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Ano 3 • Número 102

R$ 2,00 São Paulo • De 10 a 16 de fevereiro de 2005

Reação global à invasão do Iraque D

iante da farsa que foram as eleições no Iraque, dia 30 de janeiro, imposta e manipulada pelos Estados Unidos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil dos quatro cantos do planeta preparam um grande protesto para os dias 19 e 20 de março. No foco das manifestações, o fim da ocupação do Iraque. A decisão é fruto dos debates e reflexões que embalaram o 5º Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre (RS), de 26 a 31 de janeiro. Segundo o inglês Chris Nineham, da coalizão Stop The War Coalition, é grande a possibilidade de o movimento superar, em números, as manifestações de fevereiro de 2003, quando cerca de 30 milhões de pessoas, em todo o mundo, ocuparam ruas e praças exigindo a retirada das tropas estadunidenses de ocupação do Iraque. Pág. 9

Khalid Mohammed/AP/AE

Movimentos e organizações sociais de todo o mundo preparam uma grande ofensiva para os dias 19 e 20 de março

Atrocidades das ditaduras ainda estão impunes

Crescimento econômico continua frágil O Banco Central aumentou a taxa de juros básica para 17,75% e vai aumentar mais. Assim, a política econômica segue ignorando a realidade: a inflação, o

fato de que a alta dos juros impede investimentos produtivos e o crescimento econômico, a precariedade do mercado de trabalho. Em 2004, quase 30% da

população economicamente ativa estava desempregada ou em funções sub-remuneradas. Mais de 5 milhões de pessoas. Pág. 7

Rose Brasil/ ABR

A abertura dos arquivos das ditaduras militares na América Latina continua em pauta, já que os governos prometem jogar luz sobre os crimes, mas ficam nas promessas. No 5º FSM, organizações de direitos humanos insistiram na necessidade de esclarecer as atrocidades. Elas acreditam que o novo presidente do Uruguai investigará o paradeiro dos desaparecidos. Já o presidente argentino, Néstor Kirchner, pediu perdão pelo silêncio diante dos assassinatos, mas ficou nisso. Pág. 10

Guarda exibe papéis sagrados na mesquita Tawhid após ataque ocorrido em Bagdá, no Iraque, depois da farsa das eleições do dia 31 de janeiro

Resistência à devastação da cultura da soja

Impunidade - O latifúndio no Brasil segue impune, porém, na luta por justiça, manifestantes participam de audiência pública em Rondon do Pará (PA), para tratar de denúncias de violência contra os trabalhadores rurais, sindicalistas e sem-terra

Diversificação, Sociedade reage uma política de à violência contra bons resultados Lúcio Flávio Em 2004, pela primeira vez, as exportações brasileiras para os países ricos foram maiores do que as destinadas aos demais países: respectivamente, 47,3 bilhões e 49,2 bilhões de dólares. Isto é, enquanto as vendas aos ricos cresceram 25,5%, as feitas aos países menos desenvolvidos deram um salto de quase 40%. Esses dados derrubam os argumentos dos setores que se opõem à política do Itamaraty, de diversificação para reduzir a dependência dos países ricos. Pág. 8

Entidades reunidas no 5º Fórum Social Mundial elaboraram uma plataforma comum de luta para fazer do acesso à água um direito da humanidade. Do outro lado, elas enfrentam uma política que elege o mercado como regulador da distribuição dos recursos hídricos. Os bolivianos que expulsaram a francesa Suez de seu país, contudo, dão pistas de que o povo não ficará parado diante dos interesses do capital. Pág. 13

Milhares se reúnem contra transposição

Pág. 4

Venezuela abre as portas para o Fórum 2006 Pág. 11

Fotos revelam o lado sombrio da globalização Pág. 16

Tuto Mendes

Formada por cerca de 60 movimentos sociais, a Articulação Soja Brasil começa a traçar estratégias para resistir à devastação ambiental provocada pela crescente produção de soja para exportação. A cultura do grão ocupa área estimada hoje em 22 milhões de hectares, o que equivale a cinco vezes o tamanho do Rio de Janeiro. Em todo o país, são relatados casos em que o agronegócio destrói matas e rios, gera trabalho escravo e provoca a fome, com destruição de comunidades. Pág. 3

Porto Alegre constrói nova agenda da água

Protestos de milhares de pessoas forçaram o Ibama a cancelar metade das audiências públicas programadas para conceder licenciamento ambiental à transposição do rio São Francisco. Para os críticos, o governo atropela a lei para aprovar um empreendimento que consideram uma anomalia, baseados em estudo elaborado por 47 entidades da sociedade civil. Pág. 6

E mais: PT SAUDAÇÕES – Já não são apenas descontentamentos pessoais. Agora, há manifestações coletivas de centenas de militantes em repúdio ao abandono das bandeiras tradicionais do partido. Pág. 5 LIÇÕES DO FSM – Espaço por excelência para articulações entre movimentos e organizações sociais, o 5º Fórum Social Mundial avançou em propostas e ações comuns. Pág. 14


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De 10 a 16 de fevereiro de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Erick Schunig Fernandes • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frederico Santana Rick • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Augusto Jakobskind • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • José Arbex Jr. • Hamilton Octávio de Souza • Kenarik Boujikian Felippe • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Maria Luísa Mendonça • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Bernardete Toneto, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretaria de redação: Tatiana Merlino 55 Assistente de redação: Dafne Melo e Fernanda Campagnucci 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

O lixo da história

“A

luta revolucionária oferece a única possibilidade de derrotar o imperialismo”, afirmou o presidente venezuelano Hugo Chávez, em discurso que pronunciou no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. A declaração causou reações iradas dos maiores veículos de comunicação do país. Qualificaram Chávez como “caudilho”, “histriônico” e “ultrapassado”. Alguns jornais, como a Folha de S. Paulo, que tem por sócio o capital português, via Portugal Telecom, acionista da Vivo (ex-Telesp Celular), aproveitaram a deixa para atacar o MST, o seu “patético líder” João Pedro Stedile e políticos brasileiros como o “populista” governador do Paraná, Roberto Requião (FSP, 2/2/05, editorial) Queiram ou não os jornalecos da burguesia, Chávez tem autoridade política e moral para fazer aquela afirmação. Graças ao extraordinário apoio popular dos venezuelanos, derrotou várias tentativas de golpe de Estado e de desestabilização de seu governo orquestradas nos corredores da Casa Branca. Suas palavras, portanto, não são vãs, nem resultado da mera especulação teórica: carregam, ao contrário, a autoridade de quem resiste na prática, cotidianamente, aos ataques do imperialismo. Para além de seu impacto imediato, a declaração de Chávez toca no coração do problema que hoje desafia as esquerdas em todo o

mundo, incluindo os organizadores do próprio Fórum Social Mundial. Haverá outra alternativa, que não o enfrentamento, para derrotar o imperialismo? Essa questão não se confunde com o problema dos prazos. Chávez não disse que a revolução será feita nas próximas 24 horas. Ninguém pode prever os ritmos e as formas da luta revolucionária. Mas ela deve ou não ser travada? Ou haverá outro caminho? Esta é a indagação que o presidente venezuelano colocou – e respondeu – para todas as forças de esquerda presentes em Porto Alegre. Os jornalecos da burguesia e os seus escribas oferecem uma alternativa, que a própria Folha tratou de mais uma vez explicitar, ao cobrir as eleições no Iraque. Em reportagem intitulada “Iraque supera o medo e vota em massa em meio a atentados”, o jornal afirma: “Em um momento histórico que surpreendeu o mundo, milhares de iraquianos superaram o medo e participaram em massa da primeira eleição no Iraque em meio século, mobilizados pela esperança”. E continua: “Zahra parecia radiante sob sua ‘abaya’. Um sorriso imenso se desenhava em seu rosto tatuado com henna azul. (...) Aos 65 anos, Zahra Azur votou pela primeira vez e não esconde a alegria.” (FSP, 31.jan.05) Soldados estadunidenses assassinam crianças, mulheres e

FALA ZÉ

homens desarmados e feridos, como mostrou o trágico episódio na mesquita de Faluja; não contentes com isso, torturam e humilham prisioneiros, como provam as fotos de Abu Ghraib. Além disso, o petróleo iraquiano é pilhado pelas transnacionais anglo-estadunidenses, o país é reduzido a escombros e a guerra civil se instaura entre a resistência e os que colaboram com as tropas de ocupação. Mas Zahra, diz a Folha, co-propriedade da Portugal Telecom, está feliz, por ter participado da grande farsa armada por George Bush. Os ignorantes escribas do faraó deveriam consultar os seus arquivos para recordar que outro presidente estadunidense, Lyndon Johnson, comemorou, em setembro de 1967, a participação de 83% dos eleitores do Vietnã do Sul nas eleições presidenciais que confirmaram o mandato do poodle de Washington de plantão (The New York Times, 4/9/67). A grande farsa, obviamente, não impediu que, em 1973, as tropas imperialistas, humilhadas e derrotadas pela heróica resistência popular, fossem obrigadas a deixar o país. Os vassalos da Casa Branca aceitam ver o próprio país posto de joelhos e esmagado pelas botas de Bush, atacam e ofendem, de forma vil e covarde, aqueles que rejeitam essa perspectiva e lutam por uma vida digna e decente. Eles têm reservado o seu lugar na história: a lata de lixo. OHI

CARTAS DOS LEITORES PEDRINHA Sou estudante do curso de jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Há três semanas, participei, em Cuba, da 12ª Brigada Sul-americana de Trabalhos Voluntários. Refletindo sobre a experiência que passei, descobri que, lá, há uma realidade social que me foi e é negada pela grande mídia e que só pude apreender por causa dessa experiência. A última vez que soube de Cuba foi quando algumas pessoas, dentre elas jornalistas, foram condenadas à morte. Assim, os fatos que carregam uma conotação negativa são explorados, e o que há de positivo (a educação e saúde, por exemplo), é solenemente ignorado. Compreendi, na prática, a importância do jornalismo alternativo como veículo de exposição do que é ocultado em função dos interesses puramente mercadológicos das grandes empresas de comunicação. Lembro-me da analogia que Plínio Arruda Sampaio fez (no segundo aniversário do Brasil de Fato), a partir das palavras do palestino sobre as pedras e a resistência, em que dizia que uma pessoa pode ser uma pedrinha também; ou um país (olha Cuba aí); ou um jornal! Bem, eu gostaria de fazer parte dessa “turma do estilingue”! E observar que as mesmas pedras que podem destruir as estruturas podres podem também construir, juntas, novos caminhos. Vítor Munhoz por correio eletrônico TRIO MORTAL São para as transnacionais que “nossos” homens públicos estão a serviço. Causou-me indignação ver

“nosso” presidente na inauguração de uma empresa na Bahia, cuja atividade é a celulose. Cientistas alertam sobre o aquecimento global que está ameaçando as “florestas em montanhas”, agravando os problemas da seca pelos quais passam os povos africanos. Em Kakamega, no Quênia, plantar eucalipto é considerado suicídio, a ponto de batizarem o eucalipto de munyuamaai, que significa “bebedor de água”. E, aqui no Brasil,os interessados na monocultura dessa árvore conseguiram uma grande verba no BNDES para espalhar suas plantações. Logo o eucalipto! Tsunamis, calor intenso, temporais arrasando cidades, mudança do eixo de rotação da terra, parecem manifestações de um planeta que já não agüenta mais tanta agressão. O homem, o dinheiro e o poder: trio mortal! Fernando Magno Vitória (ES) SUGESTÃO Estou contente de ter assinado o Brasil de Fato. Dá enfoque oposto dos demais jornais. Abre espaços para pensar. Parabéns. Sugestão: vocês fazem muitas matérias que dá vontade de a gente mandar uma mensagem, apoiando o movimento: por que vocês não incluem o endereço eletrônico da pessoa em pauta? Por exemplo: do Monge Marcelo Barros, do engenheiro agrônomo Hugo Pereira de Jesus Filho (p.5, Brasil de Fato, 20 a 26 de janeiro 2005). Por que não fazer um abaixoassinado contra a transposição do rio São Francisco? Boa sorte, amplas conquistas. Rodolfo Geiser por correio eletrônico

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

O carnaval no processo do Fórum Marcelo Barros Encerrou-se o 5º Fórum Social Mundial com a marcha, na qual se juntaram mais de 350 propostas dos quatro mil painéis, seminários e fóruns que ocorreram naqueles dias em Porto Alegre. As 155 mil pessoas de todos os continentes inscritas no Fórum e as outras tantas que acorreram àquele grande encontro da humanidade voltaram animadas. O Fórum possibilitou um sem número de pequenas articulações, através das quais o mundo novo vai concretamente tomando forma. As pessoas grávidas de esperança e solidariedade são muito mais numerosas do que poderíamos pensar, se ficássemos, cada qual em seu canto, sonhando com mudanças que, afinal, deixamos a cargo de governos e poderosos. Uma semana depois do Fórum ocorre o carnaval que, neste ano, impaciente, invade o começo de fevereiro. O tempo corre e, como cantava um folião pernambucano em um frevo, “no melhor da festa, chega a quarta-feira”. Muita gente liga carnaval com bagunça, violência, sexo

e drogas. Mesmo conscientes dos excessos e da ambigüidade dessas coisas, podemos também ver o carnaval como ensaio da festa da libertação geral que o FSM profetiza. Como canta o Chico: “Quem me vê assim, parado, distante, parece que eu nem sei sambar... Tou me guardando pra quando o carnaval chegar”. Católicos tradicionais pensam Quaresma como tempo de penitência e paixão, não no sentido de apaixonamento e sim de dor. Mas, no fundo, é como alguém que se priva de comer para saborear melhor um banquete que espera. Diversas tradições espirituais têm ritos correspondentes, nos quais expressam, cada uma do seu modo, o desejo de um novo mundo possível. No Brasil, a partir desta quartafeira de cinzas, 9 de fevereiro, sete diferentes Igrejas, membros do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), lançam a 2ª Campanha da Fraternidade Ecumênica. A primeira foi no ano 2000. Esta tem como tema: “Solidariedade e Paz”.

São questões urgentes e foram temas dos mais visitados e aprofundados neste Fórum Mundial, o que revela serem objeto da mais profunda fome da humanidade. Para as comunidades judias e Igrejas cristãs, esta festa da liberdade que o carnaval ensaia e que se expressa na campanha da Paz e Solidariedade é a Páscoa. A festa pascal recorda todas as passagens do Espírito, suscitando nos oprimidos do mundo força para caminhar e romper todo tipo de jugo. Quem crê na ressurreição de Jesus Cristo e de todo o universo exercita desde agora o mundo novo que desejamos. Une-se a quem não crê e se engaja nas pequenas redes de ação solidária que vão se articulando como processo de conquista comunitária da justiça, da solidariedade e da paz que torna presente, aqui e agora, o novo mundo possível.

Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 24 livros, entre os quais o romance A Festa do Pastor, da Editora Rede.

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NACIONAL ATINGIDOS POR BARRAGENS

Polícia gaúcha reprime protestos Alexania Rossato de Porto Alegre (RS)

O

s bloqueios de obras e estradas no Sul do país, organizados pela segunda vez em um mês pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), dias 26 e 27, foram marcados pela violência praticada pela polícia. A situação começou a ficar tensa quando o governo do Estado do Rio Grande do Sul deslocou policiais do Batalhão de Choque para três pontos de manifestação. A ação da polícia se intensificou no dia 27 pela manhã, quando vários agricultores foram atingidos por balas de borracha e golpes de cassetete. Maximino Deparis, agricultor atingido pela Barragem de Itá, denunciou que a ação da polícia é uma atitude covarde e ditatorial do governo estadual, que quer desmobilizar os povos organizados do campo. “A repressão que o MAB sofreu já é comum aos outros movimentos sociais”, afirmou. No dia 28, durante entrega do prêmio de reconhecimento à luta do atingidos pela barragem de Barra Grande pela Amigos da Terra Internacional, em meio às atividades do Fórum Social Mundial, os atingidos pelas balas denunciaram a agressão. Disseram que a atitude do governo gaúcho não intimidará a luta dos camponeses, que prometem um ano de muito enfrentamento às empresas construtoras de barragens As manifestações reuniram atingidos ou ameaçados pelas barragens de Itá, Machadinho, Barra Grande, Foz do Chapecó, Pai Querê, Monjolinho, Campos Novos,

Miriam Prochnow

Agricultores bloqueiam estradas e são recebidos a balas e cassetetes, em ação comandada por governo do Estado.

Mobilização dos atingidos na região do Alto Uruguai começou em outubro de 2004, na barragem de Barra Grande

São Bernardo e Quebra-Queixo, todas na bacia do Rio Uruguai. O objetivo era denunciar a ação de multinacionais como Alcoa, Alcan, Tractebel e AES, responsáveis pelas construções, e pedir a solução dos problemas sociais e ambientais trazidos pelas obras. Os trancamentos de estradas começaram em quatro pontos dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina: na RS 490, próximo a Chapecó (SC); na BR 116, próxi-

mo a Vacaria (RS); e nos acessos ao canteiro de obras das barragens de Campos Novos (SC) e Bernardo José (RS). No total, mais de 1.500 camponeses estiveram mobilizados.

PRESSÃO E DESENVOLVIMENTO O crescimento da mobilização dos atingidos na região do Alto Uruguai começou em outubro de 2004, na barragem de Barra Grande, com a descoberta de uma fraude no estudo de impacto ambiental que permitiu

o início da obra. Desde então, várias mobilizações aconteceram. Além de exigir o fim da construção de barragens e pedir mudanças no atual modelo energético, os camponeses reivindicam, dos governos federal e estadual, indenização pelas perdas na safra ocasionadas pela forte estiagem que assolou o Rio Grande do Sul nos último meses. Eles pedem também indenização para as famílias atingidas por barragens que ainda estão com pendências, or-

ganização de projetos populares de desenvolvimento regional, construção de casas populares, diminuição do preço da energia elétrica e cestas básicas para famílias pobres. Antonio Caldart, pequeno agricultor da região, explica o movimento: “Todos os pontos de reivindicação da nossa pauta tem o objetivo de melhorar a vida do povo e isso é um direito nosso. O que queremos também representa mais recursos para o desenvolvimento da região”.

SEGURANÇA ALIMENTAR

Daniel Antiquera de Porto Alegre (RS) O Rio Grande do Sul foi o berço, na década de 70, da expansão da soja para o resto do país. Mais de 30 anos depois, nesse mesmo Estado começa a se estruturar o movimento de resistência aos efeitos danosos do crescimento descontrolado da produção da semente. Durante o 5º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, organizações dos quatro cantos do país se reuniram para compartilhar experiências e traçar estratégias comuns para resistir ao poder do agronegócio. Mais de 60 movimentos sociais e entidades se juntaram no grupo Articulação Soja Brasil, para tentar conter a devastação ambiental que a trilha da soja deixa para trás. O grupo é fruto de movimentos antigos, que combateram projetos de transposição de rios, implantados para reforçar a infra-estrutura para a produção da semente, mas que representavam sérios danos naturais. A articulação dos movimentos pretende estabelecer pautas comuns, como a luta contra os transgênicos, pela contenção do desmatamento, contra a concentração da atividade por grandes aglomerados econômicos, em proteção dos pequenos produtores, pela manutenção da biodiversidade e em respeito à legislação vigente, já que boa parte da produção se sustenta em práticas ilegais. São trágicas as conseqüências do crescimento sem controle da soja no país. Rony Silveira, estudante de Belterra (PA), foi a Porto Alegre procurar reforços para a luta contra a força das empresas produtoras. “A produção de soja na minha cidade trouxe impactos ambientais tão fortes que o clima da região já mudou bastante: está mais quente e seco”, diz. “O

Jorge Araújo/ Folha Imagem

Movimentos resistem ao avanço da soja milhões de hectares, o que equivale a cinco vezes o tamanho do Rio Janeiro. “O agronegócio brasileiro, incluindo produção, agrotóxicos e maquinaria, é responsável por 42% das exportações brasileiras e por cerca de um terço do PIB nacional, mas emprega menos de um terço dos trabalhadores na agricultura”, acusa Galinkin. Os outros dois terços dos 17,7 milhões de trabalhadores se encontram em empreendimentos de agricultura familiar. Para se ter uma idéia, em 2003, enquanto o PIB brasileiro decresceu 0,2%, o PIB do agronegócio cresceu 5%.

DÍVIDA VERSUS FOME

Colheita de soja no Mato Grosso: desmatamento acelerado gera perda na qualidade da água e coloca em risco o cerrado

problema é que não conseguimos influenciar as autoridades locais, vinculadas aos grandes grupos econômicos”, complementa, preocupado.

RISCO EM ÁREA INDÍGENA Segundo Judson Barros, presidente da Fundação Águas do Piauí, a chegada ao Estado da maior empresa do setor, a multinacional Bunge, foi responsável pelo desmatamento de 50% da cobertura vegetal original. A empresa também usa, para secagem da soja, a lenha do cerrado, com graves impactos ambientais e superexploração da mão-de-obra. O cortador de lenha ganha entre R$ 0,50 e R$ 0,80 centavos por estéreo (feixe de madeira com um metro cúbico), enquanto a mesma quantidade é vendida a R$ 27. Há ainda diversas denúncias de trabalho escravo sendo apuradas em duas ações promovidas pelo Ministério Público. “No Piauí, 12 ou 13 produtores são responsá-

veis por 600 mil toneladas de soja. Aqui não existe agricultura familiar”, denuncia. O Parque Indígena do Xingu (MT) sofre as conseqüências mesmo sem produção em seu interior. O Instituto Socioambiental (ISA) trabalha há 10 anos na região, fazendo o monitoramento das fronteiras do parque. A agricultura no entorno, desrespeitando a legislação ambiental, prejudica as nascentes dos rios que atravessam as terras indígenas. “O desmatamento acelerado está gerando perda na qualidade da água, levando sujeira e agrotóxicos para dentro do Parque do Xingu e assoreamento das margens dos rios. Estes problemas acabam por afetar, também, a fauna e a flora da região”, descreve Adriana Ramos, coordenadora de políticas públicas do ISA. Diante da gravidade da situação, entidades locais e movimen-

tos sociais se uniram para realizar, dias 25 a 27 de outubro de 2004, o Encontro Nascentes do Rio Xingu, em Canarana (MT). Na ocasião, foi lançada campanha pela proteção e recuperação das matas ciliares e dos recursos hídricos de toda a bacia do rio Xingu. A idéia é criar um grupo envolvendo todos os setores afetados pelos problemas ambientais causados pela expansão da agricultura na região: índios (kaiapó, paraná e xavante), assentados e até mesmo fazendeiros. Agora eles se juntam na articulação contra a soja.

PODER DO AGRONEGÓCIO O combate, porém, não é fácil. O Brasil é o maior exportador de soja do mundo. Segundo Maurício Galinkin, da Fundação Centro Brasileiro de Referência e Apoio Cultural (Cebrac), a produção, que ocupava 10 milhões de hectares em 1993, hoje está em cerca de 22

Com essas estatísticas, a soja se tornou heroína nacional do modelo econômico brasileiro, voltado quase que inteiramente para as exportações, com o objetivo de gerar divisas e pagar dívidas. Em 2001, o presidente FHC bradou “exportar ou morrer”. E parece que o governo Lula segue os mesmos passos de seu antecessor. “O governo Lula elegeu três prioridades: crescer, crescer e crescer. Mas é preciso entender que o crescimento não pode ser um valor. Deve ser um instrumento do desenvolvimento”, defende o economista Ricardo Abramovay, da USP. Abramovay critica o modelo econômico brasileiro. Ele cita pesquisas que demonstram que, quanto maior a concentração de renda, menor a capacidade de o crescimento funcionar como fator de combate à pobreza. “Além disso, os recursos naturais estão sendo apropriados de maneira ilegal. O setor de ponta do agronegócio apóia-se em relações de trabalho incompatíveis com uma sociedade civilizada. Os movimentos sociais precisam interferir”, complementa o professor. (Colaborou Luís Brasilino)


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Espelho COMUNICAÇÃO

Depois da violência, a reação

Luiz Antonio Magalhães

Medo do povo Na semana passada, a Folha deu um belo exemplo da involução que está sofrendo. Em editorial grotesco, intitulado “O Show de Chávez” e publicado no dia 2/2, o jornal se desnudou. As virulentas críticas ao presidente venezuelano, ao governador do Paraná, Roberto Requião, e ao líder do MST, João Pedro Stedile revelam que o jornal entrou de cabeça em uma campanha aberta contra o fortalecimento das lideranças latino-americanas que se aproximem minimamente dos anseios populares. Os colunistas mais ligados ao diretor de redação, como os capatazes Vinícius Freire e Josias de Souza, já subiram o tom contra Chávez e o MST, mas agora a orientação parece ter sido ampliada para os editorialistas e responsáveis pelo conteúdo jornalístico da Folha. Passado que condena Os leitores mais jovens, acostumados com a postura “liberal” da Folha, devem estar estranhando a nova linha editorial do jornal lusobrasileiro. De fato, a FSP ganhou mercado quando investiu na campanha das “Diretas Já” e liderou na mídia a luta pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor. Os dois movimentos fizeram com que a Folha caísse nas graças de uma parcela do público de esquerda, mas, na verdade, tudo não passou de estratégia mercadológica para aumentar a tiragem, na interminável contraposição com o tradicional O Estado de S. Paulo. Dedo de FHC Observadores atentos notaram um detalhe interessante: a Folha subiu o tom contra o PT e o governo Lula justamente após a reunião da Executiva Nacional do PSDB, quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso exigiu de seu partido que começasse a tratar os petistas com mais agressividade. Foi só FHC aconselhar e o matutino luso-brasileiro arrumou um jeito de desenterrar o caso Lubeca, em uma evidente tentativa de prejudicar a candidatura do deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) à presidência da Câmara. Rodrigues de vice Está em curso uma articulação para fazer do ministro Roberto Rodrigues (Agricultura) o candidato a vice-governador na chapa petista em São Paulo. Segundo fontes palacianas, a indicação contaria com o apoio do presidente Lula. Estranhamente, nenhum grande jornal brasileiro deu atenção à jogada, que pode virar de ponta-cabeça a sucessão de Geraldo Alckmin, trazendo o voto conservador do interior paulista para a chapa encabeçada pelo PT. Pauta perdida A crônica esportiva paulista está devendo um perfil mais apurado do novo homem forte do Corinthians – o multimilionário iraniano Kia Joorabchian. Já saiu de tudo sobre o jovem investidor: alguns jornais afirmaram que ele é ligado à máfia russa, outros que tem ligação com o tráfico de armas. Na verdade, porém, ninguém conseguiu, ainda, provar coisa alguma a respeito do empresário. Para lembrar a expressão surrada, o Corinthians é uma nação e seus torcedores mereciam pelo menos saber direito quem é o todo-poderoso. E em tempos de Internet, jornalismo investigativo nem custa tão caro assim...

Agressão e ameaça de morte ao jornalista Lúcio Flávio Pinto, do Pará, repercute em todo o país da Redação

O

Ministério da Justiça acompanhará, junto ao governo do Estado do Pará, o processo referente às agressões sofridas pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto, no dia 21 de janeiro, em Belém do Pará. A promessa foi feita pelo ministro Márcio Thomaz Bastos, ao saber que o jornalista foi espancado e ameaçado de morte pelo empresário Ronaldo Maiorana, das Organizações Rômulo Maiorana, depois de publicar uma matéria em seu Jornal Pessoal, sobre a concentração de mídia no Estado. Com quase 40 anos de profissão, Lúcio Flávio – que já ganhou quatro prêmios Esso e outros prêmios internacionais por abordagens sobre a Amazônia e a região Norte – registrou queixa na polícia. A origem da agressão foi a matéria “O rei da quitanda”, sobre a família Maiorana, dona do jornal O Liberal, de emissoras de rádio e da afiliada local da Rede Globo. O jornalista acusa o diretor-editor-corporativo das Organizações Rômulo Maiorana (ORM), Ronaldo Maiorana, de tê-lo espancado com a ajuda de dois seguranças, o sargento Manoel Santana e o subtenente Edson Nazareno de Carvalho (conhecidos como Saddam e Gentileza), pertencentes aos quadros da PM, mas que prestam serviço de segurança particular ao empresário, o que é ilegal. Lúcio Flávio insiste em que a agressão foi premeditada e que os seguranças foram chamados por telefone, enquanto o executivo das ORM almoçava com os diretores João Pojucan de Moraes (diretor industrial de O Liberal), Luiz Sá Pereira e Alex do Carmo, coordenador do programa “Caminhando pelo Pará”. De acordo com a versão de

Agência Estado

Túnel do tempo O jornal luso-brasileiro Folha de S. Paulo está redescobrindo o seu passado. Desde que se associou a um conglomerado português de telecomunicações, a turma da Barão de Limeira entrou euforicamente no túnel do tempo e, a cada dia que passa, produz um jornal mais parecido com aquele do início dos anos 70. Para quem não era nascido ou não se lembra mais, era um tempo em que o grupo Folha cedia automóveis para grupos paramilitares e apostava na candidatura do linha-dura Sylvio Frota para a presidência.

Agressão e intimidação são práticas recorrentes do grupo ligado à Rede Globo-PA

Lúcio Flávio, registrada no termo de declaração na seccional de São Brás, Ronaldo aplicou-lhe uma “gravata”, derrubou-o no chão e mandou os seguranças que o acompanhavam a continuar as agressões, enquanto gritava que iria matá-lo. O inquérito policial deve ser concluído em 30 dias, podendo ser prorrogado por mais 45 dias.

Em nota, o Sindicato dos Jornalistas do Pará afirma que não é de hoje que os profissionais sofrem violências pelos veículos de comunicação. “Vamos lutar para acabar com a cultura de os donos pensarem e agirem como se pudessem tudo, inclusive restringir a liberdade de ação sindical”, diz.

SILÊNCIO E REPERCUSSÃO CENSURA E VIOLÊNCIA Essa não foi a primeira agressão a Lúcio Flávio. Em 1992, ele foi atacado pelo cunhado de Ronaldo Maiorana, o advogado Calilo Kzan Neto – casado com Rosângela Maiorana Kzan, diretora administrativa das ORM. Na época, a reação violenta ocorreu por causa de matéria do Jornal Pessoal, em que ele relatava os conflitos comerciais entre Rosângela e o irmão mais velho, Rômulo Maiorana Júnior, então vice-presidente do grupo. Por causa do texto, a empresária entrou com a primeira das quatro ações contra o jornalista, todas com base na Lei de Imprensa, de 1967.

A agressão a Lúcio Flávio não foi noticiada em qualquer veículo de comunicação do Grupo Liberal, que decidiu dedicar espaço a um concurso de rainha do carnaval. As autoridades também não se pronunciaram. Na época da agressão, o governador Simão Jatene (PSDB) estava em Paris, em busca de parcerias para o setor de turismo no Estado. A vicegovernadora Valéria Pires Franco, que também é jornalista, não falou sobre o caso. Não foi encontrado Manuel Santino, secretário especial de Defesa Social do Estado, que anteriormente havia negado audiência a um representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), para tratar da luta da terra no Pará.

A principal manifestação de condenação da violência foi a do físico Ennio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em um seminário sobre a liberdade de expressão, ética no jornalismo e Estado de direito, dia 28 de janeiro, organizado pelos cursos de comunicação da Universidade Federal do Pará e Universidade da Amazônia (Unama). Em carta enviada posteriormente a Lúcio Flávio – que é conselheiro da SBPC – ele afirmou: “Contamos com a informação, o conhecimento e a educação para derrubar a violência, prepotente e assassina, e promover o Estado de justiça e liberdade. Em Belém e no Brasil”. Candotti levou o caso ao secretário nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, Nilmário Miranda, como exemplo da impunidade na Amazônia. A Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH) lançou uma nota de repúdio à agressão, em que credita ao sentimento de impunidade “a escalada cada vez maior de delitos que acabam sendo beneficiados pela morosidade da Justiça ou pela flexibilização das penas aplicadas”. Com base na declaração sobre os princípios da liberdade de expressão, a entidade afirma que “quando se impede o livre debate de idéias e opiniões, se limita a liberdade de expressão e o efetivo desenvolvimento do processo democrático”. A entidade cobra uma manifestação do Conselho Estadual de Segurança Pública (Consep), sobre a participação de policiais militares na agressão, bem como a punição dos mesmos e o afastamento de Ronaldo Maiorana da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa da OAB/PA. (Com informações da Agência de Notícias da UFPA)

Campanha defende direito à democracia Isabel Mercês * de Porto Alegre (RS) A CRIS (Comunication Rights in the Information Society) está tentando fortalecer o movimento pelo direito à comunicação. Lançada em novembro de 2001 por organizações não governamentais (ONGs) de vários países, a Campanha CRIS fundamenta seu trabalho na concepção da comunicação como direito inerente do ser humano, capaz de “fortalecer a vida social, econômica e cultural de indivíduos e organizações”. No 5º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, participaram várias das 120 entidades, de todo o mundo, que compõem a Campanha CRIS. A amplitude do debate sobre direito à comunicação levou a reflexões sobre a apropriação de tecnologias e dos meios pela sociedade, rádios livres e comunitárias, controle de programação da televisão, democratização das governanças de internet e propriedade intelectual, até a proposta de construção de uma agenda conjunta de atuação. Osvaldo Léon, da Agência Latino-americana de Informação (Alai), lembrou: “Estamos frente a um processo de construção, em que a mobilização tem caráter social e deve ser feita por amplas parcerias”. Para Mário Lubetkin, um dos idealizadores do Fórum Mundial de Informação e Comunicação, a CRIS deve enxergar a multiplicidade dos temas que aborda de maneira assossiada. “São assuntos relacionados. Todos tratam da questão de democratizar o acesso ao conhecimento e à produção de informação. Por isso, são lutas que devem estar

Isabel Mercês

da mídia

NACIONAL

Luta pela democratização da comunicação foi tema recorrente em debates e manifestações durante o Fórum de Porto Alegre

atreladas.” Uma das propostas é a criação de um sistema de regulação conjunta para todos os meios. Venício Lima, professor da UNB e representante da secretaria-geral do governo, lembra que telecomunicações, imprensa e internet não podem ser tratadas como assuntos distintos. “Há um buraco negro, um vazio regulatório que favorece apenas os empresários do setor. Uma legislação geral de comunicação deve ser feita”, defende.

NOVA COMUNICAÇÃO POSSÍVEL A CRIS nasceu como uma proposta de uma articulação internacional para interferir nos rumos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), realizada pela ONU para discutir os rumos

e as mudanças advindas desta nova concepção de sociedade. A primeira fase da cúpula aconteceu em novembro de 2003, em Genebra, e a segunda se realiza no final deste ano, em Tunis, na Tunísia. No Brasil, a CRIS surgiu oficialmente em agosto do ano passado, como uma articulação de entidades, redes e movimentos que lutam pela efetivação plena do direito à comunicação e com o objetivo de incidir em diversos campos da área. Na pauta, a luta por políticas públicas e pela sensibilização da sociedade brasileira para esse tema. Já são cerca de 40 grupos com focos de atuação em áreas completamente distintas, como o Movimento Nacional de Direitos Humanos, o Grupo de Trabalho da Amazônia, a Rits

(Rede de Informação do Terceiro Setor) e a Associação Mundial de Rádios Comunitárias. “O direito à comunicação reconhece o direito individual e coletivo de que sejamos todos produtores de informação, para além de espectadores e leitores. Portanto, não basta ter liberdade de expressão, nem ter acesso a uma boa gama de fontes de informações. É preciso atuar contra as diferenças econômicas, sociais e políticas que fazem tão poucos terem condições de ser produtores de informação”, explica João Brant, membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, uma das entidades que compõem a coordenação da CRIS Brasil. (Com Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)


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NACIONAL CRISE POLÍTICA

Dissidências agitam o PT Hamilton Octavio de Souza de São Paulo (SP)

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5º Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre (RS), expôs publicamente as fissuras internas do Partido dos Trabalhadores (PT), os principais pontos das divergências e a extensão do descontentamento nas bases do partido. Não se trata mais da rebeldia de um ou outro parlamentar contra determinadas imposições para votação no Congresso Nacional, mas manifestações coletivas de centenas de militantes com forte inserção e representação na base do PT. Os manifestos desses grupos circularam pela capital gaúcha e foram minimizados pelo presidente nacional do PT, José Genoíno. Da mesma forma, o presidente Lula tentou desqualificar os autores das vaias dentro do Gigantinho, atribuindo a eles a imaturidade da juventude. Lula também foi vaiado do lado de fora do ginásio do Inter, por um público – integrado por jovens e por maduros senhores e senhoras dos 40 aos 60 anos – que acompanhava o discurso por telão. O descontentamento com o governo e as divergências internas no PT também foram expostos e dominaram os cenários de inúmeros debates sobre políticas públicas, reformas universitária e sindical, tanto nos encontros acadêmicos quanto nos promovidos por correntes partidárias e por entidades de classe dos trabalhadores. A dimensão do racha recomendaria que a questão não seja tratada como mais um expurgo qualquer, mas que exige uma reflexão sobre caminhos e rumos com o conjunto da base partidária.

Marcello Casal Jr./ABR

O apoio canino da direção partidária ao governo Lula revela descontentamento e provoca divergências na militância

Presidente Lula durante o lançamento da Chamada Global para a Ação contra a Pobreza, no Fórum de Porto Alegre

Mais de 100 militantes do PT, liderados pelo economista e professor da Unicamp Plínio de Arruda Sampaio Jr. e o sindicalista Jorge Luís Martins, membro da executiva nacional da CUT, relacionaram no manifesto “Chegou a hora de

dar um basta” os 13 pontos que justificam sua saída do partido. O grupo chegou à conclusão de que o PT não representa mais o ideal transformador de sua constituição e não tem mais retorno em sua trajetória de aliança e sustentação

do neoliberalismo. A saída desse grupo é significativa e não pode ser tratada com menosprezo ou desdém, mesmo porque eles alertam que não estão abandonando a luta, mas retomando o caminho original do qual o PT se desviou.

Da mesma forma, outro manifesto, assinado por mais de 300 filiados (dirigentes estaduais e municipais do partido, sindicalistas, professores, estudantes e militantes dos movimentos sociais) expressa a posição daqueles que não saíram do PT, mas se declaram publicamente como dissidência. Esse grupo conclama os militantes a expressarem suas divergências em relação ao governo Lula e ao rumo dado pela direção nacional do partido, e convoca um encontro nacional a ser realizado ainda no primeiro semestre deste ano. Embora essa dissidência reúna militantes identificados com as correntes Articulação de Esquerda, Movimento Unidade Socialista e Fórum Socialista Independente, a tendência é esse movimento ampliar-se com a adesão de filiados sem vinculação com as correntes internas. O espaço do Fórum Social Mundial não apenas possibilitou a publicidade das divergências internas do PT, como também o debate, o encontro e a articulação de milhares de petistas de todo o Brasil, os quais, no regresso para seus locais de moradia e militância, procuram informar o que está ocorrendo e reproduzir os questionamentos que preocupam todos aqueles que se dedicaram seriamente à construção do PT durante mais de vinte anos. Mesmo que a corrente majoritária e a direção nacional tentem passar o rolo compressor por cima dos protestos, dos manifestos e das dissidências, a movimentação atual indica que o partido vive um momento bastante delicado, provavelmente decisivo sobre o seu destino. Ignorar isso é dar as costas para a história.

O manifesto “Não mais em nosso nome”, assinado por mais de 300 militantes que se declaram como “dissidência interna do PT”, diz a que veio logo no primeiro parágrafo: “Não concordamos com as orientações liberais e conservadoras que norteiam o governo Lula – especialmente no âmbito da economia – e a subordinação de nosso partido à lógica do Palácio do Planalto. Essa dinâmica agride e dilapida um vasto patrimônio político construído em quase três décadas de lutas da classe operária e dos trabalhadores brasileiros, que resultou no surgimento do PT”. Lembrando a história do partido, formado em 1980 para ser a expressão política dos explorados pelo sistema capitalista, o manifesto recorda que, na época, o PT propunha combinar as tarefas de organização e de luta direta dos trabalhadores com a conquista de espaços institucionais. “A meta era acumular forças para estabelecer um governo democrático e popular de caráter antimonopolista, antiimperialista e antilatifundiário. Este deveria aplicar reformas profundas, visando atender os interesses e necessidades da ampla maioria da população, tornando possível uma ruptura revolucionária e o início da construção socialista, nosso principal objetivo estratégico”. Durante anos, acumularam-se profundas deformações. Pouco a pouco, a disputa por espaços no aparelho de Estado foi se tornando muito mais forte do que a organização direta da luta social e operária. Os militantes sociais foram sendo engolidos pelas máquinas partidária, da administração dos espaços governamentais, pelo Parlamento ou mesmo por uma institucionalidade sindical que acabou por transformar estas táticas em objetivos estratégicos em si mesmos. Essas deformações

Douglas Mansur

“Não mais em nosso nome”

Manifestantes vaiam presidente Lula por não mais defender os interesses dos trabalhadores

não tardaram a influir na forma do PT. A unidade da expressão política da classe acabou por se dividir em três tipos de bases: a base militante, formada quase exclusivamente por pessoas vinculadas a algum ponto da institucionalidade; a base partidária, formada por filiados, em geral sem função prática e organizativa a não ser votar nos encontros internos e servir de massa quantitativa para as disputas internas; e a base social, que tem seu papel reduzido miseravelmente a ser base eleitoral, igualmente usada para conquista de espaços institucionais determinando a correlação de forças por fora do debate político sobre os rumos e horizontes políticos do PT. Este processo de deformação ganhou impulso e radicalizou-se ainda mais diante da ofensiva do capital nos locais de produção, impondo uma profunda derrota aos trabalhadores com a chamada reestruturação produtiva. Ganhou ainda contornos de crise política com a falência da URSS e o desmonte dos

países do chamado socialismo realmente existente no final dos anos 80 e início dos 90 . “As grandes correntes de esquerda, que tiveram papel fundamental na resistência contra a inflexão moderada e depois conservadora, acabaram presas na armadilha institucional”, diz o documento.

PT NO GOVERNO Para os dissidentes, a eleição de Lula, em 2002, foi ao mesmo tempo o ponto máximo do projeto estratégico do PT – chegar ao governo federal para realizar as reformas democrático-populares – e o auge da inflexão conservadora, transformando a governabilidade e as possibilidades de manutenção do espaço ocupado em um fim em si. “Chegando ao poder com um programa ambíguo, que prometia mudanças ao povo e manutenção dos contratos aos mercados, Lula sentiu-se à vontade para dar continuidade à política econômica de FHC, numa conjuntura de descenso

das lutas populares. Essa postura deu novo fôlego ao neoliberalismo no Brasil. O governo Chávez, na Venezuela, que contava com um grau de organização popular muito menor do que o existente no Brasil, mostrou ser possível enfrentar o imperialismo e as classes dominantes”, avaliam. Entre os sinais de desvio do governo Lula, é apontada a incapacidade de cumprir sequer com as metas de assentamentos para a reforma agrária e a aprovação de medidas de caráter liberal-conservador como a reforma da Previdência, a Lei de Falência, salário mínimo rebaixado, Programa de Parceria Público-Privado (PPP) e o ProUni.

O DEVER DA DISSIDÊNCIA Conforme o manifesto, considerar-se “em dissidência é um direito daqueles que construíram o PT como ferramenta de transformação social e defesa dos interesses de classe dos trabalhadores. Por isso, estar em dissidência é um dever”. E prossegue:

“Estar em dissidência é não ficar preso ao calendário eleitoral, não aceitar a chantagem de cargos, não se submeter a uma disciplina burocrática ou a maiorias constr s por métodos ilegítimos, ainda que por métodos duvidosos acabem transformadas em regimentais; e, fundamentalmente, considerar-se em dissidência é tornar pública nossa divergência com os rumos e a deformação que destrói hoje o PT”. Segundo os dissidentes internos do partido, a oposição aos rumos oficiais do PT significa: • Afirmar que o governo Lula não está em disputa pelas posições da classe trabalhadora; • Opor-se radicalmente às políticas do governo Lula que atacam os direitos dos trabalhadores, tais como reforma sindical, trabalhista e universitária; • Fazer a disputa da CUT através de sua base social, enfrentando a política de capitulação e subordinação ao governo da maioria da direção da Central; • Não disputar o PT pelos meios e métodos burocráticos e deformados pelo poder de máquinas institucionais e pela ingerência direta ou indireta do poder econômico do capital. • A construção de uma estratégia socialista, de uma transformação revolucionária da sociedade, denunciando a atual deformação que leva à inflexão conservadora no PT. • Não é simplesmente um equívoco político tático, mas uma inflexão estratégica que procura amoldar a classe trabalhadora aos limites da sociedade capitalista, como força ao mesmo tempo auxiliar e subalterna aos interesses do grande capital monopolista nacional e transnacional. • Organizar os trabalhadores como força autônoma e com independência de classe para que possam expressar seus próprios interesses e necessidades.


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NACIONAL RIO SÃO FRANCISCO

Fatos em foco

Transposição revolta população

Hamilton Octavio de Souza

Crime legalizado O Banco Santos, sob intervenção do BC, criou várias empresas de fachada, colocou “laranjas” para enganar a fiscalização, realizou inúmeras operações fraudulentas, montou esquemas em paraísos fiscais e operou uma infinidade de falcatruas. Funcionava como uma verdadeira universidade do estelionato e de crimes do colarinho branco. Seu dono, o banqueiro Edemar Cid Ferreira, festejado na sociedade paulistana, continua apostando que tudo vai acabar em pizza. Projeto polêmico – 1 As entidades das escolas privadas estão em ofensiva contra o anteprojeto da reforma do ensino superior, colocado em debate pelo Ministério da Educação. Os donos de escolas não aceitam os mecanismos de democratização interna e de avaliações pela sociedade e pelo MEC. Ao mesmo tempo, a imprensa comercial-burguesa começa a bater forte na proposta do governo, numa clara aliança em defesa dos interesses do capital.

Bernardo Alencar e Luís Brasilino de Belo Horizonte (MG) e da Redação

M

anifestações populares forçaram o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) a cancelar metade das audiências públicas que realizaria entre janeiro e fevereiro. Tais audiências são parte do processo de concessão do licenciamento ambiental para as obras de transposição do rio São Francisco. Milhares de pessoas compareceram às audiências do dia 31 de janeiro em Aracaju (SE), de 25 de janeiro em Belo Horizonte (MG), 2 de fevereiro em Maceió (AL) e 27 de janeiro em Salvador (BA) para protestar contra o empreendimento do governo federal que, a seu ver, beneficia apenas empreiteiras e fazendeiros do agronegócio. O licenciamento ambiental é a última instância que resta para aprovar o início das obras. “Se fosse um projeto normal, o Ibama estaria discutindo e negociando conosco, mas as audiências se tornaram uma mera formalidade, na ânsia do governo de aprovar a transposição”, afirma Luiz Carlos Fontes, secretário executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF). Ele conta que o Ministério da Integração Nacional, empreendedor do projeto, vem atropelando discussões, instâncias, competências e leis para transpor o Velho Chico. Nilvo

A lavadeira Suzana Santos, 69 anos, lava roupa na beira do rio São Francisco, em Santana de São Francisco (SE)

eletrônico www.manuelzao.ufmg.br. Segundo o estudo, para realizar a transposição de um rio, são necessários três requisitos: “uma bacia ou área com terras irrigáveis, mas com escassez de água (bacia receptora); outra bacia com muita água sobrando e sem terras para irrigação (bacia doadora); e uma relação custo-benefício aceitável para a transposição ser feita (por gravidade ou pequena altura de elevação, com transporte de menores distâncias etc)”. É necessário, também, haver aceitação social e ambiental.

Projeto polêmico – 2 Já as entidades de professores e estudantes, que defendem o ensino público e gratuito, criticam o anteprojeto porque ele não garante o aumento de verbas no orçamento da União, a ampliação das universidades públicas e o acesso e a democratização das instituições para as camadas mais pobres da população. Ou seja, não reverte o processo de privatização e nem impede o ingresso de capital estrangeiro na educação. Ação criminosa – 1 Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) comprovou que a grande maioria dos frigoríficos vende frangos congelados com excesso de água para ganhar no peso. A artimanha é feita inclusive pela Sadia, empresa do ministro do Desenvolvimento, Luís Furlan. Não se tem notícia de que algum empresário do setor tenha sido preso por roubar escandalosamente o consumidor brasileiro. Ação criminosa – 2 Pesquisa realizada pela Fundação Procon constatou que o material escolar exigido para alunos do ensino fundamental e do ensino médio está sendo vendido, este ano, com aumentos de até 311% em relação ao ano passado – quando a inflação oficial ficou em 7,6%. Não se tem notícia de nenhuma medida dos poderes públicos para impedir esse tipo de assalto, à luz do dia, por agente conhecido e com endereço determinado. Revisão histórica Ex-diretor do Grupo Pão de Açúcar, ex-ministro do governo FHC, o economista e professor da Fundação Getúlio Vargas, Luiz Carlos Bresser Pereira, causou surpresa com artigo publicado na Folha de S. Paulo, edição de 31 de janeiro, cheio de elogios ao Movimento Nacional dos Trabalhadores Sem Terra. Bresser afirma, entre outras coisas, o seguinte: “Essa organização em particular e os demais movimentos organizados de sem-terra são, na prática, as únicas grandes instituições que lutam por mais justiça neste Brasil”.

devido à falta de água”. Ele aponta o caráter demagógico do projeto, quando promete “acabar com a seca no Nordeste”. De acordo com o Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco, dos 360 metros cúbicos por segundo que podem ser alocados, 335 já estão destinados a outros projetos. Sobram, então, 25 m3/s para utilização no projeto de transposição.

DESPERDÍCIO Envolverde

Lucro espetacular As provas da concentração da renda são públicas: o Bradesco divulgou seu balanço de 2004, com lucro recorde de R$ 3,06 bilhões, o que representa aumento acima de 32% em relação ao lucro do ano anterior, que também já tinha batido recorde. Esse lucro contrasta com o achatamento da massa salarial e a queda no padrão de vida da maioria do povo, e também com o crescimento médio do PIB em torno dos 5%.

Protestos fazem Ibama cancelar audiências programadas para conceder licenciamento Eduardo Knapp/ Folha Imagem

Situação invejada O melhor negócio do mundo é especular com títulos do governo federal, já que eles são beneficiários das altas taxas de juros praticadas pelo Banco Central. Graças a essa generosa política do BC, só no ano de 2004 o governo Lula aumentou a dívida interna em R$ 80,5 bilhões. Assim, o governo coleta de toda a sociedade, especialmente dos trabalhadores que pagam impostos na fonte, e repassa para os banqueiros que especulam com os títulos públicos.

Contudo, no Eixo Norte, será necessário que a água seja transportada por mais de 2 mil quilômetros, através de montanhas, e com estimativas elevadas de evaporação e infiltração. Além da distância, será necessário que as águas sejam recalcadas, isto é, “elevadas” cerca de 165 metros, através de bombas. Como consta no trabalho das entidades, cada hectare irrigado do projeto do governo federal será responsável pela perda de um volume d’ água que possibilitaria a irrigação de, no mínimo, dois ou três hectares à margem do São Francisco. Apolo Heringer lembra que o projeto, estimado, inicialmente, em 5,5 bilhões de dólares, interessa ao agronegócio e às empreiteras. “O pequeno produtor, se algum dia for beneficiado pelo projeto de transposição, nunca terá dinheiro para arcar com os custos da irrigação, terá de ser subsidiado”, diz.

tram-se em constantes processos de evaporação. Estima-se que apenas 30% desse volume é utilizado para fins de abastecimento e irrigação”, completa. Outra maneira de lidar com a seca seria o “abastecimento difuso”, no qual a cisterna de placas é uma alternativa. “Na região, uma cisterna de 15 mil litros pode abastecer uma família de cinco pessoas, durante oito meses, sem chuvas”, argumenta. Há, também, possibilidade de aproveitamento das águas dos rios nordestinos. Segundo Suassuna, as descargas anuais desses rios resultam em infiltração da ordem de 58 bilhões de m3 nos aqüíferos . Utilizando 1/3 desse volume, seria possível abastecer toda a população nordestina, estimada em 47 milhões de pessoas: 200 litros por pessoa, por dia. E o volume ainda seria suficiente para irrigar 2 milhões de hectares, a uma taxa de 7 mil m3 por hectare, ao ano. “Água existe e o que falta é traçar uma política capaz de se utilizar melhor esse recurso”, conclui o especialista.

ALTO CUSTO

Pesquisadores criticam caráter “demagógico” do projeto

Silva, diretor de licenciamento ambiental do Ibama, informou, dia 3, que o cancelamento das audiências fez a sociedade perder a oportunidade de debater o projeto. Ou seja, “o órgão vai aprovar o projeto mesmo assim”, protesta Fontes. Por sua vez, Pedro Britto, ministro interino da Integração Nacional, reiterou que as obras começam em abril. “Se isso acontecer, podem esperar uma reação muito forte na bacia do São Francisco”, assegura Fontes. Agora, suas esperanças se voltam, mais uma vez, para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O secretário da CBHSF espera que a reação popular sensibilize o chefe da nação e ele tome uma decisão para proteger a população de uma construção que, segundo o manifesto “Transposição do rio São Francisco”, é inviável.

POR QUE NÃO? Produzido por 47 entidades, entre universidades federais, grupos ambientalistas e associações de moradores das cidades ribeirinhas, o documento está disponível no endereço

Porém, o documento destaca, que nenhum destes requisitos são atendidos no projeto do governo. E alerta: se um daqueles requisitos não estiver contemplado, já é o suficiente para que o projeto seja considerado uma anomalia. No manifesto sobre a transposição das águas do São Francisco são apresentadas três contradições básicas do projeto: é desnecessário, economicamente; socialmente inviável por seu alto custo ambiental; e prejudicial ao Nordeste e ao Brasil.

ABSURDOS Para Apolo Heringer, da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do projeto Manuelzão, a transposição “é absurda”. Ele salienta que “no vale do São Francisco ainda há terras que não são irrigadas”. Segundo Heringer, também um pesquisador do São Francisco, “só em Minas e na Bahia, com investimentos bem mais modestos do que os apresentados pelo governo federal, seria possível irrigar terras que, mesmo sendo de boa qualidade, não produzem nada, ou quase nada,

O metro cúbico da água transposta (e aí ainda não está incluída a energia elétrica consumida pelas bombas para alocação das águas) custará cerca de R$ 0,11. Para efeito de comparação, por exemplo no projeto de Petrolina (PE), também na bacia do São Francisco, o metro cúbico custa, em média, R$ 0,023. Heringer estima que o custo por hectare será 5 vezes maior nas regiões atendidas pela transposição. João Suassuna, engenheiro agrônomo e especialista em planejamento florestal pela Fundação Getúlio Vargas, considera que o governo deveria utilizar os recursos envolvidos no projeto de transposição na revitalização da bacia. “O projeto, da forma como está sendo apresentado, tem um forte teor eleitoreiro e irá beneficiar, única e exclusivamente, as grandes empreiteiras e os grandes empresários – usuários de irrigação e criadores de camarões”, analisa.

ALTERNATIVAS Para Suassuna, a solução estaria no aproveitamento das águas existentes em cada um dos Estados nordestinos. “O Nordeste possui a maior reserva de água de superfície em regiões semi-áridas do mundo. São 37 bilhões de m3 (metade no Ceará) que, atualmente, encon-

Para se viver legal No campo e na cidade Existem alternativas Mas, depende da vontade Política e de sentimento De sustentabilidade. E não há necessidade De fazer transposição Das águas do São Francisco Pra melhorar o sertão; Mas, pensar como fazer Sua revitalização. Pois é a concentração De água, riqueza e terra Desigualdade e injustiça Que atrasa e emperra A vida no semi-árido Onde o povo sofre e berra. Mas, se o povo que se ferra Se organiza pra lutar Com certeza seus direitos Conseguirão conquistar Liberdade e autonomia A vida vai melhorar.


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NACIONAL CONJUNTURA

A recuperação tem pés de barro A “taxa de precariedade” do mercado de trabalho e a perspectiva de novos aumentos dos juros ameaçam a economia Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

A

equipe econômica reafirmou, no mês passado, sob o protesto de analistas independentes, sindicatos de trabalhadores e empresas, as bases de sua política. Não só elevou os juros básicos para 17,75% ao ano, como anunciou que a elevação daquela taxa será mantida ao longo dos próximos meses. Ao mesmo tempo, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que ainda é precipitado o foguetório em torno da recuperação da economia, ameaçada, além dos juros altos, por índices de precariedade do trabalho nada desprezíveis. Em função desses dois fatores, pode-se afirmar que a tendência de reação da economia, hoje, se sustenta sobre bases frágeis, verdadeiros pés de barro, que poderão dificultar a continuidade do reaquecimento, ao contrário do que projetam os técnicos do Banco Central (BC). Entre outras justificativas, o BC antecipou que continuará aumentando os juros porque acredita que a atividade econômica caminha para uma fase de “superaquecimento”. No ponto de vista do BC, equivocado, segundo a empresa de consultoria GRC Visão, um crescimento das vendas acima da capacidade de produção das indústrias tenderia a estimular as empresas a aumentarem preços, criando mais inflação e carestia. Para a GRC Visão, no entanto, não há fatores concretos no horizonte que justifiquem a política de arrocho executada pela diretoria do BC.

ENCOLHIMENTO Os juros básicos se aplicam aos títulos negociados pelo governo com grandes grupos econômicos e financeiros e pessoas físicas de renda mais alta, e funcionam como piso para cálculos das taxas cobradas pelos bancos e financeiras nos empréstimos em geral. Seu aumento, dessa forma, tende a esfriar a economia como

O PERFIL DOS OCUPADOS (Participação, por categoria, no total de pessoas ocupadas) Categorias Pessoas que trabalham menos de 40 horas semanais Pessoas com rendimento inferior a um salário mínimo Trabalhadores por conta própria Empregados sem carteira Empregados com carteira

Dez/2002

Dez/2003

Dez/2004

3,4% 8,3% 19,5% 21,0% 46,2%

4,6% 12,1% 20,5% 22,6% 43,5%

3,9% 14,0% 19,8% 23,2% 43,8%

Fonte: IBGE

um todo, além de desestimular investimentos em novas fábricas e na expansão das indústrias existentes, desencorajando a compra de máquinas e equipamentos pelas empresas. Como a economia tende a crescer menos e os empréstimos para financiar investimentos ficam mais caros, as empresas engavetam seus planos de crescimento, à espera de melhores momentos. “A política de aumento (dos juros) repercute imediatamente sobre as demais taxas, tanto para pessoas físicas quanto jurídicas, induzindo à desaceleração da economia, conforme seria o desejo do governo”, observa o economista João Sabóia, especialista em mercado do trabalho e professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seus cálculos, cada aumento de um ponto percentual nos juros básicos provoca uma elevação de 0,95 pontos percentuais nas taxas dos empréstimos.

bastante preocupantes e mostram que as dificuldades continuam elevadas no mercado de trabalho”, afirma o economista. Considerado o total de pessoas economicamente ativas em dezembro de 2004, (perto de 21,6 milhões), cerca de 3,5% delas (750 mil) trabalhavam menos de 40 horas por semana, embora estivessem disponíveis para trabalhar mais, e 12,6% (2,72 milhões) re-

Trata-se do mesmo percentual observado em dezembro de 2003 e corresponde, em valores absolutos, a mais de 31% acima do total de desempregados, subocupados e sub-remunerados existentes em dezembro de 2002. Em números, este contingente saiu de 4,22 milhões de pessoas no final de 2002 para 5,45 milhões no ano seguinte, e 5,54 milhões no fim de 2004. Os dados refletem o que Sabóia clas-

A EVOLUÇÃO DO DESEMPREGO (Participação, por categoria, no total de pessoas ocupadas)

MERCADO PRECÁRIO Além dos juros, a evolução do mercado de trabalho nos últimos meses mostra que persistem riscos concretos à incipiente tendência de recuperação observada a partir do final de 2003. A taxa de desemprego caiu, de fato, para 9,6% em dezembro passado, a mais baixa desde 2002, quando o IBGE adotou novos critérios para medir a desocupação. Mas ainda é cedo para comemorações, aponta Sabóia. “Outros dados fornecidos pela pesquisa mensal de emprego do IBGE (em seis regiões metropolitanas) são

Fonte: IBGE

cebiam menos do que um salário mínimo por hora.

MILHÕES DE “SUBS” Como a taxa de desemprego ficou em 9,6%, pelos critérios adotados por Sabóia, nada menos do que 25,7% das pessoas em condições de trabalhar estavam desempregadas ou ocupando funções sub-remuneradas. Ou, ainda, trabalhando menos do que precisariam ou gostariam.

sifica como “taxa de precariedade” do mercado de trabalho, que traduz em números a insegurança que ainda existe neste mercado.

ABAIXO DO MÍNIMO Como o número de pessoas subocupadas diminuiu 13,4% entre 2003 e 2004, com baixa de 10% no total de desempregados, a evolução da “taxa de precariedade” foi influenciada por um crescimento mais do que proporcional

MERCADO DE TRABALHO FRÁGIL (Percentual de pessoas que trabalham menos de 40 horas semanais e ganham menos de um salário mínimo, mais o total de desempregados, em relação à população economicamente ativa) Fonte dos dados brutos: IBGE

das pessoas que recebem menos de um salário mínimo. No caso, houve um salto de 19,3% (de 2,28 milhões para 2,72 milhões), correspondendo a uma variação absoluta de mais 441 mil pessoas. Este último número representou nada menos do que 73% das novas ocupações criadas entre dezembro de 2003 e igual período do ano passado. Considerando apenas o número de pessoas ocupadas – num total 19,49 milhões em dezembro de 2004 (mais 3,2% sobre igual período do ano anterior) – praticamente 61% delas estavam subocupadas, sub-remuneradas, trabalhavam por conta própria ou, ainda, estavam contratadas sem carteira assinada. Subocupados, empregados por conta própria e sem carteira representavam praticamente 47% do total de ocupados, diante de 48% em dezembro de 2003 e de 44% um ano antes. Os contingente de empregados com carteira diminuiu de 46% do total de ocupados em dezembro de 2002, para 43,5% no ano seguinte, praticamente estacionaram nesse nível, chegando a 43,8% no final do ano passado (de 8,22 milhões para 8,54 milhões de pessoas). Na mesma comparação, o número de empregados sem carteira aumentou 6% (de 4,26 milhões para 4,52 milhões).

Renda achatada e maiores despesas com juros O maior número de contratações entre empregados com remuneração inferior ao salário mínimo explica, entre outras coisas, por que o rendimento médio da população ocupada continuou em baixa. Na média de 2004, houve perda de 0,8% no confronto com 2003: o rendimento médio encolheu de R$ 914,47 para R$ 907,84 – 13,3% abaixo da média registrada em 2002. A massa total de salários (ou seja, a soma de todos os salários e rendimentos em geral recebidos por assalariados e seus empregadores, servidores públicos e trabalhadores por conta própria) recuou 1,8% em dezembro, em relação a novembro, crescendo 5,2% em relação ao final de 2003. Mas, diante de dezembro de 2002, persistia uma perda de 4%. Na média de todo o ano de 2004, no entanto, o crescimento sobre 2003 limitou-se a 2,4% acima da inflação. A variação foi insuficiente para repor as perdas verificadas em 2003, quando a massa de rendimentos sofreu um tombo de 9%. Persistia uma perda equivalente a 6,5% entre 2002 e 2004, correspondendo a um enxugamento de quase R$ 15 bilhões na economia (ou quase 1% de todas as riquezas criadas pelo país no ano passado).

PERDAS Para que as perdas pudessem ser repostas, a economia teria que

SALÁRIOS EM QUEDA (Rendimento real da população ocupada, em R$)

do que a dupla Fazenda-Banco Central tiraram de circulação. O saldo registrado em 2004 foi quase 22,5% maior do que o resultado do ano anterior, quando se registrou uma “economia” de R$ 66,2 bilhões. Em todo o mundo, apenas cinco países conseguiram melhores resultados do que o Brasil.

JUROS

Fonte: IBGE

INJEÇÃO DE ÂNIMO (Evolução dos empréstimos para pessoas físicas, em bilhões de reais) Período

Operações de crédito

Dezembro/2002

76,165

Dezembro/2003

88,099

Dezembro/2004

113,563

Fonte: Banco Central

continuar crescendo em 2005. Mas a política econômica conspira contra o crescimento, ao manter os juros nos níveis mais altos do mundo e arrochar os gastos e investimentos públicos. No ano passado, o aperto produziu uma “economia” de R$ 81,1 bilhões – integralmente destinados ao pagamento de juros da dívida pública, o que

significa dizer que não vão criar um único emprego no lado real da economia. O Brasil superou até mesmo as exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI), que cobrava um superávit primário (receitas menos despesas do setor público, excluídos gastos com juros) de R$ 71,5 bilhões ou R$ 9,6 bilhões a menos

Com a renda ainda arrochada, o consumidor recorreu a bancos e financeiras para financiar suas compras. O saldo dos empréstimos para pessoas físicas, segundo dados do Banco Central (BC), aumentou 29% no ano passado, saltando de R$ 88,1 bilhões no final de 2003 para R$ 113,6 bilhões em dezembro de 2004 – quase 50% acima dos níveis de 2002. Esse incremento ajuda a explicar, embora parcialmente, o avanço das vendas de bens duráveis, de carros a DVDs, passando por celulares e televisores. Tomando as taxas médias de juros cobradas pelos bancos nos empréstimos para pessoas físicas, conforme cálculos do BC, as despesas com juros saíram de R$ 58,7 bilhões em 2003 para quase R$ 70 bilhões no ano seguinte, mais 19%.

FUTURO SOMBRIO Num exercício aproximado, as despesas mensais com juros teriam girado em torno de R$ 5,8

bilhões, o que corresponderia a quase um terço da massa de salários registrada nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre). O peso dos juros saiu de 28% nos dois anos anteriores, para 33% em 2004. Ou seja, o consumidor teve que reservar uma parcela maior de seu orçamento para pagar os juros das prestações do crediário, sobrando menos renda para outros tipos de despesas, o que tenderá a reduzir as chances de crescimento em 2005, se mantida a política de juros altos. As taxas cobradas de pessoas físicas, na verdade, até chegaram a apontar alguma acomodação no final do ano passado, passando de 63,4% para 61,5% ao ano, na média, influenciadas pelo crescimento dos empréstimos consignados em folha de pagamento (ou seja, descontados diretamente do salário dos empregados). Como esse tipo de financiamento tem custo mais baixo, seu crescimento influenciou na queda relativa das taxas. Daqui para frente, no entanto, com o terrorismo monetário insuflado pelo BC e os novos aumentos dos juros básicos já antecipados pelo mercado, a tendência é de encarecimento dos empréstimos para o consumidor pessoa física, complicando o futuro imediato da economia. (LVF)


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De 10 a 16 de fevereiro de 2005

NACIONAL POLÍTICA COMERCIAL

Países pobres importam mais do Brasil Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

N

o ano passado, enquanto as exportações brasileiras destinadas aos países mais desenvolvidos do planeta cresceram 25,5%, as vendas externas para as economias consideradas menos desenvolvidas experimentaram um salto de quase 40%, num ritmo claramente mais forte, segundo números divulgados pela Secretaria de Comércio Exterior (Secex), do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic). No balanço final, os países em fase de industrialização foram os maiores responsáveis pelo incremento das exportações brasileiras, contribuindo também para aliviar as pressões sobre as contas externas do país. Os dados concretos jogam por terra os (falsos) argumentos levantados por setores que se opõem crescentemente à política comercial desenvolvida até aqui pelo Itamaraty, lastreada na aproximação com países e mercados de menor nível de desenvolvimento. O Ministério de Relações Exteriores (MRE) retoma, agora, em um novo contexto, uma estratégia adotada entre o final dos anos 70 e o início da década de 80, sob pressão ferrenha das maiores potências mundiais, Estados Unidos à frente.

ALTERNATIVAS Naquela época, tratava-se de encontrar caminhos alternativos para promover as exportações, especialmente depois da quebra do México, no começo dos anos 80, que precipitou a crise de endividamento e conseqüente falta de dólares entre os países em desenvolvimento. Sem dólares para pagar suas importações, esses países – e o Brasil entre eles – criaram mecanismos de compensação e sistemas de troca, que dispensavam o uso direto da moeda estadunidense.

DESCENTRALIZAÇÃO O resultado foi uma aproximação maior com os países menos desenvolvidos, cuja participação na pauta brasileira de exportações se aproximou rapidamente dos 40%. Essa estratégia havia sido abandonada a partir do final da década de 80, quando foi reforçada a fatia dos países mais ricos nas exportações.

Jorge Araújo/ Folha Imagem

Exportações para a América Latina e o Oriente Médio crescem quase 40% e superam vendas para nações mais ricas

Taxas de exportações brasileiras aumentaram sobretudo em relação à Argentina, países africanos e do Oriente Médio

Desde a mudança de governo, no entanto, houve uma retomada da política comercial que prevaleceu nos anos anteriores a 1990. O propósito explícito dessa estratégia, embora não declarado com todas as letras, é exatamente buscar a diversificação da pauta de exportações e reduzir a dependência em relação aos países mais desenvolvidos – e daí, aparentemente, as origens da oposição e das críticas ao Itamaraty. Como no passado, são os mesmos porta-vozes que saem, neste momento, em ataque à política comercial adotada pelo MRE. Dizem eles que seria mais “lucrativo” estreitar os laços com os países mais ricos, já que seus mercados são reconhecidamente maiores e teriam, portanto, maior potencial a ser explorado pelas empresas exportadoras. Em outras palavras, as perspectivas de crescimento das exportações seriam ainda mais favoráveis do que o foram até aqui.

MUNDO REAL Mas não é nada disso o que mostram as estatísticas mais recentes da Secex. No mundo real,

Metas das transnacionais são decididas no exterior A diversificação de mercados pode evitar ou amenizar o impacto de decisões tomadas pela alta direção de empresas transnacionais, sobre as quais o governo brasileiro tem pouco ou nenhum poder de influência. Numa resolução anunciada no início de janeiro de 2005, a Volkswagen anunciou que suas fábricas brasileiras não vão mais exportar o modelo Golf para os Estados Unidos. O mercado estadunidense passará a ser abastecido pela matriz alemã já no próximo ano. A planta do grupo em São José dos Pinhais (PR), que produz o Golf, vai redesenhar o carro, que passará a ser exportado para a América Latina e China. Além disso, especula-se que o Brasil passaria a responder pelo abastecimento mundial de peças de reposição da linha Golf. A Volks também decidiu que a unidade de São José dos Pinhais deixará de produzir o Audi A3 a partir de 2006, pelo mesmo motivo: a fábrica alemã responderá pela produção da nova versão do modelo e assumirá as exportações para os EUA. Há outros exemplos na mesma linha. A fábrica brasileira da Mitsubishi, localizada em Catalão (GO), até há pouco, era literalmente obrigada a importar os motores das caminhonetes e picapes de luxo. Por contrato, o grupo brasileiro associado aos japoneses da Mitsubishi estavam impedidos de produzir e exportar motores no país. Em resumo, a abertura do mercado doméstico a capitais estrangeiros transfere o centro de decisões estratégicas do país para as mãos dos donos e executivos das transnacionais. A política comercial em vigor pode estimular o surgimento de novas empresas exportadoras, com interesse em abrir novos mercados, diversificando a pauta de exportações. Assim, quando a multinacional da vez decidir que suas empresas e fábricas no Brasil não poderão exportar, será possível compensar a perda, redirecionando vendas para outras empresas e mercados. (LVF)

Grande expansão no Caribe, África e América Central Países considerados pobres levaram as exportações brasileiras a registrar desempenho superior ao experimentado pelos mais ricos. Na região do Caribe, as vendas externas do Brasil saltaram 61,8% em comparação a 2003. Para a África, a elevação foi de 48,4%. Em 2004, os países da América Central compraram 57,6% a mais do Brasil. No lado mais rico do globo, as taxas de expansão foram bem mais modestas. A União Européia lidera, com variação de 30,9% e um quarto das exportações brasileiras totais. As vendas para o Canadá, Estados Unidos e Japão, pela ordem, cresceram 22,7%, 23,1% e 19,8%. O saldo comercial com os Estados Unidos, em outro exemplo, cresceu 23%, de 7,2 bilhões para 8,8 bilhões de dólares. Os países da Associação Latino Americana de Integração (Aladi), que inclui os membros do Mercosul, responderam por um superávit comercial quase 10% maior do que o registrado no mercado estadunidense. Nas transações comerciais com a Aladi, em 2004, o Brasil obteve um saldo comercial de 9,7 bilhões de dólares, nada menos do que 105,4% acima do superávit de 4,7 bilhões de dólares registrado em 2003. (LVF)

A DIVISÃO DOS MERCADOS (Exportações por grupos de países de destino, em milhões de dólares) Período

Países desenvolvidos

Participação (em % sobre total)

Demais países

Participação (em % sobre total)

2003

37.672

51,6

35.412

48,4

2004

47.269

49,0

49.206

51,0

25,5

-

39

-

Variação (%)

Fonte dos dados brutos: Secretaria de Comércio Exterior (Secex)

a política comercial em vigor, bem ou mal, vem colhendo resultados concretos. Em 2004, pela primeira vez, as exportações brasileiras para os países ricos foram superadas pelas vendas destinadas aos demais países, atingindo, respectivamente, 47,3 bilhões e 49,2 bilhões de dólares. Um ano antes, os países ricos importaram quase 37,7 bilhões de dólares em produtos brasileiros, acima dos 35,4 bilhões de dólares embarcados rumo aos países em desenvolvimento. A fatia de cada um daqueles blocos na pauta de exportações também foi invertida no ano passado, quando os menos desenvolvidos passaram a responder por 51% das vendas totais, frente a 49% para os mais ricos. Um ano antes, a participação dos mais desenvolvidos correspondia a praticamente 52%, com os menos industrializados dividindo os restantes 48%.

AMÉRICA LATINA Claramente, as taxas de aumento das exportações brasileiras foram bem mais generosas no lado menos desenvolvido do globo. Diante de um avanço médio de 32% para as vendas externas como um todo, houve avanços de 52,5% no caso dos países que formam a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), com destaque para a Argentina (+ 61,7%), de 48,4% para os países africanos e 31,4% para o Oriente Médio. Em contraposição, as exportações para

a União Européia, Estados Unidos, Canadá e Japão subiram em ritmo bem mais modesto (veja box). Sob bombardeio dos empresários, o Mercosul assegurou ao país uma receita de 8,9 bilhões de dólares, correspondendo a um incremento de 57,1% na comparação com 2003. A região foi responsável por um superávit comercial (exportações superiores a importações) de 2,52 bilhões de dólares, diante de um déficit (importações superiores a exportações) de 12,9 milhões em 2003. Naquele ano,

com a crise que arrasou a indústria argentina, as importações daquele país ainda não haviam se recuperado como agora, causando o déficit. As vendas para Aladi ocuparam, no ano passado, uma fatia bastante próxima da registrada pelos Estados Unidos. A diferença é que as tendências são inversas: enquanto a participação dos EUA encolheu de 23,1%, em 2003, para 21,1%, a participação da Aladi avançou, saindo de pouco menos de 17,7% para os atuais 20,4%.

QUEM LIDERA A PAUTA DAS EXPORTAÇÕES Vendas externas do Brasil, por região de destino, em milhões de dólares Regiões/países

2003

2004

Variação (%)

União Européia

18.461

24.160

+30,9

EUA

16.900

20.341

+20,4

Aladi

12.920

19.699

+52,5

- Mercosul

5.672

8.912

+57,1

- Argentina

4.561

7.373

+61,7

- Demais Aladi

7.248

10.787

+48,8

11.676

14.564

+24,7

- China

4.533

5.440

+20,0

- Japão

2.310

2.768

+19,8

Ásia (sem Japão)

9.365

11.796

+26,0

África

2.860

4.245

+48,4

Oriente Médio

2.806

3.687

+31,4

Europa Oriental

2.028

2.488

+22,7

Demais

5.433

7.291

+34,2

73.084

96.475

+32,0

Ásia

Total

Fonte: Secretaria de Comércio Exterior (Secex)


Ano 3 • número 102 • De 10 a 16 de fevereiro de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Nas ruas, contra a ocupação do Iraque M

obilizar milhões de pessoas em todo o mundo, nos dias 19 e 20 de março, para exigir o fim da ocupação do Iraque. Esta é a grande tarefa dos movimentos antiguerra, que aproveitaram o espaço do 5º Fórum Social Mundial (FSM) para articular a resistência global. Para o inglês Chris Nineham, da organização Stop The War Coalition, as manifestações deste ano têm grande chance de serem ainda maiores do que as de fevereiro de 2003, que reuniram cerca de 30 milhões de pessoas, em todo o mundo. “Quem acredita, agora, que a guerra foi por causa de armas de destruição em massa? Ou que foi feita para libertar o povo iraquiano? Quem acredita que, com a guerra, o mundo é um lugar mais seguro? Muitos acreditavam em tudo isso, mas, agora, não mais. Há mais pessoas contra a guerra, hoje, do que havia em fevereiro de 2003”, afirmou Nineham, durante o debate “Resistência e ocupação no Iraque: o império está perdendo?”. A mesa contou, ainda, com a presença da ativista inglesa Kate Hudson, da Campanha pelo Desarmamento Nuclear; do filipino Herbert Docena, da organização Focus on Global South, e da estadunidense Virginia Rodino, da Unit for Peace and Justice. Kate procurou ressaltar o papel que o FSM tem na construção da união necessária na luta contra as guerras imperialistas. “De certa maneira, o Fórum catalisa as forças necessárias para acabar com a dominação estadunidense no Iraque”, acredita.

DERROTA? Segundo os debatedores, outro ponto que estimulará as pessoas a irem para as ruas, em todo o mundo, são as evidências de que os Estados Unidos não têm mais controle da situação no Iraque, como demonstram os inúmeros casos de seqüestro de estrangeiros, torturas e a permanência dos altos índices de violência. Chris Nineham vai além. Ele acredita que não é exagero dizer que as forças militares chefiadas pelos Estados Unidos estão sendo militarmente vencidas no Iraque. “Há enormes áreas onde as tropas de coalizão simplesmente não entram mais”, explicou. Essa situação, entretanto, dificilmente provocaria um recuo estadunidense. “No Vietnã, mesmo quando os EUA reconheceram sua

derrota, continuaram a bombardear o Camboja, o Laos. O imperialismo não recua”, concluiu.

meço. É preciso, ainda, garantir que o povo iraquiano decida sobre seu próprio destino político e econômico, após o fim da guerra. “A invasão estadunidense está condenada a acabar. A pergunta que fica é como irão deixar o país. Se com helicópteros, fugindo, como no Vietnã, ou como fizeram nas Filipinas, na certeza de que tinham o completo controle sobre a economia do país e que todas as forças de resistência estavam destruídas. Milhares de pessoas querem que a ocupação termine, inclusive Bush, para que possa continuar a ocupação econômica e ideológica do Iraque, pois é isso que querem de verdade”, observou Herbert Docena.

UNIÃO Além da necessidade de lutar contra a ocupação do Iraque, o tom do debate foi fortemente marcado pelo discurso antiimperialista. “Temos que lembrar o que Che Guevara disse sobre criar um, dois, três Vietnãs. Ele também estava dizendo que todas as pessoas do mundo deveriam se unir contra o império”, afirmou Kate. Docena foi mais enfático. “Sempre dizemos que um outro mundo é possível. Mas só será possível se o império estadunidense entrar em colapso”, disse o ativista filipino, recordando a história do seu próprio país, que travou uma sangrenta guerra de independência contra os Estados Unidos, na primeira metade do século 20. Ele convocou todos para iniciar a construção de um outro mundo, protestando nas ruas nos dias 19 e 20 de março. “Vamos garantir que os iraquianos de hoje não sejam os filipinos de ontem”, completou. Finalizando o debate, os participantes enfatizaram que a batalha pelo fim da ocupação é apenas o co-

Seqüestrada jornalista italiana da Redação A jornalista italiana Giuliana Sgrena, correspondente no Iraque do jornal Il Manifesto, foi seqüestrada por um grupo de homens armados em Bagdá, segundo divulgou meios de comunicação italianos, dia 4. A repórter se dirigia junto com seu intérprete para a mesquita sunita de Al Kastl, na região da Universidade de Bagdá, quando vários homens armados detiveram o veículo no qual os dois viajavam e a levaram.

Giuliana trabalha há anos em assuntos relacionados ao Oriente Médio e foi correspondente no Afeganistão durante o conflito no país. Trata-se do terceiro seqüestro de uma italiana no Iraque, depois que as voluntárias Simona Pari e Simona Torreta foram capturadas em setembro de 2004 e libertadas três semanas depois. Movimentos sociais e pacifistas pressionam o premiê Silvio Berlusconi pela retirada das tropas do Iraque. (Com Agências Internacionais)

Robson Oliveira

Dafne Melo da Redação

Grito dos Excluídos

Movimentos anti-guerra em todo o mundo se unem para mobilizar milhões de pessoas em protestos contra a invasão

Eleições não passaram de uma encenação Realizada no dia 30 de janeiro, as eleições iraquianas foram fortemente criticadas por ativistas antiguerra durante o Fórum Social Mundial. “Os Estados Unidos vão argumentar com as eleições e usarão a imagem da democracia como propaganda para criminalizar a resistência e dificultar a ação dos movimentos antiguerra. Nesse contexto, um dos nossos papéis é desmentir o que será dito pela imprensa”, afirmou o inglês Chris Nineham, da Stop The War Coalition. Embora os Estados Unidos vendam a idéia de uma eleição com forte participação e feita em clima de normalidade, diversos fatores colocam a legitimidade do pleito em dúvida, como o boicote liderado pelos sunitas e a forte onda de violência no período. De 30 de janeiro a 2 de fevereiro, houve 52 mortes, entre soldados estadunidenses, civis e policiais iraquianos. “Temos que explicar que o que eles chamam

de eleição, é algo que está sendo feito com uma forte pressão, com tropas estadunidenses nas ruas coagindo a população a votar”, completou Nineham.

O PROCESSO O pleito destinou-se à escolha dos 275 integrantes de uma assembléia nacional transitória com poderes legislativos e que elegerá um governo. Primeiro, escolherá entre seus membros um presidente e dois deputados, os quais, por sua vez, vão eleger um primeiro-ministro. A assembléia também deve elaborar o projeto de uma nova constituição que será submetida a consulta popular antes do dia 15 de outubro. Aprovada a constituição, devem ser convocadas eleições para antes de 15 de dezembro. Do contrário, antes dessa data deve ser convocada nova eleição para escolher uma nova assembléia, e se repetir todo o processo. (DM com informações da Agência Envolverde, www.envolverde.com.br)

Irã, Venezuela, Haiti, Cuba... Realizada no mesmo momento em que aconteciam as eleições no Iraque, a Assembléia Antiguerra, no dia 30 de janeiro, deixou de lado outros conflitos e guerras no mundo e centralizou o debate na questão iraquiana. A jornalista estadunidense Medea Benjamin, da organização Unit For Peace and Justice, abriu o evento se desculpando. “Hoje, o dia da eleição no Iraque, é um dia de constrangimento em um tempo de constrangimento para nós, cidadãos dos Estados Unidos. Gostaria de pedir desculpas por tantas mortes, torturas, abusos e pelo constante indevido uso da palavra democracia. Por uma eleição que teve sua ilegitimidade protegida pelos soldados estadunidenses. Gostaria de reconhecer uma certa vergonha por não termos sido capazes de evitar essa ocupação e tanto sofrimento. Mas que toda essa infâmia possa, por

outro lado, nos acenar com a proximidade do dia do fim do império estadunidense”, afirmou. No final, a assembléia aprovou a realização de duas campanhas internacionais. Uma, contra as bases militares estadunidenses em Guantánamo (Cuba), outra, contra o muro do apartheid na Palestina. Boicotes aos produtos israelenses e às corporações e instituições financeiras que ocuparam economicamente o Iraque também foram aprovados.

OUTROS CONFLITOS Uma possível invasão do Irã foi abordada em diferentes espaços do Fórum. Para Chris Nineham, “a invasão não é mais uma possibilidade, mas algo que as forças armadas dos EUA estão começando a planejar”, disse o ativista, salientando que o movimento antiguerra deverá prestar mais atenção a essa questão.

Já o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein opinou em direção contrária. Ele acha difícil ocorrer a invasão do Irã, devido à grande resistência que Bush encontrará no Congresso estadunidense, até mesmo de republicanos, dada a situação caótica em que se encontra o Iraque. Participantes da assembléia mencionaram, ainda, o quadro em países da América Latina como Venezuela, Colômbia, Haiti e Cuba. “A situação em todos esses países exige cuidado. Mas avaliamos que o Iraque é uma questão central para o Pentágono e a Casa Branca. Então, é uma questão central para nós também. Se conseguirmos acabar com a ocupação no Iraque, acreditamos que os Estados Unidos terão que repensar suas estratégias militares”, disse Chris Nineham. (DM com informações da Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.uol.com.br)


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De 10 a 16 de fevereiro de 2005

AMÉRICA LATINA ARQUIVOS DAS DITADURAS

A hora de investigar os anos de chumbo Tatiana Merlino da Redação

E

specialistas do Brasil, Uruguai e Argentina se reuniram durante o 5º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, para discutir a abertura e o acesso aos arquivos das ditaduras militares na América Latina, e reafirmar a necessidade de saber a verdade, pedir justiça e, de uma vez por todas, passar a limpo os anos de chumbo da América Latina. “O paradeiro dos desaparecidos, as circunstâncias em que militantes foram assassinados e a punição dos culpados são questões que ficaram pendentes após as transições democráticas desses países”, diz Laura Balsamo, representante da organização Servicio Paz y Justicia do Uruguai. Ela está convicta que agora chegou a vez do seu país avançar nas investigações sobre o destino dos presos-desaparecidos durante a ditadura militar (1973-1985). De acordo com Laura, as organizações de direitos humanos acreditam firmemente que o próximo presidente, Tabaré Vázquez, cumprirá a promessa de discutir a questão. No dia 1º de março, o Uruguai completará 20 anos de vida democrática, desde o fim da ditadura. No entanto, nenhum militar foi julgado por tortura e assassinato contra opositores. Todos os processos abertos contra militares e policiais por violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura foram paralisados em 1986, quando foi aprovada a Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado, chamada de “lei de impunidade” pelos defensores de direitos humanos.

Paulo Pereira Lima

Organizações querem, de uma vez por todas, passar a limpo os anos escuros dos regimes ditatoriais do continente beas-data (veja glossário) são obstáculos para a divulgação dos documentos. “Também há muita resistência por parte da polícia e das forças armadas”.

MESMA ESTRUTURA

Movimentos pelos direitos humanos em diversos países da América Latina pressionam seus governos para passarem a limpo as ditaduras militares

Essa legislação foi aprovada sob pressão militar e ratificada em um referendo realizado em abril de 1989. Entidades de direitos humanos organizaram uma coleta de assinaturas para fazer um referendo contra a lei, mas não tiveram sucesso. “A maioria da população, ignorante, apoiou tal legislação, com medo de um novo golpe militar”, lembra Laura. Mesmo se as esperanças dos ativistas se concretizarem, e Vázquez investigar o destino dos desaparecidos, os responsáveis não poderão ser julgados, em função da Lei de Caducidade. “E o novo governo não falou em revisar a legislação. Mesmo assim, achamos que ele

Militar. O presidente argentino também entregou a organizações humanitárias os 17 hectares do mais emblemático centro de detenção, tortura e assassinato do regime, a Escola de Mecânica da Marinha. Mesmo contando com o apoio do governo para a abertura dos arquivos da ditadura Argentina (de 1976 a 1983), ainda há muito a fazer, avalia Patrícia Funes, da Comisión Provincial por la Memoria. “Há um decreto de setembro de 1983 que mandou queimar os arquivos da ditadura, mas nós não acreditamos que tenham sido totalmente queimados”, diz. De acordo com ela, a falta de uma lei de arquivos e de há-

fará transformações importantes”, afirma ela.

REPARAÇÃO O primeiro a remexer nas feridas abertas da América Latina, foi o presidente argentino Néstor Kirchner, que determinou a passagem para a reserva dos altos chefes militares que tiveram atuação durante a ditadura. Foram 27 generais, 13 almirantes e 12 brigadeiros. Além disso, em nome do Estado, Kirchner pediu perdão pelo silêncio oficial diante das atrocidades cometidas ao longo da ditadura, e ordenou que fossem retirados os retratos dos ex-ditadores Jorge Videla e Reynaldo Bignone do Colégio

O que também preocupa os ativistas é que, mesmo depois da democratização, alguns ex-participantes do Estado repressor concorrem a cargos públicos ou continuam atuando nas mesmas funções. “Na Argentina, o governador da província de Tucumán foi torturador, e foi eleito pelo voto popular”, alerta Patrícia. Além disso, subsiste a estrutura de inteligência do período militar.“Ela foi mantida a mesma até 1998, passados 15 anos de governo democrático”, argumenta. “Isso é uma herança do autoritarismo da ditadura”, comenta. A violência policial também continua existindo, lembra a uruguaia Laura Balsamo. “Só que agora os torturados não são os militantes, mas os presos comuns. Isso exemplifica como parte da estrutura repressiva permanece intacta”. Tanto Laura quanto Patrícia destacam a importância da atuação das entidades de familiares de ex-presos políticos e desaparecidos para pressionar tanto pela abertura dos arquivos, quanto na denúncia das violações que continuam existindo, “muitas vezes praticadas pelas mesmas pessoas”. Lei de arquivos - instrumento legal que define critérios para a gestão e acesso aos documentos públicos. Lei de hábeas-data - instrumento jurídico contra abusos de poder por parte de servidores ou agentes públicos.

Folha Imagem

Acadêmicos defendem regime Pinochet Para preservar a memória argentina Apesar de ainda não ter esclarecido o paradeiro dos desaparecidos políticos da ditadura, o governo argentino criou a Comisión Provincial por la Memoria, organismo público do qual fazem parte representantes de direitos humanos, sindicalistas, religiosos e universitários. A Comisión funciona no antigo prédio da inteligência da polícia de Buenos Aires. O órgão foi criado para “preservar e transmitir às futuras gerações a história do autoritarismo no país, especialmente o terrorismo de Estado que houve durante a década de 70”. explica Patrícia Funes, integrante da comissão. A organização atua em três áreas de trabalho: comunicação e cultura, da qual faz parte um museu de arte e memória, investigação e documentação (que contém todo o arquivo da ex-direção de inteligência da capital argentina).

O Informe Valech, documento divulgado no final de 2004 com o testemunho de 28 mil vítimas de prisão política e tortura ao longo dos 17 anos da ditadura no Chile (de 1973 a 1990) vem gerando polêmica entre acadêmicos chilenos. De um lado, especialistas e acadêmicos conservadores colocam em dúvida os testemunhos; de outro, historiadores e acadêmicos rebatem essas declarações. Os críticos do Informe chamam os opositores do regime ditatorial de terroristas. E os defensores dizem que a violência política exercida pelas esferas do Estado é inaceitável. O relatório questiona o papel desempenhado pelos meios de comunicação favoráveis ao regime militar que, entre outras coisas, omitiram as graves violações aos direitos humanos de dezenas de milhares de pessoas. O documento também critica profissionais de imprensa aliados da ditadura, que

trabalharam de mãos dadas com os organismos da repressão. Os conservadores reconhecem a gravidade dos atos denunciados e a necessidade de evitar “toda ação dessa natureza”, mas declaram que não há como comprovar a veracidade dos testemunhos. “Como historiadores, valorizamos o informe como fonte, mas devemos ser muito cautelosos no uso de cada um dos dados específicos”, observam. Comentando um dos capítulos do Informe, eles dizem que relata um conjunto de falsidades, contradições e afirmações infundadas, acompanhadas de graves omissões.

ESQUECER JAMAIS A contestação de outros intelectuais foi imediata. Defendendo o documento, eles afirmam que “a memória social, pela verdade, justiça e democracia luta contra as estratégias pró-esquecimento”. O regime de Augusto Pinochet foi um

dos mais sangrentos e arbitrários da América Latina, cuja política de Estado se assentava no extermínio sistemático e organizado de seus opositores. No Informe Valech, além dos testemunhos das vítimas das ações repressivas da ditadura, há documentos do aparelho repressivo e político do regime. Os extratos de sentenças de tribunais militares mostram como o regime violou os tratados internacionais. Segundo os opositores da ditadura, o Valech diz os nomes e informa as localizações dos centros de detenção e também traz os nomes dos 30 mil homens e mulheres, jovens, crianças e velhos que sofreram detenção arbitrária, tortura e humilhações. “O Informe Valech, nos permite, hoje, obter justiça social e cidadã”. O Informe Valech completo pode ser lido no endereço internet: www.servicios.gov.cl/comision/

Folha Imagem

Protesto de estudantes paulistas contra a tortura e os anos de chumbo da ditadura no Brasil

Em dezembro de 2003, o presidente Néstor Kirchner criou, ainda, por decreto, o Arquivo Nacional da Memória. Subordinado ao Ministério de Justiça, Segurança e Direitos Humanos, o Arquivo obtém, classifica e guarda documentos relativos a violações aos direitos humanos, além de procurá-los em toda a esfera pública. Segundo seu decreto de criação, o presidente do órgão, ou funcionários por ele designados, têm acesso direto aos arquivos dos organismos integrantes da administração centralizada e descentralizada do Poder Executivo nacional, incluindo as Forças Armadas e de segurança. De acordo com o secretário executivo da instituição, Carlos Lafforgue, o objetivo do Arquivo é “recuperar a dignidade do povo argentino, manter viva a história contemporânea e fomentar a luta contra a impunidade”.(T.M.)

Ditadura cerceou liberdades de expressão e perseguiu opositores ao regime


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AMÉRICA LATINA COLÔMBIA

Cúpula atinge o ponto fraco de Uribe da Redação

O

governo da Colômbia precisa reconhecer o conflito que opõe as Forças Armadas e grupos revolucionários. A exigência é de reunião de cúpula, realizada dias 2 a 4, na cidade colombiana de Cartagena, com a presença de representantes de 24 países. Este reconhecimento é a principal reivindicação de diversas organizações que lutam em defesa dos direitos humanos, e de alguns participantes do encontro. O principal objetivo da reunião foi avaliar as políticas do governo colombiano em relação a seus compromissos com países da União Européia (UE). Representantes da UE deram contribuições financeiras para estimular o crescimento econômico e o desenvolvimento social da Colômbia. E esperam retorno. As organizações reivindicam que a entrega de novos recursos ao país latino-americano obedeça a condições que favoreçam o processo de paz e o diálogo. Para eles, a UE precisa ter mais participação nesse sentido. Os dois pontos – economia e desenvolvimento social – abrangem a freqüente questão dos conflitos armados que ocorrem há décadas na Colômbia e que, segundo as organizações de direitos humanos, não são levados em conta pelo presidente Álvaro Uribe.

Fredy Amariles/ AFP

Organizações pressionam financiadores do governo para que reconheça a existência de conflito armado no país

Exército colombiano recupera corpos de guerrilheiros das Farcs, mortos em combate

Segundo divulgado pela imprensa local, o fato de o presidente Uribe negar a existência de um conflito armado – que prefere chamar de “uma ameaça terrorista” – tem gerado resistência em alguns financiadores. Contudo, porta-vozes da reunião informaram que a cúpula foi uma oportunidade para Uribe explicar a situação geral e real sobre a luta contra o narcotráfico e o terrorismo. Há décadas, a Colômbia vive uma intensa crise envolvendo grupos armados como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farcs-EP) que, segundo estimativas, conta com mais de 17 mil combatentes; e o Exército de Libertação Nacional (ELN), além de grupos paramilitares, supostamente financiados pelo governo.(com agências internacionais)

EXPLICAÇÕES Quanto ao processo de paz que o governo leva à frente com os grupos paramilitares, em dois recentes comunicados (um de dezembro e outro de janeiro), a União Européia expressou que o respaldo para esse assunto somente seria possível com a criação de um projeto jurídico, sobretudo em matéria penal. Mas, até o momento, o governo Uribe não criou a citada regulamentação.

EUA ignoram erro do governo da Redação Ao contrário do que alardeia aos quatro ventos o presidente colombiano Álvaro Uribe, seu plano de desmilitarização do país é um grande fracasso. A avaliação é de Raúl Reyes, chefe da Comissão Internacional das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs). “Os Estados Unidos, que apóiam o governo colombiano, não reconhecem o erro de seu aliado; ao contrário, o protege de todas as formas”, disse o líder em entrevista divulgada pela Agência Alternativa de Notícias Nova Colômbia. Sobre o caso do guerrilheiro Rodrigo Granda, que gerou a crise política entre Colômbia e Venezuela, Reyes explica que se tratou de um seqüestro. “Seqüestraram Granda em pleno centro de Caracas e o levaram

até a cidade de Cúcuta (na Colômbia). A polícia colombiana resolveu dizer que ele foi capturado em Cúcuta, quando regressava da Venezuela. Isso é absolutamente falso, temos todas as provas. A inteligência venezuelana já tem as provas em mãos e é por isso que o presidente Hugo Chávez reclama, com todo direito, que a soberania de seus país foi violada”, disse.

PLANO PATRIOTA Para o dirigente guerrilheiro, o apoio dos Estados Unidos é algo evidente, pois usa a política de antiterrorismo para violar a soberania dos países da América Latina. Reyes esclarece que os prisioneiros em mãos das Farcs só serão libertados quando for assinado um acordo que possibilite a liberdade de todos os

membros das Farcs, que estão nas mãos do Estado colombiano. Sobre o Plano Patriota, Reyes considera que se trata de mais uma estratégia do governo colombiano para tentar concretizar a desmilitarização do país. “Consideramos que este plano é um fracasso, para Uribe e para George W. Bush, já que não conseguirão debilitar as Farcs, nem muito menos golpeá-las para destruí-las, como é o objetivo desse plano sinistro.” Segundo ele, “este plano é uma extensão do Plano Colômbia, com o qual querem não somente atacar a insurgência colombiana, mas também posicionar os Estados Unidos na região, para que se apropriem de toda a riqueza da Amazônia e de sua biodiversidade”. (Com Adital, www.adital.org.br)

CARACAS 2006

O Fórum Social Mundial, em 2006, vai ser descentralizado, ocorrendo em três continentes. O evento, nas Américas, será em Caracas, Venezuela. Liderado pelo presidente Hugo Chávez, o país passa por um processo de amplas mudanças sociais, conhecido como revolução bolivariana, no qual as políticas públicas se destinam a favorecer as camadas mais pobres da população. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, responsável pela organização do Fórum de 2006, explica o casamento entre o evento e a revolução da Venezuela: as propostas que surgirem do encontro, além de ter mais impacto e ressonância, podem ser implementadas pelo governo do país. Isto porque, segundo Lander, “a Venezuela pretende desenvolver um modelo justo de sociedade, e muitas vezes depende da formulação de estratégias e conhecimentos que surgem de encontros sociais”. Brasil de Fato – O próximo Fórum Social Mundial vai ocorrer, simultaneamente, em três continentes. Nas Américas, está previsto para ser na Venezuela. Qual vai ser a diferença do evento em relação ao de 2005? Edgardo Lander – Inevitavelmente, vai haver um casamento entre o espírito do Fórum e a dinâmica de mudanças que estão ocorren-

Delegação venezuelana participa da marcha de abertura do Fórum de Porto Alegre

do na Venezuela. Vai ser mantido seu caráter multitemático, característica fundamental de todos os encontros, destacando a questão da guerra, cultura e livre comércio, mas também vai haver uma discussão da experiência revolucionária venezuelana. A escolha de Caracas como sede do próximo Fórum marca a solidariedade dos organizadores e participantes do encontro com o processo político que vivemos no país. BF – Os organizadores do Fórum sempre mostraram apreensão para o envolvimento direto do evento com partidos políticos e governos. Houve essa discussão na escolha de Caracas como sede do próximo encontro? Lander – Primeiramente, vale destacar as convergências claras

entre o governo venezuelano e o espírito do Fórum, como a luta contra a sociedade capitalista, o neoliberalismo, a exploração dos trabalhadores, a sociedade patriarcal, o pensamento único etc. Dito isso, algumas pessoas realmente se mostraram apreensivas quanto à possibilidade de o Fórum ser utilizado para promoção de partidos e governos. No final, houve consenso de que o casamento entre a revolução bolivariana da Venezuela e o espírito do encontro seria positivo, pois permitiria o contato dos participantes com uma experiência social que muito se liga às discussões que surgem no Fórum. BF – No balanço, o Fórum tem tentado cada vez mais se tornar um espaço do qual surgem pro-

postas claras e práticas para o mundo. Esse aspecto vai ser potencializado em Caracas? Lander – Na Venezuela, qualquer proposta que surja do Fórum pode ter mais ressonância e impacto. Porém, ressalto que o espírito do Fórum 2006 não é as pessoas virem aprender o jeito que se deve ser e lutar na Venezuela. É bem o contrário: ensinar mais ao governo e povo venezuelanos, trocar mais experiências e conhecimento. Será a oportunidade de pôr os movimentos sociais e setores populares venezuelanos em contato com a riqueza da dinâmica do Fórum. Não esperamos só elogios ao processo de mudança política da Venezuela, as críticas vão nos fazer aprender mais. BF – É talvez cedo para responder, mas as propostas que surgirem do Fórum 2006 podem influenciar as políticas do governo venezuelano? Lander – Sem dúvida. Muitas propostas de Chávez foram criadas em eventos da sociedade civil, nacional ou internacional. É o caso da Alternativa Bolivariana para as Américas e o Caribe (Alba), que foi discutida em um encontro de movimentos sociais e intelectuais em Caracas. E na luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), com a formulação de uma outra proposta de integração, o governo venezuelano se tornou porta-voz da sociedade civil organizada. Em uma pers-

Gilberto Maringoni

João Alexandre Peschanski de Porto Alegre (RS)

Douglas Mansur

Fórum descentralizado vai alimentar a revolução

Quem é Integrante do Conselho Organizador do Fórum Social Mundial, o sociólogo Edgardo Lander será um dos responsáveis pela coordenação da edição do evento que será realizado em Caracas, em janeiro de 2006. Além de professor na Universidade Central da Venezuela, onde dá aula sobre o desenvolvimento do continente latinoamericano, Lander é porta-voz do governo venezuelano nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). pectiva mais ampla, a Venezuela pretende desenvolver um modelo justo de sociedade, e muitas vezes depende da formulação de estratégias e conhecimentos que surgem de encontros sociais. Haverá assim o casamento entre as propostas sociais e as políticas públicas.



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NACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Cresce a luta pelo direito à água Luís Brasilino da Redação

“F

oi melhor do que o esperado”, comemora Jocélio Drummond, representante brasileiro da Internacional de Serviços Públicos (ISP), sobre os resultados das reuniões sobre o direito à água no 5º Fórum Social Mundial (FSM). Na sua opinião, é muito difícil, pela diversidade de organizações, pensamentos, métodos e campos de atuação, fechar uma plataforma comum a todos os movimentos ligados à questão da água presentes em Porto Alegre (RS), entre 26 e 31 de janeiro. Por isso, a aprovação de uma agenda comum foi uma surpresa que, no fim, pareceu até fácil. As organizações foram chegando com propostas consensuais e com muita clareza dos pontos centrais. O que diferenciava um movimento do outro era apenas a ênfase maior ou menor dada a certos aspectos. Os ambientalistas chamaram atenção para os recursos disponíveis na natureza; os camponeses para o acesso à água no campo; os sindicatos para o saneamento das cidades e assim por diante. “Uma proposta completou a outra e, da diversidade, se formou o todo”, resume Drummond. Com clareza sobre os inimigos e quais as bandeiras a defender, movimentos, sindicatos, entidades e organizações não governamentais (ONGs) se reuniram, dia 31 de janeiro, no debate “Estratégias para aglutinação das redes e organizações em uma plataforma

Marcello Casal Jr./ABR

Defensores da água como direito humano constroem plataforma comum para globalizar resistência à privatização *Combater todas as modalidades de privatização dos recursos hídricos, como a venda de ações de empresas públicas, o engarrafamento da água por companhias transnacionais e as Parcerias Público Privadas (PPPs). *Ampliar alianças e construir um grande movimento mundial em defesa da água.

OS INIMIGOS

Cresce a resistência à privatização da água em diversos países. Uruguai e Bolívia servem de exemplo

global de água”. Essa plataforma se comprometeu a defender e divulgar dez pontos, todos aprovados por unanimidade.

PLATAFORMA *Pressionar a Organização dos Nações Unidas (ONU) para declarar o acesso à água como direito humano, assim como a saúde. Assim, seria possível elaborar políticas globais para os recursos hídricos. *Se a água for considerada direito humano, ela não deve ser regida no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), nem fazer parte de acordos comerciais, uma vez que os direitos

humanos não podem ser tratados como mercadoria. *Combater e denunciar a política do Banco Mundial (Bird) segundo a qual a água deve ser privatizada como forma de ampliar o acesso a ela. A experiência já demonstrou o contrário – onde a água passou a ser controlada por interesses particulares, como na Bolívia (veja matéria abaixo) e na Argentina, a população mais necessitada passou a enfrentar dificuldades para obtê-la. *Defender as empresas públicas de água que oferecem serviços de qualidade – mostrar como elas são mais eficientes, têm tarifas mais baixas, entre outras vantagens.

Jorge Pereira Filho, de Porto Alegre (RS) Um seminário no Fórum Social Mundial reuniu, na tarde acalorada de 29 de janeiro, dois exemplos de resistência latino-americana contra a privatização da água. Representantes de organizações uruguaias e bolivianas discutiram, ao lado do escritor Eduardo Galeano, as estratégias dos povos para defender seus recursos naturais. Em setembro de 2004, no mesmo dia em que o esquerdista Tabaré Vázquez foi eleito presidente uruguaio, 60% dos cidadãos daquele “pequeno país” (nas palavras de Galeano) vetaram a privatização da água. Votaram para incluir uma referência na Constituição confirmando que a “água é um recurso essencial para a vida” e que o seu acesso e ao saneamento são “direitos humanos fundamentais”. Foi a primeira vez no mundo em que os cidadãos de um país decidiram, por plebiscito, a forma de uso dos recursos hídricos. “O povo uruguaio confirmou que a água é um direito de todos, não um privilégio de poucos”, assinalou Galeano. O escritor uruguaio lembrou que essa não foi a primeira vez que o seu país recorreu a plebiscitos para decidir sobre a privatização. “É a democracia diretamente exercida. Em 1992, 72% disseram não à venda das empresas de serviços públicos”, recordou. Segundo ele, os conglomerados de mídia boicotaram as duas experiências e não as divulgaram com destaque. “Aos meios de comunicação conservadores não interessam essas notícias porque contradizem a tradição de impotência estatal na América Latina”, analisa Galeano.

TRANSNACIONAIS O plebiscito no Uruguai foi acompanhado de perto pelas transnacionais do setor, como a francesa Suez e a suíça Nestlé, que contaram

Marcello Casal Jr./ABR

Resistências à privatização

*Promover campanha contra as transnacionais de água, informando sobre suas limitações no fornecimento para a população mais carente. Nesse caso, concentrar esforços contra a francesa Suez, a maior do mundo no setor. *Prestar atenção especial às mulheres e comunidades mais atingidas, como os camponeses, por exemplo. *Proteger a água disponível na natureza: o Aqüífero Guarani, os glaciares etc. *Demonstrar as contradições dos países comprometidos com as Metas do Milênio e, ao mesmo tempo, favoráveis à privatização da água.

Apenas uma ponta do iceberg Usando o argumento de que os países em desenvolvimento não têm capacidade de oferecer água de qualidade, o grupo Nestlé, da Suiça, lançou em 1998, no Paquistão, a “Pure Life”, água engarrafada, purificada e adicionada de sais. No começo de 2000, o grupo obteve licença para construir uma fábrica da “Pure Life” em São Lourenço (MG), numa área que adquiriu nos anos 90, quando assumiu o controle acionário do grupo Perrier Vittel. A estância mineral da cidade é famosa por suas nove fontes de água, todas de características diversas. Rapidamente, uma dessas fontes, a magnesiana, secou. Pior,

Movimentos defendem o acesso à água como direito humano, assim como a saúde

com todo o apoio da mídia conservadora favorável à privatização. De outro lado, houve o trabalho militante da articulação de dezenas de organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais reunidos na Comissão Nacional em Defesa da Água e da Vida. Nesse debate, foi decisiva a experiência da província de Maldonado, que tinha privatizado seus serviços de água e saneamento. “Não trabalhamos com o povo a idéia de que faltaria água depois da privatização, mas, sim, divulgamos os impactos dessa trágica experiência de Maldo-

nado”, explica Adriana Marquisio, representante do sindicato da estatal Obras Sanitárias do Estado (OSE) e integrante da Comissão.

PROTESTOS Em janeiro de 2002, por exemplo, a OSE foi obrigada a recomendar aos cidadãos da província que fervessem a água porque havia níveis alarmantes de coliformes fecais. “Mostramos apenas como a privatização trouxe serviços mais caros, demissão de trabalhadores do setor e água de pior qualidade”, conta Adriana.

“Nosso principal obstáculo é a transnacional Suez que, por meio do lobby do governo francês, consegue uma correlação de forças muito favorável na União Européia”, relata Drummond. Em segundo lugar, estão o Bird e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Essas instituições, explica, pressionam as nações para considerar a privatização da água como alternativa, e para abrir seus mercados à exploração comercial da água. Por outro lado, exigem dos países a manutenção de um alto superávit primário, o que impede o poder público de investir pesado nas suas estatais. Com o mercado aberto e as empresas públicas prejudicadas pela falta de recursos, as transnacionais têm caminho livre para comprar as estatais a baixo custo e dominar o mercado de fornecimento de água. “Mudar esta lógica é nossa principal luta. Para isso, vamos divulgar a plataforma, pois muitas pessoas e entidades não estiveram no Fórum e, quando tomarem conhecimento das nossas propostas, vão subscrevê-las”, garante Jocélio Drummond.

Na Bolívia, o caminho do enfrentamento foi outro: o dos protestos populares. Mobilizações encampadas por uma ampla coalizão de setores sociais (sindicatos, camponeses, estudantes) expulsaram a transnacional francesa Suez da região de Cochabamba. Mais do que isso, obrigaram o Estado a adotar uma lei definindo a a água como um direito coletivo. “A luta pela água é a luta por um patrimônio comum. É pela vida e por um novo mundo. Essa é a nossa mensagem”, afirmou Oscar Olliver, porta-voz da Coordenação da Defesa da Água de Cochabamba. A insatisfação popular com a transnacional Suez não se resumia aos altos preços cobrados pelo serviço. Além de não fazer as melhorias no sistema de saneamento previstas pelo contrato, a empresa se utilizava de artifícios para aumentar seus lucros. Por exemplo, negou-se a colocar medidores de consumo para a população de El Alto e, assim, continuava a cobrar uma tarifa fixa de até 15 bolivanos. Mas a média de consumo da população era o equivalente a 8 bolivanos. Além disso, 70 mil pessoas da região não recebiam

a Nestlé desmineraliza e enriquece artificialmente uma água rara e nobre. Incorformados com tais danos, um grupo de cidadãos fundou o Movimento de Cidadania pelas Águas de São Lourenço e acionou o Ministério Público Estadual para instaurar ação civil pública contra a Nestlé. O Movimento conseguiu, após decisão judicial, que a fábrica fosse fechada por dois dias. No entanto, a Justiça decidiu em favor do recurso da empresa e a produção foi retomada. Novo julgamento é aguardado até hoje. (Com informações da Rede de Integração dos Povos – Rebrip)

água porque a Suez cobrava um descalabro pela conexão (cerca de 9 salários mínimos locais). “Agora, a transnacional vai pedir 100 milhões de dólares por ter sido expulsa da Bolívia antes do término do seu contrato. Precismos recompor nosso tecido social para não sermos subordinados”, analisa Olliver. O boliviano conclui citando quem deu a vida pela libertação de seu país: “Como disse uma vez Che Guevara, temos de construir homens novos. Que sejam como a água: transparentes e em movimento”.

AGENDA *22 de março: Dia Mundial da Água. *Maio: acompanhar a conclusão das discussões sobre serviços na OMC. *Dezembro: concentrar-se na 6ª Reunião Ministerial da OMC, em Hong Kong. *Seguir aglutinando, na Plataforma Global para a Água, organizações que lutam pelo direito aos recursos hídricos nos próximos fóruns sociais.


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DEBATE FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Maria Luisa Mendonça pós a quinta edição do Fórum Social Mundial (FSM), ainda existe muito debate sobre sua função. Os dois chefes de Estado presentes no evento expressaram visões distintas. Lula se referiu ao Fórum como “feira ideológica”. Hugo Chávez disse que este era o “evento político mais importante do mundo”. Em certa medida, o FSM é sim uma feira de idéias. Desde o início, ele foi concebido como um espaço plural, onde nenhum grupo poderia se sobrepor às plataformas, propostas e estratégias de luta de milhares de organizações e movimentos sociais que participam deste processo. Seria absurdo propor que algum tipo de “comitê central” do FSM tentasse conduzir movimentos importantes e amplamente representativos como, por exemplo, a Via Campesina (que reúne organizações camponesas de 60 países), as centenas de organizações de dalits (as castas mais oprimidas na Índia), ou os grandes movimentos contra a privatização da água e do gás na Bolívia. O Fórum é também um espaço de articulação de diversas redes internacionais. Este ano, o evento serviu de preparação para as manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), que ocorrerão durante a Cúpula Ministerial de Hong Kong em dezembro. Os movimentos sociais rurais e as organizações que compõem a rede “Nosso Mundo não Está à Venda” se opõem às propostas apresentadas pelo G-20 (grupo de países liderado pelo Brasil) para as negociações agrícolas, pois elas se restringem à defesa da abertura dos mercados europeu e estadunidense para grandes produtores, estimulando o modelo agrícola baseado na monocultura para exportação. Os movimentos sociais defendem

A

o princípio da soberania alimentar, que consiste basicamente em priorizar o mercado interno e a agricultura camponesa, garantindo que cada país tenha condições de alimentar seu próprio povo. Outros milhares de reuniões de articulação ocorreram em Porto Alegre. Os movimentos antiguerra avaliam que o Fórum tem tido um papel importante para impulsionar grandes manifestações, como a que ocorreu contra a guerra no Iraque em 15 de fevereiro de 2003. Pela primeira vez na história, aconteceu uma mobilização simultânea em 60 países, como a participação de cerca de 6 milhões de pessoas. Esse movimento foi fundamental para quebrar a legitimidade dos argumentos dos Estados Unidos no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e impedir o aval de muitos países para a invasão do Iraque. A oposição à guerra também teve um papel importante na eleição do presidente espanhol José Luis Zapatero. Para 2005, foi convocada uma mobilização mundial no dia 19 de março. No âmbito das Américas, a campanha contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), Dívida e Militarização logrou alguns avanços importantes. O fracasso das negociações da Alca, fruto de grandes mobilizações e de impasses no processo negociador, impediu sua implementação na data prevista, que seria 1º de janeiro de 2005. Em uma tentativa de “ressuscitar” a Alca, os governos do Brasil e dos EUA iniciam negociações para a realização de uma Cúpula Ministerial em novembro, na Argentina. Ao mesmo tempo, a Campanha contra a Alca decidiu organizar uma Cúpula dos Povos e intensificar as mobilizações continentais. A Campanha pela Desmilitarização das Américas, que denuncia a presença militar dos

Kipper

O que esperar das mobilizações?

Estados Unidos no Continente, comemorou a interrupção das operações da marinha estadunidense na base de Vieques, em Porto Rico. Isso ocorreu após anos de mobilizações, que resultaram na prisão de ativistas estadunidenses e porto-riquenhos. A suspensão do acordo entre Brasil e Estados Unidos para a utilização da base de Alcântara também foi lembrada como exemplo. A rejeição da sociedade brasileira ao acordo ficou evidente com o resultado do plebiscito popular que reuniu mais de dez milhões de assinaturas. O Fórum contribuiu também para popularizar as campanhas pela anulação da dívida externa

dos países periféricos. O exemplo da Argentina é importante, já que o país vive um momento de expansão econômica ao mesmo tempo em que declara a moratória de sua dívida. As organizações sociais podem utilizar ainda, como argumento tático, a proposta dos Estados Unidos para a anulação da dívida do Iraque, e exigir o cancelamento de contratos durante períodos de ditaduras em outros países. Está claro que essas dívidas já foram pagas e

que a transferência maciça de capital do Sul para o Norte é uma das principais causas da fome e da pobreza em nossos países. Essas propostas pressupõem mudanças estruturais e estão imbuídas de um forte sentimento antiimperialista. Nesse sentido, a escolha da Venezuela para sediar o Fórum Social Mundial nas Américas em 2006 foi consenso no Conselho Hemisférico do FSM e gerou grande apelo popular. A existência de uma liderança política na América Latina, como Hugo Chávez, que se contrapõe de fato ao governo Bush, deve ser valorizada especialmente na atual conjuntura. O povo venezuelano tem sido um exemplo para aqueles que acreditam ser possível romper com as amarras do neocolonialismo. O processo hemisférico do FSM inclui ainda os Fóruns PanAmazônico e Meso-Americano, o que possibilita aprofundar temas e articulações regionais. Um deles é a relação entre a presença militar dos Estados Unidos e o controle de recursos naturais e biodiversidade. A militarização propicia ainda a implementação de grandes projetos, como barragens, gasodutos e oleodutos, causando devastação do meio-ambiente e de comunidades locais. A participação popular no processo do FSM (que inclui eventos locais, regionais e continentais) mostra que existe uma demanda crescente de espaços de articulação, análise, difusão de idéias e propostas, e de elaboração de planos de ação contra o neoliberalismo. Mas, principalmente, estes são momentos de mobilização. Esta é a força do Fórum. É daí que vem sua relevância e sua energia. Maria Luisa Mendonça é jornalista, diretora da Rede Social de Justiça e Diretos Humanos e membro do Conselho Internacional do FSM.

Em 2005, o encontro dos encontros Este foi o melhor de todos os Fóruns. Não pelos debates, ou mesas redondas apenas, mas pelo roteiro não previsto que o encontro acabou seguindo nesses seis dias de calor abrasador às margens do Guaíba. Em meio a toda dispersão que uma atividade desse tipo inevitavelmente apresenta, pode-se também, por mais estranho que possa parecer, dizer que esta foi a menos fragmentada de todas as suas cinco edições. Como? É preciso atentar sobre a maneira como se dá esta partição entre as várias atividades. Horizontalmente, há de fato divisões e subdivisões de temas, organizações e propostas localizadas, que se traduzem num cipoal de mais de duas mil atividades paralelas. Mas, verticalmente, este foi o grande momento das articulações entre entidades, redes, associações, ONGs e agremiações políticas de todo o mundo. Foi o encontro dos encontros.

Aparecem basicamente duas concepções em choque no Fórum Social Mundial. Há os que planejam a iniciativa apenas como um espaço de debates, sem nenhum tipo de desdobramento mais geral. E há os que advogam a necessidade de se definirem algumas bandeiras consensuais, para que o FSM incida nas disputas em curso no mundo. Se não um organizador, um grande articulador coletivo. Entre elas – com todas as suas variantes – se dá a tensão. Irrompe nesta reflexão o fato de este FSM se realizar sob o signo da derrota do PT em Porto Alegre, o que coloca limitações e possibilidades para suas futuras repaginações. A derrota gaúcha repercute no mundo e coloca, para os que repelem qualquer ligação do FSM com a política real, uma indagação cortante: afinal, se é um encontro da chamada “sociedade civil”, para que se necessita de um Estado a apoiá-lo, entidade exorcizada na carta de princípios inicial do Fórum?

DIVÃ

EIXOS E AUTOGESTÃO

Foi também um Fórum no divã, o primeiro em que a iniciativa pôs-se a pensar sobre si mesma. Quem somos, de onde viemos, para onde vamos? Não se trata de centenas de assembléias que se diluem numa vaga concepção de que “tudo é tudo”, de o que vale é o “espaço plural”, mas de uma fragmentação tensa, para voltar à palavra mais ouvida nesses dias. Fragmentação tensa por não se conformar com este estado da arte em pedaços, mas por ser uma situação em permanente movimento e em constante vir a ser.

A decisão de se acabar com os grandes eixos de conferências e testemunhos, espinha dorsal das edições anteriores do FSM, em favor de atividades autogeridas, acabou se mostrando positiva. A presença dos partidos políticos, também limitada pelos princípios originais do Fórum, foi inevitável e acabou incrementando os debates por alternativas. Se cada um se responsabilizava por suas atividades, não há como impedir a participação de quem quer que seja. Nos encontros partidários, aconteceu um riquíssimo emba-

Gilberto Maringoni

te de idéias sobre o que fazer diante do que julgam ser uma rota continuísta do governo Lula. Estamos ou não no limiar de uma nova diáspora entre a esquerda, a exemplo do que aconteceu após 1964, com as sucessivas crises e cisões desastrosas do Partido Comunista Brasileiro? A criação de novas agremiações, facções, rachas, manifestos nos levará a que escalas nessas incertas rotas em direção à transformação social? UTOPIAS E SIMPATIAS

O FSM também não é mais apenas um encontro de ONGs, com sua miríade de pequenas utopias, focadas em realizações parciais. A realidade do “mundo lá fora” se impõe, na busca por vontades e saídas mais gerais. A declaração de José Saramago, de que não é utópico, mas quer mudar o mundo já, pautou a semana. Popularmente, poderia-se traduzir suas palavras na expressão “chega de muito corococó e pouco ovo”. Vamos à luta, vamos ao concreto! Pode-se mudar o mundo sem tomar o poder?, é a pergunta que rendeu acalorados seminários nesses dias. É possível limitar nossos esquadros em se pensar globalmente e agir localmente?, indagam-se outros. Por trás dessas questões, diferentes nuances de concepções de mundo se agitam. O Fórum acontece hoje apenas em Porto Alegre, ou também onde há resistência real à globalização neoliberal, como no Iraque, na Palestina, ou na Venezuela?, para citarmos os casos mais evidentes. Estas alternativas

foram clarificadas pelo manifesto lançado por alguns intelectuais participantes da própria gênese dos Fóruns Sociais Mundiais, e que reflete o denso choque de opiniões externados no verão gaúcho, pedindo bandeiras e ações mais definidas. Alguns mais céticos se recordam do terceiro Fórum, animado pelas gigantescas manifestações contra a guerra, para lamentar a falta de uma bandeira mais clara. É preciso ir ao detalhe e verificar que aquela iniciativa tinha a nitidez do contraste a balizar suas discussões, o contraste com o ataque iminente ao Iraque, contra um império não apenas política e militarmente agressivo, mas moralmente repugnante, pelo morticínio que causa. É uma necessidade bater-se contra tal inimigo! Mas dois anos depois é preciso afinar a sintonia do que fazer. NOVO ÍCONE

Pode-se, sem medo de errar, afirmar que os participantes do Fórum são majoritariamente anticapitalistas e quase que unanimemente antiimperialistas. Não é à toa que, tendo se iniciado com a presença de Lula e sua fala errática, cercada por um cuidado para se evitarem hostilidades, o encontro termine com a sagração do presidente venezuelano Hugo Chávez como novo ícone das esquerdas globais. A ida do mandatário brasileiro a Davos não causa mais surpresa, dada a senda escolhida pela administração federal. Mas a apoteose que cercou Chávez é uma novidade. Ao longo de uma hora e trinta e cinco minutos, o dirigente vene-

zuelano exibiu sua pauta: poder aos pobres, democracia, combate aos privilégios e ataque ao império. Reconheceu a centralidade do FSM nas lutas globais dos povos. E, banhado pela legitimidade incontestável conquistada no referendo revogatório de agosto último, resolveu avançar o sinal. Até aqui, sempre que perguntado sobre seu projeto, o ex-militar afirmava não ser nem o capitalismo e nem o socialismo, mas o “bolivarianismo”, vago coquetel de concepções nacionalistas. Em Porto Alegre, não titubeou: “nosso projeto e nosso caminho é o socialismo”, exlamou com voz de barítono para as telas de todo o mundo. A declaração lembra a de Fidel Castro, em 1961, quando definiu cristalinamente o caráter socialista da Revolução Cubana. Que isso tudo tenha acontecido em Porto Alegre, sob o manto do Fórum Social Mundial, lhe dá outra qualidade. Entre 26 e 30 de janeiro de 2005, algo se move não apenas no FSM, mas em grande parte das esquerdas planetárias. O que, exatamente, os próximos meses dirão. Mas se estivesse aqui, sob o sol do Sul, James Carville, o hábil e grossíssimo marqueteiro de Bill Clinton, ele poderia atualizar a frase que o consagrou, ao apontar para que caminhos o FSM avança: - É a política, estúpido! Gilberto Maringoni é jornalista, cartunista, colaborador de www.agenciacartamaior.com.br e autor de A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo)


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De 10 a 16 de fevereiro de 2005

AGENDA NACIONAL

CONCURSO: “CAUSOS” DO ECA Prazo para inscrição: 25 de março Promovido pelo portal RISolidária e pela Agência de Notícias dos Direitos da Criança (Andi), o concurso quer disseminar e premiar histórias verídicas de pessoas que, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tiveram seus direitos efetivados e suas vidas transformadas. A competição também busca reforçar o potencial de transformação social do ECA na vida dos cidadãos. Quinze semifinalistas terão suas histórias veiculadas no portal RISolidária; sendo que cinco serão publicadas em livro, a ser lançado em julho, na semana em comemoração aos 15 anos do ECA. Mais informações: www.risolidaria.org.br

SANTA CATARINA SEMINÁRIO: “TERRAS GUARANI NO LITORAL DE SANTA CATARINA” 23 e 24 Promovido por comunidades guarani do litoral de Santa Catarina e pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o seminário se insere nas ações do programa ambiental,

São Paulo, cidade da participação O mito da sociedade amorfa e individualista, tão propagandeado por aqueles que pregam o fim das utopias, acaba de ser derrubado. Fruto do trabalho de vários pesquisadores, coordenados pelo sociólogo Leonardo Avritzer, A participação em São Paulo constitui uma reflexão sobre os caminhos da democracia brasileira. O pano de fundo é uma pesquisa, feita no município de São Paulo, que revela a capacidade da população de se organizar em associações e, em grande parte, de participar de questões de Estado, utilizando instâncias institucionais que abrigam a participação efetiva. Os textos reunidos por Leonardo

realizado pelo CTI com as nações timbira, terena, wajãpi e guarani. Através de suporte técnico e material visual (mapas, imagens de satélite e fotos aéreas), o programa ajuda as comunidades a compreender a realidade ambiental e fundiária da região, observando as alterações ocorridas nos ecossistemas locais. Pretende também incentivar a participação das comunidades indígenas em levantamentos e caracterizações de seus ambientes, inserindo seus conhecimentos e suas práticas de manejo na elaboração de zoneamentos necessários ao planejamento de ações de uso sustentável e à conservação ambiental de suas terras. O objetivo do seminário é ampliar as bases do debate entre setores da sociedade nacional, de modo que questões das terras guarani e a conservação da Mata Atlântica possam ser compreendidas como parte de uma mesma problemática ambiental: o uso e a proteção das florestas tropicais atlânticas. Local: Terra Indígena Guarani Morro dos Cavalos, localizada na BR-101 (30 km ao sul de Florianópolis), Palhoça Mais informações: www.trabalhoindigenista.org.br

do Projeto Redigir, curso gratuito de redação e gramática voltado a comunidades carentes. Neste semestre, são abertas 150 vagas para novos alunos. Não há taxa de inscrição nem mensalidades. O projeto é ministrado na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, e vai de março a julho, em uma aula semanal com duas horas e meia de duração. Os professores são estudantes e profissionais formados pela própria ECA. Local: Avenida Professor Lúcio Martins Rodrigues, 443, Cidade Universitária, São Paulo Mais informações: (11) 3091-4013 ARTE E EMPREENDEDORISMO 19, às 10h Ministrada pelo artista plástico e fundador do Projeto Carmim, Eduardo Valarelli, a palestra abordará temas como arte, formação e empreendedorismo social. O projeto Carmim Escola Social de Arte desenvolve cursos e forma pessoas interessadas em utilizar a arte como meio de promoção. Local: Associação Projeto Carmim, Rua Antônio Borba, 59, São Paulo Mais informações: (11) 3021-2103

SÃO PAULO PUBLICAÇÕES CRIAÇÃO DE MARIONETES 14 a 25 O marionetista Paulinho de Jesus ensinará em seu ateliê, em dez aulas totalmente práticas, a confecção de bonecos de fio. As aulas, com duração de três horas cada, ensinarão criação, confecção e manipulação de personagens. Local: R. Padre Chico, 275, São Paulo Mais informações: (11) 3672-0734 www.marionetes.com CURSO DE REDAÇÃO GRATUITO Inscrições: 15 a 26 A Universidade de São Paulo abriu inscrições para as novas turmas

Avritzer partem de uma abordagem geral sobre o associativismo na capital paulista para depois se debruçarem sobre seus aspectos culturais, estudos de casos específicos (como os conselhos de saúde paulistanos e o Orçamento Participativo) e a pluralidade religiosa e os movimentos sociais. Também aborda o tema do espaço urbano e a intervenção democrática, além da questão da participação dos atores civis no processo democrático. O autor remonta ao processo de participação popular do Brasil, em especial na fase da ditadura, quando os movimentos sociais organizados por demandas públicas ajudaram a derrubar do regime militar, para mostrar a força da chamada “sociedade civil, autônoma e democrática”. Como diz Avritzer na introdução: “Nas grandes cidades, as novas práticas associativistas redefiniram a forma de fazer política, levando a um aumento significativo de asso-

DOSSIÊ MOSCOU Com um gravador, um bloco de anotações e uma velha máquina fotográfica, o jornalista Geneton Moraes Neto colheu depoimentos de pessoas que viveram momentos marcantes do processo que resultou no fim do império soviético. O livro-reportagem conta histórias sobre personagens que se moviam nos bastidores da estrutura política oficial, como o general da KGB que confessa ter entregue documentos falsos a jornalistas simpáticos à União Soviética, com o objetivo de “demonizar” os Estados Unidos. O livro começa na

ciações comunitárias e da sua forma de relação com o Estado”. A pesquisa coordenada por Avritzer, feita com rigor científico, nega a derrocada do associativismo que aparece nas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Utilizando medições de associação formal e informal, a pesquisa chega ao elevado índice de 19% da população paulistana participante de alguma associação. Ou seja, um em cada cinco paulistanos não acredita em mudanças isoladas e sim em ações conjuntas. Outros dados, apresentados em tabelas e analisados por especialistas, mostram essa face coletiva da cidade que, segundo o próprio coordenador, reflete um movimento nacional. CONFIRA A participação em São Paulo Organização de Leonardo Avritzer 470 páginas Editora Unesp

manhã das eleições, relatando o “dia que demorou cem anos para acontecer”, e retrocede até a revolução de 1917, a reforma agrária na Rússia, a morte de Lenin em 1924 e o longo governo de Stalin. Trata das denúncias de Kruschev, em 1956, que tiraram Stalin da condição de “guia genial dos povos” e o colocaram na posição de um dos maiores criminosos da humanidade. Segue por Brejnev, Andropov, Tchernenko e, finalmente, Gorbatchev, que promoveu a glasnost e a perestroika e foi responsabilizado pelo colapso do país, perdendo as eleições para Yelstsin, ex-comunista convertido à economia de mercado. À noite, na redação, o jornalista e autor reflete sobre sua atividade. O livro, editado pela Geração Editorial, tem 240 páginas e custa, em média, R$ 39. Mais informações: www.geracaobooks.com.br SAGARANA A revista literária de ensaios, contos, poesias e trechos de romances selecionados agora pode ser lida na internet, no endereço: www.sagarana.net. Na edição mais recente, traz uma entrevista inédita com o dramaturgo alemão Heiner Muller, além de contos inéditos em língua italiana de Woody Allen, Soledad Puértolas, Rubem Fonseca e António Lobo Antunes, além de poesias de Heiner Muller, Costantino Kavafis e Cecília Meireles. No sítio é possível ler os textos atualizados da nova seção da revista, chamada Il Direttore. OCAS EM DIFICULDADES A publicação Ocas, principal projeto desenvolvido pela organização homônima, passa por problemas financeiros e pode acabar. O trabalho consiste na produção da revista e a venda de exemplares por pessoas que vivem nas ruas. A organização possui representações

em São Paulo e no Rio de Janeiro e objetiva, com o projeto, recuperar a dignidade dessa população, que fica com o lucro da vendagem dos exemplares. Pessoas ou instituições interessadas em contribuir ou saber mais sobre o trabalho desenvolvido pela Ocas podem telefonar para (11) 3208-6169 ou (21) 2589-4989. Mais informações: www.ocas.org.br/site_ocas.html JOSUÉ DE CASTRO NAS BIBLIOTECAS PÚBLICAS A Fundação Banco do Brasil distribuiu, para todas as bibliotecas públicas do país, kits com material sobre a trajetória do cientista político pernambucano Josué de Castro. A iniciativa faz parte do Projeto Memória da instituição e prevê a remessa de cinco mil conjuntos, formados por livro, fita VHS e DVD. Conhecido nos meios acadêmicos e no exterior como um “estudioso da fome”, Josué de Castro denunciava em sua obra e em suas apresentações que a falta de alimentos no mundo era mais um problema político do que biológico. Na primeira metade do século XX, se destacou na defesa da reforma agrária no Brasil. Josué de Castro foi autor de 29 livros, dentre eles Geografia da Fome, traduzido para 25 idiomas. No projeto Memória, o jornalista Xico Sá e a diretora de cinema Tânia Quaresma transformaram a história de Castro em livro e filme, dirigidos principalmente a crianças e jovens do ensino fundamental. No documentário de Tânia Quaresma, alunos de Recife interagem na história do pensador. O filme traz depoimentos importantes, como de Ana Maria Castro, filha do homenageado, Frei Betto e o presidente Lula. Mais informações: www.projetomemoria.art.br/ memoria.html


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CULTURA

De 10 a 16 de fevereiro de 2005

FOTOGRAFIA

Os efeitos nefastos da globalização Patrícia Wittenberg De Porto Alegre (RS)

A

exposição Os Excluídos, do fotógrafo, economista e sociólogo Robson Oliveira, foi lançada dia 27 no 5° Fórum Social Mundial. Criador da logomarca do Partido dos Trabalhadores, Oliveira analisa a sociedade globalizada e a exclusão social através da fotografia. A mostra teve apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O fotógrafo percorreu acampamentos e assentamos ligados ao MST e registrou cenas da vida de moradores de rua dos grandes centros urbanos do Brasil e de diversos outros países por onde passou. “Procurei usar o máximo de tecnologia possível no que é mais real: a exclusão, a pobreza”, diz. Os painéis fotográficos em preto e branco têm detalhes coloridos, produzidos a partir de uma técnica desenvolvida pelo próprio Oliveira. As cores destacam os bens de consumo; os cidadãos “são cinzas como suas vidas”, explica ele, que se apresenta como pioneiro no desenvolvimento de técnicas de melhoria no tratamento e impressão de imagens, garantindo qualidade excepcional de fotografia. O trabalho de Oliveira é resultado de uma pesquisa socioeconômica e de uma análise da sociedade globalizada ao longo dos últimos quinze anos, em cidades de cinco países (Brasil, Estados Unidos, Jamaica, Egito e Israel). Esta análise tem por cenário os moradores de rua, os povos indígenas sem aldeias, os indigentes e os trabalhadores rurais sem-terra. As fotos foram feitas com equipamento digital e programas de

Fotos: Robson Oliveira

Com a mostra Os Excluídos, o fotógrafo Robson Oliveira denuncia a opressão social que ensombrece o planeta

Crianças moram em um buraco de ponte, em São Paulo

Crianças em situação de rua, no centro da capital paulista

computador de última geração. “Com esses equipamentos, tirei a cor dos personagens e os deixei em preto e branco, mantendo a cor de alguns detalhes, ou objetos ligados à colorida sociedade de consumo”, explica. A dicotomia salta aos olhos. “Nessas imagens, fica a surpresa do espectador em descobrir que tanto em cidades do Primeiro, quanto do Terceiro Mundo, o processo de exclusão social se intensifica com a mesma força e voracidade”, diz o fotógrafo. Ele acrescenta que a exposição pretende colocar em discussão o problema da exclusão social, “para que a sociedade compreenda que é ela mesma que exclui e sofre as conseqüências dessa exclusão”.

Filhos de uma família sem-terra, em Várzea Alegre (CE)

Acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a 40 km de Recife (PE)

Menina abandonada, em Várzea Alegre (CE)

Filhos de pequenos agricultores sem terra, em Várzea Alegre (CE)

Uma escola no acampamento do MST, 40 km de Recife (PE)

Indígena guarani morador de rua, em Porto Alegre (RS)

Engraxate dorme em ponto de ônibus em Salvador (BA)


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