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Ano 3 • Número 100

R$ 2,00 São Paulo • De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2005

Em Porto Alegre, resistência ao império

O FSM é plural e dele participam milhares de pessoas de todo o planeta, em busca de um mundo melhor. O Fórum de Davos não quer mudar nada. Lá estão governantes das nações ricas e executivos de transnacionais, isolados, com forte proteção policial

Eric Feferberg/AFP/AE

Agência Brasil

A reeleição de Bush é um perigo contra o qual milhares de pessoas, no Fórum Social Mundial, buscam alternativas

Restrições não seguram avanço da economia Pág. 5

Agronegócio chega à direção da Embrapa Pág. 13

Venezuela e Cuba estão na vanguarda da luta contra o neoliberalismo no continente, enquanto governos eleitos com plataformas progressistas – incluindo o governo Lula – continuam a seguir a agenda do FMI. A opinião é do sociólogo Néstor Kohan, que critica à política econômica de Néstor Kirchner. Descrente da proposta de pagamento de 25% da dívida externa argentina, apresentada dia 14 de janeiro, ele mostra as tentativas do governo de isolar o movimento social e as articulações de resistência popular. Pág. 11

Filha de sem-terra toca violino na cerimônia de inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP) Maringoni

Néstor Kohan critica política de Kirchner

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira critica a política indigenista do governo Lula, a morosidade e irregularidade na demarcação das reservas, e as pressões do agronegócio para anular conquistas obtidas na Constituição de 1988. Pág. 6

MST inaugura escola nacional em São Paulo

Douglas Mansur

As recentes mobilizações populares no país não conquistaram apenas a expulsão da transnacional Suez-Águas de Illimani. Além dos protestos contra o monopólio da água, do gás e dos hidrocarbonetos e da pressão contra o governo Carlos Mesa, toma forma um movimento separatista, autônomo de La Paz, nas províncias de Santa Cruz e Tarija. Pág. 11

Fórum Pan-Amazônico denuncia a militarização No 4º Fórum Social Pan-Amazônico, 7 mil representantes de 200 organizações e movimentos sociais debateram os principais problemas da Amazônia Continental. A militarização foi denunciada como um perigo para a paz na região, que aumenta com a reeleição de Bush. Já documento da

Avança luta separatista na Bolívia

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e um lado, um número cada vez maior de pessoas e organizações fortalece um movimento contrário ao avanço da globalização neoliberal, pela paz e respeito aos direitos humanos, como expressa o Fórum Social Mundial. De outro, a reeleição de George W. Bush à presidência dos EUA representa uma ameaça ao mundo. No seu discurso de posse, ele defende mais intervenções militares nos países que “atentem contra a segurança dos estadunidenses”. Essas palavras foram recebidas com apreensão, inclusive nos EUA, onde o cartaz de um manifestante, no dia da posse, dizia: “Quatro anos de liberdade para Bush, Quatro anos de guerras para o mundo”. Por isso, o historiador russo Kiva Maidanik compara a política imperial do governo Bush ao nazismo alemão: os dois projetos defendem a concentração de poder pelo Estado e têm uma visão maníaca do futuro, pondo em risco a humanidade. Ele propõe a criação de uma frente única contra o “bushismo”. Págs. 2, 7, 8, 9 e 10

E mais: HABITAÇÃO — Deterioração de políticas públicas e crescimento da desigualdade deixam seu saldo: segundo a Cepal, 44% dos latino-americanos vivem em favelas. Pág. 3 MORADORES DE RUA – Continuam paradas as investigações sobre o assassinato de sete sem-teto em São Paulo. Apesar da pressão de grupos de direitos humanos, autores do crime ainda não foram punidos. Pág. 4

Construída em regime de mutirão durante quatro anos, fruto da solidariedade dos trabalhadores do Brasil e do exterior, o MST inaugurou, dia 23 de janeiro, em Guararema (SP), a Escola Nacional Florestan Fernandes. O centro educacional pretende formar militantes sociais de todo o país. “Meu filho tinha o sonho de estudar na Florestan. Mas não poderá mais, pois está morto. Continuo a construir a escola, pois quero ajudar a realizar o sonho de outros”, declarou o sem-terra Viriato Gouveia Lobo, do assentamento Manoel Neto, em Taubaté (SP). Pág. 16

Comparato quer novo estatuto de comunicação O jurista Fábio Konder Comparato lança a proposta de um novo estatuto dos meios de comunicação social. Segundo o professor de Direito da USP, para fundar, no Brasil, um autêntico regime republicano e democrático, são necessários rígidos mecanismos para o funcionamento da imprensa, do rádio, da televisão e da internet. Entre suas sugestões estão o controle de propriedade de veículos de comunicação, regulação de conteúdos de programação e mudança da atual organização oligárquica das empresas. Pág. 14


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De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Dos debates à ação

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esta semana, começou mais um Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre (RS), com cerca de 30 mil delegados previamente inscritos pela internet. Certamente outros milhares chegam à cidade para participar de mais de 2 mil atividades organizadas por mais de 3 mil entidades e intelectuais de todo o mundo. Muita gente fica se perguntando: para que serve o FSM? A explicação é simples. A humanidade está em crise. Uma crise social, porque os problemas da maioria das pessoas, em todo o planeta, só aumentam. Inclusive, o pior deles, a fome, que diariamente põe em risco a sobrevivência de 880 milhões de pessoas, a maioria crianças. Uma crise econômica, porque, além de depredar nossos recursos naturais, a forma capitalista de organizar a produção não consegue gerar os bens para atender às necessidades básicas de toda a população, nem oferecer oportunidade de trabalho para todos. Ao contrário, o desemprego cresce. E, com ele, milhões perdem a dignidade e a possibilidade de futuro. Uma crise cultural, porque os países ricos querem transformar todas as manifestações culturais em mercadoria; querem vender, ganhar dinheiro, e precisam impor a sua

visão de mundo aos demais. Essas três crises são o resultado da hegemonia imposta nas últimas duas décadas pelo capital internacional, agora na sua versão financeira e de grandes corporações. Não mais que 500 empresas transnacionais controlam 58% da riqueza mundial. E elas dão emprego para apenas 1,8% da população. Mas há também uma crise ideológica, pois não encontramos um caminho comum que nos oriente sobre as saídas. Como encontrar esse caminho? O primeiro passo é reunir o maior número possível de pessoas, entidades, forças sociais que estejam dispostas a debater a crise e suas saídas. E, nesse sentido, é bom e necessário que o FSM seja, como afirmou em tom jocoso o presidente da República, um festival de idéias, de propostas, em que todos temos a liberdade de dizer o que pensamos e o que queremos, sem a necessidade de nos impor aos outros ou aceitar obrigatoriamente o que os outros defendem. Os governos e os partidos, em geral centralizadores, é que têm o costume de dizer o que se tem de fazer, como se fossem donos da verdade. Ninguém mais acredita que esse seja o melhor caminho. Porém, apenas debater idéias, quase sem compromisso, também não é solução. É um passo neces-

sário, mas insuficiente. Daí porque qualquer movimento social ou força social pode e deve aproveitar o espaço do FSM para identificar seus parceiros, seus aliados, e tentar construir redes, calendários, ações comuns. É preciso acumular forças. Os movimentos sociais precisam usar o FSM não apenas para debater idéias, mas para se reunir com outros parceiros, outras forças sociais de todo o mundo. Realizar assembléias mundiais, assembléias com militantes da campanha continental contra a Alca. E procurar, nessas assembléias, debater atividades e agendas comuns, que possam construir uma força acumulada frente ao inimigo comum: o imperialismo. É grande a expectativa de que, durante a quinta edição do FSM, seja possível para os movimentos sociais dar passos concretos na construção dessa agenda de temas e ações comuns. Somente a unidade e a ação de massas poderão alterar a correlação de forças em âmbito nacional e internacional, e construir alternativas concretas ao neoliberalismo e ao imperialismo. Com idéias e ideais compartilhados em reuniões e plenárias, é preciso dar o passo seguinte e priorizar o espaço das ruas, campos e fábricas como o melhor berço para o nascimento de projetos populares alternativos.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES GLOBALIZAÇÃO A globalização é cruel e sem ética. A palavra se popularizou e é freqüente na mídia. Os brasileiros já se familiarizaram com o conceito, porém a maioria ainda não associa o fenômeno à sua principal característica: torna os países ricos cada vez mais ricos e nações pobres em miseráveis. A sociedade, de modo geral, desconhece também que a globalização e a crescente interdependência entre governos, empresas e movimentos sociais são um fenômeno não tão recente como se imagina. Segundo os historiadores, quando Cristóvão Colombo chegou à América, em 1492, começou a “primeira globalização”. Passados seis séculos, a história não mudou muito. As reformas liberalizantes, com a abertura de mercado, a desregulamentação das economias, as privatizações e a redução dos direitos trabalhistas não trazem progresso, não geram mais emprego e nem melhoram a distribuição de renda. Depois de dois anos de estudo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão da ONU, anunciou, em janeiro de 2004, os resultados dos efeitos sociais da globalização. As conclusões são alarmantes porque consideram o fenômeno sem ética e insustentável. Um exemplo disso é que, durante o período de maior intensidade da globalização, entre 1990 e 2003, a economia mundial cresceu a taxas menores que nas décadas anteriores, e o desemprego atingiu níveis recordes, ou seja: são 185 milhões de pessoas sem trabalho,

perspectiva e dignidade. Mariana Czekalski por correio eletrônico SEGURANÇA HUMANA As novas ameaças, como o terrorismo global combinado à proliferação de armas de destruição em massa, não aboliram os aspectos não-militares da “segurança humana”. Qualquer protagonismo ativo neste domínio requer uma divisão clara entre ameaças e situações que exigem o uso da força e as que não podem ser resolvidas por meio de polícias e das forças armadas. Os movimentos migratórios não são um problema de segurança; o tráfico de emigrantes pode ser. O cultivo da coca e o consumo de drogas possuem uma nítida dimensão social, enquanto a produção e o tráfico de cocaína entram claramente no campo da segurança. A pobreza não é um problema de segurança, mas uma questão ética e de responsabilidade social e política. Assim, na busca por aperfeiçoar a democracia, não há dúvidas de que uma legítima democracia, a luta contra a corrupção e a pobreza, o respeito aos direitos humanos ou as integrações regionais, combinada com a harmonização de valores, são importantes fatores de paz. A aceitação de responsabilidades coletivas nesses campos não deve ser enquadrada na lógica de políticas de segurança. Erik C. G. São Paulo (SP)

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CRÔNICA

A guerra da água Leonardo Boff A água, objetivamente, é um bem natural comum, vital e insubstituível. Ocorre que vivemos numa quadra histórica em que o modo de produção dominante e hoje globalizado transforma literalmente tudo em mercadoria, até as coisas mais sagradas e vitais. Os direitos humanos inalienáveis são rebaixados a “necessidades humanas”. Para a sua satisfação deve-se obedecer às leis da oferta e da procura, próprias do mercado. Só tem direitos quem puder pagar e for consumidor e não quem for pessoa, independentemente de sua condição econômico-social. É uma traição aos ideais da modernidade. A água doce, por ser um bem cada vez mais escasso – somente 0,7% é acessível ao consumo humano – mais e mais ganha preço e se transforma em objeto da cobiça mundial. Vigora uma corrida frenética de grandes multinacionais para privatizar a água, transformá-la em “recurso hídrico” e em mercadoria com a qual se pode ganhar muito dinheiro. Cuidou-se para que fosse demolida a compreensão humanística e ética de que o acesso à água fosse direito humano fundamental. Conseguiu-se que fosse reduzida a uma necessidade como qualquer outra, cuja satisfação deve ser encontrada no mercado. Foi o

que, efetivamente, declarou o Segundo Fórum Mundial da Água em 2000: a água não é mais um direito inalienável mas uma mera “necessidade humana”. Agora começou uma guerra ferrenha pelo controle do acesso à água potável. Quem controla esse acesso, detém um poder de vida ou de morte sobre milhões e milhões de pessoas. Hoje 1,6 bilhão de pessoas têm grave insuficiência de água e em 2020 serão 3 bilhões, numa humanidade com 8 bilhões de pessoas. Poderão ver negado o acesso à água porque não terão como adquiri-la e estarão sob risco de vida. Há tempos o vice-presidente do Banco Mundial, Ismali Serageldin dizia com razão :”Se as guerras do século 20 foram por petróleo, as do século 21 serão por água potável”. Com efeito, atualmente existem 50 conflitos no mundo por causa da falta de água, já que 40% da população mundial vive junto a 250 bacias fluviais. A bacia do Tigre e do Eufrates é o centro do contencioso entre a Turquia, a Síria e o Iraque; a bacia do Rio Jordão, entre Siria, Palestina, Israel, Jordânia e Líbano; a bacia do Ganges e do Indo entre Bangladesh, India, Paquistão e assim também ocorre com as bacias do Nilo e do Zambeze.

Como enfrentar as hidromáfias e evitar as guerras por água? Em primeiro lugar, demolindo a compreensão materialista que subjaz à lógica das privatizações da água. Ao considerar tudo mercadoria, essa compreensão destrói qualquer sentimento ético, ecológico e espiritual, ligado diretamente à água. Em segundo lugar, resgatando o sentido originário da água como matriz de todas as formas de vida sobre a Terra. A água bem como a vida, jamais poderão virar mercadoria. Em terceiro lugar, criando, como muitos o estão propondo, a consciência de que um necessário pacto social mundial deve ser feito em cima do tema da água, já que todos precisam dela para viver. Por fim, em nome desta consciência planetária não se há de conceder a ninguém o direito de privatizar a água. Ela deve ser excluida das negociações comerciais a nivel mundial. A água é um dom que a natureza ofereceu à vida e a cada um de nós. 70% de nosso corpo é composto de água. Porque é tudo isso, a água constitui uma das metáforas mais significativas do Divino que está em nós e no universo, e da sacralidade de toda a vida. Como não lutar por ela e cuidá-la? Leonardo Boff é teólogo

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De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2005

NACIONAL MORADIA

Uma enorme favela latino-americana Segundo a Cepal, 44% dos habitantes da região vivem precariamente; para mudar, reforma não resolve

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uase a metade (44%) dos latino-americanos mora em favelas e menos de 25% possuem condições básicas de habitação, informa pesquisa da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), órgão das Nações Unidas, divulgada dia 18 de janeiro. Os dados evidenciam, mais uma vez, o grau de pauperismo em que vive a população do continente – 224 milhões de pessoas, de uma população total de 480 milhões, estão abaixo da linha de pobreza. Segundo o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-vereador de São Paulo (SP) pelo Partido dos Trabalhadores, ser morador de uma favela significa não ter segurança jurídica na posse da terra, e sequer contar com o mínimo de infraestrutura. Em conseqüência, essas pessoas correm permanente risco de serem despejadas; têm suas vidas ameaçadas por inundações e deslizamentos; estão sujeitas a doenças contagiosas e problemas respiratórios; enfrentam dificuldades para estudar devido à falta de um lugar adequado ou até mesmo de iluminação natural, dado o adensamento de construções; e encontram-se desamparadas com relação à segurança. O sociólogo Silvio Caccia Bava,

mocrática que coloque no centro das decisões as organizações comprometidas com a defesa de direitos. “Estamos falando de ruptura, não de reforma. Trata-se, por exemplo, de questionar o pagamento da dívida externa, como faz o presidente da Argentina Néstor Kirchner. As forças do mercado precisam ser enfrentadas”, conclui o sociólogo. Na sua avaliação, é isso o que está acontecendo na Venezuela, onde se buscam alternativas àquilo que prega o Consenso de Washington: lá, o trabalho é valorizado, há distribuição de renda etc.

Arquivo Brasil de Fato

Luís Brasilino da Redação

EFERVESCÊNCIA

Cerca de 44% da população urbana da América Latina vive em favelas

diretor do Instituto Pólis e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), aponta dois traços essenciais das cidades a partir da metade dos anos 90: deterioração das políticas públicas e crescimento da desigualdade. Para ele, a soma desses dois fatores levou a explosões sociais como as que aconteceram na Argentina, no final de 2001 e início de 2002, e na Bolívia, em 2003. “Se a política neoliberal – largamente utilizada nos últimos 10 anos – gerou um desemprego muito alto, na outra ponta, as pessoas precisam ainda mais das políticas públicas,

já que não conseguem se sustentar individualmente,” descreve Caccia Bava. Além disso, a cartilha neoliberal começou a ser implementada no final de um processo de intensa explosão demográfica das cidades latino-americanas. Bonduki informa que, nos últimos 50 anos, o Brasil foi o país que apresentou o maior crescimento urbano do mundo, tendência seguida também por seus vizinhos continentais. Evidentemente, isso piorou as condições de vida dos habitantes das cidades, onde vivem, atualmente, 75% dos latino-americanos, segundo o mesmo estudo da Cepal, “Singu-

laridade de pobreza e precariedade habitacional nas cidades da América Latina”.

QUESTIONAMENTO Para melhorar as condições de vida das populações urbanas, é necessário garantir a função social da propriedade urbana e massificar as políticas habitacionais, segundo Bonduki. Ele acrescenta que também é importante melhorar a qualidade das políticas públicas no campo, de modo a reduzir o êxodo rural. Só que, observa Caccia Bava, tudo isto passa por um questionamento das políticas neoliberais e por uma refundação de-

Caccia Bava também destaca o surgimento de movimentos sociais que, à medida que o neoliberalismo avançou, se contrapuseram às suas políticas. “Olhando à nossa volta, dá para ver que a América Latina está em efervescência. As forças sociais não estão paradas como estiveram entre 1985 e 1995. Os movimentos se organizam, articulam e estão se fortalecendo para criar uma nova ordem democrática”, opina. Mostras desse fortalecimento das camadas populares podem ser observadas na Bolívia e no Equador que, recentemente, trocaram de presidente graças a mobilizações de rua, e estão prestes a fazer isso de novo. A Argentina, que trocou de chefe de Estado quatro vezes em menos de duas semanas (dezembro de 2001), também deixa clara tal efervescência.

ENTREVISTA

Zilda Ferreira e Rodrigo Brandão do Rio de Janeiro (RJ) Arquiteto formado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com experiências em várias prefeituras petistas, Paulo Oscar Saad vê muito pouco da marca do PT que ajudou a fundar no governo Lula. Mas está preocupado com os rumores sobre a saída de Olívio Dutra do Ministério das Cidades.“O principal problema do ministério é a resistência dos políticos conservadores, aliados aos conservadores do governo, às mudanças que Olívio propõe na geografia das liberações de recursos. Se a pasta cair na mão do PMDB e corruptos como Jader Barbalho, por exemplo, será o fim”, diz Saad. Para ele, o Cidades é um ministério de construção petista. “Se existe algo de cara petista no governo, é essa pasta. São 20 anos de luta do movimento social que desembocaram nesta importante conquista”, acrescenta. Durante as mais de duas horas de conversa com o Brasil de Fato na varanda de sua casa em Santa Tereza, bairro histórico a poucos minutos do centro do Rio, Saad também se diz preocupado com o déficit brasileiro de 6 milhões de lares. “Só no Estado do Rio, estão quatro milhões das famílias sem moradia”, informa. Para o arquiteto, os movimentos por moradia e pela reforma urbana precisam intensificar o enfrentamento com as elites e com o governo. “A solução pode estar nos centros das metrópoles. No centro do Rio, há 15 mil imóveis desocupados, todos servindo à especulação. Aí é que os movimentos precisam atuar”, afirma. Brasil de Fato – O que a eventual demissão do ministro das Cidades, Olívio Dutra, pode significar para o movimento social? Paulo Oscar Saad – A saída do Olívio seria um absurdo. Se existe uma construção petista neste governo, é o Ministério das Cidades, um resultado de vinte anos de construção dos movimentos sociais, tem raiz nas prefeituras, afinal trata-se de uma pasta que financia prefeituras. Tem berço no movimento pela refor-

ma urbana. Este é o modo petista de governar. Acho que Olívio está fazendo o possível. Os setores conservadores não aceitan as mudanças nas liberações de recursos em Brasília. E o partido e o governo, como se sabe, estão em permanente luta interna. Outro problema é que a Caixa Econômica Federal é do Ministério da Fazenda. Se a pasta for para o PMDB, acabou tudo. A história do PMDB ligada à área de habitação popular é uma história de corrupção, de inadimplência. BF – Como e quando começou sua vida profissional? Saad – Entrei para a faculdade de arquitetura da UFRJ em 1970, mas trabalhava com projetos desde 1966, com 14 anos. Foi um início difícil na escola. Muitos professores tinham saído do Brasil, vítimas da repressão da ditadura. E os que ficaram tinham uma capacidade enorme de autocensura. Meu pai era um árabe cuja relação de respeito com os filhos só acontecia quando eles começavam a se sustentar. Por isso, quando entrei na faculdade, meu pai quis continuar me dando mesada, mas não aceitei. Ainda sobre minha vida antes da faculdade, gostaria de dizer que 1968 foi muito importante. Estudava no Colégio Santo Inácio, onde os filhos da elite eram maioria. BF – Como era estudar em pleno 1968 em um colégio de padres, cercado de jovens ricos? Saad – No Santo Inácio tinha muita gente com bolsa. Eu era um deles. Eu e meus dois irmãos estudávamos, os três, pelo preço de duas mensalidades. Havia em Botafogo (bairro da zona sul onde está o Colégio Santo Inácio) um casarão chamado Aloisiano, onde viviam jovens vindos do Norte, do Nordeste, indicados por padres de paróquias. Na verdade, o Santo Inácio ganhava dinheiro dos ricos para manter sua estrutura e todas as bolsas. BF – Você começou a fazer política no Santo Inácio, em 68? Saad – Foi, entrei para a Ação

Popular (AP, grupo de resistência à ditadura ligado à Igreja progressista e que depois se tornou maoísta). Era colaborador da AP desde os 15 anos. BF – Na faculdade de Arquitetura, sua militância deslanchou? Saad – A partir dos anos 70, passei a ter permanentes reuniões com militantes, que me colocavam a par do que era decidido nas assembléias e me davam tarefas. Entrei na luta contra a ditadura pela Igreja. BF – E o PT, quando entra em sua vida? Saad – Para mim, o PT começou a existir em 1968. Explico: a idéia de construir um partido com as características do PT vem daquela época. De que PT estou falando? De um partido formado a partir das bases, como alternativa ao partido único stalinista. Queríamos um partido socialista – dentro de um conceito amplo de socialismo – que lutasse contra o capitalismo através da mobilização das massas, participando da luta de massas dentro da democracia. Queríamos tomar o poder pela via institucional, mas sempre entendendo que era preciso abrir espaço para movimentos de pressão e até de desobediência civil, mesmo contra a ordem legal. Nos anos 80, as greves ainda eram proibidas, mas fazíamos greves. Em 75, então, nem se fala. Naquele ano, entrei para a Coppe (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da UFRJ). Fizemos em 76 a primeira greve na universidade brasileira depois do AI-5 (Ato Institucional nº 5, que em 1968 suspendeu as garantias constitucionais que ainda restavam após o golpe de 64). BF – Em que momento decidiu que pautaria sua vida profissional por um trabalho mais engajado? Saad – Por um lado, pela própria demanda de trabalho. Chega por exemplo um companheiro que é da favela dos Guararapes, aqui no Rio, e me pede um projeto de urbanização da favela, ou da sede da associação de moradores.

No Borel (favela da zona norte do Rio), dava aula, jogava bola e fazia um trabalho comunitário com as pessoas da favela. Ali surgiam demandas, era o projeto da sede da associação, da sede social, da igrejinha da comunidade etc. BF – Qual foi seu primeiro projeto de cunho social? Saad – Para uma ocupação de terras em Miguel Couto, na Baixada Fluminense (próximo à Nova Iguaçu), em 1971. Depois fiz projetos para o Borel, para o morro do Cerro Corá e para o dos Guararapes (ambos no Cosme Velho, bairro da zona sul do Rio). Desenhei ruas, pracinhas e casas-padrão. Desenhei uma casa com pilotis e um terraço, que fazia as vezes do terreno que não existia. As crianças tinham no terraço um espaço para brincar, os pais para lavar roupa. BF – Você assessorou prefeituras? Saad – Basicamente prefeituras petistas, além da prefeitura do Rio. Trabalhei em Porto Alegre, em Santo André (com Celso Daniel). Em Santo André, assessorei o Jorge Hereda (hoje secretário nacional de Habitação), para mim um dos responsáveis pelo desenvolvimento do modelo petista na área. Trabalhei com o ex-prefeito Vítor Buaiz em Vitória e com os prefeitos petistas de Angra dos Reis (litoral do Rio). BF – Segundo as estatísticas, o Brasil tem um déficit habitacional de 6,5 milhões de casas. Estas mesmas estatísticas informam que 5 milhões de imóveis estão vazios, servindo à especulação. O que fazer diante disso? Saad – Olha, cerca de 4 milhões dos sem-casa estão no Grande Rio, o que representa um terço da população da nossa região metropolitana. Acho que o movimento social deveria bater nesta tecla. Nós, aqui no Rio, denunciamos isso algumas vezes. A avaliação mais conservadora, feita pela associação das imobiliárias, diz que há 15 mil imóveis vazios só no centro do Rio. Chegaríamos, em todo o município, a 200 mil imóveis de-

Mauricio Scerni

Saída de Olívio Dutra seria um retrocesso

Quem é Paulo Oscar Saad, 52 anos, é um carioca da gema. Organiza um bloco de carnaval em seu bairro e atua na associação dos blocos do Rio. A seriedade e a militância guarda para sua vida profissional. Trabalha para prefeituras, sindicatos, associações de moradores e movimentos sociais. Já desenvolveu diversos projetos em ocupações de terra e nas periferias. Militou na Ação Popular(AP) nos anos de chumbo e é membro-fundador do PT. socupados. Esta situação precisa ser usada pelo movimento. Poderia justificar uma palavra de ordem de enfrentamento. Infelizmente, nos anos 90 o movimento pela reforma urbana se deixou levar pela poluição de informações. Perdemos o foco da nossa luta, de nossa prioridade que é a luta pela moradia. BF – Então é ir para o centro das cidades? Saad – Há coisas escabrosas aqui no centro do Rio. Em frente ao Passeio Público, no coração da cidade, há um prédio de 13 andares abandonado há uns quinze anos. Poderia haver uns 40 apartamentos ali. Temos que levar habitação para os centros das cidades. As periferias são custosas para todo mundo. O poder público precisa entrar lá e instalar infra-estrutura de água e esgoto, energia, ruas, gás. Tudo isso já existe no centro. Está na hora de denunciar essa subutilização da moradia nas metrópoles. Os imóveis do centro do Rio, têm pouca gente morando, têm toda a infra-estrutura, estão prontos para receber novos moradores.


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De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2005

Espelho Luiz Antonio Magalhães Veja bate... O semanário mais vendido no Brasil saiu no domingo, 23 de janeiro, com uma das capas mais agressivas contra o governo, desde a posse de Lula. “O PT deixou o Brasil mais burro?” era o título, que aparecia entre uma fotomontagem com duas orelhas do animal. O gancho da reportagem era a decisão do Itamaraty de tornar classificatória, e não eliminatória, a prova de inglês para ingresso na carreira diplomática. Mas a revista aproveitou para atacar, também, a política de cotas do Ministério da Educação e o projeto da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav). ... só no que interessa Como é praxe na revista, os ataques de Veja beiram o ridículo na forma e no conteúdo. Um quadro sobre a política educacional foi intitulado “A visão soviética”, mostrando o contumaz anticomunismo dos proprietários da Editora Abril, dona do semanário. Veja não gosta da reserva de vagas para pobres, pretos e índios nas universidades públicas, nem da limitação da participação de capital estrangeiro nas faculdades privadas. As críticas à Ancinav causam riso, mas obedecem à lógica dos interesses da empresa que edita a revista. Elogios a Lula e Rodrigues A estratégia da Abril continua a mesma: críticas ferozes a qualquer iniciativa minimamente de esquerda do governo Lula, elogios efusivos aos quadros conservadores da administração federal e uma postura na maioria das vezes amigável em relação ao presidente. Na mesma reportagem em que condenava as decisões do ministro Celso Amorim sobre as regras para ingresso no Itamaraty, Veja fazia questão de elogiar o titular da Agricultura, Roberto Rodrigues, pela demissão da direção da Embrapa. E apresentava outro quadro bisonho, este com o título “Um presidente que fala para todos”, elogiando a capacidade de comunicação de Lula, apesar dos “tropeços gramaticais”. O “avião” de Alckmin A eleição para a Mesa Diretora da Câmara Federal e o novo avião do presidente Lula praticamente monopolizaram o noticiário político dos jornais ao longo do mês de janeiro. No primeiro caso, a grande imprensa explorou o “racha” do PT e suas duas candidaturas para a presidência da Câmara. No segundo, fez um crítica udenista da compra da aeronave, salvo raras exceções, como a do colunista Elio Gaspari, que fez as contas e anotou: o valor do avião é equivalente ao que o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) vai arrecadar a cada 266 dias com o aumento da passagem do metrô e trem em São Paulo. Omissões quentes A dica de Gaspari, por sinal, não foi bem aproveitada na Folha de S. Paulo, um dos jornais que publica seus textos. Tanto a Folha como O Estado de S. Paulo foram muito discretos ao noticiar o aumento das passagens do transporte coletivo gerido pelo governo tucano de São Paulo. A notícia certamente interessa ao público alvo dos dois jornais que, embora não utilize metrô ou trem para se deslocar, paga a condução de seus empregados. Ainda assim, a notícia sobre o aumento não rendeu mais do que notas de pé de página. Enorme compreensão Os jornais de São Paulo também estão bastante compreensivos com a gestão de José Serra (PSDB) na prefeitura da capital. Exemplo dessa postura complacente: nomeações dos subprefeitos. O ex-ministro e ex-prefeito de Itapira, Barros Munhoz, recém-convertido ao tucanato, foi agraciado com a administração de Santo Amaro. Mas na campanha, Serra prometeu colocar técnicos nas antigas administrações. Quando Marta Suplicy fazia o mesmo, os jornais diziam que era politicagem, acordo espúrio, loteamento etc.. Agora, silêncio...

DIREITOS HUMANOS

Moradores de rua cobram justiça Massacre de sem-teto no centro de São Paulo completa cinco meses sem solução Carlos Minuano de São Paulo (SP)

C

ontinua sem solução o caso de assassinato e agressão de moradores de rua em São Paulo, ocorrido entre 19 e 22 de agosto de 2004. Apesar da promessa de Saulo de Castro Abreu Filho, secretário de Estado da Segurança Pública que garantiu prender os culpados em 30 dias, após cinco meses o caso permanece parado. Assim como acontece todo dia 19, para lembrar o assassinato de sete moradores de rua e a agressão física de oito outras pessoas, representantes de entidades e diversos moradores de rua reuniram-se, em janeiro, em frente a Catedral da Sé, com placas de papelão, cruzes e bandeiras com mensagens de repúdio à chacina. Sebastião de Oliveira, representante da população de rua e dos usuários de albergue, afirma que o objetivo da manifestação é não deixar o crime cair no esquecimento: “Passou-se muito tempo e nós não temos respostas. Mas existem culpados e seres humanos foram assassinados”, disse. No dia 19 de janeiro, os manifestantes foram até Rodrigo Pinho, procurador-geral de Justiça de São Paulo, para cobrar providências do Ministério Público. De acordo com padre Julio Lancelotti, coordenador da Pastoral de Rua em São Paulo, a demora deve-se às duas linhas de investigação em andamento — a do Ministério Público e a da polícia. Por não se tratar de crime comum, o caso é investigado pelo

Alderon Costa/ Rede Rua

da mídia

NACIONAL

Vigília no centro de São Paulo lembra assassinato em série de moradores de rua e reivindica justiça

Departamento de Esclarecimento de Chacina, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). As investigações, que inicialmente levavam à participação da guarda civil metropolitana e de skinheads, chegou até três culpados: os policiais militares Marcos Martins Garcia e Jayner Aurélio Porfírio (absolvidos em novembro, mas que ainda continuam detidos por suspeita de envolvimento com tráfico de drogas, extorsão, roubo e formação de quadrilha) e o segurança Manoel Alves Tenório, esse último liberado logo em seguida à detenção.

IMPRENSA

Jornalista agredido no Pará da Redação O jornalista e ambientalista Lúcio Flávio Pinto foi agredido, dia 21, enquanto almoçava no Restaurante Parque da Residência, em Belém, no Pará, por seguranças ligados a Rômulo Maiorana Jr., dono do jornal O Liberal e de uma retransmissora da Rede Globo. Também foi ameaçado verbalmente por Maiorana Jr, que prometeu matá-lo para que “nunca mais fale mal de minha família”.Segundo seu irmão, o também jornalista Raimundo José Pinto, Lúcio Flávio ficou bastante machucado e, logo depois da agressão, foi à delegacia prestar queixa e passar por exame de corpo de delito. A agressão seria uma reação à matéria “O rei da quitanda”, de três páginas, publicada no Jornal Pessoal sobre a família Maiorana. Na matéria, Lúcio Flávio – de 54 anos, 17 dos quais como jornalista – afirma que Romulo Maiorana Jr., de 45 anos e o principal executivo do maior grupo de comunicação do Norte do país, ganhou ainda mais poder com a TV Liberal, uma das afiliadas da Rede Globo de Televisão. “Essa conquista multiplicou a força que a corporação tinha quando o pai dispunha apenas de um jornal, já em carreira ascendente contra dois concorrentes, a Folha do Norte pré-moribunda e A Província do Pará claudicante”. Na matéria do Jornal Pessoal – tablóide mantido há sete anos por Lúcio Flávio, com tiragem de 2 mil exemplares quinzenais – o jornalista conta os bastidores da negociação do grupo RM com a Globo, o que incluiu a estratégia de colocar a TV Liberal formalmente sob o controle de outras quatro pessoas. “Havia um veto não assumido dos militares dominantes ao seu nome. Associavamno a uma das expressões dos maus hábitos políticos locais, de mãos dadas com negócios escusos, que atraía o furor moralista do regime estabelecido em 1964: o contraban-

do. Romulo tinha ligações com esse mundo por suas duas vertentes: o próprio contrabando e o pessedismo, centrado num homem pessoalmente honesto, Magalhães Barata, o maior líder político do Estado, cercado de corruptos por todos os lados. Quando o patriarca morreu, quase 18 anos atrás, deixou aos herdeiros uma empresa que liderava em todos os segmentos do mercado, com vantagem sem igual na história das comunicações no Pará, azeitada e com muitas reservas em caixa, além de planos de expansão em pleno andamento, como era sua característica”. Segundo Lúcio Flávio, o sucessor da família RM está impondo seu estilo de dominação da comunicação no Norte no país. Ele cita um exemplo: a participação do grupo Liberal na eleição de 1990, com o apoio a Sahid Xerfan, candidato do governador Hélio Gueiros, e o combate a Jader Barbalho. Com a eleição do inimigo, eliminaram o nome de Barbalho do noticiário da corporação, inclusive nas matérias referentes à tomada de posse. Com os primeiros anúncios legais (editais), o governador recuperou o nome próprio e, com os anúncios institucionais, passou a figurar na primeira página. Desde 1992, Lúcio Flávio foi alvo, no foro de Belém, de 15 processos, dos quais 12 ainda ativos. Os assuntos de suas matérias referem-se a monopólio de imprensa, grilagem de terras, exploração clandestina de madeira e conivência da organização judiciária com esses delitos. As últimas ameaças que sofreu são conseqüência de denúncias como a tentativa de apropriação indébita de uma área variando entre 5 milhões e 7 milhões de hectares, no vale do Xingu (área mais conhecida ultimamente como “Terra do Meio”), integrante do patrimônio público fundiário, e de retirada ilegal de árvores valiosas da floresta amazônica, principalmente o mogno.

O promotor Carlos Talarico, designado pelo Ministério Público para acompanhar os trabalhos da polícia, pediu a prisão preventiva dos policiais. Apesar disso, o mesmo promotor, no dia 19 de novembro passado, solicitou o relaxamento da prisão, alegando falta de provas. Dois meses depois o inquérito não havia sido devolvido e nenhuma outra providência tinha sido tomada. Oliveira disse esperar que as promessas de apuração do crime sejam de fato cumpridas e que não se repita o que aconteceu com o secretário Castro, que prometia uma coisa aos moradores de rua e fazia declarações divergentes na imprensa. Afirmou ainda que a população de rua está se organizando e começa a assumir seu papel na sociedade: “Embora sem dinheiro, sem emprego, morando nas ruas, não somos um bando de ladrões, não somos traficantes. Na medida do possível, estamos indo para os albergues, moradias provisórias porque não

somos o que a imprensa no primeiro momento disse, que ‘morreram porque tinha envolvimento com drogas’. Isso é mentira!”, contestou. O promotor-geral de Justiça prometeu uma “investigação rigorosa” e anunciou a devolução do inquérito policial ao DHPP, o encaminhamento de uma cópia do processo para o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e a convocação de dois promotores do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco), que passa a atuar no caso. Segundo o promotor “há severos indícios da existência de uma organização criminosa que atua no centro da cidade, composta até por agentes públicos”. Para padre Lancelotti, é preciso agilidade. “As provas se apagam, se perdem testemunhas e o crime organizado esboça reações e continua cobrando, impondo o silêncio. Nós hoje acreditamos que muita gente sabe o que aconteceu mas não pode falar porque pagaria com a vida”.

ATINGIDOS POR BARRAGENS

Bacia do Rio Uruguai volta a ser palco de luta Alexania Rossato de Brasília (DF) Na semana passada, a divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul voltou a se mobilizar. Desta vez, a união entre os atingidos por várias barragens da bacia do Rio Uruguai fez a diferença. As 500 famílias atingidas pelas dez barragens da região acamparam no trevo de acesso à barragem de Campos Novos, em Santa Catarina, na BR 470, ligação com o Rio Grande do Sul, impedindo o andamento da obra de 18 a 20 de janeiro. O objetivo foi fechar uma agenda de negociações com as empresas responsáveis pelas obras e com o governo federal. Além disso, os manifestantes querem a diminuição do preço da energia elétrica, garantia de acesso à água e energia para toda a população, solução imediata dos problemas deixados pelas barragens já construídas e políticas sociais que contemplem as populações atingidas. Esta jornada de mobilizações é continuidade das lutas iniciadas em agosto de 2004, quando foi descoberta a vergonhosa fraude social e ambiental na barragem de Barra Grande, próxima a Campos Novos. Os prejudicados por Barra Grande afirmam que as irregularidades não podem ficar impune. “Os responsáveis devem ser punidos. As grandes construtoras de barragens não podem continuar cometendo crimes sociais e ambientais, destruindo florestas, pondo em risco a vida

das pessoas e de inúmeras espécies animais e vegetais”, afirma Rosana Mendes, da Barra Grande.

MAIS OBRAS O governo federal prevê, para os próximos três anos, a construção de 70 novas barragens e a conclusão de 50 obras já licitadas. Só na Bacia do Uruguai está projetada a construção de 25 usinas hidrelétricas. O reduzido número de grandes grupos responsáveis pelas obras (Camargo Correa, Tractebel, Suez, Bradesco, Votorantin, CPFL, CBA e Alcoa) só se preocupa em iniciar rapidamente a construção. O pequeno investimento na área social previsto pelas empreiteiras, sempre abaixo de 2% do custo total da obra, contrasta com o alto lucro obtido na produção de energia. A indústria da barragem, que envolve empreiteiras, fabricantes de equipamentos, turbinas e infra-estrutura de transmissão, é a quarta maior do mundo, perdendo somente para a bélica, do petróleo e automobilística. Os próximos passos dos atingidos por barragens incluem reunião, dia 27 de janeiro, com os ministérios envolvidos e, na segunda quinzena de fevereiro, audiência com a ministra Dilma Roussef, das Minas e Energia, Luiz Dulci, secretário-geral da Presidência da República e com as empresas proprietárias das barragens para discutir a pauta de reivindicações dos atingidos por barragens.


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De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2005

NACIONAL POR TRÁS DOS DISCURSOS

Economia avançou, apesar do governo Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

Agência Brasil

Melhora se deveu à exportação, não a decisões de Brasília, que concentram a renda e estrangulam as atividades do senhor Meirelles deixou um saldo a vencer, ao longo de 2005, de R$ 375,04 bilhões, representando 46,2% da dívida total, num salto de 45% em relação a 2003. Isso significa que o governo terá que pagar, ou negociar o adiamento, com novas concessões ao mercado financeiro, de quase metade de sua dívida neste ano — o que significa retornar à situação observada em outubro de 2000, ainda sob o governo Fernando Henrique.

S

em o menor prurido, ministros e porta-vozes oficiais partiram numa espécie de cruzada santa para vender à opinião pública a idéia de que a política econômica em vigor tem produzido maravilhas. A recuperação da economia, que começava a perder fôlego no final de 2004, teria sido não só sustentada, mas estimulada pelas decisões do governo. Ao contrário do discurso oficial, a economia cresceu, a despeito dos rumos ditados por Brasília desde a posse do governo petista. Pelo contrário, em 2004, a política econômica foi literalmente atropelada pela economia real, puxada pelo segundo ano consecutivo de crescimento vigoroso das exportações. A tímida recuperação do emprego, e uma reação ainda mais modesta da renda dos trabalhadores/ assalariados resultaram muito mais dos efeitos em cadeia do avanço das vendas externas do que de qualquer mérito da política econômica conduzida pelo Ministério da Fazenda, nos limites das rédeas curtas impostas pelo Banco Central (BC) e pelos credores, capitaneados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Por isso, diante da perspectiva de desaceleração nas

ALTERNATIVAS Manifestação em defesa do aumento do salário-mínimo, em Brasília

Período

NO RITMO DO COMÉRCIO MUNDIAL Exportações brasileiras crescem graças ao maior volume de vendas em todo o mundo Participação brasileira nas Comércio mundial Exportações brasileiras Variação anual (Variação anual em %) exportações mundiais (em %) (em bilhões de dólares) (em %)

1999 2000 2001 2002 2003 2004

48,0 55,1 58,2 60,4 73,1 96,5

-6,1 14,7 5,7 3,7 21,1 32,0

Fonte: Secretaria de Comércio Exterior (Secex)/Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic)

exportações, a economia tende, em 2005, a apresentar um desempenho bem mais contido. Na semana passada, o Comitê de Política Monetária (Copom), formado pelo presidente do BC,

Henrique Meirelles, e pelos diretores da instituição, reafirmou o caráter central daquela política, ao elevar as taxas de juros para 18,25%, consolidando a posição do Brasil como campeão mundial

Arrocho e concentração da renda Além disso, como aponta o economista Márcio Pochmann, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a política em vigor termina acirrando a concentração da renda, já que, diz ele, 80% dos títulos públicos estão nas mãos de 15 mil famílias. E são essas famílias de privilegiados que serão beneficiadas pela alta dos juros. Como divulgado pela imprensa, a arrecadação de impostos, taxas e contribuições federais quebrou mais um recorde em 2004, alcançando R$ 333,58 bilhões, um incremento de 10,6% em relação a 2003, em valores atualizados com base na variação da inflação. Novo avanço sobre o bolso do contribuinte. Parte da arrecadação foi reser-

0,86 0,88 0,97 0,96 1,00 1,11

5,8 13,3 -0,4 3,5 5,5 9,1

vada para o pagamento de juros da dívida, num valor aproximado de mais de R$ 80 bilhões (quase um quarto da arrecadação federal), correspondendo ao que os economistas chamam de superavit primário – a segunda base de sustentação da política econômica do PT.

ESTRANGULAMENTO Esse superavit é o resultado das receitas menos despesas, excluídos os gastos com juros. Trata-se, aqui, de gerar saldos de recursos, via cortes de despesas e de investimentos públicos, para pagar os juros da dívida, que aumenta ano a ano, ao sabor da elevação das taxas de juros, decidida pelo Banco Central. Um poço sem fundo, se

mantida a política em vigor. Aqueles cortes têm o efeito, mais uma vez, de inibir o crescimento econômico, gerando demissões e achatamento de salários no funcionalismo público e para os trabalhadores em geral. O dinheiro economizado, às custas do avanço sobre o contribuinte e do sacrifício da atividade econômica, vai parar nas mãos das 15 mil famílias citadas por Pochmann, e não será destinado a nenhuma atividade produtiva – continuará girando no mercado financeiro, lucrando com a ciranda dos juros altos. Em resumo, juros elevados e arrocho fiscal (corte de gastos e investimentos públicos) podem estrangular a economia e não promover crescimento. (LVF)

de juros altos. Num exercício matemático, caso os juros tivessem sido mantidos, até aqui, nos 16% de junho do ano passado (um nível ainda excessivo), o governo poderia “poupar”, em 2005, quase R$ 10,5 bilhões — o que poderia aumentar em 50% os investimentos públicos originalmente previstos para este ano.

MAIS DÍVIDA A “competente” política monetária, louvada por Meirelles e companhia, além do feito acima, conseguiu piorar o perfil de vencimento da dívida do governo federal (ou seja, encurtou drasticamente o prazo para pagamento dos títulos vendidos pelo governo a bancos, corretoras, instituições financeiras em geral, empresas e grandes investidores pessoas físicas). Expressa em títulos públicos, aquela dívida cresceu 11% no ano passado, saltando de R$ 731,43 bilhões para R$ 811,97 bilhões. Em 2003, apenas 35% daquela dívida venceriam nos 12 meses seguintes. No final de 2004, a equipe

A alta dos juros básicos contribui para esfriar os negócios, encarecendo o custo dos empréstimos e do crédito para empresas e consumidores, a pretexto de segurar os preços e derrubar a inflação. Haveria um caminho menos custoso para o consumidor/contribuinte, porém mais trabalhoso para a equipe econômica. Nesse caso, seria possível obter avanços significativos no controle da inflação apenas revisando os contratos firmados com os grupos privados que compraram as empresas estatais dos setores de telefonia e energia elétrica. Aqueles contratos autorizam às ex-empresas públicas a corrigir seus preços com base na variação de índices de preços que não guardam qualquer relação com a elevação efetiva dos custos nos seus respectivos setores de atuação. Em 2004, por exemplo, os preços de insumos industriais (como o aço) fizeram aqueles índices saltar mais de 12%, em média, o que vai determinar aumentos naquela faixa para as contas de telefone e de energia, entre outras, ao longo de 2005, alimentando a carestia. E, convenhamos, os preços do aço não têm peso expressivo nos custos das telefônicas ou nas concessionárias de energia elétrica. Não se trata de descumprir contratos, diferentemente do que apregoam, mas de rever as condições previstas nos contratos originais, tornando-os mais justos para o cidadão e mais adequados à estrutura de custos das empresas. Para isso, contudo, seria preciso que a equipe econômica assumisse o papel de gerenciar a economia. Assim, é mais fácil aumentar os juros e transferir a conta para o consumidor.

AMÉRICA LATINA

...e o Brasil foi só o 12º na América Latina Números ainda preliminares indicam que a economia brasileira deve ter crescido perto de 5,2% no ano passado, depois de três anos consecutivos de resultados pífios. O resultado tem sido festejado como mais um feito da equipe econômica. Contudo, a taxa é expressiva apenas na aparência, já que se trata de uma comparação com um período em que as atividades se encontravam em estado de letargia, depois de atingir o fundo do poço, em meados de 2003. Como foi possível crescer, mesmo com a política de arrocho? Os dados oficiais ajudam a entender o aparente paradoxo. Em 2004, depois de crescerem pouco mais de 21% em 2003, as exportações aumentaram 32%, somando 96,5 bilhões de dólares. Baseada nas previsões do Banco Central, a Secretaria de Comércio Exterior (Secex) estima que a participação das vendas externas no Produto Interno Bruto (PIB) passou de 14,8% em 2003 para 16,1% no ano passado, quase duas vezes e meia acima dos 6,5% de 1998. Numa conta simples, como as exportações saltaram 32% e sua participação no PIB foi de 16,1%, o impacto desse aumento sobre a

economia teria sido de quase 5% – ou seja, somente a evolução das exportações parece ter sido responsável por quase todo o crescimento registrado em 2004.

O “MILAGRE” Mas foram necessários dois anos de forte crescimento para que o desempenho das empresas exportadoras começasse a influenciar o resto da economia, como ocorreu na saída da recessão de 1982/1983. Como não há “vasos estanques” na economia, o aumento das vendas externas produziu incremento da produção nas empresas exportadoras, gerando mais contratações. Os novos empregados voltaram a consumir, o que resultou em aumento de vendas em outros setores, os quais, por sua vez, iniciaram um ciclo de contratações. Mesmo tímido, esse movimento deu algum ânimo à economia. Mas sua continuidade está ameaçada pela alta dos juros e pela perspectiva de desaquecimento do mercado internacional e, portanto, das exportações. Antes de comemorar, cabe lembrar que o crescimento do comércio mundial foi generalizado. Na América Latina e Caribe, segundo proje-

QUEM MAIS CRESCEU NA AMÉRICA LATINA E CARIBE Taxas anuais de variação das riquezas, em % Região/países 2003 2004* América Latina e Caribe 1,9 5,5 Venezuela -9,7 18,0 Uruguai 3,0 12,0 Argentina 8,7 8,2 Belize 4,9 7,0 Equador 2,3 6,3 Trinidad e Tobago 4,2 6,2 Panamá 4,7 6,0 Antigua e Barbuda 5,8 5,9 São Vicente e Granadinas 3,9 5,8 Chile 3,3 5,8 São Kitts e Nevis 0,1 5,7 Brasil 0,6 5,2 (*) Dados preliminares Fonte: Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal)

ções da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), todos os países, menos Haiti e Granada, experimentaram expansão em 2004.

SEM EUFORIA Na região, o Brasil ocupou o 12º lugar entre os países com maiores taxas de crescimento, e o 13º se considerado o crescimento da riqueza por habitante (PIB per capita). O país cresceu menos do que a média de toda a região. Até Trinidad e Tobago se saiu melhor:

6,2% em 2004. No Uruguai e na Argentina, parceiros do Mercosul, a economia cresceu, pela ordem, 12% e 8,2%. Idem, no caso das exportações. Na região, as vendas externas aumentaram 22,4% no ano passado, com destaque para Chile (mais 50%), Venezuela (46%), Peru (37%), Brasil (32%), Bolívia e Uruguai (ambos com avanço de quase 30%). A participação do Brasil nas exportações mundiais, no entanto, não foi além de 1,11%, segundo a

Secex. Em 1984, a fatia brasileira nas vendas mundiais havia atingido 1,47% — um recorde ainda não reeditado.

ALTA GERAL Descontados fatores como a forte valorização dos preços do petróleo (o que favoreceu a Venezuela, grande produtora e exportadora do insumo) e do cobre (beneficiando o Chile), o desempenho das exportações da região e de outros países em desenvolvimento foi determinado por um aumento de quase 10% no comércio mundial, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as nações mais ricas do globo. A taxa é quase o dobro da verificada em 2003, quando o comércio mundial cresceu perto de 5%, e corresponde ao maior incremento observado em toda a década. Em 1950, a participação do Brasil foi de 2,37% – um recorde ainda não reeditado. Isso explica por que as exportações vieram de vento em popa nos dois últimos anos, favorecendo a recuperação das economias nacionais ao redor do mundo. (LVF)


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NACIONAL FÓRUM PAN-AMAZÔNICO

Militarização, uma realidade

Hamilton Octavio de Souza

Mais soldados brasileiros na região; Funai continua omissa; colonialismo francês é denunciado

Nova armação Considerada a agência de espionagem mais criminosa do mundo, a CIA, dos Estados Unidos, continua aprontando das suas em território latino-americano. Participou do suborno de policiais venezuelanos que seqüestraram integrante das Farc em Caracas e o entregaram para policiais colombianos na fronteira entre os dois países. A intriga gerou crise diplomática entre os governos. Direita raivosa Em mais um ataque contra o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, o jornal conservador O Estado de S. Paulo defendeu, em editorial do dia 18 de janeiro, a união dos “países do hemisfério” para “conter esse caudilho megalômano que se pretende a reencarnação de Simon Bolívar”. Vale lembrar que o Estadão participou ativamente do golpe de Estado contra João Goulart, no Brasil, e apoiou os golpes militares no Chile, no Uruguai e na Argentina. Marcação cerrada O empresário Bill Gates, um dos homens mais ricos do mundo, e a sua empresa Microsoft andam pegando pesado para reverter, no governo Lula, as medidas que visam à informatização de setores administrativos e de escolas públicas com base em software livre, o que representa uma grande economia para o país na remessa de royalties para os Estados Unidos. A pressão está no nível do cerco pessoal ao presidente. Golpe antinacional O ministro do agronegócio, Roberto Rodrigues, conhecido fantoche do latifúndio e do capital estrangeiro, demitiu a diretoria da Embrapa porque a empresa estava priorizando o apoio técnico à agricultura familiar. Agora, com certeza, a estatal de pesquisa será orientada para favorecer as grandes empresas, inclusive as transnacionais de sementes transgênicas. É mais um setor do governo que vai contra o interesse nacional. Deserto verde O acampamento visitado pelo presidente Lula, dia 21 de janeiro, em Eunápolis, no sul do Bahia, com 800 famílias aguardando o processo de assentamento, tem resistido bravamente. E não apenas à lentidão da reforma agrária e à ausência de recursos técnicos e financeiros para tornar a área produtiva, mas aos ataques da fábrica de celulose Veracel, que insiste em dominar a região com plantação única de eucaliptos – que é nociva ao meio ambiente e ao desenvolvimento da agricultura familiar de alimentos. Florestan Fernandes - 1 Autora de vários livros sobre marxismo e as lutas dos povos da América Latina, a chilena Marta Harnecker foi muito aplaudida em sua aula inaugural na Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, especialmente quando se referiu à revolução bolivariana do presidente Hugo Chávez, da Venezuela: “Ele sabe que não vai resolver o problema da pobreza se não der poder aos pobres”. Florestan Fernandes - 2 Já o professor Georges Labica, da Universidade de Paris, também presente no seminário inaugural da escola do MST, chamou a atenção para a luta ideológica e a influência da mídia burguesa na consciência do operariado e dos demais trabalhadores. Segundo ele, “não existe terceira via entre a ideologia da burguesia e a ideologia dos trabalhadores”. Pergunta ingênua Alguma vez, nos últimos 200 anos, o capitalismo e as classes dominantes ofereceram alguma trégua para conter o processo de exploração e de opressão dos trabalhadores?

Thaís Brianezi de Manaus (AM)

C

om o eixo “Diversidade, Soberania e Paz”, realizou-se, em Manaus, de 18 a 22 de janeiro, o 4º Fórum Social PanAmazônico (FSPA), co-organizado pelo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre outras entidades. Nas conferências, oficinas e seminários, dos quais participaram 7 mil representantes de 200 organizações e movimentos sociais, foram discutidos os principais problemas dos nove países que integram a Amazônia Continental – Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Equador, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. Entre as questões regionais mais candentes, os direitos e as perspectivas das comunidades tradicionais e indígenas; a ação empresarial predatória da biodiversidade da floresta; alternativas sustentáveis de produção agroindustrial; avanço do agronegócio, da indústria da madeira e da pecuária sobre a floresta. Questão atualíssima, sobretudo com o conflito entre Colômbia e Venezuela, estimulado pela política imperial dos Estados Unidos, a militarização da região esteve em pauta. “A militarização é um perigo para a paz na região amazônica. Uma ameaça que se reafirmou com a reeleição de Bush e a continuidade de sua política da guerra infinita, antiterrorista”, afirmou Jayme Caycedo, professor da Universidade Nacional da Colômbia e membro do Partido Comunista Colombiano.

AMEAÇA Para César Neto, secretário de relações internacionais do PSTU, a militarização está ligada à crise do capitalismo: “Grandes empresas quebraram, como a Enron, que era

Representantes indígenas participaram ativamente do 4º Fórum Social Pan-Amazônico – FSPA, em Manaus (AM)

de se deixar enganar: “As Farc não representam uma ameaça ao imperialismo. Elas estão com armas, mas nunca expropriaram um pedaço de terra, nunca ocuparam uma fábrica. São menos radicais que o MST ou que o Movimento das Fábricas Ocupadas, na Argentina”.

OCUPAÇÃO A militarização da Pan-Amazônia ocorre menos pela presença militar estadunidense do que por uma redefinição do papel dos exércitos nacionais dos países da região que, aos poucos, abandonam a defesa da soberania para se tornarem forças policiais de combate ao narcotráfico, ao crime organizado, ou de repressão pura e simples, como na Colômbia. No Brasil, o Exército tem sido apresentado pelo governo como agente de ação social. Egon Heck,

J. Rosha

Doutrina Bush Em entrevista recente, John J.Danilovich, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, voltou a citar a tríplice fronteira – Brasil, Argentina e Paraguai – como um local de aglutinação de “terroristas” de origem árabe. Documentos da CIA sobre o assunto também voltaram ao noticiário da mídia latino-americana. A pressão do império para ampliar sua influência militar na região é constante.

J. Rosha

Fatos em foco

Michel Aupoint, quase toda a administração pública é ocupada por franceses, as relações comerciais são exclusividade da França (80% do comércio exterior), é brutal a repressão da cultura e da língua nativas e das atividades pró-independência. Mas o perigo maior, diz, está na utilização do país como base de operações de espionagem, pesquisa e extração de recursos naturais, treinamento militar e base de comando de um exército capaz de intervenções militares relâmpago em qualquer país da América Latina. Aupoint lembra a intervenção francesa no Haiti para derrubar o presidente Jean-Bertrand Aristide. “Como a Guiana detém uma das mais importantes bases de lançamento de foguetes da União Européia, argumentando com a necessidade de defesa, a França criou um centro de formação militar que hoje treina soldados de vários países das Américas, principalmente Colômbia e EUA, em práticas de combate a movimentos insurgentes”, informou o dirigente. Ele acrescentou que não por acaso a Guiana é uma exceção da política colonialista francesa: na Martinica e em Guadalupe foi permitida uma consulta popular sobre sua continuidade ou não como colônias francesas. “Isto é impensável na Guiana, porque sua importância enquanto acesso estratégico à Amazônia e à América do Sul é grande demais,” completa.

Encontro dos Povos Indígenas, que contou com representantes de diversas etnias

REPÚDIO

a quinta maior do mundo. A dívida da Ford e da GM é maior que as do Brasil, Venezuela e Colômbia somadas. Por isso veio a Alca, para garantir a América Latina como mercado cativo dos estadunidenses. A militarização é só uma parte desse processo. Bush não é louco. Ele é conseqüente com o capitalismo. Seu objetivo é salvar as empresas do seu país”. O Plano Colômbia foi citado como exemplo concreto das pretensões militares (e imperialistas) estadunidenses na Amazônia. “Em 2000, o Plano Colômbia foi aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos com a desculpa de guerra ao narcotráfico. Após 2001, com o atentado ao World Trade Center, foi assumido publicamente como de combate às guerrilhas populares, ao ‘terrorismo’ latino-americano”, avaliou o professor Caycedo. “O Plano Colômbia é um meio de garantir o controle do petróleo e da água na Amazônia e também mais um modo de movimentar a indústria bélica norte-americana”, disse César Neto. Ele acrescentou que a esquerda internacional não po-

Os indígenas compareceram com força total ao 4º FSPA. Representantes de diversas etnias e dirigentes das principais entidades políticas denunciaram o recrudescimento dos ataques aos direitos de seus povos e avisaram que em 2005 vão intensificar sua luta. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) divulgou manifesto de repúdio à política indigenista do governo Lula, apontando a morosidade ou irregularidade na demarcação das reservas indígenas, e denunciando as pressões de grupos ligados ao agronegócio e ao latifúndio sobre o Congresso para rever o marco legal de conquistas obtidas na Constituição de 1988. “O PT sempre foi sintonizado com as demandas históricas dos povos e organizações indígenas. Por isso, tínhamos esperança que o governo Lula inaugurasse uma nova política indigenista. No entanto, agora que o mandato do presidente chegou à metade, percebemos que o governo prefere atender aos grupos políticos e econômicos interessados em explorar as terras indígenas, seus recursos e sua cultura”, afir-

do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vai aos fatos: o presidente Lula passou por Manaus, em direção a Tabatinga, onde foi relançar o projeto Rondon, criado pela ditadura militar. “Infelizmente, não há como negar que os militares hoje estão presentes na definição da política indigenista e ambiental para a região amazônica”, lamenta Heck. Cerca de 52 mil soldados foram deslocados para municípios de fronteira da Amazônia brasileira, como Tefé, Tabatinga, Boa Vista e São Gabriel da Cachoeira.

COLONIALISMO No FSPA, como sempre, a questão da Guiana Francesa foi central nos debates sobre descolonização da região. Afinal, o território continua um exemplo vivo de colonialismo e da ação predatória das transnacionais. Gerida como um departamento além-mar da França, a Guiana é administrada exatamente como uma possessão. Segundo o diretor de relações internacionais da União de Trabalhadores da Guiana (UGT), Jean

mou Jecinaldo Sateré-Mawé, coordenador-geral da Coiab. De acordo com o manifesto, o governo federal “fechou todas as portas de diálogo com os povos e organizações indígenas”, e o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, “não quer reconhecer as organizações indígenas como interlocutoras”. Para Jecinaldo, os setores antiindígenas da sociedade estão se fortalecendo, enquanto a Funai fica omissa. “O órgão que deveria lutar por nossos interesses não está atendendo mais às necessidades dos povos indígenas. A Funai é uma máfia”, declarou.

O 5º FSPA Encerrado no dia 22 de janeiro, o 4º FSPA se transformou no mais importante espaço de debates e articulações dos movimentos sociais e das populações tradicionais da Amazônia brasileira. No último dia, reservado às articulações setoriais e o encaminhamento de propostas, o Conselho Internacional (CI) definiu os rumos para os próximos dois anos. Segundo Adilson Vieira, secretário-geral do Grupo de Trabalho Amazônico e membro do CI-FSPA, uma prova do maior interesse dos movimentos sociais amazônicos pelo FSPA foi a apresentação inédita de quatro candidaturas à sede do Fórum em 2006 (Rio Branco, no Acre, e Santarém, Abaetetuba e Paraopebas, no Pará). A decisão sobre o destino do próximo FSPA será em março. Mas o local de 2007 está definido: Cayena, a capital da Guiana Francesa. “Desde a primeira edição, o Fórum levantou a bandeira da defesa da independência da Guiana, que continua uma colônia, ou departamento além-mar da França”, disse Luis Arnaldo Campos, membro do CI. Entretanto, acrescentou, como a Guiana é, teoricamente, parte da União Européia, é preciso mais tempo para preparar o terreno político na Europa, familiarizar os deputados de esquerda da UE com a idéia de uma Guiana livre e articular com eles o apoio necessário a essa luta e ao próprio evento. O CI também decidiu a mudança da data dos fóruns da região, de janeiro (inverno), desde a primeira edição, pouco antes do Fórum Social Mundial, para julho (verão). No inverno amazonense, chove demais e muitos países têm dificuldade em mandar representantes. Além disso, disse Vieira, o FSPA perde participantes por razões financeiras, porque eles não conseguem ir ao encontro regional e ao mundial, e escolhem o FSM. (Verena Glass e Maurício Thuswohl, da Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)


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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Acumular forças contra o neoliberalismo S

ob a expectativa da participação de mais de 150 mil pessoas de 119 nacionalidades, o 5º Fórum Social Mundial (FSM) transformará novamente Porto Alegre na capital do movimento contra o neoliberalismo e o imperialismo. Entre os dias 25 e 31 de janeiro, mais de duas mil organizações estarão numa verdadeira maratona de debates, articulações e mobilizações, com o desafio de avançar na elaboração de plataformas comuns aos diversos setores sociais. Desta vez, o cenário do encontro é uma extensa área em torno do Rio Guaíba, no centro da capital gaúcha, batizada de Território Social Mundial. Na orla onde se contempla o belíssimo e famoso pôr do sol da cidade, milhares de tendas brancas se espalham por quatro quilômetros para receber a enorme multiplicidade de atividades do Fórum. Ao lado das oito salas construídas com base na bioarquitetura, com paredes de arroz, trigo e cevada, sustentadas por bambus, a utilização do software livre, a implantação de uma moeda social (o Puxurim – “reunião de esforços em favor de um objetivo comum”, em língua indígena), o estímulo à economia solidária e outras experiências compõem o esforço organizativo do FSM.

ENFRENTAMENTO Nessa geografia de alternativas, os movimentos sociais planejam montar uma agenda global de mobilizações para 2005. Para Gustavo Codas, da Aliança Social Continental (ASC) e membro do Comitê Organizador Brasileiro (COB), apesar do campo conservador estar fortalecido com o segun-

Movimentos sociais querem, a partir do 5º Fórum Social Mundial (FSM), criar estratégia de enfrentamento com a política de George W. Bush

do governo de George W. Bush, a conjuntura internacional oferece novas possibilidades. “Na América Latina, está se manifestando uma crise da ordem neoliberal. O exemplo mais claro é a Venezuela, mas também temos a Argentina, o Brasil, o Panamá que, se não têm governos propriamente de esquerda, do ponto de vista da ordem internacional têm alguma convergência política na região”, explica, destacando a ênfase do presidente Hugo Chávez à construção da Comunidade Sul-Americana, à Televisão do Sul e à Petrosul.

OPORTUNIDADE Codas considera que os movimentos sociais precisam aproveitar essa brecha. “Temos de desenhar, a partir do Fórum, uma

estratégia de enfrentamento com a ordem de Bush. Temos uma oportunidade ímpar, na nossa região, para desenvolver outra orientação política”, diz. A assembléia dos movimentos sociais, marcada para os dias 27 e 31 de janeiro, será um dos espaços para definir ações conjuntas. A atividade reúne as principais organizações, campanhas e redes sociais. Consultas informais entre os movimentos sinalizam que duas datas aparecem como prováveis para a realização de novos protestos globais. A semana de 10 a 17 de abril, quando se prepara uma grande campanha contra a guerra, o livre comércio, as transnacionais, os transgênicos, entre outros temas. Ou 19 de março, já aprovado pelo

Fórum Social Europeu como dia da jornada de luta contra a guerra.

DESAFIOS O esforço dos movimentos será o de seguir a trajetória trilhada desde o primeiro Fórum e reforçar a construção de um novo consenso. “Nosso ponto de partida, em 2001, era marcado pelo recuo, pela pulverização, pelos efeitos dos estragos de 20 anos da ofensiva neoliberal. Há cinco anos, não se falava em enfrentar esse cenário”, recorda Codas.

Para ele, o FSM permitiu a formação de uma nova base para a retomada de iniciativas de resistência da sociedade civil. “Nesse período, o Fórum se tornou um espaço catalisador de energia, de articulação e alternativas entre os mais diversos agentes sociais.” Codas pondera que, apesar disso, os atores sociais ainda não acumularam energia suficiente para mudar a correlação de forças em nível mundial, ou para alterar o rumo conservador do quadro internacional.

Marcello Casal Jr/ABr

Jorge Pereira Filho de Porto Alegre (RS)

Agência Brasil

Movimentos sociais tentam construir plataformas comuns para enfrentar e impedir avanço da ofensiva conservadora

ENTREVISTA

Várias bandeiras de luta e adesão de muita gente Tatiana Merlino da Redação O Fórum Social Mundial (FSM) não pode ter uma só bandeira, mas várias, e a adesão de muita gente. É o que afirma o sociólogo Cândido Grzybowski, membro do Conselho Internacional do FSM, em entrevista ao Brasil de Fato. Ele destaca a necessidade de discutir alternativas às políticas neoliberais combatidas pelos movimentos populares. ”Nós sofremos as conseqüências daquelas políticas, mas não temos uma proposta de consenso para colocar no seu lugar”, constata. Brasil de Fato – Quais as novidades para esse 5º FSM? Cândido Grzybowski – A grande novidade é de ordem metodológica e temática. Praticamente todas as atividades serão autogestionadas. A organização só ficou responsável pela abertura e pelo encerramento. Essa novidade tem uma dimensão política muito clara: a democratização radical do processo de construção do Fórum. Na primeira edição, a grade temática foi feita pelo comitê organizador. Daí para a frente, constatamos que as organizações eram muito mais criativas do que a nossa grade, muito formal e lógica. Agora, mais próximos do que as organizações estão fazendo, vamos distribuir melhor as análises, propostas e alternativas. Além disso, a localização das atividades, concentrada, terá um impacto monumental. BF – Como as mudanças vão se refletir na agenda e na pauta das

organizações? Grzybowski – O Fórum está entrando numa nova etapa, porque é um processo. Nós nascemos em oposição ao Fórum Econômico Mundial de Davos e estamos tentando construir uma perspectiva, um outro mundo. Não adianta nos cobrarem propostas porque não temos. Não há um modelo único, mas várias propostas. Os onze espaços do FSM mostram canteiros de construção de um outro mundo diverso e plural, com muitas identidades, culturas, mas com algo em comum, que é o senso de humanidade baseado nos direitos humanos. Chamo a atenção para o fato de que em nenhum Fórum, nem no da Índia, tivemos tão clara a questão dos direitos humanos, que é o tema com o maior número de atividades inscritas, propostas por organizações de 45 países. Isso não significa que questões como a dívida e o livre comércio foram deixadas de lado. BF – O que faz um participante do FSM para escolher o que assistir entre 2.500 atividades? Grzybowski – Se fosse eu, ficaria apavorado. Não é fácil, mas nós não estamos em dez sessões plenária, como em Davos. Temos 2,5 mil atividades, que refletem uma grande diversidade. BF – O que se espera da representatividade desse 5º FSM? Grzybowski – Temos alguns déficits, mesmo com a multiplicação dos fóruns regionais. O leste europeu, por exemplo. Vamos contar nos dedos as pessoas de lá que estarão presentes. O mesmo vale

em relação aos países árabes. Vem gente da Palestina, Iraque, Arábia Saudita, mas são poucos. Teremos mais gente de diferentes países do que nos outros anos, mas continuamos com um déficit geográfico e social. Esse ano não estamos trazendo vips. Claro que virá gente importante, mas não é o Fórum que vai bancar a sua vinda. Esse dinheiro foi direcionado, por exemplo, para trazer 400 indígenas.

Quem é Ex-professor da Fundação Getúlio Vargas, o filósofo e sociólogo Cândido Grzybowski é doutorado pela Universidade de Paris e fez pós-doutoramento na University College de Londres. Desde 1990, é diretorgeral do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), fundado em 1981. É também membro do comitê internacional de Organização do Fórum Social Mundial. BF – Quais são os desafios que se colocam para os movimentos e quais as mudanças na agenda com relação à nova conjuntura brasileira e mundial? Grzybowski – Temos a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que ainda não está funcionando. Isso é para comemorar, mas, ao mesmo tempo, temos desafio de saber o que vamos colocar no lugar. Não se sabe quando, mas é certo que a Alca vai voltar.

Porto Alegre (RS) – Trabalhadores, finalizam casas de bioconstrução que abrigam autoridades do Fórum Social Mundial.

Por uma comunicação livre, independente e verdadeira Cristiane Parente de Porto Alegre (RS) Uma outra comunicação é possível. A idéia, que faz eco ao lema do 5º Fórum Social Mundial (FSM), deu o tom do 1º Fórum Mundial de Informação e Comunicação, realizado um dia antes do início do FSM. Sob uma grande tenda branca na Usina do Gasômetro, jornalistas estadunidenses, italianos, brasileiros, canadenses, argentinos e africanos, entre outras nacionalidades, formavam uma verdadeira torre de babel procurando compreender os principais problemas da mídia contemporânea. Por que os meios de comunicação em regimes democráticos não fazem uma cobertura mais crítica? Por que a informação se transformou numa mercadoria e tem se curvado à indústria do espetáculo, em detrimento da representação da realidade? Essas questões, levantadas por Ignacio Ramonet, diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique, nortearam boa parte dos debates. Para ele, hoje, a situação é de “ignorância informacional”, sem saber se é possível confiar no que se lê, se o que está escrito é verdade ou será desmentido no dia seguinte.

OUSAR Para o italiano Giulietto Chiesa, do Parlamento Europeu, os movimentos sociais precisam atuar junto com os jornalistas para produzir uma mídia independente. “Um jornalista sozinho, uma mídia alternativa so-

zinha, não consegue mudar nada”, afirmou. Ele defendeu a transformação da produção da mídia independente, para poucos, num grande movimento forte e organizado em favor da democratização e socialização da informação, além de um novo tipo de educação voltada para os meios. “Temos que aprender a fazer o que não fizemos antes. Temos que ousar”. Chiesa também propôs uma aliança entre jornalistas e produtores de publicidade e entretenimento, com o objetivo de gerar informação e programação de qualidade. A atuação dos movimentos sociais foi analisada pelo teórico belga Armand Mattelart, que ressaltou a necessidade de uma teorização e uma formalização de suas atividades. O pensador reforçou a importância de a sociedade fazer as perguntas corretas: “Queremos um outro mundo, mas que mundo é esse? Que mundo é o que queremos?”, provocou. A necessidade de pensar estratégias de comunicação inovadoras para conseguir chegar a diferentes públicos foi ressaltada por Marcelo Furtado, do Greenpeace, que sugeriu uma aproximação maior entre os diversos movimentos sociais e os jornalistas. O ativista aproveitou para provocar a platéia. Por que a mídia brasileira não fala sobre as intenções do governo Lula de reativar seu programa nuclear? Por que há cadernos especializados em política e economia e não em meio ambiente?


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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Teólogos em busca da renovação R

evigorar uma corrente teológica que esteve na vértebra de boa parte dos principais movimentos sociais do continente. Esse foi o desafio de teólogos de todo o mundo que se reuniram, entre os dias 21 e 25 de janeiro, em Porto Alegre durante o I Fórum Mundial da Teologia e Libertação. Personalidades do mundo religioso como os brasileiros Frei Betto e Leonardo Boff, o chileno Sergio Torres (que participou do movimento Cristão ao Socialismo, no governo de Salvador Allende) e o espanhol Juan José Tamayo discutiram como aproximar a experiência religiosa das lutas contemporâneas, sobretudo com a temática incorporada pelo Fórum Social Mundial. “Essa combinação tem tudo a ver, pois a teologia só existe a partir da reflexão da fé em sua contextualização social, política e econômica”, avalia o jornalista e teólogo Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto. Segundo ele, o momento é apropriado para a revitalização dessa corrente, pois há um movimento na Igreja que tenta subjetivar a própria utopia. “Além disso, os temas que motivaram a teologia estão presentes ainda e, sobretudo, mais agudos, como a miséria, a questão dos negros, a opressão”, aponta. Frei Betto avalia que houve um processo de “vaticanização” da Igreja Católica a partir do papa João Paulo II, que provocou um reflexo na Teologia da Libertação. “Mas esse processo não chegou a afetar as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que preparam seu 10º encontro em

ENTREVISTA

“Os movimentos sociais no Brasil, de uma forma construtiva, têm de fazer pressão mais ativa sobre o governo”. O recado foi dado pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos, em entrevista ao jornal Brasil de Fato, em Porto Alegre, durante o I Fórum da Teologia da Libertação. Boaventura participou de uma conferência, com os religiosos, sobre os dilemas do movimento que se opõe à globalização neoliberal. Para o intelectual português, a Teologia da Libertação tem uma oportunidade de se revitalizar e participar da construção desse novo mundo possível. Brasil de Fato – O que mudou na Teologia da Libertação no contexto global de hoje? Boaventura de Souza Santos – A Teologia da Libertação estava, de alguma maneira, ligada às teorias de dependência e ao pensamento social daquele tempo. Os problemas hoje são diferentes, as questões, os instrumentos mudaram, as formas de opressão são hoje muito mais variadas. Para a Teologia da Libertação, a forma de opressão era a questão de classe, os ricos e os pobres, os trabalhadores e os capitalistas; hoje já está posto que as mulheres, os negros e os indígenas também são oprimidos. Portanto, tem de ampliar seu espectro e ser um pouco diversa para que todos esses grupos tenham sua própria teologia. BF – O senhor disse que a religião havia contribuído também para a monocultura do saber e, ao mesmo tempo, houve resistências internas a isso. Boaventura – A expansão eu-

Com o Fórum, os teólogos pretendem criar uma rede de intercâmbio de experiências de práticas religiosas libertadoras presentes em diversos movimentos sociais. “O encontro estimula essa articulação entre a prática da comunidade da fé no âmbito social e político. Os resultados disso poderão frutificar tanto para o interior dessas comunidades como para o seu entorno”, avalia o pastor luterano Walter Altmann, presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). O religioso ressalta que a pluralidade do ambiente do fórum estimula a aproximação do movimento social à reflexão teológica.

FÉ E SOCIEDADE

O não-pagamento da dívida externa é uma das principais bandeiras dos movimentos sociais da América Latina

Minas Gerais”, ressalta. Frei Betto frisa também os avanços da corrente, como a disseminação de suas bandeiras dentro da Igreja, citando a condenação da dívida externa dos países pobres.

O intelectual recentemente deixou o governo Lula por não concordar com a orientação da política econômica do governo. “Saí por dois motivos. Não concordava com a política econômica

do governo que favorece mais o mercado financeiro. Além disso, há uma razão pessoal, pois estava com dificuldade de exercer minha vocação pessoal, que é escrever”, disse o frei.

Para dom Demétrio Valentini, bispo de Jales (SP), a a fé religiosa justamente se fortalece quando defrontada com a relidade, desfazendo uma suposta incompatibilidade com a história, a sociologia e a economia. “O fórum não pode parar aqui. Todos sairão com referências para levar o trabalho adiante”, afirma. O bispo reafirma a atualidade das questões debatidas pela Teologia da Libertação, mas pondera que é preciso convergência de esforços para denunciar os novos mecanismos de exploração do homem. “A globalização neoliberal passou uma visão de mundo atrofiada, existe uma ideologia dominante que é preciso desmascarar”, considera dom Valentini. Para ele, o momento é de renovação. “Nenhum teólogo aqui está saudosista. É urgente que a Teologia da Libertação supere os esquemas tradicionais, incorporando novas temáticas e percebendo os mecanismos que, depois dos anos 80, mantêm a dominação”.

Novos temas para a libertação ropéia e o capitalismo europeu levaram para as Américas as verdades cristãs, e não a verdade da ciência, que veio depois. No século 16, a verdade cristã se impõe e destrói as outras. Os missionários fizeram uma tentativa de abordagem, aprendendo as línguas locais, mas com um objetivo central: passar a imagem da verdade. A religião foi um grande agente da monocultura e praticou aquilo que chamo de epistemicídio. Matou todos os espistêmios, todas os conhecimentos, idéias, culturas, que eram consideradas idolátricos e deviam ser destruído. Um processo de destruição cultural. Mas, desde início, havia missionários que mantiveram uma certa distância em relação a isso. Vemos, por exemplo, no próprio padre Antonio Vieira, aqui no Brasil, uma ambigüidade a respeito da expansão colonial. Portanto, há sementes de resistência que ficaram dominadas durante muito tempo, mas que ajudam a explicar por que razão essa grande empresa dos serviços religiosos das Américas, uma das primeiras transnacionais da história, digamos assim, vai se transformar de pouco em pouco em um instrumento de resistência. Em um momento, a opção é ambígua, mas a certa altura esteve ao lado dos oprimidos. Portanto, foi um agente da monocultura, mas tem toda sua especialidade de ser também um agente de tecnologias do saber, de troca experiências de espiritualidades que estão sendo procuradas hoje. BF – Hoje não há um distanciamento entre o discurso contra-hegemônico do Fórum e o cotidiano dos oprimidos?

Quem é

uma forma de espiritualidade que não segue a ortodoxia e busca a experiência religiosa a que mais se adapta. Por vezes, essa não é nem a de seu país, mas a de outros países. Temos de criar a teologia da tradução, que se assenta na idéia de que é possível criar pontes entre as diferentes tradições religiosas. Em vez de criarmos dogmatismos, temos de criar mecanismos de tradução que permitam mostrar que todas lutam, à sua maneira, pela afirmação da dignidade humana.

Agência Brasil

Jorge Pereira Filho de Porto Alegre (RS)

Paulo Pereira Lima

Em encontro, pensadores de várias igrejas debatem o desafio de revitalizar a Teologia da Libertação na América Latina

Doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, Boaventura de Souza Santos é professor titular da Universidade de Coimbra. Um dos principais intelectuais da língua portuguesa na área de ciência sociais, publicou recentemente Pela Mão de Alice e A Crítica da Razão Indolente. Atualmente, está envolvido em uma pesquisa sobre a reinvenção da emancipação social. Boaventura – Penso que sim. Creio que os que mais precisam do Fórum Social Mundial não estão aqui, porque não têm dinheiro para vir, porque não podem se deslocar da África, por exemplo. Mesmo no Brasil, fizemos um estudo para ver quantos habitantes das favelas de Porto Alegre estavam no fórum, e não eram muitos. É preciso voltar à base. Caso contrário, essa globalização alternativa não chegará aos seus objetivos. BF – O senhor também fala da necessidade de radicalizar a democracia. Qual o espaço disso em um mundo com um poder imperial cada vez mais vigoroso? Boaventura – Por um lado, as forças conservadoras estão atuando no sentido de estreitar ainda mais os limites da democracia. A chamada “mãe das democracias”, a estadunidense, é uma democracia doente. Hoje, os estudantes de lá se mobilizam para defender os votos contra a fraude eleitoral. Isso era um

problema de terceiro mundo, mas agora está no primeiro. A democracia estadunidense está sendo minada por essa revolução da direita reacionária conservadora, amparada pelos poderes econômicos e grupos religiosos. Por outro lado, há uma série de experiências importantes que vão em sentido oposto. Um exemplo é o orçamento participativo e outras iniciativas que ampliam a participação dos cidadãos, aumentam a transparência do poder e obtêm distribuição social por meio de formas de democracia de alta intensidade a nível local. O que não foi possível, até o momento, foi ultrapassar essa escala. É um processo longo, mas temos de impulsionar para que ocorra em escala nacional. BF – Como as religiões podem atuar na construção desse outro mundo possível? Boaventura – Articulando-se. Nenhuma religião tem a receita da dignidade humana. Hoje, há

BF – O último FSM realizado no Brasil foi marcado pela grande expectativa quanto às possibilidades de Lula no governo. Dois anos depois, qual é a sua especificidade, hoje? Boaventura – O Fórum é algo mundial, não está sujeito às políticas internas de Porto Alegre ou do Brasil. No entanto, é evidente que há uma desilusão em relação ao governo Lula, mas eu continuo a manifestar alguma solidariedade. Não sou daqueles que pensam que houve uma traição completa dos objetivos, penso que estamos no grau zero entre o medo e a esperança e há possibilidade de a esperança vencer o medo. É um processo político muito complicado e a minha mensagem é que os movimentos sociais no Brasil, de uma forma construtiva, têm de fazer pressão muito mais ativa sobre o governo. O governo está sendo muito pressionado pelas forças poderosas do mundo e do Brasil e é necessário uma pressão contrária. (JPF) (Entrevista na íntegra em www.brasildefato.com.br)


Ano 3 • número 100 • De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO ESTADOS UNIDOS

Reeleição fortalece política imperial Em seu discurso de posse, em 21 de janeiro, o presidente estadunidense prometeu mais intervenções militares no mundo

I

naugurando seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos, em 21 de janeiro, George W. Bush defendeu a intensificação de intervenções militares em países que “atentem contra a segurança dos estadunidenses” e “onde a população esteja vivendo sob governos tirânicos ou opressores”. A reação imediata ao discurso foram, de um lado, aplausos desenfreados das centenas de pessoas que acompanharam, dentro de uma arena montada em Washington, a posse do presidente e, de outra parte, do lado de fora da cerimônia, ecos de vaias e palavras de ordem dos milhares de pessoas, que saíram às ruas contra a política de Bush. Para seus apoiadores, o governo estadunidense organizou bailes, regados a muito champanhe, e tiveram direito a reuniões a portas fechadas todos os que contribuíram com mais de 250 mil dólares para a campanha da reeleição do presidente. A recepção para os manifestantes foi em outro tom: além da mobilização de 7.000 policiais, foi montado um esquema de segurança com tanques e lançamísseis. No total, a posse custou 40 milhões de dólares, 17 milhões dos quais para segurança, e foi a mais cara de toda a história dos Estados Unidos. Quase silenciados, e ausentes da cobertura dos grandes meios de comunicação estadunidenses, os manifestantes não conseguiram impedir a continuação do discurso de posse. Bush prosseguiu: “Todos os que vivem em tiranias e sem esperança precisam saber que os Estados Unidos não vão ignorar sua opressão, ou ter piedade dos opressores. Quando vocês se levantarem por sua liberdade, nós levantaremos com vocês”. E mais: “Caminhamos para a frente com extrema confiança no triunfo da liberdade. Não porque a história seja guiada pelas rodas da inevitabilidade, pois são as escolhas humanas que criam acontecimentos. Não porque nos consideramos a nação iluminada,

atua em uma entidade de apoio a minorias, a Western States Center: “A direita estadunidense está bastante unificada. Já a esquerda está em uma situação muito complexa. Há um movimento sindical extremamente burocratizado e elitista. Os movimentos sociais que existem são muito segmentados. Há lutas específicas, mas não há uma coordenação estratégica que articule a luta”.

Andreas Solaro/AFP/AE

João Alexandre Peschanski da Redação

NAÇÃO CINDIDA

Máscara de Bush abraçando Osama bin Laden usada na parada de carnaval pelas ruas de Viareggio, na Itália

pois é Deus quem move e escolhe como quer. Temos confiança porque a liberdade é a esperança permanente da humanidade”.

MANIPULAÇÃO DAS PALAVRAS As palavras “liberdade” e “livre” aparecem 49 vezes no discurso de 15 minutos de Bush. Para a economista Anuradha Mittal, do Instituto Oakland, entidade de análise política dos EUA, no vocabulário do presidente estadunidense, os termos não têm a noção positiva à qual são geralmente associados. “Não são mais do que ferramentas para fortalecer a política imperial, trazendo algum tipo de legitimidade para uma agenda de dominação global. Usa as palavras para esmagar o dissenso na sociedade civil e países, como a Venezuela, que não seguem a orientação do governo estadunidense”, afirma Anuradha. Ou seja, quando Bush diz “é preciso expandir a liberdade”, entenda-se: “É preciso expandir o Império”.

A primeira frase do discurso do presidente estadunidense indica o fio pelo qual se deve orientar a compreensão do que fala. Segue: “Para o segundo mandato, nossas tarefas são definidas não pelas palavras que uso, mas pela história que vimos juntos”. Segundo Anuradha, é exatamente o contrário, pois é preciso captar o sentido pleno das palavras. “A liberdade da qual Bush fala precisa ser interpretada a partir das experiências dos pobres e marginalizados. Para eles, refere-se à ‘liberdade para invadir outros países’, à ‘liberdade para o comércio, a privatização da economia, da água e até mesmo da vida’. É a liberdade de tomar dos pobres e entregar aos ricos”. Assim, a recorrência dos termos “liberdade” e “livre” no discurso assusta. O cartaz de um manifestante, nas ruas de Washington durante a posse, dizia: “Quatro anos de liberdade para Bush, Quatro anos de guerras para o mundo”. Como no primeiro mandato, o programa

político do governo sugere muitos investimentos em armas, principalmente para ações internacionais, e poucos para as áreas sociais. Na mira do presidente estão países como Irã e Coréia do Norte, designados publicamente por Bush como “inimigos da liberdade”. E não há indícios de que as tropas estadunidenses sairão do Afeganistão e Iraque.

AMEAÇA MUNDIAL O segundo mandato de Bush torna o mundo mais perigoso, segundo mais da metade da população de 21 países, em que a rede britânica BBC fez pesquisa de opinião. Pelo estudo, divulgado dia 19 de janeiro, 58% dos entrevistados disseram que a vitória do presidente é uma ameaça à paz mundial, contra 26% que consideraram sua liderança positiva. No Brasil, o índice de rejeição a Bush atingiu 78%, o terceiro maior, depois de Turquia (82%) e Argentina (79%). Diz Lucilene Lira, brasileira que mora há 15 anos nos EUA e

Apesar de ter sido reeleito, Bush não conta com o apoio incondicional da população estadunidense. No momento que inicia seu segundo mandato, sua taxa de aprovação está em 49%, segundo a pesquisa da BBC. E 56% dos estadunidenses acreditam que o presidente dirige mal o país, a pior avaliação nesse item desde que chegou à Casa Branca. Para o agricultor dos Estados Unidos Stephen Bartlett, ligado à Via Campesina, Bush venceu por conta da incapacidade, por parte da agremiação que disputou com ele, o Partido Democrata, em apresentar uma alternativa viável e de peso. “Muitas pessoas votaram em Bush por medo do terrorismo ou por apoiarem sua posição contrária ao aborto e aos homossexuais”, analisa Bartlett, para quem o presidente não vai contar com apoio popular maciço. Segundo o agricultor, como para Anuradha e Lucilene, o principal desafio é articular a resistência ao governo, deixando claro que a política imperial não é consenso nos Estados Unidos, e muito menos no mundo. “A diversidade de perspectivas dá à sociedade civil muito de sua força. E a essa força o governo atual vai ter que prestar contas. São as pessoas que vão falar de ‘liberdade’, ‘direitos humanos’ e ‘dignidade humana’, fazendo-se reconhecer pelo mundo e desafiando a posição débil de Bush”, conclui a economista do Instituto Oakland. (Colaboraram Hannah Clarke, de Washington, Estados Unidos, Dafne Melo e Igor Felipe Santos, de Guararema, SP)

ANÁLISE

Immanuel Wallerstein Há bastante certeza sobre qual política George W. Bush vai seguir, no segundo mandato, no âmbito interno estadunidense, pois ele já a anunciou com clareza: vai impor mais cortes fiscais. Vai tentar privatizar o mais que possa da seguridade social. Vai nomear apenas juízes conservadores, nos campos econômico e social. Vai tentar desmantelar a legislação ambiental. Vai tentar reforçar as autoridades policiais. Em resumo, seu programa é o clássico da direita. No entanto, sua política externa é mais obscura. No primeiro mandato, se comprometeu com ações dissuasórias, onde e quando julgasse conveniente, mas essa política não teve muitos êxitos, mesmo aos olhos de seus simpatizantes, que em grande parte exigiram a renúncia do secretário de Estado Donald Rumsfeld. A questão imediata é o Iraque, com cujas eleições dia 30 de janeiro os EUA têm a esperança de desviar de si para o novo governo, a hostilidade dos insurgentes, com o que se poderia. É quase certo que as eleições serão realizadas em meio a uma contínua violência e com grande abstenção, em especial nas áreas sunitas. É provável que o novo primeiro-ministro seja o aiatolá Sayed

al-Hakim, líder do principal partido xiita, de sigla em inglês Sciri. É quase certo que a insurgência continuará, acusando o novo governo de ser uma marionete dos Estados Unidos. E logo o novo governo iraquiano terá de escolher entre uma política abertamente pró-EUA ou uma política mais nacionalista, como quer o povo iraquiano; este último parece o rumo mais provável, para que o governo alcance mais legitimidade. A pressão para que os EUA retirem suas tropas virá então de três lados: dos insurgentes, do novo governo iraquiano e da opinião pública estadunidense. Nos EUA, todas as pesquisas indicam que cada vez mais pessoas julgam por demais elevados os custos humanos e financeiros da guerra. Os EUA estão à beira de nova onda isolacionista, em especial entre os republicanos. Sem dúvida, outros elementos no governo Bush, como os militaristas e os neoconservadores, que não são idênticos entre si, vão combater duramente os isolacionistas. Mas esse campo intervencionista está muito mais fraco do que em 2003. Podemos estar prestes a presenciar uma enorme virada na política externa estadunidense, mais semelhante às posições de “multilateralismo”, defendidas por Colin Powell. O que acontecer no Iraque dará o rumo da política externa de Bush.

Esse já deteve seus impulsos em relação à Coréia do Norte e ao Irã. Os integrantes de sua equipe ficariam felizes se conseguissem novas negociações entre Israel e a Palestina, impulsionadas particularmente por Blair e que parecem não ir muito longe. Nesse campo, a posição reservada de Bush o preservará de prejuízos internos. Onde, no mundo, Bush pode atuar agora? Em Cuba? Mas hoje existem funcionários estaduais no Alabama, no coração eleitoral de Bush, que dizem que, se não venderem frangos a Cuba, o Brasil venderá. Na Rússia? Vimos como, apesar das críticas a Putin na imprensa dos EUA, a propósito das eleições na Ucrânia, Bush manteve sua aliança com Putin. Na China? Os interesses econômicos estadunidenses impedem qualquer hostilidade, apesar da preocupação do governo de Bush com a maior influência da China na Ásia. Na Europa? Mesmo a “Nova Europa” de Rumsfeld começa lentamente a abandonar os EUA. Em resumo, Bush não tem muitas opções. Como o mundo vai reagir a esse novo isolacionismo militar e econômico dos EUA? Se pode esperar que, depois de um período inicial de cautela, todo mundo vai tentar tirar vantagem dessa nova demonstração da debilidade geopolítica dos EUA. O problema é que, uma vez redu-

CMI

Bush e o mundo: o segundo período

Protesto na posse de Bush: caixões enfileirados no Malcom X Park, Washington

zida a presença estadunidense no mundo, a situação se torna semelhante à retirada de um elefante de dentro de uma sala. Ninguém sabe como preencher o espaço deixado livre. E é provável que ninguém tenha preparado um conjunto de políticas para esse caso. Então, por causa da insegurança, haverá muitas voltas e contravoltas entre os outros atores geopolíticos. Os Estados Unidos já eram uma potência hegemônica em decadência quando Bush chegou ao poder em 2001. Ao buscar restaurar a posição mundial dos EUA nos seus quatro primeiros anos na presidência, Bush, de fato, tornou a situação mais grave. Neste segundo mandato, os Estados Uni-

dos (e Bush) vão colher a loucura que semearam. Immanuel Wallerstein é professor emérito de Sociologia da Universidade de Binghamton. Diretor do Fernand Braudel Center for the Study of Economics, Historical Systems and Civilizations. Presidente da International Sociological Association. É autor de vários livros. Obras em português: Após o liberalismo: em busca da reconstrução do mundo (Vozes, 2002); Capitalismo histórico e civilização capitalista (Contraponto, 2001); Para abrir as Ciências Socias (Cortez, 1996)


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INTERNACIONAL IMPÉRIO

Uma frente única contra o fascismo João Alexandre Peschanski de Guararema (SP)

France Presse

Para o historiador Kiva Maidanik, Bush e Hitler têm projeto similar, e desrespeitam todos os direitos humanos ma incondicional, até a última gota de sangue. É como se o governo fosse uma escolha divina, a ser seguida, sem julgamento. Bush se aproveita de tudo que está a seu favor. Por um lado, o presidente russo, Vladimir Putin, defende o discurso do governo estadunidense. A China, que poderia impor algum tipo de resistência, depende economicamente dos Estados Unidos, e não pretende entrar em conflito. Não agora, pelo menos. A Europa está cindida e, por isso, enfraquecida: há a corrente dos países pró-Bush, como Itália e Inglaterra, e os que tentam levantar algumas críticas pontuais, como França e Alemanha.

C

omparar o governo dos Estados Unidos, e sua política imperial, com o nazismo alemão não é exagero. Os dois projetos surgem em uma conjuntura similar: nascem de uma crise estrutural, defendem a concentração de poder pelo Estado e têm uma visão maníaca do futuro, colocando em risco toda a humanidade. A análise é do historiador russo Kiva Maidanik, um dos principais intelectuais marxistas da atualidade, para quem, em função do que chama de “bushismo”, em referência ao presidente estadunidense, George W. Bush, está-se “vivendo um período de perigo mundial”. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, durante a inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, no interior de São Paulo, no dia 23 de janeiro. Kiva, que prefere não ser chamado pelo sobrenome, defende a criação de uma frente única, com movimentos sociais, grupos políticos e partidos somando forças contra o “bushismo”. Segundo o historiador, o Fórum Social Mundial, que ocorre em Porto Alegre (RS), de 26 a 31 de janeiro, é um espaço privilegiado para viabilizar a resistência maciça contra o Império.

Para o historiador russo Kiva, a resistência ao Império virá principalmente dos iraquianos e movimentos sociais da América Latina

Quem é Professor do Instituto de Economia Mundial e Relações Exteriores da Academia de Ciências de Moscou, na Rússia, Kiva Maidanik é considerado um dos principais intelectuais marxistas da atualidade. Sua obra, extensa, aborda os desafios da esquerda em diversos continentes, como Europa, América Latina e América do Norte. como a Organização das Nações Unidas (ONU), no caso de Bush. BF – Que crise fez o “bushismo” emergir? Kiva —Até o final dos anos 70, o capitalismo se desenvolveu dentro de um certo tipo de sistema. No capitalismo de pós-guerra, com produção e consumo de massa, o Estado teve um papel importante, de regulador, e não havia diferenças qualitativas entre o modelo europeu e o estadunidense. No fim daquela década, o sistema capitalista entrou em crise, por conta da mudança de base tecnológica. Antes, era o capitalismo do petróleo barato, carro barato e consumo em larga escala. Desde então, entrou-se em uma era de informação barata, cujos principais símbolos são o computador e a globalização. Nessa lógica, surge o neoliberalismo, como um fundamentalismo de mercado, em que o mercado decide e administra tudo. Todo o resto é marginalizado: povo, Estado... Quem decide as políticas é a lei da rivalidade e competitividade. A América Latina esteve em lua-de-mel com o neoliberalismo desde o seu surgimento, cujo projeto marcou profundamente as políticas dos presidentes Carlos Menem, da Argentina, e Fernando Henrique Cardoso, do Brasil. BF – Por que e quando o cenário mudou? Kiva – Até 1997, não havia política agressiva dos Estados Unidos. A lua-de-mel correspondia a uma fase transição do capitalismo, em que coexistiam velhos e novos costumes, como as políticas de

Anderson Barbosa

Brasil de Fato – No dia 21 de janeiro, Bush iniciou seu segundo mandato como presidente estadunidense. No discurso de posse, ele falou de “supremacia dos Estados Unidos” sobre o mundo e defendeu uma política de intervenção militar em países que “atentem contra a democracia”. O que esperar de mais quatro anos de governo Bush? Kiva Maidanik – Pela pessoa do Bush mesma, não há impacto algum. O problema é o “bushismo”, como forma de pensamento dominante. Do mesmo modo, não se pode confundir Império e imperialismo. São fenômenos distintos. Imperialismo é uma política do capitalismo mundial, que não se relaciona necessariamente com um país. O líder soviético Lênin dizia que o imperialismo é uma etapa do capitalismo mundial, que nasceu no início do século 20. O neoliberalismo, do mesmo modo, é uma etapa do capitalismo, já do final do século passado. Fenômenos como o fascismo e o “bushismo”, ou Império, não são simplesmente etapas do capitalismo, são ameaças de caráter estrutural que podem ser fatais para toda a humanidade. Assim, não se pode associar Império, imperialismo e neoliberalismo. Estamos vivendo um período de perigo mundial, e precisamos tomar cuidado. BF – Não são raras as referências ao fascismo para criticar governos e sistemas. O que quer dizer quando associa o termo ao projeto político de Bush? Kiva – No passado, abusamos das referências ao fascismo, sem realmente entender o sentido do fenômeno. Gritamos “olha o lobo, olha o lobo” em falso, mas hoje o lobo está aí, terrível e real. A similaridade entre os dois projetos imperiais – o hitlerismo, que defendia um Império global, controlado por uma raça biologicamente superior, e o “bushismo”, que preconiza o domínio do mundo por um Estado escolhido por Deus – se dá: pelo tipo de gênese histórica, pois os dois projetos nascem de crises; pela missão histórica que se colocam, que é controlar, pela força do Estado, a crise; por um aspecto maníaco nas propostas para o futuro; e pelo desrespeito absoluto aos direitos humanos mais elementares e às instituições internacionais,

Para o Império, a comunidade internacional não pode resolver os problemas do mundo, e é preciso que os EUA assumam o papel de definir as estratégias de sobrevivência do planeta

Margaret Thatcher, na Inglaterra, e o Estado de bem-estar social em alguns países europeus. Mas a transição não podia durar para sempre. O capitalismo só se mantém dentro de um modelo integral, quando há apenas um projeto, um sistema dominante. O modelo híbrido do neoliberalismo começou a mostrar sinais de crise no México, em 1994, na Rússia, em 1998, no Brasil, em 1999, e na Argentina, em 2001. No final da década 90, os capitalistas compreenderam que não podiam deixar o sistema à mercê dos fluxos de espontaneidade do mercado. Era preciso controlar o modelo, e chegou-se à questão central: de que forma? Qual era o modelo integral a ser implementado, que vinculasse o aspecto econômico, político, social e cultural?

Fenômenos como o fascismo e o “bushismo” são ameaças de caráter estrutural que podem ser fatais para toda a humanidade BF – O “bushismo” surge como a resposta dominante? Kiva – É uma correlação de forças. Não foi a primeira vez que ocorreu. No final da 1ª Guerra Mundial, em 1918, três vertentes disputavam o controle do modelo político. A primeira, que saiu vitoriosa, foi o reformismo

burguês, marcado pela figura do presidente estadunidense Theodore Roosevelt, cujo objetivo era controlar o Estado para dar um rumo ao capitalismo. A segunda era o fascismo e a terceira, a opção revolucionária, que defendia a tomada do poder pela classe trabalhadora. As vertentes eram diferentes, mas todas propugnavam fortalecer o papel do Estado. Na crise do neoliberalismo, há também três vertentes. A progressista, que, como o Fórum Social Mundial, defende que um outro mundo é possível; o neoliberalismo, que chamo de revisto, cujos fundamentos estão no Consenso de Washington, mas propõe meios de controlar as crises, tendo como um de seus gurus o especulador George Soros; e, por último, o “bushismo”. Não se trata da pessoa de Bush, mas de um grupo que toma o poder com ele, e cria um novo projeto político, no qual se pode ressaltar a influência do subsecretário de Defesa, Paul Wolfowitz, e do vice-presidente, Dick Cheney. BF – Como se define esse projeto político? Kiva – Para a lógica do Império, a comunidade internacional, especialmente a ONU, não pode resolver os problemas do mundo, como o terrorismo. É preciso que os Estados Unidos, como potência mundial, assumam o papel de definir as estratégias de sobrevivência do planeta. Há três forças que fundamentam o “bushismo”. Duas são óbvias, enquanto a terceira ainda não parece ter sido levada suficientemente a sério. Primeiramente, um ultranacionalismo exacerbado, que faz com que boa parte dos estadunidenses coloque o valor da pátria acima de muitos outros. Em segundo, o surgimento de um imperativo monopolista para o petróleo e as armas. Vale salientar que outros setores da burguesia preferem o não-unilateralismo comercial, com a fragmentação e terceirização de responsabilidades. Por último, o fundamentalismo religioso. É um fator decisivo para a expansão e manutenção do “bushismo”, pois 40% dos estadunidenses apóiam o projeto político de for-

BF – De onde vai vir a resistência? Kiva – Por um lado, dos povos do Oriente Médio, principalmente os iraquianos. Do outro, da mobilização social da América Latina. Bush pretende se livrar da resistência do Oriente Médio para depois, talvez em 2008, impor seu projeto político na América Latina, por meio da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Na América do Norte, há três forças principais que se opõem ao “bushismo”: a intelectualidade, que é ferozmente, até mais que os cubanos, anti-Bush; os sindicatos, que são contra a globalização, acreditando que pode levar à diminuição do nível dos salários dos trabalhadores estadunidenses; e os movimentos de minoria, que, mesmo com algumas más surpresas no último pleito, continuam, em sua maioria, contrários à política imperial de Bush. A luta dentro dos Estados Unidos é fundamental, e deve ser apoiada de todos os modos. BF – No Fórum Social, como se pode articular a resistência? Kiva – O Fórum é um espaço privilegiado, e não há um formato a ser seguido. Deve ser construído. Parece-me que é preciso enfocar, claramente, a luta contra o Império, e, em especial, o aspecto do fundamentalismo religioso. Para isso, coloca-se uma série de questões, que serão respondidas no próprio evento. Será que o Fórum deve apresentar um programa? Muitos defendem que, se outro mundo é possível, é preciso dizer como é esse outro mundo. Isso supõe, então, um programa positivo, que é algo que deve ser construído com calma e muita discussão. O objetivo é criar uma frente única, com movimentos, grupos políticos e até partidos, que tenham como trazer uma voz alternativa forte ao Império. De uma forma tal que se crie ainda mais participação. Uma frente única, baseada no dissenso, pois sabemos que o consenso é burro, que consiga resolver, de uma vez por todas, a ameaça mundial que é o “bushismo”. E a frente contra o projeto político do governo de Bush é contra o fascismo.


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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA

Depois do protesto, províncias autônomas Micheline Matos de La Paz (Bolívia)

A

s recentes mobilizações populares na Bolívia não conquistaram apenas a expulsão da transnacional Suez-Águas de Illimani do país. Além da onda de protestos contra o monopólio da água, do gás e dos hidrocarbonetos e da pressão contra o governo do presidente Carlos Mesa, toma forma agora um novo movimento autônomo, nas províncias de Santa Cruz e Tarija. Fragilizado pela pressão popular, Mesa tenta negar o movimento separatista, ao afirmar que “a unidade do país não está em questão; eles querem a nação e a soberania”. Segundo Mesa, os 2,3 milhões de moradores de Santa Cruz querem tanto a Bolívia como a sua autonomia. O discurso, proferido dia 23 de janeiro, contraria a decisão de líderes populares da região, que querem constituir um regime autônomo de La Paz. “Decidimos realizar uma assembléia de instituições, em que vamos reivindicar a necessidade de uma grande marcha e a realização de uma nova estrutura de poder, simultaneamente com Santa Cruz”, anunciou Roberto Ruiz, presidente do Comitê Cívico de Tarija, na fronteira com a Argentina. Tarija é uma das regiões de menor desenvolvimento, mas possui 85,6% das reservas de gás natural do país, estimadas em mais de 53 bilhões de pés cúbicos. De suas fontes saem os principais volumes de exportação, de 65,5 milhões de metros cúbicos diários de gás para a Argentina. Paralelamente, 10 mil motoristas paralisaram o trânsito em Santa Cruz, a leste de La Paz, exigindo o cancelamento de um aumento recente do preço dos de-

Aizar Raldes/AFP

Mobilizações geram movimento autônomo em Santa Cruz e Tarija, que revela a fragilidade do governo Carlos Mesa

Desde 2000, cresce mobilização popular na Bolívia contra o modelo econômico adotado no país

rivados de petróleo e em apoio à exigência regional para constituir um governo autônomo de La Paz. Ativistas do Comitê Pró-Santa Cruz (CPSCZ), formado por líderes civis e empresariais, multiplicaram a ocupação de escritórios e dependências estatais. Um exemplo é o escritório do prefeito (no Brasil, o correspondente a um governador) Carlos Hugo Molina, designado para o cargo há 14 meses, pelo presidente Mesa, que permanece nas mãos dos integrantes do comitê. Molina desapareceu, mas antes falou à população de Santa Cruz, pela televisão, reafirmando uma autoridade que os membros do comitê se negam a reconhecer.

MARCHAS E PROTESTOS Depois da série de protestos recentes, a Federação de Juntas Vecinais de El Alto (Fejuve) deter-

minou a interrupção das medidas de pressão, assim que os nove distritos da cidade aceitaram o decreto, assinado pelo governo de Carlos Mesa, que determina o início do processo de encerramento do contrato de concessão com a empresa SuezAguas del Illimani. Desde então, a situação ficou mais tranqüila e as paralisações foram suspensas, apesar de os dirigentes continuarem em alerta. A paralisação foi um êxito por sua unidade, contundência e caráter pacífico. Mais que uma guerra da água, foi um levante pela água, no qual não houve mortos nem feridos. “A população saiu às ruas para bloquear todos os bairros da cidade de El Alto, exigindo que a água seja um serviço público e não um negócio privado. Agora, os vizinhos analisam o tipo de empresa que se formará para o serviço de água e esgoto em La Paz e El Alto. Por en-

quanto, só se sabe que será uma associação civil, sem fins lucrativos”, diz Pablo Solón, ativista da Aliança Social Continental (ASC).

VITÓRIA POPULAR O crescimento da mobilização popular na Bolívia vem desde 2000, quando uma outra grande mobilização expulsou do país a transnacional Bechtel, que lucrava com a água de Cochabamba. Desde então aconteceram vários protestos de rua e bloqueios, questionando os posicionamentos neoliberais e a privatização de empresas e serviços públicos. Em 2003, um ajuste tributário aos cidadãos (a proposta era impor impostos ao salário) desencadeou um enfrentamento entre policiais e militares, com mais de 20 mortos em fevereiro. Em outubro de 2003, uma insurreição popular derrubou o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. No começo

de 2004, um aumento de preços da gasolina e do diesel desencadeou mais protestos contra o modelo econômico do presidente Carlos Mesa e reacendeu o movimento popular em El Alto, com a exigência da saída da transnacional francesa que operava a administração do serviço de água e esgoto. O desejo de recuperar o controle das empresas estratégicas de serviço público, entregues ao capital estrangeiro nos anos 90, se consolidou nos últimos quatro anos e hoje se vêem os resultados. Sólon analisa: “A última mobilização demonstra que a grande maioria dos cidadãos bolivianos, golpeados pelo modelo econômico, está disposta a sair às ruas para transformá-lo pela ação direta. Cada vez é mais evidente que os movimentos sociais duvidam das vias parlamentares para reconduzir a política econômica, e que preferem aplicar métodos próprios por serem efetivos”. Hoje Carlos Mesa caminha na corda bamba. Trata-se do governo mais fraco da recente era democrática do país, que dura quase 20 anos: nâo tem apoio parlamentar ou partido que o sustente politicamente. Seu lado mais fraco é que ainda mantém a linha neoliberal aplicada por seu antecessor. Os movimentos sociais têm certeza de que Mesa obedece fielmente as ordens dos organismos internacionais como FMI e Banco Mundial, e que defende os interesses das empresas petrolíferas. Argumentam, por exemplo, que ele recorre ao aumento dos preços dos derivados do petróleo para cobrir o déficit fiscal, como qualquer outro governo neoliberal clássico. O futuro de Mesa é uma incógnita, e ninguem pode dizer se ele passará ou não o ano como presidente.

ARGENTINA

Kirchner segue agenda neoliberal Claudia Jardim e Tatiana Merlino de Guararema (SP) Os movimentos sociais latinoamericanos estão colocando em xeque o neoliberalismo no continente. A opinião é do sociólogo argentino Néstor Kohan, para quem os presidentes Hugo Chávez (Venezuela) e Fidel Castro (Cuba) representam a vanguarda da luta antiimperialista. Kohan cita o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como exemplo de autonomia política diante de governos que se apresentam como progressistas. O sociólogo faz uma análise da política econômica adotada no continente. Para ele, assim como acontece no Brasil, também há contradições na política de Néstor Kirchner, que, dia 14 de janeiro, lançou a proposta de trocar a dívida de 102,6 bilhões de dólares, que deixou de pagar em 2002, por até 41,8 bilhões de dólares, em novos bônus. A operação de reestruturação é a maior da história e pode estabelecer um modelo de acordo sem precedentes. Além do Japão, grandes e pequenos investidores argentinos já manifestaram aprovação à proposta de troca de dívida. A medida recebeu a adesão de quase todos os fundos de pensão, alguns bancos e companhias de seguro do país. Já o presidente da França, Jacques Chirac, disse apoiar o esforço de renegociação, numa atitude contrária à da Itália (o maior grupo credor, com 450 mil investidores, que aplicaram um total 15 bilhões de dólares na Argentina). Para Kohan, Kirchner não é coerente, pois ao mesmo tempo em que diz não ao FMI, paga a dívida. “O programa

econômico não mudou”, avalia em entrevista ao Brasil de Fato. Brasil de Fato – Qual sua avaliação do cenário político na América Latina hoje? Néstor Kohan – Com o resultado das lutas sociais coletivas, o neoliberalismo entrou em crise no continente. Trata-se da vertente mais selvagem do neoliberalismo, iniciado com Carlos Menen na Argentina, com Fernando Collor de Mello no Brasil e com Alberto Fujimori no Peru. Paralelamente a isso, há um processo de transformação social que avança na Venezuela, acompanhando a revolução cubana, que estava muito solitária na resistência às pressões do imperialismo. O governo Chávez é um governo popular, sério, que propõe mudanças radicais. Cuba e Venezuela são, neste momento, a ponta de lança antiimperialista no continente. No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ainda que não tome o poder amanhã, tem organizado as massas, tem capacidade de pressionar o governo e mantém o que considero fundamental: a autonomia. BF – Os movimentos sociais mantêm essa autonomia quando vêem seus “representantes” no poder? Kohan – Não acredito que o ideal é a busca da governabilidade. Isso foi instalado pelos setores conservadores na agenda da esquerda. O que precisamos manter é a democracia, na medida em que beneficie o povo. Quando essa democracia é utilizada para estabelecer e

Quem é Sociólogo e filósofo argentino, Néstor Kohan é professor universitário, coordenador das cátedras “Leitura crítica e metodológica de O Capital”e “Formação Política em Ernesto Che Guevara”, da Universidade Popular das Mães da Praça de Maio. É autor de vários livros, entre eles Ernesto Che Guevara: Otro mundo es posible e De ingenieros al Che: Ensayos sobre el marxismo argentino y latinoamericano. aprofundar o neoliberalismo já, não serve, é preciso resistir. Por isso, acredito que o MST é muito importante neste novo contexto latino-americano. Na Argentina, o movimento piqueteiro surge como uma resposta de sobrevivência frente à coluna de choque do neoliberalismo. Com Menen, o número de desempregados, que era de 6%, passou para 20%. Não exatamente o que seria desejado, mas com experiências muito diversas. BF – Nesse sentido, qual sua avaliação dos chamados “governos progressistas”? Kohan – Governos como o de Lula, Kirchner e – tomara que me equivoque – a recém-eleita Frente Ampla no Uruguai, têm posição mais progressista e se diferenciam da política tradicional dos anos 90. Mas mantêm a política de déficit zero, de redução de gastos estatais, de moeda forte. Esse é um dos núcleos do neoliberalismo.

BF – Mas, com exceção de Kirchner, são governos que defendiam propostas à esquerda. Kohan – Aí a situação se complica. Quando Menen aplicava as regras impostas pelo FMI, todos sabiam que ele era de ultradireita, o que ele mesmo admitia. No entanto, as mesmas pessoas que aplicam essa política econômica ortodoxa são as que choram publicamente pelos desaparecidos da ditadura militar. A situação é complicada e, à esquerda, surgem novos desafios. Na Argentina é mais difícil, porque não existe a unidade política conquistada pelo MST, por exemplo. Na Argentina existem 40 movimentos piqueteiros, a maioria sem autonomia política; ou foram cooptados pelo governo ou caíram na marginalidade, não têm capacidade política de mobilização. Quando Kirchner chegou, os cidadãos de classe média recebiam os piqueteiros com chá e um pedaço de pão. A palavra de ordem era “Piquete e cacerola, la lucha es una sola”. O grande êxito de Kirchner, que fala em tom progressista, foi isolar o movimento popular de seus aliados da classe média. BF – Como isso ocorreu? Kohan – Primeiro, pela grande fragmentação. Segundo, pela debilidade econômica. A base do movimento piqueteiro tem, como auxílio social 150 pesos, correspondentes a 50 doláres, que não cobrem quase nada. Falta comida. Nesse grau de miserabilidade, o processo de negociação se torna frágil. Muitos deixam de ser radicais porque precisam comer. Qual é o papel do governo? Se os

piqueteiros dizem que necessitam de 300 mil, o governo oferece a eles 500 mil pesos, desde que não se manifestem ou fechem as ruas. O governo investe em comprar dirigentes sociais, oferecendo cargos públicos. O movimento Barrios de Pie, que vem de um partido originário do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, foi se integrando pouco a pouco. Hoje, é força do governo. BF – A falta de unidade permite esse processo de cooptação? Kohan – Sem dúvida, e o governo sabe e opera a partir disso. Com o apoio dos meios de comunicação, o governo conseguiu dividir o movimento entre piqueteiros “fortes” e “fracos”, os intransigentes e os que dialogam. Aos radicais a resposta é a repressão. Aos outros, dizem que vão negociar, dão dinheiro. BF – O governo argentino reclama, mas segue pagando a dívida. Kohan – Na mesma semana que diz não ao FMI, paga a dívida. O programa econômico não mudou e prossegue a redução de gastos sociais para o pagamento da dívida. BF – Mas economistas atribuem o crescimento econômico da Argentina justamente à tentativa de reestruturação da dívida. Essa análise se reflete no cotidiano da população? Kohan – Não. O crescimento econômico beneficiou um setor da classe média e um setor do empresariado, que são os exportadores. A família que está sem trabalho não mudou de vida.


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INTERNACIONAL QUÊNIA

Dez anos para atingir as metas do milênio E

mbora 10 anos possam parecer um tempo considerável para implementar políticas sociais e de desenvolvimento, não são suficientes para que países como o Quênia alcancem os objetivos de desenvolvimento do milênio, fixados em assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU). “A menos que sejam tomadas medidas drásticas, o Quênia não poderá chegar às metas do milênio antes de 2015”, afirmou Charity Ngilu, ministra da Saúde do país africano, depois de a ONU divulgar uma lista de recomendações para que tais objetivos sejam alcançados. O informe de três mil páginas, intitulado “Um plano prático para alcançar os objetivos de desenvolvimento do milênio”, foi elaborado por uma equipe de 286 especialistas, liderados por Jeffrey Sachs, assessor especial da ONU e professor de economia da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Os objetivos foram fixados em uma sessão especial da ONU, em setembro de 2000. Entre eles figuram garantir, até 2015, educação universal de meninas e meninos e reduzir à metade, com relação a 1990, a população de pobres, famintos e pessoas sem acesso à água potável ou meios para custeála. Outros objetivos estabelecidos pelos 189 países que na época integravam a ONU são promover a igualdade de gênero, reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde materna, combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças e garantir a sustentabilidade ambiental. Mais de um bilhão de pessoas sobrevivem com menos de um dólar por dia e outros 2,7 bilhões com menos de dois dólares diários. Anualmente, morrem cerca de 11 milhões de crianças vítimas de doenças que podem ser prevenidas, como malária, diarréia e pneumonia, segundo dados da ONU. Além disso, há 114 milhões de crianças sem acesso à educação primária e 584 milhões de mulheres analfabetas.

DRAMA NO QUÊNIA A taxa de mortalidade infantil no Quênia é de 114 mortes para cada mil nascimentos, e a mortalidade materna chega a 441 mortes em cada cem mil nascimentos. Charity Ngilu tentou remediar esta situação enviando um projeto de lei ao parlamento, garantindo assistência médica gratuita permanente a toda a população. Cerca de 56% dos 31 milhões de quenianos vivem com menos de um dólar por dia, de acordo com dados oficiais. Mas o presidente Mwai Kibaki se negou a sancionar a lei que, segundo alguns, significaria uma carga muita pesada para os contribuintes. Entretanto, Anyang Nyong´o, ministro de Planejamento e Desenvolvimento Nacional, informou que a lei será revisada e poderá estar pronta para sanção em março. O projeto de lei foi apoiado por Sachs, que visitou o Quênia nos dias 8 e 9. Muitos pediram às autoridades quenianas que adotem medidas urgentes contra o subdesenvolvimento e a pobreza, a curto prazo, para atingir os objetivos traçados para 2015.

METAS NÃO CUMPRIDAS “Este ano de 2005 tem de ser de ação. Tem de ser um ano em que todas as tarefas do governo estejam dirigidas para os pobres, para que as coisas avancem”, diz Andre de la Porte, coordenador residente da ONU em Nairóbi. Ele destaca a importância da ajuda internacional ao desenvolvimento por parte dos países do Norte industrializado.

Taxa de mortalidade infantil no Quênia é de 114 mortes para cada mil nascimentos e a mortalidade materna é de 441 em cada cem mil nascimentos

A Assembléia Geral da ONU estabeleceu, em 1970, que os países ricos deveriam destinar 0,7% de seu produto interno bruto à ajuda oficial ao desenvolvimento. Até agora, somente Dinamarca, Holanda, Luxemburgo, Noruega e Suécia o fizeram. Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Grã-Bretanha e Irlanda se comprometeram a cumprir essa meta antes de 2015. Os Estados Unidos, a maior eco-

nomia mundial e também o maior doador, destinam apenas 0,15% de seu PIB à assistência oficial ao desenvolvimento. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Colin Powell, afirmou recentemente que Washington não concorda com a fixação de uma porcentagem do PIB para a ajuda internacional ao desenvolvimento. “Não aceitamos essa definição de doação”, disse em entrevista à televisão, embora

os Estados Unidos tenham apoiado este critério em várias reuniões da ONU nos últimos anos. O relatório da ONU recomenda também que os países ricos abram seus mercados aos produtos do Sul em desenvolvimento, muitos dos quais afetados pelos altos subsídios do Norte à sua produção agrícola. Os países pobres devem receber ajuda para construir estradas, portos e in-

fra-estrutura elétrica, pois assim poderão melhorar sua competitividade, destaca o documento. O governo do Quênia destacou que sua Estratégia para a Recuperação Econômica e a Criação de Empregos, um plano de emergência social lançado em 2003, coincide com as sugestões da ONU para que sejam alcançadas as metas antes de 2015. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

Depois do maremoto, a dívida Emad Mekay de Washington (EUA) Grupos contra a dívida dos países pobres estão exigindo que o governo dos Estados Unidos respalde a iniciativa de moratória da dívida para as nações afetadas pelo maremoto de 26 de dezembro de 2004. Além dos países asiáticos, também foi duramente afetada pelo desastre a Somália, país africano que há décadas é atingido pela guerra civil, a fome, as secas e a pobreza. Uma carta, redigida pelo Serviço Mundial Judeu Estadunidense e pela Rede Jubileu/Estados Unidos, endereçada ao presidente estadunidense George W. Bush, argumenta que “simplesmente não se pode pedir aos países que paguem sua dívida, enquanto enfrentam um desastre humanitário de tal magnitude”. Indonésia, Bangladesh, Birmânia, Índia, Malásia, Maldivas, Sri Lanka, Cingapura, Tailândia e Somália foram os principais países afetados. Os 40 grupos assinalam que os países pobres investem mais no pagamento de sua dívida externa do que em saúde e educação. Por isso, exigem que Washington impulsione uma moratória que inclua tanto as dívidas bilaterais como as multilaterais com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Asiático de Desenvolvimento, aos quais os países afetados devem mais de 70 bilhões de dólares. Entre os signatários da carta estão o Advocacy Institute, Africa Action, Center of Concern, a entidade 50 Anos Bastam, Oxfam/ Estados Unidos e a Liga Internacional de Mulheres pela Paz e a Liberdade.

ÁSIA E ÁFRICA Um relatório do Banco Mundial alerta que dois milhões de pessoas correm o risco de cair na extrema

Paulo Pereira Lima

Joyce Mulama de Nairóbi (Quênia)

Paulo Pereira Lima

Apesar das recomendações da ONU, países ricos negam ajuda e país não supera miséria

Depois do tsunami, cerca de 2 milhões de pessoas correm o risco de cair na extrema pobreza na Ásia e na África

pobreza em conseqüência do maremoto, que matou mais de 170 mil pessoas e destruiu grande parte da infra-estrutura das costas da Ásia e África. Os signatários do documento entregue a Bush reclamam que os Estados Unidos e o Grupo dos Sete (G-7) países mais industrializados respaldem o cancelamento do total da dívida do Sri Lanka, Maldivas e Somália, este último uma antiga colônia italiana, em guerra civil desde 1991, quando distintas facções derrubaram o ditador Mohammed Siad Barre, para logo iniciar lutas internas. A província de Puntland declarou sua autonomia em 1998 e a província setentrional de Somalilândia, ex-colônia inglesa anexada por Mogadiscio em 1960, declarou a independência em 1991, apesar de ainda não ter sido reconhecida pela ONU.

O governo do presidente Ahmed Yusuf foi instalado em 3 de novembro de 2004. Por razões de segurança, tem sede em Nairobi, capital do Quênia, onde, desde 2002, se desenvolvem as conversações de paz. Atualmente, os clãs Hawiye, Digle-Mirifle, Dir e Darod lutam entre si. Há ainda um quinto clã, formado por 14 grupos minoritários. A guerra civil já deixou mais de 300 mil mortos, segundo agências humanitárias. “Acreditamos que, além da ajuda de emergência e para a reconstrução, é fundamental atender à carga da dívida externa enfrentada por esses países”, diz a carta, dirigida também ao secretário do Tesouro estadunidense, John Snow. Os grupos não querem que a moratória seja condicionada à aplicação de um programa do FMI, que obrigue os países a abrir suas economias a

empresas e investidores com sede em países ocidentais. As condições do FMI costumam incluir privatização de ativos públicos, o corte do déficit orçamentário mediante a redução do fasto social e o aumento da arrecadação fiscal. O cancelamento total da dívida tem sido uma demanda permanente de várias organizações não governamentais que fazem campanha contra as políticas “intrusas” de instituições financeiras multilaterais como o Banco Mundial e o FMI. O G-7 – integrado por Grã Bretanha, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e Estados Unidos – tem discutido um possível cancelamento de 100% da dívida para os países mais pobres. A próxima reunião do G-7 acontece, dias 4 e 5 de fevereiro, em Londres, para estudar melhor a proposta. (Com agências internacionais)


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AMBIENTE SEGURANÇA ALIMENTAR

Embrapa muda, a favor do agronegócio O ministro da Agricultura demite toda a diretoria da empresa por dar atenção à agricultura familiar

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oi mais uma decisão de governo para expandir o modelo agrícola exportador, baseado no agronegócio, em detrimento da agricultura familiar, defendida pelo então presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Clayton Campanhola. Seu substituto é o físico Silvio Crestana, técnico especializado no agronegócio na região de São Carlos, interior paulista. “O que se pretende é reforçar o papel da Embrapa na área de planejamento de ações para a inclusão social do agronegócio”, declarou o ministro Roberto Rodrigues, da Agricultura, para explicar a troca de comando da empresa de pesquisa. A decisão de Rodrigues teve o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, de acordo com fontes ligadas ao governo, está cada vez mais deslumbrado com o agronegócio. Mostra isso, por exemplo, a assinatura da medida provisória, dia 13 de janeiro, que liberou o cultivo e a comercialização da soja transgênica na safra 2004/2005. Há um ano, quando Roberto Rodrigues colocou seu cargo à

desenvolvida pela instituição. A seu ver, diferentemente do que argumenta o ministro de Agricultura, Campanhola se pautava pelo programa de governo do PT para a agricultura. “Ele se subordinava ao programa para o qual o governo foi eleito. Ao contrário do que faz Rodrigues”, critica Hoffman.

João Paulo Lacerda/AE

Claudia Jardim da Redação

DESEQUILÍBRIO

Pesquisadora da Embrapa durante experimento com transgênico, que terá prioridade na empresa

disposição, o que o presidente rejeitou, o ministro criticou a “insubordinação” do presidente da Embrapa ao Ministério da Agricultura, argumentando que Campanhola respondia diretamente ao Planalto. O ex-presidente da Embrapa , indicado por José Graziano, representava o núcleo do PT. Defensor de projetos que privi-

legiassem a agroecologia, a contenda entre o ex-presidente da Embrapa e o ministro de Agricultura se acentuou com a liberação da soja transgênica. À época, Campanhola defendeu a realização de estudos de impacto ambiental antes da autorização para o plantio e o consumo. “Os setores conservadores não se conformavam em ter na presidência

da instituição alguém preocupado com essas questões”, afirma o deputado do PV, Edson Duarte, para quem a decisão significa mais um retrocesso do governo Lula. Para o ex-secretário de Agricultura do Rio Grande do Sul, José Hermeto Hoffman, a saída de Campanhola significa uma volta atrás na linha de trabalho

Contaminação por transgênico poderá ser punida

COMUNIDADES TRADICIONAIS

Roberto Barroso/ABR

Integrantes do Greenpeace inspecionam produtos expostos em supermercados, durante ação contra os transgênicos

Tatiana Merlino da Redação As instituições que pesquisam organismos geneticamente modificados (OGMs) podem ser responsabilizadas em casos de contaminação do meio ambiente e por possíveis prejuízos causados à saúde humana e animal. É o que propõe o Projeto de Lei 4495/04, de autoria do deputado Edson Duarte (PV-BA), em análise na Câmara. Nos casos de negligência ou falta de controle, a empresa responsável pelo dano será obrigada a indenizar a parte prejudicada, além de estar sujeita ao cancelamento do registro ou da autorização de uso do produto. De acordo com Duarte, após a Medida Provisória 223, que autoriza o plantio da soja transgênica na safra 2004/05, não ficou claro quem seria o responsável por possíveis danos causados pelos OGMs. O parlamentar diz que o projeto pretende “que os empresários assumam o ônus caso algo dê errado. Além dos lucros, eles têm que ter responsabilidades”, argumenta. Sobre a aprovação do projeto na Câmara, Duarte sabe que não será fácil. “Porque hoje não se sabe onde começa e onde termina a bancada ruralista, que cada vez mais tem apoio da bancada do PT”, afirma.

Segundo ele, antes havia bancadas que defendiam os setores populares, mas hoje “o lado conservador cresceu”.

ESPERANÇA? O economista Jean Marc Von de Weid, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA) considera que, se o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) chegar à presidência da Câmara, é possível que o projeto não seja aprovado. “Ele tem se mostrado bastante coerente e preocupado com os impactos dos transgênicos, e não acredito que vá ceder às pressões dos ruralistas”, pondera. Duarte concorda, porém, adverte: “Ele está mais próximo dos anseios da sociedade brasileira, mas não devemos nos iludir”. O deputado do PV lembra que os consumidores e os agricultores convencionais são os mais afetados pela introdução dos produtos transgênicos no país. “Por isso, é necessário haver um dispositivo legal para exigir a reparação em caso de problemas com a saúde dos consumidores e com os produtores que tiverem suas plantações contaminadas ”.

SAÚDE Um dos maiores prejuízos causados pela utilização dos transgênicos,

é na saúde. O herbicida glifosato Roundup – indispensável ao cultivo da soja transgênica – afetou a saúde de ratos, aponta em sua tese de doutorado a bióloga e médica Eliane Dallegrave, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os principais efeitos foram aumento na massa relativa do fígado e rins, redução no número de espermatózóides e dos níveis de testosterona e alterações nos testículos. Eliane demonstra que o glifosato não é inofensivo como afirmam seus defensores. Para Edson Duarte, as empresas de engenharia genética têm estudos sobre os impactos nocivos dos OGMs sobre a saúde e o meio ambiente. “Mas são informações que eles não querem divulgar”, afirma, acrescentando que a engenharia genética mexe com a caixa preta da vida, e as mudanças são feitas para atender interesses comerciais. Apesar de tudo isso, a área plantada com transgênicos cresceu. Em 2004, o aumento foi de 66%, de 3 para 5 milhões de hectares, conforme estudo do International Service for the Acquisition of Agribiotech Applications (ISAAA), baseado nos Estados Unidos. Entre os cinco principais países produtores de transgênicos – Argentina, Canadá, China e EUA, o aumento brasileiro foi o mais expressivo.

No Planalto, a batalha entre os defensores do agronegócio e do meio ambiente em relação ao uso de sementes transgênicas fica ainda mais desigual. Enfraquecida nas últimas brigas com Rodrigues, com a saída de Campanhola, a ministra Marina Silva perde o apoio da Embrapa na luta contra a liberação das sementes geneticamente modificadas na agricultura. O projeto de lei que definirá o tema está em tramitação no Câmara. “A partir de agora, a área está livre para os ruralistas e para os defensores dos transgênicos. Todas as linhas de pesquisa da Embrapa devem se orientar para a biotecnologia” diz o ex-secretário gaúcho de agricultura. Até a queda de Clayton Campanhola, apenas 20% do orçamento da Embrapa era destinado à pesquisa de organismos geneticamente modificados.

Impactos da omissão das políticas públicas Luís Brasilino da Redação Os prejudicados pressionam e o governo federal sai do marasmo para sanar uma séria deficiência do Estado: uma lacuna institucional. No caso, a omissão total das políticas públicas em relação às comunidades tradicionais – grupos que criam uma relação prolongada com o território onde vivem, e diferenciada com o resto da sociedade. São os povos quilombolas, indígenas, seringueiros, extrativistas (como as quebradeiras de coco), pescadores e ribeirinhos. Segundo Carlos Eduardo Trindade, subsecretário de políticas para comunidades tradicionais da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, não há, atualmente, qualquer estimativa de quantas pessoas vivem nessas comunidades. “Sabemos que existem trechos do território ocupados por elas, mas, quantificar, talvez, só em 2010. Isso é uma lacuna institucional”, afirma Trindade. Ele conta que os integrantes das comunidades enfrentam problemas como o racismo, a desigualdade social e a exclusão histórica. Mais recentemente, também passaram a encontrar dificuldade no acesso a equipamentos sociais como escola, postos de saúde, Previdência etc. “Eles têm que deixar a comunidade em busca dos serviços, e o que queremos é levá-los até eles”, informa Trindade.

CONTRASENSO Por serem institucionalmente ignoradas, as comunidades sofrem os impactos negativos de políticas de Estado feitas à sua revelia. Adriana Ramos, coordenadora do programa de políticas e direito socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA) exemplifica: “Há casos de criação de zonas de proteção ambiental – onde as pessoas não podem morar – em territórios habitados por povos tradicionais”. Para Adriana, os principais

problemas das comunidades giram em torno da falta de especificidade das políticas públicas em relação a elas. É o caso da educação, mostra Ivo Fonseca Silva, da secretaria executiva da Coordenação Nacional de Quilombos (Conaq). Normalmente, diz, os professores não direcionam o ensino para a sua comunidade. Os quilombolas têm a mesma aula que qualquer brasileiro, sem qualquer abordagem diferenciada. “É necessário adaptar o ensino à realidade local”, destaca Silva.

DECRETO Para superar essas deficiências, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou, em 27 de dezembro de 2004, um decreto criando a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais. Cabe a ela, entre outras atribuições, propor medidas para implementação de um Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável em favor das comunidades tradicionais; regulamentar as atividades de agroextrativismo e seu desenvolvimento; apoiar, propor, avaliar e harmonizar os princípios e diretrizes das políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais no âmbito do governo federal. Para o quilombola Ivo Silva, a criação da comissão é fruto da mobilização dos movimentos de comunidades tradicionais, e ela pode dar certo. No entanto, ele alerta: “O governo fala e muitas vezes não cumpre. Precisamos acompanhar de perto o andamento da comissão”. Silva considera que, no governo Lula, alguns ministérios têm atuado de modo mais integrado e eficiente no que tange às comunidades tradicionais. “O diálogo aumentou e, agora, existe um orçamento próprio para nós. Como a política é nova, o governo vem tendo algumas dificuldades, mas estamos tendo resultado. Pouco, mas algum”, completa.


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DEBATE MÍDIA

Por um novo modelo de comunicação social Fábio Konder Comparato omo justa homenagem ao jornal Brasil de Fato, cujo êxito tanto contribui para elevar o padrão republicano e democrático da nossa imprensa, peço licença para lançar, aqui, a discussão sobre um novo estatuto dos meios de comunicação social entre nós. Comecemos por estabelecer a oposição conceitual entre massa e povo, pois ela está na base de todas as questões que adiante serão ventiladas. Em primeiro lugar, a massa, ao contrário do povo, não tem em si mesma nenhuma diferenciação orgânica. Cada uma de suas partes integrantes, isto é, cada um dos grupos sociais que a compõem, tende a ser, apesar das aparências enganosas, substancialmente igual a todos os outros. Por isso mesmo, no seio da sociedade massificada, todos acabam pensando as mesmas idéias e comportando-se rigorosamente do mesmo modo. A massa é desoladoramente homogênea. Em segundo lugar, a massa, em contraste com o povo, não tem autonomia, ou seja, ela é incapaz de tomar decisões por si mesma e, portanto, não tem a mínima condição de assumir a soberania política, num regime autenticamente democrático. A massa é facilmente manipulável por todos os que detêm poder na sociedade, seja ele político, econômico ou religioso. Ora, a sociedade brasileira vem sofrendo, nos últimos tempos, um rápido e arrasador processo de massificação; e o fator que mais tem contribuído para esse funesto resultado é a organização dos meios de comunicação de massa sob a forma de empresas capitalistas. Os grandes veículos de imprensa, rádio e televisão são hoje o instrumento privilegiado de exercício da dominação política no sentido oligárquico e crescentemente antinacional. Na verdade, os meios de comunicação de massa exercem um papel decisivo na transformação do povo em massa, ou vice-versa, por três razões principais: 1. Eles são um instrumento de poder, na medida em que influem fundamentalmente no modo de comportamento dos indivíduos e grupos sociais; 2. Eles são o grande instrumento de realização do direito à informação na sociedade contemporânea, em que a principal forma de comunicação já não se faz entre pessoas fisicamente presentes, uma em face da outra, mas globalmente, num mesmo espaço comunicativo mundial. 3. Os meios de comunicação social são, hoje, um instrumento indispensável para a criação de um ambiente de comunhão de idéias, valores e visão de mundo, num sem número de grupos sociais alargados, que ultrapassam o âmbito local. PROPOSTAS DE MUDANÇA

Eis por que uma das tarefas mais urgentes e necessárias para fundar neste país um autêntico regime republicano e democrático é a edição de um estatuto da imprensa, do rádio, da televisão e da internet, que atenda a essas três características básicas. Se estamos diante de um novo poder social, que aprofunda e amplia sem cessar a sua área de influência, é preciso, antes de mais nada, estabelecer rígidos mecanismos de limitação do seu exercício. A experiência eterna indica que todo poder social despido de freios ou limites tende ao abuso. Ora, nesse campo, importa saber que não precisamos criar nada de revolucionário. Bastaria adaptar, entre nós, as limitações impostas pelas normas norte-americanas de

Kipper

C

1975, que estão, aliás, em vias de serem revogadas pelo atual governo ianque, na sua cruzada universal contra a república e a democracia. Uma mesma empresa não deve, assim, poder explorar mais de um canal de televisão ou estação de rádio; e uma só empresa não pode manter, direta ou indiretamente (ou seja, por meio de filiais) uma fatia do mercado superior a 35% do total da audiência nacional. O número de estações de rádio de propriedade de uma só pessoa, física ou jurídica, deve ser estritamente limitado, punindo-se severamente a armação de esquemas de controle oculto, mediante a interposição de “homens de palha”. Ninguém deve poder explorar mais de uma espécie de veículo de comunicação de massa: uma empresa proprietária de um jornal, por exemplo, não poderá controlar, ao mesmo tempo, uma estação de rádio ou um canal de televisão. Tais proibições de concentração deveriam ser estendidas – o que a legislação norte-americana não faz – à internet. Quem quiser atuar nesse campo, não deve ter participação alguma em empresas de imprensa, rádio ou televisão. No tocante à segunda característica básica dos meios de comunicação social, ou seja, a sua condição de grande instrumento de realização do direito fundamental à informação, várias medidas deveriam ser implementadas. Vejamos. É, assim, indispensável estabelecer uma regulação de conteúdos de programação. Até hoje, a pressão das grandes empresas tem impedido a regulamentação do art. 221 da Constituição, que fixa os seguintes princípios na produção e programação das emissoras de rádio e televisão: “I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente, que objetive a sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. A proteção do direito fundamental à informação exige também, como é óbvio, a mudança da atual organização oligárquica das empresas de comunicação. Assim é que, de modo geral, tais empresas deveriam ser administradas por um conselho, composto, pelo menos por metade, de representantes de jornalistas, com poderes para designar os diretores executivos, fixar a linha editorial ou de programação e estabelecer critérios objetivos de contratação e demissão dos empregados. CAPITAL ESTRANGEIRO

Escusa dizer, quanto à organização interna das empresas de co-

municação social, que é urgente e absolutamente necessário revogar a escandalosa emenda constitucional nº 36, de 2002, que permitiu a participação de estrangeiros como sócios ou acionistas, emenda essa aprovada maciçamente pela bancada do PT no Congresso, a fim de conquistar as boas graças da Rede Globo. Na mesma linha, impõe-se a criação de um estatuto específico para as rádios e televisões educativas ou culturais, determinando-se que elas sejam constituídas exclusivamente sob a forma de fundações públicas, observando-se, quanto à composição do conselho de administração, a exigência acima mencionada. A União Federal e os Estados seriam obrigados, cada qual, a criar uma rádio e uma televisão educativa ou cultural.

Mas para dar efetividade a essas regras concernentes à programação de conteúdos, e de adaptálas ao setor da imprensa, é de rigor criar instrumentos eficazes de garantia. Eles seriam de quatro tipos: 1. Amplo direito de acesso a dados e documentos públicos, conforme o disposto no art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição; 2. Criar um autêntico direito do público leitor ou ouvinte a fazer publicar, nos jornais, rádios e televisões, comentários críticos aos editoriais, artigos e matérias neles veiculados. Ou seja, a “página do leitor” tornar-se-ia uma seção obrigatória dos jornais, ocupando um bom espaço, deixando de ser um favor concedido a conta-gotas ao público. Providência análoga deveria ser observada pelas emissoras de rádio e televisão; 3. Reforçar o direito de resposta, para retificação de informações, ou revide a insultos pessoais. Reforçando-se o disposto na lei de imprensa, deve-se estatuir que a resposta há de ser publicada na mesma página (ou divulgada no mesmo programa) em que se veiculou a informação errônea, ou o insulto pessoal, e com o mesmo espaço ou tempo e os mesmos caracteres tipográficos ou de apresentação audiovisual, sob pena de severas sanções; 4. Estabelecer o direito fundamental de antena, reservando-se um tempo mínimo, no rádio e na televisão, para que entidades da sociedade civil possam expor livremente sua opinião sobre quaisquer assuntos, como estabelecem as Constituições da Espanha e de Portugal. Finalmente, no tocante à importante função que incumbe aos meios de comunicação social – no caso, precipuamente jornais

e revistas – de servirem de instrumento privilegiado de comunhão de idéias, valores e visão de mundo, em grupos sociais específicos – políticos, religiosos, étnicos, profissionais, artísticos, esportivos, científicos —, impõe-se a criação de amplos subsídios públicos aos órgãos que optem por não financiarem suas atividades mediante publicidade comercial, ou matéria paga de governos ou empresas estatais. O dinheiro público deve, sim, ser aplicado para garantir a todos o direito fundamental de associação e defesa de valores comunitários. No nascimento dos Estados Unidos da América, um dos seus “pais fundadores”, James Madison, dizia que criar uma sociedade democrática sem uma imprensa democrática seria um prelúdio à farsa, à tragédia, ou a ambas as coisas. Poderíamos dizer, hoje, com mais de dois séculos de experiência depois que tais palavras foram ditas e complementando de certa forma a visão crítica de Karl Marx, que uma dos mais eficazes instrumentos de defesa contra a dominação capitalista mundial é a organização dos meios de comunicação de massa em função do bem comum de todos, e não como instrumento de poder das minorias. Fábio Konder Comparato é jurista renomado internacionalmente, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra (Portugal), Doutor em Direito da Universidade de Paris (França) e professor titular da Universidade de São Paulo (USP). É autor de vários livros como A afirmação histórica dos direitos humanos e de vários artigos doutrinários. É fundador e diretor da Escola de Governo, em São Paulo

Verba já, para todos Maria Luiza Franco Busse s franceses têm horror de ser confundidos com democratas . Eles fazem questão de afirmar que são republicanos. Faz sentido. A democracia não contempla a igualdade. Faculta, sim, o direito de expressão de brigar e espernear por ela sem risco de ser torturado. O que isso tem a ver com a democratização das verbas públicas para todos os meios de comunicação na República Federativa do Brasil? A relação é clara. Nossa democracia também é desigual e excludente e, para piorar a situação, nossa República não rompeu os laços fraternos com as oligarquias. Ao contrário, não satisfeita com os compromissos históricos de longa data assumidos internamente, tratou de cair nos braços dos donos do poder de fora. E a nós, que não fazemos parte desses grupos, só restou o berro no megafone. Mas megafone, em tempo de comunicação de massa, não atende às nossas demandas. Daí que a imprensa alternativa fica em desvantagem, o que faz perder a perspectiva de ampliar a democracia e consolidar a República. No Brasil, oligarquias e propriedade dos grandes meios de comunicação são equação certa para alcançar a “ditadura mental” já tão sonhada pelo patriarca José Bonifácio. Isso porque a nossa política não aprendeu a aceitar a expressão da vontade popular como base da vida representativa. A propagação massiva das informações está sob o controle das oligarquias proprietárias dos grandes meios de comunicação. No Maranhão, a família Sarney é dona de 28 emissoras de rádio e 5 repetidoras da Rede Globo. Em Alagoas, os Collor de Mello são

O

proprietários da TV Gazeta, afiliada da Rede Globo; jornal Gazeta, rádios Gazeta AM e FM, na capital, e rádios Gazeta Arapiraca FM e Gazeta Pão de Açúcar AM , ambas no interior. A família Marinho, do Rio de Janeiro, é proprietária da Rede Globo de Televisão, dos jornais O Globo, Extra, Diário de São Paulo e Valor Econômico, da Editora Globo e da Globo Cochrane, gráfica das Organizações Globo localizada em Vinhedo. Muitos veículos de comunicação alternativos a esses grupos, como por exemplo o Brasil de Fato, são consistentes formas de representação de luta social que não conseguem efetivar a concorrência com edições diárias porque não têm dinheiro, embora já estruturados sobre uma linha de produção profissional. Isso se dá pela falta de uma política de Estado que garanta a democratização das verbas públicas para todos os meios de comunicação, como já ocorre na Suécia, Itália, Canadá e, agora, na Venezuela, com a Lei de Responsabilidade Social em Radio e Televisão. A política de Estado de democratização das verbas públicas para todos os meios de comunicação rompe com a dependência dos favores pessoais e com a subserviência do beija-mão, práticas muito consideradas no Brasil. Desde sempre, a moeda de troca entre oligarquia midiática e governo tem sido o peso da informação junto à opinião pública. A imprensa pode não ajudar a ganhar, mas ajuda a perder. O jornalista uruguaio Mário Del Gaudio sustenta a necessidade de uma legislação que assegure a divulgação plural da informação e a liberdade de expressar os acontecimentos sem a manipulação ideológica das oligarquias.

O jornalista lembra a reflexão de Norberto Bobbio na qual “uma democracia se considera como tal quando todos os interesses e setores da sociedade podem manifestar sua opinião de maneira livre, orgânica e sem exclusões, usando de iguais oportunidades e direitos, respeitando os mesmos deveres”. Efetivamente, o debate sobre a política de Estado que garanta o acesso de todos os meios de comunicação ao dinheiro público destinado à publicidade deve ser colocado na pauta pela sociedade civil e movimentos sociais organizados, e levado ao Congresso. Principalmente agora, quando o governo brasileiro acena permitir associação de capital entre as oligarquias midiáticas internacionais e locais. Não vamos esquecer que o empresário venezuelano Gustavo Cisneros esteve no Brasil recentemente para fechar negócios com a Editora Abril. As redes de televisão de Cisneros, que apoiou o golpe contra o presidente Hugo Chávez, produzem e distribuem mais de 19 mil horas de programas em espanhol e português por ano para 21 países em três continentes. Esse domínio dos meios de propagação de massa em benefício do pensamento único representa uma “uma série de batalhas de uma guerra sem fim”, como costuma declarar o megaoligarca internacional Rupert Murdoch, sempre que se refere à compra de uma nova cadeia de jornal ou televisão. E cada batalha ganha por eles significa uma soma de menos igualdade, liberdade e fraternidade para todos os homens e mulheres que acreditam que um outro mundo é possível. Maria Luiza Franco Busse é jornalista, mestre e doutoranda em Semiologia pela UFRJ


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA LIVROS Durante o Fórum Social Mundial, a Editora Fundação Perseu Abramo irá lançar cinco títulos, entre eles:

ventude brasileira hoje O livro tem 448 páginas e custa R$ 44,00.

“RETRATOS DA JUVENTUDE BRASILEIRA - ANÁLISES DE UMA PESQUISA NACIONAL” Organizado por Helena Abramo e Pedro Paulo Martoni Branco, nesta coletânea, especialistas de diversas áreas analisam a pesquisa nacional sobre juventude, realizada pelo Instituto Cidadania, dentro do Projeto Juventude. As análises mostram como os jovens brasileiros encaram aspectos de suas vidas, como trabalho, sexualidade, drogas e escola. O livro traz uma síntese da pesquisa, que expõe detalhadamente quem é e como pensa a ju-

“COMÉRCIO INTERNACIONAL E DESENVOLVIMENTO - DO GATT À OMC: DISCURSO E PRÁTICA” Muitas rotas de comércio da antigüidade definiram a geopolítica atual e influenciaram a ascensão e a queda de impérios. Neste livro, Kjeld Jakobsen analisa a relação entre comércio e desenvolvimento e as diferenças entre o discurso e as práticas dos países mais poderosos, principalmente em relação às políticas comerciais internacionais pós-Segunda Guerra Mundial. Também discute o que isto representa para países em desenvolvimento como o Brasil e para o movimento social. O livro tem 112 páginas, e custa R$ 20,00 0

“O DESAFIO DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL: UM MODO DE VER” Questões centrais para os rumos do Fórum Social Mundial são discutidas por Chico Whitaker a partir de sua experiência como um dos organizadores do evento. Entre os temas abordados, incluem-se o FSM como espaço ou movimento, a metodologia básica do FSM, a horizontalidade do

processo, o FSM como processo, a tentação da eficácia, a tentação do documento final, a recusa à violência na Carta de Princípios, a mundialização do processo, a relação com os partidos políticos, o respeito à diversidade, mudança interior e mudanças estruturais, a autoorganização dos participantes, o enraizamento por meio de fóruns sociais locais etc. Co-edição com Edições Loyola (264 páginas). Divulgação

CEARÁ ESCOLA BÍBLICA 5 e 6 de março - primeiro encontro O Centro de Estudos Bíblicos (Cebi) abre inscrições para as pessoas interessadas em participar da Escola Bíblica de Fortaleza (EBF) que iniciará atividades em março. A escola compreende seis encontros anuais, aos sábados e domingos, e terá duração de dois anos e meio, aproximadamente. A EBF será realizada com a metodologia do Cebi, na ótica da Leitura Popular da Bíblia. Local: R. Eurico Medina, 1260, Fortaleza. Mais informações: (85) 3253-1461

RIO DE JANEIRO MOSTRA: MESTRES DO CINEMA Até 30 de janeiro O ciclo traz ao público uma seleção de obras dos grandes mestres do cinema e começa apresentando seis importantes filmes do diretor italiano Luchino Visconti. Apesar de sua origem nobre, Visconti foi militante antifascista e abraçou o marxismo como ideologia. Em 34 anos de carreira no cinema, deixou 14 filmes de longa-metragem, todos de significativa importância. Adaptou obras de grandes escritores: Verga, Dostoievski, Lampedusa, Camus, Mann, D’Annunzio e traçou profundos painéis históricos e sociais em vários de seus filmes. Grátis. Local: Centro Cultural Banco do Brasil, R. Primeiro de Março, 60, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 808-2020

SÃO PAULO LANÇAMENTO DO LIVRO – “A POESIA DOS DEUSES INFERIORES - A BIOGRAFIA POÉTICA DA PERIFERIA” 29 de janeiro, às 14h - entrada franca O livro é de autoria de Sergio Vaz, poeta da periferia e fundador, junto com outros artistas,

do sarau Cooperifa. No evento, que faz parte do projeto O Autor na Praça também estará sendo autografado o livro O Rastilho da Pólvora – Antologia poética do sarau da Cooperifa, organizada por Vaz. A antologia reúne textos de Alessandro Buzo, Erton Moraes, Gaspar (Z`África Brasil), Marco Pezão, Sandra Léa entre outros. Na ocasião, Júnior Lopes estará fazendo caricaturas. Local: Espaço Plínio Marcos, Feira de Artes da Praça Benedito Calixto, São Paulo Mais informações: (11) 3085-1502, 9586 5577 oautornapraca@oautornapraca.com.br PLÍNIO DE OUTROS MARCOS: PROSA, SAMBA E FUTEBOL Até 8 de fevereiro Plínio Marcos estaria completando 70 anos em 2005. Para relembrálo, haverá uma mostra de livros e fotos que contam um pouco da história desse grande dramaturgo brasileiro. Grátis. Local: Serviço Social do Comércio, Sesc Santo André, R. Tamarutaca, 302, Santo André. Mais informações: (11) 4469-1250 CURSINHO DA POLI Início: 21 e 26 de fevereiro O cursinho está abrindo uma unidade em Santo Amaro, na zona sul, outra em Itaquera, na zona leste, com o objetivo de facilitar o acesso do público de outras regiões ao seu curso pré-vestibular. Estão sendo oferecidas 12 mil vagas: seis mil na zona noroeste, três mil na zona sul e três mil na zona leste. As duas novas unidades do Cursinho da Poli estão localizadas na Rua Vicentina Gomes, 99, em Santo Amaro, e na Rua Sabbado D’Angelo, 2.040, em Itaquera. Haverá cursos nos períodos matutino, vespertino, noturno e fim de semana. As matrículas para o Extensivo-2005 vão até 19 de fevereiro e podem ser feitas em qualquer uma das três unidades, de segunda a sexta-feira, das 9h às 21h, e, aos sábados, das 9h às 18h. É possível fazer também a

pré-matrícula pela internet, na página www.cursinhodapoli.org. br, até 16 de fevereiro. Mais informações: (11) 3611-8552 www.cursinhodapoli.org.br SAÚDE NO VERÃO Até 27 de fevereiro Nos meses de janeiro e fevereiro as unidades do Sesc oferecem atividades físicas para manutenção da boa saúde e disseminação de conceitos relacionados ao bemestar, qualidade de vida e cidadania. Podem participar crianças, adultos e terceira idade. Destaques para a fábrica do movimento e escalada com brinquedos de todos os tempos, brincadeiras populares, jogos de regras, brincadeiras de circo. Aqui, além de testar o equilíbrio, o participante pode fazer um pouco de arte. A fábrica também oferece jogos de movimento, incentivo ao conhecimento prático dos diversos esportes e brincadeiras para todas as idades. Local: Serviço Social do Comércio, Sesc Santo André , R. Tamarutaca, 302, Santo André. Mais informações: (11) 4469-1250 IX COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE A ESCOLA LATINO-AMERICANA DE COMUNICAÇÃO De 9 a 11 de maio Promovido pela Universidade Metodista de São Paulo e a Cátedra Unesco de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, o encontro terá como tema central “Educomídia, alavanca da cidadania: o legado utópico de Mário Kaplún”. Os subtemas do Celacom serão: “O diálogo criativo entre produção e recepção na práxis de Mário Kaplún”, “A leitura crítica da mídia e a participação cidadã” e “Os movimentos de educação popular e a teleeducação: do Rádio à Internet”. Local: Universidade Metodista de São Paulo, R. do Sacramento, 230, São Bernardo do Campo. Mais Informações: (11) 4366-5819 www2.metodista.br/unesco/ celacom2005.htm


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CULTURA

De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2005

EDUCAÇÃO POPULAR

MST inaugura escola nacional

Dafne Melo de Guararema (SP)

“M

eu filho tinha o sonho de estudar na Florestan Fernandes. Mas não poderá mais, pois está morto. Mesmo assim, continuo a construir a escola, pois quero ajudar a realizar o sonho de outros”. Na declaração do sem-terra Viriato Gouveia Lobo, do assentamento Manoel Neto, em Taubaté (SP), está o desejo de milhares de trabalhadores: o acesso à educação. E também o compromisso com a construção de uma universidade popular, que capacite e forme militantes sociais: a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), cuja construção foi iniciada há oito anos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No dia 23 de janeiro, a escola foi oficialmente inaugurada na cidade de Guararema, região do Vale do Paraíba, interior de São Paulo, em cerimônia com cerca de 2 mil pessoas. O evento contou com a presença de Heloísa Fernandes, filha de Florestan Fernandes. Também participaram o ministro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, o deputado federal Ivan Valente (PT-SP), Clara Charf (viúva de Carlos Marighella), a médica cubana Aleida Guevara March (filha de Che Guevara), os atores Marcos Winter e Letícia Sabatella, intelectuais e representantes de entidades internacionais. O jornalista Fernando Morais, um dos homenageados, criticou a forma como a grande imprensa noticiou a inauguração da escola. “A parte podre da profissão, em vez de perguntar como e quem fez, quer saber de onde veio o dinheiro, se tem mutreta”, afirmou ele, dizendo não pertencer à “banda podre” da imprensa brasileira. Já o ministro Rossetto, depois de prometer “avanços” para 2005, ressaltou que a inauguração era uma grande conquista a ser celebrada. “Nós não estamos comemorando uma obra física. Homenageamos o sonho, a solidariedade, a coragem e o trabalho”, declarou. “Desejamos que as pessoas que estão aqui hoje não levem só a imagem da construção, mas principalmente a desses trabalhadores”,

Fotos: Douglas Mansur

Construído em mutirão, centro educacional em Guararema (SP) formará militantes sociais de todo o país

A Escola consolida a política do movimento de formação de militantes e professores, e espera receber 2 mil alunos por ano

disse Neuri Rosseto, membro da coordenação nacional do MST, durante a homenagem especial aos sem-terra que construíram a escola.

CONSTRUÇÃO Assim como Viriato, cerca de 1.500 sem-terra ajudaram a construir a escola. José Eduardo Gomes, coordenador das obras explica que os trabalhadores foram organizados em uma brigada permanente e diversas brigadas temporárias, que vinham a cada 60 dias de um Estado diferente. Durante o trabalho, voluntário, buscou-se investir na formação dos trabalhadores. “Elaboramos uma cartilha de constru-

ção para que, quando voltassem aos seus Estados, usassem os métodos que aprenderam aqui”. Adelar Pizetta, membro da coordenação nacional do MST e coordenador pedagógico da Florestan Fernandes, conta que “desde o início da construção, a escola já começou a funcionar. Os espaços que iam sendo construídos já possibilitavam a formação”, explica. “Da brigada em que participei, havia 23 trabalhadores analfabetos. Todos saíram alfabetizados”, conta o sem-terra Augusto Bezerra, integrante da brigada de Sergipe. “Quando olho para os prédios, sinto como se tivesse colocado cada

tijolo. Agora, isso é um patrimônio do povo”, conclui.

EDUCAÇÃO Durante a cerimônia, membros da direção nacional do MST e convidados ressaltaram a importância da educação como instrumento transformador da sociedade. “A uni-

versidade e o ensino superior nesse país são trancados a sete chaves. Quantos de vocês conhecem um médico negro ou um engenheiro pobre? No entanto, pobres e negros são 70% da população. São com os sinais da exclusão que queremos acabar, para que transformem o conhecimento científico em instrumento de libertação e não de exploração”, disse João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST. Recorrendo a uma declaração do presidente venezuelano Hugo Chávez, Stedile lembrou que “a pobreza de uma sociedade só se resolve dando poder aos pobres. E o poder dos pobres vem do conhecimento”. Maximilian Averlaiz, assessor e representante do governo venezuelano felicitou o MST pela conquista. “A última vez que senti tanta emoção foi em 13 e 14 de abril de 2002. O que senti aquela noite é a mesma coisa que sinto aqui. São as mesmas caras e os mesmos rostos das pessoas que defenderam Chávez”. Duas propostas foram feitas ao governo federal por João Pedro Stedile. A primeira foi formalizar uma parceria com Cuba para aumentar o número de estudantes que, anualmente, vão para a ilha cursar medicina. Diante do representante do MEC, Ricardo Henriques, também pediu a criação de um programa nacional para formação de técnicos em agricultura, em parceria com o MST.

A contrução, que começou há 4 anos, contou com 1500 trabalhadores voluntários

Durante a cerimônia, os sem-terra que construíram a escola foram homenageados

Dois mil militantes por ano Com a primeira etapa da construção concluída, a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) terá capacidade para 200 alunos. No total, o Movimento espera receber, anualmente, cerca de 2 mil militantes do MST e de outros movimentos sociais ligados à Via Campesina. A longo prazo, o objetivo é a construção de uma universidade popular. “Esse espaço não está restrito ao sem-terra, mas está a serviço do trabalhador. Se outros movimentos sociais quiserem, a ENFF está aberta para a construção de trabalhos em conjunto”, explica Adelar Pizetta, da direção nacional do MST e coordenador pedagógico da ENFF. Inicialmente, cursos como o de política de formação de quadros serão dados a integrantes do movimento.“A educação permite que as pessoas desenvolvam a luta, o trabalho e a militância com maior profundidade e qualidade. Possibilita não só transformar as pessoas, mas a realidade também”, diz Pizetta. Os cursos de graduação, pósgraduação e de extensão universitária serão criados conforme interesses do MST e devem ser ministrados em parceria com universidades. As grades curriculares serão discutidas com a instituição

Quem foi o mestre Florestan Fernandes Militantes e participantes da cerimônia de inauguração cantam o hino do MST

de ensino com quem será fechado o convênio para que, além do conteúdo básico, possa haver disciplinas ligadas à realidade do trabalhador. O corpo docente será formado por professores voluntários das universidades conveniadas e por trabalhadores sem-terra que já tiveram a oportunidade de concluir seus estudos. Quanto aos alunos, Pizetta explica que será reservado um número de vagas para cada Estado. “Quem indica os alunos são as bases, os núcleos dos assentamentos e acampamentos e a direção do MST nos Estados”. Embora a construção da ENFF represente um marco na luta pela

educação travada pelo MST, ela apenas materializa e fortalece o que já vem sendo posto em prática há anos. “Nesses 20 anos, o movimento foi construindo experiências e um projeto de educação que procura contribuir com sua organicidade, formação de professores e militantes”, diz Pizetta. A ENFF, entretanto, não se restringirá ao espaço construído, uma vez que os cursos fazem parte de uma política de formação já consolidada “Podemos ter cursos da ENFF em outros espaços, em conjunto com universidades. Ampliar as fronteiras da escola abre a possibilidade da diversificação dos cursos que serão abertos pelo país”, finalizou. (DM)

“Ele tinha uma origem parecida com a nossa. Nasceu em uma família pobre, de imigrantes camponeses. Ascendeu do ponto de vista da escolarização e se tornou o maior sociólogo brasileiro, mas nem por isso renegou sua origem de classe”, explica Adelar Pizetta sobre as inúmeras razões que levaram o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) a homenagear Florestan Fernandes na escolha do nome e do patrono da Escola Nacional. Durante a cerimônia de inauguração, a filha de Florestan, Heloísa Fernandes, fez um discurso emocionado. “Várias homenagens foram feitas ao meu pai. Não creio que tenha havido alguma que faça maior justiça e lhe cause tanto orgulho”, disse. Filho de uma imigrante portuguesa de origem camponesa, Florestan Fernandes nasceu no dia 22 de julho de 1920 e faleceu em 10

de agosto de 1995, após ter sido submetido a um transplante de fígado. Para ajudar a mãe, começou a trabalhar aos seis anos de idade e, posteriormente, interrompeu os estudos na terceira série devido à dificuldade de conciliar estudos e trabalho. Na adolescência retomou os estudos e aprendeu em três anos o conteúdo que, normalmente era ensinado em sete. Obteve Licenciatura em Ciências Sociais, fez pós-graduação em Sociologia e Antropologia e tornou-se mestre em Ciências Sociais. Durante o regime militar, com base no AI-5, foi cassado em 1969, indo lecionar no exterior. Mestre de sociólogos como Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, Florestan transformou as ciências sociais no Brasil. Acreditava ser impossível equacionar as injustiças e opressões do sistema capitalista, tornando-se um crítico severo dessa ordem. (DM)


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