30 de setembro. Em Osasco (SP), cerca de 150 famílias foram forçadas a deixar um terreno que pertencia ao ex-deputado Sergio Naya, condenado pelo desabamento do edifício Palace II, que causou oito mortes. Em Recife (PE), cerca de 350 famílias despejadas do Movimento de Luta nos Bairros (MLB) entraram em choque com a polícia e montaram barracas em frente à prefeitura. Pág. 7
Conhecida como “a guerra do gás”, uma grande mobilização popular luta contra a política neoliberal do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. Para impedir a exportação do gás natural do país para os EUA, a Central dos Trabalhadores convocou uma greve geral, camponeses bloquearam as estradas de acesso à capital La Paz e milhares de manifestantes saíram às ruas. Pág. 10
Economia frágil piora condições de trabalho O corte no orçamento federal aliado à redução da expectativa de crescimento cria um círculo vicioso: a retração segura a produção, gera desemprego, diminui a renda, compromete as vendas e resulta em menos arrecadação. Pioram as condições de trabalho: em um ano, o número de trabalhadores sem carteira assinada aumentou 15%. Pág. 5
Trabalhadores paralisam a capital da Bolívia, num protesto contra a venda de gás natural aos EUA e políticas neoliberais
Continua a batalha contra os transgênicos Ao liberar o plantio da soja transgênica, o governo terá no mínimo mais dois problemas: garantir a fiscalização para evitar a contaminação de áreas de preservação e defender-se das ações que devem ser encaminhadas ao Supremo Tribunal Federal, por inconstitucionalidade da medida provisória 131. A expansão da produção de soja ameaça o Parque Indígena do Xingu, devastado pelos sojicultores do Mato Grosso para manter o crescimento das exportações de soja, destinadas à alimentação do gado europeu. Págs. 3 e 6
Sem-teto que ocupavam terreno em Piedade, Região Metropolitana de Recife (PE), são despejados pela Polícia Militar
E mais: BALANÇA COMERCIAL – Superávit fiscal é um dos melhores indicadores econômicos do país. No entanto, seus benefícios são incertos. Pág. 4
Natalia Forcat
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Bolivianos paralisam a capital
Aumenta o trabalho escravo em Tocantins Pág. 8
OURO – Denúncias mostram que mais da metade do ouro exportado sai do país clandestinamente. Remessas ilegais chegaram a R$ 10 bilhões, entre 1990 e 2000. Pág. 8 IMPERIALISMO – Kathleen Long, ativista estadunidense, conta detalhes da campanha pelo fim da Escola da Américas, que classifica como “escola de assassinos”. Pág. 11 ÁFRICA – O mestre da tradição oral do Mali, Hampâté Bâ, é publicado no Brasil em livro que expõe narrativas africanas. Pág. 12 CONTAMINAÇÃO – Urânio empobrecido e outros elementos tóxicos começam a causar diversas doenças em soldados estadunidendes no Iraque. Pág. 13
ONGs querem cupuaçu de volta Pág. 13
Trinta anos sem Neruda Pág. 16
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NOSSA OPINIÃO
Segue a guerra dos transgênicos Na longa batalha sobre a liberação dos transgênicos, duas posições ficaram claras. De um lado estava a principal interessada, a empresa estadunidense Monsanto, que detém o monopólio mundial de sua patente. Aliados a ela, alguns fazendeiros gaúchos iludidos com a possibilidade de lucros temporários, o governo do Estado do Rio Grande do Sul, a bancada da direita gaúcha liderada pelo PMDB e os deputados federais petistas Paulo Paim e Paulo Pimenta. Junto desse grupo, figuravam a entidade dos ruralistas Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul) e os pelegos da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag). Pelo governo federal, o Ministério da Agricultura, representado pelo ministro Roberto Rodrigues (que planta soja em suas fazendas em São Paulo e em Balsas, no Maranhão) e o secretário-geral José Damazio, que vendeu sua empresa para a Monsanto. Do outro lado, estavam os ministros Miguel Rosseto (Desenvolvimento Agrário) e Marina Silva (Meio Ambiente), 90% da bancada gaúcha do Partido dos Trabalhadores (PT), 80% da bancada federal do PT e a bancada do Partido Verde. E mais: entidades ambientalistas, organizações de defesa dos direitos do consumidor, Associação dos Juízes Federais, Ministério Público Federal e Procuradoria Geral da Repúblico, coligados aos trabalhadores rurais vinculados à Via Campensina, MST, Contag e Federação dos Trabalhadores na Agricultura Federal da Região Sul (Fetraf). Diante do conflito de interesses, econômicos e sociais, o Palácio do Planalto escolheu o lado errado. Aliou-se à Monsanto e, através de medida provisória, liberou o cultivo da soja transgênica na safra 2003/2004. No entanto, o decreto revela contradições que o desmoralizam. De um lado libera o plantio e, do outro, determina que a partir de dezembro de 2004 a soja seja incinerada. Autoriza a plantação, com amplas vantagens para a Monsanto cobrar royalties dos agricultores, e exige que os trabalhadores assinem documento se responsabilizando por danos ambientais e à saúde pública. Evoca respeito a uma lei de sementes que ainda é projeto e, portanto, não existe. Proíbe plantio próximo a mananciais de água, mas não estabelece distâncias ou responsabilidades. A Monsanto ganhou essa batalha. Contudo, a ministra Marina Silva também saiu vencedora, ao ser aclamada pelos agricultores como defensora corajosa da saúde pública e dos interesses do país. Quem perdeu foi o Palácio do Planalto. Foi derrotado porque a sociedade brasileira percebeu que estavam em jogo apenas interesses econômicos e eleitorais. Perdeu porque nem ao menos conseguiu convencer José Alencar, vice-presidente da República que relutou em assinar a MP. Mas o jogo não chega ao fim. O próximo enfrentamento será no Judiciário, instância a que a bancada do PV e o Ministério Público prometem recorrer, já que a MP afronta decisão judicial em vigor. A batalha seguirá nos supermercados, onde o movimento em defesa dos consumidores e a Via Campesina farão ampla campanha pela rotulagem de todos produtos que utilizem soja modificada geneticamente e pelo fim do consumo de produtos que contenham transgênicos. Os irresponsáveis fazendeiros do Rio Grande do Sul que sonham com lucros fáceis terão de amargar o pagamento de 22 dólares por tonelada de soja para a Monsanto. E terão seus nomes cadastrados para serem responsabilizados civil e criminalmente pelos problemas que surgirem nos próximos anos. E, se a MP não for barrada, o Planalto figurará como o governo popular que se dobrou a uma multinacional em vez de garantir o direito de precaução a seu povo.
CONSELHO POLÍTICO
Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino • Assunção Ernandes • Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • Claus Germer • Dom Demétrio Valentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes • Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Tiago Rodrigo Dória • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL
Alípio Freire • César Benjamim • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Eduardo Greenhalgh • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim • Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Gomes, Bernadete Toneto, 555 Marilene Felinto, Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre Peschanski, 55 Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 55 Carlos, João R. Ripper, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício 55 Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Aroeira, Cerino, Ivo Sousa, Kipper, Márcio Baraldi, 55 Natália Forcat, Nathan • Diretor de Arte: Valter Oliveira Silva • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistentes de redação: Letícia Baeta, Maíra Kubík Mano e 55 Tatiana Azevedo 55 Programação: André de Castro Zorzo 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 5555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 5555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 5555555555 redacao@brasildefato.com.br 5555555555 Gráfica: FolhaGráfica 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
FALA ZÉ
Cartas dos leitores INCOERÊNCIAS Incoerência é algo desconexo, contraditório. No caso dos petistas que estão em desacordo com algumas atitudes do seu próprio governo, não vejo qualquer incoerência de um e de outro. Explico: quando se é oposição, nossa filosofia é uma. Quando passamos à situação, é outra. O PT, ao atingir o poder político máximo da nação, teve que assumir atitudes outras, de uma conjuntura que desconhecia. Já aqueles poucos petistas discordantes não deixam de ter alguma razão em suas atitudes, mais devido ao cacoete de terem sido oposição por tanto tempo do que por qualquer outra coisa. Ademais, convém lembrar sempre que o “poder”, por sí só, é corrupto e corruptor quando não usado para o bem comum. Assim, espero que os petistas, de um lado e de outro, continuem coerentes com suas respectivas filosofias, não esquecendo que divergências fazem parte do chamado jogo dito democrático. João Carlos da Luz Gomes Porto Alegre (RS)
PORQUE Na queda deste império Até mesmo o seu reflexo Não suportará a quebra Deste lixo de boca aberta Nas dores de uma pedra Jaz no asfalto E na lama A alma Do capitalismo americano Maria Brasil João Pessoa (PB)
A OCUPAÇÃO DO IRAQUE Explodiu no ar mais um foguete Eclodiu no mundo mais uma guerra Meu coração de poeta implodiu Diante de tanta desgraça na Terra. 200.000 soldados da força de ocupação Ocupam a pátria e o solo iraquianos É o neocolonialismo ianque Dos brucutus norte-americanos. A guerra é a filha legítima do imperialismo É uma política expansionista do capital Muitos sofrem e morrem Poucos aumentam seu cabedal. A guerra no combativo Iraque É pelo controle de petróleo Os ianques querem controlá-lo Trocando sangue por barris de óleo. É preciso condenar a guerra imperialista Ela não interessa aos trabalhadores É o uso das armas pelos belicistas No interesse de capitalistas opressores. Foi o imperialismo ianque que armou Saddam Que fomentou a guerra Irã/Iraque Mas a resistência iraquiana Hoje os faz chorar por mais um desembarque. As crianças, os velhos, os trabalhadores São da guerra, os principais prejudicados Os capitalistas, os fabricantes de armas São pela guerra e dela, os beneficiados. Nós trabalhamos e lutamos pela paz Pela guerra de libertação também Guerra contra os que fazem guerra É a política da reistência que nos convém. José Francisco de Souza João Pessoa (PB) SAUDAÇÃO Faço parte do comitê de apoio ao
jornal Brasil de Fato no Pará e gostaria de parabenizar a todos que fazem este jornal que, além de ser informativo, acima de tudo é um fantástico instrumento de formação para militantes e não militantes. Ruth Heide Ananindeua (PR) MST Este movimento dos sem-terra faz lembrar-me não sei bem por que, o movimento de uma nebulosa que ruma ao infinito. É uma ponta de esperança, é um movimento milenar que começou nos primórdios da humanidade e que só vai acabar no dia que nos livrarmos de todo o ridículo condicionamento egoísta e burro que arraigamos em nós através de séculos de barbárie e loucura. Imaginem uma humanidade livre e coesa, partilhando e convivendo em paz. Isso é possível, e esta marcha, este movimento, é um rompimento ao mundinho fechado e finito dos latifúndios. Lancemos fora a miséria, saiamos dessa letargia política e social que transformamou o Brasil num imenso gueto de matanças e desaforos, que nossa luta pacífica possa iluminar a todos os que de boa vontade pisem nesse planeta. José Leonel Rosa Pelotas (RS)
ERRAMOS Na edição 30, página 7, a matéria “Tese de revanchismo protege torturadores” não explica que Iara Iavelberg pertencia ao grupo de guerrilha urbana Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e não à guerrilha do Araguaia.
Brasil de Fato estimula o debate Brasil de Fato completa oito meses de existência. O caminho até agora percorrido foi muito longo, árduo e gratificante. Multiplicamos a criação de comitês de apoio por todo o país, estampamos em nossas páginas as notícias do Brasil e do mundo ignorados pela grande mídia, oferecemos perspectivas distintas de interpretação dos fatos políticos, culturais e econômicos, e criamos feição e estilos próprios. Não é pouco, mas ainda não é suficiente. Faz parte do nosso desafio
incorporar ao processo de produção, divulgação e distribuição do jornal um número cada vez maior de pessoas, movimentos sociais e mídias independentes. Queremos multiplicar os comitês de apoio, ampliar a rede nacional de todos os envolvidos na sustentação do jornal. Com esse objetivo, resolvemos intensificar a organização, em todo o território nacional, de debates, palestras e mesas redondas envolvendo os integrantes de nosso Comitê Editorial. Consideramos isso tão importante que
resolvemos liberar o jornalista José Arbex Jr. de suas funções como editorchefe do Brasil de Fato para dedicar a essas atividades um tempo ainda maior do que o já dispensado. Estamos certos de que a aposta na crescente interação entre o Comitê Editorial e os comitês de apoio já formados, as universidades, os sindicatos e os movimentos sociais é o caminho mais seguro para a consolidação do Brasil de Fato como um jornal independente de expressão nacional.
Quem somos Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores.
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NACIONAL TRANSGÊNICOS
Áreas de preservação estão ameaçadas Marcello Casal Jr./ABR
Mananciais, reservas ambientais e terras indígenas podem ser atingidas pela MP assinada por José Alencar no dia 25 Claudia Jardim da Redação
A
liberação do plantio de soja transgênica tende a trazer mais problemas do que soluções para o governo. Depois de inúmeras reuniões com o presidente em exercício José Alencar, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, garantiu uma mudança no texto da medida provisória (MP 131): a inclusão de um artigo que assegura a preservação de áreas próximas às reservas ambientais, de mananciais e terras indígenas. Ao sucumbir às pressões do governo gaúcho e da transnacional Monsanto, dia 25, o governo autorizou o plantio somente para a safra deste ano. A MP assinada por Alencar determina que as sementes sejam incineradas até 31 de dezembro de 2004. Exige ainda que o agricultor assine um termo de compromisso responsabilizando-se por possíveis danos decorrentes da soja transgênica.
ROTULAGEM DIFÍCIL
CONTRADIÇÃO O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, justificou a liberação afimando que “o governo não tinha condições de fiscalizar o plantio da safra. A MP evitou uma desobediência civil”. De acordo com a senadora Ideli Salvati (leia texto abaixo), o sistema de fiscalização do governo foi desmontado. A proteção de mananciais é considerada fundamental por Lídio Co-
ta de pedido de inconstitucionalidade. Para o deputado estadual Frei Sérgio Görgen, a MP “foi uma decisão desastrosa. O governo vai permitir que a máfia do contrabando contamine o resto da agricultura”, diz Görgen, que participou da comissão responsável pela elaboração do texto final da MP. A decisão teve repercussão internacional. O ministro da Agricultura Roberto Rodrigues admitiu que o governo recebeu pedidos da União Européia para que não aderisse ao cultivo de alimentos geneticamente modificados.
Manifestantes cobram promessa de campanha e satirizam o presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores
radin, gerente de Recursos Genéticos do Ministério do Meio Ambiente. Se os produtores aplicarem o herbicida glifosato – utilizado na soja modificada – próximo às fontes de água, a população pode ser contaminada.
O ministério defende o princípio de precaução porque os estudos de impacto ambiental não foram realizados. De acordo com Cláudio Langone, secretário-executivo do ministério, a transnacional Mon-
santo nega-se a fornecer dados para a realização de estudos. A medida provisória 131 desencadeou uma série de manifestações dos movimentos sociais e do judiciário, que podem resultar em uma ação dire-
A MP não estabelece normas de segregação, o que dificulta e encarece a identificação e rotulagem dos alimentos. “Por isso, atuaremos em várias frentes para garantir os direitos dos brasileiros, inclusive junto a associações de consumidores de outros países”, afirma Marilena Lazzarini, coordenadora executiva do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). A MP também seria considerada inconstitucional por não respeitar as liminares de proibição dos transgênicos e não atentar para o princípio de preservação do meio ambiente. O procurador geral da República Cláudio Fonteles está analisando o texto da medida e, se a considerar ilegal, pode pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) ação direta de inconstitucionalidade, sem a necessidade de qualquer ação civil contrária à decisão.
Cláudia Jardim da Redação Apesar dos argumentos do governo, a senadora Ideli Salvati (PT-SC) não concorda com a medida provisória que libera o cultivo da soja transgênica. Para ela, a decisão abre espaço para possíveis danos à saúde e ao meio ambiente, ameaça a economia e deverá causar tensões políticas no Congresso e no Planalto. Brasil de Fato – Qual sua avaliação da MP que liberou o cultivo da soja transgênica? Ideli Salvati – Não consigo entender. Grande parte dos senadores do PT firmaram um documento para que a MP não fosse assinada, porque o assunto é complexo e pode ter conseqüências. O senador Sibá Machado (PT-AC) e eu levamos uma representação ao procurador-geral da República, pedindo a investigação de desobediência civil e incitamento feito por pessoas do Rio Grande do Sul. BF – Alguém se destaca? Ideli – Principalmente o presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Carlos Sperotto, ao dizer que os gaúchos plantariam transgênicos a qualquer custo. Ele desafiou a lei ao declarar “quero ver prender todos os agricultores”. Há algum tempo o governo sofria essas pressões. No entanto, nenhum dos argumentos utilizados para justificar essa decisão me convenceram. BF – A medida pode colocar em risco os Estados que não querem transgênicos? Ideli – Em Santa Catarina existe uma lei estadual que proíbe os transgênicos. Há um ano e meio tivemos de comprar milho geneticamente modificado do Paraguai porque houve desabastecimento.
Contratos foram suspensos porque vários países europeus não admitiam frango alimentado com esse tipo de milho. Além dos problemas à saúde e ao meio ambiente, também temos de considerar as questões econômicas. Teremos de colocar um muro na fronteira dos Estados, com uma tela para não deixar as borboletas entrarem? BF – A troca das sementes seria uma alternativa? Ideli – Sim. Nós levamos essa proposta ao vice-presidente (José Alencar). A Embrapa confirmou que há suficente estoque de semente convencional para substituir a transgênica. BF – A decisão tende a fortalecer a ilegalidade e o contrabando de sementes para o país? Ideli – Indiscutivelmente. Não posso concordar com quem pratica desobediência civil, incentiva o plantio ilegal e se beneficia do fato de ter respaldo legal por uma MP. Cria-se o sentimento de que qualquer ilegalidade pode ser cometida e o governo dará a solução.
Agência Senado
Medida provisória gera conflito no Planalto Quem é Nascida em São Paulo, Ideli Salvati é senadora pelo Partido dos Trabalhadores de Santa Catarina. Professora e deputada estadual em duas legislaturas, sempre esteve ligada à luta dos trabalhadores em educação em Curitiba (PR) e Joinvile (SC).
BF – Um dos artigos da MP responsabiliza o agricultor por possíveis danos. Não há uma inversão de responsabilidades? Ideli – Esse é o típico artigo para dar justificativas, muito mais do que garantias. Se alguém ficar doente por consumir transgênico, como comprovará que a responsabilidade é de tal agricultor? O governo se exime da responsabilidade e a atribui a quem não tem a obrigação de tê-la. BF – E o não cumprimento da
exigência de rotulagem dos alimentos com conteúdo transgênico? Ideli – Por causa da dimensão do país e da péssima estrutura, não acredito que haverá fiscalização eficaz e suficiente. Também por isso não queríamos a MP. Antes de liberar era preciso um amplo debate sobre rotulagem, meio ambiente e estrutura. BF – Qual o papel dos movimentos sociais nessa batalha? Ideli – A MP precisa ser aprovada no Congresso. Sei que os movi-
mentos sociais vão estar a todo vapor para debater essa questão. Isso é fundamental. E faço um alerta: a unidade que conseguimos construir para a votação das duas reformas está completamente comprometida. Havia pontos de polêmica na reforma da previdência e na reforma tributária, mas com o consenso de que eram absolutamente necessárias. Não há unidade em relação aos transgênicos. Teremos grandes complicações políticas porque a maioria da bancada é contrária à decisão.
Paraná não quer a soja modificada Leonardo Franklin de Curitiba (PR) Tramita na Assembléia Legislativa do Paraná um projeto de lei que, aprovado, proibirá a comercialização, plantio e transporte da soja transgênica no Estado. Apreciada durante a última semana pelos deputados, a matéria do Partido dos Trabalhadores recebeu propostas de substitutivos e emendas e, por isso, voltou às comissões. No entanto, a expectativa é de que seja aprovada em curto prazo, com apoio da base governista. O governador Roberto Requião
(PMDB-PR) é um dos entusiastas do projeto. Ele criticou a medida do governo federal de liberar o plantio de soja transgênica para a safra 2003-2004. “A política externa do Brasil tem de ser elogiada, mas o governo federal não pode ceder à pressão de produtores gaúchos que vêm trabalhando às margens da legislação”, afirmou. Segundo Requião, com a proibição de transgênicos o Paraná garantiria uma fatia importante do mercado externo. “Não existe nenhuma vantagem no plantio de transgênicos. É apenas uma questão de defesa do mercado, que interessa
não só ao Paraná mas a todo o país”, afirmou. Em discurso, ele defendeu o projeto que tramita na Assembléia. “Teremos a vantagem de uma soja universalmente aceita. Não vamos cair na besteira de cultivar soja com restrições de mercado, além de abrir a concorrência com os produtores norte-americanos, que contam com subsídios e pagamento de 40% de seguro-agrícola por parte do governo”. O secretário de Agricultura e Abastecimento e vice-governador do Paraná Orlando Pessuti afirma: o Estado continuará a orientar os produtores a optarem pela soja
comum, até porque, segundo ele, o que está à venda no mercado é sobra de grãos. Por isso, não há garantia de qualidade, produtividade ou germinação, assim como certificação para aqueles que optarem pelos transgênicos. Trabalhando em função da proibição dos transgênicos no Paraná, o governo fará um acordo com a China, através do qual dará garantias de qualidade e pureza da soja, além de outorgar a preferência de compra. Em contrapartida, os chineses financiariam investimentos em infra-estrutura e logística no porto de Paranaguá.
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NACIONAL COMÉRCIO EXTERIOR
Balança comercial volta aos anos 80 Lauro Jardim de São Paulo (SP)
A
s exportações brasileiras batem todos os recordes em 2003, e somam, até a terceira semana de setembro, nada menos do que 50,648 bilhões de dólares, crescendo 21,3% em relação a idêntico período do ano passado. Como as importações encolheram 2,7%, batendo em 33,592 bilhões de dólares, o superávit comercial – a diferença entre o que o país vende lá fora e o que gasta, em dólares, para a compra de produtos e bens importados – atingiu 17,056 bilhões de dólares, praticamente 30% a mais do que o saldo de 13,130 bilhões de dólares acumulado em todo o ano passado. Boa notícia, não é mesmo? Ainda mais em um momento em que a economia brasileira coleciona indicadores negativos. Os dólares que chegam a mais, via transações comerciais, têm ajudado o país a pagar seus compromissos no exterior, reduzindo a necessidade da tomar dólares emprestados. A questão é saber, agora, como e por que as exportações têm crescido. E, quando se analisam os dados mais profundamente, o cenário que surge não é tão animador para quem espera que a economia consiga acumular eficiência para exportar produtos mais caros, com maior grau de tecnologia. Pode-se dizer, por exemplo, que a taxa de crescimento das exportações vem decaindo. Era de 24,4% até agosto e passou, em setembro, a acumular um avanço de 21,3% no ano. Mas a tendência era esperada, diante dos níveis de comparação mais elevados nos meses finais de 2002. As coisas se complicam exatamente quando se procura esmiuçar os números.
BÁSICOS EM ALTA Em agosto, por exemplo, o país exportou 6,404 bilhões de dólares, cerca de 11,4% a mais do que em igual mês de 2002. Daquele total, as vendas de produtos básicos (soja e outros grãos, farelo de soja, minérios, petróleo e carnes, entre outros) representaram 30,1%, refletindo um aumento de 12%. Aquele percentual, excluindo-se o ano de 1997, que foi um período atípico na série histórica de dados
Moacyr Lopes / Folha Imagem
Produtos manufaturados nas exportações cai, em agosto, para níveis equivalentes aos registrados há duas décadas
Armazenamento da soja no Porto de Santos (SP): exportação de produtos agrícolas cresce na balança comercial brasileira
Uma pauta muito concentrada Para complicar, a concentração vem se agravando, neste ano, como mostram os dados da Secex. Entre janeiro e agosto de 2002, os 32 principais produtos da pauta de exportações respondiam por 61,8% das vendas externas totais, e passaram a representar 63,2% do total, saindo de 22,879 bilhões de dólares para 28,747 bilhões de dólares – mais de 25,6%. Foram 5,868 bilhões de dólares a mais, ou 69% de todo o ganho registrado pelas exportações no ano, até agosto (já que o país exportou 8,484 bilhões de dólares a mais do quem em iguais meses do ano passado). As vendas de produtos agrícolas ao exterior representaram praticamente metade do valor exportado por aquele grupo de 32 produtos, com embarques de 14,134 bilhões de dólares entre janeiro e agosto. Houve, neste caso, um salto de 36,6% na comparação
com o mesmo período do ano passado. A fatia dos produtos agrícolas avançou de 27,9% para 31,1% das vendas totais. Os índices de concentração variam de acordo com o grupo de produtos analisados, atingindo níveis mais extremos entre os produtos básicos. Aqui, apenas nove itens respondem por 87,5% das exportações. Entre os semimanufaturados (celulose, açúcar em bruto, couros, alumínio, óleo de soja em bruto, e outros), sete produtos representam 76,8% do total.
MANUFATURADOS Embora mais diversificada, a pauta de exportações de produtos manufaturados, que incorporam maior tecnologia, também revela alguma concentração, já que 16 produtos têm participação de 48,3%. Mas apenas nove produtos, com vendas de 6,609 bilhões de dólares
neste ano (27% do total exportado pelo setor de manufaturados), foram responsáveis por metade do crescimento alcançado nesta área, com destaque para automóveis de passageiros (mais 34,7%), laminados planos de aço (mais 93%) e óleos combustíveis (mais 89,7%). Diante da maior demanda mundial, dos melhores preços no mercado internacional e da maior oferta de grãos para exportação, as vendas de soja em grão, farelo e óleo de soja em bruto retratam a tendência de concentração observada na balança comercial brasileira. Com vendas externas de 5,306 bilhões de dólares, 71,2% mais do que os 3,1 bilhões de dólares embarcados até agosto de 2002, a participação do setor subiu de 8,4% para 11,7%. Foram 2,206 bilhões de dólares a mais, ou 26% do crescimento registrado pelas exportações totais.
da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), foi o mais elevado desde o final dos anos 80, quando os produtos básicos chegaram a responder por um terço das exportações totais. A fatia dos básicos, na verdade, vem crescendo desde 2000, quando era de 22,8%, segundo a Fundação Centro de Estudos de Comércio Exterior (Funcex). No ano seguinte, saltou para mais de 26%, alcançando 28% em 2002 – o que significa dizer que as exportações de produtos básicos têm não só crescido mais rapidamente que os demais setores exportadores, como vêm apresentando uma contribuição fundamental para o avanço das vendas externas totais. Num retrocesso em relação a políticas adotadas no passado para diversificar as vendas externas, incluindo produtos com maior conteúdo tecnológico, as exportações de produtos manufaturados (veículos e autopeças, aviões, motores, aço, calçados, móveis, e também açúcar refinado e suco de laranja, entre outros), ao contrário, vêm perdendo espaço. Em agosto, responderam por 52,3% dos embarques totais, diante de 53,2% no mesmo mês de 2002, como conseqüência de um crescimento de 9,5% nos embarques, abaixo do aumento de 11,4% observado para os produtos básicos. Foi a menor participação dos manufaturados desde 1985. A fatia dos produtos manufaturados na pauta de exportações aproximou-se dos 60% em 2000, em seguida à maxidesvalorização do real frente ao dólar em 1999; caiu para 56,5% no ano seguinte; e murchou para 54,7% em 2002. Entre janeiro e agosto, a participação dos produtos básicos era de 29,1%, diante de 27,1% nos oito primeiros meses de 2002. Os manufaturados seguiram trajetória inversa, saindo de 55,9% no ano passado para 53,7% neste ano. Os diferentes ritmos de crescimento entre os dois grupos de produtos explicam as tendências inversas. As vendas externas de grãos, minérios, petróleo e carnes saltaram 32%, lideradas pela soja em grão (mais 84,6%). Mas as exportações de manufaturados aumentaram quase a metade daquela taxa (mais 18,2% em relação aos mesmos oito meses de 2002).
Ao contrário do que possa parecer, não são apenas as grandes decisões de política econômica que acabam determinando os rumos futuros do país. Na verdade, o modelo de crescimento que se deseja vai sendo construído a partir também de medidas adotadas no dia-a-dia pelo governo, e nem sempre anunciadas com alarde, como as reuniões mensais do Comitê de Política Monetária (Copom) – cujas decisões têm ocupado manchetes de jornais impressos e na tevê, nos últimos meses, monopolizando as atenções da opinião pública. Isso não significa que a política de juros não mereça a atenção devida, até pelo seu poder de induzir ou, no caso atual, travar investimentos das empresas, concentrar a renda em favor de investidores/ especuladores no mercado financeiro e criar distorções em cadeia em toda a economia, torrando empregos e pulverizando salários. A questão é que medidas menos charmosas, que não rendem manchetes, têm igualmente o poder de criar desemprego, reduzindo ainda mais o tamanho do mercado interno, gerar perda de produção e de vendas para as empresas brasileiras, causando
retração de investimentos (ou seja, limitando as chances de crescimento futuro da economia).
SEM IMPOSTOS Confira nestes dois exemplos retirados das páginas de economia de jornais especializados nos últimos dias: 1. Em agosto, a Receita Federal colocou em vigor um tal “sistema de administração integrada de captação de informações descentralizadas”, instalado pelas empresas que administram estações aduaneiras de interior (chamados portos secos), ligadas à Associação Brasileira das Empresas Operadoras de Regimes Aduaneiros (Abepra). É muita sigla, não é mesmo? Tudo isso para dificultar o entendimento de todos aqueles que não têm familiaridade, nem paciência, para acompanhar o noticiário econômico. O tal sistema, na verdade, nem é o mais importante, no caso. As estações aduaneiras, ou portos secos, foram criadas no governo Sarney, em meados dos anos 80, a pretexto de facilitar a importação de mercadorias, bens e produtos e desburocratizar as exportações, reduzindo custos para as empresas importadoras e exportadoras. Para
Jesus Carlos/Imagenlatina
Como criar empregos... em outros países de importação rouba mercados de empresas instaladas no país, torrando postos de trabalho, aqui, e criando empregos na Alemanha ou no Japão.
VAGÕES CHINESES
Modelo de importação rouba mercados de empresas instaladas no país
isso, o porto seco poderia importar um produto qualquer, fazer algumas alterações e reexportá-lo, com isenção de impostos. Tome-se o exemplo de um carro importado. O porto seco poderá
simplesmente colocar uma porta ou instalar um painel para revendê-lo, lá fora, sem pagar impostos. Apesar de a legislação já prever esse mecanismo, ele só foi validado agora pela Receita. Obviamente, esse tipo
2. A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) vai importar 1,2 mil vagões da China. Motivo: políticas adotadas no passado e, mais uma vez, o escancaramento do mercado às importações, destruíram literalmente a indústria ferroviária nacional. Resta, hoje, no Brasil, um único fabricante de material ferroviário. E não há capacidade instalada para atender a um pedido mínimo das operadoras de ferrovias. O que se faz? Estimula-se a abertura de novas empresas, nesta área, oferecendo crédito e assegurando mercados? Não. A Vale tomou 250 milhões de dólares emprestados a uma agência japonesa para importar vagões e locomotivas com isenção de impostos. Perdem-se arrecadação e empregos, de um lado, e torram-se dólares, de outro, com importações que não precisariam ser feitas se a indústria nacional não tivesse sido dizimada, literalmente, por decisões equivocadas. (LJ)
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De 2 a 8 de outubro de 2003
NACIONAL CONJUNTURA
Piora a situação do mercado de trabalho A
s decisões vieram num mesmo pacote. Ao mesmo tempo em que anunciou um novo corte em suas despesas, agora de até R$ 414 milhões, o governo federal decidiu rever, para baixo, a previsão de crescimento da economia. Até maio, o Ministério do Planejamento acreditava que o Brasil poderia crescer uns 2,25% em 2003. Agora, as projeções convergem para uma taxa mirrada de 0,98% – um retrato da política econômica em vigor. A ligação entre os dois anúncios é óbvia: a economia derrapa e derruba a arrecadação de impostos; para não desagradar ao Fundo Monetário Internacional (FMI), o governo mete a tesoura nos gastos, o que termina engrossando a crise na economia. No início do ano, foram cortados R$ 14,1 bilhões do orçamento previsto para 2003, dos quais R$ 1,5 bilhão foram liberados em maio, quando se acreditava que a economia não estava tão ruim assim. A situação, no entanto, já apresentava deterioração mais grave do que admitia o governo, tanto que, quatro meses depois, percebeu-se que a arrecadação estava nada menos do que R$ 2,8 bilhões abaixo da projeção feita em maio para todo o ano.
e 17 anos, com 258 mil jovens sem emprego, ou 38% a mais do que em agosto de 2002. Aquela faixa etária abrigava, há um ano, menos de 8% do total de desocupados nas seis regiões pesquisadas, e passou a registrar uma participação de 9,3% em agosto. Para complicar a equação, o mercado parece discriminar pessoas com 11 ou mais anos de estudo. Nesta faixa, estavam desempregadas, em agosto, 1,105 milhão de pessoas (praticamente 40% do total de desocupados), diante de 869 mil há um ano (36,7% do total). Houve, neste caso, um salto de 27,1%. A economia, há algum tempo, não consegue produzir empregos em número suficiente para abrigar as pessoas que chegam ao mercado de trabalho. Em agosto, por exemplo, o total de pessoas aptas a trabalhar havia crescido 5,1% diante do mesmo mês em 2002, significando mais 1,024 milhão de pessoas no mercado de trabalho. Mas só foram criados, no período, 625,4 mil novos empregos.
Bernardete Toneto
Lauro Jardim de São Paulo (SP)
Moisés Araújo
Mais de 11 milhões de pessoas trabalham sem carteira assinada, e recebem menos do que um salário mínimo
MENOS RENDA
MAIS CORTES A decisão de aprofundar o corte de gastos fecha um círculo vicioso, que tende a agravar a retração, reduzir a produção, gerar mais desemprego, menos renda e menores vendas, com nova baixa para a receita dos impostos. Basicamente, o mesmo cenário observado desde os últimos meses do governo Fernando Henrique. O país paga um preço elevado para satisfazer credores e especuladores, sempre insaciáveis. A taxa de desemprego em agosto retomou o nível recorde de junho, com 13% da população economicamente ativa fora do mercado do trabalho, segundo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa esconde uma outra realidade, igualmente crítica, a degradação das condições de trabalho. Em agosto do ano passado, praticamente 9,709 milhões de pessoas (48% da população economica-
Subempregados e contratados não têm perspectivas de futuro numa economia que só beneficia o capital especulativo
mente ativa) não tinham carteira assinada, ou trabalhavam por conta própria, exerciam ocupação não remunerada, estavam subocupadas, ou ganhavam menos de um salário mínimo por mês. O número cresceu 15% desde então, pulando para 11,163 milhões em agosto de 2003, equivalentes a
52,5% da população economicamente ativa.
MAIS DESEMPREGO Havia, em agosto, 2,768 milhões de desempregados nas regiões metropolitanas de Recife (PE), Salvador (BA), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP)
e Porto Alegre (RS). Aquele número corresponde a um salto de 16,8% em relação ao mesmo mês de 2002, quando a taxa de desemprego alcançou 11,7%, afetando 2,369 milhões de pessoas. Praticamente 400 mil desocupados a mais. Mais grave: o maior avanço do desemprego aconteceu na faixa entre 15
Isso quer dizer, como visto, que 398,6 mil pessoas não conseguiram qualquer colocação, ao mesmo tempo em que a renda mensal habitualmente recebida pela população ocupada desabava de R$ 983,34, em agosto do ano passado, para R$ 847,90 no mesmo mês deste ano, num tombo de 13,8%. Desde dezembro, os ocupados perderam 8,8% de seus rendimentos, forçando novos membros da família a buscar emprego para compensar a perda de renda. Entre os que tiveram a sorte de conseguir um emprego, quase 45% deles (280 mil) foram contratados sem carteira assinada e 46% (ou 289 mil) tiveram que optar pelo trabalho por conta própria. Na soma, portanto, praticamente 91% das novas ocupações abertas na economia não apresentavam garantia alguma de futuro a seus ocupantes. A subocupação (pessoas que fazem bicos, camelôs, ambulantes etc) aumentou 29% desde agosto do ano passado, atingindo 826 mil pessoas. E o total de pessoas que ganham menos de um salário mínimo regular aumentou 45,7%, para 2,365 milhões.
A pesquisa de emprego e desemprego do IBGE mostra a outra face da política de arrocho levada a ferro e fogo pelo governo federal. Aparentemente, todos os esforços da política econômica têm sido direcionados para alcançar as metas de corte de despesas e de pagamento dos juros e prestações da dívida do setor público, que já se aproxima dos R$ 900 bilhões. O mais recente relatório do Tesouro Nacional traduz em números aquela política. Entre janeiro e agosto de 2003, a receita líquida do Tesouro praticamente repetiu, em termos reais (ou seja, depois de atualizada com base na inflação do período), os números do ano passado, atingido R$ 189,8 bilhões. Em agosto, reflexo da retração dos negócios, houve queda de 9,6% em relação a julho, e um ganho real tímido de 0,8% na comparação com agosto do ano passado. A arrecadação de impostos, no entanto, despencou 18% diante de julho, e 7,5% em relação a agosto de 2002.
GASTOS ENCOLHEM Em oito meses, as despesas totais encolheram pelo menos 5%, depois de descontada a inflação, chegando a R$ 155,1 bilhões. To-
Agência Brasil
Governo corta mais, para pagar juros da dívida tal de R$ 50,6 bilhões (26,7% da receita líquida do período), cresceram, em termos nominais (ou seja, sem considerar a inflação), apenas 7,3%, ou menos da metade da taxa acumulada pela inflação, ao redor dos 15%. Na prática, houve uma retração de quase 7%.
CONTA SALGADA
Manifestação em Brasília pela auditoria da dívida: governo gasta mais de R$ 100 bilhões para pagar juros da dívida pública
mando apenas o mês de agosto, os gastos baixaram também 9,6% diante de julho, caindo 3,7% quando comparados ao mesmo mês de 2002. As despesas com pessoal e encargos sociais caíram 8,7% frente a agosto do ano passado, passando para R$ 5,8 bilhões, ou 25,2%
da receita líquida, diante de 27,8% há um ano. Os gastos de custeio (compras de material e equipamentos para a administração pública, papel, cafezinho e lanches, por exemplo) e investimentos desabaram praticamente 12% em agosto, também na
comparação com idêntico período de 2002. No acumulado entre janeiro e agosto, as despesas de custeio e investimento tiveram queda real de praticamente 14%, para R$ 41,856 bilhões. Os gastos com salários e encargos dos servidores, num to-
Todo o aperto destinou-se a ampliar o superávit primário do governo federal, ou seja, economizar mais e mais recursos para pagar a conta dos juros e engordar os lucros da especulação financeira. O superávit (diferença entre receita líquida e despesas, descontados os gastos com juros), neste caso, saltou mais de 50%, passando de R$ 23,038 bilhões para R$ 34,605 bilhões. Um esforço em vão, já que o dinheiro desviado de programas essenciais foi suficiente para pagar menos de 70% dos gastos acumulados com juros nos 12 meses encerrados em julho deste ano. Recursos que poderiam ajudar a reativar a economia, criando empregos em maior velocidade e amenizando os efeitos da crise, foram literalmente “queimados” na ciranda financeira. (LJ)
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NACIONAL MONOCULTURA
Expansão da soja ameaça Parque do Xingu Ana Maria Fiori de São Paulo (SP)
H
oje a terra indígena é uma ilha de preservação ambiental, fragilizada pelas atividades no seu entorno. Depois de anos de ocupação desordenada por pecuaristas e madeireiros, na última década chegaram os sojicultores. Eles fornecem o grão in natura para grandes indústrias, que investem de forma estratégica na infra-estrutura para exportação pelo Norte do país. O desmatamento no entorno do Parque Indígena do Xingu (PIX), de 1994 até 2000, foi de cerca de 1.600 quilômetros quadrados ao ano. Isso inclui a ocupação, pela soja, de antigas pastagens e áreas onde as árvores já foram derrubadas por madeireiros. Há anos os índios preocupam-se com a diminuição do número de peixes, o assoreamento dos rios situados em suas terras, a contaminação das águas e do solo pelos agrotóxicos utilizados nas fazendas que fazem limite com o parque. Por isso, em maio deste ano, o Instituto Socioambiental (ISA) – organização não governamental que desenvolve o Programa Xingu, em parceria com a Associação Terra Indígena Xingu – organizou a Expedição Soja. O foco principal foram as fazendas que fazem limite com o parque, pois os índios desejam estabelecer um diálogo com os proprietários para que as reservas legais, áreas de floresta que os fazendeiros são obrigados a manter por lei, dentro de suas terras, fiquem encostadas no parque. “Assim, seria garantida, ao menos, uma área-tampão, que tornaria o parque um pouco mais protegido da degradação em seu entorno”, diz a bióloga Rosely Alvim Sanches, que desde 1999 trabalha no Projeto “Diagnóstico Socioambiental da Região dos Formadores do Xingu”.
PASSIVO AMBIENTAL Essa medida paliativa, segundo Rosely, não é suficiente para solucionar os impactos ambientais da expansão da soja, até porque as cabeceiras dos rios que formam o Rio Xingu estão fora do perímetro do parque. Rosely diz ainda que o Mato Grosso já tem um passivo ambiental, provocado pelo modelo de desenvolvimento que, há décadas, privilegia a agroexportação. Para o indigenista André VillasBoas, coordenador do Programa Xingu do ISA, a função social da terra não é só a produtividade, e as terras não são um bem exclusivo de uma única geração: “Pertencem a um povo e, portanto, devem ser preservadas em sua integridade”. O proprietário que não cumpre com a função ambiental – parte da função
Fotos: Rosely Alvim Sanches/ ISA
Desmatamento ao redor do parque compromete a bacia hidrográfica onde estão os formadores do Rio Xingu bre a diversidade biológica. Entretanto, em 30 anos, os desmatamentos já consumiram mais de um terço de toda a região”, explica ela. Sem negar a importância de rodovias asfaltadas para as populações locais, Villas-Bôas explica como esse incentivo à produção e ao lucro pode comprometer ambientes já bastante degradados: “O processo estimula a especulação imobiliária. Em meses, o preço da terra quintuplicou. Isso gera o fracionamento das propriedades e, portanto, mais desmatamento para viabilizar uma dimensão de área plantada rentável”. Para a bióloga, outro fator preocupante é o alto grau de agrotóxicos utilizados nas culturas. Da semeadura à colheita da soja, a planta e o solo recebem todo tipo de produtos químicos, como inseticidas, herbicidas e secantes. Como a colheita ocorre na época de chuvas, os pesticidas são, literalmente, carregados para os rios.
ATUAÇÃO DAS EMPRESAS
O cultivo de soja ocupa áreas de antigas pastangens e causa danos como a diminuição dos peixes e o assoreamento de rios. Os sojicultores regionais vendem os grãos para grandes indústrias, que investem em infra-estrutura para exportação
social da terra – tem de responder por isso, avalia o indigenista. “Existe legislação, existem mecanismos de controle. Os satélites estão aí, os computadores são muito rápidos, os serviços baratearam. O proprietário tem condições de pagar e entregar ao governo um produto claro sobre a sua propriedade, com imagens de satélite onde se veja a mata e seu estado de conservação”, acrescenta Villas-Boas. O coordenador do Programa Xingu vê o contexto regional muito adverso e avesso à questão do planejamento socioambiental: “É díficil. O Estado deveria investir na governança e na aplicação mais inteligente da legislação. Ninguém quer impedir o desenvolvimento, mas para isso é necessária a presença do Estado. Na Amazônia, temos um faroeste”. Nesse faroeste, nos últimos dez anos, a soja explodiu. Um eixo de soja desenvolve-se na parte sul da rodovia Cuiabá-Santarém, no Norte
do Mato Grosso, e o pólo principal fica no município de Sorriso. Outro pólo forma-se a leste do Parque do Xingu, no município de Querência. A preocupação dos pesquisadores do Instituto Socioambiental é com as rotas de exportação do produto e seu impacto, ao estimular a criação de novas áreas de cultivo do grão.
A ROTA DA SOJA No mapa da Secretaria de Transportes do governo do Estado do Mato Grosso está previsto o asfaltamento da BR 158, a leste do parque do Xingu, além da BR 242 — apelidada de Rodovia da Soja, que fica ao sul do parque e liga Água Boa, próxima de Querência, ao pólo de Sorriso. “A Rodovia da Soja corta as cabeceiras do Rio Xingu, região com cerca de 170 mil quilômetros quadrados que faz a conexão da BR 158, a leste, com a Cuiabá-Santarém, a oeste do parque. Grandes indústrias de alimentos já manifestaram interesse
Ambientalistas temem que a criação de rotas de exportação estimule a criação de novas áreas de cultivo, aumentando o impacto sobre o parque
em, por meio de consórcio privado, financiar o asfaltamento do trecho de Guarantã, no Mato Grosso, até Santarém, no Pará. Na cidade, recentemente foi inaugurado o porto da Cargill”, informa Rosely. A pesquisadora não tem dúvidas: o quadro de desmatamentos e os impactos sobre o Rio Xingu serão intensificados, caso não aconteçam discussões regionais sobre os planos de governo. “É preciso estimular o debate sobre as conseqüências da criação de infra-estrutura para a expansão do cultivo de soja e seu escoamento pelas BRs. Nessa região onde nasce o Rio Xingu, recoberta originalmente por mata de transição entre Cerrado e Floresta Amazônica, pouco se conhece so-
As empresas com atuação local não querem falar muito sobre o assunto. A Cargill informou, por meio da assessoria de imprensa, que o investimento no terminal portuário de Santarém, no Pará, foi de aproximadamente 20 milhões de dólares. O terminal deve movimentar, inicialmente, cerca de 800 mil toneladas de soja ao ano e servir como fonte alternativa para o escoamento da produção de grãos no Mato Grosso e no Pará para Europa e Ásia. Fábio Trigueirinho, secretáriogeral daAssociação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), declarou: “A Abiove e seus associados não participam da produção de soja. Consideramos a soja a alavanca para o desenvolvimento sustentado de uma região que se encontrava deprimida economicamente”. A Bunge Brasil desenvolve, com a ONG Conservation International, um projeto de conscientização e educação ambiental junto a seus produtores. A coordenadora de comunicação da Conservation International do Brasil, Andrea Margit, esclarece que “a Bunge Brasil e a Conservation International do Brasil têm interesse em preservar a grande gama de recursos naturais do Cerrado”. Para isso, segundo Andrea, a conservação da biodiversidade será integrada às operações da Bunge, e serão criados incentivos para a conservação ao longo da cadeia produtiva da soja.
Nações indígenas sofrem grande impacto A expansão da soja para as cabeceiras do Parque do Xingu terá, sem dúvida, grande impacto sobre as nações indígenas, na opinião de Vicente José Puhl, coordenador do Fórum Matogrossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad) e da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase-MT). Os índios Parecis, do Norte do Estado, já sofrem com o aparecimento de doenças, alergias, diminuição do pescado. Puhl denuncia, ainda, o aliciamento dos índios para arrendar terras e plantar soja dentro de suas áreas. Caracterizando o Mato Grosso como o maior produtor de soja do Brasil - na safra 2002/2003, o Estado plantou aproximadamente 4,5 milhões de hectares - o coordenador do Formad revela: “As empresas do atual governador são os maiores plantadores de soja do mundo. Na última safra, foram 100 mil hectares”.
O coordenador da Formad e da Fase-MT informa que a soja representa 79% do total da exportação do estado e crítica o modelo de produção utilizado em Mato Grosso: “Socialmente, o modelo de produção de soja de Mato Grosso nem de longe é sustentável, pois apenas 1,6% da sua produção vem da agricultura familiar. Assim, a soja em Mato Grosso gera pouquíssimos empregos. Do ponto de vista ambiental, a situação não é melhor. Encontram-se lavouras de 30 mil, 40 mil hectares ininterruptos de soja. “O uso intensivo de insumos químicos para fertilização do solo, o uso intensivo de herbicidas para ‘limpeza’ da área e de agrotóxicos para controle de doenças e ‘pragas’ é assustador – são mais de vinte tipos utilizados. Isso levará à desertificação rápida dos solos frágeis e arenosos”, completa Puhl. (AMF)
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NACIONAL DIREITOS HUMANOS
Governo de SP mente à relatora da ONU Tatiana Merlino da Redação
J. Freitas/ABR
Asma perguntou se houve mortes na Febem e a resposta foi negativa. Só neste ano, oito adolescentes já morreram
Números da violência no país √ Em 1999, houve 13.917 mortes
“S
e as informações do governo estiverem erradas, vou acreditar que deve haver alguma razão muito sinistra para esconderem tal fato”, afirmou Asma Jahangir, relatora de execuções sumárias da Organização das Nações Unidas (ONU), ao descobrir que autoridades do governo de São Paulo “omitiram” que oito adolescentes foram mortos na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), só este ano. Em visita à Unidade de Atendimento Inicial (UAI) da Febem, no bairro do Brás, em São Paulo, a relatora questionou sobre possíveis mortes dentro das unidades, mas as autoridades não tocaram no assunto. As mortes foram reveladas a Asma por representantes de organizações não-governamentais (ONGs). “Isso já aconteceu em outros Estados do Brasil e até em outros países. Enganos e más interpretações podem ocorrer, mas não com informações de tamanha gravidade”, avaliou Asma. A relatora ficou chocada com as condições do local, que abriga 500 adolescentes, embora tenha capacidade para apenas 62. “Eu perguntei três vezes se alguém tinha morrido, de morte natural ou não natural, e eles disseram que não”, conta. No Brasil desde 16 de setembro, a relatora visitou vários Estados, onde colheu depoimentos e denúncias de execuções sumárias e extrajudiciais cometidas pela polícia e pelos agentes do governo. Ela
cometidas por policiais ou grupos de extermínio que costumam estar ligados à polícia.
√
para 53,00 em 1995 e 59,20 em 1999.
√
Em 2001, a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) registrou 15.341 homicídios em todo o Estado de São Paulo.
Entre 1997 e 2003 ocorreram 349 execuções sumárias no país. Dessas, 202 vítimas ainda não mereceram qualquer atenção do Ministério Público, devido à péssima qualidade das investigações policiais ou por falta de vontade em apurar os fatos.
√ Em Ribeirão Preto (SP), a mesma constatação: de 15,89 em 1991, o índice pulou para 44,64 em 98.
√ O número de crimes violentos
reconheceu ter matado ao redor de 1000 pessoas.
aumentou consideravelmente nos anos 90 no Estado de São Paulo.
√ A taxa de homicídios por 100 mil habitantes, na capital paulista, que era de 38,90 em 1993, subiu
√ Em 2000, a polícia fluminense
Fonte: Execuções sumárias no Brasil – 1997-2003, relatório das organizações não governamentais Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros
“Enganos podem ocorrer, mas não com informações de tamanha gravidade”
vai elaborar um relatório que será apresentado em março de 2004, em Genebra, durante a reunião da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Na Paraíba, ouviu Flávio Manoel da Silva, testemunha da ação de grupos de extermínio. Quatro dias após sua conversa com a relatora, Silva foi assassinado a tiros em Pedras de Fogo, no interior do Estado. “Esse caso é alarmante. Há muita impunidade aqui”, afirmou. Após o incidente, Asma recebeu uma mensagem do governo federal, que prometeu investigar o assassinato e proteger outras testemunhas A relatora da ONU participou
da entrega do relatório sobre as execuções sumárias em São Paulo. Elaborado por 13 organizações de direitos humanos do Estado, o relatório denuncia a política de segurança pública praticada pelo governador Geraldo Alckmin. De acordo com os organizadores, são “casos exemplares de chacina” como ameaças por parte de policiais, denúncias de mortes e tortura, espancamentos dentros de presídios, maus-tratos em unidades da Febem, ações do Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância, (Gradi) - acusado pela morte de doze suspeitos em uma operação forjada no pedágio da
Rodovia Castelo Branco, em março de 2002. Segundo Sandra Carvalho, da ONG Justiça Global, 80% dos casos de morte por resistência a ações policiais são, na verdade, execuções sumárias. O relatório apresenta recomendações ao Estado sobre medidas a serem tomadas para combater as execuções. Para o deputado Renato Simões, presidente da comissão de direitos humanos da Assembléia Legislativa, as ações têm nome e sobrenome: Saulo de Castro Abreu Filho, secretário de segurança pública de São Paulo. Familiares de vítimas foram ouvidos por Asma
durante a entrega do relatório, quando a imprensa teve que se retirar para garantir a segurança das testemunhas. A presença da relatora e suas declarações incomodaram o secretário de segurança pública. De acordo com Guilherme de Almeida, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Saulo de Castro convocou os policiais para ir às ruas protestar contra a relatora. Assessores de Asma afirmam que, durante sua passagem por São Paulo, a relatora da ONU foi “seguida por um assessor do secretário de Segurança Pública”.
REFORMA URBANA
Jorge Pereira Filho da Redação No dia 25, cerca de 150 famílias sem-teto foram violentamente despejadas por policiais militares. A posse da área em Osasco (SP), pertencente ao ex-deputado Sérgio Naya, está em disputa nos tribunais. Em julho de 2002, as famílias foram despejadas do acampamento Carlos Lamarca, montado em Osasco. Em plena campanha pela reeleição, sentindo-se pressionado o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) transferiu os sem-teto para um terreno de uma estatal, na cidade de Guarulhos. Alckmin venceu as eleições e, um mês depois, as famílias foram despejadas pela segunda vez. Novamente em Osasco, ocuparam uma área pertencente a Sérgio Naya, ex-deputado condenado pelo desabamento do edifício Palace II, no Rio de Janeiro. No terreno, Naya pretendia construir edifícios similares ao Palace II. Contudo, as obras foram embargadas por não cumprirem normas de segurança. Como o exdeputado não pagou as multas pela infração, a prefeitura de Osasco pediu reintegração de posse do terreno. As negociações entre sem-teto, prefeitura de Osasco e Sérgio Naya eram intermediadas pela Comissão de Direitos Humanos da OAB e da Plataforma de Direitos Humanos, Sociais e Culturais, apoiada pelo Programa de Voluntariado da Organização das Nações Unidas (ONU). Contudo, o juiz da 1ª Vara Cível da Comarca de Osasco, Ronaldo Alves de Andrade, ignorou as negociações e concedeu liminar de reintegração de posse à Promorar Planta Arte, que subitamente passou a reivindicar a propriedade da área. Segundo um advogado que teve
Teresa Maia/Diário de Pernambuco/Folha Imagem
Sem-teto sofrem despejo em Osasco e Recife crimogênio”, conta Adriana Silva, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que organizou as famílias. Das sete pessoas detidas pelos policiais, duas têm14 anos. Dezenas de moradores foram feridos. “Parecia coisa da ditadura, não podia negociar, nem olhar para eles, que ameaçavam com voz de prisão”, lembra Adriana. As famílias conseguiram abrigo em um galpão próximo à ocupação, mas pretendem pressionar a prefeitura de Osasco.
PERNAMBUCO
Tanto na Grande São Paulo quanto na região metropolitana de Recife, sem-teto sofrem com ação truculenta da Polícia Militar
acesso ao processo, o caso apresenta duas irregularidades: o juiz encarregado de julgar o pedido da nova empresa não foi o mesmo dos outros processos e não houve com-
provação de posse do terreno. Os policiais militares chegaram ao terreno de madrugada, deram uma hora de prazo para a desocupação e, no meio de uma assem-
bléia de moradores, invadiram o terreno. “Foi terrorismo. Enquanto discutíamos uma forma de sair pacificamente, deram tiros para o alto e jogaram bombas de gás la-
Em Recife, cerca de 350 famílias sem-teto organizadas pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) sofreram despejo pela Polícia Militar. Bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha foram usadas na operação, segundo lideranças do MLB. Doze pessoas foram presas. As famílias despejadas decidiram acampar em frente ao prédio da prefeitura.
SINDICAL
Volks da Alemanha ameaça brasileiros Luís Brasilino da Redação Metalúrgicos, sindicalistas e especialistas em direito do trabalho ficaram indignados com as declarações feitas pelo presidente mundial da Volkswagen, dia 23 de setembro. O dirigente da transnacional disse que qualquer funcionário brasileiro da fabricante de automóveis que entrar em greve será demitido. Em nota à imprensa, José Lopez Feijóo, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, afirmou ser “preciso deixar claro para a mon-
tadora que os trabalhadores responderão com todas as formas de luta qualquer ataque aos acordos. Ameaças vindas da Alemanha não farão os trabalhadores recuar”. O sindicalista refere-se ao acordo firmado com a empresa, segundo o qual os trabalhadores têm estabilidade até 2006. No entanto, o acerto foi quebrado quando, no final de julho, a transnacional enviou a quase 4 mil trabalhadores uma carta comunicando sua transferência para a Autovisão - empresa criada com a finalidade de realocar mão-de-obra no mercdo de trabalho. Desde então, metalúrgicos
e empresários vêm negociando uma solução para o impasse. Os trabalhadores já conseguiram o cancelamento das cartas, mas não aceitaram a nova proposta feita pela empresa. As negociações foram retomadas dia 29 de setembro. Porém, o momento é de definição, uma vez que no dia 1º de outubro esgota o prazo estipulado pela Volks para transferir os trabalhadores. “É uma data muito importante. Temos de estar preparados para uma forte luta”, explicou Feijóo.
APOIO DA CUT Luiz Marinho, presidente da
Central Única dos Trabalhadores (CUT), considerou a atitude do presidente da transnacional uma piada. Para ele, a declaração – feita para agradar acionistas – partiu de uma pessoa que nem deve conhecer a realidade do Brasil. O ministro Francisco Fausto, presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), lembrou que o direito à greve é garantido pela Constituição Brasileira. As leis são claras: asseguram a possibilidade da manifestação e delegam aos trabalhadores exclusividade para decidir se deflagram greve ou não.
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De 2 a 8 de outubro de 2003
NACIONAL TRABALHO ESCRAVO
Aumentam as denúncias em Tocantins Lucas Milhomens de Palmas (TO)
desempregados, sujeitam-se a empreitadas em locais distantes. Ações conjuntas da Procuradoria Federal do Trabalho, Delegacia Regional do Trabalho e CPT investigam 15 fazendas acusadas de promover trabalho escravo. Uma das investigações concluídas é a da fazenda Minas Gerais II, no município de Presidente Kennedy, onde foram encontrados 50 escravizados. Eles receberam, a título de indenização, o referente a R$ 77 mil. É grande a violência na região. Recentemente, Mário Lúcio de Avelar, procurador federal da República em Palmas e integrante da Força Tarefa contra o Trabalho Escravo, recebeu várias ameaças de morte de fazendeiros. Ele foi transferido para Brasília, depois de um atentado em 30 de julho. Frei Xavier Plassat foi ameaçado de morte por telefone e por pessoas rondando a casa e ambiente de trabalho de forma suspeita.
E
m Tocantins, nos primeiros oito meses deste ano, foram registradas 19 denúncias de trabalho escravo, envolvendo 839 trabalhadores rurais. A denúncia é do frade dominicano Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional contra o Trabalho, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Há casos de trabalho escravo em vários municípios: Itaporã, Ananás, Wanderlândia, Xambioá, Aragominas, Arauanã, Colinas do Tocantins, Bandeirantes e Araguaína. As denúncias envolvem trabalhadores rurais de baixa instrução e em condições precárias”, diz frei Xavier. Pesquisa da CPT e da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) mostra que, antes de ir para as fazendas, os trabalhadores moravam na periferia das cidades e,
João Roberto Ripper
Denúncias envolvem 839 lavradores, a maior parte desempregados aliciados para trabalho em latifúndios
As principais vítimas do trabalho escravo são trabalhadores e trabalhadoras rurais de baixa instrução
havia entre as vítimas a identidade da raça e da cor. Hoje, não se escraviza alguém porque é negro, escraviza-se porque é pobre. A escravização anterior era injusta e legal; a atual continua injusta, mas é ilegal.
Nestor Cozetti de Campos de Goitacazes (RJ) Ganhador do prêmio Anti Slavery International (antiescravidão internacional), a mais antiga organização não governamental (ONG) de direitos humanos do mundo, criada em 1830, em Londres (Inglaterra), Ricardo Resende é uma renomada autoridade em trabalho escravo. Hoje dirige a ONG Movimento Humanos Direitos e integra a diretoria deliberativa da Rede Social Justiça e Direitos Humanos.
BF – Existe escravidão urbana no Brasil? Resende – Sim; e, lamentavelmente, não há ONGs cuidando disso, como há, na área rural, a Comissão Pastoral da Terra. Às vezes se tem informação de algum caso, como recentemente, em São Paulo – bolivianos e nordestinos eram forçados a trabalhar sob pretexto de uma dívida. Provavelmente, nas áreas metropolitanas são escravizados muitos asiáticos, africanos e latino-americanos.
Brasil de Fato – Como o senhor define o trabalho escravo? Ricardo Rezende – É o trabalho involuntário, em que a pessoa é tratada como mercadoria. Antes,
Quem é
Nestor Cozetti
Ninguém é obrigado a trabalhar por dívida O padre, doutor e escritor Ricardo Resende nasceu em Carangola (MG), em 1952. Foi criado em Juiz de Fora, onde cursou Filosofia e Ciência das Religiões. Em 1977, militando na Comissão Pastoral da Terra (CPT), mudou para o sul do Pará, onde permaneceu por vinte anos e onde foi ameaçado de morte por seu trabalho junto aos que lutam pela terra. Em 1996, foi para o Rio de Janeiro cursar mestrado em Sociedade e Agricultura e doutorado em Antropologia Cultural, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). BF – A principal característica do trabalho escravo contemporâneo é o endividamento? Resende - No Ocidente, é. Em outras regiões do mundo existe o trabalho escravo por razão étnica, racial ou religiosa. A Organização Internacional do
Trabalho estima 200 milhões de escravizados no mundo. O pesquisador Kevin Bales supõe que talvez sejam 27 milhões. É difícil calcular, pois depende do que se entende por trabalho escravo. E também porque a escravidão, em geral, é clandestina e ilegal.
MINERAÇÃO
Flávio Garcia de Brasília (DF) O ouro retirado em garimpos e por empresas de mineração legalmente constituídas continua sendo sistematicamente desviado para o exterior. De acordo com levantamento do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), do Ministério das Minas e Energia, entre 1990 e 2000 o Brasil exportou 732 toneladas de ouro para o exterior. As remessas atingiram valores próximos a 10 bilhões de dólares. Técnicos e especialistas envolvidos em atividades de mineração, comércio e exportação afirmam que mais da metade da produção brasileira de ouro sai clandestinamente do país. A maior parte é escoada, ao norte, pela fronteira dos estados da Amazônia e, ao sul, para Uruguai e Paraguai via Foz do Iguaçu. Um único registro oficial informa que, em 1988, as exportações brasileiras de ouro alcançaram 15 milhões de dólares, enquanto as remessas ilegais, não contabilizadas na balança comercial, se aproximaram de 270 milhões de dólares. Segundo denúncia do procurador-geral do DNPM, Sérgio Jacques de Moraes, 90% das atividades de mineração no país, incluindo a extração do ouro, continuam sendo exercidas quase que clandestinamente. A afirmação foi feita no seminário “A utilização dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente”, realizado em outubro de 2001 no Rio
Samuel Iavelberg
Ouro brasileiro é desviado para o exterior
Garimpo de Serra Pelada, no Pará, em 1983: mais da metade da produção brasileira de ouro sai clandestinamente do país
de Janeiro, promovido pelo Instituto Dannemann Siemsen. O sucateado DNPM é o principal organismo de ação federal no setor. Por falta de recursos orçamentários, desde 1985 a instituição não publica os “Perfis Analíticos” dos principais minérios brasileiros. A falta de verbas compromete seriamente um possível processo de avaliação e desempenho da atividade mineral no país. O descaso favorece a agilidade de um mercado paralelo. O minério dos garimpos e as minas das empresas legalizadas seguem facilmente para os mercados externos. O Ministério da Fazenda e o Banco Central não mostram interesse em for-
mar um mercado de investimento interno, aberto para pessoas físicas, que poderia ser uma opção de poupança para o pequeno investidor. No país, poucas empresas mineradoras detêm cerca de 70% da produção de ouro. A Companhia Vale do Rio Doce informa produzir, sozinha, quase a metade das 40 toneladas oficiais. A empresa foi privatizada, vendida por 3,3 bilhões de dólares dois anos depois de ter investido 4,5 bilhões de dólares em infra-estrutura, incluindo portos, aquisição de frota de navios, ferrovia, plantios florestais e siderurgia. Pouco tempo depois, foram dimensionadas duas minas de ouro
próximo a Serra Pelada (PA), com potencial de 650 toneladas. A segunda maior produtora tem à frente a sul-africana Anglo Gold Limited, com raízes fincadas em Minas Gerais. Seguem-se a canadense Eldorado Gold Corporation, em Santa Bárbara, e a Irlandes Minmet Pic, em Sabará. Destacam-se ainda três outras canadenses Teck Cominco, Barrick Corporation e Brasilca, que trocam de posições e informações nos Estados do Pará, Goiás, Bahia e Mato Grosso. Flávio Garcia é engenheiro agrônomo e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados, em Brasília
BF – O migrante é o único trabalhador escravizado? Resende – O escravo é sempre alguém de fora, estranho ao lugar. Por exemplo, em Minas Gerais não se usa o mineiro como escravo, mas nordestinos. E mineiros são escravizados no Mato Grosso do Sul ou no Rio de Janeiro. Sendo estranha ao local, a pessoa fica mais frágil, não tem relações sociais que a protejam, não tem como escapar. Retirada de seu meio e levada a um lugar distante, ela tem dificuldade para retornar, para romper aquele laço de coerção. BF – Existe o escravo voluntário, porque não tem o que comer? Resende – Não, ninguém é voluntariamente escravo. É verdade que a pessoa pode saber do risco de se tornar escrava e aceitar correr o risco. As condições de vida são tão desumanas e precárias que ela precisa correr esse risco. E, para que haja o crime, não é necessário a vítima ter consciência do crime. As condições de precariedade facilitam o aliciamento de mão-de-obra. Pessoas empregadas, qualificadas profissionalmente, que sabem ler e escrever, têm menos chance de ser escravizadas. Uma população desempregada é mais facilmente escravizada e, em alguns casos, por desinformação: acha que é obrigada a trabalhar “porque está devendo”. A vítima pode concordar com seu “senhor” por ter uma consciência errada da lei, por não saber que no Brasil ninguém é obrigado a trabalhar por dívida. E, mesmo sob consentimento, isso não deixa de ser crime. BF – A reforma agrária seria a solução para o problema, ao menos do escravo rural? Resende – A solução envolve um conjunto de medidas. Por exemplo, confiscar propriedades que utilizam mão-de-obra escrava diminuiria imediatamente a incidência do crime. Se alguns fazendeiros perdessem a terra, os demais sentiriam medo. Há uma prioridade com a erradicação do trabalho escravo, já demonstrada pela Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e pela Secretaria de Fiscalização do Ministério do Trabalho. Mas ainda não há recursos previstos para a ação da polícia federal, nem sequer uma equipe policial preparada e disposta a enfrentar o problema.
9 Ano 1 • número 31 • de 2 a 8 de outubro de 2003
SEGUNDO CADERNO LIVRE COMÉRCIO
EUA reforçam ofensiva à América Latina Reunião em Trinidad e Tobago definirá qual será o rumo das negociações da Alca Jorge Pereira Filho da Redação
D
epois do impasse nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún, no México, os Estados Unidos ameaçam endurecer sua estratégia nas conversas com os países latino-americanos. A ofensiva seguirá tanto via acordos em blocos, como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), quanto por meio de acordos bilaterais, como o assinado recentemente com o Chile. Todos contêm as mesmas cláusulas sobre investimentos, compras governamentais e serviços que interessam às transnacionais estadunidenses. O primeiro teste dessa estratégia está sendo colocado à prova na 15ª reunião do Comitê de Negociação Comercial da Alca, em Trinidad e Tobago, até dia 3. O encontro, iniciado no dia 29 de setembro, é preparatório para a reunião decisória de Miami, em novembro. “Agora monta-se o cenário para Miami. É o meio do caminho”, explica Fátima Mello, da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip). Logo após a reunião da OMC, o governo de George W. Bush alardeou que investiria pesado nos acordos bilaterais. A Casa Branca convidou um repórter do jornal Folha de S. Paulo para viajar a Washington e ouvir o recado de Roger Noriega, subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental. “Teremos de avançar pelo caminho bilateral. Será muito difícil um acordo para a Alca após o fracasso em Cancún”, avaliou Noriega, chamado de “anticomunista” pelo nada radical New York Times, quando foi nomeado para o atual cargo.
MOVIMENTO TÁTICO Atualmente, os Estados Unidos estão em declarada ofensiva sobre a América Latina. O México participa desde 1994 do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta). O Chile assinou, em junho, um acordo bilateral que entrará em vigor a partir de 2004. O presidente da República Dominicana, Hipóli-
O ATAQUE DO IMPÉRIO Área de Livre Comércio das Américas (Alca)
Acordos bilaterais EUA-CHILE
Países: Todas as nações do continente americano, menos Cuba. Situação: acordo em discussão desde 1994. Governo estadunidense pressiona países para concluí-lo até 2005.
Situação: Acordo assinado em junho de 2003, nos moldes do Nafta. Entra em vigor em 2004. EUA-COLÔMBIA Situação: Em negociações. O presidente colombiano Álvaro Uribe dá andamento às conversas e já recebeu a visita do secretário de comércio estadunidense, Robert Zoellick.
Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, sigla em inglês)
EUA-PANAMÁ
Países: EUA, Canadá e México Situação: acordo em vigor desde 1994
Situação: Em negociações. A presidenta Mireya Moscoso, favorável ao acordo, discutirá, em outubro, propostas estadunidenses. O Panamá poderá entrar na negociação do Alcac ou acertar um tratado comercial bilateral.
Acordo de Livre Comércio da América Central (Alcac ou Cafta, em inglês)
EUA-PERU Situação: O Peru já possui um tratado de preferência comercial com os EUA. O presidente peruano Alejandro Toledo manifestou intenção de assinar acordo com a potência capitalista nos moldes do tratado chileno.
Países: EUA, Costa Rica, Guatemala, El Salvador, Honduras e Nicarágua Situação: acordo em discussão desde janeiro de 2003. EUA quer concluí-lo até dezembro de 2003.
EUA-URUGUAI Situação: O presidente uruguaio Jorge Battle acena favoravelmente à assinatura de acordo com os estadunidenses e pode enfraquecer o Mercosul.
Acordos dos EUA com países de outras regiões Concluídos – Israel, Jordânia, Cingapura Em negociação – Marrocos, Austrália e Bahrein
to Mejía, negocia desde janeiro e dá como certa a conclusão de um acordo similar para 2004. Peru, Colombia e Panamá também já iniciaram conversas. O Uruguai, por sua vez, mostra-se favorável às negociações. Na América Central, cinco países – Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua – negociam com os Estados Unidos o Acordo de Livre Comércio da América Central (Alcac), mesmo sob forte pressão dos movimentos sociais e da sociedade civil (veja reportagem abaixo). Bush estabeleceu o final de 2003 como prazo para o encerramento das negociações. “Os acordos bilaterais são uma forma de o projeto deles avançar no continente americano. Aos poucos solidifica a Alca e vai criando precedentes para depois não fazer mais sentido resistir ao acordo”, analisa Fátima Mello.
EUA-REPÚBLICA DOMINICANA Situação: Em negociação desde janeiro de 2003.
O principal empecilho dessa estratégia é que o Brasil possui um papel fundamental para o desenrolar das negociações da Alca. “Isso não quer dizer que vão abandonar a Alca. Na verdade, o que interessa às transnacionais é o acesso ao mercado brasileiro. Disso elas não vão desistir”. A posição do governo brasileiro no encontro de Trinidad e Tobago será definitiva para o avanço ou bloqueio das negociações da Alca. O Brasil deverá apresentar a proposta do Mercosul, que divide a negociação da Alca nos chamados “três trilhos”: negociação bilateral, multilateral e na OMC.
nacionais se alguma lei prejudicar seus lucros. “O Brasil não é contrário ao capítulo de investimentos. O nosso medo é que isso vire uma política de barganha para obter ganhos em outras áreas comerciais, como o agronegócio. No Nafta, isso causou uma tragédia”, avalia Fátima Mello.
NAS MÃOS DO LATIFÚNDIO Para Sandra Quintela, socioeconomista do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, o capítulo de investimentos é o coração do acordo. “Sem ele, é muito difícil fazer a Alca”, avalia. De acordo com a socioeconomista, há pressão de uma série de organismos multilaterais, como o Banco Interamericano, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC) que estão unificando suas ações. “E se
POLÍTICA DE BARGANHA O principal problema é que a proposta não se opõe ao acordo de investimentos, que dá amplos poderes para transnacionais – como processar países em tribunais inter-
Nicaraguenses marcham contra bloco comercial
Transnacionais jogam todas as fichas na Alca Os maiores interessados na conclusão da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) – as empresas estadunidenses – não vão abrir mão de obter acordos de investimentos, compras governamentais e serviços. Texto recente da ativista Lori Wallach, diretora do Public Citzen (observatório público dos Estados Unidos sobre comércio global) revela que, depois do fracasso das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC), no México, as transnacionais estão jogando todas as suas fichas na Alca e nos acordos bilaterais para aumentar seus lucros. E vão pressionar Bush para consegui-los. Segundo Wallach, as principais empresas estadunidenses enviarão carta ao governo Bush, reiterando que se opõem a qualquer tentativa de reduzir o escopo da Alca. Nesse texto, organizações como a entidade de Fabricantes da Indústria Farmacêutica dos EUA e a Coalização de Empresas de Serviços darão novas orientações ao governo. Para as empresas, Bush deve seguir encaminhando acordos bilaterais e regionais com países da América
da Redação Renato Stockler
da Redação
População protesta contra as armadilhas que os acordos comerciais representam
Latina, como o Alcac (Acordo de Livre Comércio da América Central), pois tais negociações serviriam como “alavancagem para levar à frente as negociações da Alca”. Na avaliação dos empresários estadunidenses, o impasse da reunião em Cancún demonstrou que os acordos de investimentos, compras governamentais e serviços não devem ser superados tão logo dentro do âmbito da OMC. Assim, o governo estadunidense teria de ser
mais agressivo nas negociações da Alca e dos acordos bilaterais para obter essas concessões. As transnacionais afirmam também que muitos países não refratários ao tema de investimentos na Alca, mas já se mostraram favoráveis a alguns dispositivos que interessam aos grupos estadunidenses. A carta dos empresários diz que o Brasil é um desses países, pois teria demonstrado mais tolerância a algumas propostas, como a de arbitragem internacional.
o FMI, entre as suas condições, colocar a cláusula de que o Brasil terá de se empenhar nas negociações da Alca?”, pergunta. A dívida brasileira é um instrumento de pressão. “O problema é que o desenvolvimento do Brasil está centrado nas exportações, para saldar a dívida externa” (veja reportagem na página 4). Por essa razão, o governo estaria ao lado dos produtores rurais, que desenvolvem uma política voltada ao mercado externo. De qualquer forma, mesmo do ponto de vista dos exportadores, a socioeconomista considera ingenuidade acreditar em alguma vantagem com a Alca. “O latifúndio pensa que vai conseguir aumentar exportações para os Estados Unidos, mas está enganado. Bush não tem hegemonia política justamente nos estados onde os produtores agrícolas são subsidiados”, revela.
Milhares de nicaraguenses fizeram passeatas dia 18, em Manágua (Nicarágua), contra o Acordo de Livre Comércio da América Central (Alcac ou Cafta, em inglês). Delegações de outros países centroamericanos participaram da mobilização, que protestou contra a proposta dos Estados Unidos de criar um bloco comercial com cinco países da América Central (Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua). O Alcac, construído na mesma filosofia do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, em inglês) e da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), é um acordo que favorece as transnacionais estadunidenses. “Nossa posição é não aos tratados de livre comércio”, disse Danilo Guardián, do Movimento Comunal Nicaraguense. Depois do fracasso das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC), o governo Bush está empenhado em concluir rapidamente o acordo com os países da América Central. Tudo deve ser negociado até o final do ano, segundo prazo estabelecido pelos Estados Unidos. Já o presidente da Nicarágua, Enrique Bolaños Geyer, tem cedido às pressões de Washington
e avalia que pode conseguir para a região um acordo mais vantajoso do que o da Alca. As manifestações na Nicarágua ocorreram durante a realização da sétima reunião de negociações da Alcac. As discussões giraram em torno da propriedade intelectual e da patente de remédios. Os Estados Unidos propõem um acordo que mantenha, por 25 anos, a proteção de patentes de remédios; os países da América Central estão relutantes em aceitar a proposta. A agricultura é outro tema polêmico do Alcac. Os Estados Unidos repetem o mesmo discurso de outros fóruns internacionais: não vão reduzir os subsídios. Os governos centro-americanos reclamam que uma vaca, nos Estados Unidos, vive melhor do que três em cada quatro nicaraguenses. Uma vaca nos EUA recebe dois dólares por dia, enquanto 75% dos nicaraguenses vivem com menos de dois dólares por dia, compara o sociólogo Oscar Vargas. Na Costa Rica, o Encontro Popular, espaço de articulação de movimentos populares, está propondo uma série de atividades contra os acordos de livre comércio. Em outubro, serão agendados protestos na Assembléia Legislativa e no Ministério de Comércio Exterior. (Alai)
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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA
Bloqueios e greves pressionam presidente Aizar Raldes/AFP
Trabalhadores, indígenas, estudantes e camponeses se mobilizam contra as políticas neoliberais e paralisam La Paz
A
tensão na Bolívia aumentou, dia 29 de setembro, com o início de uma greve que paralisou a cidade de La Paz. A chamada “guerra do gás” bate à porta da débil presidência de Gonzalo Sánchez Lozada, enquanto se abrem outras frentes de conflito. Em protesto contra a exportação de gás via Chile – uma operação gerenciada por empresas estrangeiras – milhares de pequenos comerciantes e ambulantes obrigaram os grandes estabelecimentos a aderir à paralisação. Estudantes saíram às ruas do centro de la Paz. Há quinze dias, camponeses interrompem as rotas de comunicação com o Peru e com o Chile. Os conflitos já fizeram sete mortes. Na Bolívia se dá uma das maiores batalhas contra o modelo neoliberal – que tenta implantar, em um país em forte crise, um presidente “claramente incapaz”, segundo os dirigentes sociais bolivianos. Eles asseguram que Lozada está acuado pela greve convocada pela Central Trabalhadora Boliviana (COB, na sigla em espanhol), assim como por uma onda de demandas setoriais, pelas atividades de movimentos indígenas e camponeses dispostos a bloquear caminhos para evitar a “morte lenta” que o governo lhes impõe. A COB obteve adesões importantes em La Paz. Como a de um sindicato da área de transportes, que ameaça cercar a sede do governo. E a da Federação de Professores Urbanos, que convocou uma greve da categoria dia 30 de setembro. A associação de açougueiros anuncia a suspensão das vendas de seus produtos. Sindicatos de Cochabamba advertiram que podem se juntar aos manifestantes
Apesar da forte repressão militar, bolivianos continuam protestando nas ruas contra a exportação do gás natural
mobilizando-se até La Paz, que está “isolada” pelos bloqueios de estradas. Os mineiros também sinalizam integrar-se aos protestos. Felipe Quispe, dirigente nacional dos camponeses e do partido Movimento Indigenista Pachacuti, que coordena os bloqueios de rotas contra a venda de gás por um porto chileno, informou: “Esse
governo deve renunciar porque não quer atender nossas solicitações. E estamos dispostos a intensificar os bloqueios de rotas de produtos agropecuários”. Quispe contestou a veracidade de fotos divulgadas pelo governo onde jovens aparecem recebendo treinamento guerilheiro em Cochabamba. Ele diz que se trata de uma manobra
para justificar medidas como um eventual Estado de sítio, que teria sido aconselhado por assessores da embaixada dos Estados Unidos. As exigências dos trabalhadores ao Executivo são várias, mas o eixo central é a oposição à venda de gás natural descoberto no Sul de Tarija, próximo à fronteira com a Argentina. Eles não querem que
Triplica a ajuda militar dos Estados Unidos na AL
Lula estreita laços com Cuba Luís Brasilino da Redação
Dia 23, o presidente Lula foi muito aplaudido ao discursar na abertura da Assembléia Geral das Nações Unidas. No dia seguinte, em declaração à imprensa, mostrou pulso firme nas negociações sobre comércio internacional e a relação Brasil-EUA. “Eu não sou de ficar chorando como alguns países pobres. No movimento sindical, aprendi que nenhum interlocutor respeita quem age com submissão”, disse à Agência Brasil. Segundo o presidente, o G-22 (grupo de países em desenvolvimento liderado pelo Brasil) “é prova de que os países em desenvolvimento devem disputar mercados e conquistar condições de igualdade”. Antes de chegar a Cuba, Lula visitou o México, onde defendeu uma maior aproximação entre os dois países.
Jim Lobe de Washington (EUA)
Antonio Milena/ABR
“A melhor visita que Cuba já teve em todos os tempos”. Assim o presidente cubano Fidel Castro avaliou a passagem do chefe de Estado brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva pela ilha, nos dias 26 e 27. O objetivo da viagem era aumentar a integração de Cuba com a comunidade latino-americana. Para a imprensa cubana, as reuniões serviram para consolidar amizade e cooperação mútuas, estreitando as relações entre os dois países. No encontro foram fechados 12 acordos em diversas áreas, totalizando R$ 200 milhões. Um dos destaques foi o acordo firmado no setor de energia. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
investirá R$ 20 milhões na construção de uma usina de álcool combustível em Cuba. Além disso, foram estabelecidas novas condições para a quitação da dívida de R$ 134 milhões com o Banco do Brasil. Entretanto, grande parte da imprensa brasileira focou a cobertura jornalística no fato de Lula não ter tocado na questão dos direitos humanos durante a viagem. Os jornalistas chamaram a atenção para os presos políticos mantidos na ilha, mas dias antes não se comportaram da mesma forma quando Lula encontrou-se com o presidente dos Estados Unidos George W. Bush. Em nenhum momento lembraram que, em 2003, o líder estadunidense comandou intervenções em diversas partes do mundo, que resultaram em milhares de mortos.
A ajuda militar dos Estados Unidos para a América Latina mais do que triplicou nos últimos cinco anos. É o que consta do relatório Tendências nos Programas Militares Estadunidenses para a América Latina, apresentado dia 22 de setembro por três organizações não–governamentais dos EUA, o Fundo de Educação do Grupo de Trabalho sobre a América Latina (Lawgef, a sigla em inglês), Centro para a Política Internacional (CIP) e Escritório de Washington para a América Latina (Wola). De acordo com o estudo, o governo Bush intensificou o treinamento de forças da Ásia Central e Sudeste e do Oriente Médio, mas os soldados e policiais latino-americanos constituem a maioria: 13 mil (metade na Colômbia), em um total de 34 mil. “Apesar da pobreza na América Latina, aumenta a ênfase dos EUA na ajuda militar em relação à econômica”, disse a diretora-executiva do Lawgef, Lisa Haugaard. A Colômbia é o principal rumo de ajuda estadunidense de todo o mundo, depois de Israel e Egito.
FALTA TRANSPARÊNCIA
Os presidentes Lula e Fidel: no encontro foram fechados 12 acordos em diversas áreas, totalizando R$ 200 milhões
o gás seja vendido aos Estados Unidos, muito menos por um porto chileno, país que ficou com a saída para o mar que pertencia à Bolívia, depois da Guerra do Pacífico, em 1879. Além disso, destacam que os encarregados da transação ficaram com a melhor parte do negócio, deixando apenas “migalhas” para os bolivianos. Os protestos se concentram especialmente no altiplano, mas outros setores se incorporam ao movimento que, nas últimas semanas, montou uma coordenação de todos os participantes. Ao redor do lago Titicaca, os trabalhadores bolivianos continuam fechando vias de trânsito, desafiando uma lei que proíbe esses protestos com penas graves, segundo informações de representantes do governo, que declarou a greve ilegal. O poder executivo, no entanto, não deu mostras de voltar atrás na decisão de vender o gás, tampouco em relação às medidas de ajuste econômico – como achatamento salarial e aumento de impostos – por meio das quais tenta reduzir o enorme déficit fiscal. Chama a atenção que os integrantes do Mercado Comum do Sul, do qual a Bolívia faz parte, não tenham tomado medidas para ajudar na dramática situação enfrentada pelo país – quase cem pessoas morreram em conflitos sociais, desde janeiro. Na Argentina, setores sociais e personalidades como o Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, pediram solidariedade com o povo boliviano em sua luta “pela soberania e pela defesa de seus recursos naturais e humanos”. (Reportagem publicada no jornal La Jornada)
As organizações revelam preocupação com os crescentes obstáculos para obter informações sobre os programas militares dos EUA na América Latina. O governo Bush rechaça sistematicamente as solicitações do Congresso a respeito de informações sobre treinamento militar, exercícios conjuntos e equipamentos fornecidos a países latino-americanos.
O governo transferiu muitos programas do Departamento de Estado para o da Defesa, cujo orçamento, de 400 bilhões de dólares anuais, é muito mais difícil de controlar. Para a diretora do Wola, Joy Olson, o controle civil das forças armadas latino-americanas sempre foi muito fraco. A campanha de militarização estadunidense começou com o presidente Bill Clinton (1993-2001), particularmente com o lançamento do Plano Colômbia contra a guerrilha e o narcotráfico, em 2000. Mas a tendência se agravou com o governo Bush. Para o ano fiscal de 2004, que começa em 1º de outubro, o governo solicitou 874 milhões de dólares em assistência militar e policial aos países latino-americanos contra os 946 milhões de dólares destinados a programas econômicos e sociais. Durante a Guerra Fria, a ajuda militar e policial à América Latina era menos da metade da social e econômica. Porém, o aumento atual acontece quando 40% da população está submersa na pobreza. Quanto à Colômbia, dos 533 milhões de dólares de assistência total para 2004, à ajuda social e econômica correspondem apenas 136 milhões de dólares. O Brasil recebeu 21 milhões de dólares em assistência militar e de segurança no ano fiscal 2002/2003, valor ligeiramente menor do que ao da ajuda social e econômica. No Equador a relação se inverteu: 46 milhões em ajuda econômica e 40 milhões em assistência militar este ano, para 40 milhões e 49 milhões no ano que vem. Até mesmo a Costa Rica, país que não possui Exército, receberá no próximo ano mais ajuda militar do que econômica. (IPS)
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INTERNACIONAL ENTREVISTA
Escola treina torturadores latinos Kathy - Estávamos num grupo de 85 pessoas, numa manifestação, em novembro de 2002. Cruzamos a linha até a base da Escola das Américas, onde já havia uma barreira policial. Todos foram acorrentados e presos. Essa foi uma mudança significativa na postura dos policiais – eles nunca tinham procedido assim em protestos pacíficos. Fomos levados para uma cela e tivemos que pagar 500 dólares de fiança. Durante essa noite na prisão, nossos medicamentos foram tomados. Eu tenho pressão alta, não posso ficar sem remédio. Fiquei detida por 24 horas; outros ficaram dois dias. Tivemos que voltar dois meses depois para o julgamento. Eu disse que não era criminosa e não tinha passado a linha ilegalmente porque a base era aberta. Mas, especificamente no dia em que nos manifestávamos, a base foi fechada. Das 85 pessoas, 51 foram condenadas. Eu fui para a prisão federal feminina no Estado de Ilinois, onde fiquei por três meses. Em abril, 7 mil manifestantes foram a Washington protestar no Congresso. Nós trabalhamos em duas frentes, fazemos o protesto nas ruas e vamos a Washington pedir ao Congresso que modifique as leis.
Tatiana Merlino da Redação
“A
Escola das Américas é uma escola de assassinos. É um pequeno pedaço de todo o projeto de dominação e militarização dos Estados Unidos na América Latina”, afirma a freira estadunidense Kathleen Long. Kathy, como é conhecida, saiu da prisão em julho, após ter cumprido pena de três meses por ter ocupado a sede da Escola das Américas, em Columbus, Estado da Geórgia, em novembro de 2002. Em entrevista ao Brasil de Fato, Kathy conta como é a luta para fechar a Escola e defende a união dos países da América Latina para combater o processo de militarização mundial. Brasil de Fato – O que é a Escola das Américas? Kathleen Long– É uma escola de treinamento militar estabelecida no Panamá, em 1946, pelo governo estadunidense. Em 1984, mudou-se para a Georgia (EUA), onde funciona até hoje treinando militares, gratuitamente, para os países de América Latina. Interessa ao governo bancar esses custos, pois faz parte do padrão de defesa do país. Em 2001, houve uma votação no Congresso em favor do fechamento da Escola, mas apenas o nome da instituição foi modificado para Western Hemisphere Institute for Security Cooperation (Instituto do Hemisfério Ocidental para Cooperação em Matéria de Segurança).
BF – Como está o pedido para fechar a Escola das Américas? Kathy – Por causa da guerra no Iraque, esse assunto, entre muitos outros, foi colocado de lado no Congresso. Existem parlamentares favoráveis a um estudo para analisar os impactos do treinamento militar. Mas é difícil, pois o governo convidou muitos
BF – Como foi a manifestação em que a senhora foi presa?
Renato Stockler
Recém-saída da prisão, freira estadunidense fala sobre as mobilizações pelo fechamento da Escola das Américas
Quem é Freira dominicana, a estadunidense Kathleen Long é ativista da paz nos Estados Unidos e pertence à organização Observatório da Escola das Américas.
senadores para ir à escola e ver quão maravilhosa ela é. Muitos também foram convidados para ir à Colômbia conversar com militares que consideram o treinamento muito bom. BF – É possível visitar a instituição? É fácil verificar que o treinamento é voltado para a repressão e tortura? Kathy – Claro, qualquer um pode fazer isso. Eles têm visitas monitoradas, a base é aberta, não é nenhuma identificação especial. A escola tem dois prédios e uma base militar enorme. Está em uma área pequena dentro de uma grande base do exército americano. Na entanto, a maioria das coisas é mantida em segredo. Eles negaram, mas nós conseguimos provar que há manuais de repressão e tortura. Em 1996 eles admitiram ter esses manuais, dos quais há cópias na página da Internet do Observatório da Escola das Américas. (www.soaw.org).
HOMENAGEM
BF – Vocês têm provas da sua atuação da Escola nas ditaduras militares na América Latina? Kathy – Sim, em quase todos os países da América Latina e da América Central. Havia brasileiros lá, nos anos 60 e 70, durante a ditadura militar. Apesar das provas terem sido acobertadas por anos, os arquivos tornaram-se públicos. Os EUA puseram Pinochet no poder, ele foi apoiado pelo serviço militar americano... isso é terrível! Nos anos 80, com guerra civil em El Salvador, na Guatemala e na Nicarágua, a escola estava cheia. Recentemente, havia peruanos. Há estudantes dos países onde existe guerra na América Central e na América do Sul. Temos evidências de que pessoas graduadas na Escola das Américas estão atuando na Colômbia, e o governo estadunidense está enviando tropas para proteger o petróleo de lá. BF – Como têm sido as mobilizações e protestos pedindo o fechamento da Escola?
BF – Os países latino-americanos, em especial o Brasil, podem ajudar a conter a militarização e obter o fechamento da Escola? Kathy – O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na semana passada, condenando a militarização nas Nações Unidas, foi uma ajuda maravilhosa. Há pessoas nos Estados Unidos que não apóiam o presidente Bush e nós precisamos do apoio de países estrangeiros contra a militarização. Os Estados Unidos têm muito dinheiro, mas usado de forma errada, para comprar helicópteros, armas, para treino militar. Isso tem que parar.
ISRAEL
Morre um lutador da causa palestina José Arbex Jr. da Redação
Pilotos são punidos por não bombardear civis
France Press
da Redação
Edward Said sempre foi contrário a uma aproximação com Israel
ciência de que preconceitos culturais e religiosos, construídos ao longo de séculos de colonialismo exercido pela potências européias e depois pelos Estados Unidos, criaram no ocidente uma perspectiva falsa sobre quem são os árabes e o “mundo islâmico” (que, de fato, estão muito longe de constituir um todo homogêneo). Sem abandonar suas atividades acadêmicas, Said tornou-se comentarista de rádio e televisão, articulista de vários jornais (incluindo o New York Times) e membro do Conselho Nacional Palestino (parlamento no exílio), até 1991, quando renunciou, como protesto contra os Acordos de Oslo, que, segundo ele, prenunciavam uma tragédia para o povo palestino. Em julho de 2002, já muito debilitado pela leucemia, ajudou a criar a Iniciativa Nacional Palestina (Mubadara), um grupo de oposição a Yasser Arafat (a quem acusava de prática de despotismo e corrupção), que defende um programa de construção de um
Estado palestino democrático. Said deixou várias outras obras importantes, algumas editadas no Brasil: Reflexões sobre o exílio (Companhia das Letras, 2003), Cultura e imperialismo (Companhia das Letras, 1995) e Cultura e política (Boitempo, 2003).
Pacifistas participam, em Paris, de manifestação contra a invasão anglo-estadunidense do Iraque e a ocupação da Palestina, dia 28. A iniciativa reuniu, simultaneamente, milhares de pessoas em outras cidades da Europa e de outros continentes. “Não mais guerra, não mais mentiras”, “Devolvam o Iraque aos iraquianos”, “Bush, criminoso de guerra”, “Tio Sam, o Iraque será o seu Vietnã”, “Ocupantes fora, liberdade para a Palestina e o Iraque” foram algumas das palavras de ordem ouvidas nas manifestações.
Stephane de Sakutin/AFP
No dia 25, os que lutam pelo direito do povo palestino ao seu próprio Estado soberano amargaram a perda de um de seus mais importantes expoentes: morreu o professor Edward Said, após onze anos de luta com a leucemia. Palestino nascido em Jerusalém, em 1935, Said era um dos mais importantes intelectuais de nossa época. Seu livro Orientalismo, editado no Brasil pela Companhia das Letras, é um clássico necessário a todos os que queiram entender o imperialismo e os mecanismos de construção cultural do estrangeiro como encarnação do exótico sempre estigmatizado como marginal, obscuro e inferior. Graduado em Princeton e pósgraduado em Harvard, professor de Literatura Comparada na universidade de Columbia (Nova York), exímio pianista (formado na escola Juilliard de Música), Said tornou-se expoente de uma corrente internacional de estudos pós-coloniais, formada por historiadores, pesquisadores literários e críticos da cultura. Sua família deixou Jerusalém em 1947, após a partição da Palestina. Viveu alguns anos no Cairo, antes de mudar-se para os Estados Unidos. Como ele mesmo diz, o problema de sua identidade palestina começou a colocar-se com força a partir da Guerra dos Seis Dias (junho de 1967), quando Israel invadiu a parte árabe de Jerusalém e os territórios da Cisjordânia e Faixa de Gaza. Chocado pela parcialidade primitiva da cobertura jornalística da guerra, Said desenvolveu a cons-
Kathy – Tudo começou com o padre Roy Bourgeois, um missionário na Bolívia e grande ativista de direitos humanos. Em 1980, quatro mulheres religiosas foram torturadas, estupradas e assassinadas em El Salvador. Duas delas eram amigas do padre, que começou a investigar e descobriu a Escola das Américas. Ele começou a protestar em 1982. Em 1997, éramos duas mil pessoas; em 1999, dez mil. Nos últimos quatro anos tivemos de oito a dez mil pessoas nas manifestações. A Escola é um pequeno pedaço de todo o projeto de dominação e militarização do meu país na América Latina. De acordo com um estudo da Anistia Internacional, a cada ano, os Estados Unidos treinam 100 mil policiais e soldados em mais de 150 países. Há aproximadamente 275 escolas militares e instalações. A Escola das Américas é apenas uma delas.
O exército israelense proibiu de voar os 25 pilotos que se negaram a realizar operações nos territórios palestinos ocupados, segundo informou uma fonte militar em reportagem publicada no jornal mexicano La Jornada, dia 25. Em uma carta destinada ao comandante Dan Haloutz, da Força Aérea, divulgada dia 24, os pilotos declararam não querer mais “obedecer ordens ilegais e imorais”, e se recusam a “participar de ataques aéreos contra centros de população civis” na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. No início de 2002, 52 oficiais e soldados reservas do exército israelense também tinham se manifestado publicamente contra as operações em territórios palestinos. “Não continuaremos a combater além da linha verde (que separa Israel da Cisjordânia ao longo de 350 km) com o objetivo de oprimir,
expulsar e humilhar um povo”, escreveram, numa petição que reuniu várias centenas de assinaturas. Desde 19 de agosto, Israel matou 12 militantes do Hamas em ataques aéreos. Os ataques com mísseis contra líderes palestinos mataram várias pessoas que estavam perto dos alvos. Um grupo bastante ativo em Israel vem se recusando a servir nos territórios palestinos, mas a carta foi o primeiro protesto em separado dos pilotos. Enquanto isso, o secretário de Estado, Colin Powell, disse na Organização das Nações Unidas (ONU) que o “quarteto” (Estados Unidos, Rússia, Nações Unidas e União Européia) está decidido a fazer cumprir o “mapa da rota” que tem como objetivo alcançar a paz na região do Oriente Médio e sustenta a formação de um novo governo palestino. (com La Jornada e Diário Vermelho)
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INTERNACIONAL
ÁFRICA
Mestre da tradição oral do Mali é publicado no Brasil Fortier/CGF 1906-1907
S
ua frase mais conhecida diz que “na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”. Seu nome é Amadou Hampâté Bâ, nascido em Bandiagara, no Mali, em 1900 e morto em 1991. Historiador, etnólogo (estudioso dos aspectos sociais e culturais de um povo), romancista, lingüista e embaixador da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), dedicou sua vida a salvar do esquecimento valiosas narrativas da tradição oral da África. Seu livro é “Amkoullel, o Menino Fula”, uma autobiografia, primeira obra de sua autoria publicada no Brasil, uma co-edição da editora Palas Athena e da Casa das Áfricas, o mais novo centro de estudos sobre a África em São Paulo. Nesta autobiografia, Hampâté Bâ trata das tradições da savana africana, que se estende, conforme ele explica, de leste a oeste ao sul do Saara, do povo fula e bambara, cuja cultura ele conhecia por dentro. Os fulas são um povo islamizado cujos traços físicos variam entre negróides e não negróides, e que vivem disseminados pela África ocidental, do lago Tchad à costa atlântica, especialmente no Níger, na Nigéria, no Mali, na Guiné e em Camarões. Hampâté Bâ era de uma família fula muçulmana Sobre os fulas, o autor diz: “Quanto aos sábios e pesquisadores europeus, talvez intrigados com a aparência física dos fulas, de tez relativamente clara (mas que pode tornar-se mais escura segundo o grau de mestiçagem), nariz longo e reto e lábios freqüentemente muito finos, tentaram encontrar a solução para este enigma (...) De qualquer maneira – e aí reside a profunda originalidade dos fulas – através do tempo e do espaço, das migrações, das mestiçagens, das contribuições
Cidade de Bandiagara, no Mali, fotografada no início do século 20
Trecho do capítulo “A Escola dos Brancos”
Mercado perto de Bandiagara, no Mali, cidade onde nasceu Hampâté Bâ
exteriores e das inevitáveis adaptações ao meio ambiente, eles souberam manter sua identidade e preservar sua língua, seus fundamentos culturais extremamente ricos e, até a época de sua islamização, suas tradições religiosas e iniciáticas.” Hampâté Bâ transcreve na biografia parte da vasta herança oral que recebeu de seus ancestrais, recompondo desde o seu passado de menino fula, passando por seu processo de colonização como aluno de uma escola francesa no Mali, sua carreira de jovem funcionário da administração colonial até sua formação como pesquisador e coletor de narrativas orais de sua região. “Amkoullel, o Menino Fula” é
um texto saboroso de se ler, pela simplicidade e pela vivacidade de imagens com que o autor vai levando o leitor a penetrar na cultura e na história de um pedaço da África pouco conhecido dos leigos O livro tornou-se um bestseller por conta de uma feliz combinação de humor e seriedade, pela mistura do conhecimento que vem de dentro com o talento poético de Hampâté Bâ. Por seu trabalho de pesquisa de campo, coleta e transcrição das narrativas orais de seu povo, o escritor tornou-se referência no empenho para que a tradição oral africana seja reconhecida como fonte legítima de conhecimento histórico.
Parte do país fica no deserto
estrado... Eu pego o pano molhado com a mão esquerda e um pedaço de giz branco com a mão direita... Eu limpo o quadro-negro... Eu escuto o mestre... Ele me dita uma frase... Eu tento escrevê-la sem erros... O mestre me manda voltar para meu lugar... Eu volto orgulhoso...’ etc. Graças a este método, levei pouco tempo para conseguir me exprimir em francês. Isto não tem nada de espantoso quando se pensa que a maior parte das crianças africanas, vivendo geralmente em ambientes onde coabitavam diversas comunidades étnicas (em Bandiagara havia fulas, bambaras, dogons, hauçás...), já eram mais ou menos poliglotas e habituadas a absorver uma nova língua com tanta facilidade quanto uma esponja se embebe de líquido.”
Obra: Amkoullel, o Menino Fula Autor: Amadou Hampâté Bâ Tradução (do francês): Xina Smith de Vasconcellos Editora: Casa das Áfricas/ Palas Athena Tels.: (11) 3209-6288 3801-1718
Mar Mediterr dite âneo
ARGÉLIA
MAURITÂ IT NIA
MALI
NÍGER
SEN ENEGAL
Bamaco BURKINA INA NA FASSO
GUINÉÉ
COSTA DO MARFIM M IM
Mesquita Dedjenné, no Mali
OCEANO ATLÂ TL NTICO TLÂ
Fortier/CGF 1906-1907
Parte do território do Mali está localizada no deserto do Saara, região habitada por nômades tuaregues, grupo étnico conhecido por seu espírito guerreiro. A maior parte da população se concentra nas regiões central e sul, onde as terras banhadas pelo rio Níger são melhores para a agricultura, principal atividade econômica. Os principais produtos exportados são algodão e ouro. Em 1854, a França invadiu a atual região do Mali e a transformou em parte da África Ocidental Francesa, após sete anos de guerra contra a população local. É quando a região passa a se chamar Sudão Francês. Em 1959, juntamente com o Senegal, o território ultramarino do Sudão Francês transformou-se na Federação do Mali, que durou pouco mais de um ano. A independência foi conquistada em 1960. O primeiro regime do país independente foi o socialismo. O multipartidarismo foi instaurado em 1992, com Alpha Oumar Konaré na presidência. Nos anos 90, ocorreram conflitos entre o exército e cerca de 230 mil tuaregues que voltavam ao Mali, de onde haviam saído para fugir da seca. Um acordo em 1992 estabeleceu medidas para integrar os tuaregues à economia e à vida política, mas os conflitos continuaram. Em abril de 2002, as eleições presidenciais deram vitória ao general reformado Amadou Toumani Touré. Foi a primeira vez que um presidente eleito no Mali entregou o poder a um sucessor também eleito.
“Não saberia descrever por que processo os novos alunos logo aprendiam a falar o francês, porque o mestre não traduzia para a língua local absolutamente nada das lições que ministrava. A não ser em algum caso especial, estávamos proibidos de falar as línguas maternas na escola, e quem fosse pego em flagrante delito via-se paramentado com um cartaz infamante que chamávamos ‘símbolo’. O principal método era o da ‘linguagem em ação’. Cada aluno devia dizer em voz alta as palavras (ensinadas no início pelo mestre) que descreviam seus gestos e sua ação naquele momento. Rudimentares no princípio, com o tempo as frases tornavam-se mais ricas e complexas. O mestre, por exemplo, mandava um menino ao quadronegro. Levantando-se, o menino gaguejava com voz cantante e arrastada: ‘O mestre me manda ir ao quadro-negro... Eu me levanto... eu cruzo os braços no peito... Eu saio do banco... Eu me dirijo ao quadro-negro... Eu me aproximo do estrado sobre o qual está a escrivaninha do mestre... Eu subo no
Daniela Moreau
Marilene Felinto da Redação
Daniela Moreau
O escritor Hampâté Bâ coletou e transcreveu narrativas de povos que habitam a região do deserto do Saara
MALI Deserto do Saara De
Mopti pti
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Níg
Bandiag Bandiaga diag iagar iaga agara
Bamaco maco OCEANO ÍNDICO
Mali Localização: África ocidental Nacionalidade: malinesa Principais Cidades: Bamaco (capital), Ségou, Mopti Línguas: francês (oficial), bambara, fulani, sonrai, tuaregue, soninke, do gon, árabe Divisão política: 8 regiões e 1 distrito. Regime político: república presidencialista População: 12 milhões (2002) Moeda: franco CFA (Comunidade Financeira Africana) Religiões: islamismo (81,9%), animismo, cristianismo Hora Local: +3h
Fiandeiras de algodão, no Mali, fotografadas no início do século 20 FATOS DA ÁFRICA Nigéria – A nigeriana Amina Lawal, 31 anos, livrou-se da pena de morte por apedrejamento no dia 25 de setembro. Condenada por ter tido um filho sem estar casada, Lawal apelou da sentença decretada por uma corte islâmica em março de 2002. Um tribunal de Katsina, Estado do norte da Nigéria que aplica o sistema de leis islâmico conhecido como sharia, anulou a sentença.
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AMBIENTE BIOPIRATARIA
Continua a guerra pelo cupuaçu da Redação
o dia 13, a entidade acreana Amazonlink pretende encaminhar uma “contestação popular” ao processo de patenteamento da “produção e do uso da gordura da semente do cupuaçu”. O processo foi iniciado pelo European Patent Office, órgão responsável por patentes na União Européia. A “contestação popular” da entidade ambientalista pede o indeferimento do processo com base no não-cumprimento de requisitos básicos da Lei de Patentes: a produção e o processamento de gordura de cupuaçu é usada há muito tempo pelas comunidades da região amazônica e o cupulate (chocolate produzido a partir da semente do cupuaçu) foi desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa. Essa é apenas uma das batalhas em defesa do cupuaçu. Continua causando polêmica o compromisso firmado entre o governo do Pará e o representante de duas emCupuaçu – Fruta presas japonetípica da região amasas que regiszônica, cuja polpa é vendida entre R$ 2 traram o nome e R$ 4 o quilo. Em cupuaçu como 2002, o Estado do marca no exteAmazonas exportou cerca de 150 tonerior. O regisladas de semente tro, obtido no de cupuaçu para o Japão, EuroJapão. pa e Estados Unidos, é duramente contestado por autoridades e organizações não governamentais nacionais, que o classificam de biopirataria. O caso foi denunciado em janeiro pela Amazonlink, quando empresas brasileiras passaram a ter dificuldades para exportar produtos de cupuaçu para a Europa. A marca, registrada pelas
N
Biopirataria é crime Biopirataria é o contrabando de diversas formas de vida da flora e fauna. Inclui também a apropriação e a monopolização dos conhecimentos das populações tradicionais no que se refere ao uso dos recursos naturais. Em 1992, durante a ECO-92 no Rio de Janeiro, foi assinada a Convenção da Diversidade Biológica, que visa, entre outros, a regulamentação do acesso aos recursos biológicos e a repartição dos benefícios oriundos da comercialização desses recursos para as comunidades. Dez anos depois, em maio de 2002, houve em Rio Branco (AC) o workshop “Cultivando diversidade”. Participaram mais de 100 representantes de agricultores, pescadores, povos indígenas, extrativistas, artesãos e ONGs de 32 países da Ásia, África e América Latina. Eles formularam o “Compromisso de Rio Branco”, requerendo, entre outros, que o patenteamento de seres vivos e qualquer forma de propriedade intelectual sobre a biodiversidade e o conhecimento tradicional sejam banidos. empresas gêmeas Asahi Foods e Cupuacu International, impede que qualquer outro empreendedor utilize o nome cupuaçu – fruto típico da Amazônia – em seus produtos, nem mesmo como ingrediente. OFENSA À SOBERANIA “É uma ofensa à soberania nacional. Seria o mesmo que retirar uma palavra do dicionário”,
Fotos: Amazonlink
Registro do nome e patenteamento do uso do fruto geram protestos de ambientalistas contra as transnacionais
A produção e o processamento de gordura de cupuaçu são usados há muito tempo pelas comunidades da região amazônica
uma ação na Justiça japonesa para anular o registro da marca. O presidente da Cupuaçu International Inc., Mack Nagasawa, se comprometeu a não recorrer de uma ação do governo pedindo o “repatriamento da marca”, mas a Asahi Foods apresentou defesa ao Escritório Japonês de Marcas e Patentes (JPO) e a ação administrativa estuda a réplica até o final deste mês, quando o
diz Luiz Otávio Beaklini, do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). O registro, segundo ele, vai claramente contra as normas de patente brasileiras e japonesas. “O nome de uma matéria-prima não pode ser uma marca”, completa. Em março, o Grupo de Trabalho da Amazônia (GTA), organização que congrega 430 entidades amazônicas, entrou com
IRAQUE
VIETNÃ
Greenpeace
Urânio empobrecido deixa seqüelas Katherine Stapp de Nova York (EUA) Diversas doenças estão atingindo soldados estadunidenses no Iraque. Junte-se a isso o alarmante nível de radiação em algumas regiões de Bagdá e tem-se a dimensão da preocupação com a contaminação com urânio empobrecido e outros elementos tóxicos no país árabe. O jornal The Washington Post informa que mais de 6 mil soldados estadunidenses foram retirados do Iraque por razões médicas desde o começo da guerra. Cerca de 1.400 foram feridos em combate ou acidentes, mas os restantes contraíram doenças físicas ou mentais. Em julho, o exército anunciou a morte de dois soldados por pneumonia severa e a hospitalização de mais de 100 homens vítimas da doença. Existem várias evidências da falta de proteção dos soldados estrangeiros estabelecidos no Iraque e da população civil por causa dos resíduos tóxicos espalhados, ao que parece, pela guerra. O jornalista Christian Science Monitor percorreu algumas áreas de Bagdá submetidas, de 20 de março a 1º de maio, a fortes bombardeios das forças armadas lideradas por Washington.
DOENÇAS CONGÊNITAS Em várias zonas residenciais, o nível de radiação era entre 1.000 e 1.900 vezes maior que o normal. Uma explicação possível é a presença de urânio empobrecido no ambiente. A substância, geralmente aliada ao titânio, é usada na fabrica-
caso entra em fase de avaliação final. A Campanha Nacional contra a Biopirataria, liderada pelo GTA e pela AmazonLink.org, continua colhendo assinaturas contra os registros e as patentes do cupuaçu no exterior. Para participar, visite a página: www.amazonlink.org/ biopirataria
Povo iraquiano sofre com os efeitos nocivos do urânio enriquecido
ção de projeteis com grande poder de penetração em tanques e outros veículos blindados. As forças invasoras no Iraque dispararam os projeteis a partir dos tanques M1A1 e M1A2 Abrams, estadunidenses, e Chalenger, britânicos, assim como veículos de combate Bradley e aviões A10, conhecidos como “quebra-tanques”. Ao estourar, as munições dispersam as partículas de urânio em amplas áreas e podem ser inaladas ou ingeridas com alimentos. As munições de urânio empobrecido foram utilizadas pela primeira vez na guerra do Golfo, de 1991, e amplamente utilizadas na Bósnia- Herzegovina, na província servia de Kosovo e no Afeganistão, em 2001. Especialistas calculam
que foram liberados ao menos 200 toneladas de urânio empobrecido na guerra do Iraque. Dois médicos iraquianos asseguraram que os casos de câncer na região meridional de Basora cresceram 1.000% desde 1988. O médico Janan Ghalib Hassan diz que os casos de crianças nascidas com defeitos congênitos aumentaram de 37 em 1990 para 611 em 2001. Alguns estudos determinam que as munições com o material aumentam o risco de câncer infantil, defeitos congênitos e outros danos à saúde a longo prazo. O governo estadunidense nega e, em um recente informe chamado “Aparato de mentiras”, o Departamento de Estado atribui as versões de doenças ao governo iraquiano.
Agente laranja usado na guerra ainda faz vítimas Katrin Dauenhauer de Washington (EUA) Vinte e oito anos depois do fim da Guerra do Vietnã, veteranos e civis vítimas do conflito e seus descendentes ainda sofrem os efeitos devastadores do “agente laranja”, herbicida que as forças dos Estados Unidos lançaram sobre as selvas do país asiático. Os defeitos congênitos resultantes da intoxicação pelo produto persistem na geração de netos dos veteranos e vítimas da guerra, tanto nos Estados Unidos quanto no Vietnã. O ciclo parece não ter fim. Pesquisadores afirmam que no Vietnã cerca de 650 mil pessoas sofrem enfermidades crônicas e outras 500 mil morreram em razão do efeito dos herbicidas usados na guerra pelas forças estadunidenses, na tentativa de impedir que o inimigo se escondesse na profunda vegetação selvagem. “Esse é um problema do passado, com conseqüências de longo prazo que devem ser atendidas”, advertiu o médico Wayne Dwernychuk. Ele é vice-presidente da Hatfield Associates, agência de consultoria sobre impacto ambiental, com sede em Vancouver, no Canadá.
GUERRA QUÍMICA Um estudo feito por Dwernychuk e outros cientistas ambientais concluiu que, em lugar de se dispersar naturalmente, a dioxina do agente laranja permaneceu no solo vietnamita em concentrações mais de cem
vezes acima do nível considerado seguro para a agricultura no Canadá. A dioxina é um composto altamente persistente que pode permanecer no meio ambiente durante décadas e causar câncer, defeitos congênitos e outros problemas de saúde. Entre 1961 e 1971, forças militares dos Estados Unidos despejaram mais de 72 milhões de litros de agentes herbicidas sobre o Vietnã, entre eles 45 milhões de agente laranja. Por muito tempo o governo estadunidense negou-se a reconhecer o vínculo entre as enfermidades crônicas de seus veteranos de guerra e o uso de herbicidas. Finalmente, em 1988, sob pressão do ex-comandante da Marinha norte-americana no Vietnã, almirante Elmo Zumwalt, o Pentágono elaborou um relatório que vinculava o agente laranja a 28 enfermidades, entre elas defeitos congênitos e neurológicos, doenças da pele e diversos tipos de câncer. Embora as autoridades militares alegassem que desconheciam os terríveis efeitos dos herbicidas sobre os seres humanos, o cientista militar James Clary admitiu, em 1988, que na verdade eram conhecidos. “Quando iniciamos o programa de herbicidas nos anos 60, sabíamos o mal que poderia ser causado pela dioxina desses produtos”, escreveu Clary em carta a um congressista que investigava o agente laranja. “Entretanto, como o material seria usado contra o inimigo, o assunto não nos preocupava”, admitiu. (IPS/Envolverde)
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DEBATE SEGURANÇA ALIMENTAR
A disputa dos transgênicos Frei Sérgio Görgen que está em disputa com os transgênicos na sociedade brasileira é muito mais do que a liberação de uma semente de soja. A sociedade brasileira vai decidir nos próximos anos quem vai controlar a produção de alimentos no Brasil: se uma agricultura nacional com forte base na agricultura de pequeno e médio porte ou grandes unidades produtivas e grandes latifúndios sob controle tecnológico, industrial e comercial de poucas grandes transnacionais. A liberação de transgênicos patenteados por estas multinacionais aponta para o segundo modelo. Caso este modelo seja realmente vitorioso, aumentará a miséria no campo e o êxodo rural; aumentará a concentração de capital, terra e renda; a dependência tecnológica do país será ainda maior; aumentará o desemprego e o caos urbano; haverá uma ainda maior monopolização do mercado de alimentos. Todas as mazelas do modelo neoliberal que tanto tem desgraçado o povo brasileiro só se aprofundarão, como já aconteceu na agricultura da Argentina nos últimos cinco anos. Foi justamente contra isto que a esquerda lutou e deu o melhor de sua militância nos últimos anos. O PT, que transformou-se no grande desaguadouro dos sonhos da esquerda, não pode, no governo, sob os primeiros bafos da pressão das transnacionais dos transgênicos, ceder em questões estratégicas. E vejam a ironia da contradição. O governo, apertado pelo fato consumado criado para impor os transgênicos sem nenhum controle em território brasileiro, cede.
O
O governo poderia, pelo menos, apertar as indústrias de alimentos e forçá-las à rotulagem e não o faz. Comportando-se assim, o governo do PT contribuiu para uma derrota política da própria base petista – movimentos sociais
do campo, ambientalistas, consumidores, agricultores orgânicos e agroecológicos – enquanto deixa correr solto o grande capital que atua em todas as fases da cadeia produtiva agrícola e alimentar. O mundo está entrando numa nova fronteira da ciência, com a possibilidade de transferir em laboratório material genético entre espécies diferentes. O Brasil está também decidindo através de qual porta o país vai entrar nesta nova fase do desenvolvimento científico e tecnológico, cheio de possibilidades, mas carregado
a época de Marx, lá pelos idos do século XIX, trabalhadores, principalmente ingleses, assustados com o progresso proporcionado pela revolução industrial, decidiram quebrar máquinas, achando que com essa atitude impediriam a mudança provocada pela inovação tecnológica e garantiriam seus empregos na forma tradicional. A atitude foi em vão, pois o capitalismo veio com força, mais máquinas foram incorporadas à produção e o mundo adentrou na chamada sociedade industrial, na era da modernidade, cujos efeitos experimentamos até hoje, no campo e nas cidades. Quando se discute a adoção dos transgênicos, um novo patamar alcançado pelo desenvolvimento científico e tecnológico, aquele movimento equivocado dos trabalhadores vem novamente à mente. Como se diz, errar
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às decisões judiciais, da submissão aos interesses das transnacionais, da negação dos direitos do consumidor, do descuido com a saúde pública, do desrespeito ao meio ambiente, da falta de pesquisas sobre biossegurança e da negação da empresa Monsanto em se submeter à avaliação independente de seu produto. Por isto que a medida provisória do Governo Federal é desast r o s a . Mas não é o fim. A Europa também liberou os transgênicos no início da década de 90, mas os agricultores orgânicos e os consumidores os derrotaram ao longo de 10 anos de lutas e hoje estão praticamente banidos das mesas dos europeus. Um rastilho de cidadania vai evitar este modelo tecnológico e este alimento sem qualidade no Brasil. Não há nada mais moderno do que qualidade de vida – que começa pela mesa – e respeito à natureza, pois é dela que vêm todas as nossas energias vitais. Frei Sérgio A. Görgen é deputado estadual pelo PT do Rio Grande do Sul
Pela liberdade de pensar e pesquisar Roberto Freire
de riscos. E com tecnologias de risco manipulando seres vivos, é necessário forte controle público, regras rígidas de biossegurança e aplicação estrita do princípio da precaução. Não se trata de negar a ciência e suas possibilidades, mas discutir e controlar democraticamente suas aplicações, especialmente quando seus produtos vão para a mesa de milhões de pessoas. O Brasil pode estar entrando nesta nova fronteira da ciência pela pior da portas: a porta do contrabando de sementes e herbicidas, do fato consumado, do descontrole público, da afronta
uma vez é humano, duas vezes é grave equívoco. Os trabalhadores, por definição, devem se colocar na vanguarda das conquistas humanas e nunca no final da fila, como se quisessem ser os que reagem à marcha da história, como se esta fosse uma “carroça abandonada”. E a história é recheada de comportamentos que nos dão preciosas lições. Na idade média – período no qual reinou o obscurantismo – Giordano Bruno, por exemplo, foi queimado na fogueira pela Inquisição porque sustentou teses inéditas e revolucionárias da ciência; Galileu, um dos mais famosos cientistas de todos os tempos, só não teve o mesmo destino porque resolveu falar, em voz baixa, que a terra se movia, longe dos ouvidos dos Torquemadas da Igreja. Mais recentemente, no Brasil, no início do século passado, populares queimaram bondes e outros bens públicos, opondo-se a ação do
grande sanitarista Osvaldo Cruz no combate à febre amarela e que viria salvar milhares de vida, na chamada revolta da vacina. Não podemos ter o mesmo comportamento em relação aos transgênicos. Ora, os transgênicos não são invenção do capitalismo, do imperialismo, dos Estados Unidos, da Monsanto, de outras empresas multinacionais, como querem fazer crer alguns de seus críticos. É, talvez, neste momento, a ponta mais visível de uma grande revolução tecnocientífica, iniciada há 10 anos, e que condicionará toda a vida das sociedades no presente século. Queiram ou não, a biotecnologia veio para ficar, e com ela os transgênicos. A mesma biotecno-
logia que desenvolveu a insulina – um transgênico –, que salva vidas de tantos brasileiros e seres humanos espalhados pelo mundo inteiro. Muitos lutam contra os transgênicos por desinformação, outros por motivação apenas religiosa. Argumenta-se que fariam mal à saúde, agrediriam o meio ambiente e a ordem natural por possibilitar a troca de germoplasma entre seres vivos distintos, mais próximos entre si do que se imaginava antes. Pelo contrário, a biotecnologia nada mais é que a mesma intervenção que o homem faz junto à natureza há milênios de anos, só que agora com grau de precisão maior, descendo à escala de manipulação do DNA. Uma inovação tecnológica que vem para ajudar a própria natureza, e o homem dentro dela. Não há uma única indicação de que os transgênicos possam fazer mal à saúde ou ao meio ambiente. Eles são já largamente adotados e consumidos em países como Estados Unidos, Argentina, Índia e o próprio Brasil. Dirão
seus críticos, esses países são capitalistas. Mas também o são nos países socialistas como Cuba e China, esta, por sinal, a nação que mais pesquisa tem de sementes transgênicas em todo o planeta. Outra informação: em breve estará no Congresso Nacional uma cientista cubana falando sobre a experiência do país de Fidel Castro nessa nova fronteira do conhecimento humano. Preocupam-me notícias dando conta de que o MST invade propriedades para queimar experimentos transgênicos. Não equeçam que, ao invés de atingir a Monsanto, como se pretende, os principais prejudicados com uma ação como essa são a nossa Embrapa, universidades e outros centros públicos de pesquisa. As multinacionais continuarão a desenvolver as suas pesquisas lá fora, as nossas entidades e institutos não, ficarão parados, proporcionando um grande prejuízo ao Brasil, aos agricultores, à sociedade. Nós, a esquerda, somos herdeiros do iluminismo, do conhecimento, da razão, da capacidade do pensar. O fundamentalismo e o obscurantismo devem ser banidos do nosso meio. Roberto Freire é deputado federal por Pernambuco, presidente do PPS e líder do partido na Câmara
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AGENDA DESENVOLVIMENTO RS - I Fórum Gaúcho da Juventude De 1º a 4 Um momento de encontro para discutir e aprofundar teorias que apontem para a construção de um novo mundo possível. No Fórum, procura-se estimular o trabalho coletivo, a autonomia, a capacidade de criação, de participação crítica no mundo e de interação social. Para melhorar os níveis de sociabilidade e convivência, os organizadores ressaltam a necessidade de um trabalho pedagógico que envolva todos os segmentos da juventude: rural, urbana, estudantil e a desempregada. O tema central é “Você Tem Fome e Sede de Quê?”. Haverá oficinas propostas pelas entidades, movimentos e organizações. Os eixos temáticos abordados serão: educação e cultura; política – participação e democracia; trabalho e emprego; desenvolvimento sustentável; família, violência e sexualidade. Local: Pque. de Exposições Germano Dockhorn, Três de Maio. Mais informações: (55) 3535-1122 ramal 235, www. forumgauchodajuventude.com.br
REFORMA TRIBUTÁRIA RS - Seminário: A Reforma Tributária e os Trabalhadores Dia 3, às 14h Painelistas: ministro Tarso Genro; deputado federal e relator do projeto da reforma tributária, Virgílio Guimarães (PT/MG). Debatedor: professor adjunto da UFRGS e doutor em sócio-economia em desenvolvimento pela Universidade de Paris (EHESS), Carlos Schmidt. Promoção: CUT/RS, Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da presidência da República, Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região, CPERS, Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre, ADUFRGS, Sinpro e Sintae. Apoio: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Inscrições gratuitas nas entidades promotoras. Local: Salão nobre da Faculdade de Direito da UFRGS, Av. Paulo Gama, 110, Porto Alegre Mais informações: (51) 3224-2484
MARXISMO SP - Ciclo de palestras: Marx e o marxismo em 12 lições De 7 a 30 Organizado pelo Colégio de São Paulo, pela Secretaria Municipal de Cultura e pela Biblioteca Mário de Andrade, este ciclo, de caráter introdutório ao pensamento de Karl Marx e dos marxistas, está dividido em duas unidades. Na primeira, será feita uma exposição introdutória da obra teórica de Marx e de sua atuação como pensador e revolucionário, junto ao movimento operário e socialista do século XIX. Na segunda, será feita uma exposição do marxismo do século XX, contemplando o pensamento de Lênin, Rosa de Luxemburgo, Gramsci, da Escola de Frankfurt e de Althusser. A última conferência do ciclo apresentará as polêmicas suscitadas pelas experiências de construção do socialismo. • Primeira unidade dia 7 - Marx e a história, por Jorge Grespan (História/USP) dia 8 - Marx e a política, por Armando Boito Jr. (Ciência Política/ Unicamp) dia 9 - Marx e a economia, por Leda Paulani (Economia /USP) dia 14 - Marx e a ideologia, por Caio Navarro de Toledo (Ciência Política/Unicamp) dia 15 - Marx e a filosofia, por Paulo Eduardo Arantes (Filosofia/ USP) dia 16 - Marx e a prática, por Duarte Pereira (jornalista)
agenda@brasildefato.com.br
Paulo Freire Vida e obra da Redação
VINÍCIUS DE MORAES Desde o dia 11, tudo o que foi escrito e publicado por Vinícius de Morais (1913-1980) pode ser acessado gratuitamente na internet. Com exceção da correspondência de Vinícius (lançada recentemente em livro), a produção poética, a prosa, as letras de música e as críticas de cinema somam mais de 1.500 tópicos do acervo, além de dezenas de fotos, capas de livros e discos, trechos de músicas, notas informativas, biografia e textos sobre o autor. Além da novidade de permitir o acesso gratuito à obra integral de um autor, essa página da internet oferece a oportunidade de o internauta criar sua própria antologia de textos. Mais informações: www.viniciusdemoraes.com.br
• Segunda unidade dia 20 - O marxismo da Escola de Frankfurt, por Jorge de Almeida (Literatura/USP)) dia 21 - O marxismo de Rosa de Luxemburgo, por Isabel Loureiro (Filosofia/Unesp) dia 27 - O marxismo de Gramsci, por Marcos Del Roio (Ciência Política/Unesp) dia 28 - O marxismo de Althusser, por Décio Saes (Educação/Unesp) dia 29 - O marxismo de Lênin,
POLÍTICAS SOCIAIS RN - II Fórum Social Potiguar De 2 a 5 Mais de 5 mil pessoas de todo o Estado estão sendo esperadas para o Fórum. O editor da Revista Caros Amigos e integrante do conselho editorial do Brasil de Fato, José Arbex; o parlamentar português Francisco Louçã; a senadora Heloísa Helena (PT); o coordenador nacional do MST, João Pedro Stédile; e a professora da Unesp Isabel Loureiro são alguns dos palestrantes já confirmados. O FSP terá quatro grandes conferências no Palácio dos Esportes, além de dezenas de seminários e oficinas, no Centro de Educação Profissional da Rua Trairi, e auditórios no centro da cidade. Um dos principais atos será a passeata “Não à Alca, uma outra integração é possível”, dia 3. Haverá também uma programação voltada para o público infanto-juvenil, com atividades na Escola Anísio Teixeira. O ginásio da Escola Estadual Atheneu abrigará a Via Campesina, onde mais de 400 trabalhadores rurais vão participar de seminários e discussões sobre alternativas para o fortalecimento da agricultura familiar no Estado. O eixo político do II Fórum Social Potiguar deste ano tem como proposta a discussão de alternativas para o Nordeste num contexto de concentração da riqueza e ameaças imperiais, e o papel dos movimentos sociais nesse processo. Local: Pça. Cívica, bairro de Petrópolis, Natal Mais informações: (84) 211-2900
por João Quartim de Moraes (Filosofia/Unicamp) dia 30 - O marxismo e a experiência socialista, por Eleutério Prado (Economia/USP) Local: Biblioteca Mário de Andrade, R. da Consolação, 94, 1º andar, São Paulo Mais informações: (11) 3256-5270, cutural_bma@ig.com.br
AMBIENTE SP - 1ª Jornada Latino Americana de Mudanças Climáticas e Transporte Sustentável De 7 a 9 Serão discutidas as relações entre as mudanças climáticas e o transporte nas cidades, com o objetivo de propor formas de redução das emissões de gases causadores do efeito estufa. Representantes de governos e de empresas do setor vão apresentar as questões e as medidas que estão sendo adotadas para a melhoria da qualidade do ar. Local: Teatro do Sesc Pompéia, R. Barão de Bananal, s/n, São Paulo Mais informações: marinak@maquina.inf.br, (11) 3372-2231
CHE GUEVARA SP - Homenagem a Che Guevara Dia 8 Ato para lembrar os 36 anos da morte do líder revolucionário Ernesto Che Guevara. Organização: Movimento Che Guevara Programação: 19h - música, vídeo e apresentação do movimento; 20h - palestra com representante do consulado cubano; 21h - palestra sobre o líder Local: Auditório do Sindicato dos Bancários de Osasco, Av. Castelo Branco, 150, Osasco Mais informações: (11) 8147- 0488
MULHERES RS - IV Encontro da Rede Brasileira de Estudos e Pesquisas Feministas De 8 a 11 Organizado pela Rede Brasileira de Estudos e Pesquisas Femininas
Este é um livro que retoma os temas mais queridos de Paulo Freire: o diálogo e a partilha na construção de um mundo novo por meio de uma prática educativa transformadora, alicerçada em uma pedagogia com base na ética e no respeito à dignidade, conceitos atualmente relegados ao esquecimento. Uma coletânea de vários autores - Diferentes olhares sobre obras de Paulo Freire - que, com alguns textos escolhidos de Paulo Freire e dados de sua vida e de sua obra, nos trazem de volta o companheiro de lutas que, na verdade, nunca nos deixou. Sua obra anuncia a solidariedade de homens e mulheres compromissados com uma ética universal. E chama para a luta, fornecendo os instrumentos para a intervenção na realidade, para fazer com que o homem assuma a condição de sujeito social, cultural e histórico no ato de conhecer. A natureza política do seu pensamento nos torna vigilantes contra todas as práticas de desumanização, contra o individualismo e o competitivismo inerentes ao capital, exacerbados nesta
(Redefem), pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher e Gênero (Niem) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, juntamente com a Faculdade de Educação (Faced), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o evento tem como eixo temático “Enfoques Feministas e o Mercosul”. Os objetivos do encontro são incentivar aproximações e reflexões entre todos os membros da região do Mercosul interessados nos estudos feministas, de gênero e das mulheres, além de valorizar a produção intelectual do Mercosul. Local: Centro de Convenções da Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAURGS), Gramado Mais informações: www.redefem.ufrgs.br
SAÚDE RS - X Seminário de Saúde e Meio Ambiente Dia 10 Local: Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Alimentação de Caxias do Sul Mais informações: (54) 221-4754, stialimencxs@malbanet.com.br
TRANSGÊNICOS CE - Lançamento da cartilha Transgênicos - Gostando de Aprender Dia 13 (houve adiamento), às 19h Elaborada pelo Esplar - Centro de Pesquisa e Assessoria, a cartilha nasceu de uma parceria entre a Campanha Nacional Por um Brasil Livre de Transgênicos e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Seu objetivo é levar para as escolas públicas de ensino fundamental o debate sobre os transgênicos e a agricultura alternativa. Dentro do projeto, cada escola recebe um jornal mural, feito
época de nenhuma ética e muito neoliberalismo. Em suas palavras, “não é possível educar sem uma grande indignação frente às nossas injustiças seculares” e, indignados, devemos “trabalhar contra a força da ideologia fatalista dominante, que estimula a imobilidade dos oprimidos e sua acomodação à realidade injusta, necessária ao movimento dos dominadores”.(GA) CONFIRA Paulo Freire – Vida e obra Ana Inês Souza (org.) 368 páginas R$ 13,00 (+ reembolso postal)
pelas duas campanhas, que fala de práticas saudáveis de alimentação para os alunos, de experiências com agricultura ecológica e sobre transgênicos. Esse mural é utilizado para dar partida à discussão sobre o assunto. Aí entra a cartilha, que será distribuída entre os professores, para ajudá-los a trabalhar estas temáticas em sala de aula. A distribuição será feita em doze Estados. Local: Casa Socialista, Av. Santos Dumont, 1028, Fortaleza Mais informações: (85) 252-2410, esplar@esplar.org.br
ARTES PLÁSTICAS SP - Exposição itinerante: Gaudí, um universo De 15 de outubro a 09 de novembro Com entrada gratuita, a exposição comemora os 150 anos do nascimento de Antonio Gaudí (1852-1926). Quando a arquitetura limitava-se a repetir modelos neoclássicos e neoromânticos, Gaudí, aproveitando o impulso renovador que vivia a Catalunha nos últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX, propôs uma arquitetura inovadora, mais além dos estilos históricos, que haveria de transformar-se em precursora das correntes posteriores. Por esse motivo, e atendendo a demanda das comunidades catalãs do exterior em querer participar na difusão da figura de Antonio Gaudí, a Secretaria de Relações Exteriores do Departamento da Presidência da Generalitat de Catalunya organizou a exposição com uma seleção de imagens fotográficas dos edifícios mais significativos realizados por Gaudí na Catalunha. Local: R. Vergueiro, 1.000, piso verde, São Paulo Mais informações: (11) 3277-3611
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CULTURA
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LITERATURA
América Latina lembra Neruda, o poeta D
epois das homenagens a Salvador Allende nos 30 anos do golpe de Estado, a população chilena presta tributo ao “poeta eterno” da América Latina. Pablo Neruda, prêmio Nobel de Literatura em 1971, morreu em 23 de setembro de 1973, na Clínica Santa Maria, em Santiago. Dois dias depois, sob cerco militar, seus funerais converteram-se no primeiro ato de protesto e denúncia pública do general Augusto Pinochet e da ditadura que se prolongou até 1990. Neruda passou para a história como um dos maiores poetas de língua espanhola do século XX. As homenagens começaram em 12 de julho – dia em que o poeta completaria 99 anos – e culmiraram com uma cerimônia na casa-museu de Isla Negra, a 100 quilômetros de Santiago, com a presença do presidente Ricardo Lagos. Acompanhado pela mulher Matilde Urrutia, o poeta passou seus últimos dias na casa de Isla Negra, cercada por militares. Sofria de câncer de próstata, que
rapidamente se transformou em metástase, provavelmente por causa do choque que teve com o golpe de Estado que derrubou Allende. O velório de Neruda foi realizado em La Chascona, a segunda de suas três casas, localizada no bairro boêmio de Bela Vista. Trinta anos depois, La Chascona foi o cenário de uma maratona de oito horas de poesia dedicadas ao escritor, artista, militante comunista, especialista em gastronomia, enólogo e colecionador de máscaras de proa e caracóis.
Enterro-protesto é registrado em fotos Renato Stockler da Redação O fotojornalista quer denunciar, esclarecer e repassar sua experiência por meio da imagem. É nisso que acredita Evandro Teixeira, fotógrafo que registrou o golpe militar no Chile, em 1973, e capturou, com sua lente, a emoção da morte e enterro do poeta Pablo Neruda. Brasil de Fato – Como foi seu trabalho durante o golpe militar no Chile? Evandro Teixeira – Havia mais ou menos 500 jornalistas e fotógrafos cobrindo o golpe militar no Chile. Todos queríamos saber do Pablo Neruda, pois ele era amigo do recém-falecido (Salvador) Allende, além de ter recebido o prêmio Nobel de Literatura. Neruda também era contrário ao regime Pinochet e ao golpe. Os militares pressionavam e ameaçavam prender o escritor, doente e idoso. Mas nin-
Muitos escritores reconhecem a importância da obra de Neruda. “Apesar de não gostar de afirmações tão contundentes, que deixam de fora poetas importantes, creio que Neruda foi o maior poeta de língua hispânica do século passado”, disse o escritor e poeta chileno Guido Eytel. Para ele, a amplitude de temas, a profissionalização do oficio de poeta e a identificação que encontrou em diferentes setores sociais e em diferentes lugares do mundo marcam a vida e o trabalho de Neruda. Destaque em sua obra é Canto Geral”, extenso poema sobre a América Latina que Neruda escreveu na clandestinidade, entre 1948 e 1949. Nessa época, senador pelo Partido Comunista, ele foi perseguido pelo governo de Gabriel González Videla (1948-1952). “Trata-se de um texto que tenta ser épico, mas que hoje pode ser lido como um mapa da América Latina, com todas suas contradições”, avalia Patrícia Espínosa.
ATUALIDADE Esses e muitos outros atos foram organizados pela Fundação Neruda e por uma comissão especial criada por Lagos, para comemorar o centenário de nascimento do poeta, em 2004. Pablo Neruda é o pseudônimo de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto. Diplomata, foi cônsul na Espanha e no México, senador e indicado à presidência do Chile em 1969. Renunciou à indicação em favor do amigo Salvador Allende, que, eleito, o nomeou embaixador do Chile na França. Entre suas obras desta-
Neruda teve a casa destruída pelos militares e morreu doze dias após o golpe de Pinochet, há 30 anos
cam-se Canto Geral, Vinte poemas de amor e uma canção desesperada e Residência na terra. Em 1971, recebeu o segundo prêmio Nobel de Literatura concedido a um escritor chileno – a primeira homenageada foi a também poeta Gabriela Mistral, vencedora em 1945. “Neruda foi uma das mais altas personalidades poéticas do
guém sabia ao certo onde ele estava internado. Soube que estava à beira da morte em um hospital em Santiago e fui a seu encontro. Neruda não permitiu que o fotografasse ali. Naquela noite recebi a notícia da sua morte. BF – Como foi o velório? Teixeira – Amigos do escritor levavam seu corpo para o alto de uma colina em Santiago, onde ele tinha uma bela casa. Ao pé dessa colina havia um riacho. Os militares arrebentaram a barragem para evitar que carregassem o corpo do poeta. Os amigos de Neruda improvisaram uma ponte de tábuas para levar o corpo até a casa. Chegamos e nos deparamos com a biblioteca do escritor toda destruída. A notícia da morte ainda era muito recente. No final daquela tarde, o fato ficou conhecido e as pessoas começaram a chegar ao velório. O enterro foi muito emocionante, muito bonito. Da
geral, sua obra pode ser catalogada como a grande errupção de um pensamento em torno da metafisica latino-americana, da identidade e da condição do mestiço. Esses temas se mantêm como instâncias de discussão dentro dos denominados estudos pós-coloniais”, avalia.
GRANDE POETA
Evandro Teixeira
Gustavo González de Santiago, (Chile)
France Press
Os 30 anos de morte de Pablo Neruda são lembrados com recitais de poesia e recordações do golpe que derrubou Salvador Allende
casa até o cemitério percorremos mais de seis quilômetros. Éramos poucos no início. Mas o cortejo ganhou volume, as pessoas cantavam a Internacional Comunista, as tropas militares começaram a nos cercar. BF – Era um cerco pronto para um massacre?
século XX em âmbito mundial”, diz a crítica literária e professora universitária Patrícia Espínosa. Para ela, a ainda forte presença de Neruda no cenário latinoamericano não deve-se apenas ao aspecto ideológico de sua poesia, já que no conjunto de sua obra seus textos abertamente políticos são considerados os mais frágeis. “Em
Quem é O repórter fotográfico Evandro Teixeira nasceu na Bahia e em 1957 iniciou sua carreira como estágiário do Diário da Noite, no Rio de Janeiro. Em 1962 transferiu-se para o Jornal do Brasil, onde trabalha até hoje. Fez centenas de reportagens fotográficas, desde a cobertura da Copa do Mundo de Futebol de 1962 até a invasão do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, por militares golpistas em 1964. Em 1973, cobriu o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, do Chile. Teixeira – Sim. Mas os militares eram muito hábeis. Eles não haviam recebido nenhum jornalista desde o dia do golpe. Durante o enterro, enviaram uma convocatória para uma coletiva de imprensa, a fim de esvaziar o enterro de Neruda. Os jornalistas se dividiram: parte cobriria a coletiva e outra, o funeral. Eu fiquei no cemitério, pois aquilo era mais importante para mim, jornalisticamente, emocionalmente... Até chorei durante o cortejo.
BF – Qual a importância do material que você produziu no período em que esteve no Chile? Teixeira – É uma forma de resgatar a memória dos fatos históricos tão importantes que aconteceram lá. Durante minhas coberturas de fatos de repressão política, como não podia falar, me expressava por meio da minha fotografia. Eu posso denunciar com o meu trabalho. Além disso, é necessário repassar a experiência vivida aos jovens. É uma pena que aqui no Brasil não exista essa cultura da preservação da sua memória e dos seus valores.
TEATRO
Deise Nascimento Nunes de Porto Alegre (RS) O “Porto Alegre em cena”, um dos mais importantes festivais de artes cênicas da América Latina, há três anos vem ampliando seu leque de apresentações. As peças, antes restritas às salas de espetáculos da cidade, chegam agora a bairros e vilas da capital gaúcha. O projeto quer popularizar a arte, alcançando um público que normalmente não tem contato com produções teatrais profissionais. Desde 2001, quando foi implantado, o “Em cena descentralizado” promoveu 48 espetáculos gratuitos em escolas, centros comunitários, ruas e praças dos bairros da periferia, para um público de cerca de 15 mil pessoas. Os ingressos têm preços po-
Caroline Morelli
Porto Alegre em Cena leva teatro à periferia pulares – em 2003, para todos os espetáculos nacionais e internacionais, custam R$ 10 e R$ 5, mais um quilo de alimento destinado ao Programa Fome Zero. Uma cota dos ingressos é distribuída às comunidades das 16 regiões do Orçamento Participativo, que abrangem todo o território de Porto Alegre.
ARTE POPULAR
SEM RECURSOS Normalmente integram o “Em cena descentralizado” peças de teatro de rua ou alternativo, cuja montagem não requer a estrutura e recursos de uma sala de espetáculos formal. Local e horário são previamente negociados com as Comissões Regionais de Cultura, integradas por representantes das comunidades. A divulgação e organização dos espetáculos ficam por conta da prefeitura.
da pequena Jéssica com o teatro, e a menina não escondia a ansiedade com o início da apresentação, acompanhando com curiosidade a montagem do colorido cenário na quadra de esportes do ginásio.
Apresentação da peça “Sacra Folia”, na periferia de Porto Alegre
No dia 21, Dalva Regina, 35 anos, levou a filha Jéssica, de 7, ao Ginásio da Pequena Casa da Criança, na Vila Maria da Concei-
ção, região Sudeste da cidade. Ali assistiram à peça “Sacra Folia”, participante do 10º Porto Alegre em Cena. Era o primeiro contato
“É importante lembrar que a gente também gosta de arte”, disse a dona-de-casa. “A vila é o mundinho que a gente conhece, e a gente não tem condições de sair daqui para ir ao teatro”, lamentou. Dalva assistiu à apresentação da Cia. Teatro di Stravaganza junto com mais alguns adultos e cerca de 150 crianças da Vila Maria da Conceição. “Trouxe a Jéssica para conhecer o teatro e acabei me divertindo junto com ela. Aproveitei o programa, achei maravilhoso”, comemorou.