Ano 3 • Número 104
R$ 2,00 São Paulo • De 24 de fevereiro a 2 de março de 2005
Lula promete o fim da impunidade
Em marcha pelas ruas de Roma, 500 mil pessoas pedem a libertação da jornalista Giuliana Sgrena e o retorno das tropas italianas do Iraque
Haiti: nem a miséria mata a esperança
“Bush quer me matar”, alerta Hugo Chávez
Aliciados ilegalmente, camponeses do Haiti são escravizados na República Dominicana, onde representam 83% da mão-deobra nas lavouras. Segundo relata em reportagem João Alexandre
Peschanski, enviado especial do Brasil de Fato ao Haiti, depois, os trabalhadores são descartados pelos fazendeiros. Na seca, poeirenta e pobre região de Belle Fontaine, oeste do país, nem a
miséria levou os agricultores a desanimar. Como fizeram os antigos escravos, eles decidiram resistir, lutar, produzir, se organizar e viver coletivamente. Pág. 9
ALEX RIBEIRO/AGÊNCIA ESTADO/AE
“O responsável por qualquer atentado (contra minha vida), quer ele tenha ou não sucesso, será o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush”, afirmou o presidente da Venezuela, em seu programa de rádio e televisão. “Sei que estou condenado à morte. Tenho certeza de que Washington está considerando me matar porque eles sabem que nossos soldados não vão se ajoelhar diante do império dos EUA”. Pág. 10
Raimundo Paccó/O Liberal/AE
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ia 22 de fevereiro, o presidente da República afirmou que os assassinatos da missionária Dorothy Stang e de outros líderes populares no Pará foram fruto da revolta de alguns empresários do setor madeireiro com a política do governo na região. “A nossa tarefa, agora, é legalizar todas as terras possíveis. Quem tiver terra grilada, o governo vai tomar conta dessa terra porque o Brasil não é terra de ninguém”, afirmou. Entretanto, dizem especialistas, a prisão dos acusados de matar a irmã Dorothy e as medidas anunciadas pelo governo não vão resolver os problemas. A justiça só será feita quando as terras públicas forem retomadas, o trabalho escravo punido e acordos com madeireiros forem rompidos, afirma dom Tomás Balduíno, presidente da CPT. JeanPierre Leroy, da Fase, diz que o discurso do governo é contraditório: condena a violência no campo, a grilagem e a concentração de terras, e alia-se ao setor que mais contribui para agravar esta situação, o agronegócio. Págs. 2 e 3
ALESSANDRA TARANTINO/AP/AE
Após o assassinato de Dorothy Stang, o presidente deu um basta à violência e lançou medidas de eficácia duvidosa
Italianos tomam as ruas contra guerra no Iraque Em Roma, cerca de 500 mil pessoas realizaram, dia 19, uma manifestação contra a guerra no Iraque, pedindo também a libertação da jornalista seqüestrada Giuliana Sgrena, do jornal Il Manifesto. Sob o lema “Libertemos a paz”, a marcha recebeu apoio da oposição, de movimentos sociais, partidos de centro-esquerda, jornalistas e intelectuais, e foi ignorada pelo governo direitista de Silvio Berlusconi. Pág. 11
Truculência da PM em defesa da propriedade
Empresários da mídia derrubam regulamentação
Dois mortos, cerca de 20 feridos e 800 pessoas presas, inclusive mulheres e crianças. Este foi o trágico saldo da truculência da polícia goiana durante desocupação de uma área na região urbana de Goiânia (GO), dia 14, onde há dez meses estavam instaladas 3 mil famílias. A operação contou com cerca de 2.500 policiais militares. Pág. 5
A regulação sai do projeto da Agência Nacional do Cinema e Audivisual (Ancinav), cujas atribuições vão se limitar ao fomento e à fiscalização dos setores de cinema e audiovisual. Ficam fora radiodifusão e mídia impressa. O presidente Lula acena com uma lei de comunicação de massa, engavetada desde o governo Fernando Henrique. Pág. 4
Renovar acordo com FMI, uma opção política Renovar ou não o acordo com o Fundo Monetário Internacional não mudará a política econômica adotada pelo governo brasileiro. A economia segue o figurino ditado pela equipe econômica comandada pelo ministro Antonio Palocci, e limitada pelas metas inflacionárias estipuladas por Henrique Meirelles, o comandante-em-chefe do Banco Central. Para especialistas, não renovar o acordo é uma decisão cujo peso político é muito maior do que os fundamentos econômicos. Pág. 7
Manifestantes participam de ato em São Paulo, para recordar o massacre de moradores de rua, ocorrido em agosto de 2004
Brasil não abre mão de usar o software livre Pág. 4
E mais: KYOTO — O protocolo que leva o nome da cidade japonesa onde foi assinado em 1997 entra em vigor com sete anos de atraso e sem adesão dos Estados Unidos. Pág. 13 CULTURA – Documentarista “argentino-baiano”, Carlos Pronzato, registra imagens das manifestações sociais da América Latina dos últimos cinco anos. Pág. 16
Nem demissões Equatorianos inibem motins protestam contra na Febem-SP Lucio Gutiérrez Pág. 8
Pág. 10
Debate sobre Rio São Francisco exclui indígenas Indígenas das nações Truká e Tumbalalá, de Cabrobó, interior de Pernambuco, foram impedidos, por policiais militares, de participar de um debate sobre o projeto de transposição do Rio São Francisco. A reunião seria entre representantes do Ministério da Integração Nacional e da Prefeitura de Cabrobó. Eles temem os impactos da possível obra em suas terras, a exemplo do que ocorreu com a construção das barragens de Sobradinho, Xingó e Itaparica. Pág. 13
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De 24 de fevereiro a 2 de março de 2005
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Bernardete Toneto, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, João Alexandre 5555 Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
NOSSA OPINIÃO
Romaria cívica A eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara dos Deputados foi qualificada pelo deputado Chico Alencar (PT-RJ) como a “vitória do retrocesso”. A comprovação cabal do acerto dessa afirmação é dada por discurso do novo presidente da Câmara, proferido dia 2 de março de 2004, em que ele fez a apologia do latifúndio. Para Severino, não há nada de anormal ou indesejável no fato de um empresário rural contratar trabalhadores sem carteira assinada; alojar famílias em barracos destituídos de água e instalações sanitárias; pagar salários inferiores ao mínimo. O Brasil é assim, diz ele, e reclamar contra essa situação é demagogia, pois ela revela apenas a realidade do país. Causa grande preocupação que o presidente da Câmara pense assim, e tenha feito essa apaixonada defesa do atraso, na hora em que a truculência dos grileiros e pistoleiros desafia o governo e as instituições da República. Todos sabemos que o pronunciamento de uma autoridade em favor do latifúndio opera como uma senha para que os jagunços e pistoleiros sintam-se livres para intensificar as agressões à população pobre do campo. A opinião pública, chocada com as recentes mortes de trabalhadores rurais sem-terra, exige que o discurso de Severino seja contraditado
energicamente pelas autoridades do governo e pelos partidos do campo democrático, pois representa a legitimação do mau tratamento que muitos empresários rurais dão a seus empregados. Não se pode aceitar que o chefe de um dos Poderes da República justifique o descumprimento da lei. Não sabe o senhor Severino que assinar a carteira de trabalho constitui uma obrigação legal? Não sabe que existem normas para a contratação de diaristas? Na semana iniciada dia 20 de fevereiro, uma comissão de entidades da sociedade civil realizará o que se convencionou chamar de “romaria cívica”: dezenas de entidades da sociedade civil, comandadas pela CPT, OAB e CNBB, entregarão às quatro maiores autoridades da República três reivindicações, simples e diretas. Ao presidente Lula, se reclamará a publicação dos novos indicadores técnicos da produtividade dos imóveis rurais, a fim de acelerar os processos de desapropriação; aos presidentes da Câmara e do Senado, a aceleração dos trâmites do projeto que determina aos juízes a emissão imediata do Incra na posse dos imóveis desapropriados; e ao presidente do Supremo Tribunal Federal, a realização de um reunião dos presidentes de
tribunais do país, a fim de propor formas de reduzir o tempo de solução das questões de terra. Se essas normas estivessem em vigor há mais tempo, não assistiríamos, como temos assistido, os freqüentes massacres de posseiros, sem-terras, seringueiros, indígenas. Os que se dizem chocados pelo assassinato da irmã Dorothy e dispostos a tomar as medidas pertinentes para evitar que brutalidades do mesmo tipo se repitam, têm às mãos sugestões concretas para atingir esse objetivo. A “romaria cívica” desta semana é, na verdade, uma repetição. Há um mês, essas mesmas entidades, indignadas com o massacre de Felisburgo, em Minas Gerais, percorreram os mesmos gabinetes e solicitaram das autoridades então à testa da República as mesmas providências que solicitarão agora dos atuais responsáveis. O objetivo do movimento é, obviamente, conseguir o resultado almejado: acelerar o processo de reforma agrária, a fim de eliminar as causas da violência no campo. Mas, se as autoridades permanecerem surdas a esse clamor, o esforço não será perdido. Servirá como registro da irresponsabilidade dos que dirigem atualmente o país – irresponsabilidade que, um dia, será cobrada.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES BRASIL DE FATO Sou leitor do Brasil de Fato, jornal que tem trazido grandes matérias sobre assuntos que os veículos da burguesia se negam a falar, como, por exemplo, a matéria sobre a morte do líder sindical Santo Dias. É, também, o único jornal que traz reportagens sem distorção sobre o presidente da Venezuela Hugo Chávez, que ainda representa uma ponta de esperança de luta contra o imperialismo estadunidense. Brasil de Fato divulga a luta no campo, a morte de trabalhadores rurais. Vejo isso com tristeza, pois meu pai foi vítima dessa luta por não ter um pedaço de terra para trabalhar. Eulárnio S. Silva São Paulo, SP DESTRUIÇÃO AMBIENTAL Já há algum tempo, bem antes dos tsunamis arrasarem parte da Ásia e da Índia, tenho observado que a lua e o sol têm surgido em localizações bem diferentes das observadas anteriormente, levando-se em conta as quatro estações do ano. É como se o eixo de rotação da Terra estivesse em movimento, ou quem sabe o próprio Universo estivesse sofrendo alterações. Alguns já arriscam palpite na mudança das polaridades da Terra, que alterará de forma significativa áreas habitadas do planeta, mudando o clima e a geografia dos países. A alteração no campo magnético é fato: vez ou outra nos deparamos com manchetes mostrando o suicídio coletivo de baleias e golfinhos nas areias. Quem sabe, daqui a pouco, veremos bandos de gansos selvagens rasgando os céus sobre nossas cabeças, com destino à lagoa mais próxima. Realmente algo de anormal está acontecendo
com nossa mãe Terra. As estações a cada ano são diferentes – temporais arrasam cidades na Europa; temperaturas baixíssimas são observadas nos EUA; furacões maculam nosso abençoado Brasil; tsunamis. São sintomas de que nosso planeta está entrando na UTI; são reações naturais de que o processo de aniquilação está a caminho, e os únicos médicos de plantão só estão preocupados em sugar a última gota de energia desse paciente terminal; talvez pensem que essa energia seja a chave de acesso para as “pontes de Eistein-Rosen”, que, segundo Einstein, permitiria a fuga para um universo paralelo. Fernando Magno Vitória (ES) FÓRUM SOCIAL MUNDIAL Em primeiro lugar: obrigado por existirem e, principalmente, por persistirem! Digo isso porque fui leitor dos saudosos Pasquim, Coojornal, Brasil Agora, Em Tempo e vários outros valorosos hebdomadários. Gosto muito do Brasil de Fato porque é um semanário de esquerda (!!!) que sai em (algumas) bancas de jornais! Essa é uma tradição muito pobre no Brasil (apesar de termos um governo petista). No Chile de Allende, até hoje, existe uma pluralidade de diários de “esquerda” (hoje em dia devemos pôr entre aspas), tradição essa que não conseguimos implantar aqui. Emocionado fiquei com a edição que recebi hoje (n.º 101), sobre o 5º – e último, ao menos na era fogaçística – Fórum Social Mundial. Andreas Sydow por correio eletrônico
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
CRÔNICA
Nem Jeca, nem Macunaíma Luiz Ricardo Leitão Um colunista do Jornal do Brasil, referindo-se à eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara, sugeriu que o deputado do PP seria um Macunaíma travestido de Jeca Tatu. Ou seja: por trás da aparência de “matuto” e “atrasado” existiria uma criatura ladina e traiçoeira – símbolo do oportunismo e da falta de caráter de todos nós, brasileiros. Como a literatura é o meu ofício há umas boas décadas, julgo-me no direito de meter minha colher nesse angu. O Jeca Tatu, por exemplo, aquele caipira de chapéu de palha, maltrapilho, descalço e com o ventre inchado de tanta verminose, até hoje é visto como um ícone do atraso e indolência do lavrador brasileiro. Os sociólogos dos príncipes servem-se da melancólica figura para estigmatizar os trabalhadores rurais sem-terra, explorados há séculos pelo latifúndio tupiniquim. Ninguém se lembra de dizer que Monteiro Lobato, o genial criador de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, deu vida ao Jeca para denunciar o abandono secular do caboclo e exigir das autoridades uma mudança radical da questão fundiária – isso
numa época em que a pobre intelligentsia local não conhecia sequer os subúrbios da Central. Já Macunaíma, com sua célebre preguiça e picardia, é velho conhecido de todos nós. O seu autor, Mário de Andrade, disse que ele era um cabra que só se mexia na hora de ganhar dinheiro ou tomar banho de rio, quando podia bolinar as cunhatãs, como se fosse guaiamu de água doce. De resto, passava o tempo banzando, só sombra e água fresca, e à noite dormia na rede, urinando gostoso na própria mãe a fim de espantar os mosquitos. Contudo, o que era apenas uma sugestão de que ainda não fora possível estabelecer uma identidade nacional para o brasileiro tornou-se para os mais afoitos uma representação plena e acabada de nosso povo. Como sempre, poucos acadêmicos suspeitaram que o indolente Macunaíma no fundo não passava de uma caricatura bem-humorada das nossas elites, um neto espalhafatoso de Brás Cubas – o moleque que deitava cinzas no tacho de doce da cozinheira e dizia à mãe que tudo não passava de pirraça da negra. O narrador que promete e não cumpre, com a desfaçatez típica de sua
classe – ultraliberal nos discursos, mas superconservadora em sua práxis social. Em suma: um bisavô sempre atual de Collor, FHC & Cia., gente que prometeu mudar e “modernizar” o Brasil, mas logo pediu ao povo que esquecesse tudo quanto havia escrito. De qualquer forma, o nosso Cavalcanti não é Jeca, nem Macunaíma. Sequer poderia evocar o seu homônimo, Severino retirante, o personagem com o qual João Cabral nos pintou o espetáculo da vida. É tão-somente mais um filhote dos anões do orçamento ou, quem sabe, um herdeiro dos 300 picaretas que nem ao menos têm um “anel de doutor”. Sua vitória, porém, serve de advertência ao outro retirante, o dito Luiz Inácio: neste país de velhos “coronéis”, mestres na arte de mudar para não mudar, ninguém governa sozinho – e muito menos se acabar esquecendo o povo que o elegeu. Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é também professor adjunto da UERJ
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De 24 de fevereiro a 2 de março de 2005
NACIONAL CRIMES DO LATIFÚNDIO
Presidente quer o fim da violência Dafne Melo da Redação
A
pós a captura de dois acusados pelo assassinato da irmã Dorothy Stang, em Anapu (PA), morta dia 12 de fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou, dia 22, que irá acabar com a impunidade no país. Rayfran das Neves Sales, o Fogoió, foi preso no dia 20 e Clodoaldo Carlos Batista, o Eduardo, dois dias depois. Agora, só está foragido o pecuarista Vitalmiro Gonçalves de Moura, acusado de ser o mandante do crime. Para dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a “verdadeira” justiça ainda deve ser feita. “Esses acontecimentos são a oportunidade de retomar as terras públicas, romper acordos com madeireiros e punir o trabalho escravo. Isso é fazer justiça, isso é prestar homenagem a Dorothy”, diz. A ofensiva das polícias Federal e Militar para prender os culpados pelo assassinato da freira não foi a única ação emergencial do governo federal, que ainda enviou o Exército para ajudar na região. No dia 18, foi lançado o Pacote Verde, um conjunto de decretos e uma medida provisória que procuram conter a ação de grileiros e a violência na região amazônica. Entre as decisões estão a proibição da exploração de madeira em determinadas áreas públicas, bem como a suspensão de novas concessões e autorizações para a extração, e a criação de cinco estações ecológicas na Terra do Meio, entre outras medidas. Em seu discurso, Lula também afirmou que os crimes no Pará são “uma atitude pensada de alguns empresários do setor madeireiro que estão revoltados com a política que nós estamos fazendo no Estado do Pará e em toda a Amazônia”. Estudiosos e representantes de movimentos sociais discordam: os crimes não são uma reação às políticas governamentais na região. E, a seu ver, as medidas tomadas
Luciano Cocca/ Chromafotos/AE
Mas entidades sindicais e estudiosos acham dúbio o discurso do governo e não acreditam na eficácia das promessas ouvir a opinião das populações tradicionais da região”, explica. Dom Tomás Balduíno acha que o governo está mais comprometido com o agronegócio. “A reforma agrária tem que ser a prioridade do governo federal e não o agronegócio. Entretanto, vemos que a reforma está relegada a um plano inferior”, analisa o bispo.
REPERCUSSÃO
Sindicalistas, militantes de movimentos sociais e partidos celebram memória da irmã Dorothy, em São José dos Campos (SP)
pelo governo federal correm o sério risco de não funcionar se não houver um acompanhamento sério do cumprimento dessas leis na região.
CRÍTICAS Segundo Jean-Pierre Leroy, pesquisador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) que acompanha a questão fundiária no Pará há mais de 30 anos, para que as medidas sejam efetivas, é necessária a presença permanente do Estado na região, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Delegacias Regionais do Trabalho e Polícia Federal. “Sem essa presença, será mais uma lei que não funcionará nesse país”, observa. Outro questionamento de Leroy é sobre a formação das estações ecológicas na Terra do Meio. “O projeto exclui a presença
humana nessa região. Não sei até que ponto essa medida afeta populações tradicionais que serão excluídas nesse novo plano. As estações afastarão os grileiros ou deixarão o caminho livre?”, pergunta o pesquisador. Apesar de qualificar o pacote de “bom”, Leroy questiona se a União liberará continuamante os recursos necessários para manter as medidas anunciadas. “Meu medo é que tudo não passe de fogo de palha para dar uma satisfação à opinião pública. Onde vão achar o dinheiro para tudo isso, ainda mais sabendo que há contingência da verba?”, lembra. De acordo com a Ministério do Desenvolvimento Agrário, apenas 40% dos recursos destinados para o Programa Paz no Campo, em 2004, foram utilizados. Ou seja, dos R$ 4,5 milhões, apenas R$ 1,8 milhão foram gastos. O programa tem o objetivo de reduzir a violência no campo, por meio da mediação de conflitos agrários.
Além disso, o pesquisador considera que as medidas podem ajudar, mas não resolvem a questão fundiária na região. “Não adianta pacote, quando há um abandono de 20, 30 anos na região”, completa.
DISCURSO X PRÁTICA Ao mesmo tempo em que os discursos convergem para a necessidade de acabar com a impunidade e efetivar a regulamentação fundiária na região, o governo Lula apóia o agronegócio, ancorado na falsa ideologia do progresso e desenvolvimento, reiterada pelos veículos de imprensa dominantes. Essa é a avaliação de Leroy, para quem o governo tem uma atitude contraditória. “Na prática, eles apóiam o agronegócio, que é aliado da bandidagem, que causa toda essa violência. O governo acredita que o desenvolvimento deve vir a qualquer preço. Mas não pergunta se há outros modelos de desenvolvimento. Ninguém quer
Em uma carta aberta direcionada ao presidente Lula e ao Ministro do Desenvolvimento Agrário Miguel, Rossetto, 38 entidades sindicais e organizações não-governamentais estadunidenses manifestaram sua insatisfação com a política agrária do governo federal. “Estamos alarmados pela violência e injustiça que enfrentam os sem-terra no Brasil”, diz a carta. O documento, que recebeu adesão de entidades de outros nove países, relembra que, ao votar no PT, em 2002, os 53 milhões de brasileiros confiaram em Lula para pôr em prática um forte programa de reforma agrária e pôr fim à violência no campo. A nota critica o caminho escolhido por Lula, de fazer uma reforma agrária que obedece às orientações impostas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional e lamenta que o Plano Nacional de Reforma Agrária desenvolvido por Plinio Arruda Sampaio tenha sido ignorado. “O senhor rejeitou o Plano de Reforma Agrária preparado por uma comissão do seu próprio governo, o Plano Plinio Sampaio, segundo o qual seriam distribuídos títulos de terras a um milhão de famílias sem-terra no prazo de 4 anos. Ao invés disso, o senhor rebaixou suas promessas de campanha, e comprometeu-se a distribuir terras a apenas 400 mil famílias de sem-terra nesse período, sendo que 115 mil era a meta para distribuição de terras em 2004. (..) A realidade é que somente 55 mil famílias de sem-terras receberam terras no último ano”, escrevem os sindicalistas.
SEM-TERRA
PM despeja, agride e vigia em Batatais Os 168 hectares de terra da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), em Batatais (SP), tornaram-se palco de conflito violento, dia 16 de fevereiro. A área, formalmente de propriedade do Estado de São Paulo, é reivindicada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que a ocupou há nove meses, e também pela prefeitura. Por trás da disputa, existe um caos político que resultou em ação da Polícia Militar, cinco prisões, despejo e uma série de arbitrariedades. No dia 16, sete camburões da PM cercaram o Acampamento Salete Strozake, para cumprir medida de reintegração de posse. Durante a ação foram presos três sem-terra – Nédito, Eliane e Pedro Xapuri –, uma sindicalista e o jornalista Lucas Mamed, da Folha de S. Paulo. Depois de algumas horas, eles foram libertados. Após o despejo, as famílias foram para a beira da rodovia Altino Arantes, sentido Uberlândia (MG), dispostas a levantar novo acampamento. No momento em que armavam os barracos, outra operação da PM impediu a ação dos sem-terra, levados para o Ginásio de Esportes de Batatais, sob vigilância permanente. A polícia também marca presença nos aces-
construída). A proximidade com centros consumidores poderia garantir o sucesso da comercialização da produção agrícola de um projeto de assentamento na área. A prefeitura de Batatais, no entanto, acredita que, por ser área em perímetro urbano, teria prerrogativa na disputa.
Claudio Pinheiro/Imapress/AE
Gissela Mate de São Paulo (SP)
PROJETOS EM ANDAMENTO
Pressão – Militantes do MST ocupam a sede do Incra, em Belém (PA). Eles pressionam o órgão a realizar a desapropriação de terras onde foram montados três acampamentos sem-terra no nordeste do Estado e na Região Metropolitana
sos à cidade de Batatais e na área da Febem. “Todos os ônibus que chegam à cidade, nos quais se desconfia a presença de membros do MST, são revistados e impedidos de entrar”, informa Kelli Maffort, da direção estadual do MST.
CONFUSÃO JURÍDICA Apesar de pertencerem à Febem, as terras já estão sendo transferidas para o Instituto de Terras
do Estado de São Paulo (Itesp), órgão responsável pela implantação de reforma agrária. O processo tramita pelo Conselho do Patrimônio do Estado e aguarda decisão sobre a destinação da área. A prefeitura de Batatais declara ter firmado compromisso com o governo do Estado pela posse da área e que as negociações avançaram na reunião, dia 21 de janeiro, com Armando Madeira, chefe da
Casa Civil. Segundo o Itesp, a área ainda não tem destino certo. As reivindicações do MST junto à Secretaria da Justiça e Cidadania estavam adiantadas até a reintegração de posse. A área da Febem, empenhada para reforma agrária pelo secretário de Justiça Alexandre de Moraes, tem 126 hectares de terra aptos para agricultura (os outros 42 hectares correspondem a área
O MST reivindica tanto a parte agricultável quanto as edificações, a serem utilizadas para um futuro centro de estudos agrícolas. Durante as primeiras negociações, Moraes pediu ao MST que apresentasse um projeto para o uso das instalações. O programa está pronto, mas ainda não chegou às mãos do secretário, em razão do conflito gerado pela violência da PM. A ação policial consta de um relatório que será entregue à Ouvidoria Agrária do Itesp, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) denunciando os abusos cometidos. Está previsto outro relatório, detalhado, a ser entregue à Procuradoria do Estado, com pedido de audiência com o governador Geraldo Alckmin. Uma coleta de assinaturas da população de Batatais e região, com avaliação das ações do MST, também estão entre as medidas.
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Espelho Severino? Que Severino? A eleição do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) para a presidência da Câmara pegou a imprensa de calças curtas. À exceção de alguns colunistas, como Elio Gaspari e Jânio de Freitas, ninguém levou a sério a candidatura vitoriosa. Os jornais tampouco se interessaram em apresentar um perfil de Cavalcanti. Na edição de domingo da Folha de S. Paulo, seu ombudsman, Marcelo Beraba, deu um pito memorável nos responsáveis pela cobertura política do diário. Mas a bronca não se restringiu à Folha: segundo Beraba, os outros grandes jornais comeram mosca porque ouviram sempre as mesmas fontes e não se dedicaram à apuração do que realmente se passava nos bastidores da Câmara. Denúncias, só depois O ombudsman da Folha também questionou, discretamente, a atitude do jornal de rememorar o Caso Lubeca, que, em 1989, envolveu o então vice-prefeito de São Paulo, Luiz Eduardo Greenhalgh, candidato derrotado por Severino. Segundo Beraba, as denúncias que o jornal fez sobre problemas financeiros do novo presidente da Câmara eram de conhecimento da redação antes da eleição, de forma que o jornal usou um critério para tratar a candidatura Greenhalgh, outro para a de Severino. Derrota ofusca crise A derrota do governo Lula com a eleição de Severino Cavalcanti de certa forma ofuscou a cobertura do fato mais importante da semana passada: o agravamento dos conflitos sociais. Além do assassinato da freira Dorothy Stang e do aumento da tensão na Amazônia, houve duas mortes em Goiânia, numa ação de reintegração de posse, e uma pancadaria generalizada em São Paulo, entre policiais militares e perueiros que protestavam contra recentes atitudes do prefeito José Serra (PSDB). Os jornais até noticiaram cada um dos casos, mas sem interligá-los. O presidente Lula percebeu a gravidade da situação: para ele, a possibilidade de eclodir uma crise social é muito mais complicada para o governo do que lidar com o “companheiro” Severino. Cautela e caldo de galinha Na verdade, a grande imprensa vai ser cautelosa no noticiário que mostre a crise social por que passa o Brasil. Por um lado, não é mais possível, como no passado, culpar o PT por “manipular” os movimentos sociais, já que o partido está no governo e não vê graça nenhuma no que está acontecendo. Por outro, aos grandes grupos de mídia não interessa uma real mudança de rumos na condução da política econômica, que poderia ocorrer caso a pressão social tornasse insustentável a manutenção da ortodoxia Palocci-Meirelles. Assim, ao mesmo tempo em que interessa à grande imprensa desgastar o presidente, já com vistas a 2006, também é crucial para o bom andamento dos negócios dos barões da mídia a continuidade de um governo Lula “domesticado”. Autoritarismo tucano A grande imprensa adora falar que o governo Lula e o PT são autoritários. A todo momento se lê algo a respeito, sobretudo quando o assunto é Ancinav, reforma universitária, política externa, meio ambiente e outros temas em que a gestão Lula cumpre um programa minimamente à esquerda. Quando, porém, o prefeito tucano de São Paulo, José Serra, decide que a negociação com os perueiros deve passar pela PM, ou quando o governador tucano de São Paulo demite, por decreto, quase dois mil trabalhadores da Febem, não se lê qualquer referência ao autoritarismo de tais medidas. No caso da Febem, um agravante: o assunto é escondido do público e só aparece a cada rebelião ou denúncia de espancamento de menores.
Mais um revés na regulamentação Projeto da Ancinav é bombardeado; volta à pauta idéia de lei geral de comunicação de massa Bel Mercês da Redação
N
inguém no Ministério da Cultura sabe dizer quando o Conselho Superior de Cinema (CSC), ligado à Casa Civil, voltará a se reunir para reformatar o projeto final da polêmica Agência Nacional do Cinema e Audiovisual (Ancinav), que substituirá a atual Agência Nacional do Cinema (Ancine). A dúvida está no ar desde 13 de janeiro, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com o CSC. Neste encontro, a parte referente à regulação das atividades do cinema e audiovisual foi eliminada do texto do segundo anteprojeto elaborado pelo CSC, a pedido de Lula, que propôs que o assunto fosse transferido para uma futura Lei Geral de Comunicação de Massa. À Ancinav caberá o papel de fomento, por meio de fundos formados com recursos provenientes da taxação sobre ingressos de cinema e publicidade, para investimento em produtos do audiovisual; e de fiscalização, amparada pela lei de comunicação de massa. Segundo Orlando Senna, secretário-geral do Audiovisual do MinC, a proposta do presidente Lula é considerada um avanço. “Entendemos que o presidente estava contemplando a proposta inicial do MinC, que é a da lei geral. A Ancinav poderá ter mais recursos do que a Ancine, como uma agência de fomento e fiscalização. E não vai se perder a regulação,”diz. Mas alguns especialistas acredi-
Marcio Baraldi
Luiz Antonio Magalhães
DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO
tam que o esvaziamento da discussão pode abrir espaço para manifestações daqueles que não querem a regulamentação. A Rede Globo, por exemplo, durante o debate e elaboração do anteprojeto, utilizou de maneira maciça seus veículos e atores para protestar contra a Ancinav.
CONFLITOS A primeira proposta para a criação da Agência Nacional do Cinema e Audiovisual partiu do Ministério da Cultura, cujo projeto incluía atribuições de regular, estimular e fiscalizar as atividades de produção
Renasce a idéia de uma lei de comunicação de massa Excluída a parte regulatória da proposta da Ancinav, ressurgiu a idéia de uma Lei Geral de Comunicação de Massa, abrangente, e não limitada ao cinema e audivisual. A elaboração do projeto da lei ficou a cargo de um grupo interministerial, em princípio o mesmo que conduziu o projeto da Ancinav — representantes de ministérios e da sociedade civil, assim como no Conselho Superior de Cinema. Segundo Orlando Senna, secretário-geral do Audiovisual, do Ministério da Cultura, a elaboração da lei será comandada pela Casa Civil. No entanto, especula-se que a discussão sobre a nova lei poderia gerar conflitos entre as equipes dos ministérios da Cultura (MinC) e das Comunicações (Minicom), que têm diferentes posições políticas. A Cultura, com Gilberto Gil, tem sido mais combativa no debate. O Minicom, com Eunício Oliveria, parece preferir o mínimo de regulamentação possível. Em reunião com entidades envolvidas na luta pela democratização dos meios de comunicação, no 5º Fórum Social Mundial, em janeiro, em Porto Alegre, Manoel Rangel, assessor especial de Gilberto Gil, declarou que o MinC não vai abandonar a discussão. Já do Minicom, provavelmente em breve sob nova direção, apenas se tem a notícia de que um grupo de trabalho está pesquisando para elaboração da lei de comunicação de massa. Senna informou que para as próximas semanas está prevista uma reunião com as operadoras de telecomunicações, e que um dos itens da pauta é a produção de conteúdo por essas empresas. “Hoje, se as teles quiserem produzir conteúdo, podem, por isso precisamos conversar. Conversar com todos os setores. Para se chegar a um acordo, todas as partes têm que ceder. É
difícil, mas necessário”, diz. Uma lei geral que englobe todos os setores — telecomunicações, radiodifusão, televisão aberta e paga, mídias digitais e internet — também implicaria a necessidade de mudanças na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e uma possível, e muito provavelmente difícil, redistribuição de funções de fiscalização entre esta e a Ancinav, trazendo novamente à tona o debate entre os dois ministérios.
A DISPUTA Segundo Venício Lima, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política, da Universidade de Brasília, tenta-se pautar uma lei de comunicação de massa desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Para ele, a ausência de marco regulatório tem favorecido apenas os empresários do setor. “A necessidade urgente de construir uma regulamentação significa encarar uma disputa política e ideológica com os grandes concessionários e empresários”, avalia. Lima considera essencial a mobilização da sociedade civil em torno do tema, para participar na construção da lei geral. “Esse espaço deve ser conquistado. Nós sabemos que não vai ser dado de graça. Não podemos ter a ilusão de conseguir alguma coisa dentro da grande mídia, mas mesmo para a comunicação alternativa é preciso regulação”, comenta. João Brant, do Coletivo de Comunicação Intervozes, afirma que os movimentos envolvidos com a questão devem assumir essa pauta em 2005. “Precisamos pensar não apenas no que é possível, mas no que necessário. Precisamos nos articular em defesa de um sistema público, e priorizar a visão que temos sobre o direito de todo cidadão à comunicação”, argumenta. (BM)
de conteúdo audiovisual no país. Os conflitos com os maiores concessionários e empresários do setor foram inevitáveis. Eles acusaram o projeto de autoritário e contrário à liberdade de imprensa. Chegaram até a comparar Lula a Hitler. Mas o que realmente estava em jogo eram os privilégios ilimitados dos monopólios das comunicações no Brasil. A Ancinav regulamentaria algumas atividades do setor, excluindo outros temas como radiodifusão e propriedade cruzada. João Brant, integrante do Coletivo de Comunicação Intervozes, afirma que o pro-
jeto deixava um vácuo regulatório ao cobrir apenas determinado setor. “Precisamos ter um olhar coerente sobre isso, entender o conjunto. Infra-estrutura, distribuição e conteúdo têm de estar no mesmo lugar”, argumenta. Ele vai além: questiona o formato da Agência, que não garante a participação popular. “Devíamos ter um Conselho Nacional de Comunicação. O modelo do Sistema Único de Saúde (SUS), é um bom exemplo. Tem 50% de participação de usuários e cerca de 25% de trabalhadores do setor”.
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Direito de propriedade intelectual em questão Luís Brasilino da Redação Entre os dias 17 e 25 de fevereiro em Genebra (Suiça), uma nova disputa sobre patentes e compartilhamento de conhecimento se acirrou entre o governo brasileiro e os países desenvolvidos, principalmente os Estados Unidos. Foi durante a segunda reunião preparatória para a próxima conferência da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) — um fórum vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU) — agendada para novembro, em Túnis (Tunísia). Segundo Marcelo D`Elia Branco, articulador do Projeto Software Livre Brasil, são três grandes temas do debate que colocam frente a frente interesses brasileiros e dos países desenvolvidos. “Para o governo brasileiro, as leis de propriedade intelectual precisam mudar para garantir o desenvolvimento e o avanço tecnológico das nações e, nisso, entra o software livre. Ele possibilita o compartilhamento da informação”, argumenta Branco. Já os EUA defendem as patentes para proteger o patrimônio de suas indústrias.
INCLUSÃO A segunda questão é a governança da internet. O jornalista Gustavo Gindre, coordenador executivo do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs), conta que os números e nomes utilizados na rede mundial de computadores são controlados por uma organização não-governamental (ONG), subordinada ao governo estadunidense, a Corporação de Internet para Nomes e Números (Icann). O Brasil quer a criação de um órgão internacional para desempenhar es-
Paulo Pereira Lima
da mídia
NACIONAL
Software livre em debate
sas funções, evidentemente, contrariando os Estados Unidos. O último ponto de discórdia é a criação de um Fundo Internacional de Solidariedade para proporcionar a inclusão digital nos países não desenvolvidos. A proposta foi levantada pelo Brasil e criticada pelos estadunidenses, que acreditam que o mercado deve regular esse processo. “É um assunto complexo. Há pontos de vista ainda não bem definidos, tanto no debate sobre financiamento para o desenvolvimento da sociedade da informação em países menos desenvolvidos, como na questão da governança da internet”, analisa Carlos A. Afonso, diretor de planejamento da Rede de Informações para o Terceiro Setor, que esteve em Genebra. Segundo Gindre, dificilmente a Cúpula de Túnis vai tomar uma posição favorável ao Brasil. O peso dos Estados Unidos é muito grande e a tendência é a formulação de um documento quase inócuo. No entanto, o jornalista salienta que a importância da reunião é sua própria realização, por levantar assuntos até então ausentes dos debates envolvendo a sociedade da informação, tais como o software livre e a governança.
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NACIONAL TRUCULÊNCIA POLICIAL
Em Goiânia, mortes na desocupação Na ânsia de defender a propriedade privada ociosa, o Estado esquece o que é a função social da propriedade
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ois mortos, cerca de 20 feridos (alguns em estado grave), 800 pessoas presas, inclusive mulheres e crianças. Este foi o trágico saldo da operação de desocupação de uma área na região urbana de Goiânia (GO), na manhã do dia 14 de fevereiro, e que continuou durante uma semana com a demolição das casas. Apesar deste balanço sangrento e desumano, autoridades estaduais e municipais, parte da imprensa e o comando militar afirmaram que a “operação Triunfo”, como foi chamada, foi um enorme sucesso. Cerca de 2.500 policiais, o maior efetivo usado em uma operação militar na história de Goiás, dezenas de máquinas e caminhões foram utilizados para a retirada de cerca de 3 mil famílias que ocupavam uma área de 1,3 milhão de metros quadrados (cerca de 130 hectares) no bairro Parque Oeste Industrial, na periferia oeste da capital goiana, dando fim a uma ocupação que durou 10 meses. No início de maio de 2004, cerca de 300 famílias ocuparam parte da área do Parque Oeste Industrial, um loteamento feito há 30 anos e sem qualquer utilização. Aos poucos a informação da ocupação foi sendo disseminada e, em menos de dois meses, já eram mais de 2 mil famílias. Ruas foram abertas e frágeis casas de tijolos começaram a ser erguidas, embora boa parte dos ocupantes vivessem embaixo de lonas nos lotes improvisados. Os posseiros se organizaram e mudaram o nome do bairro para Sonho Real.
FIM DO SONHO O tamanho da área ocupada chamou a atenção da imprensa e do poder público. Os donos da área apareceram e começou uma demanda jurídica e uma longa luta política. A prefeitura da cidade, então ocupada pelo PT, tentava negociar a compra de parte da área para a construção de casas populares, mas os donos se negavam a fechar um acordo, mes-
mães perdendo os filhos na confusão, pessoas de idade tentando atravessar uma área pantanosa para fugir da polícia, em meio ao tiroteio deflagrado por policiais. Embora o comando da PM tenha afirmado que só foram usadas balas de borracha, cerca de 10% da tropa utilizou armamento real. A imprensa foi impedida de entrar no local, mas cenas gravadas de longe por emissoras de televisão e em tomadas aéreas com uso de helicóptero mostraram a truculência policial. Diante do aparato usado pelo governo do Estado, os semteto acabaram não reagindo e, em menos de uma hora, toda a área foi tomada pela polícia.
Agência Estado
Cláudio Curado Neto de Goiânia (GO)
CENAS DE GUERRA
Truculência da ação policial comandada pelo governador Marconi Perillo deixa dois mortos e centenas de feridos
mo devendo quase R$ 3 milhões de impostos sobre o terreno. Começou a campanha eleitoral e diversos candidatos a vereador e postulantes à prefeitura foram ao local garantir que os ocupantes do Sonho Real não seriam retirados do lugar. Isso contribuiu para fortalecer o movimento e a ocupação e estimulou os moradores a investir seus parcos recursos na melhoria das moradias. Mas o final do período eleitoral trouxe mudanças. Parte da imprensa começou uma sistemática campanha contra a ocupação, veiculando infor-
mações distorcidas. Por exemplo, a existência de armas, a presença de marginais e construções milionárias foram algumas das mentiras usadas e que acabaram criando uma imagem negativa da ocupação junto à opinião pública. Isto foi largamente explorado por setores conservadores da sociedade para justificar o uso da força policial na defesa da propriedade privada, sobrepondo as mentiras à função social da propriedade. Vitoriosos na Justiça, no final de 2004, os donos da área cobravam a imediata desocupação. Diversas
negociações envolvendo deputados, representantes da Igreja Católica, autoridades municipais e estaduais e os donos do loteamento foram realizadas sem sucesso. A ação foi protelada diversas vezes pelo governo do Estado até o dia 14 de fevereiro quando foi realizada a operação policial.
VIOLÊNCIA A desocupação começou com a entrada da tropa de choque da PM. O uso de bombas de gás e de efeito moral disseminou o pânico e o que se viu foram pessoas correndo,
Os moradores foram colocados em fila indiana e imobilizados com as mãos para trás, amarradas com fitas adesivas. Dezenas de pessoas tinham marcas de ferimentos e hematomas produzidos pelas armas dos policiais. A violência foi distribuída democraticamente, sem distinção entre crianças, mulheres, idosos e homens. Todos foram encaminhados a um batalhão da PM onde foi montada uma central de flagrantes da polícia civil. Depois, foram sendo liberados, mas os líderes da ocupação permaneceram presos por mais cinco dias. Passada a histeria da defesa da propriedade privada, o drama dos desalojados pela polícia começou a ser conhecido. Centenas de famílias estão abrigadas precariamente em ginásios de esporte do Estado, em bairros da periferia de Goiânia. Contam com eventuais refeições fornecidas pelo poder público e com a solidariedade de moradores e de organizações católicas. Mas a luta não cessou. Os moradores se reorganizam para exigir dos políticos o que prometeram na campanha eleitoral. Eles querem voltar para o local de onde foram expulsos e continuar a construir um sonho real.
CAMPANHA DIFAMATÓRIA
Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) O dia em que 44 das 51 famílias do assentamento do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), em Eldorado do Sul (RS), estavam em Porto Alegre, trabalhando no Fórum Social Mundial, foi escolhido pelo jornal Zero Hora para uma visita que embasou a reportagem “Fracassa primeiro assentamento de desempregados”, publicada no dia 21 de fevereiro. Com o teor de editorial, a reportagem tentou provar que os desempregados urbanos viraram favelados rurais, conforme o título interno da matéria. A equipe do principal jornal do Grupo RBS, porta-voz da direita gaúcha que controla os maiores meios de comunicação do Estado, encontrou no assentamento quase vazio a família de Alvantino Brandão e Leonilda Aguilar, e do casal ouviu o que buscava: “Os mendigos estão melhor do que nós”. Ao Brasil de Fato, Leonilda conta que o casal morava na beira de um valão, na periferia de Sapucaia do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, quando foi para o acampamento que deu origem ao MTD, em 2000. Do seu jeito simples, ela diz que a falta de recursos é a principal razão do seu descontentamento. Porém, mostra com orgulho a horta que ela e o marido cuidam, apesar da seca que atinge o Estado; fala dos filhos que estão na escola; e presenteia o jornalista que a visita
com uma abóbora produzida no seu lote, gesto que costuma fazer com a vizinhança. “Nosso pátio é todo plantado. Quando tem alface plantamos até do lado da casa”, conta. Mas isso o Zero Hora não publicou.
Daniel Cassol
Direita gaúcha teme sucesso de assentamento ESTADO OMISSO Os problemas que o assentamento de fato enfrenta são tratados pelo jornal como fruto da falta de aptidão dos desempregados urbanos no manejo da terra, já que não teriam “preparo agrícola e empreendedor”. A responsabilidade do governo gaúcho é tratada como um problema menor. “Todo mundo é culpado e todo mundo é inocente. O projeto era bom, mas não deu certo”, diz, na reportagem do Zero Hora, o secretário estadual do Gabinete da Reforma Agrária e Cooperativismo (GRAC), Vulmar Leite. No mesmo dia, a direção estadual do MTD reagiu ao ataque, questionando se o que ocorre com o assentamento Belo Monte é um fracasso ou um descaso por parte das autoridades. “Se, em mais de dois anos, o governo não libera um único centavo, não encaminha um projeto sequer, não há culpados?”, pergunta o MTD, que vai solicitar à Comissão de Agricultura da Assembléia Legislativa uma audiência pública com o GRAC e com as prefeituras onde o movimento tem assentamentos no Rio Grande do Sul. O atual governo do Estado interrompeu a liberação de recursos de programas como o de Agricultura
Ivanir, o marido Alberi Ramires e os filhos. imagens que o Zero Hora escondeu
Familiar (Pronaf) para reavaliar projetos em andamento com problemas. Os assentados foram orientados a comprar matrizes de suinocultura sem que, por exemplo, tivessem recursos para o plantio de milho para ração. Outras falhas permitiram que os assentados recebessem telhas, mas não o material para o alicerce das casas.
SEM PROBLEMAS Após uma mobilização, em agosto de 2003, o MTD ouviu do governo que o assentamento rural-urbano era considerado inviável. Pressionado pelo MTD, o governo acabou reconhecendo que os problemas eram resultado da formulação equivocada dos projetos, e que o assentamento era viável. E prometeu liberar recursos, o que até hoje não aconteceu. “A energia elétrica, a assistência técnica, os recursos de investimen-
tos, são questões que estão sob o controle do Estado e não dos assentados, portanto é responsabilidade do governo”, diz nota do MTD. Enquanto a reportagem de Zero Hora era feita, a Prefeitura de Eldorado do Sul, em um mutirão que contou com o trabalho dos assentados, resolveu em menos de uma semana o problema da água, que se arrastava há mais de três anos. Assim como a solução do problema da água não foi mencionada pelo jornal da RBS, a reportagem também ocultou as vitórias conquistadas pelo assentamento. Conforme a direção do MTD, em toda a história do assentamento, não há um caso de desnutrição infantil. Além disso, todas as crianças estão na escola e cerca de 80% das mulheres recebem atendimento de saúde e um plano familiar. Os oito grupos de famílias lavraram cerca de
15 hectares do assentamento, porém a seca prejudicou a produção. À espera de recursos, há projetos de piscicultura, apicultura, frutas e hortifrutigranjeiros, um viveiro de árvores frutíferas e uma ciranda para as crianças, que terão recreação, oficinas e acompanhamento pedagógico. Segundo o deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT-RS), os primeiros assentamentos da reforma agrária no Estado também enfrentaram dificuldades e foram criticados pela grande imprensa. A seu ver, os assentados do MTD em Eldorado do Sul estão pagando o preço do pioneirismo. “Os poderosos temem o sucesso do MTD. A reportagem é o sintoma deste medo”, afirma. Na frente de casa, diante do açude onde brinca um grupo de crianças, a assentada Ivanir Ribeiro conta que em uma semana acabam as férias e os cinco filhos voltam à escola. Ela e o marido Alberi estavam desempregados na periferia do município de Viamão (região metropolitana de Porto Alegre) quando decidiram integrar o acampamento, em 2000. Ela acha que a vida precisa melhorar, mas gosta de saber que seus filhos podem brincar tranqüilos no assentamento. “Antes, era melhor porque eu morava mais perto de Porto Alegre, mas aqui meus filhos estudam, brincam no açude, jogam bola. É como se fosse o paraíso”, diz. “Muitos guris que conheci na vila, que tinham a idade dos meus filhos, já não existem mais”.
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NACIONAL TERRAS DEVOLUTAS
Latifúndios fora-da-lei
Fatos em foco Assalto legal 1 Até o Fundo Monetário Internacional, em relatório recente, considerou escandalosas as altas taxas de juros cobradas pelos bancos brasileiros, além de indicarem a existência de “forças não competitivas funcionando” no setor. Ou seja, o próprio FMI suspeita de acordo entre os bancos para assalto coletivo aos clientes. Em outras palavras, é formação de quadrilha. Assalto legal 2 Sem qualquer aviso prévio, ou pedido de autorização aos clientes, o Unibanco criou nova tarifa para o cheque especial com base no próprio limite de crédito que o banco estabelece. Na verdade, os bancos têm o péssimo costume de debitar nas contas de seus clientes, de forma unilateral, as mais variadas cobranças. Por isso mesmo é que batem – todos os anos – seus próprios recordes de lucros. Mau patrão Sindicatos de trabalhadores de Nova York, nos Estados Unidos, estão protestando contra a instalação de uma loja da rede Wal-Mart naquela cidade, sob o argumento de que a empresa paga baixos salários, não tem convênio de saúde para todos os funcionários, é contra a atuação dos sindicatos e está sendo processada por discriminação sexual. Aqui no Brasil, silêncio total. Pânico reacionário A imprensa burguesa tentou, tempos atrás, desqualificar o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, chamando-o de “fanfarrão” e “folclórico”. Como a desmoralização não pegou, passou a chamá-lo de “populista”, “caudilho” e “autoritário”. Também não deu certo. Agora está espalhando que Chávez não é confiável porque foi treinado pela famigerada CIA. Só falta dizer que ele tem pacto com o demônio. Confiança total O Ministério da Fazenda e o Banco Central estão preparando nova rodada de negociação com o FMI, para continuidade ou não do acordo atual. Tudo indica que o FMI está tranqüilo em relação ao Brasil, pois, mesmo sendo credor de 26 bilhões de dólares, sabe que o governo tem cumprido com folga a meta do superavit primário. Comportamento de bom menino. Limite moral Até o conservador jornal O Estado de S. Paulo, normalmente defensor do latifúndio e da oligarquia rural, teve de reconhecer, em reportagem do jornalista Carlos Mendes, que o assassinato da missionária Dorothy Stang foi encomendado por fazendeiros da região de Altamira, no Pará, “por 50 mil reais”. Por quê? Porque a religiosa tinha denunciado a derrubada e a ocupação predatória da floresta. Retórica palaciana Depois das trapalhadas na eleição da Câmara dos Deputados, as cúpulas do governo e do PT encheram o anedotário com explicações sobre o desastre político ocorrido em Brasília. Uma das melhores é do ministro Aldo Rebelo: “Sendo eleito um integrante da base aliada, é natural que o presidente Lula não considere que o governo tenha sido derrotado e sim que um dos partidos do governo tenha sido derrotado”. Ou seja, o governo agora é mais PP. Ministério fantasma O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo estima que mais de 30 mil trabalhadores de sua base, em São Paulo, estejam trabalhando sem registro profissional ou com disfarce de terceirização. A mesma coisa acontece com outras categorias de trabalhadores sem que o Ministério do Trabalho, responsável pela fiscalização da ilegalidade, mostre a sua cara. Afinal, quem é o ministro do Trabalho? Função oficial Alguns serviços públicos explorados por empresas privadas tiveram reajustes de tarifas bem acima da inflação nos últimos dois anos. Energia elétrica, água e telefone subiram mais de 34% – o que pesa diretamente no bolso do trabalhador de menor poder aquisitivo. Todos os reajustes foram autorizados pelo atual governo.
Bernardo Alencar de Belo Horizonte (MG)
T
erras que são do Estado de Minas Gerais e que podiam ser destinadas à reforma agrária estão em poder de empresas cujo único interesse é o cultivo da monocultura do eucalipto. Nas décadas de 70 e 80, durante a ditadura militar, governos biônicos como o de Antônio Aureliano Chaves, em Minas, sancionaram leis, como a de nº 6.637, que transferiram a 17 empresas o controle de 802 mil hectares, garantidos por contratos (em média, por 23 anos), já questionados em CPI da Assembléia Legislativa. De acordo com o Instituto de Terras de Minas Gerais (Iter-MG), órgão do governo estadual responsável por assuntos de reforma agrária, os vencimentos dos contratos (91 ao todo) começaram em 1998 e vão até 2012. Porém, mesmo com o término contratual, muitas empresas insistem em permanecer nas terras, alegando que ainda possuem áreas onde não foram feitos os cortes dos eucaliptos e, assim, justificam uma extensão do prazo de entrega. Para Luís Chaves, presidente do Iter-MG, “toda essa dificuldade em agilizar a reforma agrária ocorre porque as empresas produtoras de eucalipto têm garantida por lei a manutenção nas terras”. Ele explica que devido à Lei 4504, de 1964, mesmo após o vencimento dos contratos, as empresas podem permanecer nas áreas até que sejam efetuados os cortes. “Como há locais nos quais o eucalipto ainda vai demorar sete anos, ou mais, para ser cortado, dá para ter uma noção de como será difícil ao Estado obter a restituição das terras”, completa Chaves.
João Roberto Ripper
Em Minas, terras públicas que poderiam se destinar à reforma agrária foram griladas
Hamilton Octavio de Souza
Lei do tempo da ditadura militar faz com que empresas e carvoarias continuem em terras do Estado
milhões do governo do Estado para devolver terras que nem mesmo lhe pertence. Terras que foram alvo de Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, cujo relatório concluiu que os “contratos foram feitos de maneira irresponsável, pois atribuíam à própria empresa a delimitação dos perímetros”. A Florestaminas ainda argumenta que estaria gerando empregos e renda ao Estado pelo pagamento de impostos. A Via Campesina, entidade que aglutina movimentos camponeses de todo o mundo, contesta a alegação da empresa, argumentando que ela gera para o Estado a importância ínfima de R$ 7 por hectare, por ano.
DINHEIRO PÚBLICO APROPRIAÇÃO INDÉBITA Um destes casos é o da Florestaminas, produtora de eucalipto para carvão, que possui 70.977 hectares, dos quais 85% dos contratos estão vencidos. A empresa exige R$ 10
De mais a mais, convém lembrar que empresas reflorestadoras como a Florestaminas fizeram investimentos iniciais mínimos do próprio bolso, beneficiadas que foram por incentivos fiscais e juros subsidia-
CADASTRAMENTO FUNDIÁRIO
Projeto pode estimular a concentração
dos concedidos por bancos oficiais como o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG), Banco do Brasil e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Recursos que nunca foram fiscalizados pela União e muito menos pelo Estado. Nos planos nacionais de desenvolvimento dos governos militares havia programas regionais. Em um deles, o Programa de Crédito Integrado (PCI), o governo mineiro gastou, a partir de 1971, 200 milhões de dólares em infra-estrutura e incentivos fiscais. O PCI abrangeu, inicialmente, o Triângulo Mineiro e, depois, regiões do Alto Paranaíba, Alto São Francisco e a Metalúrgica. Com relação à dimensão social da ocupação das terras, a Via Campesina de Minas Gerais estima que, só das áreas da Florestaminas, foram expulsas 1,2 mil famílias de suas terras e casas para dar lugar à monocultura. O deputado estadual Adelmo Leão, (PT-MG), que presidiu a CPI
SAFRAS AGRÍCOLAS
Queda em 2004, evolução em 2005 da Redação
O programa de cadastramento/ georeferenciamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) pode acabar com o conceito de terras públicas e comunitárias e contribuir para a concentração fundiária. A avaliação é do geógrafo Marcelo Resende, ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Instituto de Terras de Minas Gerais (Iter-MG). Com um custo de aproximadamente 2,4 milhões de dólares, o projeto tem o objetivo de identificar e mapear terras devolutas no Estado de Minas Gerais. Os recursos são provenientes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Estado e da União. Inicialmente, o levantamento da malha fundiária será feito na região de Janaúba, norte de Minas, onde está grande parte de terras griladas e arrendadas pelo governo estadual a empresas de eucalipto. E, a partir de julho o projeto começará em 16 municípios do Estado. Marcelo Resende afirma que o cadastramento sairia mais barato se os gastos fossem repassados aos latifundiários, que teriam de apresentar laudos comprovando a produtividade de seus imóveis. A seu ver, o grande beneficiado com o georeferenciamento será o Banco Mundial, que terá acesso a dados privilegiados da malha fundiária brasileira. Entretanto, o atual presidente do Iter-MG, Luís Chaves, considera
que o grande beneficiário será o Programa Nacional de Reforma Agrária. “O projeto será um avanço, pois, assim, saberemos exatamente o que é, e o que não é terra do governo do Estado”, argumenta Chaves.
POSITIVO? Neider Moreira, secretario especial para assuntos de reforma agrária de Minas Gerais, também acredita que o programa de cadastro fundiário é positivo. “O mapeamento auxiliará no levantamento sobre a realidade fundiária”, diz. Porém, Marcelo Resende não vê o levantamento com otimismo, porque o programa “acabará com o conceito de terras públicas e comunitárias, o que pode contribuir para a concentração fundiária no Brasil”. Mais: o programa deve fortalecer os governos estaduais na concessão de terras públicas e devolutas para madeireiros e empresas do agronegócio. O ex-presidente do Iter-MG cita o exemplo do que ocorre em Roraima, onde o Incra tem sido pressionado por grandes empresas agrícolas a destinar terras públicas para a expansão da monocultura da soja. “O programa de georeferenciamento deveria levar em consideração as demandas e os diversos atores sociais do campo sem dar ênfase ao título de propriedade, que acaba permitindo a venda e a posterior concentração de terras, e preservando as áreas públicas para o uso comum”, defende Marcelo Resende. (BA)
das Carvoarias (empresas que utilizam eucalipto para fazer carvão que alimentará as fornalhas de siderúrgicas), afirma que as reflorestadoras “não geram tantos empregos como afirmam”. Muitas empresas se mecanizaram, o que resultou em “diminuição considerável do número de trabalhadores nas carvoarias”, analisa o deputado. Em uma viagem feita pela comissão a Paraopeba, para visitar a empresa V&M Florestal Ltda., foi possível observar que a colheita mecanizada de eucaliptos substitui cerca de 70 trabalhadores por motoserras. Outra questão que preocupa Leão é a terceirização de mão-de-obra arrebanhada por “gatos”, os empregados das empreiteiras que agenciam trabalhadores, com os quais tratam do serviço a ser feito e seu pagamento. Porém, esse tipo de acordo isenta as carvoeiras de compromissos tais como o fornecimento de equipamentos de segurança e a assinatura da carteira de trabalho dos contratados.
Em 2004, a produção nacional da safra de cereais, leguminosas e oleaginosas (caroço de algodão, amendoim, arroz, feijão, mamona, milho, soja, aveia, centeio, cevada, girassol, sorgo, trigo e triticale) foi de 119,1 milhões de toneladas, 3,68% menor que a colhida em 2003, de acordo com o levantamento da produção agrícola do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na distribuição regional da produção na safra passada, a região Sul respondeu por 41% do total, o Centro-Oeste por 33,5%, o Sudeste por 15%, Nordeste e Norte pelos restantes 10,5%. Em relação a 2003, só aumentou a produção de algodão herbáceo em caroço (62,%), arroz em casca (28,5%) e sorgo em grão (21,7%). E diminuiu a de feijão em grão – -12,1% na 1ª safra, -7,3% na 2ª safra e -9,9% na 3ª. Assim como caiu a do milho em grão 1ª safra (-10,5%), milho em grão 2ª safra (-18,7%); da soja em grão (-4,4%%) e do trigo (-3,6%).
PREVISÕES Para 2005, porém, as estimativas do IBGE apontam para um aumento da produção de 13,3%, para 135 milhões de toneladas. Três produtos devem aumentar a área plantada: amendoim em casca 1ª safra, arroz em casca e soja em grão (6,2%). E devem encolher as áreas destinadas ao algodão herbáceo (-4,1%), feijão em grão 1ª safra (-11%) e milho em grão 1ª safra (-4,9%).
Em relação às quantidades, deve crescer a produção de arroz em casca, feijão em grão 1ª safra (10,6%), milho em grão 1ª safra (4,6%) e soja em grão (28,9%). E ser menor o volume colhido de algodão herbáceo (-2,8%) e amendoim em casca 1ª safra (-5,7%). A estimativa de produção do algodão herbáceo feita em dezembro (3,5 milhões de toneladas) é 2,8% menor do que em 2004. Segundo o IBGE, isso se deve à queda de preços.
CAI ÁREA DO FEIJÃO Para a cultura do arroz, prevêse crescimento de 0,94% na área plantada (3,8 milhões de hectares) e de 0,81% na produção (13,4 milhões de toneladas). Para o feijão 1ª safra é previsto um volume da ordem de 1,58 milhão de toneladas (10,6% maior do que o de 2004), enquanto a área plantada acusa queda de 11% (2,2 milhões de hectares). A diminuição da área é atribuída aos baixos preços, escassez de mão-de-obra e problemas climáticos. No caso do milho da 1ª safra, a previsão é de redução de 4,9% na área, também em decorrência dos baixos preços. Espera-se uma produção de 32,5 milhões de toneladas. Quanto à soja, a produção é estimada em 63,4 milhões de toneladas, 29% maior. Com os preços em baixa, esta significativa alta é explicada pela falta de opção de plantio para outras culturas, uma vez que o milho também apresenta cotações bem aquém das esperadas.
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NACIONAL DEPENDÊNCIA EXTERNA
Falta coragem para romper com o FMI? Luís Brasilino da Redação
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e não renovar o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que expira em 31 de março, o Brasil pode romper amarras que se mantém desde 1998. A economia do país está em conformidade com o figurino ditado pela equipe econômica comandada pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e limitada pelas metas inflacionárias estipuladas por Henrique Meirelles, o comandante-em-chefe do Banco Central, e o cenário internacional, aparentemente, está estável. Para especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, não renovar o acordo com o Fundo, no entanto, é uma decisão cujo peso político é muito mais importante do que os fundamentos econômicos. Segundo Iara Pietricovsky, do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o FMI dá suporte político para o Brasil legitimar um modelo econômico que atende às exigências do mercado financeiro. Dessa forma, o país pode continuar mantendo um sistema de privilégios para bancos e transnacionais. De seu lado, o economista Reinaldo Gonçalves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que existem duas razões para se fazer acordos com o Fundo. A primeira é quando um país está com um sério problema nas suas contas externas. Nesse caso, o acordo serve como uma linha de crédito para proteger o país e permitir o ajuste daquelas contas.
OUTRAS OPÇÕES “Há uma segunda questão”, acrescenta. “Governantes pegam recursos no FMI para terem um ‘colchão’ de recursos externos de modo a evitar políticas que eles considerem inadequadas aos seus interesses. Essa é uma dimensão política. Isso significa dizer que o Brasil tem outras alternativas, mas os governantes decidem pegar o empréstimo porque essa é a linha de menor resistência”, aponta Gonçalves. Para o professor, economicamente, o Brasil não precisa desses acordos desde setembro de 2002. De lá para cá, avalia Gonçalves, as decisões de renovar o acordo foram políticas. “Nesse período, a condução da política econômica foi oportunista e irresponsável, ou seja, foram adotadas medidas que seriam impossíveis de serem seguidas sem o dinheiro do FMI”, diz. Um exemplo disso foi o fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter deixado o dólar cair de R$ 3,53 para R$ 2,59, de 2003 até hoje. “Uma atitude irresponsável
Fotos: Paulo Pereira Lima
Decisão sobre a renovação do acordo com o Fundo é uma nova oportunidade para o Brasil conquistar maior autonomia
Protesto contra o FMI durante o 5º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (RS): política econômica do governo Lula gera dependência e deixa o país vulnerável
porque o governo usa o dólar para combater a inflação e, com isso, negligencia a gravidade da situação das contas externas brasileiras. O presidente não adota políticas pró-ativas, como controle da taxa de câmbio, recomposição de reservas, controle de capitais”, critica Gonçalves.
ECONOMIA NÃO É MOTIVO Atualmente, por conta de sua política econômica neoliberal, o Brasil desfruta de relativa credibilidade junto ao instável mercado financeiro internacional: o “risco país” está baixo, os investimentos externos vêm aumentando etc. Essa situação é um dos fatores que atestam que as justificativas econômicas não bastam para justificar a renovação do acordo com o FMI. A outra razão é que, essencialmente, as orientações do Fundo não resultam em crescimento, aumentam a dependência e a vulnerabilidade do país. Rodrigo Ávila, economista do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco), afirma que o efeito mais direto dos acordos com o Fundo é a manutenção de um elevado superavit primário, e a premente necessidade de manter uma balança comercial favorável (exportações maiores do
que importações). Porém, ao se comparar o superavit comercial de 2004 (33,7 bilhões de dólares) com os compromissos que o país teve com o exterior (amortizações da dívida externa, 33,3 bilhões de dólares; juros da dívida externa, 13,7 bilhões de dólares; remessa de lucros, 7,3 bilhões de dólares; e serviços como patentes, transporte e royalties, 4,8 bilhões de dólares), sobra um grande rombo nas contas externas. Segundo Ávila, o Brasil teve que usar o empréstimo com o FMI para pagar sua dívida externa, que, por isso, caiu. Contudo, a vulnerabilidade externa se manteve a mesma, e a dependência dos investidores internacionais e do Fundo aumentou. Há 22 anos, o Brasil paga ao FMI, lembra Reinaldo Gonçalves. Nesse período, o Brasil foi o país que mais tomou dinheiro ao Fundo. “No entanto, nos últimos 25 anos, o país vem descendo a ladeira”, afirma o professor da UFRJ.
de assinar novamente, porque, em 2004, a economia superou as expectativas e continua indo muito bem. Segundo Iara, do Inesc, caso rejeite a renovação dessa forma (“muito obrigado, não estamos precisando, as reservas estão de bom tamanho, estamos conseguindo manter o arrocho do orçamento público, aumentamos imposto, demitimos, enxugamos...”), o país vai experimentar uma melhora residual, não estrutural. E, para Gonçalves, o Brasil continuaria sendo extremamente vulnerável. “É um pouco a idéia de pegar empréstimo num banco diferente. Muda o credor, mas sua situação continua a mesma”, elucida. Para mudar a relação com o Fundo, diz Iara, o Brasil precisaria dizer que não assina porque discorda das suas políticas. “O reflexo de tal atitude seria um distúrbio do sistema financeiro, a elevação do risco Brasil etc., mas o país se posicionaria melhor em termos de autonomia política”, garante.
RENOVAR, OU NÃO? No dia 10 de fevereiro, em coletiva de imprensa, o ministro Palocci avisou que a decisão de renovar ou não o acordo só seria anunciada em março. Mas antecipou que, na sua opinião, não há necessidade
A SAÍDA Sandra Quintela, do Instituto de Políticas Alternativas do Cone Sul (Pacs), passa a receita para superar o modelo do FMI e reduzir a dependência e a vulnerabilidade.
“Primeiro, deve haver controle do fluxo de capitais, porque a saída e entrada de recursos sem controle fragiliza ainda mais as contas externas, impedindo qualquer tipo de previsão. É necessário, também, limitar a remessa de lucros, que se dá de forma totalmente absurda. Outra coisa é aumentar a rigidez na questão dos royalties, cuja remessa vem aumentado cada vez mais, principalmente com a discussão sobre patentes no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comercio)”, completa. Rodrigo Ávila, do Unafisco, acrescenta que também é necessário fazer uma auditoria da dívida externa. “Precisamos descobrir por que, quanto mais pagamos ao Fundo e aos investidores internacionais, mais dívidas acumulamos”, argumenta. Risco país – Indicador elaborado por agências de classificação de risco e bancos de investimento de países desenvolvidos para medir o grau de perigo que um país emergente representa para quem quer investir seu dinheiro nele. Superavit primário – Obtido quando o governo arrecada mais do que gasta, descontadas as despesas com juros e correção monetária das dívidas. O superavit determina o tamanho do corte nos gastos públicos que o governo tem de fazer para arcar com os compromissos da dívida.
Receituário do Fundo só aumenta a miséria Entre 1998 e 2003, o Produto Interno Bruto (PIB) dos países latinoamericanos diminuiu 0,1%, e o número de pobres da região aumentou em 14 milhões de pessoas, chegando a 214 milhões. É o que aponta o Relatório “Estabilização e Reforma na América Latina: Uma Perspectiva Macroeconômica da Experiência desde os Anos 1990”, divulgado dia 8 de fevereiro pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Os péssimos indicadores foram apresentados a despeito da “elogiada” política macroeconômica aplicada pelos países da região no período. O estudo foi produzido pelo próprio Fundo, mas não se espere dele um mea-culpa. Segundo o relatório, os problemas sociais identificados na América Latina – desemprego, desigualdade e pobreza – são gerados por “causas domésticas”, tais
como corrupção e má gestão. “Não sei nem o que responder a uma coisa dessas. Na verdade, existe uma razão para a desigualdade no Brasil, que é histórica, resultante da estrutura sócio-política montada aqui mesmo. Agora, isso foi aprofundado e acelerado com um modelo internacional que foi adotado, foi aceito pelas elites, e que tornou mais aguda a desigualdade”, diz uma indignada Iara Pietricovsky, do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
VELHA HISTÓRIA Para o economista Reinaldo Gonçalves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), todas as vezes que as coisas dão errado, o FMI coloca a culpa no país, que não deve estar
colocando a casa em ordem. “Essa história é velha. ‘O que deu certo, é nossa responsabilidade, o que deu errado é incompetência dos governos’, dizem. Isso é uma grande bobagem, que não pode ser levada muito a sério”, opina Gonçalves. Para ele, os governos têm, sim, sua participação. Não por serem apenas maus gestores, ou corruptos, mas por aceitarem as políticas e os acordos prescritos pelo Fundo. “As receitas do FMI envolvem políticas ortodoxas no ajuste das contas externas. O que quer dizer, arrocho fiscal e juros altos, medidas que implicam numa política monetária e fiscal restritiva”, descreve Golçalves. Segundo Iara, o modelo de redução do Estado, de produção de superavit primário, de cortes no orçamento, de atração de re-
cursos do sistema financeiro para garantir o equilíbrio da balança de pagamentos na base de capitais voláteis não gera emprego, nem fomenta o sistema produtivo. Tal modelo, de mais a mais, significa a redução de recursos para políticas sociais, a incapacidade do país de usar seu orçamento para fazer os investimentos necessários à melhoria da qualidade de vida da população etc.
SOFRIMENTO Com tal modelo, sofre o conjunto da população, principalmente os mais pobres. “Medidas como aquelas produzem desemprego, queda de renda, degradação da saúde, da educação, das estradas, das instituições, encarecimento dos serviços de utilidade pública e violência”, acrescenta Reinaldo Gonçalves.
Sandra Quintela, do Instituto de Políticas Alternativas do Cone Sul (Pacs), afirma que o Fundo continua procurando radicalizar suas reformas neoliberais na região. É a forma que o círculo vicioso de vulnerabilidade externa, dependência e queda nos índices sociais encontra para se manter. Isso implica na incapacidade de o país encontrar suas próprias alternativas para superar as desigualdades. “Ao emprestar recursos, o Fundo impõe todo um plano de ajuste estrutural que engessa a capacidade do país de se desenvolver com autonomia e soberania. Exatamente como está na última carta que o Brasil assinou com o FMI, onde está prevista a Parceria PúblicoPrivada (PPP), a reforma trabalhista e a lei de falência”, exemplifica Sandra Quintela. (LB)
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NACIONAL DIREITOS HUMANOS
Em meio a motins, Febem volta atrás A Fundação registra quatro rebeliões depois de demitir funcionários; o órgão acaba por chamar alguns de volta
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uatro dias depois de demitir 1.751 funcionários da Fundação Estadual do BemEstar do Menor (Febem) que ocupavam o cargo de agente de apoio técnico (chamados monitores), o governo paulista anunciou, dia 21 de fevereiro, a reconvocação de 350 deles, para outro cargo e com salário maior. Em fase de transição, a Febem registrou quatro rebeliões e duas mortes de internos desde o anúncio das demissões. “Isso não me surpreende”, afirma Conceição Paganelle, presidente da Associação de Mães e Amigos de Crianças e de Adolescentes em Risco. Para ela, as recontratações eram previstas, e fazem parte da nova proposta de ressocialização do presidente da Fundação e secretário da Justiça, Alexandre de Moraes. Segundo a advogada Valdênia Aparecida Paulino, coordenadora do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), de Sapopemba, era preciso mexer na estrutura da Fundação. “As demissões demonstram firmeza e coragem do secretário,” avalia. No entanto, ela teme que “entre os dispensados estejam pessoas que não eram coniventes com as torturas, e que entre os readmitidos estejam torturadores”. A seu ver, as organizações não-governamentais precisam se empenhar na fiscalização “dessa fase de transição”. Segundo Alexandre Moraes, os funcionários serão recontratados como coordenadores de unidades, cargos cujo preenchimento não depende de concurso público. Os convidados teriam o perfil que a Fundação deseja, e sem histórico de violência contra menores. Ele informa que os diretores da Febem
Febem foram demitidos, houve quatro rebeliões e duas mortes em unidades da Fundação. Na noite do dia 21, os internos do Complexo Tatuapé, considerado um dos mais problemáticos, promoveram rebelião e fuga. De acordo com a Fundação, 30 adolescentes fugiram, e seis foram recapturados.
Sebastião Moreira/Agência Estado/AE
Tatiana Merlino da Redação
CONSPIRAÇÃO
Internos ocupam o telhado da unidade do Complexo Tatuapé da Febem em mais uma rebelião
teriam indicado os funcionários que deveriam ser mantidos.
CRÍTICAS A instituição tem 9 mil funcionários nas suas 75 unidades, que abrigam cerca de 6 mil internos. A Febem informa que não há irregularidade na readmissão, e que os 2.379 servidores que assumiram os cargos de agentes de segurança e educadores sociais estão aptos para o trabalho e não estão abandonando suas funções, como afirma o sindicato da categoria. A readmissão foi duramente cri-
ticada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência ao Menor e à Família do Estado de São Paulo (Sintraemfa), que entrou em greve dia 21, com adesão de 70%. Segundo o diretor Gilberto Silva, o presidente da Febem “está mentindo”. Alguns servidores voltarão ganhando menos do que recebiam antes das demissões, afirma Silva. A Fundação contesta: “O salário do agente é de R$ 1.200 e o dos coordenadores comissionados R$ 1.350”. O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Luiz Tâmbara,
VIOLÊNCIA URBANA
CASO CASTELINHO
Moacyr Lopes/Folha Imagem
Justiça tarda. E falha O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, dia 16 de fevereiro, por 24 votos a um, pelo arquivamento de um inquérito incômodo para o governo do Estado de São Paulo. Trata-se da apuração do possível envolvimento do secretário de Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, e dos juízes Maurício Lemos Porto Alves e Octávio Augusto Machado de Barros Filho em ações supostamente ilegais do extinto Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância (Gradi), da Polícia Militar. De acordo com investigações do Ministério Público de São Paulo, os presos eram recrutados pelos policiais e infiltrados em quadrilhas do Estado. Foram mais de dois anos de apurações sigilosas. A votação começou no dia 2 de fevereiro, quando o relator do caso, desembargador Sinésio de Souza, pediu o arquivamento do inquérito, alegando falta de provas. O fato mais grave envolvendo as ações do Gradi aconteceu em março de 2002, quando 12 pessoas foram mortas pela Polícia Militar em um suposto confronto na rodovia José Ermírio de Moraes, a Castelinho, na região de Sorocaba (SP). Segundo o MP-SP, os policiais e os infiltrados inventaram uma falsa aterrissagem de um avião-pagador para atrair uma série de supostos criminosos para a cilada. Os promotores denunciaram 53 policiais militares por homicídio triplamente qualificado (motivo fútil, meio cruel e emboscada). A apuração foi centralizada no TJ por causa do suposto envolvimento dos juízes e do secretário.
suspendeu a liminar que cancelava as demissões de 1.751 agentes de apoio técnico da Febem. Segundo a assessoria de imprensa da Fundação, Tâmbara entendeu que a paralisação da reforma administrativa da instituição prejudicaria a ressocialização de adolescentes e colocaria em risco a ordem pública. O juiz Valentino Aparecido de Andrade, do 12º Ofício da Fazenda Pública de São Paulo, concedeu liminar ao Sintraemfa, suspendendo as demissões feitas na véspera sob a justificativa da garantia do emprego. Desde que os funcionários da
Para Conceição Paganelle, a rebelião reflete uma “conspiração declarada contra o secretário Alexandre de Moraes”, e teria sido “orquestrada” por antigos funcionários, que se aproveitaram da “precariedade da segurança”. Ademar Carlos de Oliveira, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua era um dos representantes de entidades de direitos humanos presente na hora em que a rebelião começou. Ele afirma ter visto antigos funcionários “coordenando a rebelião do lado de fora, por meio de celulares”. Para ele, as rebeliões são reações políticas às transformações da instituição. “E estão usando os jovens para isso”. Após o fim do motim, o presidente da Febem vistoriou o complexo e acusou os antigos funcionários de “terrorismo”. Segundo Moraes, eles estariam incitando os adolescentes por meio de outros servidores. Para o diretor do Sitraemfa, as rebeliões vem acontecendo porque a instituição está “totalmente sem segurança”. Segundo ele, os novos funcionários não foram treinados e, conseqüentemente, não têm controle dos adolescentes. “Com certeza, em breve, mais e mais rebeliões vão explodir”, diz. Já o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Menor, atribui as rebeliões a um “caldo de cultura” existente dentro das unidades, “que é dos mais complexos, e cheio de interesses escusos”.
População exige fim de chacinas Marília Almeida de São Paulo (SP)
Ação da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, em 5 de março de 2002
De acordo com o deputado estadual Renato Simões (PT-SP), o arquivamento do inquérito “é uma decisão totalmente corporativa, conivente com a impunidade, e deixa a sociedade sem defesa”. Segundo ele, há provas consistentes de que os dois juízes participaram da ação. Depoimentos relatam a concessão de liberdade provisória aos presos que participaram da ação, além de ordens do juiz Alves, emitindo autorização para que ficassem em liberdade. “Além disso, há indícios de participação da cúpula da Polícia Militar, e do secretário de Segurança Pública”. No entanto, como as apurações foram sigilosas, “não temos conhecimento da fragilidade das provas e das contradições”.
CORPORATIVISMO O Ministério Público de São Paulo pretende recorrer da decisão. De acordo com o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo
César Rebello Pinho, os desembargadores “quebraram o princípio constitucional da titularidade da ação penal. Por isso, vamos recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, se necessário ao Supremo Tribunal Federal (STF)”, diz. Pinho já havia afirmado que a apuração de um caso como este não pode ficar apenas dentro da instituição da qual fazem parte os acusados. Na opinião de Renato Simões, “há uma lacuna lamentável”, na investigação do caso. “Não há um inquérito único do Gradi”. Simões lembra que as ações são investigadas uma a uma, em comarcas diferentes, “o que impossibilita a visão de como agia a organização”. Continua em andamento o processo contra os 53 policiais militares envolvidos no caso. Foram denunciados ainda os detentos Marcos Massari e Gilmar Leite Siquiera, que trabalhavam infiltrados para o Gradi. (TM)
Um ato público contra a chacina na Favela do Coruja, na zona norte de São Paulo, mobilizou organizações de direitos humanos e representantes da Assembléia Legislativa, no dia 17 de fevereiro. Representando quatro comunidades da periferia paulistana, eles se reuniram em frente à sede da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, exigindo o afastamento do 5° Batalhão Policial de sua área de atuação, na zona norte. O ofício com o pedido foi entregue a Saulo de Castro Abreu Filho, secretário de Segurança Pública do Estado. O documento recebeu adesão de entidades como o Movimento Nacional de Direitos Humanos, Centro Santo Dias de Direitos Humanos, Conselho Tutelar e representantes das comunidades do Jardim Pantanal, São Miguel Paulista e Sapopemba, na zona leste, e do Jardim São Martinho, na zona norte. Segundo Valdênia Paulino, coordenadora do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), de Sapopemba, a resposta ao documento demora porque pede o afastamento de um coronel. Outro documento foi entregue ao procurador Geral da Justiça, Rodrigo César Rebello Pinho.
VIOLÊNCIA NA PERIFERIA Na noite de 9 de fevereiro, seis pessoas foram assassinadas na Favela do Coruja; um adolescente, de 15 anos, conseguiu escapar porque
se fingiu de morto, após ser atingido por três tiros. Testemunhas dizem que os assassinos se apresentaram como policiais militares, mas não há provas. Os promotores Márcio Ideki Ihara e Sérgio de Assis, do 2º Tribunal do Júri, e a Polícia Civil investigam o caso. Josinaldo da Conceição, 18 anos; Edilson da Silva Braga, 18 anos; Amauri Francisco Pereira de Jesus, 46 anos; José Evangelista de Oliveira, 40 anos e o adolescente estavam reunidos em uma viela na favela quando três homens, um deles encapuzado, atiraram. Em seguida, os atiradores invadiram um barraco e balearam os irmãos André José dos Santos, de 22 anos, e José Carlos Barbosa, de 26. Policiais militares não chegaram a tempo de detê-los. A chacina na Favela do Coruja foi a primeiro de 2005, em São Paulo. Há dois meses, outras pessoas foram executadas na mesma favela; a última chacina, com seis mortos, em São Paulo, foi em fevereiro do ano passado. Em 2004, a Polícia Militar registrou 22 chacinas no Estado, com 81 mortes. Em um relatório sobre o Poder Judiciário, entregue ao relator especial da ONU, o Centro de Direitos Humanos de Sapopemba relata dez casos de abuso policial contra a população de baixa renda na região, desde agosto de 1999. Os casos têm em comum o tráfico de drogas, torturas físicas e psicológicas, homicídios e invasão de propriedades. A maioria deles ainda espera recursos e alguns estão em estado de segredo de Justiça.
Ano 3 • número 104 • De 24 de fevereiro a 2 de março de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO HAITI
Camponês quase escravo, quase livre Após décadas de exploração, trabalhadores são descartados por fazendeiros dominicanos, e se tornam excluídos
SEM IDENTIDADE
Moradores de Belle Fontaine, no oeste do Haiti, inspiram-se na resistência dos escravos, fugidos dos latifúndios coloniais
queria mais, pois poderia contratar alguém mais jovem.
ENCONTRO FAMILIAR Foi deixado na fronteira, na região da Selle, no sudoeste haitiano. Não tinha a quem recorrer. Só lhe restava voltar a Belle Fontaine, comuna onde nasceu, para tentar encontrar algum familiar. Soubera que seu único irmão havia falecido recentemente. Caminhou durante um mês. De favor, dormiu no quintal ou no
Na República Dominicana, exploração Fugindo da seca e da miséria, centenas de milhares de camponeses e jovens abandonam o Haiti todos os anos. Vão em busca de comida, emprego, dinheiro. A maioria toma o caminho da vizinha República Dominicana. Vão trabalhar como braceros, cortadores de cana-de-açúcar, aceitando salários mais baixos dos que os trabalhadores locais. Segundo estudo do Grupo de Apoio aos Repatriados e Refugiados (GARR), os haitianos representam 83,4% da mão-de-obra das lavouras dominicanas. Quando partem para as fazendas do país vizinho, os haitianos não sabem quanto vão receber. Ouvem dos buscones, funcionários dos grandes proprietários dominicanos responsáveis pelo recrutamento de trabalhadores, que vão ficar ricos. É o desespero, no país mais pobre das Américas, que leva os haitianos a acreditar. “Fui ingênuo”, reconhece o camponês Aristomon Jules. Em 2004, abandonou a família, em Belle Fontaine, no oeste do Haiti, e foi tentar a vida na República Dominicana. “Nosso pior problema é a fome. Decidi partir e fazer qualquer coisa para não ver meus filhos morrer”.
CRUZANDO A FRONTEIRA Jules pagou um dos buscones, que o levou à fronteira. No caminhão, via as barreiras policiais dominicanas, que permitiam a passagem do veículo, sem fiscalizar. Acenavam. Com ele, na parte de trás, dezenas de trabalhadores, embaixo de um cobertor, que os impedia de respirar. “Quase desmaiei, pois éramos muitos, apertados uns contra os outros. Uma pessoa não nos deixava pôr a cabeça para fora”, conta. De acordo com Colette Lespinasse, do Grupo de Apoio para Rapatriados e Refugiados, a travessia da fronteira é feita de forma ilegal, já que os trabalha-
jardim de pequenos agricultores, em vilarejos pelos quais passava. Não tinha nada além das roupas do corpo. “Nunca sobrava dinheiro. Tem um mercado na fazenda, no qual somos obrigados a comprar. O preço é muito alto, e gastamos tudo lá. Até temos dívidas”. Não tinha esposa, não tinha filhos. Em Belle Fontaine, “bela fonte” em francês, encontrou miséria e seca. Como esperava. Bateu à porta de camponeses da comuna, pedindo informações. Um deles o levou a
dores não têm a documentação requerida pelo Estado dominicano. “Não se trata, entretanto, de uma travessia clandestina, pois o fenômeno é generalizado e consentido pelas autoridades dos dois países”, explica. Jules lembra que, ao chegar a Batahona, na Republica Dominicana, foi empurrado para fora do caminhão. Homens armados, que mais tarde reconheceria como funcionários da fazenda, mandaram-no entrar em uma barraca, onde iria morar. Estava escuro, entrou.
uma casa onde encontraria pessoas de sua família. Uma sobrinha-neta. Apresentou-se. Ela tinha ouvido falar dele. “Deixou-me ficar, o que me trouxe muita felicidade”. A casa, sem janelas, é feita de pedras de calcário, chamadas tifs. Não tem pintura. Não tem cimento. Dentro, dois cômodos. Sem banheiro, sem cozinha. Uma mesa. Duas cadeiras. Treze pessoas. Para não incomodar, Louis improvisou uma cabana de palha, do lado de fora, onde dorme.
dores do passado. A região foi palco das primeiras resistências de escravos, fugidos dos latifúndios coloniais, conhecidas como marronages. Hoje, muitos vilarejos da área carregam os nomes dos líderes dessas revoltas, como Dérance e Télange. Em 1986, os habitantes da região criaram uma organização que coordena as atividades e responsabilidades de todos na comunidade. “Coletivamente, cuidamos da produção, da restauração da estrada, da educação das crianças. Cuidamos, nós mesmos, de nossos problemas”, diz Mauria Béatrice, coordenadora da organização, chamada Federação das Comunidades Camponesas de Belle Fontaine. Em assembléias semanais discutem as necessidades imediatas dos vilarejos. Acompanham a alimentação das crianças e dos idosos. Dividem a produção. Planejam atividades culturais. “Toda a organização é resultado de algum princípio fundamental, como unidade, coordenação, conhecimento, força e, principalmente, vontade de vencer”, ensina Mauria.
CONDIÇÃO DESUMANA No dia seguinte, foi acordado com uma chicotada. Entrava na estatística do Grupo de Apoio para Rapatriados e Refugiados, segundo a qual 36% dos trabalhadores haitianos apanham nas fazendas dominicanas. O golpe lhe deixou uma cicatriz permanente nas costas. Sem comer, sem beber água, foi levado para a lavoura. “Deram-me uma ferramenta, parecida com um facão, mais larga talvez, e me disseram para começar a cortar. Disseram para não reclamar e não falar, pois tinha sorte de ter sido empregado, porque eu era um haitiano inútil”, diz Jules. No primeiro dia, trabalhou 17 horas. Não lhe pagaram. Nem receberia pelo serviço de toda a primeira semana. “Disseram que era um teste, mas daí não tinha o que comer. Era para que nos endividássemos no mercado do fazendeiro, assim teríamos algo contra nós, uma dívida, e teríamos que nos sentir obrigados a trabalhar”, explica. Ganhando algo como dois dólares por dia, o camponês agüentou dois meses. Fugiu. Foi perseguido por funcionários da fazenda. Não o encontraram. Tão pobre quanto fora, voltou a Belle Fontaine. E diz: “Só aprendi uma coisa, como dói a humilhação”. (JAP)
“São descartados pelos empregadores que, muitas vezes, os mantinham sob regime de escravidão, mas lhes davam um mínimo de alimentos. São pessoas que sofreram algum tipo de acidente e não conseguem mais trabalhar. Pessoas que ficaram doentes ou são consideradas velhas demais. São descartadas, e coloca-se alguém mais novo e forte no lugar”, explica Colette Lespinasse, da entidade Grupo de Apoio aos Repatriados e Refugiados (GARR), que trabalha com esses camponeses. No Haiti, os agricultores não têm recursos nem contatos para sobreviver. Vários se tornam mendigos. Alguns participam de cooperativas organizadas pelo GARR. Outros tentam, desesperadamente, voltar à República Dominicana. Muitos morrem. “A violência contra eles é em todos os níveis. Não são aceitos no país onde passaram a maior parte de sua vida, e não se adaptam à vida no Haiti. Ficam sem identidade”, comenta Colette. Sem terra, sem dinheiro, sem família, sem identidade, sem país. “A maioria dos trabalhadores não tem opção. Vagam e sobrevivem, sós”, segundo a integrante do GARR.
Apesar da seca, há esperança Fotos: João Alexandre Peschanski
S
edwàn Louis acordou às 3h30 e começou a se preparar para a lavoura. Pôs a roupa, procurou as ferramentas. Voltou a si: não trabalhava mais. Após 26 anos cortando cana de açúcar em Batahona, República Dominicana, o camponês, nascido no Haiti, não consegue se desprender da rotina do campo. Não consegue dormir até mais tarde. “Na República Dominicana, era quase escravo, quase livre”. É assim que Louis explica sua rotina de 15 horas de trabalho por dia, recebendo, em média, 40 pesos (cerca de dois dólares) pela jornada. Às vezes, nada recebia. Dormia em um casebre, com outros trinta camponeses. Deitavam-se no chão, pois não havia cama. Eram acordados, todas as madrugadas, por chicotadas e baldes de água gelada. “Os capangas dos fazendeiros mudavam os horários em que vinham nos acordar. Então, não tínhamos como estar prontos”. Em 2002, Louis foi expulso de Batahona por policiais dominicanos. “Disseram que eu era ilegal, que não tinha documentos e tinha que voltar para o Haiti”. Ele pensou que não teria como sobreviver em seu país natal, que havia abandonado por causa da miséria e seca. Pensou que o motivo da expulsão era sua idade — 45 anos — e que o patrão não o
A história de Louis tem um final feliz, segundo ele mesmo. Encontrou sua família. Para 300 mil haitianos, o desfecho é outro. Expulsos de fazendas na República Dominicana, onde trabalham, muitas vezes, por décadas, ou até nascem, não acham meios para sobreviver no Haiti.
João Alexandre Peschanski
João Alexandre Peschanski enviado especial a Porto Principe (Haiti)
OCUPAÇÃO DA SEDE
Camponeses caminham até cinco quilômetros para chegar à fonte de água
O lugar parece recoberto por um manto de poeira. Belle Fontaine, no oeste do Haiti, não não tem nada a ver com a tradução de seu nome, “bela fonte” em francês. É uma das áreas mais secas do país. Nela, vivem aproximadamente cem mil pessoas, “consideradas miseráveis até mesmo pelos haitianos, que são eles mesmos pobres”, analisa Marius Saint-Pierre, camponês da região. Os rios, outrora grandes, desapareceram, resultado da devastação florestal, que teve início nos anos 60. Para chegar a Belle Fontaine, é preciso caminhar seis horas. Carros não sobem as ladeiras. A população, isolada, olha com curiosidade todo estranho. Saúda. Oferece água. Conversa. As plantações, principal
fonte de renda, e comida, são de cactus. Única vegetação que dá no solo seco da região. Para impedir a erosão da terra, os camponeses constroem pequenos muros de pedra. Vistas de longe, as colinas, serpenteadas pelas barreiras, parecem levar a uma volta no tempo. Lembram a pré-história. Ao lado das construções, algumas cabeças de gado. Para lhes dar água, as mulheres chegam a caminhar cinco quilômetros, até o rio mais próximo.
TRADIÇÃO DE LUTA Os camponeses de Belle Fontaine tinham todos os motivos para desanimar e desesperar. Porém, decidiram lutar. Incorporaram, acredita Saint-Pierre, a luta dos trabalha-
Dominando o topo de uma colina, está a sede da Federação. É uma construção diferente das demais. Tijolos brancos, cimento, janelas. Três andares, com terraço. Dentro, cinco banheiros. “Não a construímos, nós a ocupamos”, relata SaintPierre. A casa foi construída no início dos anos 90 por funcionários estadunidenses da USAID, entidade acusada de financiar ditadores haitianos. “Diziam que tinham vindo desenvolver com a gente um projeto para conservação da água. Esperamos até 1998. Como não faziam nada, nós os expulsamos e tomamos a construcão”, conta Mauria. Além de sede, o espaço serve também de escola. Nas classes, freqüentadas por crianças e adultos, após os cursos de matemática e crioulo, o professor dá uma aula muito especial, sobre as lutas e conquistas dos habitantes da região: “A Esperança de Belle Fontaine”. (JAP)
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AMÉRICA LATINA VENEZUELA
Chávez: “Bush quer me matar” da Redação
O
presidente da Venezuela, Hugo Chávez, afirmou, dia 20 de fevereiro, que os Estados Unidos têm planos para assassiná-lo e que “o primeiro responsável por qualquer atentado, quer ele tenha ou não sucesso, será o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush”. As declarações foram feitas durante o programa dominical de rádio e televisão “Alô Presidente”. Segundo Chávez, a série de declarações feitas contra ele por várias autoridades estadunidenses, em apenas uma semana, são indícios de que Washington deseja eliminálo e invadir a Venezuela. “Sei que estou condenado à morte. Tenho certeza de que Washington está considerando a tese de me matar porque eles sabem que aqui não haverá nenhum golpe de Estado, porque na Venezuela estão os soldados patriotas que não vão se ajoelhar diante do império dos EUA”, disse. Ele pediu à sua equipe de segurança que permaneça em estado de alerta máximo. As relações entre Estados Unidos e Venezuela são turbulentas desde a chegada de Chávez ao poder, há seis anos. O governo estadunidense rejeita as promessas – que estão sendo cumpridas – de combate à pobreza e de enfrentamento do imperialismo. As relações de proximidade entre Chávez e o líder cubano Fidel Castro são outro fator a causar irritação em Washington. Castro também afirmou, há poucas semanas, que os Estados Unidos seriam os responsáveis caso Chávez seja assassinado.
DAVI VERSUS GOLIAS Recentemente, a secretária de Estado estadunidense, Condoleezza Rice, classificou Chávez como uma “força negativa” na América Latina. A mesma expressão foi utilizada por Robert Zoellick, assessor direto do Departamento de Estado estadunidense, durante a audiência de sua confirmação no cargo no Senado dos EUA. Zoellick foi indicado para ser o número dois da diplomacia estadunidense após ter ocupado o cargo de representante do comércio, no primeiro mandato de George W. Bush. Em seu pronunciamento, Zoellick alertou para o que considera ser um “aumento do autoritarismo” na América Latina, em especial na Venezuela. Ele disse que Chávez “se alimenta do confronto” com os Estados Unidos e procura apresentar a relação dos dois países como a que havia entre “Davi e Golias”. (Com agências internacionais)
Marcelo Garcia
Em meio a ameaças e pressões, presidente da Venezuela responsabiliza George W. Bush por possível atentado
Chávez em seu programa de rádio e televisão “Alô Presidente”: venezuelanos não vão se ajoelhar diante do império estadunidense
ANÁLISE
Mais sangue nas veias da América Latina? Ignacio Ramonet
comprar aviões Mig, da Rússia, e Tucano, do Brasil. Mas essa nova ofensiva verbal confirma a vontade estadunidense de fustigar o presidente Chávez. Sua clara vitória eleitoral no referendo revocatório de 15 de agosto de 2004 demonstrou que ele conta com o apoio majoritário dos cidadão, coisa que voltou a ser demonstrada nas eleições gerais de outubro. Nenhuma manobra suja – nem sequer a tentativa de golpe de Estado de abril de 2002, apoiada por Washington – conseguiu frear o projeto de transformação social, num marco de democracia e liberdade, que Hugo Chávez está impulsionando. E seu êxito pessoal no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, onde mais de 15 mil jovens entusiastas aclamaram seu discurso, o converteu na figura de proa de toda a esquerda latinoamericana. É uma razão mais do que suficiente para que os falcões de Washington acentuem suas pressões contra ele. Ainda não colocaram a Venezuela entre os “seis bastiões da tirania mundial”, mas se percebe que o país já encabeça a lista de espera. E embora ainda não se atrevam a usar contra Caracas o argumento, agora habitual, de pos-
Roger Noriega, subsecretário de Estado dos EUA para a América Latina, declarou, dia 13 de fevereiro, no canal de televisão internacional CNN em espanhol, que “é causa de preocupação para os nossos parceiros na América do Sul e também para o povo venezuelano” a aquisição, pelo governo do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, de um lote de 100 mil fuzis de assalto AK-47 e de 40 helicópteros da Rússia. Acrescentou que “o rearmamento da Venezuela é muito preocupante”. Em janeiro, a nova secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, havia acusado Hugo Chávez de exercer “uma influência desestabilizadora na América Latina”. E o próprio presidente Bush, em dezembro de 2004, insistiu em que essas compras de armas “deveriam ser um motivo de preocupação para os venezuelanos”. A Venezuela, um dos principais fornecedores de petróleo dos Estados Unidos, desmentiu que se encontre numa corrida armamentista. Recordou que Washington se nega a revender as peças para reparação de seus caças de combate F-16, motivo pelo qual Caracas está pensando em
suir “armas de destruição em massa”, vemos como estão tentando converter, mediante uma ofensiva de propaganda na mídia, um lote de armas leves em “perigo para a segurança do hemisfério”. Deve-se temer que a próxima etapa seja o crime de Estado, o assassinato de Hugo Chávez. O vice-presidente venezuelano José Vicente Rangel exibiu fotografias que demonstram a existência, em Homestead, na Flórida, de um campo de treinamento de paramilitares destinados a incursões na Venezuela e que atuam sem problema com as autoridades estadunidenses. Alguns desses terroristas já estão operando no território venezuelano. Prova disso: a 2 de maio de 2004, foi detido nos arredores de Caracas um grupo de 91 paramilitares colombianos, ligados à CIA, cujo objetivo principal era matar Chávez. O chefe do grupo, José Ernesto Ayala Amado, “comandante Lucas”, admitiu, segundo sua própria confissão, que sua missão consistia em “cortar a cabeça de Chávez”. Nas fileiras da oposição, se estimula essa via do homicídio. A 25 de julho de 2003, em pleno debate sobre o referendo revocatório, o ex-presidente Carlos Andrés
Pérez, em entrevista publicada no El Nacional, jornal de Caracas, não teve dúvidas em confessar: “Estou trabalhando para tirar Chávez do poder. A violência nos permitirá tirá-lo. Chávez deve morrer como um cão”. Outro oposicionista, Orlando Urdaneta, a 25 de outubro de 2003, no Canal 22 de Miami, deu ordem, ao vivo, para seus correligionários passarem à ação: “A única saída para a Venezuela é que é preciso eliminar Chávez: uma pessoa com um fuzil e mira telescópica, e está feito.” O recente assassinato do procurador Danilo Anderson deixa claro que não se trata de palavrório vazio. E o fato de que falcões do vulto de George W. Bush, Condoleezza Rice ou Roger Noriega retomem agora, por sua vez, suas ameaças, é demonstração inegável de que o projeto de matar Chávez está em marcha. É tempo de denunciar esse projeto para dissuadi-los de levá-lo a cabo. Senão, pelas veias abertas da América Latina, voltarão a correr rios de sangue. Ignacio Ramonet é jornalista e diretor do jornal Le Monde Diplomatique
EQUADOR
Eduardo Tamayo G. de Quito (Equador) Com gritos de “Fora Lucio”, cerca de 200 mil pessoas ocuparam as ruas centrais de Quito, no Equador, dia 16 de fevereiro, em protesto contra as veleidades ditatoriais do presidente Lucio Gutiérrez. A mobilização foi convocada pela Assembléia de Quito, presidida pelo prefeito da capital, Paco Moncayo, e recebeu a adesão de um amplo leque de forças políticas. Uniram-se desde as câmaras empresariais até sindicatos, organizações não-governamentais e organizações de bairro, passando pelo partido Esquerda Democrática, de tendência socialdemocrata, e o movimento Pachakutik. A marcha, caracterizada pela massiva participação popular e pela indignação da população, se assemelhou às grandes mobilizações que culminaram com as quedas de Abdala Bucaram, em 1997, e de Jamil Mahuad, no começo do ano 2000. Para tentar inibir a manifestação,
o governo organizou, no mesmo dia e no mesma hora, uma concentração – inicialmente convocada como “contra-marcha” – na Praça da Independência, sede do governo, a apenas 100 metros da concentração popular. Compareceram cerca de 10 mil pessoas. Setores de oposição denunciaram que Gutiérrez utilizou toda a máquina governamental e recursos do Estado para mobilizar indígenas e moradores da periferia, com a promessa de inclui-los em programas de habitação popular, além de pagar uma ajuda de custo, alimentação e transporte.
CMI
Movimentos marcham contra Gutiérrez país e que tenha como o objetivos impedir a assinatura do TLC com os Estados Unidos, rechaçar o Plano Colômbia, o endividamento e a privatização do patrimônio nacional.
CONTRA O TLC
Equatorianos condenam o Tratado do Livre Comércio com os EUA
PLATAFORMA DE LUTAS Segundo os organizadores da marcha cidadã, a mobilização não foi pela saída de Gutiérrez, e sim para exigir retificações do governo e pela reinstauração da democracia no país. Os movimentos sociais, entretanto, participaram com outros objetivos. Humberto Cholango, da Ecuarunari, principal organização da Confederação de Nacionalidades
Indígenas do Equador (Conaie), disse que a marcha tinha como objetivo “rechaçar o Tratado de Livre Comércio (TLC), o Plano Colômbia, o intervencionismo estadunidense, a ação ditatorial que o governo de Gutiérrez quer implementar no país, contra a sociedade equatoriana”. A manifestação aconteceu em meio a uma profunda crise política
que sacode o Equador, desde que uma maioria legislativa reorganizou a Corte Suprema de Justiça, o Tribunal Supremo Eleitoral e o Tribunal Constitucional. A Conaie, que apoiou mas não participou da marcha de Quito, anunciou que, desde dia 16, iniciou mobilizações pelo Equador plurinacional, com uma agenda que aglutine os setores empobrecidos do
No Equador, o movimento de repúdio ao TLC cresce a cada dia e a possibilidade de uma consulta popular não é descartada. Alguns partidos políticos e organizações estão em campanha por um maior debate com a sociedade sobre o acordo. Agrupações iniciaram uma campanha nacional para recolher assinaturas no intuito de convocar um referendo nacional contra a assinatura do TLC com Estados Unidos. A campanha se chama “Equador Decide”. O objetivo é recolher 700 mil assinaturas para obrigar o governo do presidente Lucio Gutiérrez a convocar uma consulta popular. Uma pesquisa da Universidade Central revelou que 77,3% dos equatorianos são a favor da consulta. (Alai, www.alai-net.org)
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INTERNACIONAL MOBILIZAÇÕES ANTIGUERRA
Meio milhão de italianos vão às ruas C
erca de meio milhão de pessoas desfilaram dia 19 de fevereiro, em Roma atendendo à convocação do jornal de esquerda Il Manifesto, para pedir paz no Iraque e a libertação da jornalista italiana Giuliana Sgrena. A manifestação recebeu apoio da oposição de centro-esquerda. Seu chefe, Romano Prodi, declarou que era um dever participar. Já os partidos que integram o governo de Silvio Berlusconi não compareceram. Ignazio La Russa, dirigente da Aliança Nacional (direita), considerou que seria “hipócrita” participar em um protesto “contra os Estados Unidos e por Sadam Hussein”. Sob o lema “Libertemos a paz”, os manifestantes percorreram em silêncio as principais ruas da capital italiana até o histórico Circo Massimo, onde se sucederam discursos em favor dos seqüestrados e do povo iraquiano. Além da libertação de Giuliana, os manifestantes exigiram a da jornalista francesa Florence Aubenas e de seu intérprete iraquiano, Hussein Hanoun, desaparecidos em Bagdá há um mês e meio.
Christof Stache/Associated Press/AE
da Redação
Alessandra Tarantino/AP/AE
Na manifestação, em Roma, pedidos pela libertação da jornalista Giuliana Sgrena, seqüestrada, e pela paz no Iraque
Italianos condenam decisão do governo Berlusconi de manter tropas no Iraque
Protesto contra Bush em Hamburgo, na Alemanha, durante sua visita ao país
ANÁLISE
Um brinde pela liberdade e novas batalhas Luis Sepúlveda Cara Giuliana, não sabemos onde você está, onde os seus seqüestradores a detêm e o que pretendem com o seu seqüestro, ao roubar a liberdade a uma jornalista como você, que se encontra no Iraque pelo justo motivo de fazer com que a liberdade dos iraquianos seja respeitada. Enquanto você se encontra em meio a este terrível seqüestro, “desaparecida” por cumprir o dever ético de jornalista do Il Manifesto, existem os que se dão o direito de opinar por cima, com uma superficialidade que reflete a falta de coragem; ou por baixo, com a mais vergonhosa submissão às forças de ocupação do Iraque. Por exemplo, um escritor latino-americano chamado Mario Vargas Llosa, num artigo longo – muito longo, dado que as figuras “politicamente corretas” dispõem de todo espaço que querem nos meios de comunicação – se atreve a dizer que o resultado das eleições no Iraque, “com quase 60% dos votantes, uma participação civil extraordinária, mesmo comparando com as democracias mais avançadas, é algo que consolida de modo estridente as eleições iraquianas”. Omite, apesar do seu entusiamo, que somente os responsáveis pela força de ocupação sabem sobre a verdadeira porcentagem da população iraquiana com direito ao voto. Você, cara companheira Giu-
CONTRA A VIOLÊNCIA No evento estavam personalidades do mundo das artes e da cultura, entre elas o cineasta Nanni Moretti e o Prêmio Nobel de Literatura Darío Fo, que, além de pedir a liberdade dos reféns, denunciou “a violência inaudita” e o “ato criminoso que é a guerra”. Uma das oradores foi a assistente social voluntária Simona Torreta, seqüestrada com Simona Pari durante três semanas. Ela foi mais uma a pedir a libertação “de todos os reféns e da população iraquiana”. Nos últimos meses, em meio à controvérsia sobre a presença militar em território iraquiano, em várias ocasiões, os italianos saíram às ruas maciçamente para pedir a libertação de algum de seus cidadãos no Iraque. No final de abril do ano passado, os cidadãos se manifestaram por três guardas de segurança capturados por um grupo extremista islâmico que assassinou um quarto guarda, Fabrizio Quattrocchi. Os três reféns foram libertados no início de junho, mas em 20 de agosto foi capturado o jornalista freelance Enzo Baldoni, assassinado nove dias depois. As maiores mobilizações ocorreram com o seqüestro das duas Simonas em setembro. (Com agências internacionais)
liana Sgrena, está no Iraque porque sabe que as mais de 100 mil vítimas civis, as mais de 100 mil vítimas “não envolvidas”, frutos de “danos colaterais”, são também participantes passivas destas curiosas eleições circundadas de atentados, bombas, mortes e outras mortes, das quais se auto-excluiu a população sunita que representa 20% – não dos votantes, mas de toda a população do Iraque.
PELA PAZ Cara Giuliana, a sua presença no Iraque é muito mais do que a presença de uma jornalista do Il Manifesto. É a presença daqueles milhões e milhões de pessoas que, em todo o mundo, saíram pelas ruas para dizer não à guerra. Você representa os 99% da humanidade que se manifestou abertamente pela paz e pela legalidade internacional. Além de informar seus leitores, a sua presença no Iraque informa os iraquianos, que devem continuar a chamar o calor da solidariedade mundial que condenou aquela guerra ilegal; uma guerra que abriu as portas do horror em toda a região. Condoleezza Rice assegura que um ataque ao Irã “por enquanto, não está na agenda do Departamento de Estado americano”. O ex-pró-cônsul estadunidense Paul Bremer perde pelo caminho bilhões de dólares destinados à “reconstrução do Iraque”. Os escândalos financeiros do grupo
Halliburton – leia-se Dick Cheney, o grande beneficiado da ocupação iraquiana – estão enterrados recorrendo a todo tipo de truque pseudo-legal. Os estadunidenses continuam a receber corpos envolvidos em sacos plásticos – na maioria emigrantes latinos – apesar da “missão cumprida” pronunciada pelo Bush a bordo de um porta-aviões, celebrando uma missão falsa como as armas de destruição de massa que nunca foram encontradas. Com todos estes precedentes, aos quais se devem acrescentar novamente, as mais de 100 mil vítimas da ocupação e os bombardeios indiscriminados das escolas, mesquitas e hospitais, escritores politicamente corretos como Vargas Llosa consideram que aquilo seja um lugar normal onde se possam realizar eleições livres e democráticas.
PREÇO DE INFORMAR No seu artigo, intitulado “Domingo no Iraque”, Vargas Llosa se pergunta: “Depois do que ocorreu com estas eleições, passará pela cabeça do governo espanhol a impressão de que talvez tenha sido prematuro retirar as tropas do Iraque com toda aquela pressa? Que talvez tenha sido uma imprudência exortar tal deserção aos outros países que formavam parte de uma coalizão guiada pelos Estados Unidos e Inglaterra?” Quer dizer, cara Giuliana, que você, eu e outros milhões que disseram não à guerra ilegal e
motivada somente pelo unilateralismo imperialista, somos todos desertores. O preço de informar se paga de muitas maneiras. Muitas vezes é a prisão, outras vezes o seqüestro, e outras, a morte. Mas o preço mais insultante é suportar a presença de vassalos da barbárie, dos defensores da guerra, dos que pregam o evangelho segundo Bush e da sua miserável mensagem de destruição, guerra preventiva, dor e expoliação de cada nação que termine na mira da voracidade imperialista. Cara Giuliana, onde quer que você esteja, estaremos com você. Daremos via a cada possibilidade até obter a sua libertação. Confiamos que os seus raptores, qualquer que seja a banda à qual pertençam, numa urgente demonstração de bom senso – porque não existe nada mais absurdo que seqüestrar uma jornalista – a libertem e sobretudo, evitem provocar forças de ocupação mais propensas a soluções violentas que à negociação que este caso impõe. Quero você livre o mais rápido possível, hoje, neste minuto. Depois, brindaremos com um copo de vinho e continuaremos a combater batalhas dignas a serviço da informação e da verdade. Luis Sepúlveda é escritor chileno. A tradução do artigo, publicado originalmente no Il Manifesto, é de Helena Iono
EUA-EUROPA
da Redação Cerca de mil pessoas se manifestaram, pacificamente, dia 20 de fevereiro, em Bruxelas (capital da Bélgica), contra a política de George W. Bush, horas antes da chegada do presidente estadunidense ao país. Os manifestantes se reuniram perto do prédio da Bolsa, exibindo cartazes que diziam que “Bush não é bem-vindo”. Uma bandeira iraquiana, outra de Cuba e cartazes com as cores do arco-íris e a palavra “paz” enfatizavam a oposição dos presentes à política externa dos Estados Unidos. Bruxelas foi a primeira escala de uma viagem de quatro dias pela Europa, destinada a reconstruir os “laços transatlânticos”, após dois anos de tensão por divergências sobre a invasão do Iraque. Em um de seus discursos no Parlamento Europeu, o presidente dos EUA pediu à Europa que se junte a ele na tentativa de fomentar reformas democráticas no Oriente Médio. Ele também pediu que a
Franka Bruns/Associated Press/AE
Bush não é bem-vindo na Europa
Manifestantes realizam protesto contra Bush em Hamburgo, na Alemanha
Rússia reverta medidas recentes de repressão à oposição política, exigiu que o Irã abandone suas ambições nucleares e que a Síria retire suas forças do Líbano. Bush não descartou o uso de força militar contra o Irã, dizendo que todas as opções continuam abertas. Mas, dirigindo-se às preocupações da Europa de que o Irã venha a ser o próximo Iraque, o presidente disse:
“O Irã é diferente... Estamos nos primeiros estágios da diplomacia”.
sição forte, a partilha do poder e o império da lei.” Bush fez um esforço para mostrar que deixou para trás as grandes divergências que seu governo teve com muitos países europeus nos últimos anos, exacerbadas pela guerra no Iraque mas que remontam também à oposição de Washington ao Protocolo de Kyoto e ao Tribunal Penal Internacional. “Nenhum debate, nenhuma diferença passageira entre governos, nenhum poder sobre a terra nos dividirá”, afirmou. Não por acaso, Bush foi apresentado pelo primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt, um dos líderes europeus que mais se opuseram à guerra do Iraque, e que agora pediu que se esqueça a discussão “sobre quem tinha razão e quem não tinha”.
CRÍTICAS A PUTIN O presidente estadunidense fez críticas diretas à Rússia, três dias antes de uma reunião marcada com o presidente Vladimir Putin, na Eslováquia: “Devemos sempre lembrar à Rússia que nossa aliança defende a imprensa livre, uma opo-
MISSÃO PARADA Bush se mostrou conciliador e estendeu a mão para a Europa mas, em alguns assuntos, o fez mantendo firmemente seus pontos de vista. Assim, pediu que o continente se envolva mais na pacificação e na
reconstrução do Iraque depois das eleições de 30 de janeiro. “Todos os países têm interesse em um Iraque livre e democrático”, destacou. Em reunião com líderes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), dia 22, o presidente estadunidense destacou a importância da unanimidade dos 26 países da Otan no momento de participar da missão conjunta de formação de militares iraquianos. A Organização determinou o lançamento da missão no Iraque na cúpula de Istambul, em junho de 2004. Mas, na prática, houve dificuldades para efetivá-la devido à reticência de vários países, entre os quais França, Alemanha, Espanha e Bélgica. Um sinal de que a questão do Iraque continua gerando divergências. No entanto, os 26 aliados se comprometeram a colaborar com a missão, seja pelo treinamento de forças dentro ou fora de território iraquiano, ou via contribuições financeiras para um fundo de financiamento da iniciativa. (Com agências internacionais)
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INTERNACIONAL SUDÃO
A ONU põe o dedo na ferida Stefania Bianchi de Bruxelas (Bélgica)
A
recomendação da ONU, de que o Tribunal Penal Internacional (TPI) investigue as atrocidades cometidas em Darfur, no oeste do Sudão, reacendeu as disputas entre a União Européia e os Estados Unidos. O governo estadunidense não reconhece mais o Tribunal, instalado há dois anos em Haia, Holanda, para investigar e processar crimes de guerra e contra a humanidade, genocídio e outras atrocidades, em cumprimento ao Estatuto de Roma, convenção internacional aprovada em 1998. O Estatuto foi assinado por 139 países e ratificado por 97, inclusive todos os países-membros da União Européia. Nos EUA, o ex-presidente Bill Clinton assinou o tratado, mas seu sucessor, George W. Bush, retirou a assinatura, alegando que o Tribunal poderia ser usado contra soldados estadunidenses por motivos meramente políticos. Washington lançou uma ofensiva diplomática para que os países que aderiram ao estatuto assinassem “acordos bilaterais de imunidade”, que deixariam fora da jurisdição do Tribunal Penal Internacional os cidadãos dos EUA ou os estrangeiros a seu serviço. O governo Bush conseguiu que o Conselho de Segurança da ONU deixasse temporariamente fora da jurisdição do Tribunal os soldados convocados pela ONU para missões de paz. Mas, diante do escândalo mundial causado pelas informações sobre torturas cometidas por soldados estadunidenses na prisão ira-
Gianluigi Guercia/AFP
União Européia defende julgamento dos crimes em Darfur pelo Tribunal Penal Internacional e contraria interesses dos EUA
População de Darfur, no Sudão, recebe alimentos de órgão das Nações Unidas: disputa entre EUA e Europa
quiana de Abu Ghraib, o Conselho se negou a prorrogar o prazo de isenção. A atitude de Washington em relação ao Tribunal irritou em mais de uma ocasião a União Européia. A recente recomendação da ONU agravou a disputa.
O chefe de Política Externa e Segurança da União Européia, o espanhol Javier Solana, disse que os responsáveis pelos crimes em Darfur deveriam comparecer diante do TPI. Isso apesar de o Sudão não ter assinado o estatuto,
GENOCÍDIOS
O Ocidente contempla em silêncio o genocídio em Darfur, no Sudão, dez anos depois de ter feito a mesma coisa diante do massacre de 800 mil pessoas em Ruanda. A afirmação é do ex-comandante da missão ruandesa da ONU, o general canadense Romeo Dallaire. Segundo ele, os países ocidentais não forneceram recursos suficientes para impedir o genocídio em Ruanda, porque estavam concentrados nas tensões nos Bálcãs, do mesmo modo que não atendem hoje à situação em Darfur porque estão ocupados com o Iraque. “Os negros africanos não contam, a não ser que haja lá algo de interesse para nós”, frisou. Dallaire esteve em Nova York na primeira etapa de uma viagem pelos Estados Unidos para lançar seu livro Shake Hands with the Devil (Aperto de Mãos com o Diabo). A obra é líder de vendagem no Canadá. Um documentário com o mesmo título, que relata sua primeira visita a Ruanda após sua missão, em 2004, recebeu o Prêmio do Público no Festival de Cinema de Sundance, EUA, em janeiro. Os acontecimentos narrados no livro datam de junho de 1994. Nessa época, milícias hutus, etnia majoritária em Ruanda, mataram 800 mil pessoas, na maioria tutsis, etnia minoritária mas historicamente dominante, e também hutus moderados que se recusaram a combater os tutsis. Dallaire demorou dez anos até finalizar sua versão, de 500 páginas, sobre a ação da força da ONU para Ruanda. O momento decisivo ocorreu quatro meses antes do início do genocídio, um mês após a chegada de Dallaire ao local. Já
CONTROLE ESTRATÉGICO Estima-se que, desde fevereiro de 2003, 400 mil pessoas de etnias negras, cristãs e animistas, foram
TOGO
Sem eleição, cresce isolamento Karavana
Um mundo cego diante dos massacres Christy Helbinger de Nova York (EUA)
situação idêntica à dos Estados Unidos.
mortas em Darfur, por milícias árabes islamitas que contariam com o apoio do governo sudanês. Projetase a existência de 1,6 milhão de refugiados. Teoricamente, se trata de uma disputa por áreas de pastoreio, mas há indicações sérias de que a região é rica em petróleo e, por isso, o governo de Cartum decidiu assegurar o controle sobre Darfur. Tudo isso ocorre em meio ao recente cessar-fogo na guerra civil de longos anos entre o Norte árabe e o Sul negro do país, cessar-fogo que não abrangeu Darfur. Os EUA classificaram de “genocídio” o massacre, o que não foi feito pela ONU, e exigiram que o Conselho de Segurança impusesse sanções contra o governo do Sudão. Também propuseram a criação de um tribunal especial em Arusha, na Tanzânia, organizado pela União Africana para julgar os responsáveis. É importante notar que, caso prevalecesse a classificação como “genocídio”, as forças militares da ONU se veriam obrigadas a intervir em Darfur. O desacordo sobre Darfur e sobre o Tribunal Penal Internacional será o novo obstáculo nas relações transatlânticas, depois das divergências sobre a invasão estadunidense ao Iraque, segundo o analista Daniel Keohane, do Centro para a Reforma da Europa, uma ONG com sede em Londres. “Esta polêmica tem um grande potencial explosivo”, acrescentou, dizendo ser favorável ao julgamento pelo tribunal de Haia, embora julgue que os EUA sairão vitoriosos na pendência, pois poderão fazer uso de seu poder de veto no Conselho de Segurança. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
então os expedicionários da ONU sabiam da existência de uma “força nas sombras”, o movimento Poder Hutu. Uma noite, um informante desse grupo, chamado de Jean Pierre no livro, se apresentou aos oficiais subordinados a Dallaire e lhes explicou o plano de genocídio.
O PREÇO DA OMISSÃO De acordo com o livro, o atual secretário-geral da ONU, Kofi Annan, então subsecretário-geral para Operações de Paz, recomendou a Dallaire que não tomasse providências a partir dessas informações. Mais adiante, Annan disse ao general que tinha entregado os dados ao líder do partido político hutu, que era um dos mentores da conspiração. Dallaire está arrependido de não ter agido. A dimensão do massacre foi tal que os hutus tinham de usar caminhões de lixo para retirar os cadáveres. Duzentas crianças foram assassinadas numa igreja logo depois de terem terminado suas orações. O relato é feito por um homem que, antes de sua experiência em Ruanda, encarava como ideal o serviço militar. Seu pai combateu na Segunda Guerra Mundial, motivo pelo qual Dallaire cresceu considerando os militares como libertadores, e não como “espectadores”. Depois de Ruanda, o general se tornou o oficial canadense de mais alto nível já diagnosticado com “estresse pós-traumático”. Hoje, é membro do Centro Carr de Direitos Humanos na Universidade de Harvard, EUA, instituição especializada em resolução de conflitos. Também dirige uma fundação que apóia escolas e orfanatos de Ruanda. (IPS/ Envolverde, www. envolverde.com.br)
Togoleses em Munique, na Alemanha, reivindicam o retorno da democracia em seu país de origem: sanções à vista
da Redação Apesar da promessa do presidente em exercício, Faure Gnassingbé, de organizar eleições presidenciais, e mesmo sancionado pela Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao), o Togo está cada vez mais isolado, e até agora não reagiu às sanções de seus vizinhos. A comunidade internacional condenou em conjunto a tomada do poder por Gnassingbé, designado para suceder, com o apoio do Exército, a seu pai, o general Gnassingbé Eyadéma, morto dia 5 de fevereiro. Desde a morte de Eyadéma, a Cedeao exige o respeito à Constituição togolesa, que prevê o governo interino do presidente da Assembléia Nacional, Fambaré Natchaba Ouattara, atualmente refugiado no Benin. No dia 18, o novo homem forte do Togo parecia ter afrouxado as rédeas, prometendo organizar eleições presidenciais no prazo constitucional de 60 dias. A promessa não foi suficiente para satisfazer a comunidade internacional, que continuou exigindo sua saída.
Quinze países ocidentais se alinharam à posição da Cedeao, que decidiu suspender o pequeno país da África Ocidental, proibir os dirigentes togoleses de saírem do país e chamar de volta seus embaixadores em Lomé, capital do Togo. Washington seguiu imediatamente esses passos, apelando com firmeza para que Gnassingbé “renuncie imediatamente”.
REPÚDIO TARDIO A Comissão Européia também exigiu “o retorno sem demora à ordem constitucional” e argumentou que a continuação de Gnassingbé no poder era uma “violação da ordem constitucional e legal”. A última tomada de posição, em ordem cronológica, foi a do governo francês, discreto até então e vivamente atacado pela oposição togolesa, notadamente por causa de seu apoio incondicional a Eyadéma durante os 38 anos de seu reinado sem contestação. O Ministério das Relações Exteriores da França exigiu, dia 20, o “retorno à plena legalidade constitucional” e a realização de eleições livres e democráticas. Paris não exigiu categórica e
explicitamente a renúncia do presidente interino, mas “deplora, ao mesmo tempo, que não tenha sido ainda possível levar a uma solução no pleno respeito da Constituição a questão da devolução do poder presidencial interino”.
RECLAMAÇÕES IGNORADAS Outra voz conciliatória, africana desta vez, é a do presidente sul-africano Thabo Mbeki, que denunciou um “baile de máscaras anticonstitucional” e tinha “acolhido favoravelmente” a realização de eleições presidenciais. Mesmo assim, toda a mobilização internacional que isolou o Togo não parece preocupar particularmente Gnassingbé e a assessoria que herdou de seu pai. Em sua primeira entrevista a jornalistas, antes do anúncio das sanções pela Cedeao, o presidente interino afirmou: “Nunca colocamos a questão de estarmos ou não isolados. Mas a pressão internacional, bem, cada um tem sua opinião. Mas nós nos saímos bem nesse campo, em relação ao que se passa em certos países”. (Com agências internacionais)
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AMBIENTE EFEITO ESTUFA
Antes tarde do que nunca C
om um atraso de sete anos, o Protocolo de Kyoto entrou em vigor formalmente na semana passada, sem a participação dos Estados Unidos e dos seus 36% de responsabilidade na emissão dos seis gases que provocam o efeito estufa no planeta. “Apesar de vocês, temos Kyoto”, eram os dizeres de uma faixa pendurada numa réplica da Arca de Noé, de onde era arremessada uma bóia a um Bush fantasiado que se esquivava o tempo todo. A bóia simbolizava o salvamento do clima durante protesto que entregou “em mãos” uma carta de repúdio a Bush em frente ao consulado estadunidense, em São Paulo. Desde 1997, esperava-se que entre os países signatários se encontrassem os responsáveis pela emissão de, no mínimo, 55% dos gases poluentes lançados na atmosfera, no ano de 1990. Antes da entrada da Rússia, em novembro, a porcentagem estava estacionada em 44%; com ela, subiu para 61%. Segunda maior poluidora do mundo, com 17% das emissões, a Rússia preferiu ratificar (confirmar como lei) o Protocolo a complicar suas negociações de ingresso na União Européia. Sua decisão deu consistência ao Protocolo, que começaria a valer três meses depois de atingida a cota mínima de emissões. Foi o que aconteceu.
Rodrigo Baleia
Carlos Minuano e Marcelo Netto Rodrigues de São Paulo (SP)
Pnuma/World Resources Institute
Protocolo de Kyoto entra em vigor com sete anos de atraso e sem adesão dos Estados Unidos
Manifestação em São Paulo contra o país número um em poluição, os EUA
pertencem à lista do Anexo 1. Após 2012, podem ocorrer mudanças, e até mesmo o Protocolo deixar de existir.
MOEDA MUNDIAL
emitiam em 1990), e os países em desenvolvimento do outro, que não têm metas a cumprir por não terem tanta responsabilidade no acúmulo de dióxido de carbono que absorve o calor do sol e fica retido na atmosfera da Terra. A excessiva queima de combustíveis fósseis para gerar energia e movimentar a economia (petróleo, gás natural, carvão mineral) é a principal responsável pelo aquecimento global que tem gerado mudanças drásticas no clima e nas marés. Os EUA, que na administração
DESIGUALDADES Até o momento, 141 países ratificaram o Protocolo, que divide o mundo entre 39 países industrializados de um lado, chamados “Anexo 1” (que ficam obrigados, entre os anos de 2008 e 2012, a reduzir em 5,2% os níveis que
Bill Clinton haviam assinado o Protocolo em 1998, com Bush desistiram de ratificá-lo por achar que a divisão entre países que poluem mais e menos é injusta e prejudicial à indústria estadunidense. Para Bush, os países fora do Anexo 1 também teriam de se submeter às reduções de emissões de poluentes referentes a 1990. Ou seja, aquelas nações estariam fadadas a não se desenvolver, utilizando os mesmos recursos naturais que os EUA usaram e continuam usando e abusando. Brasil, China, Índia e México não
Como os gases se espalham pelo ar sem fronteiras, os 39 países do Anexo 1 poderão comprar créditos de carbono de países que não usam a “cota imaginária de poluição” a que teriam direito, caso tivessem parques industriais. Cada tonelada retirada da atmosfera, ou que deixou de ser emitida vale, hoje, em média, 5 dólares. O chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) permite financiar projetos que visem substituir o petróleo como base de combustível usado nas indústrias, transporte e agricultura por uma energia limpa proveniente de fontes renováveis. O reflorestamento também entra como moeda de troca, já que as árvores são capazes de capturar o gás carbônico. Dessa forma, os
países mais poluentes podem alcançar suas metas sem sacrificar em demasia suas próprias matrizes energéticas, ao mesmo tempo em que deixam ao Terceiro Mundo tarefas que eles próprios não querem assumir por completo. O Brasil pode aproveitar a oportunidade dos investimentos em projetos limpos para regularizar a situação dos lixões, já que 80% das cidades brasileiras não possuem aterro sanitário controlado e o lixo em decomposição produz gás metano, sugere o coordenador da Campanha de Energia do Greenpeace, Sergio Dialetachi. Além do metano e do dióxido de carbono, os outros gases que devem ser reduzidos do ar são: o óxido nítrico, os hidrofluorcarbonetos, os perfluorcarbonetos e os hexafluoretos de enxofre. Créditos de carbono - Certificados emitidos por agências de proteção ambiental reguladoras, autorizando a emissão de gases poluentes.
TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO
Priscila Carvalho de Brasília (DF) A Polícia Militar de Pernambuco impediu a realização de um debate sobre o projeto de transposição do Rio São Francisco, marcado para dia 17 de fevereiro, na cidade de Cabrobó, a 630 quilômetros do Recife. A reunião seria entre representantes do Ministério da Integração Nacional e da prefeitura de Cabrobó, e indígenas das nações Truká e Tumbalalá. Policiais da Companhia Independente de Operações e Sobrevivência em Área de Caatinga (Ciosac) ocuparam a ponte que liga a terra truká e a cidade, separada pelo Rio São Francisco, para revistar e exigir documentos dos indígenas que tentavam chegar à reunião. A polícia só deixou o local depois da intervenção de um deputado estadual.
Priscila Carvalho
Indígenas são excluídos do debate e goma, cana-de-açúcar, produzia mel, batata-doce. Depois que a barragem de Sobradinho prendeu a água, não tem mais enchente, ficou só a erosão”, afirmou. “A nossa economia era baseada nessa agricultura. Hoje, quase não se planta porque o povo não pode pagar energia para alimentar uma bomba elétrica, nem comprar motor”, complementou Maria José.
SEM REVITALIZAÇÃO
CULTURA EM PERIGO Na noite anterior, a TV Grande Rio, afiliada local da Rede Globo, veiculou reportagem dizendo que a reunião seria cancelada por falta de segurança. Segundo o cacique truká, Aurivan dos Santos, “outros índios que estavam no local onde aconteceria a reunião disseram que também lá tinha muitos policiais”. Para ele, a tentativa foi de “criar a imagem de que o povo está sendo intransigente. Mas nós queremos fazer o debate”. Os cerca de 250 indígenas que participariam da reunião decidiram não ir à cidade. Em solidariedade, a prefeitura de Cabrobó optou por cancelar o encontro. Os indígenas questionam o fato
Povos indígenas de Cabrobó (PE) alertam para os riscos da transposição do Rio São Francisco, e querem participar da discussão
de não terem sido formalmente consultados pelo governo federal sobre a realização do projeto. O receio em relação às grandes obras vem dos impactos causados pelas barragens construídas no São Francisco, especialmente as de Sobradinho, Xingó e Itaparica. “Elas fizeram com que desaparecessem do rio mais de 20 espécies de peixes, aves e plantas medicinais. Na época do meu avô, quando não se tinha barragem, a gente vivia praticamente só de pesca, de cana-de-
açúcar, de macaxeira e de batata. Como perdemos isso, tivemos que nos adaptar à agricultura”, lembrou Santos. Para ele, se a transposição acontecer, “mais uma vez a gente vai ter que se adaptar. Nossa preocupação é que nossos filhos não sofram o impacto que a gente já sofreu”, afirmou. O povo tumbalalá, com cerca de 3 mil indígenas que vivem na margem esquerda do Rio São Francisco, no Estado da Bahia, não foi citado no estudo de impac-
to ambiental (EIA-Rima) apresentado pelo Ministério da Integração Nacional. Representantes dos tumbalalá estiveram nas audiências públicas de Salvador (BA) e de Salgueiro (PE). A liderança Maria José Tumbalalá conta que, antes das barragens, a agricultura praticada pelo seu povo era baseada na sazonalidade do rio, que adubava as terras das margens nos períodos de enchente. “Quando a água baixava, a gente plantava mandioca, farinha
Os indígenas afirmam que a retirada de água poderá secar um braço do rio que margeia a Ilha de Assunção. Eles questionam também o discurso do ministério, de que as ações de revitalização do rio já estão sendo encaminhadas. “Queremos que eles nos mostrem onde foi feita a revitalização, porque a gente não viu nenhuma obra de saneamento em Cabrobó”, afirma Maria José. Segundo a assessoria de imprensa do Ministério das Cidades, responsável pela aprovação de projetos de saneamento e pelo controle das verbas que têm sido divulgadas como destinadas à revitalização do São Francisco, não há recursos previstos para saneamento no município de Cabrobó. A licença para a realização do projeto precisa ser aprovada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente, o Ibama. O órgão marcou oito audiências em diferentes cidades do Nordeste e no Estado de Minas Gerais. Quatro delas foram realizadas e outras quatro não aconteceram, sob protestos de grupos descontentes com a forma como o processo tem sido conduzido pelos órgãos federais.
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DEBATE MAZELAS DO CAPITALISMO
A ilusão do neodesenvolvimentismo Lúcio Flávio de Almeida s anos 20 do século passado foram marcados pela crise do capitalismo, acompanhada pela crise e pela crítica do liberalismo em praticamente todo o planeta. A “mão invisível” do mercado tornou-se peça de museu e o Estado passou a ser visto por muitos como a única alternativa para regular não apenas a economia, mas o conjunto das relações sociais. Já no início da década, a ascensão do fascismo, cujo lema era “tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”, marcou a virada do vento. A partir dos anos 30, fortaleceu-se o consenso sobre a incapacidade do liberalismo para resolver “os graves e complexos problemas do século 20”. O discurso e a prática do forte intervencionismo estatal estiveram presentes, de distintos modos, no salazarismo, no franquismo, nos primeiros esboços de políticas de welfare-state implementadas em alguns países da Europa norteocidental. Também marcaram o New Deal, política implementada pelo governo Franklin Roosevelt, com vistas a superar a profunda recessão em que mergulhou a economia dos EUA. Em maior ou menor grau, todas estas políticas contribuíram para salvar o capitalismo de uma profunda crise, saída que foi auxiliada pela Segunda Guerra Mundial. Seria um grave equívoco homogeneizar todas estas situações, ignorando as diferentes relações de classe nas quais se fundaram. Cabe analisar, em cada caso, as relações no interior das classes dominantes; os regimes políticos; as políticas implementadas (em alguns casos, favoráveis aos interesses imediatos das classes trabalhadoras). E, o que é mais importante, examinar a maior ou menor (ou mínima) capacidade de organização autônoma (sindical e política) das classes do-
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minadas em cada uma daquelas situações. Por outro lado, seria igualmente grave ignorar que, com a fadiga político-ideológica do liberalismo (de corte mais claramente burguês), a nova onda foi acompanhada de um fortalecimento da crença de que o Estado é o verdadeiro representante do bem comum. Este principal centro de organização do poder político burguês passou a ser visto como uma instância situada fora e acima das classes, com especial propensão para atender aos interesses dos dominados.
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PRESENÇA DO ESTADO
Ao seu modo e no seu ritmo, o processo brasileiro acompanhou a tendência internacional. A partir da chamada “Revolução de 30”, intensificou-se a presença do Estado em todas as esferas de relações sociais. Ao mesmo tempo em que se perseguiam as organizações sindicais e políticas populares, implantou-se uma nova estrutura sindical que limitava pesadamente as lutas dos trabalhadores urbanos. A legislação trabalhista, ao incorporar demandas históricas, facilitava o reforço da nova estrutura, bem como a mobilização político-ideológica por uma política crescentemente mais favorável ao desenvolvimento do capitalismo industrial dependente. Os fundamentos desta política foram lançados pelo varguismo, mas o momento virtuoso ocorreu nos anos JK (1956-1961). Apoiado por um leque de forças – que ia do Partido Comunista, passando pelo grosso do empresariado nativo e se estendia a representantes da grande burguesia estrangeira – o governo teve grande sucesso na tarefa de consolidar o capitalismo industrial (e dependente) no Brasil, até porque soube aproveitar uma conjuntura de grande expansão de capitais na economia mundial. Lembremos também do apoio da maioria dos
grandes proprietários de terra, beneficiados pela política desenvolvimentista e tranqüilizados pela indisposição do governo face à reforma agrária. Foi bem mais do que um “espetáculo de crescimento”: a população urbana ultrapassou a rural; o setor de bens de produção deslanchou; a participação industrial no PIB deixou a agrícola comendo poeira; rasgaram-se estradas pelo Brasil afora; fábricas foram construídas a mancheias. Houve até aumento do salário-mínimo real, claro que por pouco tempo e bem abaixo da taxa de exploração da força de trabalho. E tudo isso em um regime político que importantes estudiosos consideram democrático (ou democrático-burguês). A burguesia industrial participou gostosamente deste processo, ao longo do qual ela se metamorfoseou. Grande parte se associou, sob múltiplas formas, a capitais estrangeiros. Outra parte, minoritária, cresceu e conseguiu preservar seus nichos no interior de uma economia cada vez mais dominada pelo grande capital (privado ou estatal). Esta grande burguesia nativa, embora por diversas vezes tenha recorrido ao discurso nacionalista e a mobilizações populares quando via seus interesses ameaçados por
investidores estrangeiros, jamais aderiu a qualquer política social progressista e sempre abominou greves e até manifestações mais tímidas por reajustes salariais. Voto do analfabeto era proibido e legalidade para partido comunista, nem pensar. BURGUESIA EM CONFLITO
Ainda não inventaram capitalismo sem crise, e quando esta chegou, intensificaram-se, como de costume, os conflitos no interior das frações burguesas. Mas todas tinham algo em comum: o combate a qualquer reajuste salarial num período em que a inflação corroía ainda mais rapidamente o poder aquisitivo dos trabalhadores; e, principalmente, o combate às lutas populares, que se encontravam em ascensão na cidade e, agora, também no campo. O desfecho desta queda de braço em uma crise econômica que se politizou foi o golpe de 1964 e a implantação de uma ditadura que resolveu o impasse: aprofundou a crise, arrochou salários, combateu ferozmente as lutas dos trabalhadores e restabeleceu as condições do desenvolvimento capitalista (ao menos por um certo tempo). O “milagre econômico” (1969-1973) também atende pelo nome de “anos de chumbo”. A grande burguesia, nativa ou es-
trangeira, que apoiara o golpe, não viu motivos para se queixar. Quase duas décadas de hegemonia do grande capital financeirizado levaram à implementação de políticas neoliberais que atingiram profundamente a capacidade de organização e luta da imensa maioria das classes populares. Numa espécie de círculo vicioso, as políticas neoliberais estreitam a margem de manobra do Estado para implementar políticas alternativas ao neoliberalismo. Nestas condições, era previsível uma certa nostalgia do nacional-desenvolvimentismo, inclusive a retomada de mitos a respeito de uma burguesia nacional que estaria interessada em “fortalecer o Estado”, devolvendo-lhe seu “verdadeiro papel” de defensor do bem comum, o que passaria por implementar políticas favoráveis às classes populares e à soberania nacional. Alianças são importantíssimas, especialmente nestes tempos bicudos em que a hegemonia neoliberal, embora desgastada, produz estragos consideráveis. Mas é fundamental conhecer a prática dos eventuais aliados, até para não se comprar, de novo, gato por lebre. Existem diversas tendências neodesenvolvimentistas. Urge verificar suas bases sociais; quais têm sido suas práticas efetivas; que posições adotam frente aos interesses populares — reforma agrária, políticas sociais, relação com o imperialismo (Alca, dívida externa e a ofensiva estadunidense contra povos e governos pelo mundo afora). Após um 2004 em que muitas cartas se embaralharam, eis um 2005 que promete definições. Para os trabalhadores que lutam por sua emancipação, cabe aprender com os erros e acertos do passado. E, principalmente, colher a poesia do futuro. Lúcio Flávio de Almeida é professor do Departamento de Política da PUC-SP e coordenador da revista Lutas Sociais
Falência dos fundos fechados de previdência Ceci Vieira Juruá Em continuidade ao saco de maldades preparado contra os trabalhadores brasileiros, a Fundação Rede Ferroviária Federal (Refer) expediu, em 3 de novembro de 2004, comunicado aos empregados do Metrô-RJ anunciando que suspenderia, em fevereiro de 2005, os benefícios devidos aos metroviários. Seus argumentos: não há mais dinheiro para financiar as aposentadorias, o fundo atuarial não suporta os gastos em decorrência da inadimplência do Metrô frente aos compromissos assumidos. Trata-se, na verdade, de uma falência que decorre dos descaminhos da Previdência Social e das privatizações irresponsáveis que constituem o núcleo das políticas neoliberais impostas aos países periféricos. Tudo começou com a privatização do Metrô do Rio de Janeiro, em 1997, na gestão Marcelo Alencar. Na ocasião, foi outorgada a concessão para exploração dos serviços públicos de transporte metroviário de passageiros do Estado a uma empresa ad hoc, uma espécie de SPE (sociedade de propósito específico), denominada Opportrans Concessão Metroviária S.A. Quem era a Opportrans? Uma empresa do grupo de Daniel Dantas (vinculado ao fundo Opportunity e ao Citibank), controlada por duas outras empresas — a Sorocaba Empreendimentos e Participações, representada no ato de concessão pela irmã de Dantas, Verônica Valente Dantas
Rodenburg, e por uma sociedade argentina, representada por um empresário domiciliado em Buenos Aires. Eram tempos de Menem... DE GRAÇA
Com uma rede de 22 quilômetros (cujo custo de construção era superior a R$ 100 milhões por quilômetro), material rodante, oficinas e um gigantesco patrimônio imobiliário, o Metrô do Rio foi praticamente doado à Opportrans. Do preço da concessão fixado em R$ 291 milhões, apenas 30% foram exigidos no ato da concessão. Ou seja, o Metrô do Rio foi repassado ao Opportunity por menos de R$ 100 milhões! Para o resto, não havia prazo fixado. O contrato estipulou que o restante seria pago em parcelas mensais, sendo a primeira devida no primeiro dia útil do mês subseqüente à data de conclusão do programa de investimentos (responsabilidade do governo do Estado) e a última no primeiro dia, do último mês de vigência da concessão!!! Um prazo de 20 anos, além da “gentileza” de taxas generosas de juros não estipuladas no contrato. Assim que soube da privatização do Metrô/RJ, a Refer iniciou a castração dos direitos dos metroviários. Começou impondo, compulsoriamente, uma modificação no plano inicial de aposentadoria. Outras exigências foram se sucedendo ao longo dos últimos 6 anos, bem como a procura de um bode expiatório para expor à fúria popular. Como virou praxe no Estado, o bode escolhido foi
a governadora do Rio, Rosinha Garotinho. RUPTURA
Assim, fugindo à sua responsabilidade, a Refer vem procurando atribuir a falência do plano que ela própria estruturou ao governo estadual. A entidade age como se ignorasse o regulamento específico que rege seu contrato com os metroviários, cujo artigo 20 estipula que nos casos de rescisão prevista no artigo 18 (cancelamento da inscrição do patrocinador na Refer e descumprimento, por parte do patrocinador, de qualquer das cláusulas do Convênio), a Refer ficará obrigada a : 1 – manter, na forma prevista no Regulamento Específico do Metrô/RJ, os compromissos assumidos em relação aos beneficiários em gozo da pensão supletiva, aos contribuintes em gozo de suplementação de aposentadoria e auxílio doença e a seus dependentes no tocante a pensões; 2 – pagar diretamente aos contribuintes ativos um pecúlio denominado “reserva de poupança”. Ignorando tudo isso, a Refer tenta uma ruptura de contrato, eximindo-se da responsabilidade para com trabalhadores que dependem da aposentadoria complementar para sobreviver. CONIVÊNCIA
Contrariamente ao que apregoa a Refer, a usurpação de direitos adquiridos parece estar sendo patrocinada pelo próprio Ministério da Previdência Social,
pois o comunicado enviado aos metroviários (após o período eleitoral) esclarece que “(...) de acordo com orientação da Secretaria de Previdência Complementar (SPC) do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), a Refer informa (estar) o Plano de Benefícios Metrô-RJ, desprovido das reservas técnicas indispensáveis ao pagamento dos efetivos benefícios”. Curiosamente, tudo isto acontece ao apagar das luzes da SPC que está sendo extinta e sucedida pela Previc, uma nova autarquia que, sob a forma de Superintendência, fiscalizará os planos fechados de previdência complementar. Assim, mais tarde, nos recursos à Justiça, os verdadeiros responsáveis pela ruptura dos contratos com os metroviários não mais existirão. Dirão apenas que se tratou de uma decisão de órgão extinto — a SPC! Curiosamente, ainda, tudo isto acontece após a aprovação de uma lei de falências que privilegia os credores bancários em detrimento dos direitos dos trabalhadores. BENESSES AO CAPITAL.
Vejamos alguns benefícios concedidos pelo governo aos empresários e a conglomerados transnacionais: *Renúncia fiscal de aproximadamente R$ 2,5 bilhões, correspondentes a isenções sobre máquinas/equipamentos e a isenções de PIS e de Cofins, entre outros benefícios. Os benefícios fazem parte da Medida Provisória Nº 219 de dezembro de
2004 (jornal Valor de 10 a 12 de dezembro de 2004); *Renúncia fiscal por benefícios embutidos na Lei de Informática, prorrogada por 15 anos via medida provisória; destaca-se a redução de pagamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de até 95%; *Isenção de Imposto de Renda incidente sobre aplicações financeiras de entidades imunes (partidos políticos, fundações, instituições de educação e de assistência social, entre outras); *Isenção de Imposto de Renda incidente sobre recursos gastos por exportadores para a promoção de seus produtos no exterior; *Enfim, e para encerrar, sabese que os Estados e municípios do Brasil estão sendo obrigados a abrir mão de R$ 18 bilhões de ICMS que seriam devidos pelos exportadores se não tivessem sido beneficiados pela Lei Kandir/ 1996 e pela Emenda Constitucional Nº42 de dezembro de 2003. É hora de denunciar esse tipo de injustiça social. Os trabalhadores, verdadeiros construtores da riqueza do Brasil e do patrimônio coletivo amealhado até os anos 1980, não podem ser despojados dos seus direitos por burocratas desprovidos de sensibilidade social e da consciência de sua responsabilidade para conosco, os trabalhadores. Ceci Vieira Juruá é metroviária, economista, pesquisadora e conselheira do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (Corecon-RJ)
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De 24 de fevereiro a 2 de março de 2005
agenda@brasildefato.com.br
AGENDA LIVRO
Dia 25, serão escolhidos o cartaz, música e livro da 12ª Romaria da Terra e discutidos o planejamento orçamentário e as atividades da pastoral neste ano. Local: R. Dr. Costa deAraújo, 995, Fortaleza Mais informações: (85) 3226-1413 cptce@fortalnet.com.br
WALTER BENJAMIN E O AVISO DE INCÊNDIO Um dos principais estudiosos da obra de Walter Benjamin, Michael Löwy analisa em Aviso de incêndio um dos textos mais enigmáticos e ricos de significados do autor: as suas teses sobre o conceito de história. Para Löwy, Benjamin é mais do que um historiador da cultura; é um filósofo, pela forma com que articulou arte, política e teologia, criando uma nova visão da história. Analisando tese a tese, Löwy destrincha confrontos e ideais por detrás das proposições de Benjamin. Escritas em 1940, no auge do fascismo na Europa, as teses vieram a público somente após a morte do autor, em setembro do mesmo ano. Ao tentar fugir da França ocupada pelos nazistas, Benjamin foi preso na fronteira da Espanha do general Franco. Suicidou-se antes de ser deportado para a Alemanha. Articulando influências tão contraditórias e ricas como o romantismo alemão, o messianismo judaico e o marxismo, Benjamin constrói, nas suas 18 teses e dois anexos, uma síntese própria e extremamente original das relações da humanidade com o tempo, das lutas sociais e do historiador com o passado e o presente. O livro, editado pela Boitempo Editorial, tem 160 páginas e custa R$ 32,00. Mais informações: www.boitempo.com
1º CURSO LATINO-AMERICANO SOBRE CONSTRUÇÃO DE BIBLIOTECAS DIGITAIS Até dia 25 de fevereiro O Centro de Entretenimento e Desenvolvimento da Universidade Federal do Ceará (Cetrede/UFC) e a Unesco promovem o curso, que tem como objetivo capacitar especialistas para liderar a construção de bibliotecas digitais de suas instituições. O curso será composto por um módulo sobre as metodologias de construção de bibliotecas digitais e um módulo sobre os distintos programas de computador, livres, para a construção de bibliotecas digitais. Local: Av. da Universidade, 2853, Fortaleza Mais informações: www.ufc.br PASTORAL DA JUVENTUDE 26 e 27 de fevereiro Durante o evento, a Coordenação Arquidiocesa da Pastoral da Juventude (PJ) e jovens das comunidades locais farão visitas missionárias em algumas paróquias. Participarão do encontro jovens das seis regiões episcopais. Serão discutidas as ações anuais da PJ e formatados os modelos das atividades para 2005. Local: Paróquia de Barreira, na Região Episcopal Serra da Arquidiocese de Fortaleza Mais informações: (85) 3252-1678 arcanjo@pj.org.br
CEARÁ PASTORAL DA TERRA 30 ANOS 24 a 26 de fevereiro Com o objetivo de celebrar, avaliar ações e planejar atividades, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Ceará realiza a primeira reunião do Conselho Regional. Dia 24, haverá apresentação do resultado da pesquisa realizada no Estado, em 2004, em imóveis adquiridos por meio de programas de mercado de terras, além de uma análise da conjuntura política, econômica e agrária brasileira.
1º ENCONTRO DE COORDENADORES DA PASTORAL DA CRIANÇA 26 de fevereiro O principal objetivo do encontro é traçar metas para este ano. Participam das atividades os coordenadores paroquiais da Região Episcopal 3 e a equipe do setor de cada região episcopal. Local: a definir, Pajuçara, Fortaleza Mais informações: (85) 3476-9544
ESPÍRITO SANTO
da informação, além de discutir questões relativas ao mercado da leitura. Local: Av. Paulista, 149, São Paulo Mais informações: (11) 2168-1876
MULHERES ACAMPADAS E ASSENTADAS 5 a 8 de março Para comemorar o Dia Internacional das Mulheres, o 5º acampamento estadual das mulheres assentadas e acampadas do MST tem como objetivo fazer um grande encontro de formação com as mulheres trabalhadoras do campo e integração com as do meio urbana. Serão discutidos temas como: violência contra a mulher, saúde da mulher em sexualidade, afetividade e doenças sexualmente transmissíveis. A abertura do encontro será às 19h do dia 5. No dia 6 haverá uma análise de conjuntura, sobre a participação da mulher na política. Dia 8 terá uma grande mobilização em Vitória contra a violência no campo e de gênero. Pedirá agilidade da Justiça na desapropriação das áreas e reivindicará os direitos da mulher rural e urbana. Local: Praça do Papa, Vitória. Mais informações: (27) 3223-7979, 3223-6892
1ª MARCHA PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA NA BAIXADA SANTISTA 1º de março, às 19h30 Organizada pelo Centro de Imprensa Alternativa (CIA) e pelo projeto da Barracão para Mamulengo, a manifestação faz parte da programação de aniversário do CIA. Tem como objetivo protestar contra os preconceitos, injúrias e injustiças cometidos por grande parte dos veículos de imprensa, impressos ou eletrônicos. Local: R. Piauí, 14, Santos Mais informações: (13) 9733-6134 yoda_sv@uol.com.br 1º ENCONTRO DE MULHERES ESTUDANTES DA UNE 5 a 7 de março O encontro pretende reunir mulheres estudantes do Brasil inteiro, para socializar experiências, debates e formular um olhar feminista sobre a universidade e o movimento estudantil. A proposta tem como objetivo garantir às mulheres do movimento estudantil um espaço de auto-organização, e um instrumento para a luta feminista que avance nas discussões sobre universidade, educação, e da inserção das mulheres na política. As inscrições podem ser feitas pelo endereço: mulheres_une@yahoo.com.br Local: a confirmar Mais informações: mulheres_une@yahoo.com.br
SÃO PAULO SEMINÁRIO: LEITURA DE INQUIETAÇÕES (SOBRE A LEITURA) Até 26 de fevereiro O seminário reunirá especialistas nacionais e internacionais da área para discutir sobre a leitura, as práticas, o futuro da leitura e os vários perfis de leitores no país. A atividade será dividida em três módulos. No primeiro, as oficinas: dirigidas a educadores, permitem aos participantes, por meio de vários exercícios, desenvolver e aperfeiçoar atividades de promoção da leitura em sala de aula, com a utilização de vários gêneros de leitura. O módulo de exposições de casos apresenta uma série de experiências na promoção da leitura, em comunidades ou escolas, com apresentação de vídeo sobre os programas e debate com seus responsáveis. As mesas-redondas abordam questões atuais sobre a leitura no sistema de ensino, frente a crescente diversidade de publicações e de tecnologias
PROJETO: COSTURANDO SONHOS Até 18 de março Com a proposta de profissionalizar costureiras, bordadeiras, piloteiras e jovens estilistas da região do Campo Limpo, zona sul de São Paulo, o Projeto Arrastão abre inscrições para o curso “Costurando Sonhos”. Este trabalho, que será assistido pelo artista plástico Nino Cais e pela estilista Karlla Girotto, é gratuito e faz parte do Programa de Capacitação Profissional da entidade.
A proposta é atualizar os participantes da área que já atuam no segmento de moda, por meio de um laboratório de pesquisa, para educar, aguçar o senso crítico dos participantes e também gerar novas oportunidades no mercado de trabalho. Os talentos descobertos pelo programa poderão participar da Oficina de Criação do Arrastão, também monitorada pela estilista Karlla Girotto. Local: R. Dr. Joviano Pacheco de Aguirre, 255, São Paulo Mais informações: (11) 5842-2510 2º ENCONTRO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL E INCLUSÃO 18 e 19 de março Promovido pelo Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil Interdisciplinar (Nani), vinculado ao Departamento de Psicobiologia da Unifesp-EPM, a proposta do encontro é promover um debate sobre as perspectivas em educação inclusiva com a participação de representantes de órgãos públicos, universidades, ONGs e profissionais renomados na área. Local: Av. Bernardino de Campos, 185, mezanino, São Paulo Mais informações: (11) 3284-1787 nani@psicobio.epm.br 3º SEMINÁRIO INTERNACIONAL LATINO-AMERICANO DE PESQUISA DA COMUNICAÇÃO 12 a 14 de maio Promovido pela Universidade de São Paulo (USP), o objetivo do evento é discutir as políticas públicas de comunicação nos países da América Latina no contexto da sociedade digital e globalizada; avaliar a produção acadêmica, que vem sendo gerada nos programas de pós-graduação sobre a democratização das áreas e dos meios de comunicação e suas interfaces sociais; comparar experiências comunicacionais democráticas entre os países latino-americanos; e levantar proposições de políticas públicas de comunicação mais democráticas. Os resumos de atividades podem ser enviados até 4 de março para: alaic@edu.usp.br Mais informações: (11) 3091-2949 www.eca.usp.br/alaic
MULHERES
Marcha quer reunir 30 mil em São Paulo Manifestantes exigem mudança da política econômica do governo Lula e o fim da violência
CARTA MUNDIAL O ato em São Paulo também é o ponto de partida da principal ação internacional da entidade para 2005: a jornada da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade. Referendada no 5º Fórum Social Mundial, a Carta passará por pelo menos 50
países. Foi construída por ativistas de diferentes países e organizações e reflete as reivindicações da Marcha Mundial de Mulheres. Nalu conta que a carta é uma maneira inovadora de mostrar “a organização das mulheres em todo o mundo”, e pautar as questões feministas. De São Paulo, a carta segue para Porto Xavier, no Rio Grande do Sul, onde um ato na fronteira com a Argentina dará seguimento à trajetória da carta. Em 17 de outubro ela chega a Burkina Faso, na África, um dos países com menor Índice de De-
Paulo Pereira Lima
Igualdade, liberdade, justiça, paz e solidariedade. Esses são os temas principais defendidos durante o ato nacional em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. A manifestação, organizada pela Marcha Mundial de Mulheres (MMM), acontece dia 8 de março, em São Paulo. São aguardadas 30 mil mulheres na Avenida Paulista, divididas em quatro alas de cores diferentes. As manifestantes prometem abordar temas como mudança da política econômica, a crítica a acordos comerciais, soberania alimentar e transgênicos, reforma agrária, direito ao aborto seguro; fim da violência e da mercantilização do corpo e da vida, não à guerra e à militarização. “Temos que mudar o mundo, colocando fim a todas as formas de exploração e opressão”, explica Nalu Faria, da coordenação da MMM. Segundo ela, o Dia Internacional das Mulheres invoca a luta histórica das mulheres. “É uma data em que se mistura comemoração, protesto denúncia e luta”, diz. A manifestação seguirá para a Praça da República, no centro da capital, onde acontece um ato políticocultural. Segundo a MMM, já estão confirmadas presenças de mulheres do Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Pernambuco. Participam entidades como a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Central do Movimentos Po-
pulares (CMP), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e União Nacional dos Estudantes (UNE).
Ato mostra a organização das mulheres em todo o mundo
senvolvimento Humano (IDH) do mundo, com altos índices de violência doméstica e onde mulheres sofrem mutilações genitais e casamentos forçados. Durante todo seu percurso, haverá ações da Marcha Divulgação
Dafne Melo da Redação
Mundial por cada país. No dia da chegada a Burkina Faso, a entidade também irá coordenar ações globais em diversos países, das 12h às 13 h, num total de 24 horas de manifestações feministas no globo.
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CULTURA
De 24 de fevereiro a 2 de março de 2005
DOCUMENTÁRIO
Imagem, ferramenta da luta social Bernardete Toneto da Redação
France Presse
Com uma câmera na mão, o argentino Carlos Pronzato documenta os principais movimentos latino-americanos
A
guerra do gás na Bolívia, ocupações de terra no Brasil, marchas indígenas no Equador, panelaços na Argentina. Há pelo menos cinco anos, as imagens das principais manifestações sociais contemporâneas da América Latina estão sendo captadas, com rigor estético e compromisso ético, pelo documentarista Carlos Pronzato. Definindo-se como “argentino-baiano”, o artista, de 45 anos, tem casa em Salvador (BA), mas passa grande parte do tempo percorrendo o continente, filmando as lutas sociais e movimentos de emancipação. Pronzato nasceu em Buenos Aires e durante a década de 80 percorreu a América Latina, numa viagem que compara àquela contada no filme Diários de Motocicleta. “Fiz o mesmo trajeto de Che Guevara, mas sem motocicleta”, brinca. Em Salvador desde 1989, participou de mais de 80 montagens teatrais, a maioria como diretor. Cursou artes cênicas e direção teatral na Universidade Federal da Bahia (UFBA), até concluir a pós-graduação em Teoria do Teatro. Polivalente, desde 1996 publicou dez livros, os últimos deles Bolívia Poema Rebelde e Poesias contra o Império.
TANGO E GINGA A virada na carreira veio em 2000, quando produzia um documentário sobre os 500 anos. Diante
Pronzato documentou, entre outras mobilizações populares pela América Latina, a dos bolivianos contra a privatização do gás
da repressão aos manifestantes em Porto Seguro, decidiu documentar as lutas sociais no continente. “Faço vídeo com pouquíssimo dinheiro, inversamente proporcional à circulação que atingem depois”, diz, referindo-se ao fato de seus trabalhos terem tiragem inicial reduzida, mas serem reproduzidos livremente por sindicatos, escolas e organizações de base. Pronzato se orgulha de não participar de solicitações de patrocínio por meio das leis de incentivo fiscal
gentina, muito utilizado nas universidades, e Bolívia, a Guerra do Gás, que “além de ter uma transcendência maior no continente, revelam dinâmicas similares de insurgência, em que a singularidade dos indivíduos não se perde na massa. São lutas que não estão atreladas a aparelhagens partidárias e podem levar em frente ações coletivas criativas sem direções aparentes”. Ele ressalta também o documentário A Revolta do Buzu, que foi utilizado durante meses em exibições constantes em
nem de grandes instituições ou empresas. Ele transita entre sindicatos, universidades, grupos políticos, jornais e pequenas ONGs, de quem recebe apoio, cessão de materiais, passagens e hospedagem. “É nesse exercício diário, entre os passos de tango e a ginga baiana, que consigo me manter em pé”, fala.
IMAGENS DE LUTA A obra de Pronzato é composta de muitas e coloridas lutas. Ele destaca O Panelaço, a rebelião ar-
Florianópolis, auxiliando na deflagração de um movimento contra o aumento do preço do transporte. Em maio de 2001, Pronzato fez o documentário Maio Baiano, sobre a repressão a estudantes na Universidade Federal da Bahia. Reconhecido por seu trabalho, foi protegido pelos estudantes de Salvador para poder filmar, em câmera digital 8.7, as manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, entre agosto e setembro de 2003. A edição das imagens foi feita pelo Fórum Gaúcho da Juventude da cidade de Três de Maio (RS), onde ele fez uma palestra sobre “A imagem audiovisual para a transformação da juventude”. O resultado foi o documentário A Revolta do Buzu, de 70 minutos, com tiragem inicial de mais de 200 cópias. Um dos trabalhos mais recentes é A Veracel no Abril Vermelho, sobre a ocupação da Veracel, empresa multinacional de celulose no extremo sul da Bahia, em abril de 2004, por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. “Essa é uma possibilidade real que este tipo de imagem tem, de se transformar numa arma social contra as injustiças. Em geral servem apenas para incentivar os debates, o que já é muito, mas se produzem essa combustão que leva o povo a ver mas claro e se insurgir contra a opressão, aí a finalidade de quem empunha uma câmera com esse espírito sua função está plenamente contemplada”, defende
BF – E as questões éticas? Pronzato – A arte vem de improviso, da maestria para criar daquele que conhece o oficio muito bem. Se nesse ponto o artista decide se engajar politicamente, seja bem-vindo ao mundo das preocupações éticas, além das puramente estéticas. Agora, como cineasta político gostaria que cada pincelada, que cada linha escrita, que cada imagem contribuísse para despertar inquietações e despertasse o público para as lutas por uma sociedade radicalmente oposta a esta. BF – Qual é a importância da documentação em vídeo da história dos movimentos sociais? Pronzato – Hoje não é possível fazer referência a um movimento social sem esse instrumental visual que só no finalzinho do século 19 irrompeu no mundo, para desgraça dos protagonistas da Comuna de Paris, por exemplo, a quem não pudemos ver em movimento e muito menos a cores, uma coisa que se fará no futuro, com as imagens da revolução mexicana de 1910 ou das ocupações dos sem-terra do Brasil. O simples registro documental dessa história de lutas servirá a estudiosos e aos próprios protagonistas e lutadores sociais, para aprender com os erros e comemorar vitórias.
BF – Trata-se de uma importância histórica, portanto. Pronzato – É mais do que isso. É importante a difusão em espaços pouco freqüentados e de difícil acesso, como as escolas públicas nas mãos do Estado, que não tem interesse na divulgação desses acontecimentos. O mesmo acontece com as TVs privadas e até públicas, que por interferências partidárias parecem desconhecer o verdadeiro significado e função do que é público. BF – Como vê o cinema brasileiro e latino-americano, hoje? Pronzato – Na era pós-Collor, no chamado cinema da retomada, e agora ainda com mais força, o Brasil continuou se inscrevendo no triângulo de produção cinematográfica formado pelos pólos México e Argentina, que de alguma maneira exercem a hegemonia sobre o resto dos países da região. Nesse panorama, e além do filme documentário, menos conhecido do grande público salvo pelo trabalho formidável de Coutinho, destaco filmes como O Invasor, Cidade de Deus, Lavoura Arcaica e Diários de Motocicleta, que apesar das abismais diferenças de construção estilística e conteúdos revelam a qualidade do cinema produzido de maneira quase independente, como é o caso de O Invasor, até o de uma grande produção, como Diários de Motocicleta. Sobre Lavoura Arcaica, u ma obra de arte deslumbrante, acredito que será “lida” mais profundamente num futuro BF – E em relação à produção visual dos outros países latino-
Quem é O argentino Carlos Pronzato, filho do artista Victor Pronzato, é documentarista, diretor teatral e escritor. Produziu mais de 20 vídeos, sobre as principais lutas sociais no continente latino-americano, exibidos nos Fóruns Sociais Mundiais. americanos? Pronzato – Fora desses pólos, me causou forte impacto um filme boliviano, Dependência Sexual, do jovem Rodrigo Bellot, que com profundidade e crueza nos revela a não-identidade que o Império do Norte tenta constantemente impor. Além de impacto, me causou surpresa e esperança de que o cinema latino-americano consiga impor, com produções tradicionais mas principalmente de baixo orçamento, a nossa verdadeira imagem, bombardeada a toda hora pela indústria visual-bélica dos EUA. (BT)
Johanna Nilsson
Brasil de Fato – Você acredita que a manifestação artística deve envolver engajamento político? Carlos Pronzato – Não. Isso é problema de cada um, do enfoque que se tenha da vida, de si mesmo e dos outros. A arte pode ser engajada sem ter essa pretensão. Acredito que esse engajamento acontece com mais freqüência na literatura, na ficção. Quando a arte obrigatoriamente teve de ser engajada, desembocou no realismo socialista, uma das piores aberrações estéticas do século 20. Engajamento exige preparo prévio, uma conformação ideológica que não tem porquê ser monolítica e unívoca.
Anderson Barbosa
Para Pronzato, a história se faz com ação
Sem-terra ocupam propriedade da Veracel, no sul do Bahia
Argentina revela resistência do continente No final dos anos 70, auge da repressão da ditadura militar, um filme argentino começou a circular, clandestinamente, em sindicatos e organizações populares. Era Los Traidores, longa-metragem de Raymundo Gleyzer. O filme conta a história de Barrera, um sindicalista que negocia com os patrões e trai as bases para chegar ao poder de seu sindicato. No papel principal, Victor Proncet, nome artístico de Victor Pronzato, pai do cineasta Carlos Pronzato. Victor Pronzato foi a principal influência do filho. É músico e compositor. Escreveu numerosas trilhas para o cinema, o teatro e a TV. Roteirista de cinema e de programas de grande sucesso na TV até os anos 80, recebeu prêmios como o Molière, pela trajetória artística, e o título de cavalheiro, da República Italiana.
Mas foi pela sua participação em Los Traidores que teve notoriedade nos circuitos do cinema militante e das lutas sociais. Los Traidores é considerado um clássico do cinema de temas políticos, ignorado por Hollywood mas com grandes expressões na América Latina. Uma das principais fontes da corrente cinematográfica contestatória é a Argentina, onde, nas décadas de 70 e 80, despontaram cineastas como Fernando Birri, Gerardo Vallejo, Leonardo Favio e Fernando “Pino” Solanas, herdeiros do neo-realismo italiano, de quem receberam influências estéticas adaptadas à violenta realidade latino-americana. Raymundo Gleyzer foi um dos principais representantes do cinema político argentino. O inquieto
Gleyzer produziu dezenas de curtas e média-metragens, em forma de ficção ou documentários, sobre a realidade latino-americana. Grande parte de sua obra foi realizada e distribuída na clandestinidade. Desapareceu nos porões da ditadura argentina em 1976, mesma época em que entrava na clandestinidade grande parte dos integrantes do Grupo Cine de la Base, fundado por ele. Entre seus filmes mais conhecidos estão A terra queima, sobre o Brasil; México, a revolução congelada; Notas desde Cuba, realizado em 1969, em comemoração aos 10 anos da revolução cubana; e Las AAA son las tres armas, de 1976, baseada na famosa carta enviada à junta militar argentina pelo jornalista e escritor Rodolfo Walsh, antes de ser seqüestrado. (BT)