Ano 3 • Número 101
R$ 2,00 São Paulo • De 3 a 9 de fevereiro de 2005
Robson Oliveira
Na agenda comum de lutas construída pelos movimentos sociais no 5º Fórum Social Mundial (FSM), ganha força a ofensiva global contra o imperialismo e pela reforma agrária
No Fórum, avança unidade dos movimentos Organizações sociais de todo o mundo definem lutas conjuntas e ações coordenadas para 2005
O cineasta Walter Salles defende a presença estatal na regulamentação do setor, assim como um cinema plural. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele diz que não é contra filmes de grande público, mas não abre mão do espaço da produção que vem na contra-corrente. Ele ficou surpreso com a indicação ao Oscar do Diários de Motocicleta. “Esperávamos pouco devido à temática do filme, principalmente em um momento tão obscurantista como o que os EUA vivem”, explica. Pág. 16
O presidente venezuelano, Hugo Chávez, visita assentamento do MST, em Tapes (RS)
Mulheres fazem carta mundial por direitos Pág. 7
África rejeita o terrorismo econômico Pág. 12
Brasil de Fato: dois anos de resistência Pág. 15
Maringoni
Estado precisa regulamentar o audiovisual
Fernando Morán
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s movimentos sociais definiram uma plataforma comum para, coordenadamente, enfrentar os problemas sociais e o neoliberalismo. Em assembléia realizada dia 31 de janeiro, em Porto Alegre, no último dia do Fórum Social Mundial, organizações de todo o planeta estabeleceram uma agenda unificada, com mobilizações globais contra a dívida externa, a militarização e os tratados de livre-comércio, entre outros temas. Uma das estratégia será a Semana Global dos Povos, entre os dias 10 e 17 de abril. O avanço foi considerado histórico pelas lideranças dos movimentos sociais. Os intelectuais também divulgaram o Manifesto de Porto Alegre, com 12 propostas para se construir um outro mundo possível. Destaque para as sugestões de impedir a livre atuação dos conglomerados de mídia e de exigir o desmantelamento das bases militares de países estrangeiros fora de seus territórios. José Saramago, Eduardo Galeano e Tariq Ali estão entre os signatários do documento. Págs. 2, 3, 5, 10 e 11
Chávez alerta para o perigo do neoliberalismo Ponderando que a maior defesa é o ataque e que os povos não podem ficar debatendo séculos a fio, o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, propôs uma agenda global de luta contra o império.
Foi ovacionado em um Gigantinho lotado, dia 31 de janeiro. Também assinou acordo com o MST para intercâmbio e reprodução de sementes nativas. Pág. 9
Dalits erguem a voz contra o preconceito
O ótimo exemplo dos países mais ricos do planeta
Realizado em Porto Alegre, o 2º Fórum Mundial da Dignidade reuniu representantes de grupos que combatem todo tipo de agressão à dignidade, como preconceito de raça, gênero e religioso. O símbolo maior dessa luta são os dalits indianos, chamados de “intocáveis” e vítimas preferenciais de assassinatos, estupros, violência e segregação econômica. Pág. 13
Enquanto pressionam os países mais pobres a abrir seus mercados, os mais ricos do planeta protegem com unhas e dentes seus agricultores. Ou melhor, com pesados subsídios diretos à produção agrícola e mecanismos de suporte aos preços domésticos, que, entre 2000 e 2002 chegaram à casa dos 228 bilhões de dólares nos países integrantes da OCDE. Pág. 8
E mais: PT EM CRISE – Para militantes do Partido dos Trabalhadores presentes no 5º Fórum Social Mundial, a sigla está sem rumo e abandonou seu projeto histórico de transformação. Pág. 14 CAPITAL vs SOCIAL – O sociólogo Emir Sader diz por que Davos e Porto Alegre representam dois mundos incompatíveis. Só há uma alternativa, a da emancipação humana. Pág. 14
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De 3 a 9 de fevereiro de 2005
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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NOSSA OPINIÃO
Novos ventos começam a soprar
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urante cinco dias, cerca de 150 mil pessoas de 135 países participaram, em Porto Alegre (RS), de mais de 3 mil seminários e atividades de debate do 5º Fórum Social Mundial (FSM). Para além da expressiva, múltipla e plural participação de pessoas das mais diferentes organizações sociais e correntes políticas e ideológicas, em muitos aspectos o fórum representou um avanço político. O FSM sempre foi um espaço de encontro, para debater idéias e construir ideais, na perspectiva da construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Nesse contexto, cresceu em participação e amplitude. E quem deseja ver um fórum como uma “internacional” de movimentos ou partidos políticos se decepcionará a cada ano, pois não é esse seu papel. Em 2005, os avanços políticos foram muitos. Tivemos maior amplitude de temas e grandes debates sobre os problemas econômicos e sociais da América Latina e de todo planeta. As várias redes internacionais, que trabalham sobre temas comuns, aproveitam o Fórum para conjugar ações, calendários e atividades. Houve progressos com os fóruns específicos, nos quais setores sociais tiraram importantes resoluções que ajudam a construir alternativas.
Foi divulgado o documento dos intelectuais, com a defesa de 12 pontos fundamentais no combate ao neoliberalismo e ao imperialismo. Tivemos as reuniões e acordos dos movimentos camponeses ao redor da Via Campesina. Foram feitos importante acordos ao redor da Campanha Continental contra a Alca, um passo à frente com a articulação de ações comuns na América Latina com a Marcha das Mulheres, o Grito dos Excluídos, a Coordenadoria Latino-Americana de Organizações Camponesas (Cloc) e a Minga Informativa. Aconteceram duas assembléias mundiais de todos os movimentos sociais, reuniões em que houve dificuldades de comunicação, com tantos idiomas que parecia até ser impossível se entender. Mas, apesar de tanta diversidade em métodos, formas de representação e de interpretação, e com tanta diversidade de formas organizativas, construiu-se um documento que expressa a denúncia dos principais problemas que os povos enfrentam no mundo. Um documento que enuncia uma espécie de plataforma política de lutas, um acordo para a realização de grandes jornadas de mobilizações de massa, unitárias, em âmbito mundial. Os movimentos sociais decidiram se mobilizar, em todo mundo,
dia 19 de março, contra a guerra do Iraque e o militarismo do governo Bush, que aparece também na Palestina, na Colômbia, no Afeganistão, em Guantánamo. Depois, será realizada uma jornada mundial contra o livre-comércio e o monopólio das transnacionais, conjuntamente com a jornada mundial dos camponeses, de 10 a 17 de abril. De 12 a 17 de outubro, haverá uma jornada convocada pela Marcha das Mulheres e pelo Grito dos Excluídos, com manifestações em todo mundo contra a exploração das mulheres e a exploração dos excluídos. Finalmente, o avanço políticoideológico foi simbolizado pelo ponto alto do FSM: a presença do presidente venezuelano Hugo Chávez, dia 30 de janeiro, com uma palestra de uma hora e 34 minutos, assistida por mais de 25 mil pessoas (15 mil dentro do ginásio e 10 mil fora transmitida ao vivo para a Venezuela e pela TV Educativa do Rio Grande do Sul. Chávez teve uma contundência impressionante, ao analisar quem são os inimigos dos povos e da humanidade, com sua ganância por lucros. Sem rodeios, ele denunciou o império estadunidense e conclamou todos os militantes a estudar, a elevar o nível de consciência das massas e a lutar, único caminho para enfrentar a dominação imperial.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES BAIXARIA NA TV A TV Globo deixa claro, ao colocar este ridículo programa “BBB” no ar, que não tem a mínima decência em fazer produções que contenham o mínimo de inteligência e caráter informativo para os milhares de telespectadores brasileiros que procuram cultura e informação neste canal (digase de passagem, concessão pública). Infelizmente, o que há é um bando de mercenários que colocam e expõem ao ridículo cidadãos (até adoentados), num plano de extrema tensão que leva o espírito de nosso solidário povo a entender que este tipo de comunicação deriva de um Estado capitalista voltado a qualquer preço à aquisição de bens materiais e dinheiro. Sem comentar a situação de promiscuidade sexual, em palavras, situações e atitudes nojentas que este programa coloca na mídia nacional. E quem ganha? É claro que são os cofres desta rede de televisão (que deve bilhões ao governo), que tem total liberdade de sujar a boa intenção do verdadeiro objetivo da mídia televisiva. Célio Borba Curitiba (PR) TRANSPORTE EM SÃO PAULO Até a primeira administração do PT na cidade de São Paulo (Luiza Erundina), a cidade, por 10 anos, não havia recebido o acréscimo de um só ônibus em sua frota. Havia passado por lá gente de Maluf, gente de Serra, dentre outros. A prefeita do
PT agregou 2 mil ônibus novos à frota da cidade. Nos oito anos seguintes, com Maluf e Pitta, novamente nenhum acréscimo. A segunda prefeita do PT, Marta Suplicy, agregou mais de 6 mil ônibus novos, o que constitui mais de 50% da frota existente, e fez uma verdadeira revolução no transporte coletivo. Os jornais informam agora que a administração do PSDB de José Serra pretende mandar repintar todos os ônibus adquiridos durante a administração do PT. A idéia de apagar as marcas da administração petista seria uma forma de camuflar mais um longo período sem ônibus novos? Antônio Rodrigues de Souza São Paulo (SP) O MÉDICO E A SUBNUTRIÇÃO (...) Doente de verminose Mora à beira do mangue Seu corpo está extenuado Já perdeu bastante sangue. Os poderosos com fome de poder Os pobres, sem poder, com fome A nação inteira definha, Um povo inteiro se consome. Doutor, responda-me Como é que pode ser? Viver sem se alimentar Ou sem as pernas, correr? (...) José de Souza João Pessoa (PB)
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CRÔNICA
Ser culto para ser livre Luiz Ricardo Leitão A inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, no aprazível município de Guararema (SP), representa uma lição valiosíssima para os movimentos populares da nossa querida pátria grande e de todo o Terceiro Mundo. Por outro lado, nesta nebulosa era neoliberal, em que as “trincheiras de idéias” continuam a valer tanto ou mais que as trincheiras de pedras, cometer o “desatino” de educar os filhos do povo com os ensinamentos dos grandes pensadores do Brasil e da América Latina é, sem sombra de dúvida, um crime terrível aos olhos das nossas elites pós-coloniais, sempre ciosas de suas terras, seus metais e, sobretudo, do seu enorme conhecimento livresco e “bancário”, como costumava dizer o saudoso Paulo Freire. Nos jornais e até na tevê, não faltou quem advertisse sobre os “perigosos” conteúdos que são ministrados nos cursos de formação promovidos pelo MST, que desagradariam a uma boa parcela de “brasileiros”. Ah, esses arautos da ordem e do progresso burgueses em Pindorama: como tudo nesta terra, seus pés são de puro barro! Quem assiste aos programas da TV aberta tem o direito de indagar qual seria o padrão “educativo” da nossa briosa
mídia: o “Big Brother Brasil” da Globo ou o “Show do Milhão” do SBT? Será que eles pensam que somos tão idiotas quanto o público educado pelos filmes de Hollywood, que diante de uma canhestra projeção de slides de Colin Powell, na ONU, acreditou piamente no conto de carochinha das “armas químicas” do Iraque e bateu palmas para mais uma carnificina ianque? Afinal de contas, o que haverá de tão assustador nos cursos do MST? Os lavradores não podem estudar a obra dos grandes pensadores brasileiros, como Caio Prado Jr., Darcy Ribeiro e do próprio Florestan Fernandes? Quem pode proibir o povo de atualizar o legado de Paulo Freire e recriar, na práxis, a “pedagogia do oprimido”? Conhecer a desfaçatez e o cinismo de nossas elites nas páginas magistrais de Brás Cubas, de Machado de Assis, faria o feitiço voltar-se contra o feiticeiro? Ou será que a subversão maior adviria da leitura de Vidas Secas, do mestre Graciliano Ramos, com sua denúncia refinada da opressão do latifúndio sobre os filhos do sertão? Quem sabe o perigo não esteja nos versos de João Cabral, ensinando-nos com Severino retirante que a vida – assim como o povo – é um espetáculo teimoso, “uma fábrica que a si mesma se fabrica”? A heresia maior, porém, decerto
reside em seguir a mais sábia lição do genial José Martí, que, em meio às lutas pela independência de Cuba, proclamou com enorme lucidez que é preciso “ser culto para ser livre”. Pois assim é a luta dos povos latinoamericanos: somos todos herdeiros de Martí e Bolívar. Com as armas do conhecimento, instalamos grãos de dúvida nas certezas cultivadas pelos donos do poder e desmontamos a frágil retórica dos impérios. Galileu Galilei, um dia, com a sua ciência, deixou em polvorosa a Inquisição, para quem era inadmissível afirmar que a Terra não era o centro do Universo. Intimado pelos inquisidores, o sábio italiano tratou de desconversar; à saída do tribunal, porém, não hesitou em sussurrar que a Terra se movia... Pois os afilhados de Florestan também vão pelo mesmo caminho de Galilei: não apenas a Terra, mas também os sem-terra estão em movimento, em busca do conhecimento que os ajudará a libertar-se das amarras do latifúndio e da ignorância. Parabéns, companheiros, pela bela iniciativa! Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é também professor adjunto da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
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De 3 a 9 de fevereiro de 2005
NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Muitas propostas concretas de ação Jorge Pereira Filho de Porto Alegre (RS)
A
s penosas caminhadas sob o forte sol porto-alegrense e as horas passadas nas tendas brancas, pouco apropriadas para os 36º graus locais, valeram a pena. A declaração da Assembléia dos Movimentos Sociais, o Manifesto de Porto Alegre (assinado por dezenas de intelectuais) e o diálogo com o projeto puxado pelo presidente Hugo Chávez, na Venezuela, são exemplos de como o 5º Fórum Social Mundial (FSM), de 26 a 31 de janeiro, avançou em propostas de ações concretas e no debate político, em oposição ao neoliberalismo. “O objetivo não é discutir em que lugar o fórum vai ocorrer, se será uma vez ao ano ou uma espécie de feira social mundial. O que queremos é transformar o mundo”, resumiu Ignacio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique e integrante do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial. Entre as diversas propostas apresentadas durante o maior encontro político da esquerda social, ganharam destaque as reivindicações da Assembléia dos Movimentos Sociais (veja reportagem na página 5) e as 12 sugestões, subscritas por um grupo de intelectuais. O documento ganhou projeção e foi ratificado por nomes como o argentino Atilio Borón, os brasileiros Frei Betto e Emir Sader, o francês Armand Matellart, o filipino Walden Bello, o estadunidense Immanuel Wallerstein, o belga François Houtart, os portugueses José Saramago e Boaventura de Sousa Santos e o uruguaio Eduardo Galeano.
Fotos: João Zinclar
Organizações sociais e intelectuais divulgam documentos com plataformas comuns O sociólogo Boaventura de Sousa Santos também defendeu a necessidade da prática social. “Pensar no FSM é pensar além do FSM. Davos está há 30 anos pensando e enxergando o mundo que quer. Precisamos também visualizar ações concretas”, disse. Para o professor português, uma das maiores contribuições do Fórum é a pluralidade das propostas apresentadas. “O pensamento progressista só pode avançar se admitir que há uma diversidade de pensamentos”, analisou. Sobre os desafios, Boaventura foi enfático em abordar uma tema polêmico: a participação dos “excluídos” no encontro. Levantamento citado pelo intelectual afirma que 80% dos participantes são brasileiros e 73% têm curso superior. Para ele, é preciso aproximar quem mais necessita do Fórum aos seus debates. Boaventura defendeu, ainda, que o FSM deva ser um catalisador das lutas sociais. Nas manifestações e debates ocorridos durante o 5º FSM, a defesa da soberania dos povos
Comércio) e a garantia do direito à soberania alimentar e segurança alimentar a cada país (com a eliminação dos subsídios agrícolas concedidos pelos Estados Unidos e União Européia. Dentre as propostas, destaque para a que toca em militarização, já que os intelectuais exigem o desmantelamento das bases estrangeiras e tropas em outros países, se não forem da Organização das Nações Unidas. A respeito da mídia, o grupo reafirmou o direito de informar os cidadãos e defendeu medidas que acabem com os conglomerados de comunicação. Outras sugestões são a proibição do patenteamento do conhecimento dos seres vivos, a promoção de políticas públicas contra toda forma de racismo e o fim da destruição do meio ambiente. Por fim, os intelectuais querem a reforma e a democratização das organizações internacionais, como a Organizações das Nações Unidas. Sugerem que instituições como
PROPOSTAS Os intelectuais defenderam bandeiras já conhecidas, como a anulação da dívida externa dos países pobres, a aplicação de taxas às transações internacionais, o fim dos paraísos fiscais, a promoção do comércio justo (em oposição às regras da OMC, a Organização Mundial do
ESTADOS UNIDOS E TERROR
o Fundo Monetário Internacional (FMI), a OMC e o Banco Mundial passem a integrar o sistema ONU. Para os autores do Manifesto de Porto Alegre, se os Estados Unidos continuarem a violar os direitos humanos, a sede da ONU deveria deixar Nova York.
MOBILIZAÇÃO Outro desafio do 5º Fórum Social Mundial foi intensificar as mobilizações populares. Apesar de muitos participantes verificarem que os locais e a programação do FSM,
com atividades distantes umas das outras marcadas para horários próximos, causaram muita dispersão, o balanço final traz aspectos positivos. Duas marchas mobilizaram centenas de pessoas, além das atividades específicas (veja reportagem abaixo). Esta era uma das principais preocupações da organização do evento. “O Fórum não é espaço só de debates e reflexão. É onde nos articulamos para reforçar nossa luta e organização”, avaliou Nalu Faria, da coordenação nacional da Marcha Mundial de Mulheres.
Outro ponto em comum no FSM foi a crítica às políticas do governo de George W. Bush. O tema permeou boa parte dos debates. “Os grandes terroristas de hoje são os de Estado. Mais de 100 mil civis iraquianos morreram. Houve tortura, bombardeios em hospitais. Mas quem pode enfrentar os EUA? Eles fazem as leis para todos, menos para eles”, discursou o paquistanês Tariq Ali. Já o professor Immanuel Wallerstein falou como combater o poder estadunidense. “As três bases do governo de George Bush são militarismo, grande empresariado e movimento neoconservador, sendo que o último é muito ligado à religião. O Fórum Social precisa desenvolver estratégias para derrotar cada um desses pontos”, pontuou. Para ele, é preciso lutar por meio de idéias e também com armas, contra qualquer forma de “irrupção destes fenômenos. Não é uma empreitada fácil, mas é a única forma de salvar a humanidade”, conclui Wallerstein. (Colaboraram João Alexandre Peschanski, Daniel Antiquera e Luís Brasilino)
Em encontro marcado pela diversidade, duas marchas coloriram as ruas de Porto Alegre durante a realização do 5º Fórum Social Mundial (FSM). Na abertura, dia 26 de janeiro, mais de 200 mil pessoas percorreram a capital gaúcha demonstrando a insatisfação popular contra o modelo neoliberal. Na mesma hora, em Davos, enclausurados nos Alpes Suíços, chefes de transnacionais, representantes do mercado financeiro e governos dos países mais ricos do mundo se preparavam para discutir a manutenção da ordem desigual. “O Fórum Social procura a construção de um modelo alternativo que não é único para a aplicação em todos os países. Está em busca de propostas que sejam adequadas às realidades sociais, econômicas e ambientais de diferentes nações”, opina Emiliano Strada, coordenador da Campanha de Biodiversidade do Greenpeace na Argentina. A mobilização de abertura promoveu uma união rara ao reunir representantes de diversas ONGs, centrais sindicais, movimentos sociais e partidos políticos. Uma das participantes era Maria Dulcinéia, que esteve no 2º Congresso Latino-Americano dos Catadores e defendeu a regularização da profissão de catadores de papel e recicláveis.
TRANSGÊNICOS Outra atividade popular realizada durante o FSM foi encampada pela rede “Brasil Livre de
Francisco Rojas
Marchas revelam uma grande diversidade son, destacando a necessidade de continuar lutando contra os cultivos transgênicos e pela defesa da soberania alimentar.
CONTRA A ALCA
Marcha de abertura do Fórum: contra a ditadura do pensamento único
Transgênicos”, em parceria da a Via Campesina e organizações ambientalistas. Centenas de pessoas se concentraram em frente ao escritório da Monsanto, em Porto Alegre, para protestar contra o crescente controle que as transnacionais assumem sobre a produção
mundial de alimentos. Os camponeses e ativistas fixaram, no chão, uma placa de ferro onde se lia “Consulado da República da Soja”. “As grandes corporações só visam o lucro e promovem a destruição do meio ambiente”, resumiu Paul Nichol-
Depois de seis dias de debates e longas caminhadas pela orla do Gasômetro, 20 mil pessoas se animaram para participar da marcha de encerramento do FSM, dia 31 de janeiro. A manifestação começou no Anfiteatro Pôr-do-Sol, atravessou o Território Social Mundial (espaço onde as atividades do Fórum foram concentradas) e seguiu na direção do Largo Glênio Perez, onde foi encerrada com um ato político. Os manifestantes protestaram contra os tratados de livre-comércio, sobretudo a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), cumprindo uma tradição iniciada no 2º Fórum Social Mundial, em 2002, quando foi lançada a Campanha Continental contra o acordo proposto pelos Estados Unidos. Na avaliação das diversas forças sociais, esses tratados perpetuam uma condição subalterna da América Latina. “Essa integração é fatal para nós, principalmente, para camponeses, operários, mulheres e, também, para nosso meio ambiente”, afirma Monica Baltodano, da Frente Sandinista na Nicarágua. “Trata-se de um eixo fundamental da estratégia imperialista dos Estados Unidos, uma vez que sua principal característica é reforçar o neoliberalismo na
América Latina”, comenta a jornalista argentina Claudia Korol, da revista América Libre e da Educação Popular da Universidade das Madres de la Plaza de Mayo. “É um projeto que não tem nada a ver com integração; limita-se a reduzir a soberania dos países pobres”, avalia Damián Osta, da ONG Amigos da Terra da América Latina e da Campanha contra a Alca, no Uruguai. A nicaragüense Monica ressalta que a marcha não é contra a integração entre os países americanos. “Nós queremos construir uma integração para os povos, que preserve a soberania alimentar, os direitos trabalhistas, a diversidade cultural e ambiental das nações signatárias”, salienta, acrescentando que a Alca contempla apenas os interesses das transnacionais. (Com Alexania Rossato, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Patrícia Wittenberg e Suzane Durães) O Fórum em números: 155 mil participantes 6.558 organizações 2.500 atividades 2.800 voluntários 135 países 130 shows 115 projeções de filmes 96 exposições de arte 352 propostas Fonte: Organização FSM
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Espelho Folha em campanha... A cada dia que passa, o diário luso-brasileiro Folha de S. Paulo pega mais pesado em suas críticas ao governo Lula. Desde a venda de parte do jornal para a Portugal Telecom, por sinal, a Folha ficou mais agressiva. Em alguns casos, é até engraçado, como ocorreu no noticiário do brasileiro seqüestrado no Iraque. Primeiro, o matutino criticou o governo por não negociar a libertação do refém patrício. Quando Lula entrou na área e conversou com o presidente da Síria, a Folha estrilou, condenando as tratativas do brasileiro com “o ditador sírio”. ... não deixa passar uma... O afã da Folha em criticar o presidente cria situações constrangedoras. No noticiário online do jornal do dia 28 de janeiro, foi publicado que o presidente havia sido interrompido durante o seu discurso em Davos. Meia hora depois, o jornal publicava um “erramos online” retificando a informação: Lula não fora interrompido durante o discurso, mas no final de um aparte, em uma das mesas de discussão do Fórum Econômico Mundial. ... e prefere a Sharon Na edição do sábado, 29 de janeiro, o jornal escondeu os elogios de Bono Vox (“Lula mudou a agenda de Davos”) e editou o material sobre o seminário de Davos comparando a “eficiência” da atriz Sharon Stone, que arrecadou 1 milhão de dólares para a Tanzânia, com a “falta de efeitos práticos” dos discursos de Lula, como se ele tivesse ido à Suíça levantar fundos para o Fome Zero. Mais do mesmo 1 Falando em Fórum, a cobertura da grande imprensa sobre o 5° Fórum Social Mundial ocorreu exatamente nos moldes que esta coluna antecipou há duas semanas. O principal assunto da cobertura foi a vaia ao presidente. Os jornais mais conservadores, como a Folha, noticiaram com estardalhaço a “grande vaia” recebida por Lula. Os mais governistas, como o Estadão, registraram a vaia, mas também os aplausos ao presidente. Mais do mesmo 2 Lula à parte, a cobertura do FSM foi a de sempre: muito destaque para o “estilo Woodstock” do evento, sempre com tom pejorativo, poucas referências ao que de fato foi discutido nos milhares de painéis e mesas de debates e a caracterização dos participantes como gente que luta por um mundo que já não é mais possível. Em suma, uma cobertura de combate às idéias que circulam no Fórum. Em contraposição, o Fórum de Davos foi tratado com a reverência que a mídia burguesa usualmente devota aos que têm poder e dinheiro. Faz sentido: é a turma de Davos que paga as contas dos barões da mídia... Tucanos em ação O PSDB trocou de presidente na semana passada. No evento que marcou a saída de José Serra, que se licenciou da presidência e deu lugar ao senador mineiro Eduardo Azeredo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso marcou presença cobrando do seu partido mais críticas ao governo Lula. Ele mesmo deu o tom para os futuros ataques, afirmando que o desemprego de 9,6% registrado no ano passado é “muito alto”. Uma pena que nenhum repórter presente tenha se lembrado de perguntar se não era estranho alguém que assumiu o governo federal com 6% de desemprego e entregou com 13% criticar o comportamento da nova gestão nesta área. Unidos venceremos Perguntar não ofende: José Serra não foi eleito porque faria uma administração parceira com o governador Geraldo Alckmin? Então por que o secretário municipal da Cultura, Emanuel Araújo, insiste tanto em criticar a secretária estadual da Cultura, Cláudia Costin ?
Comunicação livre e independente O 1º Fórum de Informação defende a criação de uma rede mundial de jornalistas Isabel Mercês e Cristiane Parente de Porto Alegre (RS)
Isabel Mercês
Luiz Antonio Magalhães
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
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ma nova comunicação é possível. Esse foi o princípio que norteou o 1º Fórum Mundial de Informação e Comunicação, dia 25 de janeiro, véspera da abertura oficial do 5º Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre. Idealizado pela agência de comunicação alternativa IPS (Internacional Press Service) e pela Novib, representante da Oxfam Internacional da Holanda, o evento contou com cerca de 300 participantes. Inicialmente o objetivo era criar um canal de diálogo entre os profissionais de comunicação que participariam da cobertura do FSM. Logo a idéia ganhou outra dimensão, ao tratar de temas referentes à luta pela democratização dos meios de comunicação no mundo. Em quatro mesas, foram abordados assuntos como mídia alternativa, concentração dos meios de comunicação, mulheres na mídia e propriedade intelectual. A necessidade de apropriação das novas tecnologias foi muito enfatizada. Sally Burch, da Agência Latino-Americana de Informação (Alai), considerou que a sociedade da informação é também a sociedade da vigilância: “Os mecanismos de controle têm a seu dispor um imenso aparato tecnológico, que cria cadastros e sistemas de informação”. Por outro lado, ela afirmou que a tecnologia é também um instrumento de luta social a partir do momento em que começa a ser usada pelos movimentos antiglobalização, formando uma ampla rede de comunicadores e criando uma nova tendência na sociedade: a da apropriação dos meios de comunicação pelos cidadãos.
A luta pela democratização da comunicação, a mulher na mídia e a propriedade intelectual foram temas de debate no dia 25
novo mundo proposto pelo FSM: “Os jornalistas não conseguem identificar os problemas dos meios de comunicação porque, quando vão à faculdade, aprendem a reproduzir informação para o mercado”. Ele também julgou insuficiente a apropriação da tecnologia por aqueles que já a têm ao seu alcance: “O que nós fazemos pela comunicação? Como atingir as pessoas? Se cada um dos 100 mil participantes que vêm ao Fórum se comunicar com pelo menos mais dez, a rede está criada”. As questões levantadas por Ignacio Ramonet, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, nortearam boa parte dos debates. Ramonet falou no paradoxo da “ignorância informacional”, que não permite ao leitor confiar no que lê. Para o italiano Giulietto Chiesa, do Parlamento Europeu, os movimentos sociais precisam atuar junto com os jorna-
IGNORÂNCIA INFORMACIONAL Roberto Savio, presidente emérito da IPS, manteve uma postura crítica em relação ao trabalho dos comunicadores na construção do
listas em direção a uma mídia independente. “Um jornalista sozinho, uma mídia alternativa sozinha, não conseguem mudar nada”, afirmou Chiesa, que defendeu a transformação da produção da mídia independente, para poucos, em um grande movimento forte e organizado em favor da democratização e socialização da informação, além de um novo tipo de educação voltada para os meios. “Temos que aprender a fazer o que não fizemos antes. Temos de ter ousadia”, falou. Chiesa também estimulou a luta contra a privatização e os canais oficiais de TV, que decidem a agenda de discussões do dia. “Temos que inventar uma nova vacina contra essa doença louca chamada TV”, disparou. Ele defendeu ainda uma aliança entre jornalistas e produtores de publicidade e entretenimento em direção a informações e progra-
mações de qualidade. A atuação dos movimentos sociais também foi analisada pelo teórico belga Armand Mattelart, que ressaltou a necessidade de uma conceituação e formalização de suas atividades. “É preciso uma tomada de distância para analisar melhor o que está sendo feito”,afirmou. O pensador destacou ainda a importância da semiótica como forma de analisar como as palavras têm servido para reforçar o sentido de “ordem total” e alertou para a relevância da sociedade fazer as perguntas corretas: “Queremos um outro mundo, mas que mundo é esse?”, provocou. A necessidade de se pensar estratégias de comunicação inovadoras para conseguir chegar a diferentes públicos foi ressaltada por Marcelo Furtado, do Greenpeace, que defendeu uma aproximação maior entre os diversos movimentos sociais e os jornalistas
RÁDIOS COMUNITÁRIAS
Violência atinge emissoras Dioclécio Luz de Porto Alegre (RS) O governo Lula pratica violências contra as rádios comunitárias, coloca emissoras fora do ar, não procura diálogo com o movimento social, não busca mudanças na legislação atual e mantém aliança com o monopólio das comunicações. Essas foram considerações feitas por representantes de dezenas de rádios comunitárias, no Fórum Social Mundial (FSM), que dividiram-se entre a participação em plenárias e debates e a cobertura do evento, muitas por meio da Agência Pulsar, da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc). Segundo denúncias, foram mais de 4 mil emissoras fechadas no ano passado – praticamente o dobro das que foram fechadas em todo o governo Fernando Henrique Cardoso. Hoje há mais de 10 mil pessoas ligadas às emissoras comunitárias sendo processadas pela Polícia Federal. Regra geral, o fechamento se dá de forma truculenta. São dezenas de policiais armados de fuzis e metralhadoras que invadem casas, estúdios, constrangendo e humilhando crianças e adultos. As pessoas são algemadas e levadas presas em camburão. As ações são coordenadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) que, junto com os policiais, trata as pessoas como marginais perigosos. A denúncia está no dossiê, assinado, entre outros, pela Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abra-
Juliana Bruce
da mídia
NACIONAL
Mais de 20 entidades participam de plenária das rádios comunitárias e aprovam documento cobrando mudanças no governo
ço), Associação Mundial de Radiodifusão Comunitária (Amarc), Federação das Rádios Comunitárias do Rio de Janeiro (Farc), Conselho Regional de Radiodifusao Comunitária (Conrad) e sindicatos dos Jornalistas do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul. Para reprimir as emissoras o governo Lula utiliza lei da ditadura militar. Trata-se do artigo 70 da Lei 4.117/62 (Código Brasileiro de Telecomunicações) que pune com até três anos de cadeia quem for flagrado operando tais rádios. O dossiê conclui: “A repressão se faz por motivos políticos e não por razões técnicas ou legais”; “Não há liberdade de expressão no Brasil”;
“A omissão do governo Lula diante do que está acontecendo às rádios comunitárias significa uma opção que a história não esquecerá”. Por iniciativa da Amarc, o documento já foi encaminhado à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), com a solicitação de uma audiência com a presença do Brasil.
DENÚNCIA POSSÍVEL No dia 30 de janeiro, penúltimo dia do Fórum, mais de 20 entidades participaram de uma plenária das rádios comunitárias. Ao final do encontro, foi aprovada uma carta que será encaminhada ao governo Lula.
O documento cobra o fim da repressão às rádios comunitárias; devolução dos equipamentos apreendidos; mudanças na legislação, adequando-a aos interesses da maioria do povo brasileiro; estabelecimento, no Ministério das Comunicações, de uma rotina burocrática que dê agilidade e impeça as interferências políticas nos processos em tramitação, com a criação de um conselho consultivo. Querem também punição para todos os agentes da Anatel e Polícia Federal que cometeram abusos e criação de um fundo de apoio às rádios e TVs comunitárias. O texto completo da carta se encontra no site do Brasil de Fato (www.brasildefato.com.br).
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De 3 a 9 de fevereiro de 2005
NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
A criação do movimento dos movimentos O
s movimentos sociais de todo o mundo iniciam, em 2005, uma ofensiva unificada contra a guerra, o neoliberalismo, a exploração e a exclusão. Pretendem agir de forma coordenada e massiva para derrotar, em diferentes frentes, os responsáveis pelos problemas sociais. A iniciativa, considerada histórica por lideranças de organizações de todo o mundo, foi anunciada publicamente em uma assembléia mundial, no dia 31 de janeiro, na última atividade do 5° Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. No evento, representantes de movimentos sociais se sucederam na leitura de uma agenda mundial de lutas, destacando as principais mobilizações (veja quadro abaixo). Definido como uma síntese das discussões de reuniões, oficinas e assembléias dos movimentos que ocorreram no Fórum, o documento define as bases de ações e campanhas planetárias pelo cancelamento da dívida externa dos países pobres, pela desmilitarização e contra os tratados de livre comércio. Também entraram no texto, intitulado “Chamado dos Movimentos Sociais para a Mobilização contra a Guerra, o Neoliberalismo, a Exploração e a Exclusão por Outro Mundo Possível”, a luta pela igualdade de gênero, por uma alimentação mais saudável, pela reforma agrária, entre outras.
humanos, sociais e sindicais”, na Colômbia e Índia. No documento, os movimentos reiteram seu apoio às lutas dos povos iraquiano e palestino contra a ocupação de seus países por tropas estadunidenses e israelenses. “Pedimos à comunidade internacional e aos governos que imponham sanções políticas e econômicas a Israel, incluindo um embargo sobre as armas”, diz o texto. Exigem também a retirada dos soldados que ocupam o Haiti e a desmilitarização do mundo, promovida principalmente pelos Estados Unidos.
LIVRE-COMÉRCIO
Movimentos sociais por moradia ocuparam prédio federal abandonado no dia 25 de janeiro, em Porto Alegre (RS)
incondicional cancelamento da dívida externa e ilegítima dos países do Sul, começando com os países vítimas do tsunami e outros que sofreram terríveis desastres e crises nos últimos meses”. Durante diversos eventos do Fórum, a dívida externa foi analisada como um meio que os governos dos países ricos utilizam para controlar a política interna das nações mais pobres. Os movimentos sociais também exigem reparações aos povos dos países que foram “saqueados” por governos do Norte. Opera-se assim uma inversão dos papéis em relação à dívida: quem é tido, pelo mercado internacional, como devedor, torna-
DÍVIDA No Chamado, os movimentos definiram a necessidade de fortalecer uma campanha pelo “imediato e
se então credor. Em uma oficina sobre alternativas ao neoliberalismo, Atilio Borón, secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), afirmou que “a comunidade internacional precisa reconhecer os crimes cometidos contra as populações dos países pobres, desde o período da colonização. Isto é uma dívida histórica dos países ricos”. Para impedir novas formas de dominação, os movimentos exigem que os recursos financeiros destinados aos países do Leste asiático sejam repassados diretamente às comunidades, que os administra-
Paulo Pereira Lima
Unidos contra a exclusão Ratificado por organizações de operários, camponeses, mulheres, estudantes e minorias, o “Chamado dos Movimentos Sociais para a Mobilização contra a Guerra, o Neoliberalismo, a Exploração e a Exclusão por Outro Mundo Possível”, divulgado no dia 31 de janeiro, defende mecanismos para impedir a opressão de populações vulneráveis. Com exclusividade para o Brasil de Fato, o professor de sociologia na Universidade das Filipinas, Walden Bello, um dos responsáveis pela leitura do documento, disse que os oprimidos de todo o mundo são mais fortes em conjunto e que “uma das táticas do neoliberalismo é fazer crer que suas lutas não têm a ver umas com as outras, enquanto estão todas relacionadas, pois são criadas pelo capitalismo selvagem, que não se mantém sem deixar a maioria da população na exclusão e pobreza”. Em um dos tópicos finais do texto, aparece a síntese da união dos diferentes movimentos: “Apoiamos
Os movimentos sociais anunciaram campanhas e mobilizações contra os tratados de livre comércio, incluindo acordos bilaterais e multilaterais, que identificam com uma estratégia neoliberal para avançar no “debilitamento dos Estados, a desregulamentação das economias e a legalização de privilégios para as corporações transnacionais”. Nesse sentido, definiram protestos contra instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), que identificam como instrumentos para desenvolver o neoliberalismo. Em contraposição às orientações neoliberais para os setores de serviços e agricultura, voltadas para o favorecimento do mercado, o documento sugere que o bem-estar dos povos seja a prioridade das políticas nacionais e internacionais. Defendem, então, uma reforma agrária que garanta o acesso dos camponeses à terra e que acabe com a fome. A pequena agricultura é definida como um meio de conter a destruição dos recursos naturais.
riam, evitando desvios e a criação de mais dívidas.
GUERRA As organizações sociais chamam a uma intensificação dos protestos pelo fim da ocupação do Iraque, iniciada em 2003. Além de organizar campanhas de denúncia da política externa do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, pretendem reforçar as ações contra as grandes empresas que financiam governos belicistas. Em especial, foram citadas as transnacionais estadunidenses Coca-Cola e Pepsi e a suíça Nestlé, como as que mais “atentam contra direitos
Assembléia da CMS discute pauta única Ana Maria Straube de Porto Alegre (RS)
Barrios de Pie, os piqueteiros argentinos, saem às ruas durante o 5º FSM
o chamado dos excluídos, dos semvoz, para desenvolver uma campanha de solidariedade ativa e estimular uma marcha mundial em que os oprimidos e as oprimidas e excluídos e excluídas do planeta levantem sua
voz para conquistar o direito a uma vida digna”. Segundo Bello, isso marca uma nova etapa do cenário político mundial, “quando os pobres saem às ruas, em uma ofensiva contra um modelo que os mata”. (JAP)
Agenda mundial de mobilização No documento final da Assembléia de Movimentos Sociais, dia 31 de janeiro, as organizações apresentaram um calendário de lutas planetárias para 2005. A proposta é que todas as pessoas e grupos que defendem a luta por um “outro mundo possível”, lema do Fórum Social Mundial, participem das mobilizações. São elas: *8 de março a 17 de outubro: ações acompanhando a passagem da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade por diversos países; *18 a 20 de março: Fórum Internacional sobre a Água, em Genebra, Suíça; *19 de março: Ação Global pelo Fim da Ocupação do Iraque; *10 a 17 de abril: Jornada de Ação Global contra os Tratados de Livre Comércio; *17 de abril: atos políticos pelo Dia Mundial dos Camponeses; *2 a 8 de julho: mobilização contra o encontro do G8, na Escócia; *7 a 15 de agosto: participação no 14° Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, na Venezuela; *10 de setembro: na data do aniversário da morte do agricultor coreano Lee Kyung Hae, protestos contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) e por uma nova ordem democrática no mundo; *17 de novembro: mobilização pelo Dia Internacional dos Estudantes, em defesa da educação pública e contra a privatização e transnacionalização da educação; *novembro: participação na Conferência dos Povos das Américas, em Mar del Plata, Argentina; *dezembro: protestos contra a 6ª Reunião Ministerial da OMC. (JAP)
No final da tarde de sábado, 29 de janeiro, realizou-se no espaço das lutas sociais a Assembléia da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS). Aproximadamente mil pessoas, de diversos movimentos, se reuniram sob a tenda F 901 para socializar as prioridades e ações da Coordenação para 2005. Entre os focos de mobilização previstos para o ano estão o emprego e a necessidade de mudança da política econômica atual. A Assembléia no Fórum Social Mundial (FSM) teve como objetivo principal aproveitar o grande espaço de articulação entre os movimentos e entidades. Teve também a função de apresentar a Coordenação e sua forma de atuação. Coube a Antônio Carlos Spis, secretário de comunicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) fazer um breve histórico sobre a criação da CMS e seus objetivos. Gilmar Mauro, da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) fez uma análise de conjuntura, onde apontou como questões primordiais a organização da luta contra a Alca, mobilizações em favor do emprego e da urgência da mudança da política econômica para atingir os objetivos históricos dos movimentos sociais. Mauro destacou, ainda a importância do desenvolvimento de meios de comunicação alternativos que falem ao povo e derrubem a imagem deturpada que os veículos chamados “grandes” trazem dos movimentos sociais. O presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Gustavo Petta, apresentou o calendário
de lutas para 2005, onde estão previstas mobilizações pela reforma agrária, educação, emprego e salário-mínimo. Consta também do calendário a realização da segunda Plenária Nacional da Coordenação dos Movimentos Sociais, marcada para os dias 18 e 19 de março, em São Paulo. A CMS surgiu em abril de 2003, com o objetivo de aglutinar diferentes movimentos sociais. Compõem a organização entidades como o MST, CUT, Marcha Mundial das Mulheres, UNE, CMP e outras. Robson Oliveira
João Alexandre Peschanski de Porto Alegre (RS)
Robson Oliveira
Documento unificado propõe união de organizações e define uma agenda mundial de lutas contra o neoliberalismo
CMS apresentou calendário de lutas
A CMS procura debater estratégias unificadas para a implantação das mudanças necessárias ao país, além de organizar a luta contra o neoliberalismo e promover ações de massa conjuntas entre os movimentos que a integram. Desde seu nascimento, foi estimulada a criação de coordenações estaduais para desenvolver pautas regionais.
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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Índios denunciam descaso
Hamilton Octavio de Souza
Diversidade cultural e os mesmos problemas de terra unem os índios na busca de soluções
Fórum Social Mundial 2 Todos os debates sobre temas nacionais entraram, inevitavelmente, na avaliação do governo Lula, que se tornou o centro das principais divergências no FSM com três posições predominantes: 1) os que tratam de justificar por que é difícil mudar; 2) os descontentes que esperam as mudanças; e 3) os decepcionados que buscam novos caminhos. Assim, as vaias foram para Lula, Tarso Genro e, por tabela, para Luiz Marinho, presidente da CUT. Fórum Social Mundial 3 O PT também se tornou alvo de protestos, não apenas das organizações de esquerda, mas, sobretudo, dos dissidentes internos e daqueles que se desligaram do partido. As críticas falam da submissão do PT ao governo e ao neoliberalismo, do abandono das bandeiras de luta dos trabalhadores e de rendição às classes dominantes. A preocupação da militância é saber o que o partido vai defender depois que terminar o governo Lula. Fórum Social Mundial 4 A tendência de racha mais radicalizado nas esquerdas, entre governistas e oposicionistas, ficou evidenciada em determinados setores da CUT e também na UNE. Um exemplo foi a assembléia das entidades da educação, que não conseguiu aprovar pontos de consenso sobre o projeto de reforma do ensino superior. De um lado ficou o PC do B e a articulação majoritária do PT e, de outro, demais correntes petistas, PSOL e PSTU. Fórum Social Mundial 5 Apesar do ambiente conturbado nas organizações políticas e nos movimentos sociais, o que se denomina normalmente de crise, há quem veja o momento de forma positiva: no ato político-cultural do Brasil de Fato, num lotado auditório Araújo Viana, o bispo dom Tomás Balduíno disse o seguinte: “Nós avançamos de dois anos para cá, pois antes estávamos de olho no Palácio do Planalto e agora estamos pensando no que nós vamos fazer”. Fórum Social Mundial 6 Os jornais da grande imprensa burguesa fizeram questão de destacar os elogios recebidos pelo presidente Lula no Fórum Econômico de Davos, um dia depois das vaias no Gigantinho de Porto Alegre. Da mesma forma, seguiram fielmente a linha editorial determinada pelo governo Bush, no sentido de tentar demonizar e ridicularizar o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a grande estrela do FSM 2005. Cada qual com a sua turma. Fórum Social Mundial 7 O que mais irrita a mídia neoliberal é que as propostas de Chávez combinam perfeitamente com os sonhos de independência e soberania dos povos da América Latina. Entre outras coisas, ele está articulando uma companhia petrolífera que reúna Brasil-Argentina-Venezuela, uma emissora de TV não-comercial da América do Sul e a consolidação da Alba — uma alternativa de integração latino-americana contrária ao projeto da Alca formulado pelos Estados Unidos. Fórum Social Mundial 8 Inúmeras propostas e articulações debatidas e acertadas em Porto Alegre devem ter seus desdobramentos no decorrer de 2005, tanto para fortalecer as lutas específicas de cada setor, como as lutas populares da sociedade. Uma dessas lutas, com certeza, será a criação de redes alternativas para democratizar a comunicação e ampliar os espaços não contaminados pelo jornalismo neoliberal. O pensamento único saturou de vez.
Cristiano Navarro e Priscila Carvalho de Porto Alegre (RS)
O
ritual de saudação ao sol que inaugurou o Fórum Social Mundial (FSM) em 25 de janeiro, em Porto Alegre foi cumprido por índios Guarani, das proximidades da capital gaúcha; Mapuches, do Chile, e Pataxó, do sul da Bahia. Mais exatamente, ele abriu o “Espaço de Artes e Saberes Puxirum” (mutirão, em Guarani). O pajé Adolfo Verã Guarani, pediu ao deus Tupã força e bons fluidos para todos os participantes do FSM. Para ele, a participação de cerca de 150 mil inscritos de todos os continentes é uma boa oportunidade “para que se reconheçam os direitos dos povos Guarani de todos os países, principalmente o das nossas terras”. O líder da Frente de Luta e Resistência Pataxó, Jitaí Pataxó, também rezou a Tupã, pedindo proteção aos participantes do evento, além de dançar e cantar o toré com outros Pataxó, com letras como: “Verde e amarelo é cor do meu Brasil. A terra dos Pataxó foi Cabral quem invadiu”. Jitaí enfrenta com seu povo a invasão de suas terras por transnacionais de celulose. Logo após, o cacique Pirilo Guarani saudou os presentes. “Vamos lembrar dos nossos deuses para que eles iluminem nossas cabeças nos próximos dias em nossas discussões e soluções”. “Nós somos o outro mundo!” Esse foi o lema do Puxirum, no qual a proximidade com a natureza e a vida solidária e em comunidade foram vistas como o outro mundo possível que tanto almejam os milhares de participantes do FSM.
Indígenas lançaram carta denunciando a morosidade na demarcação de terras com o objetivo de beneficiar agronegócio
atualmente no Congresso Nacional com o objetivo de restringir seus direitos, assegurados principalmente na Constituição Federal. Questionam também, as freqüentes decisões judiciais que invertem os preceitos legais para “contemplar o interesse particular de invasores e de grupos econômicos e políticos interessados nas riquezas existentes nas terras indígenas”. A carta pôde ser entendida como
dígenas e apoiadores de sua causa) de 66 povos, vindos de 14 Estados brasileiros e de 14 outros países (Peru, Chile, Colômbia, Venezuela, Guatemala, México, Argentina, Bolívia, Paraguai, Suriname, Guiana, Uruguai, Equador e Camboja). Apesar da diversidade e das particularidades culturais de cada povo, não são poucas as semelhanças. “Conservamos os valores e a sabedoria de um mundo dife-
Arquivo BF
Fórum Social Mundial 1 Os 150 mil participantes do 5º FSM reafirmaram, em Porto Alegre, o compromisso pela transformação, por um mundo mais justo e mais igualitário, marcado pela solidariedade e pela paz. As manifestações antiimperialismo e antineoliberalismo ganharam força e unanimidade. Na esfera internacional, os aplausos foram para Iraque, Palestina, Cuba e Venezuela, que enfrentam os Estados Unidos de Bush.
Cristiano Navarro
Fatos em foco
CONTRA A CONTINUIDADE Um grupo de trabalho de índios de todo o Brasil lançou uma carta denunciando o governo Lula por sua “continuidade no processo de colonização forçada que vem se reproduzindo nos dias atuais em nosso país”. No documento, os indígenas afirmam que a morosidade do governo federal em garantir a demarcação de suas terras é devida ao compromisso com o agronegócio e com atores políticos notadamente antiindígenas: “Percebemos que a ganância e a exploração capitalistas têm mais importância no governo Lula do que a sobrevivência física e cultural dos nossos povos. Só assim se explica que apenas onze terras indígenas tenham tido seus limites declarados nos últimos dois anos”. As lideranças contestam as articulações políticas que ocorrem
Participação:“Ainda temos que lutar contra a idéia de que os indígenas não sabem nada de política. Conosco, os de fora não falam de política, apenas
EXCLUÍDOS Antonia Huentecura Llancaleo, líder da Mapuche Meli Wixan Mapu, organização que luta pela reconquista de seus territórios, explica que hoje há mais de um milhão de Mapuche, a grande maioria expulsa de sua terra. Quase metade mora em Santiago, em condições precárias. “Os indígenas vivem nas periferias da cidade e ocupam os setores econômicos mais baixos da sociedade chilena”, afirma Antonia. Na luta pela recuperação de suas terras ocorreram muitos conflitos e criminalização das lideranças indígenas. “Passaram pelas prisões chilenas aproximadamente 400 irmãos Mapuche. Hoje, há cerca de 20 indígenas presos, cinco deles cumprindo condenações. Foram assassinados dois jovens, um deles em uma prisão de Santiago”, informa ela.
A tenda Puxirum recebeu 66 povos de 14 Estados brasileiros e 15 países
MÉXICO uma resposta ao discurso do presidente em Porto Alegre. “Sem ter nada para apresentar, Lula tentou se esconder utilizando a homologação de terras indígenas que já estavam em processo avançado”, afirmou Jecinaldo Barbosa, representante do povo Sateré-Mawé e coordenador da Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). O Puxirum contou com aproximadamente 500 inscritos (entre in-
rente no qual temos uma relação recíproca de equilíbrio com nossa Mãe-Terra”, diz o documento final do Puxirum Uma semelhança são os problemas de território. Por exemplo, a terra Mapuche, no Chile, sofre com a invasão de empresas privadas de eucalipto e de turismo, e de hidrelétricas estatais. Cansados de sofrer na periferia de grandes cidades, em meio ao preconceito e exclusão
Blanca Chancoso prega a unidade No Equador, os indígenas tiveram forte participação na última eleição presidencial, em 2003. E, no início do governo de Lucio Gutiérrez, pela primeira vez na história do país, ocuparam cargos em ministérios. No entanto, a quebra dos compromissos assumidos por Gutiérrez durante a campanha levou os indígenas a saírem do governo, principalmente por causa da dolarização da economia e do alinhamento aos Estados Unidos, por meio da participação no Plano Colômbia e pela abertura à Área de Livre Comércio das Américas (Alca). No Fórum, a líder Quíchua Blanca Chancoso conversou com o Brasil de Fato. Abaixo, os principais trechos da sua entrevista:
social, muitos Mapuche têm retornado ao campo para lutar pelos seus territórios tradicionais.
de cultura, de arte. Acredito que aí há um equívoco. Nós, indígenas, somos atores políticos”. Proposta: “No Equador, construímos uma proposta política a partir dos movimentos indígenas. Às vezes, há uma agenda nacional mais ampla que nos engole, não nos permite desenvolver tudo o que propomos. Temos que continuar discutindo nossa proposta, mas não apenas entre os indígenas, mas também com todos os que buscam mudanças. Ainda faz muita falta estarmos juntos com outros setores sociais, que não estão convencidos de que os indígenas podem contribuir. Direitos: “A nós, indígenas, cabe um trabalho triplo. Precisamos entender a cultura do outro, porque a política é feita com base em uma cultura que não é a indígena. Em segundo lugar, as pessoas pobres, que são a maioria, têm que en-
tender que somos iguais e que temos os mesmos direitos. E, por fim, juntos, precisamos buscar construir algo próprio, onde estejam todos. Não se trata de que eu sente numa cadeira onde não caibam outros. Há que se construir um mundo onde caibam muitos mais”. União: “Há situações de injustiça que acontecem da mesma forma em todos os países. Como criar uma agenda em que possamos estar todos juntos, para que não seja só um povo defendendo seus direitos? Temos que fazer com que outros setores da população conheçam a situação dos indígenas, para que haja solidariedade, porque os indígenas, sozinhos, não vão fazer mudanças. E os outros setores – homens, mulheres, camponeses, operários – sem os indígenas também não poderão gerar mudanças.” (CN)
Interessadas em terras indígenas, transnacionais como CocaCola, Ford e o Banco Mundial, nos últimos meses, passaram a investir milhões de dólares em programas sociais em convênio com o Estado mexicano, principalmente em educação, no Estado de Chiapas, sul do país. Em Chiapas estão os oito municípios autônomos controlados pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Presente ao Fórum, Gerardo Torres, missionário que vive com os povos indígenas Totonaca e Nahuatl no município autônomo de Las Margaritas, explica como o EZLN responde àqueles ataques. “Os povos de Chiapas sabem que a educação e a cultura são pontos-chaves para a resistência indígena. Por isso, atualmente desenvolvem um programa de educação autônoma com bons resultados, chamado Semente do Sol, que busca promover seus valores ancestrais”, relata Torres.
CAMBOJA Ao encontrar os indígenas da América, a líder da resistência indígena no Camboja, Chanty Damenh Ty, convidada como palestrante do Fórum Mundial da Dignidade, comparou os testemunhos com a sua realidade. “Em todos os lugares parecemos sofrer os mesmos problemas. Em minha terra, os interesses comerciais por nossas terras são principalmente turísticos e de latifundiários. Espero que este encontro fortaleça nossas lutas por um outro mundo que todos queremos”, disse.
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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
As mulheres dizem a que vieram Em 2005, em meio a manifestações, a Carta das Mulheres para a Humanidade passará por 60 países
A
Marcha Mundial de Mulheres (MMM), organização internacional que reúne 6 mil grupos feministas em 163 países, aproveitou o espaço do Fórum Social Mundial (FSM) para referendar seu calendário mundial de ação em 2005. A iniciativa mais importante será a passagem da Carta das Mulheres para a Humanidade por 50 países, com manifestações em cada um deles. Saindo da cidade de São Paulo em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a carta chegará ao seu destino final no dia 17 de outubro, em Burkina Faso, África. Segundo a canadense Brigitte Verdière, responsável pela redação final do documento, a idéia foi concebida no final de 2003 e, desde então, o conteúdo foi construído com a participação de mulheres de todo o mundo. “Queríamos um documento que pudesse ser apresentado aos movimentos sociais. A carta representa o mundo que nós, mulheres, queremos construir”, explica. Brigitte ressalta a importância da confecção conjunta do documento que levou cerca de um ano. “Houve um intercâmbio muito rico entre os grupos que formam a Marcha. Quando fizemos o primeiro esboço, recebi comentários de mais de 200 grupos, o que enriqueceu o conteúdo, refletindo a diversidade do movimento feminista. Foi interessante ver que vivemos a violência e a pobreza de maneira distinta”, diz. O esboço final da carta foi aprovado em Kigali, Ruanda, em novembro de 2004, durante o encontro mundial da MMM. Além de passar nas cidades principais de cada país, a carta será entregue ao país seguinte em cidades de fronteira. “O objetivo é estabelecer vínculos e ligações por meio destas
João Zinclar
Anderson Barbosa
Dafne Melo de Porto Alegre (RS)
Uma das propostas apresentadas pela Marcha Mundial de Mulheres é integrar os homens nas questões feministas
fronteiras, que em muitos casos são uma imposição artificial capitalista”, explicou durante a Assembléia a brasileira Miriam Nobre, da Sempreviva Organização Feminista (SOF). O transporte da carta será feito por avião, barco ou até mesmo em cima de camelo ou a pé.
“Todas as mulheres africanas com quem conversei, em Ruanda, me disseram que a carta é muito importante, pois alguns países africanos adaptaram resoluções de documentos internacionais. Melhoraram, por exemplo, a legislação sobre violência doméstica”. Entre os 31 tópicos do documento incluem-se assuntos como direito ao aborto, tráfico de mulheres, livre-comércio, desmilitarização e soberania alimentar. O destino final em Burkina Faso não é acidental. O país é um dos mais pobres do continente africano, e as mulheres sofrem com um alto índice de violência doméstica, matrimônios forçados e mutilações genitais.
CONTEÚDO Baseada em cinco princípios – liberdade, solidariedade, igualdade, justiça e paz – a carta rejeita a dominação capitalista e patriarcalista, alegando que esses sistemas se reforçam mutuamente na exploração e opressão das mulheres. “Esses sistemas (...) se enraízam e se conjugam com o racismo, o sexismo, a misoginia, a xenofobia, a homofobia, o colonialismo, o escravismo e o trabalho forçado. Constituem a base dos fundamentalismos que impedem mulheres e homens de serem livres”, diz o texto. Brigitte acredita que, em diversos países, as mulheres estão confiantes nos resultados da ação.
OBJETIVOS “Um outro mundo não é possível sem a presença feminista”, ressaltou Miriam Nobre. As ações coordenadas mundialmente para 2005 respondem a uma lista de diversos objetivos da MMM, entre eles, o fortalecimento do movimento em cada país, ao mesmo
tempo que constrói uma luta coletiva em todo o globo. “Muitos países ainda não possuem uma coordenação do movimento e as atividades serão articuladas por um grupo de mulheres. Nossa intenção será fortalecer as lutas nesses locais”, explica Miriam. Com as mobilizações locais, aliadas ao conteúdo da carta, a intenção também é fortalecer tanto questões mais amplas no campo da economia e política, como mais específicas, ligadas à realidade de cada país. Brigitte Verdière acrescenta que outra meta é integrar os homens nas questões feministas. “É algo novo na Marcha. Não somos as únicas no mundo. Dos grupos membros da Marcha, há alguns mistos. Se vamos fazer uma caminhada, uma manifestação, fazemos com os homens. Queremos que eles mudem sua mentalidade e nos apoiem. Não é uma luta contra os homens, pois nesse mundo que queremos construir, estaremos juntas e juntos”, define.
Paralelamente à carta, uma colcha de retalhos também será transportada e confeccionada gradualmente. Conforme for viajando, ganhará novos retalhos feitos pelas mulheres de cada país, de acordo com seus costumes.
MAIS AÇÕES No dia 17 de outubro, quando a carta chegar a Burkina Faso, a MMM coordenará uma ação, entre 12 e 13 horas, em todos os países do globo. “Desta forma vamos garantir uma corrente global solidária entre mulheres. Serão 24 horas de ação feminista contra a dominação machista, sexista e racista”, explicou Miriam Nobre. Em São Paulo, para o dia 8 de março, a Marcha já definiu como serão as manifestações. “Estamos convidando todas as mulheres do Brasil para ir à Avenida Paulista, em São Paulo”, informou Miriam. Sua expectativa é que 30 mil mulheres de todo o país participem. De São Paulo, a carta seguirá para Porto Xavier, na divisa com a Argentina.
“Estou feliz de encontrar tantas jovens feministas no Brasil”, declarou Diane Matte, coordenadora internacional da Marcha Mundial de Mulheres (MMM). Em entrevista ao Brasil de Fato, a ativista fala sobre os desafios, a necessidade de se articular com outros movimentos e a importância da participação no Fórum Social Mundial. Brasil de Fato – O que o movimento feminista em todo o mundo pretende com as ações internacionais de 2005? Diane Matte – O feminismo busca uma mudança social, e se quisermos mudar a sociedade, temos que agir de forma a assegurar que o mundo todo conheça nossas idéias e reivindicações. Mais do que isso, as pessoas precisam entender melhor o que é o movimento feminista, principalmente as mulheres mais jovens, que darão continuidade a essa luta. Em 2005, esse é o foco de nossas ações internacionais. A Carta das Mulheres para a Humanidade é uma ferramenta política que mostra o mundo que queremos e o mundo que buscamos construir diariamente. Estamos desde já convidando os homens e outros movimentos sociais para se unir aos ideais que todas e todos queremos. BF – Por que envolver mulheres de diferentes países em uma ação conjunta? Diane – Precisamos trabalhar juntas, construir a solidariedade entre nós e unir feministas em todo o mundo na luta contra a pobreza, a violência contra mu-
Quem é
João Zinclar
Pelo fim da sociedade neoliberal machista Uma das coordenadoras internacionais da Marcha Mundial de Mulheres, a canadense Diane Matte esteve envolvida nos protestos em 2000, em Quebec, Canadá, que deram origem à organização. A ativista é especialista nos impactos da globalização sobre as mulheres. lheres e o racismo. O processo de elaboração da carta foi também muito importante, pois debatemos em conjunto e fizemos troca de informações. BF – Para a Marcha e outros movimentos feministas do mundo, qual é a importância de vir ao Fórum Social Mundial? Diane – É essencial que a Marcha Mundial de Mulheres esteja aqui, contrapondo-se à globalização. Na verdade, o movimento feminista tem uma participação muito importante no movimento antiglobalização e na construção do Fórum. Não estamos apenas lutando contra o capitalismo, contra mecanismos desse sistema que faz com que as mulheres sejam mais pobres do que os homens. Aqui, podemos mandar nosso recado para o mundo e para outros movimentos sociais. O mundo que está sendo discutido agora em Davos não é o mundo que queremos. É um mundo de exclusão, de lucros para poucos. É o mundo da morte, na verda-
“Precisamos trabalhar juntas, construir a solidariedade e unir feministas de todo o mundo”, defende Diane Matte
de. Morte do meio ambiente e de pessoas, e quem morre mais são as mulheres. Temos que bloquear a continuidade da agenda neoliberal e da sociedade patriarcal. No Fórum, não trabalhamos apenas entre mulheres, apesar de algumas de nós fazermos essa escolha, pois defendemos a autonomia entre nós. Sem os homens assumirem a responsabilidade de suas próprias ações, sem os homens abrirem mão de alguns de seus privilégios, dificilmente conseguiremos construir um mundo onde os direitos feministas serão respeitados.
BF – Com a reeeleição de George W. Bush, muitos acreditam em uma ofensiva conservadora em todo o mundo. Agora, nos EUA, por exemplo, há manifestações contra o aborto. Como o movimento se prepara para isso? Diane – Desde que Bush está no poder, o ódio ficou mais claro. O imperialismo e a idéia de dominação estão mais presentes. A reeleição, para nós, indica a necessidade de unir forças com outros movimentos sociais para fortalecer a resistência e disseminar uma visão de mundo oposta à de Bush. Precisamos coordenar
ações, ir às ruas. A oposição a Bush terá de se fazer ouvir. Na questão dos direitos humanos, temos que esperar o pior. Se a aplicação da agenda neoliberal e a militarização será ruim para pessoas que estão nos Estados Unidos, será ainda pior para os excluídos de todo o mundo. O desafio é nos organizarmos cada vez mais e traçarmos uma estratégia. Nesse momento, para parte da humanidade, o avanço do neoliberalismo e da guerra dificulta ainda mais agir e reivindicar, já que a primeira preocupação é sobreviver. (DM)
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De 3 a 9 de fevereiro de 2005
NACIONAL PROTECIONISMO
Os países ricos defendem seus mercados O clube das nações mais desenvolvidas compensa seus agricultores com mais subsídios e barreiras tarifárias
D
e uma forma ou de outra, o Brasil e o restante dos países menos desenvolvidos vão acabar pagando a conta da recente queda nos preços internacionais de produtos agrícolas. E o peso dessa conta deverá ser proporcionalmente maior para pequenos agricultores instalados fora da porção mais desenvolvida do globo. A queda de preços vai afetar negativamente a receita de exportações daqueles países, neste ano, e deverá contribuir para achatar a renda dos pequenos produtores e agricultores familiares, que têm menos acesso ao crédito rural oficial e às políticas adotadas pelo governo para apoiar a comercialização de grãos e cereais. É o que já vem acontecendo com o milho, cujos preços estão abaixo dos valores mínimos de garantia fixados pelo governo e inferiores mesmo aos custos de produção. Os preços mínimos são definidos pelo governo de forma a assegurar aos produtores uma renda mínima, permitindo que honrem os empréstimos tomados e paguem os insumos (adubos, defensivos agrícolas, óleo diesel etc.) adquiridos para o plantio. Quando os preços caem abaixo daquele piso, o governo deveria entrar no mercado, comprando a produção – mas as autoridades têm preferido deixar os pequenos produtores abandonados à própria sorte, alegando que o mercado se encarregará de trazer os preços para níveis satisfatórios.
PAPEL ATIVO Nos países desenvolvidos, como descreve com clareza o mais recente estudo do Banco Mundial sobre comércio agrícola global e os países em desenvolvimento, os governos assumem um papel declaradamente mais ativo, despejando bilhões de dólares para evitar perdas aos produtores. Sempre que as cotações caem no mercado internacional, os países ricos reforçam as barreiras às importações e engordam os subsídios e benefícios direcionados aos seus
MAIS PROTECIONISMO Subsídios e proteção total aos produtores, em porcentagem sobre receita bruta do setor agrícol Países/blocos 1986/1988 1995/1997 2000/2002 OCDE 62,5 41,5 44,9 União Européia 75,8 48,8 53,4 Estados Unidos 34,3 14,9 26,2 Japão 162,1 144,7 146 Leste europeu* 63,6 13,5 22,1 Austrália e Nova Zelândia 10,6 6,8 3,6 Canadá 64,2 55,4 23 Outros países da OCDE em desenvolvimento** 37,8 46,1 52,6 (*) República Tcheca, Hungria, Polônia e República Eslovaca
(**) República da Coréia, México e Turquia
Fonte: Banco Mundial
RICOS GANHARIAM MAIS Ganhos de receitas projetados até 2015, em bilhões de dólares, se fossem eliminadas as barreiras à importação de produtos agrícolas e subsídios aos agricultores Grupo de países Países de alta renda Países de baixa renda Países de renda média Países de baixa renda (excluindo Índia) Países de renda média (incluindo Índia) Países em desenvolvimento Mundo/total
Impacto com reforma global do comércio de mercadorias 188,3 31,9 164,7 19,9 176,7 196,5 384,8
Impacto com reforma do comércio de produtos agrícolas e alimentos 136,6 10,3 118,2 8,4 120,1 128,6 265,2
Fonte: Banco Mundial
agricultores, evitando perdas para a agropecuária. Quando acontece o inverso, ou seja, em períodos de alta de preços, as barreiras tarifárias e os subsídios pagos diretamente aos agricultores são reduzidos, em doses homeopáticas, apenas para aliviar momentaneamente as pressões sobre o orçamento daqueles países, para irritação da maioria das nações em desenvolvimento.
Achutti/ Folha Imagem
Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
DEFESA Na crise dos anos 70, quando o mercado mundial de commodities desabou, reagindo a uma elevação recorde dos estoques, os mecanismos de proteção de preços e subsídios diretos aos produtores passaram de pouco menos de 30%, na média entre 1965 e 1974, para quase 40% do valor total da produção agrícola no triênio 1979 a 1981, mostra o Banco Mundial. Na fase seguinte, entre 1986 e 1988, saltaram para quase 63% do valor da produção — pico registrado para os países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
Protecionismo exorbitante dos países ricos prejudica agricultores pobres
que reúne os governos das nações mais desenvolvidas. A recuperação dos preços agrícolas na segunda metade dos anos 90 derrubou os níveis de proteção nos países da OCDE para 41,5%, na média do período 1995-1997. Mas aquele índice voltou a subir no triênio 2000/2002, para 44,9%, diante de novo recuo dos preços entre o final dos anos 90 e 2001. O trabalho não traz dados atua-
lizados para 2003 e 2004, mas pode-se supor que as políticas de sustentação à produção agrícola doméstica nos países desenvolvidos continuaram ativas — até porque as negociações destinadas a liberalizar o comércio mundial de grãos e alimentos em geral continuaram emperradas diante da resistência dos países ricos a abrir seus mercados aos países em desenvolvimento. A se manter a tendência histori-
camente observada entre os países industrializados, o protecionismo agrícola tende a se acirrar a partir deste ano, reagindo ao tombo registrado pelos principais produtos agrícolas – com destaque para a soja e derivados, o milho e o algodão. Isso colocaria obstáculos adicionais à investida brasileira para conquistar novos espaços nos mercados dos países desenvolvidos, afetando as exportações de grãos, que devem ser menores em 2005. Os subsídios diretos à produção agrícola e os mecanismos de suporte aos preços domésticos, no setor, consumiram 228 bilhões de dólares entre 2000 e 2002 nos países da OCDE, dos quais perto de 143 bilhões de dólares corresponderam a tarifas aduaneiras, cobradas na importação, e 85 bilhões de dólares foram destinados a subsídios diretos aos produtores.
BENEFÍCIOS Apenas para comparação, o custo total da proteção ao setor agrícola nos países desenvolvidos correspondeu a pouco mais de 40% do valor de todas as riquezas que a economia brasileira consegue produzir em um ano. A relação fornece uma ordem de grandeza para o tamanho da política de subsídios agrícolas bancada pela União Européia, Estados Unidos, Japão, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e demais membros do reservado clube das nações mais ricas do mundo. Embora não entrem no cálculo do protecionismo, já que o Banco Mundial considera que não afetam diretamente a concorrência e o mercado mundial de alimentos, os subsídios se estendem ao setor de serviços (distribuição e varejo de produtos agrícolas, por exemplo) e ao consumidor final, o que eleva seu valor final para 315 bilhões de dólares. Nos países ricos, o benefício destinado ao mercado consumidor cumpre o papel de evitar que os preços altos assegurados aos produtores sejam repassados aos consumidores, o que reduziria a renda disponível para outros tipos de gastos e investimentos.
Truques para esconder tarifas mais altas No setor agrícola, aparentemente, as tarifas médias de importação dos países em desenvolvimento estariam acima das vigentes nas quatro regiões mais ricas do globo. No primeiro caso, a tarifa média sobre produtos agrícolas importados caiu de 29,6%, em 1990, para 18,4% em 2000, refletindo as intensas pressões dos países ricos e de instituições multilaterais em favor da abertura dos mercados nos países em desenvolvimento. Esta fase, não por coincidência, foi acompanhada pelo agravamento das dificuldades externas no Brasil e demais países da América Latina. A abertura dos mercados impulsionou as importações e desatou uma crise de falta de dólares, consumidos pela enxurrada de importações. No Canadá, Japão, Estados Unidos e União Européia, a tarifa agrícola média era de 10,7% em 2000, aparentemente mais baixa do que a dos países em desenvolvimento. Só na aparência, mostra o Banco Mundial, concluindo que, nos países ricos, a grande disparidade entre os diversos níveis tarifários adotados por um mesmo país pode camuflar o protecionismo efetivamente adotado, e picos tarifários exorbitantes.
TARIFAS MÁXIMAS Dados da Organização Mundial do Comércio, citados pelo Banco Mundial, mostram tarifas agrícolas médias de 4,1%, 10,9%, 9,9% e 19% para Canadá, Japão, EUA e União Européia (UE), pela ordem. O Brasil
TARIFAS ESCORCHANTES “Picos” tarifários escamoteiam protecionismo real nos países ricos Países ou grupos Canadá Japão Estados Unidos União Européia República da Coréia Brasil Costa Rica Marrocos Indonésia Malawi Togo Uganda
Tarifa média (%) 4,1 10,9 9,9 19 39,9 13,2 14,2 67,4 8,9 16,5 15,6 13,6
Tarifa máxima (%) 238 50 350 506,3 917 55 154 376,5 170 25 20 15
Fonte: Organização Mundial de Comércio (OMC)
acompanha o grupo, com uma tarifa de apenas 13,2%. Mas as tarifas máximas (picos tarifários) chegam a 506,3% no caso europeu, 350% nos EUA e 238% no Canadá, e só 55% no Brasil. A Coréia do Sul parte de uma tarifa média mais alta, de quase 40%, para um pico de 917%. Os japoneses adotam uma tarifa máxima de 50%, o que não reflete o grau de proteção adotado pelo Japão, já que o suporte aos preços agrícolas supera os 130%. Isso quer dizer que, graças aos subsídios, os preços recebidos pelos produtores são mais de duas vezes superiores aos vigentes no mercado internacional.
SEM MISTÉRIO Um estudo da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex) ajuda a entender o truque: em 2002, os EUA aplicavam uma
tarifa média de 45,6% sobre os 15 produtos mais exportados pelo Brasil para seu mercado. Na outra via, os 15 produtos estadunidenses mais importados pelo Brasil eram taxados com apenas 14,3%. Mais: os países desenvolvidos usam e abusam de mecanismos de escalada tarifária que punem mais severamente as importações de produtos intermediários e bens finais, coibindo a industrialização e as exportações de produtos agrícolas industrializados dos países em desenvolvimento. Na média das quatro regiões mais industrializadas, as importações de matérias-primas recebem uma taxação de 6,1% (com a tarifa mais alta na União Européia, com 13,2%). Já nas compras de produtos intermediários e bens finais as tarifas passam, respectivamente, para 9,3% (16,6%
Os subsídios distorcem os preços O aumento dos subsídios concedidos pelos países ricos entre 1995/1997 e 2000/2002 continua causando distorções no mercado mundial. Na média da OCDE, os preços pagos aos agricultores ainda permaneciam cerca de 28% acima das cotações internacionais. Pouco mais de 56% dos subsídios aos agricultores, segundo dados de 2000/2002, concentravamse em cinco produtos ou classes de produtos. Somados, leite (17,6%), carnes (16,1%), arroz (11%), trigo (6,7%) e milho (4,7%) responderam por 56,1% dos subsídios totais. Em alguns países, os níveis de proteção são ainda mais escanda-
na UE) e 14,8% (24,3% na UE).
GANHOS O trabalho do Banco Mundial projeta, ainda, quais seriam os ganhos de receitas possíveis a partir da implantação de uma reforma geral nos sistemas de proteção ao comércio de produtos agrícolas. Partindo de um cenário básico, sem mudanças, e comparando com a situação a ser criada no mercado internacional depois da reforma das políticas protecionistas, a instituição projeta uma receita adicional de 265,2 bilhões de dólares até 2015, algo como 26,5
losos. No Japão, o subsídio total ao setor agrícola, incluindo tarifas aduaneiras e benefícios pagos diretamente aos agricultores, representou 146% do valor bruto da produção. Ou seja, o subsídio ajudou a mais do que dobrar as receitas da agricultura japonesa. A questão, aponta o Banco Mundial, é que as políticas de suporte ao setor agrícola nos países ricos têm se deslocado das medidas de proteção aduaneira (tarifas alfandegárias, cotas de importação) para mecanismos de subsídio direto ao produtor. Até 1986/1988, as medidas aduaneiras respondiam por 77% dos subsídios totais, recuando para 62,6% em 2000/2002. (LVF)
bilhões de dólares por ano, em todo o mundo. Mais da metade dos ganhos (51,5%) seriam apropriados pelos países mais ricos, que teriam uma receita extra de 136,6 bilhões de dólares, cerca de 6,2% mais do que os países em desenvolvimento. Os ganhos desses últimos chegariam a 128,6 bilhões de dólares — ou quase 13 bilhões de dólares a mais. Num cenário mais otimista, com avanços de produtividade, os ganhos provenientes de uma reforma poderiam saltar para até 438 bilhões de dólares. (LVF)
Ano 3 • número 101 • De 3 a 9 de fevereiro de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Chávez não dá trégua ao latifúndio O
ponto alto do penúltimo dia do 5º Fórum Social Mundial (FSM) foi a participação do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Aplaudido entusiasticamente por mais de 10 mil pessoas que lotaram o ginásio do Gigantinho, em Porto Alegre, na noite de 31 de janeiro, o líder bolivariano começou seu dia assinando um protocolo de intenções com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para o intercâmbio e reprodução de sementes nativas. A solenidade ocorreu em um assentamento localizado em Tapes (RS), a 130 quilômetros da capital. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, o governador do Paraná, Roberto Requião e a Universidade Federal do Paraná também assinaram o documento e confirmaram o início das discussões para a criação, no Brasil, da Escola Latino-Americana de Agroecologia. “Vamos oferecer à Venezuela toda a semente que o país necessitar para que não precise depender de soja transgênica da Monsanto”, afirmou o coordenador nacional do MST, João Pedro Stedile. O
No assentamento em Tapes (RS), Chávez assina protocolo de intenções para intercâmbio e reprodução de sementes nativas
assentamento de 35 famílias “era uma terra que produzia pouco e não cumpria a função social de nossos recursos naturais, que é assegurar trabalho, produção de alimentos e dignidade ao nosso povo”, disse o ministro Miguel Rossetto, lembrando que há um mito no Brasil de que os assentamentos são improdutivos. “Mas, na verdade, de cada dez postos de trabalho no campo, sete são da agricultura familiar dos
Recados ao presidente Lula “Temos de conspirar pela vida, para a libertação do homem. Simon Bolívar nos inspira a vencer”, conclama uma jovem de voz firme e doce, no microfone, às mais de 10 mil pessoas presentes no ginásio do Gigantinho. O silêncio, seguido de palmas e de um abraço do protagonista da noite, o presidente Hugo Chávez, foi interrompido apenas pelo som do violão, embalando as bandeiras dos países latino-americanos e de movimentos sociais da região que tremulavam abaixo do palco. Entre os símbolos, estrelas com palavras de ordem grafadas. Democracia. Participação. Organização. Unidade. Integração. Socialismo. Como que apontando um caminho que se abria para a construção de um mundo mais justo. A mística de abertura do discurso de Chávez conquistou aplausos e sensibilizou uma platéia dividida. De um lado, minoritariamente, sempre estiveram grupos que também vaiaram o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Luiz Marinho, e o governador paranaense, Roberto Requião (PMDB), presentes ao encontro. De outro, em maioria, grupos que depois foram contemplados com as palavras de Chávez: “Alguns de vocês podem não gostar do que vou dizer e podem até surgir alguns ruídos estranhos no ginásio, mas vou ser direto: gosto muito do Lula, é um grande amigo e um companheiro que carrego no peito. Juntos, com Kirchner e Tabaré Vázquez, vamos realizar o sonho de Bolívar”.
LIDERANÇA Na avaliação de intelectuais e militantes presentes ao Gigantinho, o apoio de Chávez a Lula no seu discurso reforçou o papel do presidente venezuelano no processo de integração da América Latina. Para eles, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria seguir os passos de Chávez. Para Hebe Bonafigni, presidente da associação Madres de la Plaza de Mayo, se “nós lati-
Fórum Mundial nas Américas O Conselho Hemisférico das Américas anunciou que a Venezuela será a sede do Fórum Social Mundial nas Américas em 2006. A próxima edição do FSM será descentralizada e terá eventos em mais de um continente. Em 2007, o Fórum Social Mundial voltará a ser realizado em um só lugar, um país da África ainda não definido.
no-americanos não nos unirmos, o imperialismo vai nos derrotar”. Apesar de decepcionada com o presidente brasileiro, Hebe acredita que o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, vai se aliar a Chávez na luta por uma América unida. Já Rafael Alegria, da Via Campesina, acha que o Brasil também pode fazer esforços para concretizar a reforma agrária, e diz confiar “no MST e na Via Campesina para convencer o presidente da sua necessidade”.
INTEGRAÇÃO Na opinião do sociólogo belga François Houtart, Chávez tem um projeto social integral, “além de resgatar toda a tradição de Bolívar”. De acordo com ele, “essa combinação parece excelente” para a integração da América Latina “do ponto de vista econômico, político e social”. Ele acredita que a experiência venezuelana é um “recado prático” para o presidente brasileiro. “As transformações sociais são possíveis. Não é necessário passar por uma fase neoliberal para construir a economia e, depois, repartir os lucros”, afirmou Houtart. A seu ver, o processo é único e é só transformando as estruturas econômicas e políticas “que se pode, pouco a pouco, lutar contra a fome e a contra a pobreza”. (TM e JPF)
uma “nova etapa da revolução agrária venezuelana”. Chávez informou que espera desapropriar, neste ano, cerca de 3 milhões de hectares de terras de latifúndios. Apenas na semana passada, o governo venezuelano expropriou cinco mil hectares de terras férteis no centro do país. Em seu discurso, ele relembrou a importância da integração da América Latina, “a única arma contra a ameaça imperialista, que
assentamentos da reforma agrária”, concluiu. Para simbolizar a assinatura do convênio, Chávez plantou uma muda no Bosque Internacional da Solidariedade.
LATIFÚNDIO Afirmando que estava ali na condição de simples “camponês e soldado”, o presidente venezuelano reafirmou seu empenho na guerra contra o latifúndio, anunciando
segue falando em liberdade para seguir atropelando os povos”. O presidente na Venezuela definiu o Fórum como o evento político mais importante do mundo e disse que o momento atual “é de ofensiva, para criar uma agenda social mundial no próximos cinco anos”. Outro aspecto enfatizado por Chávez foram os avanços da educação no seu país. Em 2004, 1,5 milhão de pessoas foram alfabetizadas. “Em breve declararemos a Venezuela como zona livre de analfabetismo”. Durante seu discurso, o presidente foi interrompido por um entusiasmado coro que cantava: “Alerta! Alerta! Alerta que caminha. A espada de Bolívar na América Latina”. Na platéia, agricultores da Venezuela, piqueteiros argentinos do Barrios de Pie, integrantes do MST e da Via Campesina. “Estamos em 175 delegados que representam os 87 países da Via Campesina”, lembrou Stedile. O coordenador do MST afirmou que, assim como na Venezuela, no Brasil também há uma guerra contra o latifúndio, “só que de baixa intensidade, há 500 anos”. Organizadas em cooperativa, as famílias que vivem no assentamento Lagoa do Junco, em Tapes, cultivam arroz orgânico e vivem da pesca de peixe.
Palavras do presidente da Venezuela IMPÉRIO O povo do Iraque vem resistindo à ocupação do império estadunidense, que não é invencível. O império começa a sentir suas debilidades ideológicas e, assim, passa a apelar para a força bruta. O neoliberalismo ficou desnudo, suas debilidades econômicas ficaram evidentes. Um dos exemplos disso é a necessidade de repressão interna, como o ato patriótico.
Francisco Rojas
Tatiana Merlino de Porto Alegre (RS)
Francisco Rojas
Em assentamento do MST, o presidente assina protocolo para intercâmbio e reprodução de sementes nativas
EUA Não sou inimigo dos Estados Unidos, mas vítima de uma campanha perversa. Compartilho dos ideais de Martin Luther King, de Abraham Lincoln. A agressão permanente é de lá para cá. Quando Rice diz que Chávez é negativo para América Latina, preciso responder. A maior força negativa desse mundo são os Estados Unidos. “Precisamos elaborar agenda global, não podemos seguir debatendo por séculos”
INSPIRAÇÃO Ignacio Ramonet disse que sou um novo tipo de revolucionário, mas acrescentou que sou inspirado por velhos tipos e velhas “tipas”, como Jesus Cristo, o maior antiimperialista, Simon Bolívar e sua companheira, o brasileiro José Inácio Abreu de Lima, José Martí, Che Guevara e Fidel Castro.
OFENSIVA Proponho que passemos à ofensiva, como faz o império. Vejamos essa lista que inclui o Irã, Cuba, Venezuela. Para eles, para a “Condolência” Rice, Chávez é uma força negativa para a região. A maior defesa é o ataque. Precisamos elaborar uma agenda global, não podemos seguir debatendo por séculos. Não se detém o tempo. É necessário ação e pensamento. Claro, ainda não vamos tomar Washington, tudo tem o seu tempo, não se assuste, sr. Bush.
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL O Fórum é o evento político mais importante do mundo. Temse convertido em uma sólida plataforma de debate, discussão. O lugar onde parte dos excluídos vai para expressar sua voz de protesto, seus poemas, canções e esperanças.
MEIO AMBIENTE É necessário crermos e lutarmos por um outro mundo. A terra não resistirá ao neoliberalismo. Os responsáveis por isso tapam os ouvidos.
MÍDIA Publicam fotos minhas com Hussein, com o líder do Irã, mas não com o Papa, tampouco com Clinton, com ambos também já estive. Há uma ditadura midiática no mundo. Temos colocado esse tema na mesa, mas os governantes o consideram um tema tabu. Tem de haver lei para todos. É preciso uma Lei de Responsabilidade Social para o rádio e a televisão.
HAITI O presidente haitiano é Jean Aristide, mas o seqüestraram. Constitucionalmente, continua presidente. A solução para o Haiti não está na ONU, mas sim no povo haitiano. Podiam eleger uma Assembléia Constituinte.
REVOLUÇÃO BOLIVARIANA O que a Venezuela está fazendo deve ser monitorado, vigiado. É um experimento aberto.
CAPITALISMO É necessário transcender o capi-
talismo. Dentro desse marco, é impossível resolvermos os problemas da humanidade, como a miséria. Tampouco se trata de construirmos um socialismo de Estado, como a União Soviética. Precisamos de um novo socialismo, não com o Estado à frente, mas com o homem.
PAPEL DOS MILITARES Isso já foi definido por Símon Bolívar, em sua última mensagem: os militares devem empunhar sua espada para defender as garantias sociais. O último que deve fazer é se prestar aos setores dominantes ou imperialistas para se voltar contra seu povo. Os militares têm papel de libertadores e devem estar subordinados ao povo e ao poder político.
LULA Na Venezuela, em especial nos primeiros dois anos de governo, as pessoas cobravam mudanças, queriam mais rápido, mais radical. Considero que não era o momento, porque há fases nos processos, há ritmos que não têm a ver só com a situação interna do país, mas com a situação internacional. Gosto de Lula, o aprecio. É um bom homem, de grande coração, lhe dou meu afeto, meu abraço. (TM e JPF)
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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Trabalho de base contra o livre comércio O
rganizações sociais de todo o mundo definiram, em Porto Alegre, um novo calendário de ações para combater os acordos de livre comércio. Mais de 600 pessoas participaram de duas assembléias sobre o tema, dias 28 e 29 de janeiro, quando discutiram meios e métodos de ampliar a resistência ao neoliberalismo, a dívida externa e a militarização. Os movimentos definiram que a principal mobilização do primeiro semestre de 2005 será a Semana de Ação Global dos Povos, de 10 a 17 de abril. Trata-se de uma atividade mundial, descentralizada, que ocorrerá em todos os continentes. A proposta surgiu em novembro de 2003, durante o Encontro Internacional das Campanhas de Livre Comércio, em Nova Delhi, Índia. Depois, houve um amplo processo de discussão entre as diversas redes de movimentos sociais e a idéia foi apresentada para centenas de pessoas em janeiro de 2004, no 4º Fórum Social Mundial, em Mumbai, Índia. Em Porto Alegre, na Assembléia contra o Livre Comércio, as organizações deram os últimos contornos da mobilização que poderá entrar para a história como o maior processo simultâneo de atividades frente ao livre-comércio.
FEIRA SOCIAL No Brasil, a semana terá como foco a resistência à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e aos tratados de livre-comércio.
Semana de Ação Global Entre os Povos, em abril, será uma das principais ações de 2005
Mas, em vez das tradicionais marchas e passeatas, a idéia é buscar outros métodos para realizar um trabalho de formação política diferenciado com o povo. “Em cada país, a semana terá sua especificidade. No Brasil, queremos fazer algo como uma feira contra o livre-comércio, algo dinâmico”,
Campanha reafirma prioridades A assembléia da Campanha Continental contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) reafirmou, dia 28 de janeiro, sua estratégia para combater o tratado proposto pelos Estados Unidos. Para as centenas de pessoas presentes, ativistas de diversos países – entre eles Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Cuba, Haiti e México – fizeram um balanço das ações em seus países. Uma das conclusões da assembléia é de que as negociações da Alca, hoje, estão paralisadas, sobretudo pela resistência dos países sul-americanos e caribenhos – o que confere uma vitória conjuntural para a Campanha contra a Alca. No entanto, como os relatos deixaram claro, os Estados Unidos estão colocando em prática outras estratégias para atingir seu objetivo de ampliar os tratados de livrecomércio pela região. Hoje, as duas principais frentes de ação são: o Tratado de Livre Comércio da América Central (Cafta, na sigla em inglês), com Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua, e o acordo com os países andinos (TLC Andino), com Colômbia, Equador e Peru (a Bolívia participa como observadora).
CAFTA Para combater o livre-comércio, hoje, no hemisfério, é necessária uma “estratégia múltipla”, analisa Alejandro Villamar, economista da Rede Mexicana de Ação frente ao Livre Comércio (Remalc) e da Campanha contra a Alca. Segundo ele, o apoio aos centro-americanos é crucial, neste momento. “Precisamos também acirrar, dentro dos Estados Unidos, as contradições internas que podem nos ser favoráveis, como a pressão que o setor açucareiro está fazendo contra o Cafta”, explica. Os ativistas correm contra o
tempo. O acordo já foi assinado pelos presidentes dos países centro-americanos e, agora, tramita no Congresso estadunidense. Para entrar em vigor, precisa passar também pelo poder legislativo de seus países. Em 2004, o governo de George W. Bush retardou a discussão com os deputados estadunidenses por ser um ano eleitoral. A expectativa, agora, é que a negociação retorne com mais força.
AMÉRICA DO SUL Conforme relatos da assembléia, no Sul do continente duas estratégias se opõem. De um lado, os Estados Unidos avançam, com o apoio da Colômbia, com suas bases militares e propondo um tratado de livre comércio com os andinos. Os governos de Equador e Peru, no entanto, têm dificuldades para levar adiante a assinatura de um acordo com os estadunidenses. Ambos os governos – de Lucio Gutierrez e de Alejandro Toledo – estão desprestigiados, com elevados índices de impopularidade, e despertam desconfiança até em parte das elites locais. De outra parte, avança a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, impulsionada pelo Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul). Potencialmente, essa integração pode simbolizar uma resistência frente à proposta encampada pelos Estados Unidos. “Hoje, no entanto, trata-se muito mais de uma fachada retórica que corre o risco de manter, internamente, as políticas neoliberais”, critica Villamar. Os movimentos sociais pretendem se envolver no debate dessa integração para fazer a disputa de projetos políticos alternativos. “A idéia é fortalecê-la e lutar para mudar seus conteúdos. Queremos reforçar as demandas populares dos países da América Latina”, conclui. (JPF)
explica Gonzalo Berrón, secretário da Aliança Social Continental e da Campanha Continental contra a Alca – articulações de movimentos sociais e ONGs. A segunda grande atividade de 2005 ocorrerá em dezembro de 2005, quando ocorre, na cidade de Hong Kong (China), o encontro da
Organização Mundial do Comércio (OMC). Segundo os movimentos sociais, o cenário preocupa. Nas negociações de julho de 2004, na cidade de Genebra (Suíça), ministros da Austrália, Brasil, Estados Unidos, Índia e União Européia reviveram as negociações da OMC e estabeleceram um novo cronogra-
ma de negociações, para retomarem as propostas de liberalização comercial. Desde a reunião ministerial de Cancún (México), em setembro de 2003, as negociações da OMC não avançam. De um lado, por causa da crescente pressão popular que ressoa nas discussões; por outro, em função da resistência dos países mais ricos de cortarem seus subsídios à exportação agrícola e reduzirem as barreiras comerciais. Ocorre que a União Européia e os Estados Unidos aceitaram discutir esse assunto, desde que Brasil, Índia e Austrália fizessem concessões sobre os temas mais amplos – investimentos, concorrência e compras governamentais, serviços e propriedade intelectual. A prova de fogo dessa estratégia será colocada a teste em Hong Kong. Também será um divisor de águas para o G-20 (articulação de países liderada por Brasil e Índia) que, em Cancún, teve papel destacado no fracasso da reunião ministerial da OMC, mas depois, em Genebra, viabilizou sua retomada. “Avaliamos a atuação do G-20 como positiva em Cancún, pois conseguiu barrar as negociações de um acordo negativo. Mas o que acertou em julho não é positivo. Daqui pra frente, o que vai ocorrer depende de nossa ação junto aos governos”, avaliou Fátima Mello, da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), em um seminário do Fórum Social Mundial. (Colaborou Cristina Charão. Mais informações nos sites: www.abril2005.org/ w w w. j u b i l e u b r a s i l . o r g . b r / www.asc-hsa.org)
Calendário de ações Campanha contra a Alca, Dívida e Militarização 2005 10 a 17 de abril: Semana mundial contra o livre-comércio e as transnacionais 26 a 30 de abril (Havana, Cuba): 4º Encontro Hemisférico contra a Alca Outubro (Brasil): 2ª jornada de mobilização a propósito da conferência ministerial da Alca. Mobilizações em cada país 12 de outubro: Grito Latino-americano dos Excluídos 17 de outubro: Marcha Mundial das Mulheres Novembro: Cúpula Continental dos Povos (Argentina) 2006 Fevereiro (Caracas, Venezuela): Fórum Social das Américas
Nafta continua a ensinar Os depoimentos dos mexicanos e canadenses contra o livre-comércio, feitos nas assembléias do Fórum Social Mundial, reforçaram a tese de que a experiência do Tratado Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês), mais do que um exemplo negativo, é um alerta para os povos do hemisfério. De acordo com os movimentos sociais, economistas e redes de organizações não-governamentais (ONGs), uma vez assinado um acordo de livre-comércio, mesmo com algumas restrições, a tendência para o futuro é a sua ampliação. Hoje, por exemplo, os mexicanos e canadenses identificam novas áreas de interesse das transnacionais estadunidenses no escopo do Nafta. “Aprendemos que, quando se assina um acordo, não há volta. A agenda dos Estados Unidos, agora, é aprofundar o Nafta”, analisa Rick Arnold, ativista canadense, citando acordos recentes para a construção de dutos e portos.
NOVA OFENSIVA Segundo ele, o Nafta discute temas como a integração energética, cujo objetivo principal é a apropriação das fontes de energia não-renováveis do Canadá (o gás) e do México (o petróleo). Alejandro Villamar, economista da Rede Mexicana de Ação frente ao Livre Comércio (Remalc), acrescenta:
Robson Oliveira
Jorge Pereira Filho de Porto Alegre (RS)
Robson Oliveira
Movimentos sociais e campanhas previstas para 2005 enfatizam prioridade às ações de educação popular
Canadenses e mexicanos fortalecem resistência à ampliação do Nafta
“Há, ainda, outros eixos como a integração da política de segurança regional e a financeira.” Para deter o fluxo de migrantes, os Estados Unidos assinaram recentemente dois acordos fronteiriços com o Canadá e o México, passando a receber informações sobre cidadãos daqueles países. Em relação à integração financeira, os Estados Unidos querem, agora, aprofundar a liberalização do mer-
cado financeiro. Ocorre que, hoje, 90% dos ativos bancários do México estão sob controle de estrangeiros. “Agora os Estados Unidos estão interessados, sobretudo, no mercado secundário (que negocia títulos entre os credores) e nos fundos de pensão”, resume Villamar. Para governos que acreditam na hipótese de um acordo light com os Estados Unidos, a história do Nafta continua atual. (JPF)
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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Propostas para um outro mundo possível
Brasil de Fato – Encerra-se o 5º Fórum Social Mundial, o quarto em Porto Alegre. Qual é o balanço do evento, considerando os que o precederam? Ignacio Ramonet – É um pouco cedo para estabelecer qualquer tipo de balanço, pois o Fórum acaba tendo repercussão a longo prazo. É certo, entretanto, que se evolui no sentido de criar articulações e campanhas orientadas para ações e propostas mais diretas. Fazendo o balanço dos cinco Fóruns, pode-se dizer que um novo ator surgiu no campo internacional. Um ator tão importante que algumas pessoas o chamam da segunda hiperpotência. Há os Estados Unidos, que são uma hiperpotência militar, e a segunda seria então a portadora de uma visão social, constituída pela humanidade que se reúne no Fórum Social Mundial. No início, este ator foi alvo de muita curiosidade – e ainda é. Há, por exemplo, 6 mil jornalistas inscritos para cobrir a quinta edição do evento, dos quais 3 mil são ligados a meios da grande imprensa.
O altermundialismo, a doutrina do outro mundo possível, precisa ter uma lista de propostas para o planeta BF – Quais foram os principais impactos do encontro desde 2001, quando de sua primeira edição? Ramonet – Muitas idéias que nasceram em Porto Alegre cresceram e tomaram importância no cenário político. No dia 26 de janeiro, o presidente francês, Jacques Chirac, fez uma declaração no Fórum Econômico Mundial,
Uma Carta Social Mundial reuniria pontos comuns, como a anulação da dívida externa e a criação de uma taxa internacional sobre as grandes transações
em Davos, Suíça, defendendo a criação de uma taxa internacional para erradicar a fome, que é uma idéia do Fórum Social Mundial. O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, também a defendeu na Organização das Nações Unidas (ONU). Parece haver um acordo entre diversos governos de que a taxa precisa realmente ser criada. Por conta disso, e outros
Quem é
em toda a sua diversidade, precisa continuar acreditando que o mundo como está não pode durar. O mundo é tão injusto e tão ilegal, há tantas pessoas na miséria, que não se pode duvidar, em momento algum, que o mundo como está não tem que acabar. É também preciso ter em mente que ele não vai mudar sozinho. Todos têm que ajudar na mudança. Já há indícios
Diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet é da coordenação internacional do Fórum Social Mundial. Formado em história na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, França, ele é especialista em geopolítica, assunto sobre o qual presta consultoria à Organização das Nações Unidas (ONU). É autor de dezenas de livros, alguns dos quais estão traduzidos para o português, como Geopolítica do Caos (1998) e A Tirania da Comunicação (1999), publicados pela Editora Vozes. elementos, o balanço dos encontros é muito positivo. O que se pode questionar é a continuidade desses Fóruns. Quando surgiu, o evento estava envolto em grande entusiasmo, representando muita esperança. Hoje, o entusiasmo continua? A esperança continua? Há vários observadores do Fórum que acreditam que este está menos inovador. Mais repetitivo. Obviamente, há o fato de que o evento não faz mais uma irrupção na paisagem política, e isto faz com que haja menos surpresas, menos novidades. Algumas pessoas chegam a se perguntar se o Fórum não se transformou em uma grande feira ou festival, que não incomodaria ninguém. Como se fosse puro entretenimento. Esta é uma leitura excessivamente pessimista. O que se pode dizer é que, em um contexto internacional mais grave, marcado não só pela globalização como pela guerra, já que estamos em tempos de guerra no momento, o Fórum parece algo pouco eficaz, como se mantivesse uma prática de um período anterior à situação de guerra, que massacrou pessoas no Afeganistão, Iraque e pode agora atingir o Irã. BF – A hiperpotência estadunidense está na ofensiva, já que se trata de um período de guerras. Qual é a estratégia das pessoas que resistem contra o império, e que se reúnem no Fórum? Ramonet – O altermundialismo,
que mostram que as coisas estão mudando. O altermundialismo, a doutrina do outro mundo possível, precisa ter uma lista de propostas para o planeta. BF – Integrantes de movimentos sociais, antes de participar do Fórum, defendiam um evento mais propositivo. Isto ocorreu? O que foi decidido? Ramonet – A idéia era construir um conjunto de propostas de ação que seria acatado por todos os participantes e organizações do Fórum. Seria preciso fazer um manifesto, com 5 ou 10 objetivos que se deve atingir, custe o que custar. Independentemente das estratégias mais locais, é preciso criar uma plataforma comum, como um evangelho do Fórum Social Mundial, como uma carta sagrada do evento, à qual o conjunto das organizações aderiria. Até o momento, isto não existe. O termo altermundialismo não define concretamente uma proposta, fica muito vago. Deve-se agregar os movimentos com base em uma lista de objetivos mais definidos. BF – Quais seriam os objetivos comuns que estariam na Carta Social Mundial? Ramonet – Os movimentos sociais e as entidades certamente estariam de acordo para colocar pontos como a anulação das dívidas externas de todos os países, a criação de uma taxa internacional sobre as grandes transações fi-
nanceiras para financiar políticas sociais, o fim da privatização dos recursos naturais... É preciso lembrar que morrem, todos os dias, 30 mil crianças por conta do consumo de água contaminada. Haveria também união dos movimentos para criar uma série de dispositivos para impedir guerras. Isto não se daria só pelo princípio, mas por algo mais concreto: impedir a construção de bases militares, principalmente dos Estados Unidos, em países estrangeiros. É preciso interromper as privatizações do setor público. A carta, acho, não seria difícil de elaborar, pois há muitas lutas comuns, tendo em vista que os grandes temas da globalização mobilizam muita resistência.
comunicação, de acordo com um termo que o senhor criou, destacando a elaboração de mecanismos que impõem uma forma de pensamento único. Nesta frente de batalha, como se deve lutar?
BF – Os objetivos seriam então fáceis de estabelecer, mas como construir um plano de ação mundial para os participantes do Fórum? Ramonet – O plano de ação consiste na realização de operações e mobilizações em escala mundial, como as que ocorreram na véspera da guerra do Iraque, em fevereiro de 2003, quando 20 milhões de pessoas saíram às ruas de diversos países para protestar contra a ofensiva estadunidense. Acho que, hoje, temos condições
Ramonet – Em relação a isso, acho que os movimentos já fazem muito, pois estão mobilizados. Os grupos alternativos de contrainformação fazem um trabalho muito bom. No Fórum de 2005, há 3 mil comunicadores alternativos, ligados a rádios comunitárias, redes alternativas, jornais de contra-informação, de páginas na internet com conteúdo diferente. Tudo está indicando que outro tipo de comunicação é possível, que responda mais às necessidades da população do que aos
Hoje, temos condições de lançar planos de ação planetários sobre a questão da anulação das dívidas, mobilizando e conscientizando pessoas
Robson Oliveira
A
s pessoas e os movimentos sociais que se identificam com o altermundialismo e vão a Fóruns Sociais Mundiais deveriam elaborar uma Carta Social Mundial. No documento, deveriam ser listados os pontos essenciais e comuns dos participantes dos encontros contra a globalização, como a anulação da dívida externa, a retirada de tropas militares que ocupam países e a interrupção da privatização de serviços públicos e recursos naturais. A avaliação é do jornalista Ignacio Ramonet que, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, fez um balanço do 5° Fórum Social Mundial, que se encerrou no dia 31 de janeiro, em Porto Alegre (RS). Nessa última edição do evento, a Carta não foi produzida, apesar de a criação de um documento que unifique os objetivos dos participantes do Fórum ter sido apoiada por integrantes de diversas entidades. Para Ramonet, a falta de uma pauta de propostas para o encontro leva ao surgimento de críticas em relação ao formato do evento. “Algumas pessoas chegam a se perguntar se o Fórum não se transformou em uma grande feira ou festival, que não incomodaria ninguém. Como se fosse puro entretenimento”, afirmou. O jornalista diz que os participantes do Fórum têm uma grande responsabilidade, pois representam toda a humanidade, e conquistaram, desde a primeira edição do evento, em 2001, muita influência no cenário político internacional. Segundo ele, o altermundialismo se transformou em uma hiperpotência, fundamentada em uma visão social do mundo, que se confronta com a hiperpotência militar estadunidense.
João Peschanski
João Alexandre Peschanski de Porto Alegre (RS)
Leonardo Melgarejo
Para o jornalista Ignacio Ramonet, é preciso estabelecer objetivos comuns e definir um plano de ação planetário
Israelenses e palestinos durante marcha de abertura do 5º Fórum
de lançar planos de ação planetários sobre a questão da anulação das dívidas, mobilizando e conscientizando pessoas. Isto serviria para lembrar constantemente aos governos que construir um mundo mais justo não é tão complicado. Deixaria claro para eles que há meios claros, e que conhecemos, para construir um mundo melhor. E quem aceitar o mundo como está é preciso ser visto como cúmplice de crimes contra a humanidade, crimes econômicos contra a humanidade. BF – No campo das mídias, a humanidade é vítima da tirania da
interesses das grandes empresas. Neste caso, poderia pensar-se em um meio de coletar toda essa informação que é produzida e disseminá-la de modo mais efetivo. Quando cada um trabalha por si, somos muitos fracos, é preciso que todos trabalhemos em conjunto. Não se pode esquecer que o Fórum Social Mundial representa toda a humanidade, seis bilhões de pessoas, enquanto o outro lado representa algumas centenas de pessoas, evidentemente com muitos recursos. Nós temos a massa da humanidade de nosso lado e uma responsabilidade destas precisa ser levada a sério.
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INTERNACIONAL
ÁFRICA
Mali e Quênia, de olho em 2007 M
ali e Quênia são, até agora, os únicos países africanos que se disponibilizaram, ainda que não oficialmente, a acolher o próximo Fórum Social Mundial, que ocorrerá no continente em 2007. Dia 28 de janeiro, durante reunião de representantes de mais de 50 países (mais de 300 estiveram em Porto Alegre), foram apresentados os principais temas que dizem respeito às alternativas que a África está buscando frente à globalização. “O movimento social africano trouxe as suas preocupações e falou da luta desenvolvida na busca de alternativas para libertar o continente”, disse Bakari Fofana, de Guiné Conacri. Os temas que os africanos consideram prioritários são o pagamento da dívida externa, os conflitos internos, a exploração dos recursos naturais, a agricultura, a economia social e o relacionamento com as instituições financeiras internacionais, com experiências reais vividas em todo o continente.
Líderes africanos condenam o “terrorismo econômico” e consideram prioridade o não pagamento da dívida externa
crítico e incentivando a resistência, ela denunciou a submissão do continente negro por causa do peso da sua dívida. Chamou a forma como essas instituições se relacionam com a África de “terrorismo econômico”. Já Thomas Dave Mwengo preferiu centrar seu discurso na cumplicidade dos líderes africanos, que acatam as regras definidas por essas instituições e ignoram o lado social. Ele apresentou um programa lançado em Lusaka, durante a edição anterior
RESISTÊNCIA MUNDIAL A tônica para os debates foi dada por Virgínia Setshet, da África do Sul, que falou do relacionamento do continente com as instituições financeiras internacionais. Em tom
do Fórum Social Africano, realizado em Lusaka (Zâmbia). A resistência defendida por Virgínia e a alternativa apresentada por Dave Mwengo são importantes, mas o angolano João Baptista, da Liga Jubileu Angola, preferiu ressaltar a relevância do espaço e a presença de organizações e movimentos sociais de todo o mundo no FSM. “Estamos partilhando as mesmas preocupações, difundindo as mesmas mensagens e falando de mecanismos que temos de utilizar
para atingir os objetivos que queremos, que é a construção de um novo mundo.”.
MOVIMENTO JUVENIL “O Fórum Social Mundial na África é uma oportunidade ímpar para que os africanos se articulem”, diz Moussa Tchangari, da organização Alternativa Espaço Cidadania. “As organizações africanas terão de fazer um trabalho de base e mobilizar a população por meio de seminários, fóruns e outras atividades e,
Equipe do Chama da África durante edição do jornal
ses e, durante o FSM, participaram de uma experiência de informações compartilhadas com a Ciranda Internacional de Informação Independente, o Fórum de Rádios e o Fórum de TVs. O diário, que circula apenas durante os fóruns sociais (africanos e mundiais), é fruto da parceria entre as
organizações africanas Enda Tiersmonde, Instituto Panos da África do Oeste e Mulheres pela Mudança. Ao mesmo tempo em que acompanha os participantes africanos, Chama da África quer ser porta-voz dos movimentos sociais africanos, garantindo maior difusão de suas idéias e agendas de mobilizações.
Dívida externa é desafio Igor Ojeda de Porto Alegre (RS) Cancelamento da dívida externa, desafio à macroeconomia e política monetária internacional e reparação à população africana. Essas foram as principais mensagens do 3º Fórum Social Africano, realizado em dezembro em Lusaka, capital da Zâmbia, na opinião do senegalês Demba Moussa Dembele, do Jubileu Sul África. O painel “Uma Outra África É Possível – Resistências e Alternativas”, realizado no espaço F do Fórum Social Mundial, trouxe as principais reivindicações e lutas dos povos daquele continente. Para Dembele, a única solução para a grave situação da África é a anulação total e incondicional de sua dívida externa, a qual qualificou de odiosa. “Consideramos a dívida totalmente ilegítima e imoral, além de estar sendo paga há muito tempo”, afirmou. Além disso, exigiu também uma reparação da Europa “a todo mal feito ao povo da África”. Dembele defendeu a união de todos os líderes africanos para pres-
Crianças registram realidade de seus países Divulgação
Pela primeira vez, os participantes do Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre, puderam acompanhar de perto os temas mais relevantes em relação à África por meio de um jornal feito especialmente para o evento: o Chama da África. Com tiragem de 4 mil exemplares e distribuição gratuita, o jornal tem reportagens e notícias em inglês, francês e português. “Ele surgiu no Fórum Social Mundial de Mumbai, para dar mais visibilidade à participação africana nesses encontros e partilhar as idéias, valores e expectativas dos africanos”, diz a jornalista caboverdiana Constânça de Pina, que integra o grupo formado por nove jornalistas de seis nacionalidades (Cabo Verde, Senegal, Benin, Níger, Zâmbia e África do Sul). Eles também trabalham para diferentes meios de comunicação de seus paí-
Juliana Bruce/Ciranda
Jornalistas lançam Chama da África Paulo Pereira Lima de Porto Alegre (RS)
a partir, dessas iniciativas, traçar a dinâmica do próximo Fórum Social Mundial”, diz Tchangari. Para ele, o desafio de realizar o fórum no continente é, sobretudo, mostrar aos ativistas de outros continentes que “uma África viva está se mexendo para resolver seus problemas”. Boa vontade que, porém, esbarrou na presença pequena de representantes africanos em Porto Alegre. “O número de africanos presentes traduz o nível de conscientização e de desenvolvimento dos movimentos sociais africanos e mostram que um trabalho de fundo precisa ser feito. Ainda estamos na etapa da resistêcia fragmentada. É preciso, agora, unir forças para 2007”, afirmou Tchangari. O que pode ajudar na mobilização da sociedade africana em vista da realização do Fórum de 2007 é o crescimento do movimento juvenil nos diversos países. Os temas ligados à juventude começaram a ser debatidos no Fórum Social Africano em Bamako (2002), foram retomados um ano depois, em Addis Abeba, e se consolidaram em Lusaka. Atualmente, segundo Ouatara Dakalia, da Costa do Marfim, a discussão hoje é com organizações juvenis brasileiras sobre como podem expandir seu campo de ação e penetrar em todo o continente africano. (Constânça de Pina é jornalista de Cabo Verde)
sionar de uma maneira mais forte o cancelamento da dívida externa. O sul-africano George Dor, diretor-geral do Jubileu Sul, concordou. Para ele, “não somos nós que devemos aos países do Norte, ao Banco Mundial e ao FMI. São eles que devem à África”. E concluiu: “Ainda sofremos os efeitos do colonialismo e do neocolonialismo”.
TERRORISMO ECONÔMICO A ativista sul-africana Virginia Setshet seguiu na mesma linha. Segundo ela, só há um caminho para mudar a realidade do continente: cancelamento da dívida, com todo o dinheiro “excedente” sendo usado na reconstrução da África; boicote às corporações e corte de qualquer relação com as intituições financeiras internacionais. Para ela, são essas últimas as principais responsáveis pela situação da África. “Elas permitem às corporações obterem mais lucro, explorarem e extrairem mais e mais do território africano”. Além disso, elas oprimem o continente com a dívida externa, que para Virginia é um instrumento de dominação. “En-
quanto no Iraque ocorre o terrorismo militar, na África enfrentamos o terrrismo econômico”. Thomas Dave Mwengo, jornalista do Zimbábue, defendeu uma forte campanha contra os APE’s, acordos de parceria econômica entre Europa e os países da África, do Caribe e do Pacífico. De acordo com ele, os europeus não desejam acordos comerciais, e sim uma grande área de livre comércio. E os dirigentes africanos estão caindo nessa: “Eles nos falam que o livre comércio vai nos salvar. Nós dizemos que a África não está à venda” Ibrahima Coulibaly, porta-voz da Associação das Organizações Profissionais de Camponeses, pediu atenção total à população rural africana já que, diferentemente do que ocorre em muitos países do mundo, é grande a maioria de camponeses no continente. Para ele, que nasceu em Mali, o livre comércio tirará das mãos dos camponeses o único instrumento que possuem para subsistir. “A agricultura deve ser administrada por outro sistema que não o da Organização Mundial do Comércio”, concluiu.
Brasil-África - Olhares Cruzados estreita os laços de solidariedade
Carina Vitral Costa e Mônica Mourão de Porto Alegre (RS) O livro Brasil-África – Olhares Cruzados, com fotos produzidas por crianças das cidades africanas de Cabinda e Maputo, junto com crianças brasileiras do Rio de Janeiro e Porto Alegre, foi lançado, dia 27 de janeiro, no Fórum Social Mundial. O projeto foi desenvolvido por Dirce Carrion e os fotógrafos Ricardo Teles e Mauro Pinto, por meio de um intercâmbio de 150 jovens com idade de oito a 14 anos. O trabalho começou na província angolana de Cabinda. Depois de terem noções básicas de fotografia, as crianças receberam máquinas fotográficas para registrar cenas de seu cotidiano, ao mesmo tempo em que eram estimuladas a escrever cartas aos amigos do outro lado do Atlântico. Simultaneamente, o mesmo trabalho foi desenvolvido com jovens da favela da Chacrinha, no complexo do Turano, no Rio de Janeiro. Uma outra dobradinha envolveu jovens de Maputo, em Moçambique, e Porto Alegre. “Atravessar o Oceano Atlântico foi como atravessar uma rua. Com as fotos produzidas por crianças das cidades africanas de Cabinda
Divulgação
Constânça de Pina de Porto Alegre (RS)
Fernando Morán/ADN Fotos
Começa a articulação para o Fórum previsto para a África. Dívida externa e lutas continentais ganham destaque
e Maputo e das brasileiras Rio de Janeiro e Porto Alegre, pode-se perceber que são grandes as semelhanças entre os dois continentes”, analisa Dirce. O mesmo trabalho pode ser levado para utros países africanos de língua portuguesa, estabelecendo paralelo com crianças brasileiras e as de Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé. Segundo Dirce, deve ser implentada uma parceria com os Jornalistas Amigos da Criança, que publicariam as cartas africanas em seus veículos de comunicação. “Seria importante para essas crianças africanas, que estão numa situação difícil, saber que existe alguém, que existe um amigo, uma comunidade que está se mobilizando a seu favor do outro lado do oceano”, diz. (Com Agência Virajovem de Notícias www.revistaviracao.com.br/forum)
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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Uma só voz no combate à opressão Em defesa dos excluídos dalits, o Fórum da Dignidade soma esforços para construir solidariedade internacional
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ais de 160 milhões de pessoas são discriminadas pelo sistema de castas vigente na Índia. Os dalits, chamados de intocáveis, considerados quase sub-humanos, são submetidos a trabalhos degradantes e têm seus direitos sistematicamente violados. Eles representam um quarto de toda a população indiana, e na Ásia totalizam cerca de 250 milhões de seres humanos. Para dar visibilidade à exclusão e às demandas dos intocáveis, foi criado o Fórum Mundial da Dignidade (FMD), cuja primeira edição foi em 2004, durante o 4º Fórum Social Mundial, na Índia, quando reuniu cerca de 8 mil pessoas. Em 2005, o 2º FMD agregou à luta dos dalits organizações brasileiras no combate a todo tipo de agressão à dignidade, como preconceito de raça, gênero e discriminação religiosa. “A dignidade é uma preocupação global. Nós viemos para o Brasil com o objetivo de construir uma parceria com movimentos latino-americanos e de outras partes do mundo. Assim, criamos uma unidade em torno da questão da dignidade para toda a humanidade”, afirmou o escritor e jornalista indiano Mukul Sharma, um dos idealizadores do evento.
eram intocáveis, mas as autoridades diminuíram o contingente para 10%.
Robson Oliveira
Tatiana Merlino de Porto Alegre (RS)
DESRESPEITO Assim como os dalits, os atingidos por barragens também têm sua dignidade ameaçada. Josivaldo Oliveira, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), lembrou que “mais de um milhão de pessoas perderam tudo, suas casas, terras e trabalho em decorrência da construção de usinas hidrelétricas no país”. Oliveira afirmou que o plano do governo federal de construir 494 usinas hidrelétricas até 2015 é uma grande ameaça ao meio ambiente e às comunidades. “Os impactos sociais e culturais serão enormes”, disse. O coordenador do MAB ressaltou a importância de resistir “para que não sigam destruindo os nossos rios e florestas”.
REACIONÁRIOS Os dalits, conhecidos como intocáveis, fazem manifestação em Porto Alegre (RS), durante o 5º Fórum Social Mundial
ver”, disse o jornalista indiano. Sharma acredita que a iniciativa está começando a ajudar na integração entre os dalits e pessoas de outras castas na Índia e na Ásia. Em 2005, a mobilização deve crescer, chegando a 30 países. “Estamos construindo solidariedade internacional e chamando a atenção do mundo”, concluiu.
FORTALECIMENTO Segundo ele, depois do lançamento do FMD na Índia, a causa dos que lutam por dignidade no mundo todo se fortaleceu. Exemplo é a criação do Dia Internacional da Luta dos Dalits, ou Dia Mundial da Dignidade. “Em 5 de dezembro de 2004, 19 países comemoraram a data. Houve atividades para apoiar o direito à terra, educação e saúde. Esse é um dos ganhos substanciais que pudemos
PIRÂMIDE O sistema de castas hindu divide as pessoas desde o nascimento, classificando-as como brâmanes, kshatriyas, vaishyas ou sudras. Os dalits são uma subcasta, e ocupam o lugar mais baixo na pirâmide social. São chamados de intocáveis porque, para muitos hindus, quem os toca, ou até mesmo a sua sombra, fica impuro.
A violenta discriminação contra esta massa humana é confirmada pelos números. Nos últimos 20 anos, mais de 10 mil dalits foram assassinados, mais de 10 mil mulheres foram estupradas e milhares de atrocidades foram cometidas em nome do sistema de castas. Menos de 31% dos intocáveis têm eletricidade em casa, aproximadamente 50% da população dalit vive abaixo da linha de pobreza e dois terços são analfabetos. Além disso, 85% não têm acesso à terra.
ORGANIZAÇÃO A intocabilidade, mesmo abolida em 1950, é uma discriminação que continua existindo em relação a esta camada da sociedade, que em suas casas não pode ultrapassar a linha que os separa dos mo-
radores de outras castas, nem usar o mesmo poço d’água. Desde 1998, grupos de dalits se uniram na coalizão Campanha Nacional pelos Direitos Humanos dos Dalits, organização sem vínculos políticos, liderada por ativistas dalits pró-direitos humanos. A coalizão reivindica o direito à habitação, à educação, à terra e ao trabalho, à igualdade de gênero, à vida com segurança e ao emprego. No entanto, o preconceito continua muito grande. No recente desastre dos tsunamis, os pescadores dalits afetados pelo desastre foram privados de alimentos e abrigo, e as autoridades dos Estados indianos não incluíram todos os dalits na lista dos mortos. Pior: cerca de 20% dos mortos na catástrofe
Para o teólogo Leonardo Boff, uma das grandes ameaças à dignidade humana é a herança da escravidão na América Latina. Segundo ele, o fato de o Brasil ter sido o último país da região a abolir a escravatura se reflete diretamente nos 60 milhões de afro-descendentes do país. “Nossas elites, que são das mais reacionárias do mundo, pensam que o negro ainda é um escravo, que deve trabalhar de graça e receber um salário de fome”, afirmou. Blanca Chancoso, da Confederação Nacional Indígena do Equador (Conaie), criticou governantes que não sabem o que é dignidade. “Eles assinam cartas de intenções com o FMI em troca de políticas e leis que favorecem as empresas, mas não garantem dignidade ao povo, como se não fôssemos humanos”, afirmou.
Brasil de Fato – Como é a sociedade de castas na Índia? Qual é a situação dos intocáveis? Rajni Tilak – Ser um intocável significa que você não pode ser tocado, não pode tocar em ninguém e que as pessoas de outras castas devem sempre manter distância de você. A sociedade indiana é dividida em quatro castas, e os dalits estão na base. Nessa divisão social, há os que trabalham com educação, outros com comércio e negócios. Os dalits só servem para fazer os piores serviços, são discriminados, não têm terras, recursos, direito à educação, nem à saúde. BF – Quais são os maiores problemas que enfrentam? Rajni – Sofremos todas as formas de discriminação. Não temos trabalho, nem acesso aos direitos e serviços mais elementares. Nos lugares públicos, somos segregados. Quando vamos a um restaurante, temos que fazer as refeições separados dos outros. Nossos copos, pratos e talheres são diferentes, e depois temos que lavá-los. Se um dalit tem uma loja, ela nunca será freqüentada
Francisco Rojas
“Sofremos discriminações de todas as formas”, afirma a ativista dalit Rajni Tilak, uma das participantes do 2º Fórum Mundial da Dignidade. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela conta que, na escola, as crianças dalits sofrem provocações, são separadas das de outras castas, e maltratadas pelos professores. Além de serem oprimidas pela família, porque vivem num sistema patriarcal, as mulheres também têm muitas oportunidades negadas, conta.
Francisco Rojas
Quando todos os diretos são negados
Quem é Representante do Congresso de Organizações Dalits, Rajni Tilak trabalha no Centre for Alternative Dalit Media, entidade indiana que atua com setores marginalizados da sociedade, em especial as mulheres, e integra o comitê do Fórum Mundial de Dignidade. O 2º Fórum Mundial da Dignidade, em Porto Alegre (RS), agregou organizações brasileiras à luta dos dalits
por alguém de outra casta. Para a sociedade hindu, o que sofremos não é exploração. As pessoas foram criadas para achar que nós merecemos isso, que sermos os intocáveis não é ruim. E acham que todos os recursos e facilidades devem ficar para os superiores. A Constituição assegura aos dalits 25% de ocupação em cargos do governo e vagas para utilização dos serviços públicos. Apesar disso, na hora de exercermos esses direitos, ainda sofremos muito. BF – E como é ser uma mulher dalit?
Rajni – Muito difícil, pois temos todas as oportunidades negadas. Há muitas ativistas dalits, mas na hierarquia elas não podem atingir um cargo tão alto quanto as mulheres de outras castas. Além disso, as dalits são oprimidas pela família, porque vivem num sistema patriarcal. BF – O governo assegura aos dalits seviços como educação e saúde? Rajni – Os dalits são pobres e não têm dinheiro para mandar suas crianças para a escola. Assim, ficam à mercê das instituições gover-
namentais. O problema é que os professores são muito “castistas”, e não se preocupam com as crianças dalits. No ensino fundamental do Estado, 80% das crianças são dalits, mas elas são discriminadas com provocações, separadas das outras, colocadas no fundo da sala, e os professores não as ensinam direito. Eles acham que as crianças não têm direito a ler, nem a ter uma boa vida. BF – Como o Fórum Mundial da Diginidade pode ajudar a melhorar a situação dos intocáveis? Rajni – O Fórum é importante para
mudar a mentalidade da sociedade e do Estado hindus. Ele tem a responsabilidade de transformar a consciência das pessoas, mas como os governantes são todos da mesma casta, querem manter as coisas como estão. O Estado indiano não está respondendo às reivindicações dos intocáveis. Por isso, o Fórum da Dignidade é importante para denunciar as injustiças contra os dalits. Pretendemos mudar não só a mentalidade das pessoas, mas garantir nosso acesso aos recursos básicos como a educação. O que tem que ser modificado é a elite, não os dalits. (TM)
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DEBATE
Cisões e contradições no PT e na esquerda Este grupo, formado por dirigentes sindicais, professores universitários, militantes de diretórios municipais e regionais do partido, integrantes da CUT nacional e regionais, decidiu organizar um encontro nacional até junho.
Rodrigo Valente mportante espaço de convergência da esquerda brasileira nas edições anteriores, o 5º Fórum Social Mundial (FSM) foi marcado pela visível desagregação que o campo popular vem sofrendo desde a vitória de Lula. As discrepantes avaliações do governo vêm dividindo partidos e movimentos sociais que antes se uniam contra o neoliberalismo. Neste processo, o maior protagonista vem sendo o Partido dos Trabalhadores que, pelo menos nos últimos 20 anos, congregou a ampla maioria dos lutadores sociais no Brasil. A avaliação de um considerável número de petistas e ex-petistas é de que o partido já perdeu – ou está perdendo – rapidamente seu projeto histórico de transformação para se tornar instrumento de manutenção do status quo. Atividades encabeçadas por diversas correntes internas do PT mostraram as diferentes posições. Se, por um lado, o campo majoritário – que congrega o presidente Lula e o do PT, José Genoíno – resolveu passar o FSM fazendo publicidade do governo, a esquerda petista não escondia seu pessimismo com a desagregação do partido e criticou duramente os rumos do governo Lula. Em carta assinada por Genoíno, o PT reafirmou os compromissos do partido com as bandeiras do encontro. “O FSM nasceu como esperança e como promessa de milhões de pessoas, espalhadas por todo o planeta, de que é possível construir um mundo
I
Kipper
REAGLUTINAÇÃO
melhor”, diz a carta. Entre os participantes do encontro porém, diminuíram as esperanças no governo e no PT. DISSIDÊNCIA
A esquerda do PT se dividiu em pelo menos três posições. A maioria permanece no partido disposta a continuar lutando por mudanças nos rumos do governo
e do PT. A Articulação de Esquerda e a Democracia Socialista, duas das principais tendências internas, encabeçaram uma carta aos petistas criticando os rumos do governo, o papel submisso que o partido vem cumprindo e chamando a unidade da esquerda como alternativa. Outro grupo de militantes da esquerda petista lançou um mani-
festo se declarando fração pública do PT. Dissidentes das tendências Articulação de Esquerda e Fórum Socialista, além do Movimento de Unidade Socialista, lançaram manifesto intitulado “Não mais em nosso nome! O direito da dissidência”. Os seus mais de 300 signatários continuam no PT, mas sem respeitar a direção partidária e criticando publicamente o governo.
Um terceiro grupo, de mais de 100 militantes, anunciou a desfiliação imediata. A saída coletiva foi articulada pelo economista Plínio de Arruda Sampaio Júnior e pelo sindicalista Jorge Luís Martins, da executiva nacional da Central Única dos Trabalhadores. “Sair do PT vai nos permitir olhar para frente e construir alternativas, mesmo ainda não havendo consenso sobre para onde ir”, disse Sampaio Jr. Durante o Fórum também se realizou o 2º Encontro Nacional do Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL) e foi anunciada a criação de duas entidades de representação de estudantes e trabalhadores encabeçadas pelo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU) e organizações menores. Estas iniciativas são as primeiras cisões de setores da esquerda da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da CUT. Como já prenunciou o FSM, 2005 promete ser um ano de desagregação e, ao mesmo tempo, reaglutinação das forças de esquerda. A movimentação dentro e fora do PT deve se intensificar à medida em que a militância social fica mais cética em relação aos rumos do governo Lula. Rodrigo Valente é jornalista
Emir Sader uem tiver a ilusão de estabelecer uma ponte entre Porto Alegre e Davos, está condenado a cair em um abismo, porque os dois Fóruns são contraditórios e incompatíveis. Davos nasceu para ser o cenário da euforia do neoliberalismo, assentada na hegemonia do capital especulativo, na promoção desenfreadas das marcas das grandes corporações – de que McDonald’s e Microsoft eram os melhores exemplos, no exibicionismo da riqueza e do luxo – como saberíamos depois – obtidos em grande parte por mecanismos fraudulentos por parte de grandes executivos de corporações. Assentava-se no “Consenso de Washington”, que pretendia ditar regras únicas para todas as economias do mundo, emanadas do FMI, do Banco Mundial e da OMC. Pretendia fazer do mundo inteiro um grande mercado, fazer de todas as coisas – os bens, os direitos, as pessoas – simples mercadorias, em que tudo teria preço, tudo se venderia e se compraria. Seria o capitalismo mais pleno em escala mundial. Os Estados seriam reduzidos a meros executivos do grande capital – das grandes corporações, dos bancos e dos organismos econômico financeiros internacionais – e a educação e a saúde convertidas em bens compráveis para os detentores de dinheiro.
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VITRINE VAZIA
O resto seria o resto. Países e continentes inteiros entregues à miséria e ao abandono, porque estão fora do interesse das grandes corporações e dos mercados especulativos. Bilhões de pessoas do Sul do mundo privadas dos direitos elementares à vida, a começar pelos medicamentos básicos para combater a malária, o tifo, a febre amarela, a aids e outras
Ricardo Stuckert/PR
Por que Porto Alegre e Davos são incompatíveis
De Porto Alegre a Davos, na Suíça, Lula participa de sessão com Bill Gates, da Microsoft durante Fórum Econômico
doenças das quais os ricos estão livres ou dispõem dos recursos para combater. Conspurcando o cenário de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, um dos mais agudos críticos da decadência burguesa, Davos foi a estação de esqui da Suíça escolhida para fazer sem pudor o convescote anual dos executivos mais ricos do mundo, antes que vários deles caíssem em desgraça, nos escândalos de corrupção das empresas que dirigiam. Davos morreu com o esgotamento da expansão neoliberal dos anos 90, com os grandes escândalos das corporações, com o clima de guerra instaurado pela fúria imperial estadunidense. Tornou-se uma vitrine vazia. Nenhum mandatário importante do mundo se dá o trabalho de pegar seu aviãozinho presidencial para passar sequer uma tarde por lá. Grandes magnatas decadentes, junto a magos da auto-ajuda – como Paulo Coelho – passeiam como em um cenário de circo que já teve seus dias de glória, mas
que hoje só abriga palhaços sem graça, equilibristas desconfiados, leões sem dentes. GENTE
Desde a primeira vez que se enfrentaram, no debate que foi ao ar, transmitido para todo o mundo pela tevê, no 1º Fórum Social Mundial, Davos perdeu para Porto Alegre. Perdeu, em primeiro lugar, pelo tipo de gente que vem a Porto Alegre e pelo que vai a Davos: ricaços petulantes de gravata e limusine por um lado, que acreditam ser os donos do mundo, e gente com cara de gente por outro, que luta não por seus interesses imediatos, mas por um mundo melhor para todos. Alguns poucos por um lado, representando as minorias que possuem concentradamente as riquezas do mundo, tantos por outro, lutando para a socialização dos bens materiais e culturais do mundo. São incompatíveis, porque Porto Alegre surgiu lutando e luta sempre pela regulamentação do capital financeiro, pela cobrança
de taxas sobre a movimentação desse capital, que reverta para atender às necessidades cidadãs da grande maioria da humanidade, sem acesso aos bens elementares. Porto Alegre nasceu para lutar, e luta sempre pelo fim do pagamento das dívidas – injustas, já pagas, impagáveis – dos países do Sul do mundo, para que deixem de trabalhar e produzir para enriquecer os países credores e suas instituições financeiras. Porto Alegre nasceu para lutar e continuará sempre a lutar pelo respeito ao meio ambiente, por modelos de desenvolvimento auto-sustentáveis, pelo controle e proibição dos transgênicos, pela segurança alimentar, pela reforma agrária. Porto Alegre lutou desde o seu começo, e sempre lutará pela democratização da mídia, sem a qual nunca haverá democracia no mundo. SEM PONTES
Porto Alegre luta sempre para que os programas de governo se orientem por metas sociais e não financeiras, para que o acesso aos
bens materiais e culturais sejam direito de toda a humanidade, e não apropriação de alguns ou objeto de políticas focalizadas e emergenciais, como prega o Banco Mundial e obedecem tantos governos. Porto Alegre luta contra o neoliberalismo, para que outro mundo seja possível, um mundo que não seja comandado pelo dinheiro e transformado em mercadoria. Porto Alegre luta por um mundo sem guerras, em que os conflitos sejam decididos de forma democrática, negociadas, atendendo o direito de todas as partes envolvidas, pacificamente. Pode-se ir a Porto Alegre e a Davos, mas não se pode construir pontes entre esses dois mundos incompatíveis entre si, entre os quais se situa um abismo infinito. Pode-se ir a Porto Alegre e a Davos, mas para constatar que são duas caras totalmente distintas da humanidade que estão em cada uma das duas cidades. E para que se possa optar entre a cara alegre, feliz, combativa, esperançosa de Porto Alegre, ou pelos colarinhos, as maletas 007 e os sorrisos posados para as câmaras de tevê dos executivos e seus escribas de Davos. Para quem visita as duas cidades, os Fóruns são um teste para os dois lados da alma que todos têm. Mas só se pode ficar com um deles: vender a alma ao diabo ou aderir entusiasticamente à luta contra todas as formas de exploração, de dominação, de discriminação, de alienação. Que venham todos lutar juntos pela emancipação humana em Porto Alegre! (Publicado em 24/ 1/2005 na Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br) Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de A vingança da História
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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Brasil de Fato, instrumento para a luta M
ais de quatro mil pessoas participaram, no dia 29 de janeiro, da comemoração dos dois anos do Brasil de Fato. O evento aconteceu no Ginásio Araújo Viana, em Porto Alegre (RS), como uma das atividades do 5º Fórum Social Mundial. O público era formado por personalidades, intelectuais, leitores, colaboradores, militantes sociais, membros do conselho político e editorial, equipe de produção e pessoas como Luís Pereira, de Porto Alegre, que ainda não conheciam o Brasil de Fato. “É a primeira vez que vejo o jornal, mas gostei muito da proposta”, afirmou. Um debate marcou o evento. O professor Plínio Arruda Sampaio comparou o jornal a uma pedra que incomoda. “Diante da mídia brasileira, o Brasil de Fato é uma pedrinha, mas se todos nós tivermos esta pedrinha, será uma pedrada, como na história biblíca de Davi e Golias. Aqui está a turma do estilingue”, disse. Muito aplaudida, a argentina Hebe Bonafini, de 72 anos, integrante das Mães da Praça de Maio falou sobre a importância da comunicação no processo revolucionário, que classificou de “único caminho para os povos da América Latina”. Com ela concordou o palestino Mustafá Barghouti, para quem o semanário “deixou o caminho mais curto na luta contra o imperialismo”. “Quando me perguntam por que tantas pessoas votaram em George W. Bush, eu digo que a culpa é da imprensa estadunidense. Por isso, tenho muito orgulho em celebrar o Brasil de Fato, um jornal que está com o povo”, declarou a jornalista estadunidense Medea Benjamin. O bispo dom Tomás Balduíno, presidente nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ressaltou as mobilizações e a resistência so-
A escritora e jornalista chilena Marta Harnecker discursa durante a comemoração do 2º aniversário do Brasil de Fato
cial, noticiadas semanalmente pelo jornal. O escritor paquistanês Tariq Ali lembrou que não é possível mudar o mundo “ajoelhado aos interesses do FMI e de olhos fechados para os problemas do povo”. Segundo ele, hoje, a Palestina, o Iraque e a América Latina são os principais pontos de luta e resistência contra o neoliberalismo em todo o mundo. “ O Brasil de Fato fala a verdade e isso é muito importante hoje”, disse. Também participaram a médica cubana Aleida Guevara, filha do Che; o deputado estadual Raul Pont (PT-RS); a escritora e jornalista chilena Marta Harnecker e o historiador russo Kiva Maidanik. Estavam
no palco membros dos conselhos político e editorial do jornal, jornalistas, fotógrafos e convidados, como a atriz Letícia Sabatella e o teólogo Leonardo Boff. João Pedro Stedile, representando o conselho político do Brasil de Fato, disse estar convencido de que o jornal é um instrumento necessário para subsidiar a militância e para levar informação que ajude a organizar o povo. Letícia Sabatella completou: “Que o Brasil de Fato consiga ser, a cada edição, mais forte na sua opinão. Que seu espaço valorize a cultura dos brasileiros, que é infinitamente rica. Por fim, que a gente possa, neste jornal, valorizar os brasileiros de fato”.
Robson Oliveira
Cristiane Gomes de Porto Alegre (RS)
Francisco Rojas
Em ato político e cultural, jornal comemora dois anos com a presença de personalidades
Mônica Mourão de Porto Alegre (RS) Uma verdadeira cidade, colorida, com cerca de 35 mil habitantes. Assim foi o Acampamento da Juventude, que contou com uma programação de 500 atividades, paralelas às do Fórum Social Mundial. O Comitê Organizador do Acampamento (COA) começou a trabalhar em abril de 2004. O grupo inicial de 16 pessoas, remuneradas pelo Fórum, cresceu para cerca de 400 colaboradores, que trabalharam para que a engrenagem do acampamento funcionasse. Desse total, aproximadamente 60 pessoas participaram das reuniões deliberativas, nas quais não há votação: as decisões só são tomadas por consenso. Segundo Viliano Fassini, o VG, algumas reuniões chegavam a durar cinco horas. VG participou da “estressante” organização de todos os FSM que aconteceram em Porto Alegre. O núcleo de que fez parte era um dos 11 do COA, como os de infra-estrutura, programação, mobilização e credenciamento. O primeiro acampamento contou com apenas 2.500 pessoas e, segundo VG, foi organizado “às pressas”. Em 2005, abrigou um número 14 vezes maior de acampados. As atividades eram sugeridas pelos participantes. As propostas, assim como as pré-inscrições, eram enviadas pela internet. Ocupando uma faixa de terra às margens do Rio Guaíba, o local foi autogestionado pelos acampados, que buscavam minimizar o impacto ambiental de sua permanência no
Fotos: Robson Oliveira
Jovens criam cidade-acampamento
Jovens acampados nas margens do Rio Guaíba buscaram uma organização autogestionada durante o 5º Fórum Social Mundial
local. A preocupação ficou refletida na separação dos resíduos e nas advertências para economia de água. Soja não foi vendida no acampamento, partindo da convicção de que a maior parte dos grãos é geneticamente modificada. Com relação aos alimentos, também foram boicotados produtos das empresas Ambev e Vonpar, representantes nacionais dos refrigerantes Coca-Cola e Pepsi. Havia
estandes de alimentação e quatro cozinhas geridas por grupos ligados à economia solidária e a movimentos sociais, que vendem refeições. Distribuídas pelos 20 “bairros” do acampamento, eram encontradas as cozinhas coletivas. Em cada uma das “unidades residenciais” havia um ponto de água potável, fogo com grelha e uma mesa. Os “bairros” e as cozinhas coletivas também eram geridos pelos acampados.
Uma empresa foi contratada para fazer o trabalho de segurança. Mas, como todas as ações do acampamento, a atribuição foi compartilhada entre os acampados, avisados para trancar as barracas e a não se ausentar, deixando nelas objetos de valor. Entre as centenas de barracas, uma se destacava: a tenda de primeiros socorros ‘Tenda Che’, com salas feitas de bambu, barro e palha. Na sala de atendimento, a
técnica de enfermagem gaúcha Karine Endris, 23 anos, destacou que, apesar do trabalho, a equipe de saúde fez tudo com muito carinho. No acampamento, também aconteceu o 2º Fórum Nacional de Hip Hop, com mais de 100 pessoas de todo o país. (Colaboraram Adriano Rangel, Careta, Paula Takada, Luana de Oliveira e Maria Cecilia Leão/ Agência Virajovem de Notícias www.revistaviracao.com.br/forum)
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CULTURA
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CINEMA
Diários de Motocicleta vai ao Oscar Walter Salles defende uma forte (e urgente) presença do Estado na regulamentação e no fomento a filmes
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o dia 25 de janeiro, mais um filme dirigido pelo cineasta brasileiro Walter Salles foi lembrado nas indicações ao Oscar. Diários de Motocicleta, uma co-produção entre Brasil, Estados Unidos, México e Argentina recebeu as indicações de melhor roteiro adaptado e de melhor canção, para, respectivamente, o porto-riquenho Jose Rivera e o paraguaio Jorge Drexler. De acordo com as regras, o filme não pode concorrer na categoria de melhor filme estrangeiro por não representar um só país. “A própria essência do filme se tornou um problema para uma possível indicação”, diz o cineasta. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Walter Salles fala sobre o filme, critica a falta de regulamentação e de políticas públicas para o setor cinematográfico no país, e analisa o predomínio da produção comercial atrelada à televisão, em detrimento do apoio a novos profissionais que possam refletir sobre a realidade social brasileira. Brasil de Fato – Você ficou surpreso com as indicações? Walter Salles – Esperávamos pouco devido à temática do filme, principalmente em um momento tão obscurantista como este que os EUA vivem. O fato de um porto-riquenho e de um uruguaio serem indicados por um filme feito através da América Latina inteira já mostra aquilo que o filme significa. O filme fala do que nos aproxima, das raízes comuns que temos e não do que nos distancia. Fiquei especialmente feliz pela indicação da canção, porque ela resume bem o que o filme diz, ou seja, a eleição numa das margens do rio, um processo que vai acabar definindo todas as opções políticas e éticas daqueles dois rapazes. BF – Nos Diários, você conta a história de um jovem revolucionário. Por que falar disso hoje? Salles – Mais que tudo, é um filme sobre a importância do idealismo e da solidariedade. São dois jovens que partem para uma aventura, sem saber o que iam encontrar e, à medida que avançam, começam a descobrir a realidade política e social do continente. Eles se identificam com as pessoas que encontram e são transformados pelos que vêem. Hoje, no discurso político reinante nos EUA, os que vivem além-fronteiras são sempre “perigosos”. No filme, é exatamente o oposto. São dois jovens que descobrem que o que está além-fronteiras é muito mais interessante do que o mundo em que vivem. O filme fala da necessidade de ultrapassar as barreiras artificiais que existem entre as pessoas, da necessidade de ultrapassar as barreiras muitas vezes estreitas da sua própria classe social.
teu canto e a não tentar ir além daquilo que ela te outorga. O filme de estrada, que acompanha personagens numa geografia que lhes é estrangeira, é uma forma narrativa muito interessante para o cinema latino-americano. Esse é um país jovem cuja identidade não está plenamente definida, então o filme de estrada permite entender de que maneira o país está mudando. Em Central do Brasil você abandona o espaço urbano e desvenda um país que é muito mais real. Esses filmes não falam apenas de personagens em mutação, mas também de uma sociedade em transformação.
Imagens: Divulgação
Dafne Melo e Tatiana Merlino de Porto Alegre (RS)
Para Walter Salles, indicações ao Oscar surpreenderam
que tomou, e o que fez dele o homem tão extraordinário que foi. Se nós não tivéssemos passado tanto tempo pesquisando, se Gael García Bernal, não tivesse estado tantas vezes com a família Guevara e não tivesse participado de tantos seminários, ele teria tido muita dificuldade em encontrar o personagem. Alberto Granado ajudou bastante, ao dizer a Gael, logo no início: “O Ernesto que eu conheci era um jovem de 23 anos, sensível, inteligente, latinoamericano, que estava buscando a sua própria voz. Você, Gael, é um jovem latino, sensível, de 23 anos, inteligente que também está buscando a sua voz”. Ou seja, há algo em comum, e não se intimide. Vá em frente e fale com a sua própria voz.
Os problemas ligados à má distribuição da renda e da terra são evidentes hoje como eram em 1952
BF – Para fazer o filme vocês percorreram os mesmos lugares. Qual é o paralelo entre o que eles relataram e o que vocês viram? Salles – Fizemos a viagem três vezes. Ficou claro, rapidamente, que a América Latina tinha mudado muito pouco em 50 anos. É como se as pessoas que encontramos no caminho estivessem saindo dos livros que Ernesto e Alberto escreveram. É muito fácil entender por que os problemas estruturais latino-americanos permaneceram os mesmos durante esse período, com raras exceções. Os problemas ligados à má distribuição da renda e da terra são evidentes hoje como eram em 1952. Isso deu um sentido de responsabilidade muito grande para a gente, pois percebemos que o filme não era apenas um histórico, mas, obrigatoriamente, estaria falando de quem somos hoje. Isso deu um sentido de urgência ao filme. E nós nos sentimos duplamente responsáveis ao iniciar o projeto.
BF – Como é fazer um filme sobre um homem que é conhecido pela nova geração somente por meio de camisetas e pôsteres? Salles – O ícone que é deixado no pedestal fica longe das pessoas. O que nos interessou foi trazê-lo para mais perto. Foi entender o que havia criado as condições para que ele tomasse as opções
BF – Um dos temas recorrentes no Fórum Social Mundial é a união latino-americana. Você acha possível essa união hoje? Salles – Conforme começamos a entrar cada vez mais fundo no coração do continente, descobrimos que nós éramos muito mais próximos do que podíamos imaginar. Você entende que tem uma história que precede a sua, que é a
Esses filmes não falam apenas de personagens em mutação, mas também de uma sociedade em transformação
BF – Como você vê o cinema latino-americano atual? Salles – Arrisco a dizer que na Argentina se faz hoje o melhor cinema jovem do mundo, com uma geração talentosa que faz filmes colados à realidade do país. Se isso aconteceu é porque eles entenderam que não há cinematografia que resista sem uma forte presença do Estado na regulamentação e no fomento e sem escolas que formem profissionais de cinema. Hoje, a Argentina faz 100 filmes por ano. O México faz dez, o Uruguai um ou dois, o Brasil entre 30 e 40. Infelizmente, acho a situação atual do Brasil menos interessante do que no início da retomada na década de 90, quando havia um projeto coletivo. Aquela geração de cineastas resolveu mapear o país novamente, reencontrar o prazer de fazer cinema. Os filmes tocavam, sobretudo, no tema da identidade. Hoje, os projetos se tornam cada vez mais comerciais. Por isso, é importante lutar pela regulamentação do Estado, tanto no cinema quanto na TV, mas no cinema eu diria que de forma ur-
vistas, que não foram publicadas. Pessoalmente, sou a favor de uma forte participação do Estado na regulamentação do audiovisual, como também sou a favor de um cinema plural. Não sou contra o filme de grande público, mas quero que os outros, que vêm na contracorrente também existam. Mas compreendo a crítica que várias pessoas fizeram ao projeto inicial, que talvez delegasse um poder excessivo de decisão a um grupo muito pequeno. Isso também não me parece desejável. Eu sou a favor de se criar vários núcleos de decisão. Israel Antunes/Folha Imagem
Quem é Formado em Economia na PUC do Rio de Janeiro e com mestrado em Comunicação Audiovisual na Universidade da Califórnia, Walter Salles é considerado um dos principais cineastas brasileiros da atualidade. Entre os filmes que dirigiu, além de Diários de Motocicleta, estão, Abril Despedaçado, Terra Estrangeira e Central do Brasil. Esse último lhe rendeu 55 prêmios internacionais, incluindo o Urso de Ouro, no Festival de Berlim.
Não há cinematografia que resista sem uma forte presença do Estado na regulamentação e no fomento
Filme já foi visto por mais de 10 milhões de pessoas no mundo
história de cada um desses países. Você começa a ter a certeza de um passado comum, do qual você pode e deve se orgulhar. Quando nós fizemos a cena do aniversário de Ernesto, em que ele faz o discurso sobre a unidade latino-americana, aquilo nos parecia muito próximo e eventualmente possível. O filme não tenta dar uma resposta em relação a isso, mas tenta mostrar que estamos muito mais próximos desse estado de coisas do que poderíamos imaginar. BF – Por que um dos temas recorrentes em seus filmes é a transformação de um personagem por meio de uma viagem? Salles – Eu me interesso por personagens que conseguem se rebatizar durante um percurso. Tudo na sociedade te impele a ficar no
gente. Uma cinematografia se torna realmente expressiva quando, simultaneamente, os mestres continuam filmando e jovens surgem para oxigenar a cinematografia. No Brasil, essas duas pontas não estão funcionando bem. Raramente se chega ao primeiro longa-metragem com menos de 30 anos. Por outro lado, há incentivo fiscal para fazer filme infantil entupido de merchandising. Por que é preciso incentivo fiscal para isso? Tem algo que não está equilibrado nessa equação. BF – Qual é a sua opinião sobre o projeto inicial da Ancinav? Salles – Eu estava envolvido na divulgação do Diários de Motocicleta quando saiu o debate da Agência. Não participei diretamente, mas cheguei a dar várias entre-
BF – Os filmes brasileiros de sucesso de bilheteria estão muito ancorados nas celebridades da TV. A influência também se dá na estética. Como você avalia essa relação entre cinema e TV? Salles – No início, a TV se preocupava em apoiar projetos independentes, como no caso de Cidade de Deus. Não foram projetos gerados dentro da televisão, mas trazidos por diretores e produtores independentes. Agora, acontece o inverso. A televisão define seus projetos, chama diretores da própria casa para dirigir os filmes e acaba diminuindo a dissonância de linguagem, que ao meu ver, deve existir entre cinema e televisão. A televisão é a prática do tudo mostrar e tudo dizer, e o cinema deve ser a arte da sugestão. Há imposição de uma estética televisiva no cinema que não é salutar. BF – Você filmou Dark Water. Como foi trabalhar em Hollywood? Salles – O filme começou como projeto independente. Como o produtor não conseguiu financiamento, vendeu o filme para a Disney. Pensei, inclusive, em sair do projeto, mas não o fiz em respeito aos atores, pois tinha convidado alguns deles. Foi penoso, mas revelador. Trabalhar ali não é um negócio que eu quero viver duas vezes. É uma estrutura muito cristalizada, engessada. Você se confronta com um modelo pré-estabelecido que, para mim, não é interessante.