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Ano 3 • Número 105

R$ 2,00 São Paulo • De 3 a 9 de março de 2005

No Haiti, exploração, caos e desgoverno Kent Gilbert/Associated Press/AE

As autoridades locais delegam os destinos da nação a organismos internacionais e corporações transnacionais

Simpatizantes do ex-presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide realizam protesto em Porto Príncipe, no Haiti, e defendem o fim da intervenção das Nações Unidas

Análise vai dizer se coca-cola vicia coca-cola. Segundo denúncia de um ex-funcionário, a transnacional utiliza substância extraída da folha de coca, o que é proibido pela legislação brasileira. No dia 15 de fevereiro,

Na abundância Esquerda assume ou crise, bancos no Uruguai, após ganham sempre décadas de luta

a Justiça julgou improcedente ação movida pela Spal, maior engarrafadora da Coca-Cola no Brasil, contra a empresa de refrigerantes Dolly. Pág. 13 Eduardo Knapp/Folha Imagem

O Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal, aguarda apenas a chegada de equipamentos para realizar análise do extrato vegetal utilizado na composição do refrigerante

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ia 28 de fevereiro, especulava-se que o saldo do confronto entre gangues e polícia, na capital, Porto Príncipe, era de oito mortos. Uma estatística não-oficial, como quase tudo no Haiti ocupado por soldados da missão da ONU, coordenada pelo general brasileiro Heleno Ribeiro Pereira. Ele avalia que a situação está sob controle e que a população recebe de braços abertos os militares estrangeiros. Para o Movimento de Camponeses de Papay, principal organização social do país, a sociedade civil organizada é radicalmente contra os soldados das Nações Unidas, e considera que ocupam injustificadamente seu país. Com apoio e recursos internacionais, as elites implantaram uma zona franca, isenta de impostos, protegida por cerca elétrica, inacessível à população local e à imprensa, relata o repórter João Alexandre Peschanski, enviado especial do Brasil de Fato ao Haiti. Mas foi na indústria têxtil da zona franca que os operários começaram a melhorar as condições de trabalho. Págs. 10 e 11

Há décadas, os bancos sempre têm lucros. Em 2004, alguns bateram recordes históricos. Os bancos ganham com os juros cobrados nos empréstimos, com as tarifas extorsivas dos seus serviços, com os títulos do governo, que remuneram com os juros mais altos do planeta. Enquanto arrocham os salários dos bancários, só os ganhos com tarifas das instituições financeiras pagariam todas as despesas com pessoal. Pág. 7

Dia 1º de março, tomou posse o novo presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, eleito pela coalizão Frente Ampla, de partidos e grupos de esquerda. A cerimônia contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e dos principais líderes da América Latina. No governo, Vázquez propõe a criação de um plano de emergência para resolver os problemas sociais do país, que vive um clima de esperança. Pág. 9

Mídia padroniza Na Venezuela, as mulheres e comemoração de reforça machismo rebelião popular

Panelaço – Estudantes protestam contra o aumento de 67% no salário dos deputados federais, em São Paulo

Assentamento para sem-terra de Felisburgo Pág. 4

E mais: ÁFRICA — ONG estadunidense financiada pelo magnata Bill Gates usou 400 prostitutas camaronesas como cobaias para testar remédios contra a Aids. Pág. 12 DEBATE — Reinaldo Corrêa Costa, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, conta a história e a geografia da violência no Pará. Pág. 14

Brasil lidera a campanha pelo software livre Pág. 6

Índices sociais pioraram em 2003, diz IBGE Pág. 6

Na mídia, a imagem feminina que predomina é a de mulheres “perfeitas e lindas”, objeto do desejo masculino. “Diante delas, as demais que aparecem na publicidade são inferiores ao ideal”, avalia, em entrevista, a psicanalista Maria Rita Kehl. As conseqüências dessa postura: “Muito sofrimento e uma espécie de alienação”, diz. Pág. 8

Há 16 anos, acontecia em Caracas, capital da Venezuela, o Caracazo, rebelião popular contra o ajuste econômico apresentado pela ditadura do presidente Carlos Andrés Perez, que visava assegurar empréstimo concedido pelo FMI. Para muitos, a revolta marcou também o início da trajetória de Hugo Chávez rumo à presidência, dez anos depois. Pág. 9

Congresso ignora limite máximo à propriedade

Banco Mundial: agricultura gera desenvolvimento

Emenda constitucional que limita o tamanho máximo das propriedades rurais está guardada no Congresso há cinco anos, à espera de momento propício para ser levada a votação. Se aprovada, ao Norte, nenhuma fazenda poderá superar os 3.700 hectares. Leia também entrevista ao Brasil de Fato com o deputado federal João Alfredo (PT-CE), relator da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra, que terá como novo foco a violência no campo. Pág. 3

Até mesmo o Banco Mundial reconhece: as comunidades rurais são indispensáveis para o desenvolvimento dos países latino-americanos e caribenhos. A constatação está na principal pesquisa anual do organismo financeiro, que associa o impacto das atividades agrícolas nas economias locais à redução da pobreza. O relatório ressalta também que a contribuição do setor rural foi prejudicada pela insuficiência de políticas públicas adequadas. Pág. 4


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De 3 a 9 de março de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Bernardete Toneto, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Marcelo 5555 Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Auditoria das privatizações

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o revelar, em pronunciamento público, ter determinado a um assessor que fizesse silêncio sobre as irregularidades encontradas no processo de privatização do governo Fernando Henrique Cardoso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva confessou aos quatro ventos que seu governo nada faria para apurar o maior e mais lesivo processo de dilapidação do patrimônio nacional já conhecido em nossa história republicana. Em países como o México e a Argentina, essa desnacionalização irregular do patrimônio público levou ex-presidentes aos tribunais: Salinas de Gortari está foragido, Carlos Menem responde a processo. Eleito presidente, Lula fez o desdobramento da Carta aos Brasileiros, que tranqüilizava o setor financeiro quanto à não-alteração dos contratos que transformaram o Brasil no paraíso mundial dos banqueiros. Também anistiou antecipadamente a privataria tucana, esquecendo toda a oposição que fizera contra o desmonte do Estado, que transferiu 75 % da economia brasileira para a propriedade de não-residentes. Lula e FHC acertaram, em 2002, que não haveria ataques entre eles. Pelo discurso-confissão via TV, o acordo selado com os tucanos está em risco, mesmo tendo surgido bombeiros para jogar água no fogo. Mas o calendário eleitoral não pára. É possível esperar novas trombadas, por mais que o PSDB não tenha realmente o desejo de processar Lula

por crime de responsabilidade. Lula seria obrigado a se defender e a revelar o processo altamente lesivo que foram as privatizações no setor elétrico, da Vale do Rio Doce (vendida a preço negativo), das ferrovias, e, especialmente, das telecomunicações – onde, segundo o próprio governo tucano, foram alcançados “os limites da irresponsabilidade”. O pano de fundo dessa nova crise entre PT e PSDB pode nem estar sendo mencionado, mas tem levado Lula e FHC a posições cada vez mais distantes. Lula continua sua política externa de busca de parceiros, tendo selado uma aliança estratégica com a Venezuela que inclui até a compra de aviões militares e de armamentos junto à indústria nacional, além da participação de Cuba, retirando-a do isolamento. Por seu lado, Fernando Henrique pede maior intervenção de Bush na América Latina, exatamente no momento em que um governo de esquerda assume no Uruguai. Na Argentina, o governo questiona os contratos da dívida externa. E a Venezuela declara guerra ao latifúndio, compra armas da Rússia e satélites da China. Que a política externa de Lula é errática, não há dúvidas, e aí está a indefensável intervenção no Haiti para comprovar, numa linha completamente antagônica ao acordo firmado com a Venezuela. Nem por isso ela deixou de causar

fúria na Casa Branca, sob o argumento de que armamentos brasileiros, via Venezuela, cairiam nas mãos da guerrilha. FHC — que conduziu a maior privatização do planeta, só comparável à da Rússia — agora dá continuidade a esse papel político, chamando o síndico Bush porque a América Latina está ficando muito rebelde. A essa direitização de Fernando Henrique no plano externo, corresponderá uma outra no plano interno, dificultando acordos como esse que silenciou as maracutaias da privatização. Assim, Lula estaria perdendo a oportunidade para sintonizar-se com o sentido histórico dos 53 milhões de votos que recebeu, revelando, por meio de uma auditoria rigorosa, os atos lesivos que envolveram o esforço de destruição da Era Vargas, como definiu FHC a seu próprio governo. Uma convocação ao povo brasileiro, uma aliança com a sociedade civil organizada, com os movimentos sociais, para um esforço no sentido de apurar e revelar toda a rapina poderia ser o início de uma mudança de rota, pois contaria com o indispensável apoio popular. A manutenção daquele acordo pré-eleitoral o levará ao desgaste e a passar para a história como o presidente que não quis elevar-se à condição de estadista para recuperar aquilo que pertence ao povo brasileiro.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES AUMENTO PARA OS DEPUTADOS Com referência ao absurdo aumento para os deputados em Brasília, intencionado pelo Severino (sem vergonha), a pergunta que fica no ar e que não quer calar é: cadê os cara-pintadas que derrubaram um presidente? Célio Borba Curitiba (PR) CRESCIMENTO ECONÔMICO O crescimento da indústria brasileira, no ano passado, só foi igual na época do Plano Cruzado, um período de preços controlados. E, para tal crescimento, não podemos subestimar a importância de o governo Lula ter mantido os preços do óleo diesel, do gás de cozinha e da gasolina congelados por mais de um ano e meio. No governo Fernando Henrique, toda vez que a cotação do petróleo subia lá fora, os preços dos derivados eram aumentados aqui, onerando toda a economia. Tal política propiciava lucros extraordinários para grandes banqueiros nacionais e estrangeiros, acionistas minoritários da Petrobras. Lula seguiu a política oposta, e, com isso, a população passou a comprar mais combustíveis, a Petrobras vendeu mais e a economia cresceu; enfim, ganhou a maioria do povo brasileiro. Reni Barros Moreira São Paulo (SP)

FUTURO Se, no presente, dizem ser impossível a tomada do poder pela força, mais impossível será tomálo por via institucional. De mais a mais, é bom que se diga e repita sempre: as grandes transformações históricas da sociedade jamais foram processadas dentro das leis vigentes de cada época, já que sempre foram concebidas para conservar a ordem estabelecida e determinados privilégios das minorias detentoras do poder e jamais para beneficiar as grandes e exploradas maiorias – base daquelas minorias, diga-se de passagem. Mesmo assim, pode-se acreditar face aos inúmeros exemplos da história que, com um ou outro momento de estagnação ou mesmo de retrocesso, o desenvolvimento humano flui sempre para frente e sempre graças aos contínuos movimentos sociais e inevitáveis eclosões violentas, sem as quais ninguém será independente e livre. E isso vale tanto para pessoas como para países; o ditado popular “o futuro só a Deus pertence” não deve ser aceito. Ele, o futuro, pertence a toda e qualquer força social em movimento, pois é assim que a história segue sempre para a frente. João C. da Luz Gomes Porto Alegre (RS)

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CRÔNICA

A mulher e a paz Marcelo Barros A importância que, a cada ano, toma o Dia Internacional da Mulher, revela que as relações de gênero continuam desiguais e injustas. O cinema tem mostrado produções nas quais a mulher é a heroína. Entretanto, a Mulher-Gato, Electra e As Panteras são apenas versões travestidas no feminino da mesma ideologia patriarcal e machista. Refletem uma sociedade que faz da mulher soldado no Iraque e guarda de prisão estadunidense ou de campo de concentração que tortura prisioneiros que não podem se defender. Condoleezza Rice, atual secretária de Estado dos EUA, assim como empresárias, que posam como executivas de transnacionais, representam bem este modelo feminino de consumo machista. Uma nova relação de gêneros só poderá se firmar em um mundo organizado a partir de novos valores e caminhos. Neste exato momento, sete Igrejas cristãs estão mobilizando o Brasil em uma campanha ecumênica pela Solidariedade e Paz. Um objetivo é colaborar para criar na sociedade uma sólida cultura de paz. Para isso,

certamente, é urgente transformar os próprios ambientes de Igreja, de forma que esta possa testemunhar ela mesma a solidariedade e a paz que propõe ao mundo. Um elemento essencial disso é o estabelecimento de novas relações de gênero nas comunidades eclesiais e em toda a sociedade. No antigo mundo greco-romano, a autoridade patriarcal tinha poder de vida e morte sobre as pessoas. O cristianismo absorveu esta cultura, legitimou o poder como vindo de Deus e acabou dando força à hegemonia da raça branca sobre as demais raças, do homem sobre a mulher e do cristão sobre os considerados infiéis ou pagãos. A História confirma que, geralmente, a mentalidade patriarcal abre portas e janelas para outras dominações como o colonialismo, o racismo, o militarismo e a intolerância religiosa. Algumas das Igrejas evangélicas que, junto com a Igreja Católica, coordenam a Campanha da Fraternidade Ecumênica pela Solidariedade e Paz, já dão às mulheres igualdade de direitos de participa-

ção nos ministérios. Entretanto, a superação total dessa desigualdade de relações, apesar de estar ocorrendo, é mais lenta e complexa. Um instrumento útil para este processo é o Ecofeminismo. A opressão sobre a mulher tem a mesma raiz da relação injusta da humanidade com a Terra. Refazer a aliança entre feminismo e ecologia dá à mulher a força de lutar por seus direitos e congrega homens e mulheres na mesma causa comum. Dizia Cora Coralina: “Eu sou a terra, eu sou a vida. Do meu barro primeiro veio o homem. De mim veio a mulher e veio o amor. (...) Eu sou a fonte original de toda vida. Sou o chão que se prende à tua casa. Sou a telha da coberta de teu lar. A mina constante de teu poço. (...) Eu sou a grande Mãe Universal. Tua filha, tua noiva e desposada. A mulher e o ventre que fecundas. Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor” (O Cântico da Terra). Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 24 livros, entre os quais o romance A Festa do Pastor, da Editora Rede

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NACIONAL QUESTÃO AGRÁRIA

Propriedades sem-limites Marcelo Netto Rodrigues da Redação

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o Brasil, nenhuma propriedade agrária localizada nos Estados ao Norte poderá ter mais de 3.700 hectares. O limite para as fazendas no Sul é de 700 hectares. É isso o que propõe uma emenda constitucional, guardada há cinco anos à espera de momento propício para ser levada a votação. A emenda, apoiada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e mais 44 entidades, precisa da aprovação inicial de 52 deputados federais que compõem a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, antes de seguir para plenária. A proposta do limite da propriedade da terra altera o texto do artigo 186 da Constituição, “limitando, ao máximo, a 35 módulos fiscais, no conjunto das áreas que cumprem a função social da propriedade, sob o domínio de uma mesma pessoa física ou jurídica”. Em tese, se a emenda for aprovada, Blairo Maggi, o maior produtor individual de soja do mundo e também governador de Mato Grosso, veria reduzido a 3 mil hectares os seus 195 mil hectares, que lhe renderam R$ 1,5 bilhão no último ano agrícola. O restante seria desapropriado e destinado a famílias de trabalhadores rurais sem-terra.

FÓRUM NACIONAL A decisão de levar a emenda a votação esbarra no parecer do relator da CCJ – que é indicado pelo presidente da comissão, a quem cabe a maior bancada, ou seja, o PT, desde 2002. Desde 2000, o deputado Coriolano Sales (PFL-BA) não desiste da sua decisão pela

Marcos Bergamasco/Folha Imagem

Emenda constitucional que impõe tamanho da propriedade da terra no Brasil está parada há cinco anos no Congresso O PAÍS DOS CAMPOS DE FUTEBOL O Brasil possui 850 milhões de campos de futebol. Dos 450 milhões de hectares aptos à agricultura, produzimos 46 milhões de hectares. 42% das terras estão nas mãos de 1% 26 mil latifundiários detêm fazendas acima de 2 mil campos de futebol, num total de 200 milhões de hectares... Tamanho equivalente ao que a China dispõe para alimentar sua população de 1,3 bilhão de bocas... 6 vezes mais bocas do que as nossas... Se a emenda for aprovada, Blairo Maggi, governador de Mato Grosso, veria reduzido a 3 mil hectares os seus 195 mil hectares

“inadmissibilidade” da proposta. A emenda foi apresentada, em 2000, pela deputada federal Luci Choinacki (PT–SC). O texto é o resultado coletivo de discussões promovidas, desde 1995, pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, que reúne organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura ( Contag) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A emenda está pronta para a pauta, mas “a grande questão é a força social que se deve ter para fazer com que um projeto tão profundo, tão democrático, seja aprovado numa Câmara tão hostil”, diz

Luci. “A todo instante, ficamos medindo qual a correlação de forças que temos para votar”. “Colocar este projeto em discussão com um relator do PFL é entregar o ouro ao bandido”, avalia Gilberto Portes de Oliveira, secretário-executivo do Fórum. “O projeto só tem futuro e será elemento de discussão quando tivermos uma ampla campanha de mobilização para que o Congresso vote por meio da pressão social”, afirma. Foi essa a tentativa realizada, entre 2001 e 2003, com o movimento pelo projeto de lei de iniciativa popular. O objetivo era obter 1 milhão de assinaturas – ou 1% do eleitorado nacional. Ainda faltam 500 mil assinaturas, que devem ser recolhidas brevemente. “O Fórum pensou numa proposta que tivesse um pé no Parlamento

e outro na mobilização social. Se um deputado apresentasse a emenda, nós teríamos de dois a três anos para constituir uma campanha permanente de arrecadação de assinaturas”, explica Oliveira.

LIMITE DA TERRA “A Constituição de 1988 limita a 4 módulos a pequena propriedade e a 15 módulos a média propriedade, mas não limita a grande”, fala Luci. Não por falta de tentativa, pois na época da Constituinte, a sociedade organizada exigia o limite máximo de 50 módulos e a eliminação da palavra “latifúndio”. O limite foi deixado de lado, enquanto a expressão “latifúndio produtivo” perdurou.Como resultado de uma possível implementação da emenda, “cerca de 200

milhões de hectares poderiam ser colocados imediatamente nas mãos do Estado para fins de reforma agrária”, calcula Oliveira. Segundo dados do Incra, cerca de 100 milhões de hectares de terra não têm documentos, 230 milhões são de terras devolutas e cerca de 200 milhões são reservas indígenas e áreas de conservação. A CPT, por sua vez, estima que o estoque de terras para reforma agrária no Brasil chegue a 300 milhões de hectares. Módulo agrário – Quantidade de terra necessária para a produção familiar, que varia de município para município, de acordo com a fertilidade do solo, a proximidade de um centro urbano e a facilidade no escoamento da produção. Em São Paulo, a média é de 16 hectares. No Pará, é de 70 hectares. Um hectare corresponde a 10 mil metros quadrados, a dimensão de um campo de futebol.

ENTREVISTA

Violência será o foco da CPMI da Terra Dafne Melo da Redação Os últimos acontecimentos no Estado do Pará “deram novo fôlego” às investigações da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra. As palavras são do deputado federal João Alfredo (PT-CE), relator da comissão, em entrevista ao Brasil de Fato. No dia 23 de fevereiro, a CPMI aprovou a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico do fazendeiro Vitalmiro Gonçalves de Moura, o “Bida”, acusado de ser o mandante do assassinato da missionária Dorothy Stang, dia 12 de fevereiro, em Anapu (PA). O requerimento estende a quebra de sigilo a outros oito pecuaristas suspeitos de envolvimento em trabalho escravo, grilagem de terra, exploração ilegal de madeira e mau uso do dinheiro público, entre os quais os recursos repassados pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), destinados ao desenvolvimento regional. Outra ação foi o envio de um ofício a Cláudio Fonteles, procurador-geral da República, pedindo a federalização das investigações e do julgamento do assassinato de Dorothy. Brasil de Fato – Na reunião do Fórum da Reforma Agrária, o senhor fez um pedido para reunir forças e resgatar os trabalhos da CPMI. Por que ela estava esquecida? João Alfredo – A CPMI viveu, no final do primeiro semestre de 2004, uma crise de natureza política, com a quebra do sigilo bancário das entidades ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),

em que se procurou desviar o foco da comissão. As eleições também contribuíram para essa paralisação. Os episódios no Pará deram um novo fôlego. Além da quebra dos sigilos, aprovamos um roteiro em que a questão da violência no campo virou o foco principal. Isso significa que vamos visitar as regiões mais conflagradas no país e as audiências públicas feitas em Brasília vão tratar deste tema. No ano passado, fizemos uma boa bateria de debates sobre a questão agrária, formando um grande painel dessa questão, inclusive com propostas. Naquela época, fomos ao Pará e a Pernambuco para avaliar a situação. Esse ano vamos a Goiânia, para uma audiência sobre o problema urbano. Depois, ao Pará, Rondônia, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná e São Paulo. Acho que podemos apresentar boas soluções. BF – O que motivou a quebra de sigilo foram supostas irregularidades com a Sudam. Quais são as denúncias? João Alfredo – As políticas de incentivos fiscais da Sudam, até sua extinção, não possuíam nenhum critério de natureza social ou ambiental; eram feitas unicamente para beneficiar as elites políticas do Pará. Há projetos com denúncias graves de desvios de recursos e outros que, quando implantados, foram feitos com violência e desmatamento. Há grileiros que receberam financiamento da Sudam e, com esse dinheiro, desmatam, expulsam trabalhadores e muitas vezes os mantêm em situação análoga a

escravidão. O fato de a CPMI ter quebrado o sigilo fiscal, bancário e telefônico desses fazendeiros é justamente para saber até que ponto se confirma aquilo que o Ministério Público já dizia há dois anos: a vinculação desse esquema todo à Sudam, que acabou sendo uma fonte de mais violência social e degradação ambiental. Brasil de Fato - Há uma preocupação de que não haverá recursos para efetivar o pacote que o governo aprovou. João Alfredo – Esse é o grande problema. Quando tivemos uma audiência com o vice-presidente José Alencar, ele disse que, no Brasil, o pagamento da dívida pública é sagrada, inquestionável. Cada vez que o governo aumenta os juros, isso também aumenta as despesas com o pagamento da dívida, o que acaba tirando recursos das áreas sociais. É evidente também que herdamos uma situação dos governos passados, principalmente o de Fernando Henrique Cardoso, que desmantelou o serviço público. E não tivemos capacidade ou decisão política de fazer essa recuperação. O grande problema é: quem vai fiscalizar e controlar? O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) está desmantelado, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com menos gente do que tinha há 15 anos. BF – Muitos falam que grande parte da violência é resposta a algumas ações do governo fe-

deral. Como agir na região sem aumentar a violência? João Alfredo – Essas medidas, inicialmente anunciadas de forma tímida pelo governo, levam a uma reação de grileiros, madeireiros e latifundiários. Há uma certeza, por parte deles, da falta de ação do governo federal até aquele momento. Já o governo estadual é completamente cúmplice, com envolvimento da Polícia Civil e Militar com os grileiros. A impunidade é um fato. As medidas não podem ser apenas uma forçatarefa em um certo período de tempo. O governo tem que agir duro, não pode voltar atrás. E deve dar ao Incra condições tanto de ter gente para fazer o trabalho, como proteção policial aos seus técnicos, porque lá mesmo no Pará há fazendas em que o Incra e o Ibama não entram. Na questão ambiental, não ceder aos madeireiros. Se quer explorar madeira, que faça com a terra regularizada, respeitando regras trabalhistas e ambientais. É preciso rigor no Pará: as medidas anunciadas são boas, mas é preciso dar aos órgãos públicos condições para executar os programas, senão, poderá ser uma frustração e um fator de geração de mais violência. BF – Ao mesmo tempo em que o governo federal repudia a violência no campo, se beneficia e apóia o agronegócio. João Alfredo – Essa é a grande contradição do nosso governo. Há um embate entre duas visões de desenvolvimento rural: a que privilegia o agronegócio, per-

Célio Azevedo/Agência Senado

Quem é Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará (UFC), João Alfredo é deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual é filiado desde 1980. Com uma longa trajetória política voltada para a defesa dos direitos humanos, foi presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Assembléia Legislativa cearense. sonificada no ministro Roberto Rodrigues, e a questão social e ambiental, que podemos identificar nos ministros Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, e Marina Silva, do Meio Ambiente. Hegemonicamente, está valendo a visão do agronegócio e do capital estrangeiro. O agronegócio, da forma como está acontecendo, nessas regiões é a principal causa do trabalho escravo, da violência e degradação ambiental. O governo tem de enfrentar esse dilema.


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Espelho Violência é notícia A grande imprensa brasileira acordou para o grave problema dos conflitos rurais, após a morte da missionária estadunidense Dorothy Stang. Entretanto, o abundante material publicado sobre o tema depois do assassinato revela mais a insensibilidade da mídia para as questões do Brasil profundo, como alguns jornais qualificam o interior, do que um súbito despertar de consciência. O padrão é sempre este: quando ocorre algum episódio violento, como o massacre de Eldorado dos Carajás, os holofotes se voltam para o campo. Basta, porém, os cadáveres serem enterrados e as investigações tomarem rumo, e os jornais voltam a relegar o mundo rural aos pés de página e pequenas notas. Ausência notada Chamou atenção nesta semana, nas revistas semanais de maior circulação, a ausência de noticiário sobre a suposta gafe do presidente Lula. No dia 24 de fevereiro, no Espírito Santo, ele declarou que acobertou uma denúncia de corrupção ocorrida no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Na Veja, apenas um comentarista escreveu sobre o assunto; na Época, saiu um pequeno box; na Isto É, uma discreta matéria, e na Carta Capital, nenhuma linha. Preconceito sulista O presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), é conservador, católico fervoroso e nordestino. A imprensa deve acompanhar de perto a sua gestão na Casa Baixa do parlamento, mas não tem o direito de tratá-lo desrespeitosamente. Os jornais do eixo São Paulo-Rio-Belo Horizonte mal conseguem esconder o preconceito contra Severino. Na semana passada, dois diários estamparam em primeira página fotos da mulher do novo presidente da Câmara, Catarina Amélia, e a trataram como uma personagem folclórica. João Paulo Cunha exerceu a presidência da Câmara nos últimos dois anos sem que o público soubesse o nome de sua mulher. Ademais, curiosidade dos leitores pela intimidade dos poderosos não justifica a pauta: a mulher do presidente da Câmara, ao contrário das esposas de presidentes da República ou governadores de Estado, não tem qualquer função pública. Megalomania O jornal luso-brasileiro Folha de S. Paulo é um veículo engraçado. Depois de promover um debate de uma tarde entre o atual ministro da Educação, Tarso Genro, e os dois anteriores (Cristóvam Buarque e Paulo Renato de Souza), o veículo publicou, na última edição dominical, reportagem informando que Genro iria mudar a Reforma Universitária em função do debate. Só falta a Folha acreditar mesmo no que publicou... Complacência absoluta... Além de engraçado, o grupo Folha é muito complacente com os governantes tucanos. Nessa semana, o prefeito de São Paulo, José Serra aumentou o preço da tarifa de ônibus em pouco mais de 17%. Durante toda a tarde de 1º de março, a Folha Online informava que o reajuste foi “abaixo da inflação do período”. Mentira: foi acima dos 15,91% do IPC/Fipe. Ou ainda: no noticiário sobre a crise da Febem, jamais é citado o nome do governador Geraldo Alckmin que, em última análise, é o responsável pela instituição e foi quem autorizou a demissão de 1.751 funcionários, agravando os problemas na instituição. ... e má vontade total A mesma Folha Online foi o único veículo que noticiou a queda na popularidade do governo Lula na pesquisa CNT/Sensus. Os demais veículos preferiram destacar o aumento de popularidade pessoal do presidente (foi para 66%) e as simulações sobre a eleição de 2006, nas quais Lula bate todos os candidatos.

Comunidades são indispensáveis Até o Banco Mundial reconhece: com investimentos, garantem o fim da pobreza da Redação

O

s países da América Latina e do Caribe precisam investir mais e melhor nas comunidades rurais, porque sua contribuição econômica para o desenvolvimento nacional é duas vezes maior do que mostram os índices oficiais. A conclusão é do relatório Beyond the City: the Rural Contribution to Development (Além da cidade: a contribuição rural para o desenvolvimento), do Banco Mundial. O documento, preparado por uma equipe de pesquisadores coordenada por Guillermo Perry, é a principal pesquisa anual do Banco Mundial sobre a América Latina e o Caribe. Avalia o impacto do setor rural sobre o desenvolvimento, a redução da pobreza e a degradação do meio ambiente nas áreas rurais e no restante da economia, bem como as políticas públicas que podem contribuir melhor para o desenvolvimento. “A contribuição do setor rural é maior do que normalmente se imagina”, afirma Guillermo Perry, economista-chefe do Banco Mundial para a região, e co-autor do estudo. A seu ver, a maioria dos países latinoamericanos e caribenhos ainda não conseguiu combinar corretamente políticas públicas para a área rural, como seria desejado sob a perspectiva do crescimento econômico ou da redução da pobreza.

CRESCIMENTO De acordo com o estudo, enquanto as atividades rurais relacionadas aos recursos naturais são responsáveis somente por 12% do PIB regional, o seu impacto sobre o crescimento nacional e a redução da pobreza é quase duas vezes maior, devido à sua relação com outras atividades econômicas, e à sua grande contribuição para as exportações.

Pesquisa mostra que população rural na América Latina corresponde a 42% do total de habitantes

Por exemplo, a cada 1% de crescimento no setor de recursos naturais rurais corresponde um aumento de 0,22% no PIB, e de 0,28% na renda das famílias mais pobres, o que representa mais de duas vezes o aumento estimado de 0,12%, de acordo com a parcela do PIB relativa ao setor. Além disso, a pesquisa mostra que a população rural na região corresponde, na verdade, a 42% do total de habitantes, quase o dobro do índice oficial de 24%, quando a medição é feita segundo os critérios da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que compreendem a densidade populacional e a distância em relação às principais cidades. Isso significa que os problemas rurais, como a pobreza, são altamente subestimados e necessitam de atenção muito maior e de políticas públicas adequadas. “A contribuição do setor rural ao desenvolvimento na região foi Juca Varella/Folha Imagem

Luiz Antonio Magalhães

A IMPORTÂNCIA DO CAMPO

Claudia Jardim

da mídia

NACIONAL

prejudicada pela insuficiência de investimento nos serviços públicos”, assinala Daniel Lederman, economista sênior do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe, e co-autor do relatório. “As comunidades rurais enfrentam os mais altos índices de pobreza, a falta de acesso aos serviços públicos e aos mercados privados, além de infra-estrutura inadequada para realizar todo o seu potencial.” Cerca de 37% dos pobres na América Latina e Caribe – 65 milhões de pessoas – vivem nas áreas rurais. Em alguns países, como Bolívia, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai e Peru, pelo menos 70% da população rural vive na pobreza, enquanto no México, aproximadamente 35% dos camponeses não têm renda suficiente para comprar a cesta básica mínima. O estudo observa que as despesas públicas ainda tendem a beneficiar mais as atividades urbanas do que as rurais, e que o gasto público com o setor agrícola é menor do que a sua contribuição para o desenvolvimento como um todo. Mas conclui que o real problema está na composição das despesas públicas com o setor rural.

SUBSÍDIOS

Na maioria dos países, faltam políticas públicas para o campo

Isso ocorre porque uma parte substancial dos gastos com o setor rural se dá por meio de subsídios para grupos de produtores específicos, em vez de ser investida na provisão de bens públicos, como educação, saúde e proteção social rural, infraestrutura rural, pesquisa e desen-

CORTE ORÇAMENTÁRIO

FELISBURGO

volvimento, proteção ambiental e programas direcionados ao combate à pobreza. No âmbito do comércio exterior, o relatório observa que os países da região se beneficiarão de uma maior liberalização e acesso aos mercados para os produtos agrícolas, mas salienta que a redução dos subsídios aos produtores nos países industrializados provocaria um impacto desigual na região. Assim, enquanto os países exportadores de produtos agrícolas, especialmente no Cone Sul, seriam beneficiados pela redução dos subsídios nos países ricos, os países importadores de alimentos na região observariam uma alta de preços.

POLÍTICAS INTEGRADAS O estudo conclui que os países precisam implementar programas de apoio à reestruturação dos pequenos produtores domésticos, que não podem competir mesmo com redução de subsídios nos países ricos. Em uma perspectiva ideal, esses programas deveriam combinar transferências de renda temporárias com assistência técnica e melhor acesso a crédito e serviços. O estudo também enfatiza a necessidade de uma melhor integração das políticas setoriais e regionais porque a pobreza nas áreas rurais não está associada apenas à agricultura, mas a regiões específicas, como o sul do México, o nordeste do Brasil ou a costa caribenha da Colômbia. E também porque cerca da metade da renda rural na região é proveniente de atividades não-agrícolas.

Reforma agrária fica com Acampados conquistam terra prometida metade do prometido Beatriz Pasqualino de Brasília (DF) De R$ 3,7 bilhões para R$ 1,7 bilhão. O corte orçamentário, de mais da metade do previsto, foi anunciado pelo ministro interino do Planejamento, Nelson Machado, no dia 25 de fevereiro, e refere-se à destinação para o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2005. Na prática, a medida reduz para apenas 40 mil a meta de 115 mil novas famílias assentadas neste ano. Além disso, a decisão atinge projetos de qualificação de pessoal, desapropriação de terras e programas de assistência técnica. “O corte foi muito pesado. Fica impossível cumprir as metas”, disse o ministro Miguel Rossetto, em tom de indignação. Com o corte, o orçamento que o MDA possui representa 25% a menos do que foi aplicado em 2004, quando as metas de assentamento não foram totalmente cumpridas.

Rossetto admite que a medida pode piorar a violência no campo no Pará, já que as propostas anunciadas para conter os conflitos agrários no Estado não terão verbas suficientes para serem implementadas. O ministro Rossetto deve se reunir esta semana com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e com o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, para tentar reverter a situação e convencê-los a desistir do corte. O MDA não foi o único afetado. A redução faz parte do contingenciamento geral no Orçamento da União em R$ 15,9 bilhões, para obedecer metas estabelecidas no acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que prevê para este ano superavit fiscal de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB). Em comparação com o ano passado, os ministérios mais atingidos pela medida foram:Transportes (R$ 2,42 bilhões), Cidades (R$ 1,46 bilhão), Integração Nacional (R$ 830 milhões) e Esportes (R$ 530 milhões).

Bernardo Alencar de Belo Horizonte (MG) O acampamento Terra Prometida, em Felisburgo (MG), será destinado à reforma agrária. Em audiência realizada na Vara de Conflitos Agrários em Belo Horizonte (MG), foi comprovado que 568 hectares da Fazenda Nova Alegria, onde está o acampamento, são terras devolutas. Com a determinação, 100 famílias serão assentadas. No acampamento, em 20 de novembro de 2004, pistoleiros comandados pelo fazendeiro Adriano Chafik Luedy assassinaram cinco trabalhadores sem-terra. A ação resultou também em 20 feridos e na total destruição dos barracos de lona e pertences dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Após a conquista, a luta agora é para conseguir infra-estrutura mínima. No acampamento não há energia elétrica nem água encanada. O acam-

pado José Maria Martins acredita que “com certeza nada irá acontecer da noite para o dia”. Martins vê muitas dificuldades até que o acampamento se torne um assentamento de verdade, “com luz, água encanada e casas de alvenaria. Agora a luta pega outro rumo. Conseguimos a terra e é mais fácil de conseguir alugar um trator na região, porque antes as pessoas ficavam com medo de fazer qualquer tipo de acerto com a gente”, disse. Jorge Rodrigues, outro acampado no Terra Prometida, concorda com José Maria. “Nós ainda temos muito pelo que trabalhar. Precisamos de dinheiro para comprar canos e podermos levar água até as casas das pessoas”. Um dos projetos é a inclusão dos acampados no Programa Mutirão de Segurança Alimentar (Prosan). Sobre a conquista, Rodrigues diz: “A morte dos companheiros assassinados teve, infelizmente, um peso e não sei se iríamos conseguir a terra, neste prazo, se não fosse por esse terrível acontecimento”.


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NACIONAL VIOLÊNCIA POLICIAL

Para secretário, agressões são normais Tatiana Merlino da Redação

D

epois de vários convites recusados, pela primeira vez em três anos de governo, o secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Saulo Abreu de Castro se encontrou, dia 24 de fevereiro, com entidades de direitos humanos. Ele compareceu depois da convocação da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo, para prestar contas sobre violência policial no Estado. Segundo a advogada Valdênia Paulino, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Sapopemba, durante o encontro Abreu de Castro deixou de responder a muitas questões feitas pelos deputados e entidades. Para ela, eram questões “cruciais, pois dizem respeito à linha de atuação da secretaria. Isso nos deixa muito preocupados, e a insegurança permanece”. Durante a audiência, foram apresentados quatro “casos exemplares” de abusos e violência cometidos por policiais civis e militares em São Paulo, nos bairros de Sapopemba, Jardim Pantanal, Parque Novo Mundo e Favela do Coruja. Segundo as entidades, os episódios foram levados a conhecimento da secretaria, que não tomou providências, nem esclareceu o assunto.

SEM RESPOSTAS Castro foi questionado sobre as medidas tomadas em relação aos quatro casos, que, segundo as entidades, “não tiveram alterações no quadro de violência após as denúncias”. O secretário disse que as investigações estavam em andamento e “eu não posso divulgá-las, porque atrapalha a investigação”. Afirmou não compactuar com a atuação de ‘policiais bandidos’, “que são minoria dentro da corporação”, e disse não gostar de demagogia. No entanto, à maioria dos questionamentos dos deputados, o secretário não respondeu – ou retrucou de maneira agressiva. “Essa questão de cabo eleitoral não é comigo. Isso é

Marília Almeida

Em audiência, Abreu de Castro chama de “exceção” a rotina de maus-tratos praticados pela polícia em São Paulo

Comunidades da periferia paulista e entidades de direitos humanos cobram apuração de chacinas promovidas por policiais

proselitismo barato”, afirmou, em resposta a uma pergunta do deputado Ítalo Cardoso (PT-SP). De acordo com Frederico dos Santos, do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), “além da polícia ser uma instituição fechada, não-transparente, nem democrática”, as declarações públicas do secretário são “muito autoritárias” e contribuem para que o quadro piore ainda mais.

possível envolvimento do secretário e de dois juízes em ações ilegais do Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância (Gradi), da Polícia Militar, foi arquivado por desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Durante a audiência, o deputado leu uma carta do coronel PM Ruy César Mello, ex-comandante geral da Polícia Militar, publicada num jornal no início de 2004. Na carta, ele afirma que a operação Castelinho só foi possível porque teve autorização do secretário. “Isso mostra que ainda tem muito a ser esclarecido sobre esse caso, e eu não tenho dúvida que vão pegar meia dúzia de policiais e dizer que o caso está resolvido”, afirma Cardoso, que lembra: “Os

CPI DA VIOLÊNCIA Durante o encontro, Cardoso defendeu a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do caso Castelinho, que, segundo ele, ainda tem aspectos não esclarecidos. O inquérito que apurava o

EXPLORAÇÃO INFANTO-JUVENIL

única razão que leva as crianças a se prostituírem. “Há desintegração familiar, falta de afeto entre eles. O pai ainda se acha no direito de se alcoolizar e bater na mulher, abusar da filha e mandá-la pra rua”. Para Margarita, o governo acerta ao perceber que a exploração só pode ser combatida por meio de uma rede de programas e ações que protejam as crianças e adolescentes em vários âmbitos. “Tem que reestruturar a família, tirar a criança da situação de risco e tratá-la para depois reintegrá-la a família. É o ideal”.

além de criar mais 110 Conselhos Tutelares até 2006. Outra ação será a municipalização do combate à exploração. Denúncias de exploração sexual infanto-juvenil podem ser feitas pelo fone 0800 990 500. A Matriz Intersetorial está no endereço eletrônico: www.caminhos.ufms.br Sentinela – Programa do governo federal, criado em 2000. Os centros de referência (bases físicas do Sentinela) estão presentes em 315 municípios. Nesses espaços, são executadas ações especializadas de atendimento e proteção imediata às crianças e aos adolescentes, atendimento multiprofissional especializado, apoio psicossocial e jurídico, acompanhamento permanente e abrigamento das vítimas por 24 horas, quando necessário.

SENTINELA Joseleno Santos, coordenador nacional do Sentinela, alerta para que o programa seja ‘redesenhado’. “Os ‘Sentinelas’ atuam praticamente no atendimento dos casos de abuso sexual, mas são poucos os que conseguem realizar ações de combate à exploração sexual infantil, função para a qual foram criados”. Para que isso aconteça, Santos defende a capacitação contínua dos profissionais, prejudicada com as mudanças nas administrações municipais. O governo Lula prometeu diminuir pela metade o número de municípios em que ocorre a exploração sexual. Para atingir essa meta, diz que vai implantar o Sentinela em mais 150 municípios,

De acordo com o deputado estadual Renato Simões (PT-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, a violência policial vem aumentando

Com fome, pelo trabalho Carlos Minuano de São Paulo (SP) Amarrados por uma corda com nós nas mãos e no pescoço, cinco moradores de albergues de São Paulo protagonizaram um ato inédito: fizeram uma greve de fome, de dois dias, reivindicando trabalho. “A idéia é que a gente só quer comer e dormir. Isso não é verdade. Queremos oportunidade para voltar a sociedade”, afirmou Sebastião Nicomedes. A manifestação aconteceu, dia 17 de fevereiro, em plena Praça Patriarca, centro velho da capital, não muito longe da sede da Prefeitura. Na calçada, em cima de um pedaço de pano velho, pequenas mensagens improvisadas de protesto. No centro, uma bandeira do Brasil, com cinco carteiras de trabalho. Os sem-teto classificam de dramática a situação nos albergues:

Anderson Barbosa

A exploração sexual de crianças e adolescentes acontece em mais de 900 cidades brasileiras – ou seja, em 17% dos municípios. Essa é uma das informações de uma pesquisa, divulgada dia 22 de fevereiro, em Brasília, pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). O trabalho, chamado “Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes”, identificou predomínio de exploração em cidades do Nordeste, onde estão 32% dos municípios com ocorrências do problema. Em seguida vem o Sudeste, com 26% dos municípios; 17% estão no Sul; 14% no Centro-Oeste e 12% no Norte. A Matriz faz o levantamento de todos os programas federais nesses municípios e que, direta ou indiretamente, atuam no combate à exploração sexual infanto-juvenil. O Bolsa Família, por exemplo, está presente nos 932 municípios identificados; contudo, o “Sentinela” – programa criado para proteger crianças e adolescentes da violência sexual – está presente em apenas 33% dos municípios. De acordo com Margarita Martin, coordenadora do Sentinela em Vitória (ES), a pobreza não é a

EXPLOSÃO DE ASSASSINATOS

MORADORES DE RUA

O sexo que destrói crianças e adolescentes nas cidades Jacson Segundo de Vitória (ES)

verdadeiros mandantes da operação ainda não foram ouvidos; por isso, a CPI é atual e necessária”. Para Valdênia, o resultado do inquérito do caso Castelinho demonstra que os poderes não são “imparciais, autônomos e independentes”. De acordo com ela, a interpretação da lei “se dá na interpretação das articulações políticas de quem tem que se sentenciar. Por isso não tenho dúvida da necessidade de uma CPI”.

nos últimos três anos. Segundo ele, em 2003 houve uma “explosão no número de assassinatos, que chegaram a 868, o que significa um aumento de 60% em relação aos últimos anos”. Em 2001, foram 385 homicídios, e em 2002, 541, de acordo com o deputado. Simões também critica a concessão de mandados coletivos de busca, “que nunca acontecerão em bairros nobres da capital, quando há abusos de autoridade e espancamento”. O secretário rebateu as acusações, afirmando que sua gestão atingiu o recorde na demissão de ‘maus policiais’. “Desde 2002, mais de dois mil policiais foram retirados da instituição, sendo que só em 2003 foram 910”. De acordo com ele, o aumento no número de mortes pode ser atribuído a uma atuação “mais efetiva da polícia”. Um dos casos apresentados na audiência foi o de Sapopemba, na zona leste da capital. Em 2003, o delegado Antônio Assunção de Olim, da Divisão Anti-Seqüestro (DAS), foi acusado de tortura e abuso de poder contra quatro moradores da região. As pessoas afirmam ter sido vítimas de maus-tratos e dizem que houve prisões arbitrárias por parte do delegado, que queria obter uma confissão de participação no seqüestro de um empresário. O caso não chegou a ser julgado porque a denúncia sequer foi aceita pelo juiz. Valdênia questiona o impacto da decisão na comunidade. “As pessoas tiveram coragem de denunciar e agora o resultado é que na primeira instância a denúncia não foi aceita. Qual é o comunicado que chega para a comunidade?” Para ela, o recado será o seguinte: “Invadir a casa das pessoas, praticar crime de tortura, homicídio é uma prática legalizada da polícia”. A advogada revela que as entidades irão enviar um relatório para a Secretaria de Segurança Pública, “com os casos que entendemos que a corregedoria não foi imparcial. Agora que o secretário disse que está aberto, vamos ver quais serão as medidas a serem tomadas”.

Moradores de rua podem voltar à greve de fome se prefeitura descumprir promessas

falta comida em algumas unidades, funcionários estão sendo desligados e os já insuficientes programas de atendimento foram suspensos pela administração de José Serra (PSDBSP). A crise se estende por toda a rede de atendimento social. Um exemplo é o programa Bolsa-Aluguel, sua suspensão ameaça de despejo aproximadamente 100 pessoas. No início de fevereiro, Floriano Pesaro, secretário de Assistência e Desenvolvimento Social, faltou a uma reunião marcada com moradores de rua, que trataria dos programas de assistência do governo. A socióloga Joana Barros, do Fórum de Debates sobre a População em Situação de Rua, afirma: “Sem uma política pública séria, sem a continuidade do que estava sendo feito e alternativas reais de trabalho e renda, só mesmo fazendo greve de fome. A prefeitura fechou todos os canais de diálogo, com a alegação de que não há dinheiro para manter um serviço que é vital”. A greve de fome durou apenas dois dias. Houve uma frustrada reunião entre as duas partes. As reivindicações apresentadas pela população de rua são objetivas: política transparente e efetiva para saúde, habitação e trabalho. A prefeitura garantiu que as pessoas cadastradas no “Bolsa Aluguel” não sofrerão ação de despejo e que os repasses de verbas em atraso deverão ser pagos. Os moradores de albergue disseram que, caso as promessas não se cumpram, voltam à greve de fome.


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NACIONAL BRASIL 2003

Há pouco a comemorar

Fatos em foco

Aliança enganosa Zé Dirceu, Luiz Gushiken e outros petistas palacianos estavam certos de que o governo Lula arrastaria toda a imprensa burguesa para seu projeto político. Gastaram tubos de dinheiro público nessa miragem durante dois anos, deixando de lado o investimento em um sistema de comunicação realmente comprometido com o povo brasileiro. Agora, acabam de descobrir que a grande mídia continua “fechadíssima” com o esquema FHC. Mais uma lição. Nova atração O governo dos Estados Unidos ainda reluta em negociar diretamente com o Mercosul e insiste na Alca. Agora, acena com a redução nos subsídios da agricultura, um setor importante para os países latino-americanos, mas não fala em suspender as inúmeras barreiras comerciais que impedem a entrada no seu mercado dos produtos agroindustriais do Brasil e seus vizinhos. Contrato real Em 2004, o Banco Itaú bateu recorde histórico de lucro. E o Unibanco cresceu 22%, obteve um lucro líquido de R$ 1,283 bilhão e também fechou o ano com um dos melhores desempenhos de sua história. No mesmo período, os bancários tiveram uma queda salarial média de 8%, o que explica, em parte, o grande sucesso dos bancos no Brasil. Pirataria concedida O grupo espanhol Telefónica teve lucro espetacular em 2004. Só a América Latina carregou para a matriz a bagatela de 4 bilhões de dólares. No Brasil, este lucro é garantido pela agência reguladora, a Anatel, que sacramenta a correção das tarifas que os usuários devem pagar pelos serviços de telefonia. É a mesma coisa que a gente depositar dinheiro nosso todo dia na conta dos outros. Folha corrida A lei é clara: empresa condenada por envolvimento em processo de corrupção não pode mais participar de obras públicas. Mas o senador Luiz Estevão, envolvido no desvio de R$ 169 milhões na construção do TRT de São Paulo, junto com o juiz Nicolau dos Santos Neto, está tocando trechos do metrô de Brasília repassados pelo consórcio Andrade Gutierrez-Serveng Civilsan, no governo Roriz. Pode? Esquema esportivo Está tramitando na Justiça paulista uma denúncia de formação de cartel contra as marcas Nike, Reebok e Mizuno, que teriam combinado uma tabela de preços para os tênis mais caros de suas linhas. Quando se trata de lograr o cidadão, o mercado costuma esquecer o discurso da concorrência. Nova dívida A imprensa brasileira tentou ridicularizar a proposta Argentina de negociação da dívida, mas a adesão dos credores é prevista acima dos 70%, limite fixado pelo FMI para a aceitação da proposta. O resultado foi um sucesso, a Argentina conseguiu economizar 63% de uma dívida de 81 bilhões de dólares. Pena que o governo brasileiro tenha perdido a oportunidade de apoiar o governo Kirchner. Rumo político Os setores conservadores e de direita realizam sua ofensiva política com muita tranqüilidade, já que o PT e a CUT desmobilizaram suas bases e o governo Lula tem combatido muito mais as esquerdas e suas propostas do que as velhas oligarquias mumificadas. A mídia burguesa, o latifúndio, a escola empresarial, os banqueiros – todos aproveitam o momento de fragilidade do governo para ganhar posições.

Beatriz Pasqualino de Brasília (DF)

E

nquanto o governo federal anuncia o crescimento dos índices econômicos e os bancos comemoram lucros exorbitantes, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam para o país real, onde vive a grande maioria dos cidadãos brasileiros. Na última semana de fevereiro, o Instituto divulgou a “Síntese de Indicadores Sociais”, com informações sobre o ano de 2003, primeiro do mandato do presidente Lula. Merecem destaque os dados sobre trabalho. Segundo o IBGE, em 2003, mais de 50% da mão-de-obra brasileira não tinha qualquer instrução, ou tinha menos de ano de estudo. Além disso, o rendimento médio de todas as categorias de ocupação registrou queda, isto é, empregados com ou sem carteira assinada, militares, trabalhadores domésticos, autônomos ou empregadores. Nesses índices, fica evidente a disparidade regional. Enquanto em 2003, no Sudeste, o rendimento mensal era de R$ 862,20; no Nordeste o valor caía para R$ 429,50. Para o sociólogo Ricardo Antunes, estes dados comprovam que o crescimento econômico brasileiro é, na verdade, concentrador de renda. “Isso é resultado da política do governo Lula, inteiramente baseada no receituário do Fundo Monetário Internacional (FMI), que não toca na dependência estrutural brasileira e não enfrenta nenhuma das questões fundamentais, como a política salarial, a reforma agrária e a dívida externa”, afirma.

Estudo revela que, em 2003, mais de 50% da mão-de-obra brasileira não tinha qualquer instrução

as mulheres chegavam a ganhar cerca de 41% menos que os homens. Na média nacional, em 2003, os homens com até três anos de estudo recebiam salário de aproximadamente R$ 343 contra R$ 211 pagos às mulheres com o mesmo nível de escolaridade. De acordo com o economista Marcio Pochmann, a atual política econômica e a desigualdade de gênero são complicadores para a situação feminina no mercado de trabalho. “O desafio da discriminação ainda existe de maneira muito presente, seja nas grandes, pequenas ou micro empresas. Neste sentido, esse constrangimento será possivelmente amenizado na medida em que haja uma campanha política e uma mudança cultural”, analisa.

GÊNERO E COR CRIANÇA ADULTA

A pesquisa mostra que as mulheres conquistaram mais espaço no mercado de trabalho e superaram os homens em nível de escolaridade. Mas quando o assunto é salário, as desigualdades continuam e as mulheres que ocupam o mesmo cargo de homens ganham menos. As maiores diferenças foram registradas nas regiões Sul e Sudeste. Em Santa Catarina, por exemplo,

O salário também varia conforma a cor do trabalhador, evidenciando a discriminação racial que assola o país. Em 2003, enquanto o trabalhador branco com carteira assinada recebia R$ 890, os negros e pardos ganhavam R$ 536, em média. Além disso, no ano da pesquisa somente 2,2% dos negros e pardos conseguiram alcançar a posição de emprega-

dores, contra 5,8% dos brancos. Na questão trabalho infantil, os dados são alarmantes. De acordo com IBGE, cerca de 1,3 milhão de crianças de 5 a 13 anos estavam no mercado de trabalho, em todo o país, exercendo, principalmente, atividades agrícolas. O número equivale a aproximadamente à população do Estado do Tocantins, sendo que a pior situação é registrada na Paraíba. Além disso, 38% daquelas crianças e adolescentes não recebiam remuneração e, as que eram pagas, eram responsáveis, em média, por 16,8% do rendimento mensal de suas famílias. No Amazonas, o quadro era ainda pior: elas chegavam a responder por 42% do rendimento. Vale lembrar que a Constituição Federal proíbe qualquer tipo de trabalho para menores de 14 anos.

EDUCAÇÃO “Essa é a expressão do traço criminoso do nosso capitalismo. Há trabalho infantil em vários países da Ásia, Europa, Estado Unidos, o que mostra que o Brasil não é o único. Mas o caso brasileiro é assustador porque entra e sai governo, mas a tendência de precarização se acen-

tua com relação às classes trabalhadoras”, diz Martins. Mercado de trabalho, salário, desigualdades de cor e gênero. Todos esses assuntos têm relação com o nível educacional da população. Segundo o IBGE, de 1993 a 2003, a taxa de analfabetismo no país caiu quase 30%. No ano da pesquisa, cerca de 11,6% dos brasileiros com mais de 15 anos eram analfabetos. Contabilizados os analfabetos funcionais, ou seja, pessoas com menos de três anos de estudo, a porcentagem é de mais 24,8%. Os contrates entre meio urbano rural são evidentes no estudo. Enquanto nas cidades o índice de população analfabeta é de 8,9%, no campo o percentual sobe para 27,2%. E é desproporcional o nível educacional de acordo com a cor do brasileiro. A taxa de analfabetismo entre negros e pardos em 2003 era mais que o dobro da dos brancos. Já a média de estudo dos brancos ficou em 7,3 anos; a dos pretos em 5,6; a dos pardos em 5,4. Além disso, o brasileiro está atrasado na escola. Em 2003, 20,4% dos estudantes de 18 a 24 anos ainda cursavam o ensino fundamental, e quase 42% o ensino médio.

SOFTWARE LIVRE

Brasil quer compartilhamento da informação Luís Brasilino da Redação Para enfrentar a expansão da propriedade intelectual, o Brasil lidera um grupo de países em desenvolvimento, numa luta contra os Estados Unidos, pelo compartilhamento do conhecimento. “Queremos mostrar que criar condições para todos, não apenas para os desenvolvidos, é o melhor caminho para a democracia, a estabilidade entre os países e as relações entre os povos”, afirma Sérgio Amadeu, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), autarquia vinculada à Casa Civil da Presidência da República. A disputa é no campo da sociedade da informação e acontece em torno de três debates principais: o direito de propriedade intelectual, a governança da internet e a criação de um fundo de solidariedade digital. No primeiro, os países em desenvolvimento defendem uma legislação para favorecer a troca de informações e a produção independente do conhecimento, enquanto enfrentam a resistência dos que querem rígidas leis de patente para proteger a propriedade intelectual e, conseqüentemente, as empresas que a detém. No segundo ponto, o grupo do Brasil quer a criação de um órgão internacional para controlar os nomes e números da internet – atualmente, isso é feito por uma organização não-governamental vinculada

Marcello Casal Jr. ABR

Trapalhada verbal Estava na cara que o pacto FHC–Lula para esconder a sujeira debaixo do tapete, mais dia menos dia, perderia a validade diante das ambições pessoais e das disputas eleitorais. Quem sai perdendo agora é Lula, seu governo e o PT, que silenciaram sobre as gatunagens do governo anterior. A lição será aprendida?

Evaristo Sá

Pesquisa do IBGE aponta queda no rendimento do trabalhor e muito trabalho infantil

Hamilton Octavio de Souza

No Brasil, 8,6% das pessoas têm internet, sendo que 55% usam software ilegal

ao governo dos Estados Unidos. Já o fundo de solidariedade digital é uma proposta brasileira, para universalizar o acesso às tecnologias da informação, algo que os estadunidenses argumentam que deva ser feito pelo mercado.

QUESTÃO ESTRATÉGICA “A longo prazo, a disputa é por independência e autonomia tecnológica”, diz Marcelo D’Elia Branco, articulador do Projeto Software Livre Brasil. Segundo Amadeu, o compartilhamento do conhecimento tecnológico beneficia países em desenvolvimento porque essas nações têm inteligência local capaz de transformar o conhecimento em bens informacionais e soluções tecnológicas. “Ao aumentar sua autonomia tecnológica e o potencial de gerar novos

conhecimentos, acaba-se gerando riqueza e redistribuindo a produção”, raciocina o presidente do ITI. Para ele, os Estados Unidos querem impor um modelo que faz o contrário disso. “O curioso é que usam um discurso dizendo ser necessário levar inclusão digital para todos, mas não são a favor da criação de um fundo de solidariedade digital”, retrata Amadeu. Ele explica que os estadunidenses não são a favor porque querem tratar a inclusão digital como uma benevolência dos seus grupos econômicos, que concederiam algumas máquinas e tecnologias para países pobres. Amadeu sustenta que, ao fazer isso, essas companhias aprisionam os países a um determinado produto: o seu. “Nossa proposta é a criação de um fundo que leve não só o computador

e a conexão, mas também a capacitação para as comunidades desses países entenderem e dominarem as tecnologias que irão utilizar. Essa é a guerra”, define. D’Elia Branco considera que, além desse objetivo estratégico, as questões econômicas não podem ser desprezadas. Segundo ele, no Brasil, 8,6% das pessoas possuem internet em casa. Dessas, 55% usam software ilegal. Ou seja, o mercado consumidor de software legal corresponde a pouco menos de 4% da população brasileira. Mesmo assim, o país envia, anualmente, 1,27 bilhão de dólares aos Estados Unidos para manter esses usuários. Isto significa que, universalizando o acesso por meio de software proprietário, deveria-se pagar às empresas estadunidenses 25 vezes o que é gasto hoje. Sociedade da informação — O mundo criado por meio da utilização de tecnologias de informação e comunicação envolvendo aquisição, armazenamento, processamento e distribuição do conhecimento pelos meios eletrônicos, como o rádio, a televisão, o telefone e o computador. Governança da internet — Gestão dos sistemas que permitem a integração entre os computadores conectados à internet. Software livre — É um programa de computador que pode ser executado, copiado, distribuído, modificado e aperfeiçoado livremente. Software proprietário — Programa de computador pertencente a alguma pessoa ou empresa que pode cobrar quem quiser utilizá-lo.


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De 3 a 9 de março de 2005

NACIONAL RESULTADOS DOS BANCOS

Ano após ano, lucros astronômicos Em 2004, não foi diferente e o Itaú, além de superar seu próprio desempenho em 2003, bateu um recorde histórico

O

crescimento do setor bancário, há décadas, segue de forma ininterrupta, sem ser afetado nem mesmo pelos períodos de crise econômica no país. Atrás de explicações para o desempenho ímpar do sistema financeiro, foram ouvidos economistas, pesquisadores, diretores de bancos, consultores, membros do governo e usuários dos serviços bancários. Com a divulgação dos balanços dos principais bancos que atuam no Brasil, ficou claro que 2004 foi mais um ano de crescimento excepcional. O lucro líquido do setor aumentou 22,4% em relação a 2003, somando R$ 13,74 bilhões, segundo levantamento da consultoria Austin Rating, feito com uma amostra de 27 bancos que publicaram seus resultados. Apenas seis entre os 27 bancos não obtiveram crescimento. O Itaú, no dia 22 de fevereiro, informou ter obtido, em 2004, o maior lucro líquido da história dos bancos de capital aberto – R$ 3,776 bilhões, mais de 19,8% do que em 2003. O do Bradesco atingiu R$ 3,06 bilhões (+32,7%); o do Banco do Brasil, R$ 3,024 bilhões (+26%); o do Unibanco, R$ 1,2 bilhão (+21,9%). Analistas e as próprias instituições apontam três principais razões para repetir, em 2004, o aumento de lucros: os ganhos com juros na concessão de créditos, o valor cobrado pelos serviços, e os títulos públicos do governo brasileiro, que pagam aos investidores

tos em títulos do governo (34%), cobrança de tarifas (14%) e outras fontes diversas (8%). Ele diz, no entanto, que, quando o governo começa a subir os juros básicos de seus títulos – como ocorre desde setembro de 2004 – os bancos deixam de emprestar dinheiro e passam a comprar mais títulos públicos, que têm menor risco de inadimplência. Segundo o vice-presidente da Anefac, só os ganhos com tarifas “já pagariam todas as despesas com pessoal de alguns bancos. Hoje a receita de tarifas representa 105% desses gastos – paga tudo, e ainda sobra”. A maior parte das taxas sobre serviços existentes começaram a ser cobradas em 1996, quando o governo adotou várias medidas para acabar com a crise do setor. “Hoje, temos cerca de 40 tarifas que antes não eram cobradas”, completa.

Antônio Milena/ABr

André Deak e Priscila Rangel de Brasília (DF)

OPORTUNIDADE Apesar da crise que o brasileiro enfrenta, os bancos se beneficiam das altas taxas de juros, uma das maiores do mundo

juros dos mais altos do mundo, atualmente em 18,75% ao ano.

empresas como a Ambev (R$ 1,4 bilhão), Klabin (R$ 1,01 bilhão), Siderúrgica de Tubarão (R$ 910 milhões), Embraer (R$ 588 milhões) e Sadia (R$ 447 milhões), entre muitas outras. O gerente executivo de relações com o investidor do Banco do Brasil (BB), Marco Geovanne Tobias, avalia o desempenho da instituição: “O resultado é histórico, em termos nominais e em termos de rentabilidade”. Segundo ele, a maior parte dos ganhos deve-se ao crédito, que gerou 65% das receitas, principalmente o crediário e o microcrédito.

AH, OS JUROS! O secretário de acompanhamento econômico do Ministério da Fazenda, Elcio Tokeshi, reconhece que “apesar de empresas de outros setores também apresentarem resultados muito bons, realmente (os lucros do setor bancário) estão num nível bastante alto. Historicamente são altos”. Mesmo em 2003, de acordo com pesquisa da Economática, os lucros líquidos dos maiores bancos já superavam os de grandes

Ganhos continuam, mesmo em épocas de crise O LUCRO DOS BANCOS Banco

1994

1996

1998

2000

2002

2004

Itaú

703

968

1.345

2.438

2.598

3.776

Bradesco

978

1.348

1.548

2.305

2.211

3.060

Unibanco

264

466

694

979

1.104

1.283

Sudameris

87

93

69

-379

241

303

-49

-45

-1.165

111

164

303

43

42

-233

-85

-1.030

238

-12.308

1.330

1.290

2.216

Banrisul Besc Banco do Brasil

33,1 3.000

Fonte: Balanço dos Bancos

Michèlle Canes de Brasília, (DF) Observando o histórico dos lucros obtidos pelas instituições financeiras, nota-se que, até nos anos 1980, marcados por dificuldades econômicas, os bancos brasileiros eram lucrativos. Mesmo com a moeda nacional sofrendo forte desvalorização na época da hiperinflação, os agentes financeiros encontraram no floating uma forma de driblar os prejuízos e alcançar grandes resultados. (O floating era uma operação na qual os depósitos feitos pelos clientes não caíam nas suas contas de imediato, e eram aplicados pelos bancos nos mercados especulativos.) Tharcisio de Souza Santos, professor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), conta que o dinheiro ficava retido por três dias: “Durante esse período, o banco aplicava aqueles recursos como se fossem dele. Isso, ao lado da altíssima inflação que tínhamos há uns dez anos, dava resultados espetaculares para os bancos”. Em outras palavras, o depósito do correntista ficava indisponível para movimentação por 72 horas,

enquanto o banco aplicava os recursos no overnight, que rendia juros da noite para o dia, para driblar os efeitos de uma hiperinflação diária de até 3%, mais de 1000% ao ano. “Qualquer sobra de caixa era aplicada em títulos públicos”, explica Santos.

ESPECULAÇÃO Em 1994, o Plano Real derruba e estabiliza a alta de preços. Segundo o professor da Faap, com a queda da inflação de 50% para menos de 1% ao mês, o overnight chegou ao fim, e o lucro dos bancos despencou de 9 bilhões de dólares para 450 milhões de dólares em um ano. Isto afetou o sistema financeiro, levando o Banco Central a criar o Programa de Estímulo à Reestruturação do Sistema Financeiro – o Proer. Nas operações de salvamento, os bancos privados receberam uma assistência de cerca de 21 bilhões de dólares (3,8% do PIB, na época), de acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em 1995, o governo patrocinou a fusão de bancos “saudáveis” e a compra de instituições que não estavam em boa situação.

O Proer também favoreceu a compra de bancos nacionais por estrangeiros. Santos, da Faap, informa que, até 1997, 45 bancos estrangeiros se instalaram no país. Em 2002, eram 65. Ele acrescenta que, além de atrair capital estrangeiro, o governo pretendia que a presença de estrangeiros aumentasse a concorrência, diminuindo o spread que, após os anos 80, passou a ser uma das principais fontes de lucro dos bancos, e causa dos altos juros cobrados na concessão de crédito. (O spread é a diferença entre os juros que os bancos pagam ao captar dinheiro, e os juros que cobram nos empréstimos que concedem.) Em 1996, o Banco Central libera as tarifas cobradas nos serviços, e cria mais uma fonte de receita para o setor. Miguel de Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), observa que, hoje, há cerca de 40 tarifas que não existiam antes. “Só com a renda das tarifas, os bancos cobrem 105% dos gastos com pessoal. Ou seja, pagam todos os salários e ainda sobra”, afirma. (Da Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)

Assim como outros bancos, o BB fez um esforço para ampliar seu número de correntistas – somente com o Banco Popular gerou um milhão de novos clientes –, aumentando também a arrecadação com tarifas.

TÍTULOS & TARIFAS Miguel de Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), aponta que, até o primeiro semestre de 2004, a geração de receitas dos dez maiores bancos estavam divididas em crédito (44%), investimen-

Não se pode acusar o setor bancário porque seus lucros são altos, afirma Elcio Tokeshi, do Ministério da Fazenda. “Não estão fazendo nada de ilegal. Estão aproveitando uma oportunidade que o mercado brasileiro oferece. Estando a taxa de juros num patamar alto, isso também facilita esses lucros. Além disso, existe a questão das tarifas: estão deslocando seus lucros para tarifas também”. Para Tokeshi, historicamente, o Brasil teve tarifas bancárias baixas mas, numa economia estável, elas são altas – e são uma parcela importante da receita dos bancos no mundo todo. “No momento, ainda não estamos no nível de tarifas de outros países”, diz. (Da Agência Brasil, www.radiobras,gov.br)

É o melhor negócio do mundo, não dá prejuízo Iara Falcão e André Deak de Brasília (DF) “A melhor coisa do mundo é um banco bem administrado; a segunda, um banco mais ou menos administrado; e a terceira melhor coisa do mundo é um banco mal administrado. Alguns até quebraram, mas foi por desvio de dinheiro, porque banco não dá prejuízo”. Como outros, é o que também diz Miguel de Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). Não bastasse isso, no Brasil, há total liberdade para os bancos decidirem quanto irão cobrar sobre cada tarifa, e que tarifas vão criar. Segundo Fernando Excel, da Economática, no Bradesco, só o ganho com serviços e tarifas foi de R$ 5,8 bilhões. “Em algumas grandes instituições, a receita com tarifas é superior à própria folha de pagamento dos salários”, afirma Roberto Piscitelli, professor de Ciências Contábeis da Universidade de Brasília. Pesquisa da ABM Consulting com seis grandes bancos confirma: as receitas com serviços bancários, incluindo tarifas, passaram de R$ 4,8 bilhões, em 1995, para R$ 19,2 bilhões, até setembro de 2004, e já correspondem a 113,4% do valor gasto com os salários dos bancários.

TAXA EXORBITANTE Gustavo Pedreira, analista financeiro da Economática, ressalta que se trata de um fenômeno mundial. No Brasil, a participação serviços e tarifas nos lucros ainda é menor do que a encontrada em países europeus e nos Estados Unidos. Há mais além das tarifas. Segundo estudo da Anefac, os ganhos com tesouraria chegam a 36% do total dos lucros. Entenda-se por

“tesouraria” a receita obtida na compra de títulos do governo federal, que pagam as maiores taxas de juros do mundo ao investidor (18,75%, versus 2,5% nos EUA). De acordo com o vice-presidente da Anefac, entretanto, a maior fonte de lucros está na concessão de créditos. Os juros bancários cobrados nos empréstimos responderam por 43% do faturamento dos bancos, até o primeiro semestre de 2004. Aqui, os ganhos advêm, sobretudo, do alto spread cobrado. (O spread é a diferença entre os juros que os bancos pagam na captação do dinheiro, e os juros que cobram sobre os empréstimos que fazem a pessoas físicas e jurídicas). Enquanto pagam juros baixos, cobram juros altos, que chegam a 160,63%, ao ano, no caso do cheque especial, segundo a Anefac. Parte da diferença entre as taxas é apropriada pelos bancos e gera os lucros recordes.

CRÉDITO CARO “Todo banco vive de spread”, afirma o diretor-presidente da Economática, Fernando Excel. No país, o spread está em torno de 27%, segundo dados de 2004 do Banco Central. É dos maiores do mundo: quase duas vezes maior que o da Argentina (15,4%), três vezes o da Rússia (9,1%) e nove vezes o dos Estados Unidos (3%), segundo informações do Instituto de Estudo para o Desenvolvimento Industrial, baseadas em dados de 2003 do Fundo Monetário Internacional. Uma pesquisa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) mostra que os brasileiros pagam R$ 73 bilhões, por ano, em spread. Para se ter uma idéia, aponta Fernando Excel, o Bradesco ganhou, em 2004, R$ 11,1 bilhões em spread – quase o dobro do que recebeu com tarifas. (Da Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)


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De 3 a 9 de março de 2005

NACIONAL MULHER NA MÍDIA

O estereótipo do desejo masculino

Brasil de Fato - Como a mulher é retratada na mídia hoje? Maria Rita Kehl – Acho que há uma diversidade muito grande da imagem da mulher. Na dramaturgia, as mulheres são mostradas de muitas maneiras: batalhadoras, dondocas, bonitas, velhas, intelectuais. Na pergunta você usou o termo “a mulher” e eu pensei: “as mulheres” porque elas são muito diferentes, não há “a mulher”. Na publicidade, também há diversidade, mas parece que há uma imagem que fica, com razão, como se fosse “a mulher”. E esta, que supera todas outras, seria a modelo, com tudo que pode vir dentro desse pacote: beleza, sensualidade, juventude, saúde, corpo perfeito, imagem de alguém que tem dinheiro para se cuidar, ou seja, de classe média. Talvez esta imagem de mulher, que se apresenta como a mulher do desejo dos homens, ultrapasse todas as outras imagens veiculadas pela mídia. Então, quando pensamos em mulher na mídia, pensamos em uma “gostosa meio pelada” e esquecemos as outras.

Fazer do corpo do outro o equivalente a uma mercadoria é contra todos nossos ideais de amor, de liberdade BF – Por que aquela é a imagem escolhida pela publicidade? Maria Rita – Aqui, é mais fácil de entender. É como se ela fosse o equivalente simbólico de todas as mercadorias. Porque às vezes você não precisa daquilo, mas tem que querer comprar. Todas as mercadorias acabam sendo associadas ao desejo. Não é por necessidade que você compra, mas por desejo. Por necessidade você compraria qualquer calçado, por desejo, você quer um Nike, pois vem com uma simbologia. A imagem que se associa a esse desejo, a mais óbvia, é a da mulher, que é objeto de desejo dos homens. O que já mostra que a publicidade se dirige a uma suposta hegemonia masculina e as mulheres estão aí para agregar valor aos produtos. O que não é verdade, porque não só a população brasileira tem mais mulheres que homens, como há produtos específicos para elas. BF – E quais são as conseqüências da escolha e aceitação desse padrão? Maria Rita – Diante da mulher bonita e sensual, as demais que aparecem na publicidade são inferiores a esse ideal. Como no anúncio recente de cerveja, da Nova Schin. São dois rapazes que querem tomar cerveja, são perseguidos por dezenas de velhinhas, e fogem como quem

Publicidade rejeita o mundo real das mulheres e sugere valores machistas

Marcha Mundial de Mulheres propõe alternativas ao vale-tudo do capitalismo

diz que não quer nada de velho, muito menos mulher velha; quando, finalmente, eles chegam no bar, um olha pro outro e acha que para ficar perfeito, o amigo tem que virar uma mulher jovem. A multidão de velhas está representada na publicidade como o dejeto, como aquilo que ninguém quer, em contraposição com a mulher jovem, que deve ser associada a uma marca de cerveja. BF – Até que ponto a mídia é responsável pela imagem estereotipada da mulher? As mulheres também são responsáveis? Maria Rita – Essa pergunta é ampla e toca na seguinte questão: qual é a responsabilidade da mídia e qual é a nossa. Claro que, no limite, todos nós somos responsáveis, mulheres e homens, já que participamos desse sistema de geração de valores, associação da mercadoria ao corpo humano, ao desejo. Essas coisas não teriam que necessariamente estar juntas. Seu desejo sexual ou sua fantasia não teria que estar associada a um objeto. Mas a publicidade se apropria de clichês que estão na sociedade. Não é por causa da publicidade que a sociedade é machista, mas a publicidade participa e quando se aproveita disso, aumenta a bola de neve. Ela reforça. Vamos imaginar que, em uma sociedade machista, toda a publicidade resolvesse contrariar esse pressuposto e investir em outras imagens. Talvez houvesse um momento de crise, quando ela não seria bem aceita, mas contribuiria para questionar a posição de objeto sexual das mulheres, o machismo dos homens. Na realidade, como o mais importante é vender, a publicidade vai usar o que está pronto e consolidado no tecido social. BF – E como ela usa esses artifícios? Maria Rita – Mobilizando nossos desejos mais profundos, que, não à toa, estão reprimidos. São desejos socialmente proibidos e malvistos. É como se a publicidade dissesse, “não tenha vergonha daquilo que em você parece feio e vergonhoso, não tenha medo de ser invejoso, tarado, libidinoso,

guloso, competitivo, agressivo”. Para vender um carro, a publicidade se apóia na vontade que teríamos de causar inveja aos outros. Então, ela aposta em todos esses sentimentos que a moral vigente considera feios. Aquilo que está reprimido, quando você bota fogo tem uma força muito grande, é a lógica da panela de pressão. Infelizmente, a publicidade da sociedade de consumo vai naquilo que a gente tem de pior. Fazer do corpo do outro o equivalente de uma mercadoria é contra todos nossos ideais de amor, boa relação homem-mulher, de liberdade. Nossos ideais se enfraquecem diante da preponderância dessas imagens. E claro que nós nos identificamos com elas, homens e mulheres. BF – Qual é a reação daquelas que absorvem essas imagens e as têm como modelo? Maria Rita – Elas estão aí como um espelho para a gente se identificar. E se há uma abundância de mulheres lindas sinalizando “seja assim, pois se não for, você é aquele lixo”, as pessoas vão querer se identificar com as lindas. Isso traz muito sofrimento, e uma espécie de alienação. Você perde o valor de quem é, do que é o valor de uma relação. Eu vejo hoje as pessoas muito confusas nas relações amorosas, muito amedrontadas, como se fosse uma grande concorrência, sempre vai ter a mais gostosa que vai levar seu parceiro. As pessoas estão perdendo a dimensão do que é a troca amorosa e do que é desejo sexual.

Sem tirar a responsabilidade da mídia e da publicidade, provavelmente, o que teria que mudar é o modelo econômico BF – Qual a responsabilidade das mulheres que muitas vezes se beneficiam e ganham dinheiro com esse estereótipo? Maria Rita – Quero tomar cui-

dado para não ser moralista. Em princípio, cada mulher faz com seu corpo e com sua imagem o que quiser. Não condeno isso. Na psicanálise, o erotismo e as possibilidades são de cada um. Mas isso não quer dizer que você não tenha responsabilidade sobre os efeitos disso. Se as mulheres aceitam entrar nesse jogo, de valer a imagem que pode vender, então podemos dizer que as mulheres são co-responsáveis, e os homens, que compram, também. Mas essa responsabilidade faz parte de uma parcela da nossa alienação, não é a pura e simples, para examinar suas conseqüências. Há mil discursos justificando por que ganhar dinheiro dessa forma. É um caminho em que as pessoas entram sem pensar, e isso é alienação, e causa sofrimento às mulheres. Elas ficam inseguras com o próprio corpo se não corresponde ao padrão, e se submetem a intervenções plásticas e acabam se deformando. Elas nunca estão satisfeitas com sua perfeição, porque a perfeição da imagem é muito maior do que a do corpo verdadeiro. Outra conseqüência são as meninas se oferecendo como objetos no mercado, e os meninos muitos inseguros na rivalidade entre eles e aumentando de maneira violenta a concorrência masculina. Hoje, chamar a namorada do outro de gostosa é caso de vida ou morte. Mostra como as pessoas estão fragilizadas e inseguras. Arquivo Pessoal

N

a mídia, a mulher é apresentada como o objeto do desejo dos homens, “como se fosse o equivalente simbólico a todas as mercadorias”, afirma a psicanalista Maria Rita Kehl. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela diz que a publicidade se apropria de clichês que estão na sociedade. “Não é por causa dela que a sociedade é machista, mas ela se aproveita disso”. Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, 8 de março, a psicanalista afirma que homens e mulheres são responsáveis pela imagem estereotipada da mulher, “já que participamos desse sistema de geração de valores, de associação do corpo humano a uma mercadoria.”

Paulo Pereira Lima

Dafne Melo e Tatiana Merlino da Redação

Anderson Barbosa

Nos meios de comunicação, a imagem feminina é de “uma gostosa meio pelada”, diz a psicanalista Maria Rita Kehl

Quem é Psicanalista, ensaísta e poeta, Maria Rita Kehl é autora dos livros de poesia Imprevisão do tempo, O amor é uma droga pesada, Processos Primários e o livro de ensaios A mínima diferença – o masculino e o feminino na cultura. Doutora em psicanálise pelo Departamento de Psicologia Clínica da PUC de São Paulo, desde 1974 publica artigos na imprensa sobre cultura, comportamento, literatura, cinema, televisão e psicanálise.

BF – Como a mídia deveria pautar, eticamente, o olhar sobre a mulher e sobre o sexo? Maria Rita – É muito difícil para quem faz a crítica, como eu, querer, ao mesmo tempo, fazer a regra. Se houver em algum momento uma tomada de consciência dos publicitários e diretores

de programação de televisão, se percebessem a responsabilidade que eles têm no aumento da violência social no Brasil, teriam que mudar conjuntamente. Se um mudar, sai perdendo automaticamente, pois vai perder audiência. Sou contra a censura, mas a favor de instâncias em que o governo possa colocar limites em alguns abusos. Isso é constitucional. A lógica está errada. Mas se essa é a lógica da sociedade de mercado, então teríamos que discutir esta lógica em que vale tudo para vender mais.

Estamos em uma situação de selvageria econômica e a competição entre os meios de comunicação privados são sintomas desse vale-tudo que se tornou nosso modelo econômico BF – Então, o que fazer? Maria Rita – Tenho a impressão que embora eu aponte permanentemente a responsabilidade da comunicação e da publicidade, a mudança teria que ser no modelo econômico, ou seja, um modelo que não fosse o neoliberal, de competitividade, de sociedade de mercado. Estamos em uma situação de selvageria econômica e os meios de comunicação, que também são de capital privado e competem no mercado, são só o aspecto mais gritante, são sintomas desse valetudo que se torna o nosso modelo econômico. Há uma relação de causa e efeito aí, que não é só pedir para os publicitários serem bonzinhos. BF – Quais as conseqüências práticas da erotização desregrada? Maria Rita – O apelo do erotismo também se esgota. Toda imagem que é superexposta perde força. Talvez haja um momento em que, por necessidade criativa, os publicitários tenham que pensar em outras coisas. Esse apelo vai se esgotar. Na minha clínica, o interesse sexual dos jovens de 20 a 25 anos é muito menor do que era há 20 anos. A necessidade de falar sobre isso na análise diminuiu. Hoje está todo mundo saturado de imagem de sexo. Tem uma lei importante, do funcionamento do inconsciente. Quando uma coisa que era proibida se torna obrigatória, é quase a mesma coisa que reprimir. A partir do momento em que ter bom desempenho sexual vira uma obrigação – pois a publicidade pede isso o tempo todo – em um primeiro momento isso tem o efeito de desrepressão e logo ganha o efeito repressivo. A obrigação é inibidora.


Ano 3 • número 105 • De 3 a 9 de março de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO URUGUAI

Novo governo reacende esperança popular Marta Valverde de Montevidéu (Uruguai)

N

o dia 1°, o Uruguai começou a “remar em direção à luz que está do outro lado do rio”, como diz a canção do uruguaio Jorge Drexler – ganhadora do Oscar 2005 como trilha sonora do filme Diários de Motocicleta, do diretor brasileiro Walter Salles. É possível afirmar que praticamente todos os uruguaios crêem, com maior ou menor confiança, que uma nova luz pode iluminar mudanças substanciais. Desde 31 de outubro do ano passado, quando a Frente Ampla que assumiu o novo governo ganhou em primeiro turno as eleições nacionais com pouco mais de 51% dos votos, uma espécie de esperança contagiosa e coletiva foi crescendo mesmo nos que não votaram nela. Prova disso foram os números das pesquisas que deram, nos dias seguintes, porcentagens muito superiores de aprovação à Frente do que as registradas na votação. As mais de cem delegações internacionais que acompanharam o 1° de março – destacando-se a brasileira, encabeçada por Luiz Inácio Lula da Silva; a venezuelana, com Hugo Chávez; a argentina, com Nestor Kirchner; e a delegação cubana – confirmaram a expectativa e o apoio internacional ao novo governo, cujas primeiras medidas

Marcello Casal Jr. /ABr

Proclamado presidente da República, dia 1°, Tabaré Vázquez cria plano de emergência e ataca problemas sociais

Morador de rua de Montevidéu espera por mudanças prometidas por Vázquez

diplomáticas incluíram o restabelecimento das relações com Cuba. Finalmente, depois de 34 anos da fundação da coalizão de parti-

dos e grupos de esquerda Frente Ampla, virou-se uma página do livro que durante 175 anos foi escrito, alternadamente, por governos

dos dois partidos tradicionais: o Partido Nacional, mais conhecido como Partido Branco; e o Partido Colorado. Sem esquecermos a feroz ditadura militar, que durante mais de uma década deixou milhares de mortos, torturados, exilados e desaparecidos. O Uruguai também foi alvo do Plano Condor, operação liderada pelos Estados Unidos em várias nações da América do Sul. A ditadura também cumpriu o ignominioso papel de abrir as portas do país para as fórmulas neoliberais que, uma vez instaurada novamente a democracia, os governos se encarregaram de aplicar. A globalização e a unipolaridade do imperialismo estadunidense convertendo o mundo em um tabuleiro de jogos bélicos e mercantis ajudaram esses governos a deixar em ruínas o país cujos maiores recursos são sua gente e sua esperança. Exatamente as pessoas e a esperança serão a base fundamental das transformações de Tabaré Vázquez e sua equipe. Essas mudanças apontam para um pragmatismo que desde já parece um dos destaques do novo governo. Não se trata de começar com grandes transformações, como por exemplo de ordem legal, que não dêem respostas imediatas às necessidades básicas da população. Foi criado um novo Ministério de Desenvolvimento Social e Par-

ticipação Cidadã, que aplicará um plano de emergência. Esse plano, que contempla como necessidade básica a alimentação dos mais carentes, combina, como diz o próprio nome, com o desenvolvimento social, o que significa a criação de empregos e a imprescindível participação popular. Nas indicações de autoridades e funcionários para atender desde o primeiro dia às demandas de emergência social, assim como aos problemas concretos dos trabalhadores, produtores rurais, industriais, e os diferentes setores sociais, Vázquez seguiu três princípios: idoneidade, honestidade e renovação. Não deu prioridade para experiências políticas partidárias. Para citar apenas um exemplo, à frente do Instituto Nacional de Alimentação está o sacerdote Uberfil Monzón. Neste 1° de março, nós uruguaios estivemos em festa. E começamos a remar em direção à luz do outro lado do rio. Depois de uma longa luta que continua de outra maneira, estamos vivendo, como disse o ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca, o tupamaro José Pepe Mujica, momentos históricos que supera, até o realismo mágico de uma possível novela do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Mas o melhor de tudo é que não se trata de ficção.

VENEZUELA

Há 16 anos, a capital venezuelana foi palco de uma histórica rebelião popular contra as políticas neoliberais implementadas em toda a América Latina. Conhecida como Caracazo, a insurreição foi fruto de um processo de concentração de renda, de expoliação popular e da ditadura do presidente Carlos Andrés Perez. Ao mesmo tempo, para muitos, marcou também o início da trajetória de Hugo Chávez rumo à presidência, dez anos depois. No dia 16 de fevereiro de 1989, o então presidente Perez apresentou um ajuste econômico para assegurar o empréstimo de 4,5 bilhões de dólares, concedido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). A medida se traduziu em privatizações de empresas estatais, liberação da taxa cambiária, aumento de 30% em serviços básicos, redução dos gastos públicos, arrocho salarial e acréscimo de 100% nos preços do combustível. O valor da cesta básica passou a subir diariamente e começaram a faltar os itens de primeira necessidade. O estopim da crise foi o aumento de 100% nas tarifas de transporte público, ao mesmo tempo em que os trabalhadores desse setor deflagravam uma greve. Na manhã do dia 27 de fevereiro, as pessoas se inteiravam do que estava ocorrendo nos pontos de ônibus, que estavam lotados porque não havia transporte. “Então começaram a se reunir e tomar as ruas”, recorda o comerciante Rafael Nieves, morador de Caricuao, um dos bairros onde teve início a rebelião.

REPRESSÃO ENTRA EM CENA Lojas e supermercados foram saqueados. Um documentário produzido por Lilian Blaser mostra pessoas saindo de açougues com pedaços de carne; outras, levavam geladeiras e eletrodomésticos. “Essa explosão veio desde a luta pela independência, quando surgiu a divisão de classes, com a conquista de privilégios. Perez canalizou um

Ortega é preso em Caracas A polícia venezuelana deteve, na madrugada do dia 28 de fevereiro, o presidente da Central de Trabalhadores da Venezuela (CTV), Carlos Ortega, foragido desde a greve petroleira, entre dezembro de 2002 e fevereiro do ano seguinte. Foi essa greve que quase levou à bancarrota a economia do país, provocando uma instabilidade que culminou na fracassada tentativa de golpe de Estado, em 11 de abril de 2002.

Ortega foi capturado em um cassino em Caracas. Portava uma cédula de identidade falsa, com nome de Manuel Mendonza Herrera. O presidente da CTV responde aos processos de rebelião civil, traição à pátria e delinqüência. “Exilado” na Costa Rica entre março de 2003 e agosto de 2004, regressou à Venezuela, segundo seus familiares, às vésperas do referendo que ratificou o mandato do presidente Hugo Chávez. (CJ)

ARGENTINA

Credores aceitam proposta do governo Adam Thomson de Buenos Aires (Argentina)

Levante popular de 16 anos atrás representa o começo da revolução bolivariana

problema de séculos”, analisa o professor secundarista Pedro Estevez. Decidido a “restabelecer a ordem” a qualquer custo, Perez suspendeu os direitos constitucionais e colocou as Forcas Armadas na rua. Na madrugada do dia 28, entram em ação oito mil soldados, sob o comando de oficiais formados na Escola das Américas. Moradores dos bairros populares de Caracas contam que os soldados invadiam as casas e atiravam. “Um soldado apontou a arma para minha cabeça. Supliquei para que não me matasse”, recorda o carpinteiro Wilfredo Centeno, de 42 anos. Amigos de Centeno, morador do bairro popular de Petare, não tiveram a mesma sorte. Três foram mortos e um desapareceu. A contabilidade oficial do governo da época foi de 300 mortos. Hoje, o Estado estima que

devem ter sido assassinadas mais de três mil pessoas. “Esse foi o começo da revolução que hoje Chávez lidera. A partir do Caracazo, passamos a ver as coisas com mais clareza”, explica Wilfredo Centeno. O tenente-coronel Hugo Chávez entrou em cena em 1992, como líder de uma tentativa de sublevação militar contra Perez. A tentativa fracassou e Chávez foi preso. Porém, em 1998, venceu as eleições presidenciais. O Ministério Público afirma desconhecer o paradeiro de Pérez, condenado pelas mortes de 27 de fevereiro. A última aparição do ex-presidente ocorreu antes do referendo que ratificou o mandato de Chávez, em entrevista a uma televisão estadunidense, quando disse que Chávez deveria morrer “como um cachorro”.

A Agência de Reestruturação de Bônus Argentinos (Arba), o maior credor envolvido na reestruturação da dívida da Argentina, aceitou, de última hora, a proposta do país. A decisão, tomada dia 25 de fevereiro, quando faltavam duas horas para o final do prazo, indica que a oferta argentina de reestruturação de uma dívida recorde de 100 bilhões de dólares foi aceita pela maioria dos credores privados do país. A Arba representa principalmente investidores alemães e austríacos. Os números oficiais só deverão ser divulgados dia 3, mas quase todas as estimativas do setor privado sugerem que mais de 75% dos títulos abrangidos pelo processo de reestruturação foram aceitos. Se confirmado, esse patamar permitirá ao presidente argentino Nestor Kirchner encerrar o capítulo negro da história financeira recente da Argentina, após o país ter declarado a maior moratória do mundo, em 2001. Para alguns analistas, os valores da redução da dívida são sig-

Venpres

Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)

Jonah Gindin

Dezesseis anos da revolta popular

Kirchner vitorioso nas negociações

nificativamente maiores do que os obtidos em negociações anteriores similares, o que representaria uma vitória para o presidente argentino e para os países de mercado emergente. Um acionista afirmou: “Kirchner e sua equipe econômica serão carregados pelas ruas de Buenos Aires como heróis”. A aceitação por parte da Arba é significativa não apenas porque o grupo detém cerca de 1,2 bilhão de dólares em títulos não pagos, mas também porque há menos de um mês a agência expressou profunda preocupação com a oferta.


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AMÉRICA LATINA HAITI

Expressão máxima do neoliberalismo João Alexandre Peschanski de Ouanaminthe (Haiti)

I

magine-se a terra dos sonhos do neoliberalismo. Um lugar onde a lei que vale é a das grandes empresas, com controle sobre os códigos sociais e as forças armadas. Onde os benefícios e privilégios das corporações são ilimitados, pois são decididos por elas mesmas. Onde o Estado – nas mãos de um governo conivente – não entra, e delega aos organismos financeiros internacionais e aos donos de corporações a administração e a decisão sobre o desenvolvimento do local. Onde toda a produção, realizada por trabalhadores explorados até o osso, destina-se a abastecer as camadas mais ricas do mundo. Então, bem-vindos à cidade de Ouanaminthe, no Haiti, a expressão máxima do neoliberalismo. No município, localizado no departamento do Nordeste, vivem cerca de 60 mil pessoas. Não há estatística exata, como também não há serviços públicos básicos (saneamento, coleta de lixo, saúde, infra-estrutura), porque, desde o início de 2004, não há prefeito ou outro responsável direto pelos problemas da cidade. Contando as 11 cités (municípios periféricos) que rodeiam Ouanaminthe, estima-se que a população supere os 100 mil habitantes. As principais atividades econômicas locais são a agricultura e o comércio informal. Em uma das regiões mais férteis do Haiti, a planície de Maribahoux, planta-se banana, batata-doce, tomate, repolho, berinjela, cana-de-açúcar, milho e vários tipos de feijão. Por causa da sua proximidade com a República Dominicana, faz-se comércio e tráfico de tudo. Roupas falsificadas, cabritos, discos piratas, cocaína, produtos agrícolas, armas. Sacoleiros lotam as ruas do centro, dividindo o espaço com pequenos mercados organizados pelos camponeses da região.

João Alexandre Peschanski

Com uma zona franca, Ouanaminthe se transformou no paraíso das corporações e no pesadelo dos trabalhadores

REPÚBLICA DO HAITI Localização: América Central Capital: Porto Príncipe Idiomas: francês e crioulo (oficiais) Moeda: gourde População: 8 milhões de habitantes, 80% abaixo da linha de pobreza, 80% católicos, 95% negros

Vigias armados protegem a zona franca de Ouanaminthe, paraíso para as corporações estadunidenses no pobre Haiti

A maioria da população local não se aproxima. É a primeira zona franca do Haiti, administrada pela Companhia de Desenvolvimento Industrial (Codevi), filial da empresa dominicana Grupo M. Inaugurada em 8 de abril de 2003 pelos então presidentes do Haiti e da República Dominicana, Jean-Bertrand Aristide e Hipólito Mejía, emprega atualmente 711 trabalhadores, que produzem calças para a estadunidense Levi Strauss e devem começar a fabricar camisetas para a transnacional Sara Lee.

BENEFÍCIOS INFINITOS Para chegar à zona franca, que tem uma área de 80 hectares, é preciso atravessar uma passarela de uma dezena de metros, permanentemente sob a mira de vigias haitianos e dominicanos. Eles portam fuzis, escopetas e revólveres automáticos, que deixam bem à vista. Depois, um posto de identificação, onde um seguranca dominicano diz que recebeu ordens de não autorizar a entrada de jornalistas no local. Ele informa, ainda, que o diretor dominicano da Codevi, Luis Gil, ou outros integrantes do conselho administrativo não dão entrevistas. E abre o portão da saída.

ÁREA RESTRITA Em uma área mais afastada, a mais fértil do departamento, a paisagem é outra. Atrás de uma grade de três metros de altura, eletrificada no topo, duas enormes usinas brancas, com capacidade para dois mil operários, ocupam o campo de visão.

Na Cúpula de Monterrey, México, em 2004, Aristide apresentou um projeto para criar 18 zonas francas no Haiti. A idéia foi aplaudida pelos representantes dos Estados Unidos, e principalmente da República Dominicana, onde existem 56 zonas francas. Em território haitiano, a primeira é em Ouanaminthe, mas duas estão em construção, em Laffiteau e Drouillard. A receita é simples: empresas se instalam em uma área onde o governo as isenta do pagamento de uma série de taxas e impostos. No caso haitiano, segundo Rénald Clérismé, do Ministério das Relações Exteriores e ex-embaixador do Haiti na Organização Mundial do Comércio (OMC), os privilégios são inúmeros, de fundiários a fiscais, e são flexíveis, ou seja, podem ser aumentados dependendo de negociações entre as empresas e o governo. Diz ele: “Se as corporações reclamam, o governo dá ainda mais liberdades. O prejuízo recai sobre a população haitiana. No fim, pode-se dizer que o Haiti é um bom aluno do neoliberalismo”. Bom aluno, o Haiti ganha seus prêmios, que vão diretamente para as empresas. O Grupo M recebeu 23 milhões de dólares do Banco

Mundial (BM) para construir a zona franca. O organismo financeiro considera a expansão de áreas como a de Ouanaminthe essencial para o desenvolvimento do Haiti – e se dispõe a financiar empresas que queiram administrar zonas francas. O BM avalia um empréstimo adicional de 42 milhões de dólares para ajudar o Grupo M.

CARTA BRANCA A empresa dominicana recebeu carta branca de sucessivos governos haitianos, incluindo o atual, do presidente Boniface Alexandre e do primeiro-ministro Gérard Latortue, para administrar a zona franca do modo que lhe convier. Em entrevista concedida pela Plataforma de Organizações Haitianas de Direitos Humanos (POHDH), o responsável pela direção regional do Ministério de Questões Sociais, Alfred Wilson, afirmou ter acompanhado irregularidades na zona franca, mas não fez nada. As irregularidades sobre as quais fala vão de demissões injustificadas de operários, espancamentos de funcionários e tráfico de droga. Segundo operários da Codevi, até novembro de 2004 a repressão a manifestações dos trabalhadores era

Histórico: No final do século 18, a população de quase 500 mil escravos, liderada pelo ex-escravo Toussaint L’Ouverture, se revolta contra os franceses. Em1804, depois de uma década de lutas, o Haiti se torna a primeira república negra a conquistar sua independência. A ilha é governada por uma série de ditaduras violentas até 1990, quando o padre progressista JeanBertrand Aristide é eleito. No entanto, seu governo sofre um golpe militar em oito meses. A situação se estabiliza em 1995, quando René Préval é eleito. Aristide é reeleito com o apoio dos Estados Unidos em 2000.

feita por militares dominicanos. “A zona franca está em território haitiano. Para defender seus interesses, o Grupo M chamou o Exército da República Dominicana para reprimir os operários que exigiam melhores condicões de trabalho. Foi uma ocupação de território, já que a zona franca está no Haiti, e o governo nada fez”, relata Didier Dominique, da entidade Bataye Ouvriye (do crioulo, “Luta Operária”), que apoia o sindicato dos operários da Codevi. E acrescenta que Latortue sabia da presença de militares dominicanos em Ouanaminthe desde maio de 2004. Cúpula de Monterrey – Encontro de chefes de Estado da maioria dos países das Américas, em janeiro de 2004, onde se discutiram acordos comerciais. Em todo o continente, houve manifestações contra a reunião, considerada como um espaço de articulação do neoliberalismo.

Os trabalhadores da zona franca de Ouanaminthe, Haiti, chegam às 6h e saem às 16h30. No dia inteiro, têm 30 a 45 minutos de pausa. Como não há refeitório na área, têm que correr para almoçar nas lanchonetes que circundam a zona franca. O operário Jean-Charles Gérald acredita que trabalha 55 horas por semana, enquanto a lei haitiana estipula um máximo semanal de 48 horas. Em acordo feito com a direção da Companhia de Desenvolvimento Industrial (Codevi), ele era obrigado a produzir 900 peças por dia, sob pena de ser demitido. Pelo trabalho, que Gérald considera “excessivamente cansativo”, recebe 72 gourdes por dia, menos de dois dólares.

João Alexandre Peschanski

No paraíso das corporações, operários lutam e vencem

MANIFESTAÇÕES

A partir da inauguracao da zona franca, em 2003, os operários iniciaram as greves

Nas oficinas, comenta Tayllor Bogella, presidente do Sindicato dos Operários da Codevi em Ouanaminthe (Sokowa), os trabalhadores são vigiados por capatazes armados. “Como somos haitianos, e os vigias são dominicanos, há muito racismo. Somos maltratados e humilhados”, afirma. Para ele, a situação é ruim, mas antes era insustentável. “A melhora só veio porque lutamos”, analisa. A partir da inauguração da zona franca, em 2003, os operários

iniciaram manifestações e greves, exigindo o reconhecimento do Código do Trabalho pela Codevi e a interrupção das violências contra empregados. Formaram o sindicato. Em 1º de março de 2004, a resposta da direção da zona franca foi a demissão de 34 integrantes do sindicato. Após um mês e meio de mobilização, os trabalhadores demitidos puderam voltar ao trabalho. A luta dos empregados continuou, a sindicalização aumentou,

atingindo 400 dos 711 operários. Para acabar com as reivindicações, sem autorização do governo haitiano, a Codevi mobilizou um batalhão de soldados dominicanos, que permaneceu na zona franca por vários meses. Os militares reprimiram greves e protestos do sindicato, espancaram trabalhadores. Em 11 de junho, alegando baixa produtividade dos operários, a empresa demitiu 370 pessoas, muitas das quais integrantes do Sokowa.

Em 5 de fevereiro de 2005, após meses de mobilização dos empregados e demitidos da Codevi, a direção da zona franca e a coordenação do Sokowa se reuniram e firmaram um acordo. Para Bogella, as decisões do encontro são favoráveis aos operários, mas são ainda insuficientes. Porém, acredita, “é uma grande vitória dos trabalhadores de Ouanaminthe, em um momento em que colecionavam derrotas e repressão”. Na reunião, foi acordado o reconhecimento da liberdade sindical, de acordo com a Constituição do Haiti. No documento final, a Codevi se compromete a “não recorrer a força armada de qualquer tipo (por militares ou seguranças) em conflito de trabalho, a não ser em caso de violência no seio da empresa, seja contra alguém seja contra os bens da empresa” e a respeitar os direitos humanos de seus empregados. Bogella salienta que o acordo também permitiu a reconvocação dos demitidos, além da criação de um calendário de encontros para discutir problemas como os baixos salários.

LUTA AVANÇA A mobilização nas usinas teve seu reflexo na luta nos bairros populares. Ouanaminthe não tem prefeito, e a organização dos

serviços públicos fica a cargo da própria população. Sem polícia, a cidade está a mercê de gangues de antigos militares ou simpatizantes do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, armados por este, que geram terror na região. Para conter a violência, integrantes do Sokowa, com o apoio da entidade Batay Ouvriye, criaram comitês populares na maioria dos bairros da cidade. Em freqüentes reuniões, os moradores organizam e repartem entre si as tarefas comunitárias, principalmente a segurança. Para Didier Dominique, da Batay Ouvriye, os habitantes de Ouanaminthe começam a tomar conta do espaço urbano, e mudam o modo de pensar a política. “Em um país com forte tradição autoritária, é interessante acompanhar o povo participar abertamente de cada decisão que atinge a comunidade. Isto é reflexo da luta dos operários da Codevi”, observa. No final de 2004, os moradores realizaram uma manifestação em frente à direção regional do Ministério de Questões Sociais, para exigir investimentos na região. Como não há prefeito, querem que o dinheiro seja repassado diretamente para eles, que vão coordenar seu uso e impedir corrupção. (JAP)


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AMÉRICA LATINA HAITI

O medo toma conta de Porto Príncipe Gangues atiram a esmo em Bel Air, favela da capital, um ano após a renúncia do presidente Jean-Bertrand Aristide

“M

A população está em casa, e não pretende sair. “Não saio à noite, pois não sei o que pode acontecer. As ruas estão cheias de chimè”, explica Marc-Arthur Fils-Aimé, diretor do Instituto Cultural Karl Lévêque (ICKL). No Canapé Vert, bairro onde mora, ferragens de carros desmontados por ladrões da região ou destruídos em confrontos entre a polícia e gangues, impedem a passagem das pessoas pelas calçadas.

Kent Gilbert/AP/AE

João Alexandre Peschanski de Porto Principe (Haiti)

oradores de Bel Air não saiam às ruas.” A mensagem é repetida insistentemente pelas principais rádios de Porto Príncipe, capital haitiana. Na manhã de 28 de fevereiro, um ano após a renúncia de Jean-Bertrand Aristide à presidência do Haiti, as chimè (do crioulo, “quimeras”), gangues que ele mesmo financiou e armou, organizam uma manifestação. São uma centena de pessoas que descem as ladeiras de Bel Air, a maior favela do país. Exigem o retorno de Aristide. Ouve-se tiros. Nas ruas, só os manifestantes. A cem metros dalí, em um posto de tap tap, táxis coletivos, principal meio de transporte da população de Porto Príncipe, a comerciante Marthe Lambert resume a apreensão de todos: “Esperemos o pior”. Chegam as viaturas da Polícia Nacional do Haiti (PNH). Nos dias anteriores, em entrevistas às rádios locais, representantes da instituição avisavam às gangues: não serão permitidas manifestações das chimè. Acompanham os policiais haitianos soldados da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti. A dispersão da marcha das chimè é instantânea. De Bel Air saem disparos contra os policiais, vão a esmo, atingindo casas e os muros de uma escola.

TERROR COTIDIANO

Mulher grita com soldados brasileiros da missão da ONU em Porto Príncipe, durante protesto contra intervenção

Neste dia de confronto, o medo da população vem carregado das lembranças dos acontecimentos das últimas semanas. Em 19 de fevereiro, 481 presos fugiram da Penitenciária Nacional, em Porto Príncipe. Foram soltos, na ação supostamente realizada por traficantes de droga, diversos integrantes das chimè. De acordo com representantes do governo, a operação contou com a participação de policiais, que teriam deixado as portas do presídio abertas. Durante a fuga, não houve disparos. Nem da polícia, nem das pessoas que organizaram o resgate. Algumas horas após o incidente, políticos de várias das 120 agremiações que agitam o cenário partidário haitiano começaram a exigir a saída do primeiro-ministro Gérard Latortue. Consideram-no incapaz de governar o país.

TENSÃO GALOPANTE No dia 28 de fevereiro, o balanço de mortos é alto: as rádios falam em oito, mas sem confirmação oficial. À tarde, aos poucos, a população retoma as ruas. Policiais dizem que não há mais risco. Os tap tap voltam a circular. O motorista Jean Pierre-Louis comenta: “Hoje não fui atingido. E amanhã? E daqui uma semana?”

Em Bel Air, uma semana depois da fuga, três policiais haitianos foram mortos e dois soldados da Missão da ONU feridos, após troca de tiros com gangues. A informação é das rádios locais, que contabilizam o assassinato de oito integrantes da polícia nacional em fevereiro. No dia 26 de fevereiro, com exclusividade para o Brasil de Fato, o general brasileiro Heleno Ribeiro Pereira, responsável pela coordenação das tropas da missão internacional, declarou que a situação de Porto Príncipe está sob controle, e não apresenta mais riscos do que o Rio de Janeiro (RJ). Também afirmou que a população do Haiti recebe de braços abertos os militares estrangeiros. Não há estatísticas ou investigações confiáveis sobre a reação dos haitianos à intervenção da

missão militar da ONU em seu país. Porém, integrantes de organizações populares têm visões diferentes das do general brasileiro. “A sociedade civil organizada é radicalmente contra os soldados das Nações Unidas, considera que ocupam injustificadamente o Haiti”, salienta Chavannes Jean-Baptiste, da coordenação do Movimento de Camponeses de Papay (MPP), principal organização social do país. Ele acrescenta que, no geral, a população é crítica. Diz que as tropas não fazem nada para garantir a segurança das pessoas e que os militares estão no Haiti fazendo turismo. No dia 28 de fevereiro, como em todos os outros dias, a insegurança e a incerteza tomam conta do entardecer. A partir das 16h30, o movimento nas ruas esvaece.

A desestabilização chamada Aristide Kent Gilbert/AP/AE

France Presse

No país, o caos é institucional O governo haitiano não é eleito, e sua legitimidade é contestada diariamente por diversos setores da sociedade. O presidente Boniface Alexandre, que assumiu após a renúncia de Jean-Bertrand Aristide ao cargo, em fevereiro de 2004, foge da responsabilidade. Não executa, não opina sobre os rumos do país, não dá as caras. Gérard Latortue, o primeiro-ministro, foi imposto pela comunidade internacional — Estados Unidos, França e Organização dos Estados Americanos (OEA). Os integrantes do Conselho de Sábios, reunião de autoridades haitianas que exercem um tipo de poder moral sobre a política nacional, a quem cabia a escolha do premiê, não conheciam Latortue, que morou a maior parte de sua vida em outros países, trabalhando para organismos financeiros internacionais. “Alexandre e Latortue não tinham grandes tarefas. Tinham que consolidar minimamente as instituições haitianas, solapadas por Aristide, e garantir as eleições, previstas para outubro e novembro. São tão incompetentes que afundaram o país em um caos institucional ainda maior”, analisa a diretora do Centro de Pesquisa e de Formação Econômica e Social para o Desenvolvimento (Cresfed), a socióloga Suzy Castor, uma das principais intelectuais do país. No Haiti, as diretrizes de desenvolvimento são hoje decididas por organismos internacionais. O Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas (ONU) traçam metas para o futuro do Haiti, investem milhões de dólares em projetos que consideram importantes. Não há acompanhamento por parte do governo, e a sociedade, no escanteio, está longe das esferas decisórias.

A burguesia local, apavorada, abandona Porto Príncipe. Instala-se em condomínios residenciais fechados, vigiados por seguranças privados, na comuna de Kinscoff, nas proximidades da capital. Suas casas dominam os morros onde, no século 19, os heróis da Independência do Haiti observaram a debandada dos soldados e colonos franceses do país. Quando podem, os haitianos mais ricos mandam seus filhos para escolas e universidades no exterior, principalmente para a República Dominicana e Estados Unidos. Esperam que nunca tenham que voltar para o Haiti. A população pobre, 85% dos cerca de 8 milhões de habitantes do país, não tem para onde ir. Alguns fogem para a República Dominicana, e poucos para os Estados Unidos, países onde se rendem a subempregos. A maioria da população pobre não tem para onde correr. Fica no meio dos tiroteios entre a polícia nacional e as gangues. No final de janeiro, segundo o jornal haitiano Le Nouvelliste, em virtude de ações policiais contra as gangues armadas, iniciou-se um êxodo da Cidade de Deus, favela de Porto Príncipe. As pessoas fugiam da violência, mas não tinham para onde ir. Dormiram alguns dias nas ruas, e acabaram voltando, para o terror de sempre.

Violência cresce, sobretudo nas grandes cidades do Haiti

Para conter a violência crescente, principalmente nas grandes cidades, há apenas 3.500 mil policiais — para 8 milhões de pessoas. Encarregada de formar mais integrantes da Polícia Nacional de Haiti (PNH), a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, que ocupa o país com milhares de soldados desde junho de 2004, faz esforços pontuais, e insuficientes.

CONFUSÃO ELEITORAL Há 120 partidos inscritos no país. O sociólogo Anselme Remy, ex-presidente do Conselho Eleitoral Nacional, afirma que muitas das agremiações não têm mais do que uma ou duas pessoas. Segundo ele, há 30 partidos que parecem funcionar, dez dos quais são realmente funcionais. Na população, a multiplicidade de grupos políticos gera enorme confusão. Agremiações surgem da noite para o dia, não apresentam programas e ocupam a arena pública, pois são formadas por pessoas com influência sobre os meios de comunicação. No primeiro semestre de 2004,

foi criado o Conselho Eleitoral Provisório, com integrantes da sociedade civil, para organizar, em 2005, os escrutínios municipais (em outubro), legislativos e presidencial (em novembro). Com o aval de Latortue, a OEA criou missões especiais para gerenciar os pleitos. Técnicos estrangeiros vão escolher os locais de votação e devem controlar a fiscalização das eleições. O trabalho das missões da OEA é mantido sob sigilo absoluto, e as atividades do Conselho estão paralisadas. “É um grave ataque à soberania nacional, pois uma organização internacional prepara o pleito do Haiti, tirando do país o controle sobre os meios pelos quais escolhe seus governantes”, comenta Remy. A OEA vai financiar 41,7 dos 44 milhões de dólares que vão ser gastos nas eleições, e o governo haitiano o restante. Conclui o sociólogo: “Com tamanho investimento, é de se esperar que a OEA queira um governante que a apoie. Não estranharemos se os resultados das eleições cheirarem a armação”. (JAP)

Simpatizantes do ex-presidente, Aristide, vão às ruas um ano após a sua deposição

Exilado na África do Sul, o ex-presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, ainda pesa sobre o cenário político do país. Com uma fortuna pessoal estimada em 800 milhões de dólares, financia grupos para propagar informações positivas a seu respeito. É o caso do Instituto para a Justiça e Democracia no Haiti, sediado nos Estados Unidos e dirigido por Brian Concannon, que envia notas para agências de notícias em todo o mundo. No Haiti, a estratégia é outra. Antes de sua renúncia, Aristide organizou — e armou — bandos de jovens para manter firme sua base em bairros populares. Descontroladas, e altamente financiadas, as gangues hoje disseminam o terror nas principais cidades. Em fevereiro de 2004, Aristide renunciou, e foi seqüestrado por soldados estadunidenses, que o le-

varam para a África. Considerado por vários grupos do mundo um homem de esquerda, dedicado às classes populares, no momento de sua saída o ex-presidente era criticado pela maioria do povo por suas políticas antinacionalistas. No governo, ele concedeu privilégios substanciais a empresas estrangeiras, causando o colapso da produção nacional, principalmente agrícola, organizou privatizações e reprimiu seus opositores. Descontente, a partir do final de 2003, a população, tomou as ruas e exigiu sua renúncia. “Para conter a luta popular, que adquiria contornos de uma maré em defesa de mudanças sociais radicais, as grandes potências tiveram que agir. Não podiam permitir a efervescência social. Tiraram Aristide do poder, um homem que apoiavam, e ocuparam o país”, analisa a sociologa Suzy Castor. (JAP)


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INTERNACIONAL CAMARÕES

Combate à Aids provoca polêmica Alex Siewe de Paris (França)

CMI

Prostitutas contaminadas com o vírus HIV tornam-se alvo de pesquisa, envolvendo indústria farmacêutica e personalidades

Q

uatrocentas prostitutas recrutadas como cobaias. Uma ONG financiada pela fundação do magnata da informática Bill Gates. Um medicamento preventivo contra a Aids, testado por conta de uma poderosa indústria farmacêutica estadunidense. Autoridades que suspendem os experimentos depois de os terem autorizados. Esse é o percurso de uma viagem ao coração de um escândalo. A pesquisa de um tratamento preventivo contra a Aids, experimentado em prostitutas em Duala (Oeste dos Camarões), desde 2004, pela ONG estadunidense Family Health International (FHI) teria violado as regras éticas da pesquisa biomédica. No canal de TV France 2, dia 17 de janeiro, a reportagem “Complemento de pesquisa”, foi objetiva: os patrocinadores da pesquisa, a FHI e os laboratórios Gilead são acusados de ter usado como “cobaias” as prostitutas, desprezando os seus direitos. As autoridades são denunciadas por deixarem a coisa andar. O governo camaronês reagiu alardeando sua boa-fé. “Não há problema ético”, afirmou o ministro da Saúde, Urbain Olanguena, ao jornal Cameroon Tribune. Segundo ele, “é preciso separar claramente as questões éticas das questões humanitárias, é preciso evitar que se misturem”. Olanguena considerou que, no “plano humanitário”, é completamente normal que as pessoas envolvidas no estudo sejam tratadas e sustentadas gratuitamente, ao se verificar que, durante a pesquisa, elas se tornaram soropositivas. “E mesmo se isso não fosse uma exigência ética, o Ministério da Saúde fez, à equipe de pesquisa e às instituições que apóiam o estudo, a recomendação de cuidar dessas pessoas”, justificou.

REPÚBLICA DE CAMARÕES Localização: centro-oeste da África Nacionalidade: camaronesa Cidades principais: Duala, Iaundê (capital), Bafousam, Garoua, Maroua Línguas: francês e inglês (oficiais) Divisão administrativa: 10 províncias População: 15,1 milhões (2000) Moeda: Franco CFA Religiões: cristianismo (52,2%), animismo (26%), islamismo (21,8%)

Fundação do magnata Bil Gates financia projeto acusado de violar códigos de ética e direitos humanos em Camarões

constatou “faltas e disfunções” e, por isso, Olanguena decidiu suspender os testes. A suspensão será mantida enquanto “os compromissos assumidos no protocolo não sejam rigorosamente respeitados”. Segundo a FHI, o teste consistia em administrar às prostitutas um comprimido de tenofovir (marca comercial Viread®), para verificar “sua eventual eficácia na prevenção contra a contaminação pelo HIV”.

SEM RESPONSABILIDADE A história começou há meses. Uma equipe da associação Act Up Paris, que esteve em Camarões no fim de abril de 2004, foi alertada por seus interlocutores da Rede de Estudos de Direito e Aids (REDS), uma ONG local. Um ponto do protocolo de acordo e da ficha de adesão das candidatas inquietava esses interlocutores locais: o tratamento e o sustento das contaminadas durante o teste não estão garantidos. Abordados, os responsáveis do Care and Health Program, correspondente local da FHI e monitor da pesquisa, não deram respostas tranqüilizadoras. Interrogado a 7 de junho de 2003, o professor camaronês Anderson Sama Doh, coresponsável científico do projeto, responde que, no caso de infecção, as pacientes seriam orientadas para recorrerem aos programas

EXPERIÊNCIAS ANTIÉTICAS A questão é clara: quem determina que “não há relação de causa e efeito entre a pesquisa e a infecção com o HIV nas voluntárias”? Mas isso não impediu que a polêmica se intensificasse. Mesmo porque um comunicado posterior do mesmo ministério indicou que “uma auditoria do projeto está em curso, com o fim de verificar o respeito restrito às exigências contidas no protocolo de experimentação”. Essa auditoria

públicos de tratamentos existentes e à suas custas. Confirmado pelos documentos publicados pela FHI, isso suscitou a indignação dos integrantes da REDS, que aproveitaram sua participação no Solidays, o festival de solidariedade com os doentes de Aids, em julho de 2004, em Paris, para fazer contatos e conseguir que os interesses das candidatas aos testes fossem levados em conta. A mobilização das prostitutas de Phnom Penh, no Camboja, que se opunham à realização de uma pesquisa idêntica em seu país, deram a oportunidade aos integrantes da REDS: a 11 de agosto de 2004, o Camboja proibiu a pesquisa com o tenofovir. A atenção da mídia foi atraída para um assunto até então confinado aos círculos especializados.

IMPRENSA ATENTA A reportagem “Complemento de pesquisa”, amplificada pela internet, relançou o debate sobre a operação, financiada com 12 milhões de dólares por colaboradores importantes. À frente de tudo, a Fundação Bill e Melinda Gates, criada pelo dono da Microsoft e que, em setembro de 2002, outorgou à Family Health Internacional 6,5 milhões de dólares. O governo estadunidense, de seu lado, entregou 5,5 milhões de dólares. A pesquisa foi então apresentada pela FHI como uma possibilidade

de “saber se o Viread® pode desempenhar para a Aids o mesmo papel que a pílula na prevenção da gravidez”. A ambição é grande e dá uma idéia de toda a questão econômica em jogo na operação.

TESTES EM POBRES Em dezembro de 2002, três países africanos e um asiático foram selecionados para acolher durante um ano o teste do Viread®. O Camboja deu para trás antes do início da operação. Restam hoje Duala, em Camarões; Tema, no Gana, duas cidades portuárias, bem como Ibadã na Nigéria, imensa metrópole de cerca de cinco milhões de habitantes. Segundo a FHI, essas cidades foram escolhidas pelo grau relativamente alto de infecção em meio a suas populações de risco, notadamente as prostitutas. Em Duala, a percentagem atinge 40% e, segundo estimativas, uma de cada duas relações sexuais é sem camisinha. Camarões representa para os pesquisadores um interesse específico: o país abriga, segundo a Agência Nacional Francesa de Pesquisas sobre a Aids, uma grande variedade dos tipos e subtipos de vírus da Aids. Um teste eficaz nesse país proporciona, assim, melhores chances de êxito do que em outros lugares. “Nossa ambição é interromper

a transmissão do vírus; então, fazemos a pesquisa onde há epidemia”, explica Elisabeth Robinson, portavoz da FHI.

VIDAS EM RISCO A operação começou com o recrutamento de 400 prostitutas em cada uma das três cidades. Metade, por sorteio, recebe o medicamento. Para a outra metade, durante toda a pesquisa, se fornece um placebo, isto é, um comprimido inativo. A cada mês as candidatas são submetidas a um controle para medir a contaminação em cada grupo. Em Duala, Alexis Boupda, diretor do Care and Health Program, dispõe de um orçamento de 800 mil dólares para conduzir a operação. Um comprimido de Viread® por dia e, uma vez por mês, uma consulta com os médicos, no curso da qual as moças têm direito a check-ups ginecológicos, entre outros exames, e a um pacote de 48 preservativos masculinos. Um seguimento médico que convenceu grande parte delas: esses serviços estão em geral acima de seus meios. Como em todas as pesquisas clínicas dessa natureza, o protocolo de acordo que elas assinam supostamente explica todas as modalidades do teste e todas as informações conhecidas até agora sobre o medicamento administrado. O objetivo é que elas sejam “esclarecidas” sobre o teste e que os riscos que correm sejam bem explicados.

GLOBALIZAÇÃO CULTURAL

da Redação A emissora MTV lançou o primeiro canal musical para a África. As transmissões da chamada MTV Base começaram dia 22 de fevereiro, por meio de quatro redes de satélite, com o objetivo de atingir 1,3 milhão de pessoas em todo o continente. Definida pelos organizadores como um “canal sob medida, respondendo às exigências do continente”, a emissora é apresentada como uma alternativa aos artistas africanos, de ter um palco internacional. Os organizadores do canal dizem que na MTV Base – 100º canal de MTV desde o início, em 1981 –, um terço da música será africana, índice que no futuro poderia subir a 50%. Entre os artistas que a TV pensa promover, é citada a sul-africana Lebo Mathosa, cuja música é uma mistura de ritmos africanos, pop-ocidental e rap. “Se a orientação da MTV na África for a que já se adotou na Europa e nos Estados Unidos, a sua presença no continente constituirá um dano”, disse Filomeno Lopes, compositor, cantor e músico de

Paulo Pereira Lima

MTV invade continente africano

Produtores musicais e movimentos culturais africanos consideram a MTV mais uma forma de colonização estadunidense

Guiné Bissau, residente há anos na Itália, onde exerce a profissão de jornalista. Lopes considera que a emissora tem duas alternativas: adaptarse às exigências dos africanos e enfrentar um processo de inculturação, “ou um canal desse tipo

se limitará a exportar totalmente a música e a cultura ocidental, sem nenhum interesse com os inúmeros problemas do continente”. O artista, que acaba de lançar o álbum “Child Eyes” editado pela Emi (Editora missionária italiana), explica que, na realidade, a

música ocidental já colonizou a África.

COLONIALISMO MUSICAL “Nas discotecas e nos locais noturnos, quase toda a música transmitida é estrangeira; além disso, quando se entra numa dis-

coteca na Guiné Bissau, mas também no Senegal, ou na África do Sul, as pessoas são bombardeadas por imagens da MTV reproduzidas pelas televisões em sala”. Segundo ele, mesmo as rádios locais difundem principalmente música não-africana. “Perguntei qual era o motivo aos jornalistas de rádio e me responderam que os artistas locais publicam um álbum de vez em quando, mas, considerando o ritmo frenético de hoje, uma canção passa de moda depois de quatro dias; portanto, é necessária a contínua novidade do exterior”. Apesar de tudo, Lopes continua convencido que a África é um terreno fértil para as novas experiências musicais: “Na África se canta tanto, se canta por mil motivos, não somente comerciais. Existe uma proliferação de jovens que querem se transformar em artistas para comunicar ao mundo as injustiças que sofrem e denunciar os infinitos problemas da vida cotidiana”. Mas ele não se diz seguro de que emissoras como a MTV estejam dispostas a acolher canções que abordem as questões sociais. (Com agências internacionais)


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AMBIENTE CASO DE POLÍCIA

Entorpecentes na Coca-Cola? Igor Ojeda da Redação

A

Coca-Cola sofreu uma importante derrota judicial no dia 15 de fevereiro. O juiz Beethoven Giffoni Ferreira, titular da 18ª Vara Cível, julgou improcedente a ação movida pela Spal Indústria Brasileira, maior engarrafadora da transnacional no Brasil, contra a empresa de refrigerantes Dolly. Na ação, a Spal acusa a Dolly de denegrir sua imagem, ao tentar “colocar seu produto em destaque, usando trechos cortados de gravações dando conta do plano para a retirada da concorrente do mercado”. Além disso, o juiz determinou que a empresa pague as custas do processo e os honorários do advogado. Em nota oficial, a Spal (atual Femsa) afirma que recorrerá da decisão do juiz, que “prossegue confiando plenamente na Justiça” e que irá “demonstrar de maneira inequívoca os prejuízos decorrentes da sistemática campanha difamatória de que tem sido vítima”. As gravações mencionadas pela Spal são as fitas de vídeo apresentadas em agosto de 2003, na Rede TV!, pelo dono da Dolly, Laerte Codonho. As fitas reproduzem conversas que teve com o ex-diretor de aquisições estratégicas da Coca-Cola, Eduardo Capistrano do Amaral, que conta que sua função na empresa – cumprindo ordens diretas da matriz em Atlanta (Estados Unidos) – era eliminar a Dolly do mercado, via pressões sobre fornecedores,

Indranil Mukherjee/STR

Acusação é de ex-funcionário e será averiguada pelo Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal da empresa, em ação trabalhista contra o antigo empregador. Mendes informou como facilitava a entrada no Brasil das folhas de coca procedentes da Bolívia e processadas pelo laboratório estadunidense Stepan Chemical Company. Ele comprovou suas acusações com guias de importação.

PUNIÇÃO

Além de sofrer derrota judicial pela ação movida contra a Dolly, a Coca-Cola está sendo investigada pelo uso de folha de coca

Ministério Público, Receita Federal, sabotagem e espionagem. Ismael Corte Inácio, advogado da Dolly, diz que a sentença foi “mais uma derrota da Coca-Cola, uma decisão que se esperava”, pois não houve ofensa moral, nem prejuízos de imagem à Coca-Cola. “O juiz percebeu que as acusações (da Dolly) encontram algum respaldo”, completa. Aquelas acusações, no momento, estão sendo investigadas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que apura as denúncias de concorrência desleal; e

pela Superintendência Regional da Polícia Federal em São Paulo, que investiga as suspeitas de práticas criminosas e anticoncorrenciais por parte da Coca-Cola.

FOLHA DE COCA Mas a maior derrota da história da Coca-Cola no Brasil ainda pode acontecer: está na dependência dos resultados da análise química do extrato vegetal utilizado em uma das fases de fabricação do produto Coca-Cola, a cargo do Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal.

O exame atende a solicitação, feita em dezembro, pela Câmara dos Deputados ao Ministério da Justiça, para que este obtivesse esclarecimentos sobre a possibilidade de a bebida conter folha de coca, substância terminantemente proibida pela legislação brasileira. Segundo a assessoria de imprensa do Instituto Nacional de Criminalística, o órgão aguarda apenas a chegada de dois cromatógrafos para fazer a análise. A suspeita foi levantada em setembro de 2000 por Placídio José Mendes, ex-gerente de importações

O deputado federal Celso Russomano (PP), integrante da Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara Federal, afirma que, se comprovada a utilização da folha de coca no extrato vegetal da Coca-Cola, a empresa e seus executivos serão responsabilizados por todos esses anos de infração à lei brasileira. “A legislação prevê, inclusive, sanções penais”, alerta. Além disso, acrescenta o parlamentar, será “obrigação do poder público, ou seja, da Polícia Federal e Ministério Público, impedir a fabricação do produto, visto que a legislação brasileira proíbe o uso de qualquer componente da folha de coca em produtos alimentícios”. A Dolly também deve tomar providências. Confirmado o uso da substância, a empresa deve entrar na Justiça para “pedir imediata suspensão da produção e da comercialização do produto”, afirma o advogado Ismael Corte Inácio. Ele acredita em uma ação dura das autoridades: “Os ministérios da Agricultura e da Saúde devem intervir. A legislação brasileira é severíssima em relação aos entorpecentes”.

ENTREVISTA

Antes de a Dolly representar alguma ameaça à Coca-Cola, o alvo era outro: a Pepsi. Mas a estratégia para se livrar da incômoda concorrência era a mesma. Espionagem, sabotagem, abuso do poder econômico. Tudo isso – e outros golpes sujos como, por exemplo, planos para coação da imprensa, da Justiça e do governo e manutenção de embalagens plásticas contaminadas no mercado – está relatado em detalhes no livro Isso Sim, É Real. Lançado em 2004, é de autoria de César Azambuja, ex-executivo da transnacional, onde trabalhou por 18 anos. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele fala, entre outras coisas, sobre a enorme influência da Coca-Cola no Brasil e no mundo.

cesso trabalhista que moveu? Azambuja – Nos meus 18 anos de empresa, atuei em todas as áreas de marketing. Quando fui desligado, sem motivo, de forma irregular e injusta, ocupava a gerência da maior operação da Coca-Cola no Brasil, que englobava o Estado de São Paulo e parte do Centro-Oeste. Era responsável pelos engarrafadores que comercializavam 1/3 da Coca-Cola consumida no país. Meu processo é trabalhista, pois me senti lesado, mas também por danos morais, por entender que os episódios em que fui coagido a participar prejudicaram minha carreira, minha família e, por que não dizer, até minha saúde.

Brasil de Fato – Por que decidiu escrever o livro? César Azambuja – A decisão nasceu quando assisti a um programa de TV, onde Laerte Codonho, presidente da Dolly, denunciava a estratégia da Coca-Cola para destruir sua empresa. Os personagens citados, as táticas usadas e as falcatruas mencionadas eram as mesmas que eu conhecia de longa data. Eu já tinha um processo judicial contra a Coca-Cola, onde trabalhei por 18 anos, e estava insatisfeito com a morosidade da Justiça e com suas primeiras decisões. O sentimento de impotência perante tanto poder e influência começava a me rondar. Ao assistir aquele homem indignado falar na TV, e por saber que era tudo verdade, resolvi retomar minha luta para desmascarar essa gigante desleal que, no meu entender, fazia do nosso país o quintal de suas trapaças, com arrogância e certeza de impunidade. Recomecei escrevendo o relato da minha experiência pessoal nos anos em que lá estive. Depois, surgiram as outras atividades como o blog.

BF – Por que a Coca-Cola é considerada uma das empresas mais danosas do mundo? Azambuja – Segundo relatório recente de um conjunto de organizações não-governamentais (ONGs), capitaneado por Ralph Nader, ela é perniciosa ao meio ambiente, aos direitos humanos, à liberdade política, entre outros crimes. A contaminação dos lençóis freáticos na Índia, o assassinato de líderes sindicais na Colômbia, a interferência em processos democráticos em várias partes do mundo, tudo está documentado e denunciado em vários endereços sérios da internet que tratam o assunto com exclusividade. No nosso blog, estão disponíveis todas essa informações.

BF – Qual o cargo que ocupava na empresa? Como anda o pro-

BF – Qual é a estratégia utilizada pela Coca-Cola contra a concorrência? Como foi no caso da Pepsi? Azambuja – As estratégias da Coca-Cola contra os concorrentes e contra o mercado são denunciadas na Associação Nacional do Comércio Americano desde 1916. No caso da Pepsi, que vivi pessoalmente, a base da ação da Coca foi espionagem e abuso de poder econômico, com o bloqueio

do mercado por meio da compra de revendedores, não permitindo que a Pepsi conseguisse voltar ao mercado brasileiro. Em 1987, e novamente em 1994. Está tudo relatado no livro. É interessante ressaltar que a espionagem era um dos nove mandamentos de ação da empresa, mencionados no livro Por Deus, pela Pátria e pela Coca-Cola, de Mark Perdengrast, numa edição de 1993 que misteriosamente sumiu das livrarias brasileiras. BF – Como recebeu as acusações da Dolly contra a Coca-Cola? Azambuja – As acusações da Dolly contra a Coca-Cola são todas verdadeiras e comprovadas documentalmente. Mas a luta para trazer isso à tona e punir os responsáveis é gigantesca. Muitas já são as vitórias obtidas e, hoje, apenas um ano e meio depois de começar, a empresa é investigada por três ministérios, pelo Ministério Público, pela Secretaria de Defesa Econômica, e até pela Polícia Federal. Isso era inimaginável há pouco tempo. A sentença do juiz Beethoven Ferreira, julgando improcedente a ação da Coca-Cola contra a Dolly, é um sinal evidente de que as coisas estão mudando, e que a impunidade tem seus dias contados. BF – A Coca-Cola utiliza folha de coca na sua composição? O que isso pode causar em seus consumidores? Por que a empresa reluta em revelar a composição do extrato vegetal de seu produto? Azambuja – Sim, a Coca-Cola utiliza folhas de coca na composição de um de seus ingredientes, o extrato vegetal, ou mercadoria nº 5, como é definida internamente. De 1886, quando foi criada, até 1903, usava cocaína mesmo. A partir daquele ano, passou a descocainizar a bebida. Porém, nunca deixou de utilizar a folha. O problema é que todos os alca-

lóides da folha e suas preparações são proibidos no Brasil pela lei de entorpecentes em vigor. E a tolerância é zero, ou seja, é proibida sua utilização em qualquer quantidade. Segundo laudo de Otávio Brasil, maior toxicologista brasileiro, todos os alcalóides da folha são entorpecentes e causam mal à saúde. Em que nível, é uma questão a ser levantada, e que pode causar uma cascata de processos. Mas a questão, agora, é que é ilegal. Por isso, a luta é para que se faça o exame do extrato, e não do produto final, onde a hidrólise já camuflou a substância. Como a artimanha de examinar o produto final foi desmascarada, a Coca-Cola agora tenta por todos os meios evitar o exame do extrato. Se fizer, vai aparecer, se aparecer, tem que parar. Ou mudar a lei. Além disso, estará caracterizado um dos maiores escândalos de concorrência desleal já existente. Como competir com um produto que causa dependência? BF – Como é a relação Coca-Cola com os Estados nacionais? Azambuja – É viciada. A CocaCola mantém uma bancada de congressistas a seu favor na Câmara e no Senado, que recebem verbas para suas campanhas eleitorais. Alguns são engarrafadores. Então é de se imaginar seus interesses em defender e blindar a empresa. O poder da Coca-Cola nos Estados Unidos, no século passado, era muito forte. Ela elegeu um presidente, influenciou outros, e conseguiu que alguns, como Eisenhower, fizessem seu merchandising. No México, segundo mercado da empresa no mundo, o atual presidente, Vicente Fox, nada mais é do que o ex-presidente da companhia. Na União Européia, sua influência é menor. BF – E a relação com a mídia? Azambuja – É de interesse co-

Arquivo Pessoal

Uma coleção de golpes baixos, em detalhes

Quem é O gaúcho César Azambuja é publicitário e ex-executivo da Coca-Cola no Brasil. Atualmente, mantém o blog e usa a maior parte de seu tempo na luta contra a transnacional, escrevendo e pesquisando sobre o assunto, além de trabalhar com organizações não-governamentais do mundo todo.

mercial e de lobby. Todas as denúncias, mesmo comprovadas, pouco foram veiculadas pela grande mídia, em função das milionárias verbas publicitárias envolvidas. Por exemplo, só o patrocínio do futebol rende à Globo 25 milhões de dólares. Até que haja uma condenação, a mídia fica na moita. Depois, creio que terá que divulgar, sob pena de se comprometer. Por exemplo: a Coca-Cola está envolvida, comprovadamente, no escândalo da Kroll, com a qual tinha um contrato de R$ 250 mil mensais para espionar a Dolly. A grande mídia não toca no assunto, mas a PF está investigando. Há quatro engarrafadores da Coca-Cola no contrato social do megacontrabandista Lao, preso em Brasília. Ninguém fala nada. Mas na mídia alternativa e na internet se divulga tudo. (IO)


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DEBATE PARÁ

A geografia do terror história recente dos problemas agrários do Pará começa com a construção da Belém-Brasília na década de 50 do século 20. Com a construção da BR-010 (Belém-Brasília), que foi construída para viabilizar a circulação e abrangência do capital com maior fluidez dos centros de produção do Sudeste para o grande Norte do país. Tal ação é combinada com a política rodoviarista do governo de Juscelino Kubitschek. Dessa forma, os grandes grupos capitalistas se relacionam diretamente, sem intermediários, com as “novas” terras do Pará, valorizando as que foram adquiridas por vários grupos ligados direta ou indiretamente à construção da rodovia, sob muita especulação, um caso típico do capitalismo. Só no Estado do Pará, de 1964 a 2000, foram assassinados 717 trabalhadores, lideranças sindicais, religiosas e políticas. O mais grave é que dos 703 casos de trabalhadores rurais assassinados de 1964 a 1988, só em 183 casos foram abertos inquéritos policiais e apenas 113 deles deram origem a processos que tramitaram ou estão tramitando na Justiça. Nos últimos anos foram realizados os júris populares ou emitidas sentenças de impronúncia, arquivamento ou absolvição em 18 casos, isto é, só 2,56% dos casos ocorridos foram julgados. Este número aumentaria consideravelmente com a inclusão do julgamento dos policiais responsáveis pelos assassinatos dos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Eldorado dos Carajás, passando de 18 para 37 casos e elevando o percentual dos julgamentos para 5,26% dos casos denunciados.” No que se refere à grilagem de terras a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da grilagem de terras na Amazônia (2000-2001) identificou, com base nos trabalhos de Otávio Mendonça, cinco tipos de fraudes: 1) Fraude nos títulos; 2) Fraudes nos processos; 3) Fraudes na demarcação; 4) Fraudes na localização e 5) Fraudes no registro. A CPI reconhece a força do poder político econômico quando diz que: “Também continua a valer a lei do mais forte, porque a Justiça nunca alcança o pequeno produtor rural ou o posseiro. Enquanto isso, o grileiro consegue obter cobertura judicial para as versões que lhe interessam, sem que o juiz, nem de longe, conheça o local sobre o qual incidem as provas a ele apresentadas”. No relatório final da CPI da grilagem — sob a responsabilidade do deputado Sérgio Carvalho (PSDB-RO) — constatou-se que só no Pará aproximadamente 30 milhões de hectares foram grilados. Isso mostra a atualidade da grilagem de terras e classifica como grave a situação fundiária existente no território paraense (sic). No final do relatório da CPI do Estado do Pará, o relator-deputado Cláudio Almeida (PPS) escreve que o poder público tem que trabalhar com a sociedade, unidos para que haja justiça no campo e que se criem acessos à terra para quem de fato precisa para trabalhar e não para especular (sic).

Ilustrações: Kipper

Reinaldo Corrêa Costa

A

ECOGRILEIROS

No comentário do deputado já está claro que a vigilância tem que ser feita contra a grilagem, principalmente neste momento em que muitos se dizem preservacionistas e/ou protetores do meio ambiente e se apropriam de milhares de hectares de terras em nome da preservação, são os ecogrileiros. Uma das ações de resgate de terras públicas é o cancelamento

dos Contratos de Alienação de Terras Públicas, que foram muito usados para a aquisição de terras na Transamazônica. Na atualidade, e principalmente no governo de Fernando Henrique Cardoso, as ações de regularização de áreas já incorporadas ao domínio público para assentamentos eram chamadas de reforma agrária. Na verdade é uma política de colonização e não de reforma. Para a peculiaridade ecológica da Amazônia, é necessário pensar em uma reforma fundiária que respeite os limites da natureza, seja para coleta ou para plantações, tem-se que aproveitar o saber tradicional, o etnoconhecimento na hora de elaborar políticas de reforma agrária e um aparato jurídico adequado para grupos que trabalham com mão-de-obra familiar, para não ser confundido, ante a lei com um pequeno produtor rural, um pequeno empresário do campo. As diferentes formas de propriedade devem ser consideradas, desde o lote familiar camponês à terra comunal indígena, e o uso de rios e lagos pelos ribeirinhos, pois ribeirinhos, posseiros, agricultores, seringueiros, coletores, pescadores, entre outros, são grupos diferenciados e devem receber atenção na hora de uma ação jurídica para o uso da terra. Isso com a anuência do Estado que não tomou providências legais para disciplinar socialmente a ocupação dessas terras para proteger àqueles que nela estavam de tempos primeiros, como camponeses posseiros e/ou ribeirinhos. “Então, de 1955 a 1964 vai acontecer uma série de fatos socialmente importantes. Mas, antes, vamos retroceder um pouco no tempo. Se pegarmos a Constituição estadual de 1891, que foi quando os Estados assumiram a gerência das suas terras públicas, veremos que até 1955 o Pará não alienou do seu patrimônio mais de 600 mil hectares. Isto durante quase 70 anos de vida republicana. Agora, apenas entre 1955 e

1964 o governo estadual alienou seis milhões de hectares. (...) Se esta alienação tivesse sido feita de forma racional e inteligente, poderia ter patrocinado uma política agrícola que evitasse qualquer conflito. Mas, não, alienaram simplesmente alienando. E o que é ainda mais grave, sem levar em conta quem vivia dentro daquelas áreas. Não houve nenhuma discriminação. Aparentemente o

nal de Colonização e Reforma Agrária (Incra), muitos em condições precárias, era a presença do Estado na rodovia. Concomitantemente a isso criase a política de incentivos fiscais, que facilita a chegada dos latifúndios. Em uma primeira visão pode parecer que é algo contraditório propor colonização e criação de latifúndios, mas não é, é tudo dentro de uma mesma política do capital de apropriação de terras e do trabalho das pessoas, em uma lógica de atrair capitais facilitando o aparecimento de grandes proprietários de terras totalmente ausentes, dentro de uma política de incentivos fiscais que envolve o sistema econômico financeiro. Por isso, inclusive bancos e indústrias adquiriram terras no Pará e são instituições anti-reforma agrária. A situação chega ao ponto de virem grupos de posseiros patrocinados pelos governos para ter terra no Pará e o mesmo acontece com grupos de empresários. O resultado é um conflito violento, e não raro com mortes do lado mais fraco, os posseiros. E ocorre a politização da questão agrária, quando os camponeses se reúnem e montam a resistência com o apoio de setores da Igreja Católica e de partidos de esquerda; alguns membros foram herdeiros do movimento guerrilheiro do sudeste paraense e disso cultivaram a luta pela terra. No Estado do Pará a situação agrária agravou-se durante a ditadura, quando o governo cria o decreto nº 1.164 de 1971, quando o governo federal fica responsável por uma faixa de cem quilômetros de terras às margens das rodovias federais construídas e em construção. Nesse dia, o Pará ficou sem 70% de seu território, e o que foi retirado passou para a responsabilidade da União. Isso foi ingrediente na questão agrária paraense, pois nos órgãos do governo federal não havia entendimento nem entre eles próprios e nem com os órgãos do Estado do Pará. Essa situação gerou confli-

espaço estava vazio, mas só aparentemente. Era a idéia brasileira da Amazônia como um grande espaço vazio. Mas o fato é que aqui havia posseiros. Ocupação, existia. Rarefeita ou não, existia.” (BARATA:2000: 184-185). POLÍTICA INJUSTA

O Estado é o grande responsável pelos conflitos modernos no campo paraense, por fazer uma política anti-social e injusta. O mesmo se repete com a Transamazônica, com o discurso de chegar às terras desocupadas. No contexto da BR-230 foi criado o que seria um dos maiores pólos de assentamento do Brasil e do mundo, o projeto Altamira 1 e 2, que assentariam várias famílias em lotes de cem hectares com famílias nordestinas e do Sul e, atualmente, a Transamazônica é um cadinho de gente de todo o Brasil. Não foi reforma agrária em nenhum momento, foi colonização e depois, com os fracassos econômicos do país, virou regularização fundiária, onde somente alguns postos do Instituto Nacio-

tos, como o Incra assentar pessoas em áreas em que o governo estadual havia dado título a um proprietário ausentes. Confusão e desleixo com a questão agrária propiciaram violência no campo. Nesse momento da ditadura brasileira o Pará teve quatro órgãos responsáveis pelo gerenciamento das terras, da parte federal o Incra, o Getat (Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins) e o Gebam (Grupo Executivo de Terras do Baixo Amazonas), sendo os dois últimos ligados ao Exército e, da parte estadual o Iterpa (Instituto de Terras do Pará); todos estes órgãos nasceram para não fazerem

a reforma agrária. Acrescente-se a estes, sob outra função agrária, a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o IBDF (extinto), precursor do atual Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). CONFLITOS NA BUROCRACIA

Os conflitos são no campo e na burocracia, é o descontrole (aparente) como forma de controle da questão da terra. Assim os mais fortes na barganha política do poder encontram-se com os mais fracos na luta pela terra, os mais fortes apóiam-se nos aparatos do Estado, como a Polícia Militar e esta se torna subserviente aos latifundiários, vide o caso de Eldorado dos Carajás em 1996 e a permissão que policiais militares quando em horário de folga façam “bicos” como seguranças, eufemismos para meganhas. Quem pode pagar por esse serviço? Ou melhor, desserviço. E tem-se um parodoxo: uma hora deveria defender o cidadão; outra o agride respaldado pelo poder econômico e pela impunidade. Algumas questões pairam a respeito de uma reforma agrária no atual contexto brasileiro. Para uns seria um vetor de mudança do capitalismo no campo, ao criar várias propriedades privadas produtoras de mercadorias; para outros seria a capacidade de ter acesso à terra de trabalho e articular com outros setores da sociedade com maior nível de produção, gerando empregos e fazendo com que haja uma socialização da terra e de sua renda. RETROCESSO SOCIAL

Independentemente dessa discussão a reforma agrária no Brasil deveria sair das páginas policiais dos jornais e ir para a agenda de desenvolvimento dos governos, que primam por justiça social com desenvolvimento econômico democrático e criar cidadania para os que foram vítimas do processo de exclusão social. Deveria ser encarada como uma política pública territorial e econômica para o desenvolvimento dos brasileiros, principalmente dos mais pobres. A ação policial é uma situação de mão dupla, pois a Polícia Militar cumpre as ordens do governador; pode acontecer um massacre, se não cumprir desobedece a uma ordem. Logo, a questão é não envolver polícia, pois querer reforma agrária não é caso de polícia, é uma questão social. Não são as ocupações no campo que são violentas, é o latifúndio que é sinônimo e violência, em sentido amplo (social, política e física, ao assassinar pessoas). Monopólio do território é sinônimo de violência, pois hoje no Brasil território concentrado é poder, por isso latifúndio é poder, poder paralelo que afronta sociedade brasileira e a humanidade em geral. No fundo é um retrocesso social, cultural, político e econômico, pois não produz riqueza socialmente justa. Na atualidade política do país, com dois anos do tão esperado (por vinte anos), o governo do PT (Partido dos Trabalhadores), sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, a solução continua nas mãos dos movimentos sociais que fazem com que o governo se aparelhe e coloque a discussão da reforma agrária na agenda nacional. Para resolver a questão agrária no Pará e no Brasil, não é necessário criar novos instrumentos legais, mas sim reivindicar territorialidade e manifestar-se para criar a vontade social e política de modificar o estado atual das territorialidades, alterar as relações de poder. Reinaldo Corrêa Costa é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)


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agenda@brasildefato.com.br

PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO O livro, do sociólogo Antonio Sérgio A. Guimarães, apresenta uma pesquisa sobre preconceito e discriminação raciais na sociedade brasileira. Trata-se de um estudo sistemático e cuidadoso das ocorrências de discriminação racial registradas em delegacias de polícia em Salvador e São Paulo, entre 1993 e 1997, e em jornais diários de todo o país, entre 1988 e 1997. A escolha desse período não é aleatória: nos anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1998, ganhou impulso no Brasil uma ampla mobilização anti-racista. Lançado originalmente em tiragem limitada, o estudo logo foi adotado pelos ativistas dos movimentos sociais, por evidenciar a extensão e natureza da discriminação racial nos últimos 20 anos no país. Agora, chega a um público mais amplo, para mostrar que a não-admissão do preconceito racial é o maior obstáculo à luta pelos direitos civis dos negros no Brasil. A obra, apresentada pela Editora 34, tem 160 páginas e custa R$ 27. Mais informações: www.editora34.com.br

NACIONAL CURSO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA As aulas abordarão a história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. Também será focalizada a maneira como esses fatos devem ser introduzidos nas disciplinas escolares, em especial em História, Literatura e Artes. O curso é gratuito, realizado via internet, com duração de três meses e carga horária de 40 horas. A iniciativa é uma parceria da Ágere com o Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad). Mais informações: www.ensinoafrobrasil.org.br

CEARÁ FUNDAÇÃO CÁRITAS DIOCESANA DE CRATÉUS 3, a partir das 8h No encontro, haverá aprovação do estatuto da entidade, filiação, homologação e definição das entidades-membro. Serão também definidas as prioridades de ação e eleita a diretoria. As ações da Cáritas na Diocese de Crateús foram retomadas em 1999, com o Programa de Convivência com o Semi-Árido, desenvolvido com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) diocesana.

Local: Centro de Treinamento Dom Fragoso, R. José Sabóia, 1661, Cratéus Mais informações: (88) 3675-1177 2º SEMINÁRIO DO MUTIRÃO DE SUPERAÇÃO DA MISÉRIA E DA FOME 4a6 Organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o seminário terá palestras sobre o programa no país. Serão apresentadas experiências desenvolvidas no Ceará no campo do mutirão. Participam os representantes das comissões do mutirão das nove dioceses da CNBB e de entidades parceiras no Ceará, além de representantes das Regionais da CNBB, respectivamente dos Estados do Piauí e Maranhão. Local: Casa de Encontros Maria Auxílio dos Cristãos, R. Frei Cirilo, 2.915, Fortaleza Mais informações: (85) 3252-4046 2ª SEMANA DAS ÁGUAS ARACOIABA 6 a 13 O objetivo da Semana, que tem como tema “Água viva, promovendo a paz”, é sensibilizar a sociedade para a importância da água e a necessidade de preservação do recurso. A Semana serve também como um alerta para a problemática da falta de água e valorização da luta pelo acesso. Durante o período, acontecem palestras e gincanas nas escolas, uma audiência pública na Câmara Municipal e encontro das famílias das cisternas de placas. No dia 10, está programado o 2º Seminário das Águas, com a participação de técnicos do Estado; no dia 12, será realizado o Encontro das Famílias da Área do Açude. O dia 13 será marcado pela 2ª Romaria das Águas e por um show cultural com o cantor Zé Vicente. Local: R. João José de Freitas, s/n, Aracoiaba Mais informações: (88) 3337-1241

RIO DE JANEIRO LANÇAMENTO DO LIVRO: DO TERROR À ESPERANÇA: AUGE E DECLÍNIO DO NEOLIBERALISMO 7, a partir das 19h30 A obra, de Theotônio dos Santos, editada pela Editora Idéias & Letras, analisa aspectos da experiência neoliberal. Desde o fim da Guerra Fria até os atentados que culminaram no 11 de setembro, em todas as partes do globo, assistiu-se ao crescimento e à bancarrota de um conjunto de idéias de âmbito econômico e político que, varrendo esperanças e conquistas alcançadas nos paí-

ses subdesenvolvidos, valorizou um conjunto de idéias primárias. Consagrava-se o chamado “pensamento único”, que se propunha ser o caminho inevitável e insubstituível para o desenvolvimento mundial. Se por um lado houve o aumento do desemprego em todo o mundo, a explosão da violência ampliada pelo evidente abismo social, a subnutrição e a exclusão de continentes inteiros, por outro há a arrogância e a impertinência de pseudo-teóricos que insistem na manutenção de um sistema fracassado. O autor, um dos mais importantes teóricos latino-americanos dos últimos tempos, faz uma análise meticulosa e concreta da realidade da América Latina e de todo o mundo. Local: R. Dias Ferreira, 417, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2239-5294 CICLO DE CONFERÊNCIAS SOBRE GÊNERO E TRABALHO INFANTIL NA MINERAÇÃO 7e8 O principal objetivo deste ciclo de palestras é criar um espaço de reflexão, discussão e pesquisa sobre gênero e trabalho infantil em atividades de pequena mineração na América do Sul. Pretende-se propor indicadores a serem utilizados para o desenvolvimento e acompanhamento de programas e projetos de políticas públicas destinados a melhorar as condições para a inclusão social das mulheres e crianças mineradoras Local: Av.Ipê, 900, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro Mais informações: www.cetem.gov.br/prosul

SÃO PAULO EXPOSIÇÃO: VERA CRUZ – IMAGENS E HISTÓRIAS DO CINEMA BRASILEIRO De 1º de março a 3 de abril Composto por uma exposição, projeção de filmes, apresentação musical, documentários e palestra, o evento tem como objetivo preservar a memória de um dos grandes patrimônios do cinema nacional e contribuir com uma nova reflexão. A exposição começa no salão de entrada da unidade, mostrando seis imagens das principais estrelas da Vera Cruz: Tônia Carrero, Eliane Lage, Alberto Ruschel, Mário Sérgio, Marisa Prado e Anselmo Duarte. Caminha em seguida pelo mundo do cinema por uma galeria composta pelos cartazes antológicos dos 18 filmes produzidos pela Companhia, entre 1950 e 1954. Penetra no mundo da construção do imaginário ao mostrar o ambiente de trabalho, a criatividade e o dinamismo dentro e fora dos estúdios da Vera Cruz em 40 imagens fotoDivulgação

LIVRO

Divulgação

AGENDA

MARCHA DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER 8 de março, às 14h A mobilização nacional em São Paulo dará início a um percurso mundial de protesto, denúncia e construção de alternativas pelos cincos continentes. A Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade, resultado de um longo processo de participação e convergência, vai passar de um povo a outro, de uma região a outra. O ato, com presença de vários setores do movimento de mulheres e com dimensões nacionais acontecerá na capital paulistana, e pelo menos 30 mil mulheres de São Paulo, do Brasil, do Quebec, Camarões e Burkina Faso estarão na Avenida Paulista.A organização deste ato nacional está contando com a participação de mulheres de entidades sindicais, rurais, estudantes, sem-teto, movimento de mulheres negras e partidos políticos. O trajeto da passeata, que sai da Avenida Paulista em direção à Praça da República, será permeado por ações culturais. As manifestantes estarão dispostas em alas, cada uma delas representando os valores apresentados na Carta Mundial das Mulheres para Humanidade: Ala da Igualdade – cor laranja: questão econômica, salário-mínimo, soberania alimentar e transgênicos, reforma agrária; ala da Liberdade – cor lilás: direitos reprodutivos, atenção integral à saúde da mulher, direito ao aborto seguro, livre orientação sexual, não à violência e a mercantilização do corpo e da vida; ala da Justiça – cor verde: contra a discriminação racial, portadores de deficiência, luta anti-manicomial, contra a intolerância religiosa, pela reforma urbana; ala da Paz e Solidariedade – cor vermelha: contra a guerra e a militarização, contra os acordos comerciais, por uma outra integração. Local: Museu de Arte de São Paulo (Masp), Avenida Paulista, 1578, São Paulo (concentração) Mais informações: www.sof.org.br

gráficas, muitas delas inéditas, expostas na Área de Convivência, testemunho deste capítulo da história do cinema nacional. Ao longo do período em que a exposição ficará no Sesc Ipiranga, serão exibidos, em diversas sessões, seis títulos da Vera Cruz. Local: R. Bom Pastor, 822, São Paulo

MARCIO BARALDI RECEBE MAIS DOIS PRÊMIOS O cartunista e colaborador do Brasil de Fato, Marcio Baraldi, repetiu o feito do ano passado e ganhou dois prêmios Angelo Agostini como “melhor cartunista de 2004” e “melhor lançamento de 2004” pelo livro Roko-Loko e Adrina-Lina atacam novamente!, das editoras Opera Graphica e Rock Brigade. O Prêmio Angelo Agostini é realizado anualmente pela Associaçao dos Quadrinhistas e Cartunistas (AQC) e é conquistado por meio de votação direta entre mais de duas centenas de profissionais ligados à área dos quadrinhos, como desenhistas, escritores, editores, fanzineiros, e colecionadores em todo o Brasil. Baraldi concorreu com dezenas de outros artistas e faturou o prêmio nas duas categorias. Além dos outros dois prêmios que recebeu no ano passado, Baraldi também foi contemplado com um Angelo Agostini em 2003, perfazendo três anos consecutivos no pódium. “Sou tricampeão dos cartuns”, diverte-se o cartunista. Com mais de 20 anos de existência, o prêmio Angelo Agostini é o mais antigo e tradicional do gênero no Brasil, já tendo contemplado artistas historicos como Henfil, Mauricio de Souza, Ziraldo, Laerte, Rodolfo Zalla, Eugenio Collonese, Alvaro de Moya e muitos outros mestres da HQ nacional.

Mais informações: (11) 3340-2000 TARDE DE AUTÓGRAFOS 5, às 14h O artista plástico, escultor, escritor e multimídia José Roberto Aguilar irá autografar livros e CDs no projeto Autor na Praça. Durante o encontro haverá participação do cartunista Júnior Lopes, realizando caricaturas e performances dos artistas do grafitte Eduardo Kobra e Tom Fortes. Entre os livros que o autor irá autografar estão: Tantra Coisa – Insights de um voyeur, A Divina Comédia Brasileira, Hércules Pastiche, e A Revolução Francesa de Aguilar Local: Espaço Plínio Marcos, Feira de Artes da Praça Benedito Calixto, São Paulo Mais informações: (11) 3085-1502, oautornapraca@oautornapraca.com.br 2º ENCONTRO DE EDUCAÇÃO ESPECIAL E INCLUSÃO 18 e 19 Promovido pelo Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil Interdisciplinar (Nani), vinculado ao Departamento de Psicobiologia da Unifesp-EPM. O Encontro tem como proposta promover um debate sobre as perspectivas em educação inclusiva. O evento contará com a participação de representantes de órgãos públicos, universidades, ONGs e profissionais renomados na área. Local: Av. Bernardino de Campos, 185, mezanino, São Paulo Mais informações: (11) 3284-1787 nani@psicobio.epm.br


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CULTURA

De 3 a 9 de março de 2005

CULTURA POPULAR

Sem lenço, documento e dinheiro da Redação

O

Ministério da Cultura deu a mão à palmatória e reconheceu que está em dívida com as diferentes manifestações de cultura popular. Num país multiétnico e pluricultural como o Brasil, os recursos públicos continuam a ser destinados à chamada cultura de massa, representada nos grandes eventos e instituições. Mas essa situação pode mudar, se forem implantadas as propostas apresentadas no Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares, realizado em Brasília (DF), de 23 a 26 de fevereiro. Um documento final, chamado de “Carta das culturas populares”, propõe, entre outros, que o governo crie mecanismos que favoreçam a inclusão das culturas populares nos processos educativos formais e informais e que democratize a distribuição de recursos nas várias regiões do país, ao contrário do que acontece hoje, com privilegio das metrópoles.

Rose Brasil/ABr.

Ministério da Cultura reconhece falta de incentivo e promete, em seminário, destinar R$ 2 milhões para projetos populares

Dona Teté toca Tambor de Crioula e de Mina, duas importantes manifestações populares do Maranhão

Oficinas preparatórias ao evento foram realizadas em 14 Estados, desde março de 2004. Na roda de debates, brincantes e protagonistas culturais de bumba-meu-boi, violas de cocho e caipira, samba de roda, chula, maracatu, carimbó e até hip hop. Neste processo, com assessoria do Instituto Polis, foram ouvidos agentes e mediadores das culturas populares (educadores, pesquisadores, gestores públicos, mestres, contadores de histórias e artistas populares), representantes de associações, grupos, cooperativas e ONGs da cultura popular, grupos, movimentos sociais e grupos étnicos, prefeituras, secretarias e departamentos de cultura,

CONTRA O EXOTISMO O seminário foi organizado em cinco painéis com a presença de mestres populares, produtores culturais, artistas, pesquisadores e intelectuais. Na abertura, se apresentaram catingueiros, repentistas, indígenas, cirandeiros, artesãos, congadeiros e capoeirista. Participaram do evento mais de 800 pessoas, cerca de 300 artistas e 17 grupos regionais vindos de 20 Estados. O encerramento foi feito com apresentação do percussionista Naná Vasconcelos, o Grupo Bumba-Meu-Boi da Fé em Deus, do Maranhão e a banda de reggae Papoula, de Salvador.

pobres”, afirmou Zulu, um dos coordenadores do grupo de trabalho. A tentativa é reverter o fato de a cultura popular ser considerada letra morta para os governos. Nunca foi considerada a determinação constitucional, de que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, protegendo “as manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras, e as de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” Até hoje, não há sequer um mapeamento das manifestações culturais do Brasil. No âmbito do governo, a cultura é a única dimen-

secretarias de educação, escolas, centros culturais, museus, bibliotecas etc.

A LEI NO PAPEL Nos Estados, foram listadas as prioridades da cultura popular. Uma política para melhorar a circulação das produções, a destinação de uma cota mínima do orçamento do Ministério da Cultura para as culturas populares e a criação de uma aposentadoria para os artistas populares foram pontos elencado na maioria das oficinas. “A cultura popular é tratada como algo exótico, esquecem que por trás tem um ser humano, e geralmente ela é feita pelos mais

Fundo Nacional de Cultura - Mecanismo da Lei de Incentivo à Cultura, de repasse de recursos para projetos com menor apelo de mercado.

Da natureza para cotidiano Rose Brasil/ABr

ANÁLISE

Contra a lógica da homogeneização

são que ficou de fora do convênio para elaboração de pesquisas, firmado com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A intenção, agora, é elaborar um guia nacional de culturas populares, com informações sobre as diversas manifestações culturais. As versões preliminares, on line e impressa, devem estar prontas até o final do ano. O governo federal deve lançar em março um edital público exclusivo para financiamento de projetos voltados à cultura popular, com R$ 2 milhões do Fundo Nacional da Cultura, até agora “um grande balcão, que era muito político. Agora vamos democratizar por meio da concorrência”, segundo Sérgio Mamberti, secretário da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura. Alguns dos critérios de seleção já estão definidos: circulação da produção, transmissão de saber, manutenção de grupos e oficinas. Uma terceira proposta é a criação do Instituto Nacional de Cultura Popular, nos moldes da Fundação Nacional de Arte (Funarte). que articularia a relação com o Estado. Segundo o subsecretário de Identidade e Diversidade Cultural, Ricardo Lira, a criação do instituto se faz necessária já que não existe nenhum órgão público que trabalhe com a questão. “Trataria da manifestação artística porque a preservação é função do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)”, diz.

Renke Ashaninka, representante dos povos indígenas da Amazônia A exposição da Cabaça revela o uso das cuias e cuités em diversas culturas

Ana Nascimento/ABr

Somos mestiços. Não apenas etnicamente mestiços. Somos culturalmente mestiços. Dançando o Aruanã sob a lua; rezando numa capela de Nossa Senhora de Chestokova; curvados sobre a almofada da renda de bilros; trocando objetos e valores no Moitará; depositando ex-votos aos pés dos nossos santos; sambando na avenida; contemplando a pedra barroca tocada pela eternidade do Aleijadinho; dobrando a gaita numa noite de frio, no sul; tocados pela décima corda da viola sertaneja; possuídos pelo frevo e o maracatu nas ladeiras de Olinda e Recife; atados à corda do Círio de Nazaré; o coração de tambores percutindo nas ruas do Pelourinho ou no sapateado do cateretê; girando a cor e a vertigem do Boi de Parintins e de São Luiz; digerindo antropofagicamente o hip hop no caldo da embolada ou do jongo. Somos irremediavelmente mestiços. A lógica da homogeneização nos oprime. Por isso gingamos o corpo, damos um passe e seguimos adiante como num drible de futebol ou numa roda de capoeira que, sem deixar de ser luta, tem alma de dança e de alegria. Como formular um projeto de Políticas Públicas de Cultura, que contemple esse mosaico imperfeito? Como abrir janelas e portas e dizer: “Brasil, mostra a tua cara!”, como na canção de Cazuza? A proteção e a promoção da diversidade dos conteúdos e expressões culturais são elementos estratégicos de construção da ordem democrática e estão entre os deveres básicos dos governos e Estados nacionais. Cada sociedade, grupo social ou indivíduo tem um patrimônio cultural singular,

Brasil/ABr.

Sérgio Mamberti

da Redação

Músicos do grupo Bumba-Meu-Boi da Fé em Deus aquecem os pandeiros

que reflete um modo de viver próprio e um sistema de valores, pelos quais se expressam as diversas identidades. Elas, por sua vez, se reconhecem e se respeitam por meio do diálogo e dos intercâmbios. Ao longo da história, a exclusão dos segmentos populares das políticas públicas de nosso país, bem como a segregação social e racial, têm sido fatores determinantes na desvalorização de sua produção cul-

tural. Daí a urgência na discussão e construção de uma política nacional envolvendo os interessados – sociedade civil e gestores estatais – a partir de um amplo debate por todo o país, que deverá levar em conta os contextos locais de decisão. Sérgio Mamberti é ator e secretário da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura

Uma exposição, organizada pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, mostra como, por meio das cabaças, cuias e cuités, o ser humano se relaciona com a natureza de maneira diversa, revelando a cultura dos diferentes grupos populares. A mostra foi apresentada no Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares, realizado em Brasília (DF), de 23 a 26 de fevereiro As cabaças, cuias e cuités são plantas cujas cascas, muito duras, são usadas na fabricação de objetos cotidianos, tornando-se elementos de identificação e diferenciação das diversas culturas. No Norte e Nordeste, aparecem no dia-a-dia da cozinha, como utensílio – peneira, balde, vasilha e louça – para tomar o tacacá e acondicionar a farinha. No Sul e Sudeste, são usadas para tomar chimarrão e o tereré. A mostra revela também a cabaça no mundo da música. São 20 instrumentos musicais divididos entre os tradicionais – berimbaus,

xequerê, maracás, viola de cabaça (tradição européia adaptada no Brasil) e os instrumentos inventados, boa parte de corda. Há o cavaquinho com cabaça, rebeca, rebecão, harpa, marimbau (similar ao berimbau) e pé-de-vento. Também são utilizadas em brincadeiras e festas populares, como nos bonecos mamulengos do Nordeste e nas máscaras de bumba-meu-boi e reisados. A mostra revela o festival do Çairé de Santarém (PA), uma brincadeira do boto em que são utilizados cacos de cuia, e os bonecos marionetes de Laurentino Santos do Paraná. Ao chegar nos rituais, a exposição revela que, em algumas cerimônias, a cabaça é tanto instrumento musical como oferenda a diversos orixás no Candomblé. As cuias são usadas para beberagem e são importantes instrumentos, por exemplo, para dar banho nos iniciantes do candomblé, além de fazerem parte da indumentária de Omulu. No Mato Grosso, são usadas para a montagem de máscaras, utilizadas pelos índios kalapalo em suas cerimônias e rituais.


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