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Ano 3 • Número 103

R$ 2,00 São Paulo • De 17 a 23 de fevereiro de 2005

Latifúndio produz mais assassinatos Raimundo Paccó/O Liberal/AE

Só no Estado do Pará, foram mortos 759 trabalhadores rurais e lideranças sindicais; apenas 37 foram julgados

Centenas de representantes de movimentos e organizações sociais do campo prestam homenagem à irmã Dorothy Stang em Anapu (PA), mais uma vítima do latifúndio

Acordo fortalece comunidade sul-americana Acordos nas áreas de energia, tecnologia e defesa, firmados no dia 14, em Caracas, pelos presidentes do Brasil e da Venezuela, devem fortalecer a constituição

Passados cinco dias do seu aniversário de 25 anos, o Partido dos Trabalhadores deu demonstração de enfraquecimento ao ser derrotado, dia 15, nas eleições para a mesa diretora da Câmara. O partido do governo não conseguiu eleger nenhum de seus candidatos e, de quebra, perdeu a presidência para o independente Severino Cavalcanti (PP-PE), um conservador histórico que jamais havia tido qualquer papel de destaque. Para o advogado Plinio Arruda Sampaio, a “zebra” só aconteceu porque o PT decidiu ser governo, mesmo sem chegar ao poder. Isso o tornou vulnerável aos ataques da elite: sua maior aliada no caminho para o Planalto. Pág. 7

Governo continua criando rombos na Previdência Em 2005, o INSS deve gastar cerca de R$ 143 bilhões em aposentadorias, pensões e outros benefícios, dos quais quase R$ 29 bilhões vão sumir entre fraudes e outras falcatruas. Rombo na Previdência? É a mesma ladainha: o déficit cresceu, mostram os números manipulados pelo governo, que, em 2004, não repassou ao INSS R$ 122,6 bilhões em contribuições sociais, o que elevaria a sua receita para R$ 216,4 bilhões, portanto, um superavit de mais de R$ 82 bilhões. Pág. 5

da Silva e Hugo Chávez defenderam a integração latino-americana como forma de combater a injustiça social. Na pauta de negociações estão a compra de

aeronaves e a construção de uma refinaria de petróleo no Brasil, a um custo estimado em 2 bilhões de dólares. Págs. 2 e 10

Odd Andersen/AFP/AE

Derrota histórica na Câmara expõe fraquezas do PT

da Comunidade Sul-Americana de Nações, em oposição aos países do Norte. Junto a empresários e ministros dos dois países, os presidentes Luiz Inácio Lula

A

violência contra a irmã Dorothy Stang, assassinada dia 12 em Anapu (PA), é a mesma que tem vitimado centenas de lutadores do povo Brasil afora, nas últimas décadas, que se empenharam pela reforma agrária, pela defesa dos bens naturais, num país que ostenta um imenso território e a mais mesquinha distribuição da terra do planeta. O que está por trás do assassinato da irmã não é apenas o mandante, mas toda uma estrutura que não envolve só o Estado do Pará, mas todo o Brasil, diz dom Tomás Balduíno, presidente da CPT. Irmã Dorothy defendia um modelo agrícola que contraria os interesses dos latifundiários da região. Para a missionária, as riquezas devem ser exploradas de forma sustentável, bem ao contrário do que querem empresários do agronegócio. A omissão do Estado e a impunidade alimentam a violência na região. No dia 15, o sindicalista Daniel Soares da Costa Filho tombou em Paraupebas, também no Pará. Pág. 3

No Haiti, em meio à miséria, o povo resiste O país é, hoje, a nação mais pobre das Américas, com 82% dos 7,66 milhões de seus habitantes abaixo da linha da pobreza. Mas o povo, que resiste falando crioulo, tenta superar a destruição provocada por anos de ditadura. João Alexandre Peschanski, enviado especial do Brasil de Fato ao Haiti, relata a situação de miséria e as tentativas das organizações populares de construir uma nação democrática e justa. Pág. 9

McDonald’s lucra com doença e obesidade

Militantes Ingleses realizam um protesto exigindo a retirada das tropas britânicas do Iraque

Estudantes em campanha pelo passe livre Pág. 4

Tortura virou No Togo, prática comum população contra nas delegacias o golpe militar Pág. 6

Pág. 12

E mais: DEBATE - Militante de esquerda de Teerã analisa quadro político no Irã, ameaçado por uma nova investida do imperialismo dos EUA. Pág. 14 CULTURA – No Recife (PE), 70 anos de resistência cultural do Maracatu Nação Cambinda Estrela, que atua em parceria com movimentos sociais em bairros da periferia. Pág. 16

Após queda nos lucros, a rede de lanchonetes McDonald’s fechou o ano de 2004 com um lucro líquido de 2, 278 bilhões de dólares. Mas a corporação estadunidense, que tem o Brasil como um de seus mercados mais lucrativos, vive uma crise de imagem, vinculada ao aumento da obesidade no mundo, a doenças e à exploração de trabalhadores. Pág. 13

Assentamento no Paraná dá show de produtividade Em 12 anos, os sem-terra de Paranacity mudaram a economia da região Noroeste do Paraná. Através da Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), vão começar a exportar açúcar mascavo e aguardente para a Europa. Outros produtos são comercializados em cidades vizinhas e nas lojas da reforma agrária de cinco cidades. O sistema de cooperativa garante, a cada uma das 25 famílias, moradia gratuita, alimentação coletiva e renda mensal média de R$ 850. Pág. 8


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De 17 a 23 de fevereiro de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Bernardete Toneto, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Isabel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Aliança estratégica Brasil-Venezuela Contra a argumentação de que a política externa brasileira é marcada por uma simples retórica progressista, sem maiores conseqüências, a assinatura de uma aliança estratégica Brasil e Venezuela, dia 14, em Caracas, é um bom motivo para admitir que ainda existem condições históricas para uma alteração de peso nos rumos do governo Lula. Além dos acordos firmados entre Lula e Chávez, foram importantes as manifestações públicas de solidariedade e de identificação de ambos nos esforços para impulsionar uma integração latino-americana, que conta com ferrenha oposição dos EUA. Entre os acordos, destacam-se os das áreas energética e militar. Eles reforçam posições de Estado, não do setor privado. No caso do energético, as duas estatais, Petrobras e PDVSA, passam a ser protagonistas de um projeto que inclui a construção de refinarias, explorações conjuntas, intercâmbio de tecnologia, bem como a construção de uma fábrica de combustíveis em Cuba, o que também sinaliza o caráter estratégico desta aliança. Não por acaso, num mundo em que o imperialismo trata a questão petrolífera como tema militar e não econômico, no mesmo dia em que Chávez e Lula firmavam tal acordo, a Casa Branca divulgava “documento” segundo o qual as plataformas de exploração de petróleo no Brasil são vulneráveis a ações terroristas!

No campo militar, o acordo entre Brasil e Venezuela prevê o uso compartilhado do sistema Sivam, e até mesmo ações conjuntas na Amazônia venezuelana e brasileira. Ou seja, um tipo de cooperação indispensável num contexto em que o imperialismo estadunidense espalha bases militares em volta do Brasil, busca fazer da Colômbia um Israel sul-americano e preconiza o desmantelamento das forças armadas de toda a América Latina e sua dedicação exclusiva ao combate ao narcotráfico, cujo grande mercado está exatamente nos EUA. Em sintonia com este acordo militar entre Brasil e Venezuela está o envio recente de delegação de alto nível do Exército brasileiro ao Vietnã para estudar técnicas de combate nas selvas, já sendo conhecido o estudo, em academias militares brasileiras, de técnicas de guerrilhas vietnamitas, incluindo textos de Ho Chi Minh, do general Giap e de Ernesto Che Guevara. Os acordos alcançam as esferas da comunicação social e das telecomunicações. Serão criadas a TV Brasil Internacional e a TV Sul – ambas iniciativas do poder público, que vão buscar parcerias com emissoras públicas, educativas, comunitárias, universitárias etc., e que se destinam a furar a ditadura midiática mundial imposta pelo Norte hegemônico contra as nações pobres. Nesta aliança estratégica BrasilVenezuela, destacam-se o reforço do

papel do Estado, a identificação de metas históricas de Bolívar e do general pernambucano Abreu e Lima, e a certeza de que a integração não é apenas comercial, mas política, cultural e social, tendo o dirigente venezuelano mencionado o intercâmbio dos movimentos sociais dos dois países para superarem em conjunto a miséria e as desigualdades. É certo que houve triplicação do volume de comércio bilateral e que ainda existe expressivo desequilíbrio na balança comercial, em favor do Brasil. E que o volume de trocas é muito reduzido se comparado com outros países, especialmente os países capitalistas ricos, dos quais as economias brasileira e venezuelana ainda são dependentes. Uma análise estritamente econômica talvez levantasse mais interrogações sobre as razões pelas quais os dois governos avançaram tão pouco nos últimos anos, e jogasse mais luz sobre o muito que há por fazer, num contexto internacional marcado por ameaças de guerras de rapina. Por outro lado, também se constata que esta aliança estratégica destoa dos objetivos da política econômica do governo Lula, pois, ao contrário de privilegiar o capital especulativo e reduzir o alcance das políticas sociais, o novo acordo reforça o crédito na independência dos países pobres ante seus exploradores.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES RUMOS DO BRASIL DE FATO Vamos jogar limpo. Joaquim Pinheiro (carta publicada na edição 99 do Brasil de Fato) está sendo alcançado pelas verdades dessa leitura rara. São tão poucos os meios verdadeiros e libertadores de comunicação deste Brasil, e que nos acordam, a cada semana, para os sonhos de Simón Bolívar, Pablo Neruda, Salvador Allende, Carlos Prestes, Fidel Castro e tantos outros humanistas sul-americanos, europeus, asiáticos, africanos, desejosos da libertação dos povos. Foi boa demais a chegada do Brasil de Fato aos olhos dos brasileiros – por que não dizer, dos “terráqueos”? Vamos aplaudir e ajudar os movimentos como o MST, dos mais autênticos desse país, para que venham a dar certo. Que o Rio São Francisco seja recuperado em toda sua extensão e se torne capaz de atingir a mais completa integração nacional. Que a distribuição de renda deste país, como a de outros povos subdesenvolvidos, seja proporcional ao sacrifício e à necessidade de cada cidadão. Finalmente, que o doutorando Joaquim amadureça. Rildo Velôso de Araújo Aracaju (SE) NORDESTE Temos acompanhado, aqui neste velho e guerreiro Nordeste, o jornal Brasil de Fato, que vem despertando em certos setores da sociedade uma nova

consciência dos problemas brasileiros. A nossa sociedade precisa saber olhar o mundo asfixiante que envolve o nosso país em face de uma demagogia repetidamente cansativa. Agassiz Almeida João Pessoa (PB) OPINIÃO Ao ler a página “Opinião”, do último número do Brasil de Fato (edição 102), ao mesmo tempo em que senti (sinto) asco por toda imprensa parcial e burguesa do Brasil, me senti aliviado ao constatar que este jornal existe (tinha, sim, notícia dele, mas hoje foi a primeira vez que o li)! Existe e faz mostrar a verdade que está por trás dos grandes interesses, do conluio que insiste em manipular o cidadão, que, neste país, sempre se fez alienado, devido às más informações, por conveniências! O Brasil de Fato precisa andar por todo o país – nós temos gente valiosa por demais, que clama por informações tais, com a dialética do nível desse jornal. Carlos Donizete Bertolucci Uberaba(MG) ERRATA Diferentemente do publicado na edição 100, página 9, o crédito da foto é de Anderson Barbosa e não da Agência Brasil. Na edição 101, página 7, a fotografia foi creditada a João Zinclar, mas é de Robson Oliveira.

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

Violência sem fim Leonardo Boff Seguramente a violência no Brasil possui muitas causas já analisadas com minúcia por muitos. A rigor nem deveríamos dizer que aqui ocorre violência. A violência é estrutural na formação de nossa sociedade. Fomos construidos sobre um fundamento de violência que foi o processo de colonização. O cimento foi feito de violência: as vidas dos escravos, transformadas em carvão para o processo produtivo, como costumava dizer o indignado Darcy Ribeiro. Violenta é a forma como o povo comumente vem sendo tratado, sempre considerado jeca-tatu, joão-ninguém, zé-povinho cuja relação primeira para com ele é o grito ou o cassetete. Mas há uma violência que nasce de um sentimento: a revolta em face da contradição existente entre as grandes maorias que vivem numa miséria desoladora e as minorias que desfrutam de uma opulência indecente. Quem circula pelas imensas periferias e favelas de nossas cidades e depois chega ao centro ou aos bairros ditos nobres constata esta dilaceração, anterior a qualquer juizo ético ou político. A primeira reação é: como podem estas populações viver, por toda uma vida, em condições tão infra-huma-

nas? Elas merecem? Como podem crianças andar por aí, semi-nuas, barrigudas, jovens com seus 15-17 anos empinando pipas ao céu, homens de meia-idade sentados nas pracinhas sem fazer absolutamente nada porque estão há muito tempo desempregados? O que mais dói é ver meninas de 12 e 13 anos abordando passantes: “Tio, tio, vamos fazer amor? É só por um real…eu sei fazer tudo o que o homem gosta”. E por outro lado, como podem viver estes de boa vida, bem alimentados, bem morados, bem estudados e bem munidos de contas nos bancos, como podem viver humana e eticamente no meio de tanta contradição? Neste momento intuímos, entre raiva e desalento, que a desigualdade é pior que a pobreza. Ela é simplesmente inaceitável, por demasiadamente irracional. Se estas classes aquinhoadas e o Estado atrás do qual elas se escondem, ao invés de gastarem milhões cada ano em segurança policial, em muros, em circuitos internos de TV, em seguranças privadas, em carros blindados, os gastassem em projetos de educação, profissionalização, criação de centros comunitários, cooperativas de construção de casas, lugares de

lazer e arte, teríamos equacionado em grande parte o problema social. E todos gozaríamos de paz, poderíamos andar à noite por aí, sem medo de ser assaltados e até mortos. Pensemos em termos globais. Se as potências militaristas, à frente delas os EUA, deixassem de gastar anualmente bilhões e bilhões de dólares na fabricação de armas de morte, resolvessem ter um mínimo de sentimento e ser um pouco mais racionais e investissem nos seres humanos, então poderiam garantir comida, saúde, casa e ocupação a cada habitante deste planeta. Teríamos criado as pré-condições para uma paz duradoura entre todos os povos. Ocorre que mais e mais pessoas das favelas despertam e não aceitam mais essa contradição. Passam à violência como forma de vingança e de solução individual para o problema social. Se o governo Lula apenas estabilizar a macroeconomia neoliberal e deixar de fazer transformações sociais para diminuir as desigualdades, haverá mais violência ainda. Ao invés da democracia sem fim, teremos a violência sem fim. Ela nos conduz à barbárie que não poupará nossos filhos e netos. Leonardo Boff é teólogo

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NACIONAL CRIMES DO LATIFÚNDIO

No Pará, os assassinatos continuam Desordem fundiária, impunidade e omissão do Estado estão nas raízes de crimes como o homicídio da irmã Dorothy Stang

“É

necessário ir além da morte. O que está por trás não é só o mandante, mas toda uma estrutura que não envolve só o Estado do Pará, mas todo o Brasil”, diz dom Tomás Balduíno. A afirmação do presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostra as duas principais causas de crimes como o assassinato da irmã Dorothy Stang, estadunidense naturalizada brasileira, dia 12, em Anapu, (PA). Uma, é a tradicional impunidade dos latifundiários, outra é a falta de regularização da posse da terra. Segundo a CPT, só em 2003, foram assassinadas 73 pessoas no campo, 33 delas no Estado do Pará. Ainda segundo a entidade, pelo menos 25 pistoleiros que já cometeram crimes contra ativistas estão soltos. De acordo com o presidente da Federação dos Trabalhadores Agrícolas do Estado (Fetagri), Antônio Carvalho, desde 1964, houve 759 casos de assassinatos de trabalhadores rurais e lideranças no Pará. Destes, apenas 37 foram julgados. “A morte da irmã é resultado da impunidade”, afirma o deputado federal Frei Sérgio Görgen (PT-RS). A seu ver, a falta de julgamento dos mandantes de crimes faz parte da história do país. “Isso também aconteceu com os negros, índios e caboclos”, compara. O resultado da impunidade é a contínua violência na região.

DESORDEM Apenas três dias após o assassinato da irmã Dorothy, foi morto o ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Paraupebas (PA), Daniel Soares da Costa Filho. “A certeza de que não serão punidos é que possibilita que, mesmo com toda a repercussão internacional do caso da irmã, esses crimes voltem a acontecer”, diz Antônio Carvalho. Costa Filho foi morto a tiros e, de acordo com a polícia, sofria ameaças de grileiros e madeireiros do Estado. A polícia ainda não sabe se há relação entre esse crime e o assassinato da irmã. “A indefinição da questão fundi-

região também deixa a desejar, de acordo com a senadora Ana Júlia. “O governo federal precisa agilizar a situação, porque o Incra e o Ibama só podem agir com o apoio da PF, que precisa de infra-estrutura”. Ofícios do Ministério Público Federal e da CPI da Terra, depoimentos e cartas escritas de próprio punho pela irmã Dorothy mostram que o Ministério da Justiça e o governo do Pará foram informados com pelo menos um ano de antecedência sobre o risco iminente de violência na zona rural de Anapu. A irmã Dorothy também passou sete dias em Brasília, em junho de 2004, para denunciar a situação no município a autoridades federais, mas foi recebida apenas por assessores do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. O Ministério Público Federal em Belém também advertiu as autoridades policiais estadual e federal.

Alberto Cesar Araújo/greenpeace

Dafne Melo e Tatiana Merlino da Redação

Centenas de pessoas participam do enterro de irmã Dorothy em Anapu (PA): indefinição da questão fundiária gera terror

FEDERALIZAÇÃO ária nessa região gera um clima de terror”, relata Tarcísio Feitosa, da CPT de Altamira (PA). O missionário explica que, durante a ditadura, fazendas foram doadas a produtores rurais, com o compromisso de transformá-las em empresas agrícolas em 20 anos. Na década de 90, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) começou a exigir a devolução das terras à União, após constatar que as exigências não estavam sendo cumpridas. Feitosa conta que a maior parte das terras já havia sido repassada de forma irregular, e que a atuação dos grileiros tem a conivência da Justiça do Estado do Pará, que nega constantemente os pedidos de reintegração feitos pela União, para que as terras possam enfim ser destinadas à reforma agrária, ou se tornem reservas extrativistas ou indígenas.

TERRAS PÚBLICAS Segundo Antônio Carvalho, da Fetagri, o modelo defendido pela irmã Dorothy se chocava com o desenvolvido por grileiros e pelo agronegócio. “O que ela defendia é que as riquezas fossem exploradas de forma sustentável. Já eles, querem levar tudo de uma vez”, explica. Ele reitera: “Nosso projeto é

conciliar a agricultura familiar com o uso sustentável da floresta”. Outra iniciativa do governo federal, por meio do Incra, foi a criação dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), assentamentos adaptados à região amazônica. A senadora Ana Júlia Carepa (PTPA) acredita que estes projetos, juntamente com as homologações de reservas extrativistas, acirraram os ânimos dos grileiros da região, “que querem de todo jeito invadir as terras públicas”. Como solução, ela acredita que o primeiro passo é o governo federal entender a especificidade amazônica. “Se não investir em infra-estrutura na região, as políticas públicas não serão realizadas de forma efetiva. O governo precisa entender que a Amazônia é especial”, diz a senadora. Tarcísio Feitosa concorda que a tentativa de regulamentar as terras da Amazônia é uma afronta aos madeireiros e aos latifundiários. Ele acredita que uma medida emergencial a ser tomada é um estudo que identifique a situação fundiária da região e, em seguida, ser implantado um projeto sério de zoneamento. Porém, Feitosa aponta para a lentidão do governo federal. “Na mesa do governo, há pelo menos

dois projetos de criação de reservas extrativistas prontos para serem aprovados, como o de Renascer e o de Bacajá. Outros dois, Xingu e Iriri ainda aguardam estudo”, exemplifica. Para o deputado Frei Sérgio Görgen, a morte da irmã é “rastro do agronegócio, que tem origem no latifúndio e na cobiça pela madeira”. Ele considera que “o governo Lula mantém essa trilha incólume”. Para ele, o governo é omisso e só se mexe depois que há uma morte. “Aposto que em dez dias ninguém mais irá falar no assunto”, desafia.

GRILEIROS MANDAM Para implementar a regulamentação fundiária, é necessário que as políticas públicas sejam postas em prática com a presença da segurança pública. No entanto, a polícia do governo do Pará “não tem estrutura nenhuma”, afirma Tarcísio Feitosa. Segundo ele, as polícias Civil e Militar utilizam um “telefone público comum”. Além disso, até o assassinato da freira, o carro da polícia não tinha gasolina, informa. “Há uma ausência total de Estado. No caso da Polícia Militar, sou testemunha ocular que eles trabalham a serviço dos grileiros”. A situação da Polícia Federal na

Assassinatos como o da irmã Dorothy necessitam da federalização dos crimes de direitos humanos, afirma Aton Fon Filho, advogado da Rede Social de Direitos Humanos, que questiona a demora da Polícia Federal em intervir no caso. “Por que não colocaram agentes antes de a irmã morrer?” Para ele, o trabalho da PF na região tem que ser permanente. No entanto, ele lembra que enquanto a regulamentação fundiária não for feita, os crimes vão continuar. O Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, abriu procedimento administrativo para federalizar as investigações sobre o assassinato da missionária. Essa medida está prevista na reforma do Judiciário – aprovada no final do ano passado – e pode ser usada em crimes contra os direitos humanos. Com a federalização, todo o processo, desde a investigação até o julgamento dos responsáveis pelo crime, poderá transcorrer na esfera federal. Antônio Carvalho acredita que a federalização de crimes como o da irmã e do sindicalista é muito importante. “A permanência das investigações desses crimes na esfera estadual é a certeza da impunidade”, acredita. (Colaborou Rogério Almeida, de Belém)

ANÁLISE

Hamilton Octavio de Souza O bárbaro assassinato da freira Dorothy Stang, de 73 anos, dia 12, em Anapu, a 500 quilômetros de Belém, no Pará, só pode ser visto com indignação e repulsa. Ela – assim como tantos outros religiosos, sindicalistas, advogados, professores, militantes sociais, camponeses, trabalhadores – deu a vida para ajudar os mais pobres, os excluídos, o povo humilde que se esforça para sobreviver num país injusto e desigual. A violência praticada contra a irmã católica, da ordem de Notre Dame, é a mesma que vitimou centenas de lutadores do povo pelo Brasil afora, nas últimas décadas, que se empenharam pela reforma agrária, pela defesa dos bens naturais, num país que ostenta um imenso território e a mais mesquinha distribuição da terra. A Comissão Pastoral da Terra tem computado centenas de crimes semelhantes sem que os seus autores, diretos e indiretos, tenham sido julgados, condenados e punidos. O assassinato da irmã Dorothy obriga à reflexão sobre algumas questões fundamentais: o que essa freira, idosa, pacífica, despojada e solidária, dedicada aos mais humildes, poderia oferecer de ameaça a

ponto de ter sido fuzilada com seis tiros de pistola? Que mal ela estaria fazendo ou poderia fazer se não tinha armas, jagunços e nem planos para praticar qualquer violência contra quem quer que fosse? Quem encarnaria tanto ódio para assassinar um ser humano tão frágil e indefeso? As respostas a essas questões não estão apenas na comprovada covardia dos pistoleiros, na certeza de impunidade que move os mandantes (provavelmente fazendeiros ou empresas madeireiras), na cumplicidade da Justiça e de outros servidores públicos, ou na indiferença dos governantes. As respostas mais certeiras estão na própria existência do latifúndio, na mentalidade feudal e escravocrata dos grandes proprietários rurais, no sistema político-econômico que espolia o trabalhador, e nos grupos empresariais e oligárquicos que são capazes de tudo para manter seus privilégios. As respostas para esse crime não estão no Pará, na Amazônia, nas fronteiras agropecuárias ou nos fundões do Brasil. As respostas para esse crime – e para tantos outros – estão nos palácios de Brasília, nos plenários do Congresso Nacional, nos tribunais, nos governos estaduais, nos grandes e pequenos centros

urbanos, na imprensa burguesa, no modo de vida e na ideologia dos reacionários que insistem em perpetuar um Brasil arcaico, atrasado, gerador de miséria e de injustiças. A mesma violência que assassinou a irmã Dorothy está presente em todos os lugares onde existe autoritarismo, prepotência, discriminação, individualismo, egoísmo, ganância – enfim, em tudo aquilo que representa o mando das elites sobre a maioria, através da ameaça, da humilhação e do terrorismo. A mesma violência está nas empresas, nas escolas, nas instituições, manifestada por aqueles se apropriam dos bens coletivos, comunitários e públicos para transformá-los em bens privados e pessoais. A irmã Dorothy foi assassinada porque as forças políticas comprometidas com o povo e com as transformações do país não ousaram fazer o confronto decisivo com os criminosos; foram, seguidas vezes na história recente do país, levadas à conciliação sem romper o círculo vicioso da submissão. Por isso mesmo o povo continua refém dos “senhores de engenho” e de seus herdeiros travestidos nos mais diversos papéis do topo da pirâmide social. A morte da irmã Dorothy não terá sido em vão se o seu exemplo

Carlos Silva/ Imapress/AE

Dorothy Stang. Presente!

Irmã Dorothy vinha sofrendo ameaças de morte há vários anos

de vida se espalhar pelo povo; se a sua dedicação solidária contagiar os militantes sociais; se cada um assumir o compromisso de lutar, minimamente que seja, pelas mesmas causas pelas quais ela viveu e morreu. Assim, quando alguém

perguntar pela irmã Dorothy Stang, a nossa resposta só poderá ser um forte e sonoro grito: PRESENTE!

Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor da PUC-SP


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Folha e UDN, tudo a ver A edição de domingo, 13/2, do jornal luso-brasileiro Folha de S. Paulo é um primor do que, em meados do século 20, seria chamado de “crítica udenista”. Na manchete, uma “denúncia” bombástica: ministros do governo Lula fizeram uso de uma tal “diária seca” (receberam verba para hospedagem em viagem oficial ao exterior, mas pernoitaram na embaixada brasileira do país visitado). Valor do “desvio”: trinta e poucos mil reais. A rigor, o valor deve ser menor, pois alguns ministros estão ressarcindo o caixa do Tesouro com o valor que embolsaram e não gastaram. O que o jornal vende como denúncia é quase um atestado de honestidade do primeiro escalão. Basta imaginar o que representam R$ 30 mil perto das caixinhas das privatizações bilionárias, “no limite da irresponsabilidade”, da gestão FHC. Se muito, um trocado. Imagens & manipulação Nem só com palavras o noticiário é manipulado. Imagens são fundamentais e muitas vezes têm efeito devastador, como no episódio que sepultou a candidatura presidencial de Roseana Sarney, em 2002. Na primeira página da Folha de domingo, a foto que acompanhava a manchete sobre os ministros não tinha nada a ver, mas ilustrava a chamada para a coluna de Monica Bergamo, sobre o cotidiano de Gilberto Gil, ministro da Cultura. Gil aparece sem camisa, preparando-se para o carnaval da Bahia, com uma auxiliar raspandolhe os pêlos do peito. Um leitor desatento junta a manchete com a foto, e fica com a impressão de que Gil usa dinheiro público para pagar a ajudante. A própria reportagem informa que ela faz parte do staff do cantor, não do ministro, mas tal explicação não está na primeira página. Isso tem nome: jornalismo marrom. Notícia mesmo, não sai O fato mais importante do sábado, 12/2, porém, não foi para a primeira página da Folha de domingo. O jornal luso-brasileiro não deve achar relevante, mas uma missionária estadunidense que trabalhava em prol dos sem-terra, dos pobres e desvalidos, foi assassinada no interior do Pará. Faz sentido: a turma que edita o jornal tem os olhos voltados para Miami e o rabo preso em Lisboa. Para eles, a morte da irmã Dorothy Stang não é digna de menção na primeira página. Até o Estadão deu Justiça seja feita. O resto da grande imprensa brasileira percebeu a gravidade do fato, que está sendo comparado ao assassinato de Chico Mendes. Até O Estado de S. Paulo, tradicional adversário da reforma agrária, percebeu que era realmente o caso de levar a morte de Dorothy para a primeira página. Coréia do mal... O anticomunismo da revista Veja beira sempre o ridículo. Na última edição do semanário, há reportagens sobre as duas Coréias. O fato de que a Coréia do Norte possui arsenal atômico mereceu uma reportagem cujo sensacionalismo pode ser resumido pelo título: “Louco, bizarro e tem a bomba” (em referência ao presidente Kim Jong II). ... e Coréia do bem Já os coreanos do Sul são tratados como verdadeiros gênios da humanidade por terem realizados uma “revolução na educação”. Veja sugere que o governo brasileiro copie o modelo coreano. A quantidade de asneiras é de deixar de cabelo em pé qualquer especialista em educação (curiosamente, nenhum educador foi ouvido). Ademais, a própria tese advogada pela revista (a “revolução educacional” tirou a Coréia da miséria e a colocou no 1° mundo) é falsa, pois deixa de lado os ajustes macroeconômicos realizados não apenas na Coréia, mas em todos os chamados Tigres Asiáticos.

Estudantes lutam pelo passe livre Movimento pela gratuidade pode estimular a organização e a mobilização dos estudantes Bel Mercês e Dafne Melo da Redação

C

om o objetivo de iniciar o processo de construção de um movimento nacional que unifique a luta pelo transporte gratuito estudantil, delegações de 29 cidades do Brasil, representando 16 Estados, estiveram presentes na Plenária Nacional pelo Passe Livre, dia 29 de janeiro, durante o 5º Fórum Social Mundial. Marcelo Pomar, historiador e militante do Movimento Passe Livre (MPL) em Florianópolis, explica que a luta pelo transporte grátis estudantil não tem um fim em si mesma. “Essa campanha é a força motriz para discutirmos a questão do transporte público”, diz. O MPL se apóia na Constituição Federal para fazer sua reivindicação. “O passe livre é um direito democrático. A Constituição de 1988 garante a igualdade de acesso e permanência em todos os níveis de ensino. O transporte gratuito é parte fundamental do cumprimento deste direito (...). Milhões deixam de estudar por falta de condições”, argumenta o texto que será usado na coleta de assinaturas para um projeto de lei federal por iniciativa popular que defenda o fim da cobrança de passagens de ônibus municipais para estudantes. Segundo a resolução aprovada na plenária, o MPL se define como um movimento “autônomo, independente e apartidário, mas não anti-

O Movimento Passe Livre reivindica transporte gratuito e argumenta que milhões deixam de estudar por falta de condições

partidário”. A coordenação nacional será feita por um grupo de trabalho (GT), escolhido durante a plenária, e integrado por membros de cada delegação presente.

COORDENAÇÃO O GT, que não possui caráter deliberativo, será responsável pela coordenação das ações do movimento aprovadas na plenária, como a criação de dois dias nacionais de luta, durante o ano letivo; a organização de um encontro nacional pelo passe livre; e uma campanha pela coleta de assinaturas, em todo o país, para a criação do projeto de lei federal Flora Müller

Luiz Antonio Magalhães

TRANSPORTE

Ana Carolina Fernandes/ Folha Imagem

da mídia

NACIONAL

por iniciativa popular. Pomar conta que, embora o movimento conseguisse um parlamentar para apresentar o projeto de lei, a opção pelo caminho da iniciativa popular, via coleta de assinaturas, é uma escolha estratégica do movimento. “Queremos mostrar nossa força. Mostrar que nossa luta tem adesão popular”, afirma o militante. Com o objetivo de projetar e fortalecer nacionalmente o movimento, também foram aprovadas duas atividades que ocorrerão simultaneamente em todo Brasil. Uma, durante a semana de 21 a 28 de março (dia do estudante), outra, em 26 de outubro. As mobilizações terão caráter flexível, respeitando as particularidades de cada cidade.

MONOPÓLIOS

Estudantes participam da plenária nacional pelo passe livre, em Porto Alegre (RS)

De acordo com a última Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, de 2003, o gasto das famílias com transporte só fica atrás da habitação e alimentação; é maior do que as despesas com saúde e educação. Para Pomar, deixar um item importante no orçamento das famílias nas mãos dos empresários do setor é um grande entrave ao desenvolvimento social. Segundo o militante, o direito de

ir e vir da população fica à mercê dos monopólios do setor. “Quem arca com todos os custos do transporte coletivo são os mais carentes e os trabalhadores, que dependem desse serviço”, avalia. Ele cita o exemplo de Florianópolis, onde cinco empresas controlam o transporte público há 40 anos e cujas licenças são renovadas constantemente, sem novos processos de licitação. Entre agosto e setembro de 2004, diversas mobilizações fecharam as principais vias da capital catarinense, após a prefeitura anunciar um aumento de 15,6% no preço da passagem. Os protestos uniram sindicatos, associações de bairros e estudantes, que também levantaram a bandeira do passe livre estudantil. O projeto de lei municipal foi aprovado em dezembro de 2004, mas só entrará em vigor a partir de 2006. “Só vamos considerar o movimento vitorioso quando estivermos rodando a catraca sem pagar”, afirma Pomar. Para 2005, em Florianópolis, os ativistas vão escolher um dia para que todos os estudantes pulem as catracas com a lei impressa em mãos. “Vamos fazer um ato de ‘obediência civil’, fazer a lei valer. Precisamos mostrar que se a lei não for cumprida, voltaremos às ruas”.

Em algumas cidades, rearticulação Enquanto em algumas cidades a campanha pelo passe livre é fruto de uma articulação que se desenvolve há anos, e está fortalecida, em outras, a luta apenas começa. A reunião de representantes de todo o país na plenária nacional pelo passe livre, em Porto Alegre, deu ao coletivo uma visão de como unir as lutas que ocorrem em âmbito local. Em São Paulo, apesar de o movimento ter começado em 1999, há apenas seis meses ganhou caráter autônomo. Segundo Monique Félix Borin, estudante de História da PUC-SP e membro do comitê municipal, durante anos a campanha foi monopolizada por partidos políticos que buscavam auto-promoção nas escolas. Ela contou que a articulação se resumia a assembléias de disputa partidária, além de manifestações usadas para filiação em massa. “Depois disso, houve um certo esvaziamento”, comenta. Em 2002, um projeto foi apresentado na Câmara dos Vereadores, mas continua tramitando até hoje. Em meados de 2004, realizou-se, em São Paulo, a plenária municipal, com cerca de 300 pessoas, e foi formado um novo comitê composto de autônomos, independentes, anarquistas e também pessoas com ligação político-partidária. Por motivos práticos, a participação ainda está restrita às escolas de ensino médio da periferia, onde foram criados comitês específicos. Mas a plenária nacional trouxe para o debate estudantes das universidades dispostos a dar andamento

Fotos: CMI

Espelho

Em Fortaleza (CE), as manifestações pelo passe livre chegaram a reunir 5 mil pessoas

à luta. A própria Monique acaba de ingressar na faculdade, para onde planeja levar a discussão. No momento, dez escolas de ensino médio têm participação ativa. “Descentralizamos o trabalho, para facilitar. A luta deve ser feita de maneira horizontal, principalmente em São Paulo, que é uma cidade estratégica e muito grande”.

UM DIREITO Segundo a integrante do comitê municipal, o debate sobre o passe livre possibilita levar aos jovens outras discussões como a da luta de classes. Por isso, o projeto da cidade de São Paulo aborda o tema de maneira mais ampla, não restringindo o direito ao transporte à ida e volta da instituição de ensino. Além disso, pretende garantir o acesso aos centros de cultura e informação na cidade, para que o desenvolvimento do conhecimento adquirido na escola seja pleno. “Queremos que os estudantes en-

tendam que transporte não é um serviço, mas sim um direito, como tantos outros”. Já em Fortaleza, a situação é inversa. A campanha começou com uma intensidade invejável, puxada por um projeto de lei intermunicipal que previa o direito de meia-passagem para quem morava e estudava em cidades diferentes. Lá, o debate começou no início de 2004 e, em todas as segundas-feiras do mês de março, em frente ao Curso Técnico Ceará, centenas de jovens passaram a se reunir em assembléias.

EM FORTALEZA Beatriz Rangel, recém-formada em Jornalismo pela UniFor, conta que, às quintas-feiras, aconteciam as marchas exigindo o passe livre, a meia-passagem intermunicipal e o fim do pass card (cartão eletrônico dotado de chip para controlar o número de passagens usadas mensalmente). “As ruas chegaram a ser ocupadas por cinco mil pessoas, e a

média nunca ficava em menos duas mil por passeata”, conta Beatriz. Depois das eleições, o movimento foi amortecido. As pessoas deixaram de se organizar, e, hoje, de acordo com a jornalista, a campanha precisa recomeçar na cidade. “Precisamos de estratégias para montar os comitês, de trabalho de base e conscientização popular para organizar manifestações. E noção sobre a máquina de governo, para poder desenvolver um projeto, uma proposta concreta. Não adianta entrar em uma luta utópica. O que dá margem para a crítica é a falta de conhecimento sobre a administração”. A esperança é que a nova prefeita, Luizianne Lins, do PT, que, quando vereadora, chegou a apoiar e ajudar os estudantes, convoque uma conversa. “Nada garante que ela implemente um projeto, mas estamos dispostos a discutir. É pagar pra ver agora que ela está no poder. O PT da Luizianne é o mesmo do presidente Lula”, lembra Beatriz. (BM e DM)


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De 17 a 23 de fevereiro de 2005

NACIONAL PREVIDÊNCIA

Rombo? Mas sobraram R$ 8,3 bilhões... Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

O

Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) deverá desembolsar, em 2005, alguma coisa como R$ 143 bilhões para honrar aposentadorias, pensões e outros benefícios previdenciários. Daquele total, perto de 20%, ou quase R$ 29 bilhões, devem escorrer pelo ralo, desviados por fraudes e outras falcatruas. A estimativa consta de oficio encaminhado ao Tribunal de Contas da União (TCU) pelo Ministério da Previdência para justificar os custos da implantação de um novo programa de combate e prevenção a fraudes. Segundo o jornal Correio Braziliense, aquele programa deverá exigir gastos de R$ 19 milhões — uma mixaria diante da possibilidade de recuperar coisa ali de uns R$ 7 bilhões que hoje são desviados na concessão irregular de benefícios, e em fraudes com a dívida ativa da Previdência, nos cálculos do ministério. Ainda de acordo com o jornal, uma análise detalhada do sistema de informática do INSS descobriu 1,4 mil pontos vulneráveis, brechas utilizadas por aproveitadores para, literalmente, roubar o dinheiro da Previdência. O ministério, reconhece o próprio governo, não consegue saber o que seus servidores, assessores e funcionários comissionados fazem depois que entram no sistema de informática do INSS. Por isso, há um campo aberto para fraudes de todos os tipos — isso sem contar a sonegação de contribuições por empresas e pessoas físicas e as perdas causadas pela crescente informalidade no mercado de trabalho (já que não há recolhimento de contribuições para trabalhadores sem carteira ou por conta própria).

DESCONTROLE Diante de tamanho descontrole, obviamente se torna complicado sustentar o discurso segundo o qual o (suposto) rombo nas contas da Previdência (ou seja, despesas muitas vezes maiores do que as receitas) seria o responsável por todos os males da economia, o que incluiria até mesmo as taxas de juros mais altas do planeta. Em resumo, o governo não consegue arrecadar o que deveria para a Previdência, nem sabe quanto gasta indevidamente. Por isso mesmo, torna-se ainda mais frágil a contabilidade apresentada pela equipe econômica no começo do ano, que aponta um salto de 21% para o tal déficit da Previdência. Nas contas oficiais, as despesas com benefícios previdenciários superaram as receitas com contribuições ao INSS por uma diferença de quase R$ 32 bilhões, no ano passado, acima do (alegado) rombo de R$ 26,4 bilhões registrado em 2003. A Previdência arrecadou R$ 93,8 bilhões sob a forma de contribuições de empresas e pessoas físicas em 2004, num crescimento de 16% em relação aos R$ 80,7 bilhões recolhidos no ano anterior, e desembolsou R$ 125,7 bilhões com o pagamento de aposentadorias e pensões. Os gastos cresceram um pouco mais, superando as despesas realizadas em 2003 (R$ 107,1 bilhões) em 17,4%.

MANIPULAÇÃO Os números até parecem reais, mas refletem apenas uma parte da contabilidade total do setor de Seguridade Social. Os rombos, na verdade, foram convenientemente construídos a partir da manipulação das estatísticas do INSS. Desconsideram outros recolhimentos e impostos destinados, constitucionalmente, à Previdência e, mais grave, escondem o desmanche a que o setor vem sendo submetido também neste governo. Os números são oficiais e encontram-se à disposição no endereço da Previdência na internet.

Ayrton Vignola/ Folha Imagem

Governo aumenta o desvio de recursos das contribuições sociais para pagar salários e o custeio do ministério

Segurados à espera de atendimento e de justiça no caso do rombo na Previdência: a seguridade tem dinheiro de sobra, mas banca salários e despesas do ministério

2003

2004

80.730

93.766

16,1

quando o INSS registrou uma “sobra” de recursos de R$ 2,1 bilhões. O crescimento do superavit (receitas maiores do que despesas) justifica-se porque houve um aumento de 44,3% no repasse da arrecadação da Cofins, CSLL e CPMF para o INSS.

Benefícios previdenciários

107.135

125.751

17,4

NOVES FORA

Resultado oficial

-26.405

-31.985

21,1

O CAIXA DO INSS, NO AZUL Valores nominais, em R$ milhões

OS NÚMEROS QUE O GOVERNO MOSTRA... Itens Arrecadação líquida

Variação (em %)

As sobras, na prática, são até um pouco maiores, quando se consideram os rendimentos financeiros alcançados pelo INSS no período (cerca de R$ 932,4 milhões). Receitas financeiras, no entanto, não são levadas em conta pelo governo ao definir o cálculo do resultado primário de suas contas (ou seja, para calcular a diferença entre receitas e despesas são desprezados ganhos e gastos com juros). Num outro exercício matemático, meramente teórico, se todas as receitas obtidas pelo governo federal com a cobrança da Cofins, CSLL e CPMF fossem transferidas à Previdência, o INSS registraria um superavit de R$ 82,4 bilhões, já que sua arrecadação total subiria para R$ 216,4 bilhões para fazer frente a despesas de R$ 133,9 bilhões.

... E OS DADOS REAIS DA SEGURIDADE SOCIAL Itens

2003

2004

Arrecadação de contribuições (1)

80.730

93.766

16,1

Demais contribuições (Cofins/CSLL/CPMF) (2)

33.576

48.447

44,3

Receita líquida total (1+2)

114.306

142.213

24,4

Pagamentos do INSS*

112.197

133.918

19,3

2.109

8.295

293,3

Resultado final

Variação (em %)

(*) Inclui despesas com aposentadorias, pensões, assistência social e devolução de benefícios. Exclui gastos com custeio e pessoal Fonte: Divisão de Programação Financeira do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS)

De fato, o INSS arrecadou diretamente, por meio de contribuições previdenciárias, aqueles mesmos R$ 93,8 bilhões. Desde a Constituição de 1988, no entanto, foram incorporadas à receita do INSS, como fontes de arrecadação, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), cobrada de bancos e empresas, e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido de pessoas jurídicas (CSLL). Mais tarde, foi incorporada à seguridade parte da arrecadação do chamado imposto do cheque – a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).

assistência social e encargos previdenciários da União, que, como indica o nome, deveriam ter sido recolhidos pela União), e excluídos os gastos de custeio e com pessoal. Assim, na verdade, o saldo positivo foi de R$ 8,3 bilhões. Mais

claramente, houve sobra de recursos e não rombo, como alegou o governo. Aquele resultado, apurado a partir dos critérios estabelecidos pela Constituição, foi simplesmente 293,3% maior do que o superavit observado em 2003,

Dinheiro da União para o INSS diminui quase 90% O DESMONTE CONTINUA Valores nominais, em R$ milhões

HÁ DINHEIRO

Itens

2003

2004

Variação (em %)

Analisada em conjunto, a Seguridade Social tem dinheiro de sobra e vem bancando, com recursos das contribuições de empresas e pessoas físicas (que deveriam ser destinadas exclusivamente a aposentados e pensionistas), os custos da reestruturação do Ministério da Previdência e suas despesas com pessoal e custeio. Para calcular corretamente o resultado financeiro do sistema previdenciário, o governo deveria levar em conta os conceitos estabelecidos pela Constituição e as novas fontes de receitas incorporadas ao INSS. No ano passado, as receitas somadas da Cofins, da CSLL e da CPMF atingiram R$ 122,6 bilhões (23,4% mais do que em 2003), dos quais apenas R$ 48,4 bilhões (ou 39,5% do total) foram repassados ao INSS. Com esse dinheiro, a receita real líquida do INSS sobe para R$ 142,2 bilhões.

Pessoal

3.774

6.971

+84,7

Custeio

1.533

3.492

+128,0

Total (1)

5.307

10.463

+97,1

Recursos ordinários da União (2)

4.692

649

-86,2

A fatia da União (2/1) (%)

88,4

SUPERAVIT No mesmo período, os pagamentos totais do INSS consumiram R$ 133,9 bilhões, incluído o pagamento de benefícios previdenciários e não previdenciários (como despesas com

6,2

-

Fonte: Divisão de Programação Financeira do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS)

Ainda em 2004, como resultado de uma mudança na política do INSS, os gastos com pessoal experimentaram um salto de praticamente 85% em relação a 2003, pulando de R$ 3,8 bilhões para quase R$ 7 bilhões. Na mesma linha, os gastos de custeio, achatados em 2003 para meros R$ 1,5 bilhão, mais do que dobraram, chegando a R$ 3,5 bilhões (mais 128%). Na soma das duas despesas, o INSS gastou R$ 10,5 bilhões, mais 97% frente ao ano anterior (R$ 5,3 bilhões). Claramente, procurou-se reestruturar o órgão, desfalcado de fiscais e servidores para atender aposentados e pensionistas, em conseqüência das sucessivas políticas de desmonte a que o Instituto tem sido submetido. Políticas que não foram abandonadas de todo. Ao mesmo tempo em que

fez novas contratações e criou despesas para tentar oferecer um serviço de melhor qualidade, o INSS continuou sofrendo cortes nos recursos ordinários repassados pela União. Como em todo o restante do ministério, a União (o governo federal) banca as despesas com pessoal e custeio da máquina administrativa (compras de materiais, equipamentos e outras despesas essenciais ao funcionamento do setor público) com dinheiro dos impostos em geral, pagos pelo contribuinte.

CORTES No caso da Previdência, porém, continua se fazendo o contrário: o dinheiro das contribuições, recolhido para financiar exclusivamente aposentadorias, pensões e outros benefícios previdenciários, tem sido

sistematicamente desviado para pagar despesas correntes, quer dizer, bancar gastos com pessoal e encargos trabalhistas, compra de materiais de escritório, computadores, programas de informática e o cafezinho. Os recursos ordinários transferidos do orçamento da União para o INSS continuaram a desabar no ano passado, saindo de R$ 4,7 bilhões em 2003 para meros R$ 649 milhões no ano seguinte. Houve um corte de 86,2% entre um ano e outro, obrigando o INSS a utilizar o dinheiro das contribuições para honrar despesas que deveriam ser cobertas pelo governo federal. Em 2003, aqueles repasses chegaram a representar 88,4% das despesas de custeio e pessoal do INSS, mas aquela participação murchou drasticamente para meros 6,2%. (LVF)


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De 17 a 23 de fevereiro de 2005

NACIONAL ENTREVISTA

O auge da tortura é agora

Fatos em foco

Rebelião parlamentar Apesar da opção pela direita, a Câmara dos Deputados deu demonstração de independência em relação ao governo Lula. O esquema de rolo compressor, com fisiologismo oficial escancarado, não funcionou. O mérito e a culpa serão imputados ao deputado Virgílio Guimarães (PT-MG). E o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) pagou o pato pela trapalhada da cúpula petista. Vício poderoso Um tratado internacional contra o fumo, articulado pela Organização Mundial da Saúde, está congelado no Senado desde 2003. Assinado por 55 países, o tratado prevê vários tipos de controle ao consumo de cigarros, inclusive na publicidade. Tudo indica que a poderosa indústria do tabaco tem contribuído para segurar a tramitação do documento. Outro golpe O interventor do Banco Central no Banco Santos descobriu mais um golpe aplicado pelo banqueiro Edemar Cid Ferreira: a emissão e venda de certificados de produtos agrícolas sem nenhum lastro. Como se pode verificar, o crime de estelionato é perfeitamente legalizado no sistema financeiro nacional. É apenas mais um tipo de “operação” do banco. Cinismo imperial A Suprema Corte dos Estados Unidos debate, há pelo menos dois anos, se os prisioneiros de Guantánamo têm ou não direitos, já que a base militar não está em seu território. As denúncias de torturas contra os presos de lá continuam, enquanto o governo Bush fala de levar “liberdade e democracia” para vários países do mundo. É muita cara de pau. Doação fraudulenta Pressionados pelos sem-terra, os grandes grileiros do Pontal do Paranapanema – que se apropriaram de glebas acima de 500 hectares – estão tramando a “doação” de uma parte das terras para a reforma agrária, desde que o Estado regularize a documentação de “suas” fazendas. Primeiro, tomaram as terras públicas; agora, prometem caridade com o que não lhes pertence. Doce ilusão 1 Apesar da propaganda ufanista da mídia burguesa e do apoio governamental, o agronegócio – produção empresarial em larga escala voltada para a exportação – está afundando em várias regiões do país. No Mato Grosso, a safra 2004-2005 de soja, algodão e arroz deve dar um prejuízo de 445 milhões de dólares – custeado em parte com o dinheiro público do BNDES. Doce ilusão 2 A situação do agronegócio está tão boa, mas tão boa mesmo, que o ministro do latifúndio pediu ao governo um socorro de R$ 5,5 bilhões para os grandes empresários rurais. É assim que funciona o capitalismo brasileiro: os empresários preferem torrar o dinheiro público, ao invés de mudar o modelo de ocupação e exploração do campo. Direita deslumbrada Empresários, banqueiros e economistas neoliberais publicaram nos jornais burgueses, nas últimas semanas, vários artigos contendo elogios ao governo Lula e ao PT. Todos para demonstrar que ambos seguiram o senso comum da ordem estabelecida. Até um ex-presidente do Citibank brindou o “novo PT”, no seu 25º aniversário, com artigo bajulativo no Estadão. Ninguém se pergunta se as coisas não estão com os sinais trocados? Estrutura viária As chuvas do carnaval castigaram várias regiões do país e evidenciaram, com clareza, a precariedade das estradas federais, que ficaram pelo menos dez anos – oito do governo FHC e dois do governo Lula – em completo abandono. Milhares de mortes teriam sido evitadas com algum investimento no setor.

Nestor Cozetti, Felipe Monteiro e Zilda Ferreira do Rio de Janeiro (RJ)

O

s abusos no sistema de Justiça, incluindo execuções e tortura por parte de agentes penitenciários, são os problemas mais urgentes a serem enfrentados na área dos direitos humanos no Brasil. A conclusão é do relatório World Report 2005, da organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW). O documento, divulgado em janeiro, também avalia como “crônica” a violência e a superpopulação nas prisões do Brasil, que aumentou de 114 mil em 1992 para 300 mil em 2004. Conforme o texto, tanto a Polícia Civil quanto a Polícia Militar são freqüentemente apontadas como responsáveis por graves violações, incluindo tortura, execuções, “desaparecimentos” e atos de racismo. Nos primeiros seis meses de 2004, foram registrados no Estado de São Paulo 109 homicídios pela polícia. De acordo com o relatório, embora alto, o índice teve queda de 73% em relação ao ano anterior. No Rio de Janeiro, o único Estado a divulgar dados mensalmente, a polícia matou 593 pessoas nos primeiros oito meses de 2004, o que significa um declínio de 25% em relação a 2003. As queixas de abuso policial citam brutalidade, assassinato, corrupção e falta de interesse em manter a ordem em certas regiões. Para a HRW, as crianças são “vulneráveis aos abusos do sistema de Justiça juvenil” do Brasil. No início de 2004, o Ministério da Justiça informou que 13.489 jovens abaixo de 18 anos estavam nas prisões, metade deles no Estado de São Paulo. As prisões para jovens têm capacidade para 11.199 jovens reclusos. Segundo entidades de direitos humanos, houve 10 mortes de internos. De acordo com Cecília Coimbra, fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais – Rio de Janeiro, “nunca se torturou tanto como atualmente”, mas a vítima, hoje, segundo ela, é a pobreza criminalizada, diante da qual se “justifica toda e qualquer ação, mesmo que seja tortura e morte”. Em entrevista ao Brasil de Fato, Cecília afirma que o principal responsável pela tortura é o Estado. No treinamento de policiais militares, que deveria servir para aumentar a segurança pública, lembra ela, há canções com letras que incitam à violência contra os grupos menos favorecidos, “o que resulta na produção de novos torturadores”. Brasil de Fato – Onde e como foi criado e escolhido o nome Tortura Nunca Mais? Cecília Coimbra – Foi fundado primeiro no Rio de Janeiro, e posteriormente se expandiu para outros Estados. Surgiu em abril de 1985, quando soubemos que pessoas que haviam feito parte do aparato de repressão na época da ditadura estavam ocupando cargos de confiança no governo Brizola, primeiro governo de oposição. E quem denunciou isso pela primeira vez foi um secretário do governo Brizola. Ele afirmou que o coronel bombeiro Valter Jacarandá, que havia torturado vários outros companheiros, estava sendo indicado para comandante do Corpo de Bombeiros. Após as denúncias, Jacarandá acabou não assumindo o cargo. BF – Houve outros casos? Cecília – Depois, descobriu-se que outras pessoas que fizeram parte do aparato de repressão tinham cargos de confiança no governo. Até hoje, continuamos a ver membros do aparato de repressão concorrendo e ocupando cargos políticos, entre eles José Halfeld Filho, carcereiro do pre-

Ana Carolina Fernandes/Folha Imagem

Barbárie nacional O assassinato da freira Dorothy Stang, no Pará, anunciado com dias de antecedência até mesmo pelos meios de comunicação, será apenas mais um crime bárbaro na enorme lista da impunidade, se não houver forte reação e cobrança da sociedade. Não basta pegar os executores, é preciso acabar com o sistema – baseado no latifúndio – que produz a violência no campo.

Entidade de direitos humanos vê abusos da Justiça, mesma denúncia feita por Cecília Coimbra

Policiais ocupam a Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em junho de 2004 Mauricio Scerni

Hamilton Octavio de Souza

Quem é

A carioca Cecília Coimbra é fundadora do primeiro grupo Tortura Nunca Mais do Brasil: o do Rio de Janeiro, em 1985, quando assumiu sua presidência. Hoje, é a 2ª vice-presidente da entidade. Também dá aulas na Universidade Federal Fluminense (UFF), nos cursos de graduação e pósgraduação de Psicologia, área na qual é doutora pela Universidade de São Paulo (USP). Sua tese de pós-doutorado em Ciências Políticas foi sobre a violência urbana na contemporaneidade, que gerou uma classe perigosa, criando estereótipos.

sídio São Judas Tadeu na época da ditadura. Ele foi vice-prefeito da cidade de Miracema e, nas últimas eleições, concorreu pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Também temos o Josias Quintal, que era analista de informações na época da ditadura. Ou seja, o grupo Tortura Nunca Mais surge principalmente para combater a impunidade dos que pertenceram ao aparato da repressão, e para resgatar a história do período da ditadura militar.

produção de novos torturadores. Tal tipo de treinamento desumaniza os policiais, tornando-os mais facilmente manipuláveis, ou seja, o Estado é o principal responsável pela tortura. E pela criação, na classe média, de um sentimento de ódio, repúdio e indiferença aos segmentos populares. A grande imprensa também tem uma imensa parcela de responsabilidade nisso, visto que se omite diante de tais fatos.

BF – E o nome? Cecília – Vem de uma comissão criada para levantar os crimes da ditadura argentina, durante o governo Alfonsín, que se chamava Nunca Más. Logo depois, foi lançado o livro Brasil Nunca Mais, no qual foram fundamentais as participações de dom Paulo Evaristo Arns e do reverendo Jaime Wright (cujo irmão, o deputado Paulo Wright, desapareceu durante a ditadura). O nome do livro foi mera coincidência, não teve qualquer ligação com nosso grupo.

BF – O que a senhora acha da declaração da governadora Rosinha, por ocasião do massacre em Bangu, no início de 2003, de que “direitos humanos é para quem está lá fora, para quem não cometeu crime”? Cecília – É, bandido não é gente. Normalmente, é pobre e, como pobre, historicamente não é humano. Hoje se coroa um processo histórico de desqualificação da pobreza, de criminalização da pobreza. E, no momento que você criminaliza, justifica toda e qualquer ação, mesmo a tortura e a morte.

BF – A senhora já disse que nunca se torturou tanto como hoje. Só que agora são os pobres, os chamados marginais, e no tempo da ditadura era a classe média e, por isso, as pessoas ficavam horrorizadas, porque a tortura não havia sido feita para os nãopobres. Cecília – Acho que nós, da classe média, que temos algum espaço na mídia para falar, temos de chamar a atenção para este fato. A tortura sempre foi usada contra os pobres, desde os índios e os escravos, e nunca se torturou tanto quanto atualmente, em tempos de neoliberalismo. E quando se fala da tortura na classe média, esquece-se que isso sempre aconteceu nas classes menos favorecidas. As pessoas acham que a tortura não foi feita para a classe média e a elite, e sim apenas para os pobres. Ou seja, certos segmentos sociais são vistos como diferentes: são menos humanos.

BF – A violência imposta pelo sistema econômico não pode chegar a um ponto em que as elites acabem perdendo o controle sobre ela? Cecília – Sem dúvida. Elas sabem e têm medo. Não é por acaso que se tenta controlar isso de toda maneira. A Rede Globo não está aí por acaso, produzindo formas de existir no mundo às quais é preciso se submeter. Mas, obviamente, isso não é infalível, nenhum poder é homogêneo, nenhum poder domina integralmente e é absoluto. Que bom que algo sempre escapa, que bom que os movimentos sociais estão aí. Senão, não existiriam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Tortura Nunca Mais, para denunciar tais tentativas e tentar afirmar outra forma de existir neste mundo, que não sejam os modelos impostos pelas classes dominantes.

BF – Essa visão é generalizada? Cecília – Ela existe inclusive no treinamento de policiais militares, que deveria servir para aumentar a segurança pública. Mas nesses treinamentos há canções com letras que incitam à violência contra os grupos menos favorecidos (veja box), o que resulta na

BF – É socialismo ou barbárie, ou é possível mudar o modelo no sistema capitalista? Cecília – Olha, eu não vou ficar esperando. A derrota que a minha geração sofreu ensinou que é no cotidiano que se tem de atuar. Eu acho que este é um sistema perverso. Queremos destruí-lo, sim, porque só existe miséria por

existir capital, uma coisa depende da outra. Mas acho que é na atuação cotidiana que é possível ir mudando alguma coisa. Eu não sei se algum dia vou fazer a revolução, como esperava fazer a minha geração. Mas, pequenos movimentos, podemos fazer todos os dias. Como já dizia Foucault: “Todas as nossas práticas estão produzindo efeitos no mundo, toda e qualquer ação nossa está produzindo efeito no mundo, quer a gente queira ou não”. Quem está sempre em ação está produzindo, seja para o bem ou para o mal. A grande arma deste sistema é instigar conformismo nas pessoas, fazendo com que elas aceitem sua condição. BF – Então é verdade que hoje se tortura mais do que na ditadura? Cecília – Muito mais, por que estamos num momento de violência muito grande, com o Estado abrindo mão de seus deveres, tempos de Estado mínimo. Cada vez é maior o número de sem-teto, de crianças ligadas ao tráfico, fazendo com que o aparato de repressão aumente para manter a segurança das elites, fazendo com que o mercado de segurança, como os fabricantes de armas e alarmes, cresça muito. Inclusive, muitos torturadores têm empresas no ramo. O número de pessoas empregadas pelas empresas de segurança é muito maior do que o efetivo da PM no Rio de Janeiro, segundo uma pesquisa realizada pelo Carlos Minc (deputado estadual pelo PT/RJ). BF – A senhora passou pelo famigerado DOI-Codi do Rio de Janeiro, e seus testemunhos sobre as torturas que sofreu são feitos com mais tranqüilidade do que os de muitos que passaram por isto. É para que este tipo de terror não se repita? Cecília – É por ser militante. Não é uma questão pessoal, mas de toda uma geração. Ao falar do meu exemplo estou falando de muitas outras mulheres que foram presas e que se desestruturaram, ou morreram, ou não tiveram condições de falar. Então, falar é uma forma de registrar essa memória, não de me vangloriar. Quem foi torturado, violentado, não consegue apagar da memória tais acontecimentos. Então, falar é uma forma de luta, temos que usar essas marcas como instrumentos de luta e não ficar com pena de nós mesmos. Não é tranqüilidade, é a chance de usar minha história como forma de luta que me dá mais força para tocar no assunto. Esta é a lógica do repressor, pois se você se mantém em silêncio, faz um pacto com ele, produz o esquecimento e passa a ser conivente.

Música fala de morte por atacado Letra de uma das músicas de treinamento da PM do Rio: Essa noite eu vou sair, Sair pra procurar Uma turma de bandidos Pra poder matar. Eu vou rezar Pra que eles venham de fuzil na mão. Eu vou matar, Eu vou comer seu coração. O tenente foi ao inferno, Foi matar o Satanás. Missão como essa, Só o tenente é capaz. Comeu a carne dos mortos, Jogou os ossos pra trás. Perguntou para o Capeta Se era um só ou tinha mais.


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De 17 a 23 de fevereiro de 2005

NACIONAL PT 25 ANOS

Derrota na Câmara estraga o jubileu Luís Brasilino da Redação

J. Freitas/ABR

Severino Cavalcanti é eleito presidente da Câmara e põe em dúvida tese de governabilidade da cúpula petista rá o PT à derrota. O partido deve se concentrar na base social”, opina. Essa dicotomia entre direita e esquerda no governo Lula, dividido entre os ministros da área econômica e os da área social, é também o retrato do PT. Segundo o senador Cristovam Buarque (PTDF), o partido mudou para melhor em algumas coisas. “Amadureceu, percebendo que a economia não é um instrumento ideológico, que ela tem certas limitações e é muito dependente da iniciativa privada”, diz. Buarque enaltece também a responsabilidade fiscal e a estabilidade econômica. No entanto, ele indica como negativo o fato de ter deixado de lado algumas de suas bandeiras ao chegar ao poder. Assim, ao invés da implementação de programas sociais para acabar com a pobreza, o governo partiu para projetos mais assistencialistas do que transformadores.

M

enos de uma semana depois de fazer 25 anos, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o governo Luiz Inácio Lula da Silva sofreram sua mais estrondosa derrota no Congresso Nacional. No dia 15, o candidato independente à presidência da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PPPE), venceu a disputa contra dois petistas, o oficial, Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), e o rebelde, Virgílio Guimarães (PT-MG). Esse resultado instaurou um processo de discussão sobre a administração federal do partido. Se, por um lado, a ala majoritária do PT justifica a derrota em função dos erros da bancada na Câmara, outros apontam mudanças estruturais da organização partidária para explicar o vexame. Segundo Francisco Vicente, secretário geral do PT do Rio Grande do Sul, os erros que levaram à derrota foram fruto de uma disputa interna motivada por interesses menores (particulares). “Não vejo isso como uma fissura na unidade, mas como uma incapacidade de liderar os liderados”, diz para depois completar que a derrota – “muito grande” – é agravada pelo fato de demonstrar também uma perda de controle pela direção do partido. Para o dirigente gaúcho, o

Parlamentares comemoram o retorno da extrema-direita à presidência da casa

PT não foi derrotado por uma oposição organizada, mas por um movimento que nem sabe muito bem o que fazer. No entanto, para o advogado Plínio Arruda Sampaio, diretor do jornal Correio da Cidadania e exdeputado federal constituinte pelo PT, o problema é bem outro. “O partido se desviou do seu caminho no momento em que resolveu ser governo, mesmo sem chegar ao po-

der”, analisa. Sampaio explica que isto deixou o PT sujeito aos ataques das elites, o que aparece em momentos como o da eleição na Câmara. O partido tomou uma sova da direita, a despeito de toda uma tradição republicana (é a primeira vez que um partido com o maior número de parlamentares, condição na qual o PT se encontra atualmente, perde uma eleição para a

Quem é Severino Cavalcanti (PP-PE), deputado que ganhou a presidência da Câmara em segundo turno, no dia 15, com 300 votos, 105 a mais que Luiz Eduardo Greenhalgh, candidato oficial do PT (SP)? O parlamentar do PP é da ala conhecida como “baixo-clero”, a maioria anônima da Câmara, ou seja, aquele contingente de deputados de pouco destaque, geralmente esquecidos pelas lideranças. Foi eleito com a plataforma de elevar os salários dos companheiros à equivalência dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Há oito anos Cavalcanti lança sua candidatura à presidência da casa, sempre desistindo da disputa em troca de um cargo na mesa diretora. Seu histórico é assustador: de 1964 a 1966, pela UDN, foi prefeito de João Alfredo, cidade em que nasceu. Findo

J. Freitas/ABr

O Severino que desbancou o governo

o mandato, entrou para o Arena, partido da ditadura militar. Passou, também, pelo PDS, PDC, PL, PPR, PFL e PPB, antes de entrar para o PP, partido do emblemático paulistano Paulo Maluf, em 2003. Em dezembro de 2004, quando o governo anunciou a possibilidade de revisão na legislação sobre o aborto, o deputado Cavalcanti,

católico de posições políticas conservadoras, afirmou que faria de tudo para barrar qualquer mudança. Seu endereço na internet apresenta, entre os trabalhos de destaque, a atuação em “ defesa da Família (sic), dos microempresários, das classes produtoras, do direito à Vida (sic) e da moralização da atividade pública.”

presidência de uma casa legislativa federal, desde a redemocratrização).

MUDANÇAS O gaúcho Vicente conta que um dos caminhos seguidos pelo PT a partir da sua fundação, em 10 de fevereiro de 1980, levou a um desequilíbrio da balança do seu relacionamento com a via institucional e os movimentos sociais, em benefício do primeiro. “Isso acabou atraindo setores que não faziam parte das bases originais, afastando, em parte, estas últimas”, descreve. Para o deputado federal Ivan Valente (PT-SP), a eleição de Cavalcanti enfraquece o governo federal por concentrar a sua base numa direita incontrolável e insaciável. “A direção do partido quer ganhar pelo fisiologismo e pelo clientelismo, desprezando a bancada petista que passou a ser um peso morto. A direita, percebendo essa fragilidade, sentiu o sangue na boca e aplicou tal derrota ao governo na eleição da mesa diretora da Câmara”, observa Valente. O PT não elegeu sequer um parlamentar para a mesa diretora da Câmara.

E 2006? Para Valente, o fato pode chamar a atenção do comando petista para as posições da bancada de esquerda. “Se isso não acontecer, a eleição (para a Presidência da República) de 2006 vai ficar ameaçada. Abrir o leque de alianças para a direita leva-

FUTURO INCERTO Só que, para militantes como Jorge Martins, o Jorginho da Executiva Nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), tais mudanças são inadmissíveis, e ele saiu do PT durante o 5º Fórum Social Mundial, realizado entre 26 e 31 de janeiro em Porto Alegre. A seu ver, Lula não só dá continuidade à política neoliberal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como a aprofunda. “Não cumpriu as promessas de geração de 10 milhões de empregos, de dobrar o salário mínimo, de realizar uma reforma agrária massiva e de fazer uma auditoria da dívida externa”, argumenta Jorginho. Segundo Francisco Vicente, os que estão saindo do PT avaliam que o partido abandonou suas raízes e deixou de ser uma organização revolucionária, capaz de fazer mudanças estratégicas. Para Sampaio, as transformações ocorridas no PT são resultado de uma usurpação oligárquica de um grupo que tomou controle do partido. “O aprofundamento da perda de identidade é a principal ameaça para o futuro”, completa Vicente. A importância do partido, contudo, é incontestável. “O PT representa uma revolução maior do que o próprio Brasil: foi formado por trabalhadores, liderado por um trabalhador (Lula), se estendeu por todo o país e, hoje, é um fenômeno mundial e histórico”, reconhece, orgulhoso, Cristovam Buarque. (Colaborou Bel Mercês e Marcelo Netto Rodrigues, da Redação)

CAMPANHA DA FRATERNIDADE

Beatriz Pasqualino e Luís Brasilino de Brasília (DF) e da Redação A Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2005, promovida pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), quer levar para todas as regiões do país o tema “Solidariedade e Paz”, e o lema “Felizes os que promovem a paz” – frase que reproduz as palavras de Mateus na Bíblia. A idéia é reagir à violência que assola o mundo neste início de século 21. Seja a violência das invasões promovidas pelos Estados Unidos, seja a das microguerras urbanas e rurais, a violência familiar, das relações sociais, das ações de indivíduos ou do crime organizado. Sinal dos tempos, o assassinato da irmã Dorothy Stang, dia 12, no Pará, marcou esse início de jornada e levou o Conselho a divulgar nota de repúdio e indignação ao crime. “A paz é concreta e deve ser construída por meio da solidariedade”, explica o pastor Ervino Schmidt, secretário-executivo do Conic. Os

organizadores da Campanha sustentam que não se deve “lutar” contra a violência, mas superá-la. Para isso, imaginam que em cada região podem nascer fóruns da paz onde os problemas serão analisados e formuladas as eventuais sugestões. Dessa forma, a Campanha da Fraternidade 2005 quer se espalhar, de forma autônoma, pelo Brasil. “Queremos formar uma defensoria da paz em escala nacional, juntando poder público e sociedade civil, onde o Conic funcionaria apenas como um conselho, não como promotor”, informa o pastor Schmidt.

Divulgação

Paz, a bandeira para 2005

DESAFIOS Um dos desafios deste projeto é fortalecer o debate sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso e a violência doméstica e contra a mulher. Mas o destaque é para a solidariedade das igrejas em torno da Campanha do Desarmamento e do referendo marcado para o dia 2 de outubro, quando o povo brasileiro será questionado sobre a venda de armas no país. O Conic explica que a Campanha não

Cartaz da CF 2005: pelo desarmamento e contra a violência

visa diretamente o referendo, mas apóia a mobilização da sociedade para que ele se realize. A cerimônia do início da Campanha foi realizada na Igreja Metodista, em Brasília (DF), com a presença de religiosos de diversas igrejas. Desta vez, a Campanha não está sendo conduzida, como de costume, pela Conferência Nacio-

nal dos Bispos do Brasil (CNBB), mas pelo Conic, a fim de garantir a participação igualitária das igrejas por meio de um organismo ecumênico. Esta é a segunda vez que o Conselho dirige a Campanha. Em 2000, o tema era “Dignidade humana e paz”. “A campanha chega em excelente momento e quer unir as pessoas

de boa vontade na superação da violência, promovendo a solidariedade e a construção de uma cultura de paz”, disse o bispo Adriel de Souza Maia, presidente do Conic. Participam do Conselho as igrejas Católica Romana, Cristã Reformada, Episcopal Anglicana, Evangélica de Confissão Luterana, Metodista, Ortodoxa Siriana e Presbiteriana Unida. Outra data importante e que faz parte da agenda da Campanha da Fraternidade 2005 é o Dia Nacional de Coleta da Solidariedade. A atividade vai acontecer no dia 20 de março e pretende arrecadar recursos para o atendimento às vítimas da violência e exclusão por meio de um envelope que será distribuído em território nacional. Da coleta, 60% serão destinados à Igreja local e os 40% restantes vão para o Fundo Ecumênico de Solidariedade (FES). Em 2000, a porcentagem do Fundo somou mais de R$ 2,1 milhões e conseguiu atender 148 projetos. A meta para 2005 é dobrar o volume de recursos e de projetos.


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NACIONAL PARANÁ

Da cooperativa para o mercado externo Fotos: Mário Camargo

Assentamento em Paranacity comemora 12 anos, transforma a economia da região e chega à Europa

As 25 famílias assentadas processam frutas e mantêm uma padaria

A cachaça e o açúcar mascavo da cooperativa, produzidos sem agrotóxicos, serão comercializados no exterior

Mário Camargo de Paranacity (PR)

O

trabalho desenvolvido pela Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), em Paranacity, região Noroeste do Paraná, é um show. Exemplo de produtividade agrícola e de sucesso no sistema cooperativista de produção e de organização, a Copavi quer conquistar novos mercados e aposta na exportação de alguns produtos. O primeiro produto a tentar conquistar o mercado externo é a aguardente, cujo processo de registro encontra-se na Receita Federal, depois da liberação para exportação emitida pelo Ministério da Agricultura. Há também possibilidade de venda do açúcar mascavo, que assim como a cachaça são produzidos sem agrotóxicos.

ORGANIZAÇÃO E PRODUÇÃO Neste mês, a Espanha deve efetivar a compra de 2 mil quilos de açúcar e 2.400 garrafas de aguardente. O assentamento mantém ainda contatos com a França e, ainda no primeiro semestre, um grupo de empresários estadunidenses visitará a cooperativa, para conhecer a experiência do assentamento e estabelecer futuros negócios. A experiência da cooperativa

está servindo de exemplo. A renda mensal de uma família em que três membros trabalham chega a R$ 850. Não há gastos com aluguel e água e os produtos industrializados, como os derivados de leite processados no local, são adquiridos pelos moradores a preço de custo. As 25 famílias também processam frutas e mantêm uma padaria. Os produtos da Copavi são vendidos diariamente e sem intermediários aos consumidores de Cruzeiro do Sul e Paranacity. Alem disso, a produção é comercializada em feiras de quatro cidades da região. Alguns produtos industrializados, como o açúcar mascavo, são distribuídos em lojas de artigos naturais de Maringá, Curitiba e em cidades do Mato Grosso do Sul. Parte da produção vai para as lojas da reforma agrária em Ribeirão Preto, São Paulo, Porto Alegre e Curitiba. A organização é uma das razões do sucesso do assentamento. As tarefas são divididas por grupos – de produção, comercialização, subsistência e área social – e as principais decisões, tomadas de maneira coletiva. Não há lotes definidos por famílias e a produção é dividida. De segunda a sexta-feira, o café da manhã e o almoço são coletivos, servidos no refeitório do assentamento. O jantar e a ali-

mentação dos finais de semana são feitos em casa, para preservar o convívio familiar.

LIÇÃO PARA FAZENDEIROS Em janeiro de 1993, 16 famílias do MST, originárias de várias regiões do Estado, ocuparam a Fazenda Santa Maria. Na época, a área de 98 alqueires, desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), servia para o plantio de cana-de-açúcar, vendida a uma usina da região. Ao chegarem à fazenda, os trabalhadores acamparam sob dois pés de manga. Inicialmente, os moradores da cidade rejeitaram os sem-terra. Famílias do município, a quem a área havia sido prometida por políticos locais, ameaçaram invadir a fazenda para retirar os lavradores à força. José Bonifácio Mourão, o Zeca Mourão, prefeito de Paranacity na época, interveio para minimizar o conflito. Hoje, ele confessa: “Naquele tempo, falar em sem-terra, em reforma agrária era bicho-papão, algo assustador. Eu tinha que ficar do lado dos locais”. Dialogando com os dois lados, ele mostrou aos moradores que, com violência, ambos sairiam perdendo. Com a cooperativa, cidade e sem-terra ganharam. Mourão con-

Os derivados de leite são adquiridos a preço de custo pelos moradores do local

sidera que, com o assentamento, até mesmo os fazendeiros mudaram seu jeito de tratar a terra. “Quando o pessoal da Copavi chegou, havia uma grande dificuldade para arrendar um pedaço de terra junto aos fazendeiros. Com medo de possíveis ocupações, eles passaram a arrendar terra para plantar mandioca, algodão e, principalmente, cana para a usina. Isso contribuiu não só para o município, mas para toda a região, pois criou mão-de-obra no campo”, diz.

SONHO DE ASSENTADO Um dos assentados é Francisco Strozaki, o Chicão, que começou a lutar pela terra em 1985, na cidade de Guaíra (PR). Pai de oito filhos, casado com dona Elzi, ele conta: “Trabalhava na Eletrosul, que estava construindo uma barragem. Quando suspenderam, passei a trabalhar de bóia-fria. Por meio dos padres a gente acabou conhe-

ASSENTAMENTOS

Beatriz Pasqualino de Brasília (DF) A meta se repete: em 2005, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deve assentar 115 mil famílias sem-terra, dispondo para isso de R$ 750 milhões, segundo o Orçamento da União. Contudo, para o objetivo ser alcançado, é necessário R$ 1,4 bilhão. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) não divulgou as fontes dos cerca de R$ 700 milhões que faltam para garantir os assentamentos. No ano passado, o MDA obteve o valor total necessário para os assentamentos por meio da suplementação na arrecadação de impostos, que assegurava de 10% a 15% do excedente para fins de reforma agrária. Mas o próprio MDA admite que, neste ano, é possível que a suplementação não se repita. O ministério tenta obter um tratamento diferenciado no orçamento do Incra e defende nova estratégia: que a verba seja liberada em uma só parcela e que depois haja pressão para liberação de mais recursos. A medida serviria para evitar a repetição do erro de 2004, quando foram liberados apenas R$ 700 milhões

da suplementação de R$ 1 bilhão, previstos pelo orçamento do órgão. Ao todo, em 2004, a verba para obtenção de imóveis rurais foi de R$ 1,7 bilhão. Segundo as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), em 2003 e 2004 o governo federal deveria ter assentado 170 mil novas famílias. Mas, de acordo com os balanços anuais do MDA, somente 117.555 foram assentadas. De acordo com PNRA, a desapropriação é considerada a principal forma de obtenção de terra para assentamentos de reforma agrária. Mas, sem verbas para essas ações, os movimentos sociais do campo questionam como a meta de 400 mil novas famílias assentadas até 2006 será cumprida.

Assentados-banco da terra3

Muitas famílias, metade do orçamento

Movimentos sociais do campo questionam metas de assentamento para 2006

Assentamento em terra desapropriada

Centro-Oeste

Assentamento em terra pública

Total de famílias

21.330

6.070

27.400

6.330

1.760

8.090

13.350

21.000

34.350

4.610

650

5.260

Nordeste

29.100

10.800

39.900

Total Brasil

74.720

40.280

115.000

Sudeste Norte Sul

Fonte: MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário

Romaria da Terra reúne 20 mil em Cruzeiro do Sul Fernando Alves de Porto Alegre (RS)

METAS DE ASSENTAMENTO DE FAMÍLIAS EM 2005, POR REGIÃO Região

cendo o MST”. Depois de passar por acampamentos em Cascavel e Guarani Açu, e de participar de um acampamento em frente ao Palácio Iguaçu, sede da prefeitura de Curitiba, ele ocupou a área em Paranacity. Do início, ele lembra: “Toda a fazenda era coberta de cana. Começamos a prestar serviço de bóia-fria e passamos a ser reconhecidos pelo bom trabalho que fazíamos. Matriculamos nossos filhos na escola. As crianças e os jovens começaram a ir para a aula. E também valorizamos muito o esporte”. Do acampamento à cooperativa, muita coisa mudou: a luta pela terra garantiu o sustento e a educação dos filhos, um deles já formado em Direito e uma em Pedagogia. Feliz, Chicão fala de seu sonho: “A transformação da sociedade, que um dia no Brasil não haja nem exploradores nem explorados”.

No dia 8, aconteceu em Linha Sítio, município de Cruzeiro do Sul (RS), a 28ª Romaria da Terra do Rio Grande do Sul. Como ocorre em todos os anos, a romaria homenageou a figura do cacique Sepé Tiarajú, herói guarani de São Miguel (RS), morto em combate quando defendia seu povo. Neste ano, com cerca de 20 mil romeiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, o encontro teve como tema “Nossas sementes, nossas raízes, nossa vida” e celebrou a reforma agrária, a conservação das sementes, a defesa da água e a organização e mobilização social. Segundo dom Sinésio Bohn, bispo de Santa Cruz do Sul, “cada povo preserva a sua semente, preserva sua cultura e, ao mesmo tempo preserva sua vida e fortalece as suas raízes”, disse.


Ano 3 • número 103 • De 17 a 23 de fevereiro de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO HAITI

Um povo em busca de um país no Caribe João Alexandre Peschanski enviado especial a Porto Príncipe (Haiti)

D

e dentro do Haiti, nasce um novo país. Não está a ponto de se impor à atual estrutura política e social vigente no território, mas na boca do povo, em sussurros. É um reflexo da experiência de clandestinidade e repressão sofrida pelos que criticaram os governos anteriores – ditaduras como as de François e Jean-Claude Duvalier, de 1957 a 1986, e regimes autoritários como os de Emmanuel Nerette, de 1991 a 1992, e Jean-Bertrand Aristide, de 2001 a 2003. Fala-se de um novo país, livre e soberano, sempre em crioulo, língua do povo, em contraposição ao francês, idioma oficial do governo e da imprensa, absolutamente incompreensível para 90% da população. É o Ayiti popular contra o Haiti dominante. O que é o Ayiti não está claro – e está longe de ser consenso. Aparece em pequenas cenas e conversas. Surge no olhar revoltado de um jovem com uma pedra na mão, em Bel Air, bairro pobre da capital Porto Príncipe, acompanhando a passagem de uma viatura policial. Desponta, pichado, nos muros da cidade de Jacmel, na região Sudeste. Aparece nas palavras da camponesa Jacqueline Augustin, da comuna de Gwômon, no Norte: “Sitiyasion politik jounen jodi a pa bon di tou. We genyen lòt kalite sosyete”, cuja tradução do crioulo significa: “A situação política não está boa. Precisamos de uma alternativa social”. O Ayiti não é a expressão de um grupo político ou corrente social, mas

João Alexandre Peschanski

Em meio à maior miséria das Américas, haitianos se mobilizam para edificar uma nova sociedade cidades, além de um ataque direto à soberania alimentar do país.

PORTO MISERÁVEL

Miséria e revolta pelas ruas de Porto Príncipe, capital haitiana, cansada de ditaduras e falsas promessas das Nações Unidas

a revolta do povo haitiano. O mesmo tipo de fenômeno que tomou a população, em 1804, quando expulsou os franceses do Haiti, proclamando a primeira independência de um país latino-americano.

CATÁSTROFE SOCIAL Tamanha revolta tem explicação. A situação econômica, política e social é um caos, bem distante dos cartazes coloridos espalhados pelo governo nas ruas da capital, que pregam “paz, amor e diálogo”. O que a população compreende – e vive – são as estatísticas catastróficas divulgadas pelos meios de comunicação oficiais: 82% dos 7,66 milhões de haitianos estão abaixo da linha da pobreza. O analfabetismo atinge

52,9% do povo, a expectativa de vida é de 51,7 anos, 280 mil pessoas (5,6% da população) são portadoras do HIV, vírus que causa a Aids. O atual governo, do presidente Boniface Alexandre e do primeiroministro Gérard Latortue, não tem programa, projeto ou legitimidade. Aplica, desastradamente, o receituário neoliberal – no qual, aliás, muitos de seus integrantes, como o próprio Latortue, alto funcionário do Fundo Monetário Internacional (FMI), por uma década, foram treinados. Planeja privatizações (nos setores de telecomunicações, eletricidade e água), adota uma política comercial a serviço das grandes potências (com as menores tarifas alfandegárias do continente, beneficiando as grandes

empresas estrangeiras que exportam todo tipo de produto para o Haiti) e mantém impostos altos para a população pobre e impostos baixos para os ricos. Exemplo disto é a política comercial em relação ao arroz, base da alimentação dos haitianos. Em 1985, o país produziu 154 mil toneladas cúbicas do grão, e importou 7 mil toneladas, principalmente dos Estados Unidos. Dez anos depois, a produção caiu para 100 mil toneladas cúbicas, e a importação subiu para 197 mil. Em 2004, o primeiro índice foi para 76 mil toneladas cúbicas, enquanto o segundo alcançou 340 mil. As conseqüências diretas foram aumento do desemprego no campo, êxodo rural e inchaço das

Planejada para 150 mil habitantes, e hoje com quase 2 milhões, Porto Príncipe é a imagem da miséria. As favelas dominam o espaço urbano. São casas de madeira, aglomeradas, sustentadas por outras casas de madeira, estas também aglomeradas e sustentadas por outras casas de madeira. Nas ruas, sem pavimentação, vende-se de tudo: calçados, abóboras, cerveja, quadros, jogos, mandioca, livros. Sem trabalho, a maioria da população se rende ao comércio ambulante – ou à criminalidade, assustadoramente galopante na cidade. Nas colinas, não há árvores. Foram cortadas, durante as ditaduras dos Duvalier, para impedir que guerrilheiros se escondessem, e, mais recentemente, por trabalhadores, para ganhar algumas gourdes (moeda nacional, cuja unidade equivale a 3 centavos de dólar) na produção de carvão. Na base das colinas, todos os esgotos são a céu aberto. Falta eletricidade durante horas, todos os dias. Mas, nisso, os habitantes da capital se sentem beneficiados, pois, no resto do país, com exceção de duas outras cidades, nunca há energia. Das torneiras não sai água. As pias, inúteis, são transformadas em depósitos de comida e doenças. Quando há água, esta é tão contaminada que, segundo o conhecimento popular, causa diarréia em menos de uma hora. A falta de água potável é uma das principais causas de mortalidade infantil do país: 74,38 mortes para cada mil nascimentos. No Brasil, a taxa é de 30,66.

Fotos: João Alexandre Peschanski

Praia e sol para soldados da ONU Unificação é desafio

Em Cap Rouge, Sudeste do país, camponeses se reúnem para discutir a necessidade de organizar movimento nacional em defesa do campo

Soldados brasileiros da missão da Organização das Nações Unidas aproveitam a praia no Haiti

Diante do quadro de catástrofe social, em jeeps com tração nas quatro rodas, impecavelmente limpos, blindados, passam oficiais e soldados da Organização das Nações Unidas (ONU), principalmente brasileiros, que ocupam o país desde junho de 2004. Os veículos parecem baratas tontas: dão voltas em rotatórias, fazem idas e voltas nas grandes avenidas, ficam parados por alguns instantes. E se vão. Talvez em gasolina tenham gasto os 25 milhões de dólares enviados todo mês. “Vieram para a estabilização democrática do Haiti, dizem, mas parecem estar a passeio, como se estivessem de férias”, denuncia o economista Camille Chalmers, da entidade Plataforma Haitiana pela Defesa do Desenvolvimento Alternativo (Papda). No dia 14, dezenas de militares da ONU participavam de “missão” de alta responsabilidade e louvor: tomavam sol e banho de mar em

Cayes Jacmel, no sudeste do país. Como disseram à reportagem do Brasil de Fato, por motivos de segurança impediam a entrada da população local na praia. Alguns habitantes, entretanto, conseguiam chegar até os soldados – e lhes pediam esmola. A resposta: o silêncio. Os militares nem olhavam para os haitianos que os abordavam. Em sua maioria, os soldados eram brasileiros.

NOVA SOCIEDADE Multiplicam-se, em todo o território haitiano, pequenas organizações. Às vezes com não mais do que 10 a 15 integrantes. Não têm linha ideológica claramente definida. Não têm vínculo com o governo, cujo idioma – entre outras coisas – não entendem. Tampouco têm ligações com grupos políticos tradicionais. São associações de moradores, grupos de desempregados, sindicatos, movimentos de camponeses, de

mulheres, de estudantes. Sua principal característica é agrupar uma categoria que luta pela melhoria das condições sociais. Em muitas cidades, as pequenas associações se unem, como foi o caso em Cap Rouge, no Sudeste do país, onde grupos de camponeses somaram forças e criaram a organização Viva a Esperança pelo Desenvolvimento de Cap Rouge (Vedek). Em reuniões semanais, os trabalhadores discutem os problemas da comunidade, apresentam soluções, analisam a política local e nacional e falam da possibilidade de agregar outros grupos à organização. Vedek conta com milhares de integrantes, quase todos os camponeses da comuna. E espera crescer, como diz Emmanuel Joseph Sanon, da coordenação da organização: “Um dia, poderemos ter um movimento camponês regional, representando todo o Sudeste do Haiti, e, depois, um movimento nacional”. (JAP)

Unir a revolta espontânea e a multiplicidade de organizações, criando um projeto unificado de nação. Esse é o principal desafio da sociedade haitiana, com que concordam integrantes dos mais diversos grupos políticos: as entidades Papda e Instituto Cultural Karl Lévêque (ICKL), as organizações camponesas Movimento Camponês de Papaye (MPP) e Tet Kole Ti Peyizan Ayisyen (em crioulo, Cabeças Coladas de Pequenos Camponeses Haitianos), além de sindicatos, associações de bairro e movimentos feministas. Eles avaliam que o projeto unificado é fundamental para impedir que as mobilizações populares do país sejam manipuladas, por grupos políticos tradicionais ou pessoas que queiram se projetar no cenário político nacional. Temem que as associações locais e regionais se tornem apenas massa de eleitores para o pleito presidencial de novembro. Para a unificação, entretanto, precisam vencer uma série de inimigos de grande porte. Em primeiro lugar, a fragmentação das lutas. Em segundo, a cooptação de lideranças sociais pelo governo e instituições internacionais. No Haiti, faltam quadros políticos, ou seja, pessoas que possam ajudar as organizações a desenvolver estratégias e ações de reivindicação e luta.

Em terceiro, está a miséria da população, que impede que a maioria das pessoas, mesmo as que têm interesse, possa participar de reuniões, pois estão ocupadas a encontrar alimentos. Por último, a confusão política que assola o Haiti. A partir do afastamento de Aristide da presidência do país, em 2003, após a mobilização de centenas de milhares de haitianos, que repudiavam sua política econômica, as referências políticas tradicionais desapareceram. O partido Lavalas, de Aristide, fundado como uma agremiação de defesa dos interesses populares, desapareceu do cenário político – e é considerado um traidor da luta social. Os partidos de direita, hoje no governo, mantêm uma estratégia de pouco contato com a população. Outras agremiações surgem, várias de esquerda, uma destas financiada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil, mas não têm base social. Diante disso, a população se vê à mercê das cada vez mais presentes organizações criminosas, armadas por Lavalas para desestabilizar o governo atual, e que geram ondas de terror. As forças da ONU não intervêm e o governo, fraco e sem legitimidade, não tem o que fazer. O desafio, lançado pelos integrantes dos movimentos do país, recai sobre eles mesmos. Disto depende o surgimento do Ayiti. (JAP)


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AMÉRICA LATINA BRASIL E VENEZUELA

Lula e Chávez acertam integração Venda de aviões militares e acordo sobre petróleo abrem caminho para a Comunidade Sul-Americana

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om os olhos voltados para o Sul, os governos do Brasil e da Venezuela deram mais um passo na proposta de integração latino-americana, pelo menos no que se refere à economia dos dois países. A chamada aliança estratégica, firmada por brasileiros e venezuelanos, tem como pontos principais a integração nas áreas de energia e defesa. Os acordos foram assinados dia 14, durante visita do presidente Lula ao presidente Hugo Chávez, em Caracas. O acordo de compra de 36 aeronaves brasileiras pelo país vizinho significará investimento inicial de 500 milhões de dólares. O acordo deve resultar na aquisição, pela Venezuela, de 12 aviões caças de treinamento de combate, os AMX-T, e 24 Super-Tucano, produzidos pela Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer). Em contrapartida, o Brasil vai transferir tecnologia que facilite a montagem de aviões na Venezuela. O fortalecimento da defesa venezuelana, que agora contará com auxílio brasileiro, foi motivo de mais uma contenda entre Caracas e Washington (EUA). Chávez acusa o governo estadunidense de tentar impedir a compra dos helicópteros russos, que reforçariam a defesa na região fronteiriça com a Colômbia. O governo venezuelano também denuncia atraso na entrega de materiais para manutenção dos aviões militares há tempo comprados dos EUA.

DESENVOLVIMENTO Inicialmente, a tecnologia brasileira será utilizada na construção de aviões agrícolas, para atender ao previsto crescimento da produção agrícola no país. Em dezembro de 2004, o governo venezuelano rei-

disso, as empresas petrolíferas pretendem impulsionar a construção de uma refinaria no Brasil, com investimentos de 2 bilhões de dólares para a produção de 150 mil a 200 mil barris diários. Por enquanto, a exploração de gás na Venezuela está a cargo de grandes transnacionais estadunidenses e européias. Brasil e Venezuela também firmaram acordos de cooperação nos setores de energia elétrica, mineração de carvão, ciência e tecnologia e pesca.

Ricardo Stuckert/PR

Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)

INTEGRAÇÃO

Lula e Chávez defendem “aliança estratégica” entre países da América do Sul para se defender dos Estados Unidos

niciou as desapropriacões de terras improdutivas para realizar assentamentos de reforma agrária. Na esteira do novo cenário, foi firmado um protocolo de intenções entre os ministérios de Desenvolvimento Agrário, no Brasil, e o de Agricultura, na Venezuela, para facilitar a comercialização de alimentos produzidos pelos assentamentos beneficiados pela reforma agrária. O acordo segue o compromisso anunciado pelo governo venezue-

lano em visita ao assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra (MST), no município de Tapes, em Porto Alegre (RS) durante o Fórum Social Mundial. Na ocasião, Chávez, o ministro Miguel Rossetto, a direção do MST e o governador do Paraná, Roberto Requião, firmaram protocolo de intenções para a criação de um banco de sementes crioulas, que deverá ser abrigado pelos camponeses venezuelanos. Propuseram

também a construção de escolas de agroecologia, em ambos os países, para a formação de técnicos agrícolas. A escola brasileira, sediada no Paraná, deve iniciar os cursos em abril. Em matéria de energia, entre os 15 acordos firmados pela Petrobras e a PDVSA (Petróleo da Venezuela S.A.) está a incursão da indústria brasileira na exploração de gás e de extração de petróleo pesado na faixa do Rio Orenoco. Além

Na abertura do encontro, dia 14, marcada pela presença de empresários e dos ministros ligados à área de desenvolvimento e energia, o presidente Lula disse, no Palácio Miraflores, que a solução para a economia do Brasil e de seus países vizinhos é a integração das comunidades sul-americanas. Lula pediu que os empresários de ambos os países não tenham medo de negociar entre si. “Digo aos empresários que não tenham medo de parcerias. A solução para a economia da Venezuela e do Brasil e de outros países da América do Sul não está no Norte, além do oceano, mas na nossa integração”. Recebido pelo país em que o gasto social tem sido prioridade para o governo, Lula se justificou e disse que o Brasil precisa de um novo ciclo de crescimento, constante, para pagar a dívida social com o povo, o que poderá ser alcançado com a construção da Comunidade Sul-Americana de Nações. “Eu tenho o compromisso de pagar (a dívida social), e, com essa aliança estratégica entre Venezuela e Brasil e a construção da Comunidade SulAmericana, tenho esperança que logo colheremos os frutos da nossa ousadia política”, afirmou.

ARGENTINA

da Redação A Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), principal central sindical da Argentina, pediu a redução da jornada trabalhista no país, de 48 para 44 horas semanais. O principal argumento é que a medida permitirá a criação de novos postos de trabalho. O Ministério do Trabalho, a quem foi encaminhada a demanda, diz não prever discutir “uma redução da jornada de trabalho”. Uma das três secretárias da CGT, Susana Rueda afirmou que a redução da jornada “permitirá a criação de 700 mil postos de trabalho rapidamente, e abaixará os índices de desemprego para algo entre 7 e 8 pontos. O desemprego na Argentina, de acordo com as últimas pesquisas, está na casa dos 13%, mas a cidade de

Buenos Aires atinge 9,5%, o menor registrado desde 1999. A secretária da CGT enfatizou que há mais de três milhões de empregados argentinos que cumprem jornada de mais de 60 horas semanais. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os argentinos trabalham 2.100 horas anuais, enquanto no Chile e no Brasil a média é de 1.800 horas. No Chile, desde o dia 1º de janeiro, a jornada foi reduzida de 48 para 45 horas semanais, sem redução dos salários. Desde março de 2004, as seis centrais sindicais brasileiras, encabeçadas pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pressionam o governo Lula pela redução da jornada de 44 para 40 horas semanais. A articulação das centrais brasileiras ganhou forma no 5º Fórum Social Mundial, em ja-

neiro, em Porto Alegre.

REVIRAVOLTA FRANCESA No caminho contrário, o governo francês do presidente Jacques Chirac obteve uma vitória no parlamento ao conseguir a aprovação, por 370 votos a 180, da flexibilização da jornada de 35 horas. Agora, os trabalhadores e os empresários poderão negociar o aumento da jornada em determinadas condições. Os sindicatos de trabalhadores, que programam uma série de manifestações pelo país nas próximas semanas, argumentam que os empregados terão de trabalhar mais pelo mesmo salário. Para o governo Chirac, a lei das 35 horas torna as empresas francesas menos competitivas. O projeto ainda será votado no Senado, onde o governo também tem maioria. (Com agências internacionais)

Paulo Pereira Lima

Trabalhadores exigem redução de jornada

Piqueteiros contra o desemprego na Argentina, que atinge 13% da população

URUGUAI

Ex-guerrilheiros em postoschaves do Parlamento da Redação

BRASIL E ESTADOS UNIDOS

De novo, o sonho de reviver a Alca Lori M. Wallach de Washington (EUA) Na expectativa de tentar reviver a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), brasileiros e estadunidenses planejam se encontrar no fim do mês. Segundo Peter Allgeier, subrepresentante comercial dos EUA, a idéia é retomar as negociações e chegar a “um acordo” com as 34 nações que participavam das negociações, paralisadas há quase um ano. As negociações referente à Alca pararam no início de 2004, quando Estados Unidos e Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) não chegaram a um acordo em questões

referentes à agricultura e à propriedade intelectual. No final de janeiro, o representante comercial dos EUA, Robert Zoellick, e o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, reafirmaram seu compromisso com a Alca. Contudo, Allgeier – que vai se reunir com o diplomata brasileiro Adhemar Bahadian, copresidente do processo negociador da Alca – reconhece ser impossível estabelecer novo prazo para a instalação da Alca. O prazo inicial para o fim das negociações era dezembro de 2006, estabelecido para o encerramento da Rodada Doha. O lado estadunidense não abre mão de suas exigências e diz que não

aceitará a proposta do Mercosul, de negociar apenas um acordo de acesso a mercados. Allgeier reconheceu que os EUA gostariam de ter mais acesso aos mercados do Mercosul, mas acrescentou que não aceitariam deixar de fora questões como a propriedade intelectual e proteção aos investimentos. Sorrateiramente, sugeriu que, enquanto o Brasil e os Estados Unidos tentam discutir suas diferenças no âmbito da Alca, poderiam “colaborar intimamente” nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), já que ambos têm interesse em pôr um fim aos subsídios para as exportações agrícolas.

O Uruguai começa a viver uma nova realidade política. Antes de Tabaré Vázquez assumir a presidência do país, no dia 1°, tirando do poder os partidos conservadores (Blanco e Colorado), dois ex-guerrilheiros chegarão a postos-chaves do Parlamento. José Mujica e Nora Castro, que pertenceram ao Movimento de Libertação Nacional Tupamaros e hoje no Movimento de Participação Popular, assumirão respectivamente as presidências do Senado e da Câmara dos Deputados. Mujica também assumirá, posteriormente, a titularidade da Assembléia Geral. Já Nora é a primeira mulher na historia política do Uruguai a ser presidente da Câmara dos Deputados. O novo Parlamento tem a maioria absoluta a favor de Tabaré Vázquez, que formou a

coalizão de centro-esquerda Encontro Progressista Frente Ampla, vitoriosa nas últimas eleições. O presidente eleito contará com o apoio de 52 dos 99 deputados e de 16 dos 30 senadores. Também é a primeira vez que as duas câmaras serão presididas por ex-integrantes do Movimento de Libertação Nacional (MLN-Tupamaros). A expectativa é de que, com a ampla maioria parlamentar, Vázquez consiga sancionar qualquer iniciativa legislativa. Mas sabe-se que ele enfrentará a oposição integrada por conhecidos e poderosos nomes da política uruguaia, como o ex-presidente Julio María Sanguinetti. (Adital, www.adital.com.br) Tupamaros – O Movimento de Libertação Nacional Tupamaros foi criado na década de 60 por operários e camponeses, como organização guerrilheira para defender-se dos grupos ditatoriais.


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INTERNACIONAL IRAQUE

A mídia no banco dos réus da Redação

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onfirmando as “previsões” dos analistas colaboracionistas, a farsa eleitoral promovida dia 30 de janeiro, no Iraque, conduziu à vitória grupos xiitas do país. A comissão eleitoral anunciou, dia 13, que a coalizão Aliança Iraquiana Unida obteve 47,6% dos votos (cerca de 4 milhões), número consideravelmente menor que o previsto. No entanto, os votos da coalizão, que representa 60% dos habitantes do país, não foram suficientes para conseguir maioria no Parlamento, o que exigirá alianças no futuro. Em segundo lugar está a Aliança do Curdistão, que reúne a União Patriótica do Curdistão e o Partido Democrático do Curdistão, com 25,4% ou 2,17 milhões de votos, seguidos pela coalizão que apóia o primeiro-ministro interino Iyad Allawi que obteve 13,6% ou 1,16 milhão de votos.

DENÚNCIA MUNDIAL

Sasa Kralj/AP/AE

A farsa eleitoral confirma as denúncias feitas no Tribunal Mundial sobre o Iraque: a contra-informação é arma mortal

Moradores do Curdistão participam da eleição iraquiana, considerada mais uma “enganação em massa” dos Estados Unidos

De acordo com autoridades eleitorais, no total, 8,55 milhões de pessoas foram às urnas, o que representa 58% daqueles que se registraram e estavam aptos a votar, desmentindo as estimativas que apontavam um comparecimento de 75% dos eleitores inscritos. O Iraque tem cerca de 27 milhões de pessoas.

“No Iraque houve e continua havendo duas guerras: a primeira com bombas, atentados e a busca das supostas armas de destruição em massa. A segunda guerra é conduzida com propaganda midiática, satélites e jornalistas, armas de enganação em massa”. Com esse jogo de palavras, o cineasta independente estadunidense Danny Schechter in-

PALESTINA

NEPAL

A mais nova tirania do presidente Bush

da Redação No dia 13, Israel aprovou a libertação de 500 prisioneiros palestinos e a entrega dos corpos de 15 ativistas mortos na Faixa de Gaza. Aprovou também a outorga do controle da cidade de Jericó, na Cisjordânia, para a Autoridade Nacional Palestina (ANP). Contudo, ao mesmo tempo, o Exército israelense estuda um plano “b”: instalar uma cerca eletrônica na Cisjordânia, para controlar a passagem dos palestinos entre as zonas a serem desocupadas e as regiões em que permanecerão colônias judaicas. A informação é do semanário Bamajane, de Beirute, no Líbano. A libertação dos prisioneiros palestinos “não é uma decisão fácil, mas poderia ajudar a ANP a garantir o controle e reforçar a confiança entre as partes”, disse Ariel Sharon, primeiro-ministro de Israel, durante a reunião semanal de seu governo. Ele acrescentou que a medida segue os acordos adotados com os palestinos, na reunião do dia 8, em Sharm El Sheik, no Egito, em que foi acertada uma trégua com o presidente da ANP, Mahmoud Abbas. Nenhum dos palestinos que recobrará a liberdade tem “sangue nas mãos”, segundo a comunicação oficial de Israel. O eufemismo significa que não estão implicados em ataques que tenham causado vítimas. Além disso, quase todos cumpriram dois terços de suas penas. Abbas, no entanto, insistiu em que todos os 8 mil prisioneiros palestinos sejam libertados por Israel e reiterou seu compromisso com o processo de paz, num encontro com o primeiro-ministro da Noruega, Kjell Magne Bondevik, diante de quem confirmou que os grupos de resistência Hamas e Jihad Islâmica se comprometeram a respeitar a trégua decidida em Sharm El Sheik. Finalmente, o gabinete de Israel analisou as ameaças de morte contra alguns ministros por parte de extremistas de direita israelenses que se opõem à retirada de Gaza. (Com agências internacionais)

Também foi citado outro crime: a grande mídia não deu destaque ao fato de que a maioria dos governos do mundo, bem como a grande maioria da população mundial, foi contra a invasão do Iraque. O Tribunal funciona desde outubro de 2003 e já teve sessões em Istambul, Londres, Tóquio, Bombaim, Copenhague, Bruxelas e Nova York.

Narendra Shrestha/EFE/AE

Israel promete liberdade e cerca

terveio no primeiro dia do Tribunal Mundial Sobre o Iraque, reunido em Roma, em uma sessão dedicada às “Violações da mídia contra a verdade e a humanidade”. Na abertura do Tribunal, que é informal, foi lembrado o “crime do silêncio” contra os iraquianos, por não ter a mídia dado ênfase ao sofrimento do povo durante a guerra.

O respeitado economista egípcio radicado na França, Samir Amin, de 74 anos, declarou: “As eleições no Iraque, no dia 30 de janeiro, não podem ser consideradas um passo adiante rumo à democracia, como é sustentado pela opinião dominante da mídia estadunidense e, ainda por cima, da mídia européia. É equivocado julgar a votação como um ponto a favor da normalização do Iraque ou, com efeito, o início do fim da ocupação militar”. Amin, presidente do Fórum Mundial das Alternativas e expoente do movimento contra o neoliberalismo, prosseguiu: “Disseram que um número elevadíssimo de eleitores compareceu às urna, mas o escândalo é que não houve observadores independentes. Permanece a suspeita de fraudes maciças. O resultado das eleições iraquianas é resultado do cálculo político de duas forças: o partido majoritário dos curdos e o movimento islamita xiita. Essas duas forças votaram em massa para depois exercitar maior poder político. É um método político que se pode aprovar ou não. Eu desaprovo. Mas devemos dizer com força que não houve uma adesão maciça da maioria dos iraquianos ao suposto projeto estadunidense de democratização.” (Com agências internacionais e Misna, www.misna.it)

NEPAL Localização: Sul da Ásia Nacionalidade: nepalesa Cidades principais: Katmandu (capital), Biratnagar, Lalitpur, Pokhara, Birganj Línguas: nepali, maithir e bhojpuri Divisão administrativa:14 zonas População: 27 milhões Moeda: rúpia do Nepal Religiões: hinduísmo 86,2%, budismo 7,8%, islamismo 3,8%, cristianismo 0,1%, judaísmo 0,1%, outras 2%

Sonny Inbaraj de Bangcoc (Tailândia) O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, enfrenta o primeiro teste desde sua promessa de acabar com todas as tiranias do mundo, feita dia 20 de janeiro, ao iniciar seu segundo mandato. O desafio não foi lançado no Oriente Médio, mas no reino hindu do Nepal, na Ásia. No dia 1º, o rei Gyanendra do Nepal assumiu o controle do poder absoluto, pela segunda vez em dois anos. Dissolveu o governo do centrista Partido do Congresso, declarou estado de emergência e impôs uma forte censura à imprensa. O monarca do único reino hindu do mundo questionou a capacidade do governo, encabeçado por Sher Bahadur Deuba, para restaurar a paz no país, assolado por uma guerra civil entre forças governamentais e uma guerrilha maoísta inspirada no grupo peruano Sendero Luminoso. “A coroa é tradicionalmente responsável por proteger a soberania nacional, a democracia e o direito do povo viver em paz”, disse Gyanendra, em cadeia de televisão. Mais de 10 mil pessoas morreram

Polícia do Nepal detém ativista de direitos humanos durante protesto contra a Proclamação do rei Gyanendra

na guerra civil desde seu início, em 1996. Pouco depois do discurso do rei, foi declarado estado de emergência. As linhas de telefone fixos e celulares foram cortadas e ficou proibido o uso de aparelhos via satélite, o que isolou o país do resto do mundo. Informes procedentes da capital Katmandu informam que cerca de mil dirigentes políticos, sindicais e estudantis estão presos. O Real Exército Nepalês advertiu que um comitê do Ministério do Interior determinará o tempo que permanecerão presos, podendo ser até três meses.

APOIO AO GOLPE O senador estadunidense Patrick Leahy, do Comitê de Relações Exteriores do Senado, disse que “não se deve subestimar a ameaça maoísta”. Mas não há sinais de que a política dos EUA em relação ao Nepal mudará, incluindo a ajuda militar, apesar de o Departamento de Estado ter declarado que o golpe é “um retrocesso”. Washington considera terroristas os rebeldes maoístas, bem como o rei Gyanendra. O governo estadunidense tem sido um apoio importantíssimo contra a insurgência, em especial por meio do fornecimento de armas e treinamento militar.

Em 2004, às vésperas do aniversário dos atentados de 11 de setembro, uma bomba explodiu sem deixar vítimas no American Center, uma organização de intercâmbio cultural financiada pelo governo estadunidense. O ato, que não foi reivindicado por qualquer organização, aumentou o envolvimento dos Estados Unidos na luta contra os rebeldes, segundo o Grupo Internacional de Crise (GIC), um instituto acadêmico com sede em Bruxelas. “Embora tenha reiterado seu compromisso com uma solução pacífica para a insurgência, os Estados Unidos doaram outro milhão de dólares em ajuda na área de segurança e anunciou sua intenção de conseguir mais dinheiro”, afirmou o GIC. O congresso estadunidense decidiu pela entrega adicional de 2,2 milhões de dólares em ajuda militar e 40 milhões de dólares em ajuda econômica. O orçamento de 2006 prevê uma contribuição de 24 milhões de dólares. “Com base nos antecedentes de apoio à luta contra os rebeldes e à discrição com que Washington reagiu ao golpe, especula-se em Katmandu que o rei pode ter comunicado à embaixada suas intenções antecipadamente”, disse o presidente do GIC, o ex-chanceler australiano Gareth Evans.

Gyanendra menciona com freqüência como modelo o Paquistão, governado pelo general Pervez Musharraf. Ora os Estados Unidos apóiam plenamente o regime autoritário paquistanês. “Não há solução militar para o conflito” entre o governo nepalês e a insurgência, disse o senador Leahy. “O Nepal é como o Afeganistão, onde um punhado de extremistas com rifles e explosivos podem causar comoção e, em seguida, desaparecer nas montanhas”, afirmou. Os maoístas podem ser os únicos a ganhar com o golpe de Estado. Agora, podem argumentar que não lutam contra um governo democrático, mas contra uma monarquia anacrônica e repressiva. A pergunta que persiste é se os Estados Unidos irão querer se envolver no Nepal, já que coloca como prioridade a “guerra contra o terrorismo” no Afeganistão e no Iraque. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br) Maoísta – A guerrilha maoísta nepalesa começou a agir em fevereiro de 1996. Os combates entre soldados e guerrilheiros, assim como massacres de camponeses pelo Exército, já mataram mais de 11 mil pessoas. O objetivo dos rebeldes é substituir a monarquia parlamentarista conservadora por um governo comunista baseado nos camponeses.


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INTERNACIONAL TOGO

População protesta contra golpe militar Organizações africanas consideram farsa inconstitucional a sucessão presidencial no país Schalk Van Zuidam/AP/AE

da Redação

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ma delegação governamental do Togo viajou, dia 12, a Niamé (capital do Níger) para responder a líderes africanos sobre as denúncias de golpe de Estado por parte do Exército do país. Dia 5, subiu ao poder Faure Gnassingbe, mediante manipulações constitucionais. Enquanto isso, em Lomé, capital do Togo, militantes da oposição e representantes de organizações e movimentos sociais se enfrentaram com forças de segurança. Segundo porta-vozes oficiais, duas pessoas morreram. Fontes opositoras afirmam que são três mortos e que há dezenas de feridos entre os 3 mil manifestantes. Os protestos continuam em várias cidades do país. A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao) ameaçou impor sanções ao governo de Gnassingbe, caso não fosse à capital do Níger. No entanto, ele não fez parte da delegação, chefiada por seu primeiro-ministro, Koffi Sama. Por essa razão, Mamadou Tandja, presidente nigeriano e presidente da Cedeao, afirmou que não haveria negociações com a delegação togolesa. A posição foi apoiada pelos 53 países da União Africana (UA) e pela comunidade internacional.

TOGO Localização: Oeste da África Nacionalidade: togolesa Cidades principais: Lomé (capital), Sokodé, Kpalimé, Lama-Kara Línguas: francês, cabiê e euê (oficiais) Divisão administrativa: 5 regiões População: 5,1 milhões Moeda: franco CFA Religiões: tradicionais (70%), cristã (20%), muçulmana (10%)

incapacidade permanente do presidente, ele deve ser substituído interinamente pelo titular da Assembléia Nacional, que, por sua vez, deve convocar eleições em 60 dias. Mas, no dia 6, o Parlamento, dominado pelo partido governante, mudou as regras: destituiu o presidente da Câmara, Fambaré Natchaba, o substituiu por Gnassingbe (o que legalizou a nomeação do Exército) e, além disso, mudou a Constituição para prorrogar seu mandato presidencial até 2008.

GOLPE MILITAR Faure Gnassingbe, 39 anos, foi designado presidente do Togo pelas Forças Armadas. A indicação aconteceu momentos depois da morte de seu pai, o veterano governante Gnassingbe Eyadema, no poder desde 1967, violando as cláusulas sucessórias da Constituição do país. A carta magna togolesa indica que, em caso de falecimento ou

APELO EXTERNO Desde então, a oposição togolesa tem convocado protestos em Lomé e outras cidades do país, enquanto a Cedeao e a UA qualificam como “farsa” inconstitucional ou “golpe militar” a sucessão presidencial no Togo.

Manifestantes protestam pelas ruas de Lomé, capital togolesa: oposição acusa participação da França

Os protestos que se registram no país são resposta a um apelo de Gilchrist Olympio, que lidera a oposição togolesa a partir do exílio em Paris. Ele é ajudado no Togo por seu primo Harry Olympio, à frente da Associação para a Defesa da Democracia e do Desenvolvimento (RSDD, em francês). Gilchrist é o filho de Sylvanus Olympio, o primeiro presidente do Togo depois da independência do país, em 1960. Olympio foi assassinado em 1963, durante um tumulto militar liderado por Eyadema, então sargento do Exército,

e que, quatro anos depois, com a em vários Estados africanos. O patente de general, assumiu a pre- Togo é um deles. A França mafiosa, mesmo quando se esconde atrás sidência. da França oficial, é que prevalece, CULPA DA “FRANÇA MAFIOSA” pois são os interesses protegidos da O Comitê de Ação para a Reno- França no país africano que detervação (CAR) é um dos principais minam afinal o comportamento de partidos de oposição no Togo. Seu seus testas-de-ferro”. líder, Me Yawo Agboyibo, afirmou Segundo Agboyibo, mesmo senem entrevista que a França teve do o Togo um país modesto, há induas faces, uma “oficial” e outra teresses de tal ordem que a “França “mafiosa”, no episódio. Ele disse: mafiosa” não pode deixar de levar em “Sempre há para mim duas Fran- conta e de buscar aliados nas escoças, a França de Robespierre, dos lhas políticas, “que têm impacto sodireitos humanos, e a França mafio- bre o nosso país e suas populações”. sa, que tem interesses econômicos (Com agências internacionais)

ANÁLISE

Bakary Fofana de Conacri (Guiné) Um dos grandes feitos da mundialização é o formidável desenvolvimento dos intercâmbios comerciais. A razão disso, segundo o dogma neoliberal, é o mercado. Quanto mais um país vender, maior será o seu crescimento. E, para um país do Sul, isso aumentará os meios de lutar contra a pobreza. Sendo assim, o mercado seria o benfeitor da humanidade. O dogma neoliberal diz ainda que, se a pobreza existe, é porque os países que dela sofrem não se abriram à concorrência e ao livre comércio. Diz: suprimam as barreiras tarifárias e mil escolas nascerão, os centros de saúde se multiplicarão. A Justiça não será mais só para o rico, a eqüidade não será mais o voto pio de um sonhador. A democracia criará raízes. Por obra do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), com sua bênção e suas condições impostas, a África seguiu esse caminho: entrega ( privatização) de todos os bens da nação. Mas o dinheiro não vem. Aliás, a pobreza se ampliou para outros cidadãos. Não satisfeitos, os conselhos de crescimento econômico pela concorrência apontaram o traje que protege tão pouco, pois já está transparente: as taxas e os impostos. Não podendo suprimi-los, o que é necessário é reduzi-los fortemente. Dito assim, assim foi feito. O crescimento continuou não vindo e os capitais também não vieram. Agora que os países da África têm taxas aduaneiras mais baixas do que os do Norte, aos africanos se pede que as suprimam, para permitir que a concorrência se expanda. Bem simplesmente, se pede que façam o

Paulo Pereira Lima

Batalhas comerciais e conflitos na África objeto de contestações políticas por parte dos cidadãos, que se sentem frustrados na repartição dos magros recursos. Daí surgem os conflitos violentos, muitas vezes sustentados pelas companhias concorrentes. Foi o caso do conflito em Serra Leoa, em que milhares de pessoas foram mortas. Esses conflitos sociais são causados também por empresas que atuam em setores diferentes. Foi assim em Angola, de 1975 a 2002, com uma guerra entre as empresas petrolíferas (sustentáculos do Estado) e as empresas de diamantes (que apoiaram os rebeldes da União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita).

AVES DE RAPINA

Economia informal pelas ruas de Maputo (Moçambique): transnacionais controlam a riqueza dos países africanos

haraquiri. O resultado é que o Estado não é mais do que sua própria sombra na África. Depois de tudo isso, se alardeia que o continente não é apto ao progresso, quer dizer, à modernidade.

CARTEL DAS TRANSNACIONAIS A realidade é completamente outra. A batalha cada vez mais encarniçada entre as empresas transnacionais, para satisfazer cada vez mais o acionista e concentrar cada vez mais poder nas mãos da gerência, se traduz em primeiro lugar por uma redução drástica dos custos de exploração dos recursos (financeiros e humanos) e pelo acesso fácil às matérias-primas. O continente africano é a reserva mundial das matérias-primas: diamante, cobalto, cobre, manganês, bauxita etc. Dos 150 bilhões de dólares de exportação em 2003,

a parte das matérias-primas representa a metade, isto é, 75 bilhões de dólares. Acrescentando-se os produtos agrícolas, a participação dos recursos naturais representa dois terços das exportações. Os capitais das empresas de mineração africanas são de propriedade, em 90%, de estrangeiros. E, conforme o país, de 50% a 80% das receitas em divisas provêm dos recursos naturais. Daí a importância desse setor para o desenvolvimento desses países. A deterioração dos termos de intercâmbio que resulta disso seria o efeito da não-melhoria da oferta. Enquanto fazem entre si uma guerra ferrenha em seu mercado doméstico, as mesmas companhias se reúnem em estruturas capitalistas comuns para gerir os recursos naturais africanos, mantendo o controle sobre os preços e as condições fis-

cais e sociais de exploração. Quer dizer, um cartel, princípio combatido nos Estados Unidos e pela União Européia.

A CRISE ANUNCIADA Onde está o princípio do mercado? No setor da bauxita, em dez anos, os preços caíram, por tonelada, de 50 dólares para 25 dólares. No mesmo período, o preço do alumínio, que é derivado da bauxita, passou, por tonelada, de 850 dólares para 1.850 dólares. Naturalmente, os Estados africanos não ganham nada com isso. Um país como a Guiné (primeira reserva mundial) viu suas receitas de exploração passarem de 350 milhões de dólares para 80 milhões de dólares. Foi por causa de tudo isso que a não-obtenção das vantagens esperadas dessas minas, nos territórios de certas comunidades, se tornou

A rapacidade da concorrência entre as empresas transnacionais no Norte se traduz, na África, pela destruição dos mecanismos autônomos de desenvolvimento, graças a instrumentos como a dívida, as condições de investimento, os diferentes códigos de minas, a direção da economia para fora, a mercantilização dos valores sociais. Enquanto desempenha o papel de reserva mundial das matériasprimas, a África se torna o campo de batalha privilegiado das companhias, as quais é preciso deter não pela boa consciência ou por algum Plano Marshal para a África, mas pela mudança das correlações de forças, graças a uma maior e melhor inclusão das populações no processo de desenvolvimento nacional. Bakary Fofana é diretor do Centro para o Comércio Internacional e o Desenvolvimento Haraquiri - Ritual japonês de suicídio por meio do dilaceramento das vísceras com um punhal.


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NACIONAL SEGURANÇA ALIMENTAR

As razões para não comer no McDonald’s Em 2004, aumentaram os lucros da rede estadunidense de fast-food. Junto, cresce o número de obesos no mundo

A

pós um período de queda nos lucros, o McDonald’s voltou a comemorar o aumento das vendas. No ano passado, o lucro trimestral da rede de fast-food aumentou mais de duas vezes, ao passar de 125,7 milhões de dólares no último trimestre de 2003 para 397,9 milhões de dólares nos últimos três meses de 2004. No mesmo período, as receitas subiram 10% e alcançaram 5,1 bilhões de dólares. Com os resultados de outubro, novembro e dezembro, o McDonald’s fechou o ano com um lucro líquido de 2, 278 bilhões de dólares. No entanto, o que preocupa é que, junto ao aumento dos lucros, está o crescimento do número de obesos, que chega a 300 milhões em todo o mundo. Para desvincular a imagem da marca à obesidade, após o lançamento, no ano passado, do filme Super Size Me, a corporação resolveu modificar o cardápio, introduzindo alimentos menos calóricos. Também investiu em campanhas publicitárias, para tentar convencer a opinião pública de que não é responsável pelo aumento da obesidade no mundo, e que, além disso, faz todo o possível para combatê-la. O filme, premiado no festival de cinema de Sundance, narra a deterioração da saúde do diretor Morgan Supurlock, ao longo do mês em que se alimentou exclusivamente de itens da lanchonete, no café da manhã, almoço e jantar. Ao final de 30 dias, Spurlock ganhou 11 quilos, teve intoxicação no fígado, aumento dos níveis de colesterol e de gordura. A rede de fast-food tentou se defender, alegando que o filme não é sobre o McDonald’s, mas sobre

balhadores do McDonald’s, criada no mesmo ano. “Em 1999, nós também tivemos 425 protestos em 345 cidades de 23 países”, lembra. Hoje, mais de 24 países integram a campanha, entre eles Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Escócia, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Nova Zelândia, Portugal, Suíça e Suécia. “Além disso, mais de 3 milhões de folhetos intitulados ‘O que há de errado com o McDonald’s’ foram distribuídos no Reino Unido desde 1990, e distribuídos pelo mundo todo, em mais de 27 países”. Morris afirma que a campanha anti-McDonald’s prova que os consumidores tiveram a oportunidade de “ ver além das campanhas de marketing das grandes empresas”. Para ele, agora que a indústria de fast-food foi “exposta, estamos trabalhando por um mundo sem corporações, em oposição ao “McWorld”.

Anderson Barbosa

Tatiana Merlino da Redação

Em São Paulo, manifestantes protestam contra o McDonald’s, que gasta mais de 2 bilhões de dólares ao ano com publicidade

a decisão do diretor de atuar de maneira irresponsável. Em suas recentes propagandas, o McDonald’s exalta as inovações dietéticas, e os alimentos saudáveis que vende, como frutas e mais recentemente, saladas.

LUCROS De acordo com Dave Morris, da organização não-governamental Greenpeace da Inglaterra, a principal razão do sucesso da cadeia não são os iogurtes, frutas ou saladas. “O lucro da empresa é assegurado pelo cardápio de hambúrgueres”, afirma, lembrando que quem quer comer uma fruta ou tomar um iogurte “obviamente não irá ao McDonald’s”.

Morris informa que a rede gasta mais de 2 bilhões de dólares ao ano em publicidade, “tentando cultivar uma imagem familiar e acolhedora, que está muito longe de ser verdadeira”. De acordo com ele, as crianças são atraídas para as lojas da rede, com a promessa de ganhar brinquedos. Porém, ao consumirem um McLanche Feliz, ingerem 760 calorias ou cerca de 50% das calorias necessárias a uma criança de cinco anos. Morris afirma que, além da obesidade, esse tipo de alimentação aumenta o risco de doenças cardíacas, diabetes e câncer. “Por trás da cara sorridente do Ronald McDonald está a realidade: seu único interesse é o lucro, às custas de quem seja e do que for”.

Em 2004, o Dia Mundial de Ação Anti-McDonald’s, comemorado em 16 de outubro, completou 20 anos. Criado pelo Greenpeace de Londres, a cada ano os protestos aumentam, conta Morris, um dos idealizadores da campanha. “Nesta data protestamos contra a qualidade dos alimentos, exploração de trabalhadores, prejuízos ao meio ambiente e a dominação global que as corporações tentam impor às nossas vidas”, diz. Um dos momentos mais importantes da campanha, lembra o ativista, foi em 2002, quando trabalhadores da corporação aderiram às manifestações. Saíram às ruas em diversos países, coordenados pela organização internacional de tra-

PROBLEMAS COM IMPOSTOS Além de ser alvo de ativistas, a rede de alimentos tem tido problemas com impostos. Dia 5, 80 lojas da rede estadunidense foram fechadas por erros nos registros de compras e vendas, de acordo com o organismo arrecadador de impostos venezuelano. Segundo Lucila Ascanio, gerente de tributos do Serviço Nacional Integrado de Administração Tributária, a sanção contra a rede se enquadra no plano “Evasão Zero”, promovido pelo organismo tributário em Caracas, com o objetivo de melhorar a arrecadação de impostos. As lojas ficaram fechadas por três dias. Para mais informações sobre campanhas anti-McDonald’s, acesse a página eletrônica: www.mcspotlight.org

BF – Como o McDonald’s se tornou o que é hoje? Como um drive-in virou uma cadeia mundial de comida rápida? Isleide – Na época, havia uma onda de reivindicações por melhores salários por parte dos trabalhadores. Os fundadores da marca se deram conta disso e eliminaram a figura da garçonete. Toda comida passou a ser servida sem talheres, pratos e coisas que pudessem ser lavados. No entanto, o consumidor passou a freqüentar um lugar onde tudo é burocratizado. Entra numa fila para se servir, tem de limpar a mesa e acaba assumindo

BF – O que se consome ao comprar um Big Mac? Qual a diferença entre comprar um hambúrguer e um sanduíche de outra lanchonete? Isleide – Mais importante que a imagem, é o nome que a marca carrega. Assim, o McDonald’s não vende apenas hambúrguer, mas a cultura do fast-food. Eles se deram conta da importância de, numa sociedade do descartável, consumir a segurança da marca. Por trás há toda uma construção de identidade. Se eu fumo cigarro Marlboro eu sou isso, se eu como McDonald’s eu sou aquilo. As marcas vão vestindo identidades, que você constrói. BF – No livro há uma relação entre cultura do descartável e um sentimento de vazio. Isleide – Vivemos numa sociedade baseada na descartabilidade dos produtos e na implosão das formas institucionais. As formas flexíveis de trabalho não dão mais identidade, a família não é mais nuclear e a mercadoria ganha a função de assumir e construir símbolos de identidade. Só que a própria mercadoria é descartável. Isso gera esse senso de vazio. A marca é uma ilusão de forma, usada para dar identidade. Aí você vai no mercado das identidades e compra a que melhor lhe cabe. Isso é uma ilusão de um preenchimento de vazio, estrutural, e foi historicamente construída. Ao consumir, você acha que preenche o vazio, mas ao terminar percebe que aquela

Divulgação

Brasil de Fato – Por que, para um livro sobre a sociedade de imagens, a senhora escolheu o McDonald’s? Isleide Fontenelle – Para compreender o que chamo de sociedade das imagens, achei que o melhor era uma marca representativa dos nossos tempos, e, a partir dela, compreender como foram acontecendo transformações sociais, culturais, políticas e históricas ao longo desse século.

funções que antes o McDonald’s tinha de pagar para alguém fazer. O consumidor não se dá conta disso; ao contrário, acha uma pura diversão.

Latuff

“O McDonald’s não vende apenas hambúrguer, mas a cultura do fast-food”, diz a socióloga Isleide Fontenelle, lembrando que na “sociedade do descartável”, as marcas constroem a identidade dos consumidores e criam a ilusão de preenchimento de “um vazio, que é estrutural”. Em entrevista ao Brasil de Fato, a autora de O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura do descartável explica como a corporação se transformou numa cadeia mundial de comida rápida. Afirma também que, apesar de a rede viver uma “crise de imagem”, continua tendo o Brasil como um de seus mercados mais lucrativos.

Divulgação

Marcas e imagens não preenchem ilusões

Cartazes de campanhas internacionais de boicote à rede McDonald’s

marca não é suficiente, então vai atrás de mais e mais. É a questão da aparência versus o ser. Você sabe que está consumindo ilusões, mas age como se não soubesse. É como se dissesse: “Preciso fazer parte do jogo, e não tenho força suficiente para lutar contra. Sei que as imagens me vendem ilusão, mas eu preciso delas para sobreviver no mundo das imagens”. BF – A senhora disse que a imagem do McDonald’s mudou ao longo da história. Qual é a ima-

gem que se vende hoje? Isleide – Ele vive uma crise de imagem, mas ainda está muito ligada à idéia de diversão. Ainda se vê muito isso nas propagandas. Nos EUA, no entanto, no início dos anos 90, a questão da alimentação saudável e a crítica ao fast-food começou aparecer. Além disso, a forma como o atendente trabalha lá é muito diferente do que aqui no Brasil. Nos EUA os trabalhadores são mais velhos, e no dicionário deles tem o termo Mcjob, como sinônimo do pior trabalho que possa existir.

BF – E como é essa crise de imagem? Isleide – A imagem dos anos 60 e 70 não se encaixa mais hoje em dia. Pela primeira vez na história, no ano retrasado o MacDonald’s ficou no vermelho durante um semestre, mas rapidamente se recuperou e voltou a dar lucros. Isso foi devido a esse investimento na mudança da imagem, de mostrar que estão preocupados em fazer comida saudável. Hoje estão fazendo propagandas de comida light, saudável. Eu não duvido muito se eles tiverem uma política muito forte de marketing, daqui a 20 anos, e se identifiquem como sinônimo de comida light. Hoje as mudanças de imagem tem que ser mais aceleradas. Isso é sintoma dessa crise cultural que vivemos. No Brasil, o McDonald’s está muito bem. Aliás, é um dos lugares onde mais se multiplicou. Aqui estão investindo muito pesadamente na classe C. Uma das cinco lojas mais lucrativas do McDonald’s está no Brasil, na zona leste de São Paulo, onde há um mercado para o consumo desse tipo de produto. (TM)

Quem é Formada em Psicologia, com doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Isleide Arruda Fontenelle é pesquisadora do Núcleo Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP, onde realizou pós-doutoramento com projeto financiado pela Fapesp.


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DEBATE IRÃ

As pressões para derrotar a revolução Sandro B

des importadas ou contrabandeadas ilegalmente, de baixa qualidade e preços inferiores, provenientes do Paquistão ou da Índia. A mesma coisa vale para as importações e o contrabando de carnes. O governo não considera as tribos nômades como seres humanos. Chegaram até mesmo a excluí-los do processo eleitoral com a desculpa que são pessoas que migram constantemente e vivem dispersas no território. Com isto, tentam obrigá-las a se tornarem sedentárias, roubando-lhes as terras onde costumavam acampar e proibindo a circulação pelos caminhos pelos quais transitavam, trazendo por resultado a redução da produção de carne e de alimentos, de lã, tapetes e outros produtos.

O

presidente iraniano Khatami continua atuando de forma mais realista que o rei: por ocasião da campanha eleitoral do Iraque, foi mais iraquiano que Allawi, e mais americano que Collin Powel. Uma sintonia perfeita, que para alguns jornais iranianos não passou despercebida, embora com uma outra interpretação. Segundo eles, as eleições iraquianas representam um mal menor, uma passagem obrigatória, para a preparação de um calendário para a retirada gradual das forças de invasão do Iraque. Khatami chegou a ameaçar os iraquianos, caso não participassem do processo eleitoral naquele país ocupado. Esse foi um outro ponto de encontro com Collin Powell, já que ambos falavam da próxima vitória dos xiitas, tema que poderia ser muito perigoso, se não se levasse em conta o alto nível de consciência das massas árabes no Iraque. Basta pensar que, frente aos massacres que continuam a ocorrer em cidades como Faluja, que é preponderantemente de população sunita, e ao convite dos líderes religiosos sunitas a boicotar o voto, frente à colaboração de alguns lideres xiitas com os Estados Unidos (por eles considerados o “mal menor” com relação a Sadam Hussein), o apelo de Khatami a uma vitória dos xiitas no mesmo momento em que Collin Powell fazia previsões sobre a vitória xiita, poderia ser interpretado como indício de um plano para incitar às tensôes étnico-religiosas e isolar a minoria sunita mais combativa e maior vítima da repressão. O rei da Jordânia, por sua parte, incendiou ainda mais o cenário, atacando o plano da Aliança Xiita proposto pelo Irã. Por último, o presidente-fantoche do Afeganistão, Carzai, aparece em Teerã, capital do Irã, e faz um apelo aos iraquianos, incitando-os também a participarem das eleições. Logo ele, colocado no poder pelos americanos! Portanto, muito além das aparências e do que relata a nossa pobre mídia globalizada, o governo de Khatami na realidade é favorável à globalização capitalista. O Executivo iraniano, com todos os seus ministros escolhidos por Khatami, é favorável à entrada na Organização Mundial do Comércio, aplicam passo por passo, mas sem fazer muito rumor, as políticas da globalização neoliberal, por meio de privatizações, promovendo a dolarização dos preços internos, eliminando gradualmente os subsídios estatais à economia e às políticas sociais, eliminando as alfândegas e criando zonas livres abertas à economia de mercado etc. Há 14 anos, o governo de Rafsanjani havia criado um porto e zonas francas onde a Constituição não vigora, nos quais se podia importar de tudo. Para introduzir as mercadorias no país, as empresas privadas ofereciam uma passagem de avião grátis ida e volta a quem trouxesse refrigeradores ou eletrodomésticos em certa quantidade. Não havia entre estas zonas quaisquer controles alfandegários sérios. Ao mesmo tempo, portos e atracadouros semiprivatizados continuavam sem qualquer controle alfandegário. Como se não bastasse, há algumas semanas, o vice-diretor da Câmara de Comércio do Ministério da Indústria e da Mineração declarou que o governo não estava mais interessado em ter determinadas Zonas Francas, e sim em que todo o Irã fosse uma “imensa zona franca”. Este ministério, que não é muito diverso dos outros, é a ponta de lança das privatizações, não somente voltada para o interior, como também para fora do país. Quando o ministro viaja ao exterior, com ou sem Khatami, o faz na condição de representante, intermediário e por-

AS PRÓXIMAS ELEIÇÕES

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ta-voz dos ávidos setores privados, e até mesmo da Peugeot. É interessante observar que para obter tais transformações, estes setores boicotaram por anos qualquer plano de desenvolvimento no qual o Estado podesse ter cumprido um papel. Não foi promovido nenhum desenvolvimento da rede ferroviária, até o momento em que propuseram a sua privatização. Para que a companhia aérea estatal se livrasse dos aviões de fabricação russa Tupolev e Iliushin, se fez uma campanha absurda sobre a sua periculosidade, chegando-se ao ponto de promover sabotagens com explosões em vôo para reforçar o argumento; chegaram a comprar velhos aviões Airbus da Turquia, que comportaram numa enorme despesa de manutenção. A companhia de bandeira nacional é deficitária, e está para ser colocada à venda ao setor privado. Por estas e mais outras maracutaias, o bilionário e corrupto ministro dos Transportes foi demitido. Este personagem queria, a todo custo, com a concordância de Khatami, entregar a uma companhia turca os serviços de controle de tráfego aéreo do aeroporto internacional Khomeini, apesar do parecer contrário dos serviços de segurança, uma vez que os alemães e os israelenses eram acionários da empresa turca, enquanto as empresas iranianas eram perfeitamente capazes de continuar a obra e manter a gestão nas suas mãos. Este conflito já durava seis meses quando o ministro Ahmad Khorram decidiu inaugurar o aeroporto e entregá-lo aos turcos. Após a primeira aterrisagem de um avião turco, o Exército ocupou o aeroporto e deu três horas aos hóspedes indesejados para se retirarem.

A QUESTÃO NUCLEAR Quem dirige o setor nuclear são os chamados “radicais”. Os europeus quiseram e impuseram que o representante iraniano nas negociações fosse o ministro das Relações Exteriores. Esta manobra funcionou por poucos meses, enquanto o Irã aparentemente cedia e fechava as centrais de processamento de urânio, mostrando até mesmo o traseiro, mas houve uma enorme reação. Surgiu uma oposição às visitas às instalações militares; estas retomaram as atividades em diversas formas, e talvez em algumas centrais as atividades jamais tenham sido totalmente interrompidas. Na realidade, os europeus querem vender ao Irã o próprio com-

bustível nuclear e transformá-lo de exportador potencial, em comprador. Permitem que o Irã possua centrais nucleares para a produção de energia elétrica, e podem até fornecer ajuda tecnológica para o setor, mas querem vender o combustível e manter em suas mãos uma cópia das chaves. Os Estados Unidos não querem nem ouvir falar disso. O Irã, segundo eles, não deve possuir nada. Com a política de embargo, os estadunidenses perderam a competição com a Europa, como ocorreu na última etapa no Iraque. Neste caso não sabem como fazer, e tentam utilizar a tática do cacete e da cenoura. Não podem fazer mais que isso, por enquanto. Mas tentam minar o campo para o próximo presidente, por meio de declarações belicosas, ameaças e manipulação das divergências entre os povos. Divide e impera.

O PLANO QUINQÜENAL O Plano Quinquenal proposto pelo governo propõe a privatização de tudo aquilo que continue ainda em mãos públicas. O artigo 3 deste Plano, que privatiza a indústria petrolífera, foi anulado pelo Parlamento, em defesa da Constituição. Foi criado então um outro órgão, para arbitrar entre o Parlamento e o Conselho de Guardiães da Constituição, por cima do Parlamento. Este órgão alterou a interpretação da Constituição com relação à propriedade pública. Entretanto, como acontece um pouco em todos os lados, mas sobretudo no Irã, entre as leis aprovadas e a sua real implementação, há um abismo. Suspeita-se que este Plano seja apenas um campo minado, criado para colocar em dificuldade o próximo governo. Entretanto, o Parlamento está fazendo alterações em pontos essenciais. Neste não há qualquer previsão orçamentária para o setor das cooperativas, no qual Khatami tinha a sua base para as eleições presidenciais. Foram fechadas inúmeras indústrias de pequeno porte nestes oito anos de governo Khatami, principalmente pequenas e médias. A última, uma fábrica têxtil com 3.600 operários, cujo quadro havia sido reduzido a 800 trabalhadores. Esta, e outras fábricas pequenas fecham não porque possuam máquinas obsoletas — muitas delas adquiriram o maquinário três, quatro ou cinco anos atrás — ou porque dêem prejuízo. As indústrias de calçados,

têxteis, de fiação, encontram-se entre as empresas de importância nacional que faliram devido à política de “portas abertas”. Com tantos operários na rua, despedidos ou que não recebem salários há meses, às vezes por um ano ou mais. São muito combativos, ocupam fábricas e lutam, e são perseguidos pelas forças de polícia do Ministério do Interior. As formas de luta são diferenciadas, mas ainda se parecem mais às primeiras experiências dos trabalhadores europeus.

A POLÍTICA NEOLIBERAL Anteriormente o Bazar era o lugar da intermediação, das negociatas e dos enriquecimentos ilícitos. Entretanto, prevaleciam relações de autocontrole entre os negócios mafiosos. Estas relações eram reguladas por uma certa base pequeno-burguesa e de pequenos produtores, que possuíam relações e canais privilegiados com as empresas estatais e distribuíam seus produtos, enriquecendo. Esta prática tradicional era e é a base eleitoral dos chamados “conservadores”. A Bolsa de Valores de Teerã é uma pequena e ridícula caricatura das Bolsas dignas deste nome. O seu Conselho de Administração é formado por representantes do Banco Central, do Ministério da Indústria e da Mineração, e outros. Recentemente, havia sido destituído o diretor-geral, vários vice-diretores e conselheiros, quase às escondidas, por haverem manipulado os preços das ações, roubando e defraudando os pequenos investidores ávidos e ingênuos. A crise do “coma quem puder” e a política contra as tribos nômades, além dos baixos preços para os produtos agrícolas fixados pelo Estado, e os anos de guerra, esvaziaram o campo. Atualmente, a relação entre a população urbana e rural é de 68% para 32%. A produção do chá e do arroz, da qual sobreviviam muitas famílias camponesas, está arruinada. Os pequenos proprietários de terra da região próxima ao Mar Cáspio possuíam pequenos animais, trabalhavam, produziam e vendiam tudo para uma fábrica estatal da região, para sobreviver. Formavam parte da beleza folclórica que caracterizava as populações do Norte. Em Ghilan, na época da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, foi criada uma pequena república soviética socialista, que durou dois anos. Estes camponeses tiveram que vender as pequenas propriedades, os animais, e migrar para a periferia das cidades. O ótimo arroz perfumado do Irã foi paulatinamente substituído por aquelas varieda-

Por todos estes motivos, a tendência, nas próximas eleições, é que, após 16 anos de governo, os neoliberais sejam derrotados e eliminados, tanto do Legislativo como do Executivo. Nas duas eleições precedentes, política e administrativa, nenhum dos candidatos neoliberais e fisiológicos dos diversos partidos inventados conseguiu ser eleito para o Conselho Municipal de Teerã. No Parlamento não entrou ninguém da velha maioria, do Moshaarekat, uma invenção feita da noite para o dia. Ainda existe uma minoria neoliberal que perturba mas não tem peso algum; os neoliberais caminham diretamente para a derrota, fazendo pequenas concessões. Não existem partidos verdadeiros, o que existe é um aglomerado de diversas tendências e pessoas que formam grupos como os radicais fundamentalistas, ou conquistam um Conselho, mas entre eles existe uma concorrência controlada. Procuram formular programas para todos os temas, e para tal formaram uma equipe de trabalho que deverá apresentar suas conclusões proximamente. Nem todos os candidatos foram ainda apresentados. Ahmad Khorram é uma figura decidida e interessante, que promete inverter todo o programa aplicado até o momento, e mudar todo o Executivo, todos os diretores, presidentes das regiões e das províncias. Foi ele que conseguiu fazer aprovar no Parlamento uma lei contra o aumento dos combustíveis e todos os derivados do petróleo previsto para o próximo ano, e conseguiu obter a redução dos juros para os créditos bancários. Ele é o responsável pela Comissão de Pesquisas do Parlamento,e a ponta-delança contra os neoliberais e contra Rafsanjani. Tem muito apoio, mas também muitos rivais no grupo dos chamados fundamentalistas, que não o agüentam e o consideram um perigo. Este é o seu ponto mais fraco: não tem um partido. No campo adversário, reina a confusão. Ali não existe perigo algum. As ameaças do imperialismo visam conter o processo de derrota dos neoliberais. Entretanto, a ameaça de intervenção militar está conduzindo o país a uma reação mais forte contra os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, o que coloca ainda mais em dificuldade os aliados internos do imperialismo. As mobilizações pelo 26º aniversário da revolução islâmica foram enormes e participativas. Neste contexto, adquirem uma importância vital para a existência e o progresso daquilo que resta da revolução, e influirão no processo que conduz às eleições. A força e o ímpeto das massas ajudará os candidatos mais decididos a se sentirem fortalecidos. Talvez assim consigam obter um maior número de candidaturas.

Sandro B é arquiteto, militante de esquerda em Teerãe e escreve para vários jornais do Irã


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agenda@brasildefato.com.br

NACIONAL TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS Inscrições até 15 de março O prêmio sobre estudos de territórios quilombolas é promovido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento Agrário. A iniciativa está dividida em duas categorias: apoio à pesquisa e ensaio inédito. Da primeira, podem participar estudantes regularmente matriculados em programas de pósgraduação reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Na categoria ensaio inédito, podem se inscrever antropólogos associados à ABA como sócioestudante, sócio-efetivo ou sóciocorrespondente. Embora o tema seja territórios quilombolas, somente serão aceitos trabalhos que abordem um destes subgrupos: regularização fundiária, movimentos sociais, gênero e economia e etnodesenvolvimento. Mais informações: (48) 331-8209 aba@abant.org.br CONCURSO: “CAUSOS” DO ECA Inscrição até 25 de março Promovido pelo portal RISolidária e pela Agência de Notícias dos Direitos da Criança (Andi), o concurso quer disseminar e premiar histórias verídicas de pessoas que, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tiveram seus direitos efetivados e suas vidas transformadas. A competição também busca reforçar o potencial de transformação social do ECA na vida dos cidadãos. Quinze semifinalistas terão suas histórias veiculadas no portal RISolidária; sendo que cinco serão publicadas em livro, a ser lançado em julho, na semana em comemoração aos 15 anos do ECA. Mais informações: www.risolidaria.org.br 3º PRÊMIO CASA DE CULTURA MÁRIO QUINTANA Inscrições até 30 de abril O concurso, aberto a qualquer escritor brasileiro, residente ou não

no Brasil, premia obra inédita de literatura juvenil. A previsão é de que o resultado seja divulgado em julho. A obra vencedora será escolhida por três membros ligados à área da literatura. Ganhará um contrato de edição de mil exemplares, lançamento da obra na 51ª Feira do Livro de Porto Alegre e prêmio de R$ 3 mil. Cada autor deve enviar originais em prosa, com, no máximo, 200 páginas, a serem encaminhados à Casa de Cultura, em três vias, com pseudônimo. O regulamento completo do concurso está publicado no endereço eletrônico www.ccmq.rs.gov/ Mais informações: (51) 3221-7147

BAHIA PROJETO: O TOM DA BAHIA 17 e 24, às 20h O evento, promovido pelo Teatro Isba, pretende facilitar a aproximação do público com parte da música baiana, além de contribuir para o programa do Fome Zero, com uma previsão de arrecadação de 25,2 toneladas de alimentos. Os espetáculos contarão com a participação de grupos regionais, como repentistas, sambadores do Recôncavo e corais, além de shows de artistas locais em diversas modalidades como música instrumental, popular e erudita. O projeto acontece a cada quinze dias, até setembro. Local: Teatro Isba, Avenida Oceânica, 2717, Salvador Mais informações: (71) 203-3689 PRÉ-VESTIBULAR COMUNITÁRIO Inscrições até dia 25 Estão abertas vagas para o COEQuilombo, pré-vestibular organizado pela Rede de Protagonismo Juvenil da Bahia. As inscrições podem ser feitas no local do curso e custam R$ 15. Local: COEQuilombo, R. Santo Antônio, Salvador Mais informações: (71) 398-2108, coequilombo@yahoo.com.br

MINAS GERAIS ESPETÁCULO TEATRAL: CHICO E NOEL

Até dia 27 A peça baseia-se num diálogo entre dois grandes compositores: Chico Buarque e Noel Rosa, que “falam” de suas letras, desejos, histórias, sucessos, mulheres e carnavais. Com direção musical de Leri Faria, o repertório é apresentado pela Cia. Cara de Palco e tem mais de 40 músicas dos dois compositores. O ingresso custa R$ 7. Local: Teatro Pio XII, Av. Alvarenga Peixoto, 1679, Belo Horizonte Mais informações: (31) 3213-4959 .

Divulgação

AGENDA

SÃO PAULO PROGRAMA EDUCATIVO: ALIMENTE-SE BEM COM R$ 1 Inscrições até dia 18 As aulas do projeto, promovido pelo Sesi-SP, serão ministradas em uma das seis unidades móveis da instituição – carretas especialmente estruturadas para a atividade. Na programação está prevista a realização de aulas para oito turmas, com capacidade para 30 alunos nos cursos que apresentam carga horária de 10 horas. Receitas como patê de berinjela com talos, casca de maracujá recheada, quiche de casca de abóbora, bolo de casca de banana e tabule de cascas são exemplos dos pratos criados pela equipe do Sesi-SP. Todas as receitas podem ser conferidas em um livro especialmente elaborado para a disseminação do programa. As aulas têm caráter prático: os participantes podem acompanhar a preparação das receitas no próprio local, numa cozinha completa montada especialmente para isso. Além de econômicas, as receitas têm de cumprir os requisitos de serem saudáveis, balanceadas e nutritivas, e ainda, conter ingredientes fáceis de serem encontrados. Local: R. Amador Bueno, 504, São Paulo Mais informações: (11) 5523-2905 CURSO DE CAPACITAÇÃO PARA RÁDIOS COMUNITÁRIAS De 5 de março a 21 de maio Inscrições até dia 28 Denominada “Seminários de saúde pública para comunicadores de

EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA: BIODIVERSIDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO A exposição fotográfica “Biodiversidade do Estado de São Paulo: Cores e Sombras” ocupa 150 m2 e está organizada em cinco módulos: águas costeiras, Mata Atlântica, áreas urbanas, águas interiores e cerrados. A mostra de 50 painéis é um dos resultados do trabalho do programa Biota/Fapesp, que desenvolve pesquisas em conservação e uso sustentável da biodiversidade do Estado. O objetivo da exposição é transmitir ao público leigo e a estudantes do ensino fundamental e médio informações sobre a Mata Atlântica e cerrado, os dois grandes biomas paulistas. Local: Estação Ciência, R. Guaicurus, 1394, Lapa, São Paulo Mais informações: (11) 3673- 7022, www.biota.org.br/expobio

rádios comunitárias”, a 5ª edição do curso tem como objetivo levar os comunicadores a ajudar suas comunidades na construção da cidadania por meio do uso adequado das informações em saúde pública. A ser realizado na Faculdade de Saúde Pública - USP, com o apoio das principais entidades de radiodifusão comunitária do Esta-

do de São Paulo. Os participantes receberão certificado de conclusão emitido pela USP. São oferecidas 60 vagas e os alunos serão selecionados por meio de entrevista pessoal. Local: Faculdade de Saúde Pública, Av. Dr. Arnaldo, 715, São Paulo Mais informações: (11) 3066-7795 radio@fsp.usp.br


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CULTURA

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NAÇÃO MARACATU

Cambinda Estrela: 70 anos de cultura Ivaldo Marciano de França Lima de Recife (PE)

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m 2005, o Maracatu Nação Cambinda Estrela comemora 70 anos de fundação. Várias festas acontecem para lembrar a história de resistência de um dos mais antigos macatus do Recife (PE), formado na maioria por afrodescendentes moradores de favelas, migrantes e desempregados. E mais: um agrupamento cultural que sistematicamente faz escolhas que o diferencia de outros maracatus que ainda não refletiram sobre o seu papel social. Uma das festas em comemoração aos 70 anos do Cambinda Estrela aconteceu no dia 22 de janeiro, no Alto Santa Isabel, onde ainda vivem muitos antigos participantes da agrupação, fundada como maracatu de orquestra em 1935, por trabalhadores que migraram para o Recife, vindos de Nazaré da Mata. O grupo fez parte da vida do bairro até meados dos anos 80 quando, em meio à decadência que acometeu muitos maracatus nação, deixou de desfilar, e foi reativado em 1997 na comunidade de Chão de Estrelas. Ao longo do arrastão cultural que percorreu as ruas do Alto Santa Isabel, animados pelo batuque conduzido pelo mestre, e com a presença de muitos membros da comunidade de Chão de Estrelas, estavam antigos caboclos de lança, batuqueiros, baianas, pais e mães de santo que rememoraram sua história, à medida que antigas toadas eram lembradas. Dona Leinha, filha de um dos fundadores do maracatu, dançou maravilhosamente. Seu Givanildo, que foi batuqueiro, puxava velhas toadas que eram respondidas pelos mais antigos. “Foi muito emocionante presenciar os garotos do atual batuque cedendo suas alfaias para os antigos batuqueiros. Foi um momento em que o saber dos mais velhos foi reconhecido, um momento em que os jovens tiveram a chance de reconhecer sua história”, diz Isabel Cristina Martins Guillen, pro-

Fotos: Ivaldo Marciano de França Lima

Formado por negros e pobres de Recife, grupo arrasta multidões com a tradição da dança e da política

O batuque animou o Alto Santa Isabel, onde ainda vivem participantes do grupo

Caboclos de lança, batuqueiros, pais e mães-de-santo reconstruíram suas histórias

A principal característica do Cambinda Estrela é não despolitizar a cultura

fessora em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Para ela, o mais emocionante, ao longo do arrastão, foi a reação dos batuqueiros novos, o entusiasmo com que saudavam com o rufar das alfaias os antigos, a surpresa em relação à história do Cambinda, sua longevidade, a noção de continuidade – que fazem parte de um maracatu que ainda é muito querido por outras pessoas.

mano, localizadas próximas à bacia hidrográfica do Rio Beberibe: Chão de Estrelas, Campina do Barreto, Jacarezinho, Capilé, Saramandaia, Canal e Ilha de Joaneiro. Nos locais pobres, sem asfalto e saneamento básico, os maracatuzeiros fazem os arrastões e ensaios e comemoram os 70 anos do Cambinda Estrela, bem como os seus arrastões e ensaios. Como diz o mestre, “as escolhas do Cambinda Estrela são justamente as de mostrar para os afro-descendentes e pobres de maneira geral que a construção de uma nova sociedade não será uma dádiva caída dos céus e que os problemas podem, sim, ser discutidos em meio a festa”. Além das comunidades carentes, o Cambinda Estrela escolheu outros parceiros para refletir sobre seu pa-

FESTA E LUTA Historicamente, os negros e grupos marginalizados utilizaram suas festas para fazer denúncias, críticas e protestos. Durante a escravidão, foram inúmeras as rebeliões organizadas em meio aos batuques de escravos que, sob o som dos tambo-

res, sonhavam com uma sociedade sem explorados e exploradores. É isso o que faz o Cambinda Estrela, cuja característica principal é não despolitizar a cultura. Em sua organização interna se privilegia a discussão política. Os fóruns internos, que efetivamente dirigem o maracatu, são divididos em três níveis, dos quais a assembléia é a mais importante. O conselho dos notáveis é a instância intermediária que encaminha as decisões e que está acima das competências da diretoria, eleita a cada dois anos em um processo eleitoral regido e controlado por seus sócios. Os membros do maracatu estão espalhados por comunidades de alta concentração populacional e baixo índice de desenvolvimento hu-

Os maracatus nação vivem atualmente um de seus melhores momentos. Antigos maracatuzeiros recebem homenagens oficiais, a exemplo de Dona Santa, rainha do Maracatu Elefante, a quem foi dedicado o carnaval do Recife em 2005. Luiz de França, do Leão Coroado, recebeu homenagens em anos anteriores. A abertura oficial do carnaval na capital pernambucana é marcada por um show que reúne batuqueiros de 11 maracatus, que neste ano tocaram sob a regência de Naná Vasconcelos, percussionista mundialmente reconhecido e que, apesar de não ser um maracatuzeiro, foi escolhido para dar maior visibilidade ao evento. Nos anos 80, saíam às ruas não mais do que meia dúzia de grupos. Hoje, existem muitas nações inscritas para desfilar pela cidade e grande número de turistas que vão ao Recife em busca dos maracatus e de outras formas de expressão da cultura pernambucana. A valorização do maracatu está atraindo a classe média. Muitos jovens se incorporam às nações mais afamadas, criando o fenômeno de embranquecimento dos batuques, outrora formado quase que exclusivamente por negros. Alguns maracatus já se distanciaram tanto de suas comunidades que sequer desfilam por suas ruas, e até a corte vem sendo formada por pessoas de fora. O fenômeno cria um contraste com alguns maracatus das periferias, que ainda não ganharam notoriedade nem foram

Ivaldo Marciano de França Lima

Elite embranquece a festa

tomados de assalto pelos seus “novos amantes”. Hoje, os maracatus não possuem mais o estigma de serem considerados coisa de “negros xangozeiros”. Pelo contrário, são afirmados pela sociedade recifense (e ai se incluem as elites) como parte da tão propalada “pernambucanidade”, apesar de que eram os muitos “pernambucanos” que vaiavam ou hostilizavam os maracatus em um passado não muito distante. Porém, se a situação está melhor para os maracatus, o mesmo não se pode dizer da qualidade de vida dos maracatuzeiros, sobretudo

dos que vivem nas periferias. São vendedores ambulantes, catadores de papel, empregadas domésticas e trabalhadores que fazem os maracatus acontecer no carnaval e, na quarta-feira de cinzas, voltam ao anonimato e à miséria nas favelas. E a riqueza que o carnaval gera não chega às mãos de quem efetivamente garante que os hotéis estejam ocupados e que os restaurantes dobrem seu faturamento. Apesar do grande número de ambulantes que vendem fantasias, comidas, cerveja, confetes e adereços carnavalescos, eles não recebem a maior parte dos lucros gerados. (IMFL)

Maracatu - Dança que nasceu da tradição do rei do congo, implantada no Brasil pelos portugueses e depois utilizada pelos negros, que passaram a autodenominar de nações a seus agrupamentos tribais. A orquestra é composta apenas por instrumentos de percussão: zabumbas, caixas e taróis, ganzás e um gonguê. O maracatu se distingue das outras danças dramáticas e das danças negras em geral pela sua coreografia, que lembra as danças do candomblé.

ANÁLISE

Rasgar a fantasia do lugar social Isabel Cristina Martins Guillen

A valorização do maracatu atrai jovens e adultos da classe média

pel: entidades e movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, Movimento Negro Unificado e Grupo Gay de Pernambuco. (Ivaldo Marciano de França Lima é mestre do batuque do Maracatu Nação Cambinda Estrela)

Vários estudiosos das ciências humanas interpretaram o carnaval como uma festa em que a hierarquia social é invertida — os pobres se fantasiam luxuosamente, brilham e dão o espetáculo para aqueles que durante o ano todo os emprega. Domésticas, catadores de papelão, pais e mães de santo, durante o carnaval aparecem como os ricos de vida e alegria, de cultura popular, de ginga e som, e nessa inversão constróise “verdadeiras muralhas contra a insatisfação social”. Quando o Maracatu Nação Cambinda Estrela entrou no espaço reservado para os maracatus no ensaio de abertura do carnaval multicultural da prefeitura da cidade do Recife, um certo desconforto ocorreu. Sua “comissão de frente” era composta por pessoas que moram em Chão de Estrelas, em sua grande maioria negros e favelados, vestidos com suas roupas cotidianas, sem nenhum glamour que as fantasias conferem a essas mesmas pessoas quando desfilam na passarela. Lá estavam Jorge, o porta estandarte, mas sem a peruca, lu-

vas, meias e fantasia bordada de lantejoulas douradas; dona Célia e dona Ângela sem as fantasias de baiana rica, bem como suas filhas também sem as fantasias de damas da corte, princesas e damas do paço. Mas são essas mesmas pessoas que vamos admirar na passarela, ricamente vestidas. O Cambinda Estrela teve neste ato simbólico a coragem de mostrar que o espetáculo do carnaval é feito por gente assim, que quando entra no espetáculo como são, quando tira a fantasia parece estar deslocada, fora de lugar... Talvez porque o carnaval com suas fantasias sirva mesmo para mascarar esses lugares, para que a sociedade só possa ver os negros e favelados fantasiados, mas não a face crua da miséria cotidiana. Talvez em momentos como estes, ainda que tão raros, possa se desmascarar a face oculta de nossa sociedade, rasgar a fantasia de que esses lugares sociais estejam assim tão demarcados. Isabel Cristina Martins Guillen é professora do departamento e programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco


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