Ano 3 • Número 107
R$ 2,00 São Paulo • De 17 a 23 de março de 2005
Nas ruas, todos contra a guerra Robson Fernandes/AE
Joseph Barrak/AFP/AE
No planeta, milhões de pessoas vão pedir a retirada das tropas de George W. Bush e de seus aliados do Iraque
Líbano — Manifestantes protestam em frente à Embaixada dos Estados Unidos, em Beirute, contra a intervenção estadunidense em assuntos internos de outros países
O presidente Néstor Kirchner convocou um boicote à empresa anglo-holandesa Shell, devido aos aumentos nos preços da gasolina e do diesel. A decisão da transnacional vai elevar o custo de vida da população. A Federação dos Trabalhadores na Energia na República Argentina anunciou apoio ao boicote, mas lamentou que a medida não fosse estendida a outras transnacionais petrolíferas. Pág. 13
Agricultores contra as barragens Nesta semana, comemorase o Dia Internacional de Luta contra as Barragens. No Brasil, até agora, ocorreram mobilizações na Bahia, Pará, Paraná e Rondônia. Dias antes do início dos protestos, onze dirigentes
do Movimento dos Atingidos por Barragens foram presos irregularmente. Em Santa Catarina, cinco foram tirados de suas casas de madrugada por policiais com espingardas em punho, ameaçando prender
suas mulheres, caso não se entregassem. Em Minas, o saldo foi de seis prisões e 35 feridos, incluindo idosos e mulheres grávidas. Houve protestos em todo o mundo. Pág. 3
Arivaldo Chaves/Zero Hora/AE
Na Argentina, ações contra transnacionais
Nos EUA, vitória dos camponeses Produtores rurais ganharam uma disputa contra a transnacional do ramo de fast-food, a Yum!Brands, que aceitou pagar aos agricultores do povoado de Immokalle, sudoeste da Flórida, um centavo de dólar a mais por libra de tomate colhido. Foi o desfecho de uma história de quatro anos de greve e ações contra a rede de restaurantes Taco Bell, da qual a Yum!Brands é proprietária. A conquista vai dobrar o rendimento dos camponeses. Pág. 10
Movimentos mantêm pressão na Bolívia Reportagem exclusiva do Brasil de Fato na Bolívia mostra que, embora o presidente Carlos Mesa tenha sido fortalecido pelo Congresso, os movimentos sociais vão continuar com os bloqueios de estradas para pressionar os parlamentares a elevar os impostos das transnacionais. Indígenas, trabalhadores e camponeses exigem também uma nova Assembléia Constituinte. E Mesa tenta jogar a classe média contra as organizações populares. Pág. 13
M
ilhões de pessoas de todo o mundo vão às ruas, dias 19 e 20, para dizer não à invasão do Iraque e exigir a saída imediata das tropas invasoras. As manifestações contra as intervenções militares promovidas por George W. Bush, convocadas em janeiro, durante o 5º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, vão marcar o segundo aniversário do início dos bombardeios contra a capital Bagdá. Nos Estados Unidos estão programados o maior número de protestos: ativistas de pelo menos 573 entidades vão exigir a volta das tropas de seu país e a reparação financeira ao Iraque. Na Europa, além dos eventos por todo o continente, haverá uma manifestação central no dia 19, em Bruxelas, na Bélgica. No Brasil, as marchas terão como tema, além da guerra no Iraque, a violência urbana, o avanço militar dos EUA sobre o continente e o terrorismo econômico, entre outros. Págs. 2 e 9
Justiça continua a proteger latifundiários A menos que a audiência pública convocada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário para o dia 18 dê resultado, dia 29 pode haver derramamento de sangue no município de Alto Alegre dos Parecis, em Rondônia, data fixada pela Justiça para despejo de 128 famílias acampadas há oito anos no município. Lá, a preocupação é geral. Afinal, a produção dos acampados representa 20% da riqueza local e os fazendeiros anunciaram que vão armar 450 policiais para o despejo. Pág. 8
Muda política cambial. É pior para o país
Rio Grande do Sul – Agricultores do Movimento dos Pequenos Agricultores e do MST usam espigas de milho para bloquear o acesso ao Palácio Piratini, sede do governo, durante protesto que reivindica medidas de combate à seca que assola o Estado
Reforma universitária sem consenso Pág. 5
E mais: DITADURAS — O presidente do Uruguai anunciou início das investigações sobre o destino dos desaparecidos do regime militar. Na Argentina, o Senado aprova projeto de lei para indenizar exilados políticos. Pág. 12 DEBATE — O deputado federal Edson Duarte analisa como a Monsanto ganha com o governo Lula. Pág. 14
Insegurança causa rebeliões na Febem Pág. 6
ainda subsiste na África do Sul Pág. 11
Mudanças para simplificar procedimentos? Não, o governo liberalizou o mercado de câmbio, facilitando ainda mais as remessas de recursos em moeda estrangeira para o exterior. Tal facilitário, somado à falta de controle sobre o fluxo de dólares, em situações de incerteza, pode estimular saídas maciças de capitais, novas altas de juros, disparada do dólar e queima de reservas. Pág. 7
Anatel faz operação ilegal em Brasília No dia 9, a TV Comunitária de Brasília recebeu a visita de dois agentes da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que disseram estar em uma “ação preliminar para avaliar conteúdo” e pediram cópias de seus programas. Elifas Gurgel, presidente da Anatel, garantiu que não determinou a fiscalização. A ação pode ter resultado de requerimento de um deputado do PSDB, indignado com a programação democrática da emissora. Pág. 4
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De 17 a 23 de março de 2005
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Bernardete Toneto, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Marcelo 5555 Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
NOSSA OPINIÃO
O mundo contra o império No dia 19 de março, serão realizadas, em todo o mundo, manifestações para exigir a retirada das tropas imperiais anglo-estadunidenses do Iraque. Os protestos foram convocados pela Rede Mundial de Movimentos Sociais, reunida no âmbito do Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Em 2003, as mobilizações reuniram pelo menos 15 milhões de pessoas. Mais do que nunca, é preciso repetir e ampliar o número. A conjuntura internacional é dramática e exige medidas urgentes. O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, fortalecido pela reeleição, não apenas mantém a ocupação imperial anglo-estadunidense do Afeganistão e do Iraque, como aumenta perigosamente as pressões sobre a Síria, o Irã, Cuba e Coréia do Norte e ainda sustenta, incondicionalmente, o governo israelense de Ariel Sharon, cujo muro da vergonha petrifica a paisagem da Palestina ilegalmente ocupada como uma colagem de bantustões. Mas Bush enfrenta a extraordinária e heróica resistência dos povos. No Iraque e no Afeganistão,
não consegue sequer estabilizar os governos fantoches de conhecidos colaboradores da Companhia de Inteligência Americana (CIA). Na Palestina, a Intifada prossegue incessante, apesar de todo os horrores praticados diariamente pela máquina de morte de Ariel Sharon. Além disso, apesar de seu vasto poder econômico e militar, Bush não faz o que quer, quando quer e onde quer. A Casa Branca enfrenta contradições provocadas pelas disputas entre os países imperialistas europeus (Alemanha, França e Rússia) e tensões de vários níveis com potências asiáticas (China e Japão). Um dos sintomas foi a divisão provocada pela invasão do Iraque; outro, foi a recente entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, que relegou Washington a uma situação de total isolamento internacional. É possível e é urgente, nesse quadro mundial, deter a expansão neocolonialista do império angloestadunidense. Os povos de todo o mundo têm um dever de solidariedade ativa para com aqueles
FALA ZÉ
que entregam as próprias vidas à resistência antiimperialista. Não se trata de um mero princípio abstrato ou religioso de “amor ao próximo”. Muito ao contrário: uma vitória de Bush, em qualquer um dos países ocupados, significaria um tremendo estímulo para novas agressões contra a Síria, o Irã, Cuba e Coréia do Norte. E, sem dúvida, tornaria ainda mais acelerado o processo de ocupação da região amazônica, já sob a intervenção de tropas estadunidenses. Milhões de pessoas nas ruas vão mostrar aos heróicos combatentes iraquianos, afegãos e palestinos que eles não estão sozinhos, e ajudarão a ampliar as fissuras e tensões entre os poderes imperiais (como sabem, muito bem, os governos de Blair (Inglaterra), Chirac (França) e Berlusconi (Itália), e como sentiu nas urnas o ex-primeiro-ministro espanhol Aznar, por exemplo). No dia 19, portanto, vamos às ruas para nos somar aos trabalhadores, jovens e povos do mundo contra o império! OHI
CARTAS DOS LEITORES ENGANAÇÃO A revista Veja, na edição 1895, de 9 de março, publicou uma matéria sobre o MST e, como sempre, não fez jornalismo, mas um editorial apoplético. Que a Veja é uma m..., já sabemos. O que queria ressaltar é outro aspecto da enganação deste catálogo de tintas semanal. A referida edição tem 148 páginas (a numeração da revista indica apenas 128). 67 páginas são anúncios, capa e contra-capa. Outras 27, matérias de comportamento, serviço, notinhas e fofocas, o que já dá 64% da revista. Para colunas, cartas, política e reportegens, só 54 páginas . O que se paga, para obter aquele “jornalismo”, vale R$ 7,30? E olha que no expediente, eles têm a cara de pau de afirmar que a “Veja não admite publicidade redacional”. Agostinho de Soares Vitória (ES) SUGESTÕES Sem dúvida o jornal Brasil de Fato é muito interessante, tanto pelo conteúdo, como pelas interessantes matérias e pelos colaboradores. Sugiro que escrevam sobre cooperativismo, em uma coluna semanal ou quinzenal. José de Jesus Moraes Rêgo Brasília (DF) GLADIS MARÍN É impossível para mim associar Gladys Marín com a morte. O anúncio foi: “Morreu Gladis Marín”, frio, lapidário, negro, escuro...Gladis era o contrário, viva, comprometida com seu povo, sempre sorridente, sempre
abrindo os braços para te abraçar. As últimas vezes que a vi, já doente, estava repleta de projetos, gravava tudo que dizíamos, estávamos juntas, as duas, como se a vida fosse eterna. Por isso, não posso sentir ou pensar que Gladis esteja morta. Me dizia: “Tenho só um pouco de instabilidade para me mover, mas da cabeça, estou bem”. E ali se colocava a lembrar ou a recordar fantásticos momentos da luta que vivemos juntas, e me perguntava pelas Mães, pela Universidade, pelos projetos... E todo o tempo dizia: “Nós vamos fazer”. Deste lugar de onde escrevo, do escritório que uso todos os dias, o mesmo que usou meu filho Jorge para estudar, te prometo que faremos tudo juntas, que em cada sonho que se concretize, sentirei seu abraço e verei seu sorriso de triunfo. Guarde para mim um lugar a seu lado para quando eu chegar aonde você está, possa contar-lhe, tranquila, todos os sonhos transformados em realidade e também tudo que se ficou por fazer. Muitos outros, antes de nós, cultivaram a revolução em nossa terra. Ah, falta lhe dizer que quando se encontrar com meus filhos, os abrace e diga a eles que me esperem para brindar juntos por esta revolução que está chegando à nossa amada América Latina Hebe de Bonafini Buenos Aires (Argentina)
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CRÔNICA
O quarto poder Luiz Ricardo Leitão Em 1933, existiam no planeta 1.203 emissoras de rádio. Nas Américas, havia 789 estações, 625 nos EUA. Cuba, naquela época um verdadeiro quintal do império, aparecia em quarto lugar nas estatísticas mundiais, atrás do Canadá e da Rússia, com 52 emissoras, uma cifra bem superior às do Brasil (22 rádios) e Argentina (17). O fenômeno não era gratuito: o emergente tio Sam se dispunha a regular a economia mundial, a aperfeiçoar sistemas de controle dos imaginários coletivos nacionais. Para isso, a pérola do Caribe era o “laboratório” perfeito para a indústria cultural ianque na América Latina. Embora ainda fôssemos uma região essencialmente agrária, a presença dos ícones do cinema entre nós era algo absolutamente avassalador. Até Mário de Andrade, quando escreve “Amar, verbo intransitivo”, retratando a vinda de uma família de pecuaristas para São Paulo, no final da década de 20, registra a força dos mitos de Hollywood nos corações e mentes dos novos filhos da casagrande tupiniquim. Em 1950, o mais sofisticado invento dessa Paidéia audiovisual também se instala ao sul do Rio Grande. Muito antes de países como
o Canadá, a Suécia ou o Japão, a televisão surge em três naçõeschave do subcontinente (México, Brasil e Cuba), quase que inteiramente patrocinada pelos capitais dos EUA. Será que os irmãos Lumière, responsáveis pela primeira sessão de cinema em 1895, poderiam imaginar que o mundo se converteria em um meio virtual e que um século mais tarde as imagens valeriam bem mais do que a realidade nesta esquizofrênica “sociedade do espetáculo”? Pois com o inchaço das cidades na América Latina, as grandes redes de TV, subsidiadas pelas corporações multinacionais, avocam para si o papel de veículo nº 1 da “integração nacional”. É assim que se cria, em 1964, na Venezuela, a malfadada Venevisión (a quem o povo apelidou de “Venenovisión”), comandada pela sinistra família Cisneros – um dos maiores lacaios que os EUA têm por aqui – e, ao mesmo tempo, a viscosa Televisa, no México. No Brasil, que em 64 inaugura o tenebroso ciclo do arbítrio em solo latino-americano, logo apareceria a tenebrosa TV Globo, destinada a ser o grande veículo de sedução e cooptação do povo brasileiro. É claro que nunca lhes faltou a mínima verba ou recursos para
que conseguissem espraiar-se por imensos territórios, como é o caso da rede brasileira. Desde o dinheiro ilegal enviado pelo grupo Time-Life a Roberto Marinho, até as centenas de filmes B de Hollywood exibidos a preço de banana pela nova emissora, tudo concorreu para que ela rapidamente superasse a concorrência e viesse a impor seu padrão de transmissão àqueles que sequer haviam sido beneficiados com a ampliação da rede de microondas no país. O mais triste, porém, é que hoje, 40 anos depois, os pilares do quarto poder ainda detêm muita força: na Venezuela, chegaram a imaginar que poderiam depor um presidente legalmente eleito pelo povo. No Brasil, julgam que a nossa história se divide em antes ou depois da criação de sua rede. Senhores do próprio destino, continuam a vender o sonho da conquista da América e celebram seu aniversário como se eles fossem uma instituição mais importante do que o próprio Poder Executivo da Pátria. Será ou... já é? Luiz Ricardo Leitão é editor e escritor. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é também professor adjunto da UERJ
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De 17 a 23 de março de 2005
NACIONAL LUTA CONTRA BARRAGENS
No Brasil, um festival de prisões Alexania Rossato e Marcelo Netto Rodrigues de Brasília (DF) e da Redação
Celso Júnior/AE
No país e em todo o mundo, protestos em defesa das populações prejudicadas pela construção de hidrelétricas dro Scalabrim. Estão presos os agricultores Aurélio Dutra, Carlos da Silva, Dorneles Chinato, Edio Grasse e Leodato Vicente. Mais seis lideranças têm mandado de prisão decretado pela juíza de Campos Novos, Adriana Lisboa. Segundo Scalabrim, não existe sequer um processo contra os atingidos. A direção do MAB reagiu às prisões afirmando que esta é mais uma ação para intimidar e impedir as denúncias que o povo tem feito contra as empresas construtoras de barragens, que fraudam os relatórios de licenciamento ambiental para construção das obras, como aconteceu em Barra Grande, na divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
N
este ano, o Dia Internacional de Luta contra as Barragens, 14 de março (que, na verdade, incluem manifestações durante uma semana, a partir do dia l4), foi marcado pela noite. Para ser exato, por duas noites. Às vésperas da comemoração, que acontece ao redor do mundo desde 1997, onze dirigentes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) foram presos entre 18 e 8 horas. Já como parte oficial da semana, dia 15 ocorreram mobilizações na Bahia, Paraná, Rondônia e Pará (veja textos nesta página). Na noite do dia 8, em Minas Gerais, a Polícia Militar prendeu seis dirigentes do MAB e feriu 35 agricultores (entre eles, idosos e duas mulheres grávidas), durante protesto contra uma audiência pública que liberaria a concessão de licença prévia para a construção de uma barragem em Rio Casca. A audiência, marcada propositalmente para as 18 horas, tinha a intenção de deixar de fora os atingidos pela obra. Apesar do conflito, a empresa responsável pela obra, a Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina e a Fundação Estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais realizaram a audiência. Foram levados para a delegacia
PELO MUNDO
As mobilizações contra barragens, na semana do dia 14 de março, acontecem ao redor do mundo desde 1997
o padre Antonio Claret, Joaquim Bernardo, Marta Caetana, Juliana Teixeira e José Vicente. As lideranças ficaram presas até a madrugada e os feridos foram encaminhados ao hospital. A polícia não permitiu que os feridos fizessem o laudo ou dessem queixa na delegacia do município. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima) reconhece apenas
141 famílias como atingidas. Mas só em uma das comunidades, localizada abaixo do muro da barragem, são 170 famílias, na grande maioria meeiros, colonos e diaristas. Ao todo, são mais de 500 famílias atingidas diretamente pelo projeto da Pequena Central Hidrelétrica Jurumirim. Já na madrugada do dia 12, em Campos Novos, Santa Catarina,
foram cinco os presos, retirados de dentro de suas próprias casas e conduzidos ao presídio da cidade. “A Polícia Militar invadiu as residências durante a madrugada com espingardas em punho. Na presença das crianças, ameaçaram prender as mulheres, caso as lideranças não se entregassem. A maioria das famílias está em estado de choque”, conta o advogado do MAB, Lean-
Ibama é ocupado na Bahia
Mobilização em Tucuruí, no Pará
Com a mobilização, os atingidos esperam a respostas para problemas ainda não resolvidos. Eles reivindicam da Eletronorte uma saída definitiva para os problemas sociais e ambientais dos expropriados, uma solução para os pescadores que pescam no pé da barragem e para as famílias afetadas pela explosão da eclusa.
MAIS POBREZA As mobilizações também são uma ação conjunta das populações afetadas da região amazônica contra os projetos do governo federal para o Rio Madeira. Segundo os atingidos da região, os projetos existentes terão a mesma finalidade de Tucuruí: exportar energia e deixar a população na pobreza.
Dois terços da energia gerada em Tucuruí destinam-se ao abastecimento de quatro indústrias de alumínio instaladas no Pará e no Maranhão. As 20 mil pessoas atingidas, além de não receber indenização pelos danos que sofreram, também não são servidas por energia elétrica. A energia que falta na casa das famílias atingidas e na de boa parte da população rural rural pobre é distribuída às grandes fabricantes do alumínio a preços subsidiados. Nos últimos 20 anos, os subsídios na conta de luz daquele setor industrial foram de cerca de 200 milhões de dólares por ano. Se esses recursos públicos fossem destinados à reforma agrária, seria possível assentar 514 mil famílias de trabalhadores rurais. (AR)
denizadas até hoje, diferentemente dos fazendeiros que, à época, receberam suas reparações. De acordo com os levantamentos feitos na região, 650 famílias tradicionais (ribeirinhas e de seringueiros) esperam reassentamento. Na década de 80, as famílias atingidas foram deslocadas para a localidade de Linha Triunfo, sem qualquer garantia de condições mínimas para a retomada da produção. No local, a
Eletronorte também não construiu casas e nem escolas para as famílias expulsas. Segundo Wesley Ferreira Lopes, da coordenação do MAB em Rondônia, os atingidos permanecerão mobilizados até que a Eletronorte faça os encaminhamentos concretos para solucionar os problemas causados pela barragem. “Estamos lutando há duas décadas, e não vamos desistir”, afirma o dirigente. (AR)
O agronegócio está destruindo a vegetação original para plantar soja, milho, sorgo, algodão e culturas irrigadas como o café. Os atingidos denunciam que o Ibama é fraudulento e libera licenças para o desmatamento do cerrado, atingindo a cabeceira e a costa dos rios. “Os agentes do Ibama ignoram isso e permitem a devastação. Todos os rios da região estão ameaçados”, afirma Raquel Barbosa, do MAB. As carvoarias são outro problema: entre 2003 e 2004, mais de 2.000 trabalhadores em regime de escravidão foram libertados na região. Com o MAB, participaram da mobilização as paróquias da região, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), os quilombolas, a Coordenação dos Trabalhadores Acampados e Assentados e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). (AR e MNR)
Arquivo MAB
Cerca de 1200 atingidos ocuparam a eclusa da barragem de Tucuruí, no Pará
Acesso à hidrelétrica negado em Rondônia Quinhentos agricultores e pescadores atingidos pela Usina Hidrelétrica de Samuel, em Rondônia, bloquearam a BR-364 que dá acesso à barragem. Com isso, foi impedida a entrada e a saída dos funcionários da usina, localizada sobre o Rio Jamari, a 47km da capital, Porto Velho. Construída há 22 anos pela Eletronorte, a barragem expulsou cerca de mil famílias de suas terras, sendo que 80% delas não foram in-
No extremo oeste da Bahia (uma área maior do que a Itália), em Barreiras, 350 camponeses e agentes de pastoral, vindos desde a divisa com Minas Gerais e com o Piauí, ocuparam uma das duas únicas subsedes do Ibama no Estado para denunciar a exploração do cerrado pelo agronegócio e a falta de capacidade estrutural do órgão. “Queremos uma legislação específica para o cerrado, para que as vozes das comunidades científicas e brejeiras sejam ouvidas, e não só as do agronegócio”, pede Iremar Araújo Barbosa, um dos coordenadores do MAB na região, preocupado com os tratores nas cabeceiras dos rios, que destroem “65 milhões de anos acumulados pelo bioma mais antigo do Brasil”. Segundo ele, para fiscalizar, o Ibama conta apenas com três carros. Sem gasolina.
Arquivo MAB
Mesmo com a presença do Exército há mais de duas semanas na região, cerca de 1.200 atingidos por Tucuruí ocuparam a eclusa da barragem, dia 15, impedindo a continuação das obras. Segundo o MAB, o acampamento conta com mais de 2.200 pessoas e deve continuar até que a Eletronorte, responsável pela construção, proponha soluções para os atingidos pela barragem. Segundo os dirigentes do Movimento, no local, a polícia e o Exército observam a movimentação dos prejudicados pela obra. Esses denunciam que, na última semana, o Exército revistou todos os veículos que circulavam na região, inclusive ônibus escolares, impedindo as crianças de estudar. Segundo Roquevam Alves da Silva, um dos coordenadores do MAB em Tucuruí, o que o Exército vem fazendo é uma vergonha: “Ao invés de fiscalizar os madeireiros que devastam a floresta e ameaçam de morte os atingidos, tenta inibir qualquer manifestação que busca solucionar os problemas sociais do povo”, afirma. A barragem de Tucuruí foi construída durante a ditadura militar e está localizada no Rio Tocantins. A obra expulsou mais de 32 mil pessoas e, até hoje, muitas delas sequer foram indenizadas. Segundo relatos da época, agentes químicos chegaram a ser lançados sobre a mata para forçar a saída da população. Por isso, 20 mil pessoas acabaram se refugiando na beira do lago e nas ilhas formadas com o enchimento do reservatório, concluído em 1984.
Na Tailândia, os atingidos por barragens se manifestaram contra o financiamento do Banco Mundial para a construção de uma barragem no país vizinho, o Laos. Em Londres, os protestos foram contra as construções de barragens no Paquistão. Na Nigéria, foram realizados seminários sobre os direitos dos atingidos, enquanto em Camarões, o tema era a mídia e o impacto das barragens. Na Bósnia e na Argentina, o dia também foi lembrado. Para se ter uma idéia, ano passado, ocorreram mobilizações em mais de 20 países.
No Paraná, os sindicalistas se juntaram aos manifestantes em protesto na rodovia
Bloqueio de rodovia no Paraná Mais de 1.200 atingidos por barragens e pela seca, que há mais de três meses assola o sul do país, se mobilizaram em Coronel Vivida, região sudoeste do Paraná, bloqueando a rodovia próxima ao município de Pato Branco. O movimento sindical se juntou ao MAB na manifestação. Segundo Hélio Mecca, coordenador do MAB na região, a seca foi muito forte e será difícil para os pequenos agricultores se recuperar. “No plantio da soja, tivemos quase perda total e na safra do milho, a perda foi de mais de 50%. Se os governos não direcionarem recur-
sos para produtores rurais mais pobres, a grande maioria dos municípios, que dependem da pequena agricultura, vai quebrar. E afetar, inclusive, o comércio das pequenas cidades”, afirma ele. Mecca também diz que na bacia do Rio Chopim existem projetos para a construção de treze barragens. Dois deles estão em fase de licenciamento ambiental, à espera de aval positivo do Instituto Ambiental do Paraná para iniciar as obras. Estes treze projetos vão atingir diretamente nove municípios e mais de 1.300 famílias. (AR)
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Espelho
LIBERDADE DE IMPRENSA
Anatel: repressão sem limites
Luiz Antonio Magalhães
Os primeiros sinais Como no PT não haverá luta interna para decidir quem vai disputar a Presidência da República em 2006, a guerra de intrigas é maior na oposição. A grande imprensa, lógico, gostaria de ver o presidente Lula de volta a São Bernardo, mas não existe consenso em torno de quem seria capaz de derrotá-lo nas urnas. Por isto, cada veículo dá o seu lance. A Folha de S. Paulo, por exemplo, parece estar convencida de que a melhor opção é José Serra (PSDB). O governador Geraldo Alckmin, outra alternativa natural dos tucanos, começou a ser criticado no jornal, embora ainda timidamente. Na edição de domingo, 13, a Folha publicou uma denúncia sobre um golpe que deputados estaduais ligados a Alckmin estariam dando para burlar o teto salarial da Assembléia Legislativa. Oposição dividida As intrigas no campo da oposição a Lula devem aumentar depois da derrota do tucano Alckmin na Assembléia Legislativa de São Paulo. O candidato do PSDB perdeu a presidência da casa para Rodrigo Garcia, do PFL do vice-governador Cláudio Lembo. Tucanos atribuíram ao dedo de José Dirceu a eleição de Garcia, um discurso para consumo externo. O petista até trabalhou para vingar a atuação dos tucanos na eleição de Severino Cavalcanti (PP) na Câmara Federal. Porém, sem a complacência da cúpula do PFL, Garcia nem teria tido a coragem de lançar a sua vitoriosa candidatura. Analistas mais experimentados dizem que, além do dedo de Dirceu, a vitória de Garcia teve a mão leve dos liberais César Maia e Jorge Bornhausen, interessados no enfraquecimento de Alckmin. No front das idéias... Enquanto as traições e as intrigas correm soltas, no campo das idéias, o oligopólio midiático brasileiro vai acertando o passo. Quase todos os veículos citam como pontos críticos do governo Lula o aumento de gastos do setor público, a ineficiência dos programas sociais, a utilização de juros altos e a fixação de uma meta de inflação considerada “baixa demais”. A política econômica como um todo não é atacada, apenas se ressalva o problema dos juros e, às vezes, do câmbio. Mas o que se está tentando vender é a idéia de que Lula gasta muito e mal, não dosa bem a correta política econômica herdada de Fernando Henrique e, ainda por cima, não cumpre o que prometeu a vida inteira – melhorar os índices sociais do país. ...e no campo da baixaria Mas nem só de idéias se faz uma campanha eleitoral. O jogo baixo também começou, como se pôde ver na reportagem de capa da revista Veja desta semana, se é que se pode chamar o que saiu na revista de material jornalístico. Além do semanário da Abril, porém, alguns colunistas também estão explorando novamente a idéia de que o PT “está bonzinho, mas não é bonzinho”, em referência às relações do partido com grupos de esquerda. Mais uma tentativa de emplacar o desgastado discurso do medo.
Sanha da Agência chega à TV Comunitária de Brasília Bel Mercês da Redação
N
o dia 9, a TV Comunitária de Brasília, localizada no Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, foi alvo de mais uma operação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A emissora recebeu, inesperadamente, a visita dos agentes Alex Pires e José Maria, que se diziam da Anatel e, alegando estar em uma “ação preliminar para avaliar conteúdo”, pediram cópias de seus programas. Os diretores da TV Comunitária, Paulo Miranda e Beto Almeida, não permitiram a entrada dos agentes porque não apresentaram qualquer documento oficial que legitimasse a solicitação. Para Miranda, foi mais uma ação ilegal e discriminatória contra a mídia comunitária. “A gente avalia isso como repressão,” acentua. Em um documento enviado no mesmo dia 9 ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao ministro das Comunicações, Eunício Miranda, os diretores da emissora informaram que os agentes Pires e José Maria não souberam responder em qual lei se baseavam para fiscalizar conteúdo de TV Comunitária. E, ainda no mesmo dia, os dois agentes foram à NET de Brasília e ordenaram que a empresa fizesse cópias da programação da emissora comunitária. Segundo Miranda, os funcionários da NET consideraram a ordem uma afronta, e pediram aos fiscais da Anatel que fossem embora.
MEDO DA INFORMAÇÃO Na noite do dia 9, o ministro Eunício Miranda ligou para o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, Romário Schettino, informando que tinha procurado o
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) continua a reprimir as rádios e televisões comunitárias no governo Lula
presidente da Anatel, Elifas Gurgel, que garantiu que a Agência não havia determinado qualquer fiscalização à TV Comunitária. Gurgel disse ao ministro que os fiscais da Anatel não cumpriram os procedimentos adequados e confirmou que a agência não fiscaliza conteúdo transmitido por emissora de televisão. A “ação preliminar para avaliar conteúdo” poderia ter resultado de um requerimento de informação feito pelo deputado federal Bismarck Maia (PSDB-CE), enviado ao Ministério das Comunicações (MC), com despacho de 9 de novembro de 2004, número 2202, que “solicita informações sobre transmissão, pelo canal 8 da empresa NET/Brasíla – Canal Comunitário, de programação estrangeira de teor político-partidário, gerada por canal de televisão da Venezuela”, segundo texto que aparece na espe-
cificação do assunto da solicitação. A informação obtida do gabinete do deputado Maia é que, ao assistir a um programa da emissora em que o presidente venezuelano dialogava com a população de seu país, questionou qual seria a função social desta transmissão para a comunidade brasileira, e também sobre a legalidade da operação.
INTIMIDAÇÃO Em mensagem eletrônica, Beto Almeida, diretor da TV Comunitária, disse ao Brasil de Fato, que suspeita que a ação foi “uma operação paralela, visando nos intimidar, exatamente pela nossa programação, que coloca em debate, sistematicamente, conteúdo de natureza progressista, nacionalista, internacionalista, popular, com opiniões do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do presi-
dente (Hugo) Chávez e de todas as personalidades e lutadores sociais que são silenciados pela mídia do grande capital”. Paulo Miranda afirma que a visita dos agentes é mais uma prova de que a Anatel trabalha com autonomia em relação ao governo federal e, novamente, cometeu um crime contra a liberdade de expressão. “Nós também assinamos uma carta em apoio à radiodifusão comunitária”, informou. Ele se refere a um documento tirado em plenária no 5º Fórum Social Mundial, realizado em janeiro, em Porto Alegre. A “Carta Aberta das Rádios Comunitárias aos Três Poderes da República” é assinada por diversas entidades representativas da sociedade civil, que se colocam contra a violência e a repressão às rádios livres e comunitárias exercidas no governo Lula.
ANÁLISE
Os assinantes pagam, Veja mente José Arbex Jr. Em sua edição de 5 de março, a revista – ou melhor, panfleto da direita racista tupiniquim – volta a produzir injúrias, calúnias e difamações contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com a “reportagem” intitulada “Nós pagamos, eles invadem”. O panfleto acusa o MST de desviar “milhões de reais” fornecidos pelo governo para implementar a reforma agrária. O dinheiro “desviado” seria utilizado para promover novas “invasões”. Além disso, Veja publica depoimentos de supostos ex-integrantes do MST que denunciam a cobrança de taxas ilegais a todos os assentados por parte da direção nacional do movimento. Irados com tamanha injustiça, os ex-militantes queimam a bandeira do MST, produzindo um indisfarçado orgasmo nos autores da “reportagem”, feita no assentamento Baixio do Boi, no município de S. José de Belmonte, sertão central de Pernambuco.
E A VEJA MENTE DE NOVO Primeiro, vem a questão dos “dissidentes irados”. No assentamento vivem 190 famílias, cerca de 800 pessoas. Destas, apenas 10 participaram do “protesto”, liderado por um certo Francisco, ex-técnico agrícola dos assentados. Outros que acompanhavam o evento não tinham qualquer relação com o MST. O que a revista não conta, explica Jaime Amorim, da direção do movimento, é que há cerca de 6 meses o tal Francisco foi demitido pelo MST, por suspeitas de desvios de dinheiro do Pronaf e má conduta. Atualmente, o tal Francisco sofre
processo do Banco do Nordeste, por desvio de dinheiro. Ou a Veja não sabia disso, e portanto é incompetente, ou sabia e ocultou a informação, e portanto é criminosa. Depois, vem a acusação da suposta “cobrança ilegal de taxas”. Essa é velha. A lebre foi levantada, no ano 2000, pelo suposto “jornalista” Josias de Souza, da Folha de S. Paulo, posteriormente obrigado a admitir ter feito a sua “reportagem” sob os auspícios do governo Fernando Henrique Cardoso, que chegou a ceder automóveis e orientação técnica para a produção de um trabalho realmente “independente” de jornalismo. Na época, o MST esclareceu exaustivamente que qualquer cooperativa, em qualquer parte do planeta Terra, cobra um taxa mínima de seus associados, como condição básica de subsistência. Por fim, vem a acusação de “desvio de verba” para promover “invasões”. Francamente, o assunto chega a ser tedioso e não merece sequer ser comentado. Os editores do panfletão acham estranho o governo ceder verbas a um movimento social que agrega 300 mil famílias de trabalhadores rurais em todo o país e que mantém escolas, atendimento de saúde, treinamento profissional, assistência técnica e outros serviços públicos. Só para mero efeito de comparação: em 2003, a Anca (acusada pela Veja de receber dinheiro público indevido) obteve do MEC R$ 3.424.608,00 para promover o seu programa de alfabetização de 35 mil sem-terra adultos, em acampamentos e assentamentos, alguns situados em áreas tão inóspitas que não são servidos por qualquer
Divulgação
Começou a guerra A campanha para a eleição de 2006 não chegou às ruas, mas está na mídia. Os leitores mais atentos percebem sinais claros disso nas grandes publicações locais. No noticiário, de um lado, notas e reportagens plantadas, na maioria das vezes por gente com interesse direto na batalha da formação das candidaturas. É o capítulo que antecede a campanha propriamente dita, em geral repleto de traições e intrigas, inclusive entre aliados. De outro, os jornais e revistas começam a testar, no campo das idéias, os conceitos que nortearão o pleito. Uma operação para tentar convencer a opinião pública sobre o que deve ser levado em conta na hora de escolher os governantes.
Agência Brasil
da mídia
NACIONAL
Capa da revista que publicou a “reportagem” e cartaz da campanha contra Veja
infra-estrutura estatal. Pois bem: no mesmo período, a entidade dirigida pela ex-primeira-dama Ruth Cardoso (Alfabetização Solidária) recebeu R$ 33.966.900,00 e o Sesi, R$ 27.680.400,00; ao Instituto Riomafrense do Bem Estar do Menor, entidade nível municipal do Paraná, foram destinados R$ 6.193.440,00. Nada disso merece atenção dos honestos editores do panfletão. Curiosamente, a revista – também repudiada pelo PT, a quem acusou sem provas de ter recebido verbas das Farc colombianas para promover a campanha eleitoral de 2002 – nada diz quanto aos recursos bem mais vultuosos endereçados pelo governo aos cofres da família Civita, a título de pagamento por anúncios publicitários e aquisição de assinaturas de publicações do Grupo Abril. Seria muito interessante promover uma CPI para investigar as relações entre os vários governos e os donos do Grupo Abril, e mais ainda investigar o
destino que a família Civita dá ao botim. Vejamente, eis tudo. De nada adiantou, ao que parece, a revista ter sido condenada por injúria, calúnia e difamação, por “reportagem” semelhante, publicada na edição de 10 de maio de 2000, intitulada “A tática da baderna”. Na época, João Pedro Stedile entrou com processo no Fórum da Lapa, e ganhou em primeira instância. Apostando na morosidade da Justiça, a revista recorreu. O processo ainda tramita, mas moralmente a revista foi conduzida ao seu lugar: a lata de lixo da história. Os assinantes da revista, aliás, deveriam fazer um movimento para exigir de volta o seu dinheiro, por receberem notícias falsas e ainda por cima requentadas. Fica a sugestão: aproveitem como mote o lema “nós pagamos eles mentem”. José Arbex Jr. é editor da revista Caros Amigos. Colaborou Hamilton Octavio de Souza
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De 17 a 23 de março de 2005
NACIONAL REFORMA UNIVERSITÁRIA
O projeto patina em divergências Maíra Kubík Mano de São Paulo (SP)
E
m uma discussão acalorada, Paulo Gomes Cardim, reitor do Centro Universitário Belas Artes e vice-presidente da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, declarou que ainda não conseguiu mudar uma vírgula no projeto de reforma universitária. Foi então que, já ultrapassadas as 23h00 do dia 7, o ministro da Educação, Tarso Genro, respondeu que o governo não dialogava com quem classificava o projeto como “lixo”. “Mas se vocês tiverem alguma proposta séria, estou disposto a recebêlos”, completou. Essa cena, transmitida ao vivo em cadeia nacional de televisão, ilustra bem o tom das divergências dos debates sobre a reforma universitária proposta pelo Ministério da Educação (MEC). É possível identificar, claramente, pelo menos três posições sobre o tema. De um lado, algumas universidades particulares, com referência na figura de Paulo Renato de Souza, ex-ministro da Educação durante a gestão Fernando Henrique Cardoso. De outro, o ministro Tarso Genro, apoiado por setores da União Nacional do Estudantes (UNE) e pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Há, ainda, uma terceira posição, defendida pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior – (Andes-SN) e parte do movimento estudantil, mas que raramente é ou-
Arquivo Brasil de Fato
UNE apóia a proposta, mas sindicato dos docentes discorda e prevê que lucros do ensino privado vão crescer tro ponto polêmico é que só poderão aderir ao programa centros credenciados ao Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), o que vai provocar uma diminuição das bolsas aos alunos.
RETROCESSO
De 1992 a 2002, o número de instituições privadas saltou de 666 para 1442, enquanto que as públicas caíram de 227 para 195
vida. O grau de discordância entre os atores é tão grande que o MEC decidiu estender o prazo de inscrição das contribuições ao projeto até julho. O texto final deve chegar à Câmara Federal em agosto.
PÚBLICO X PRIVADO Paulo Renato critica que a reforma privilegia as universidades públicas. “O projeto restringe a expansão do ensino superior ao criar um conceito subjetivo de necessidade social e ao estabelecer regras mais
difíceis para a criação de universidades. Esses foram mecanismos que levaram a uma expansão do ensino superior com melhoria da qualidade”, avaliou. Um detalhe omitido pelo ex-ministro de FHC é que a expansão ficou restrita às instituições privadas que, segundo o MEC, pularam de 666 para 1.442, entre 1992 e 2002. Já as instituições públicas diminuíram de 227 para 195 unidades. Para o diretor de políticas educacionais da UNE, Rodrigo Pereira,
quem deve sair lucrando são os donos das universidades particulares, por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni). “As verbas públicas, que deveriam ser destinadas à universidade pública, estão indo para as particulares”, afirma o estudante que diverge da posição majoritária da sua entidade. Instituído no final do ano passado, o Prouni é parte central da reforma universitária e garante que 10% das vagas das instituições particulares serão financiadas pelo governo. Ou-
VESTIBULAR
PORTO ALEGRE
Cursinho da Poli sob ameaças A demissão de quatro professores do Cursinho da Poli (CP), curso pré-vestibular vinculado ao Grêmio Politécnico (GP) e à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), tornou pública a polêmica sobre os rumos tomados pela instituição, criada em 1987. Em 15 de fevereiro, foram demitidos os professores Gilberto Cunha Franca, Gislaine Silvana Gasparotto, Haroldo de Godoy Bueno e Roberto Goulart Menezes. No final de 2004, esses mesmos docentes haviam assinado, com mais 25 signatários, uma carta aberta exigindo a abertura de um amplo debate sobre o futuro do Cursinho. A intenção era discutir, entre outros aspectos, os planos da atual coordenação, que pretende transformar o instituto que administra o Cursinho em uma fundação e, depois, abrir uma escola privada de ensino médio e uma faculdade particular de Pedagogia. Essa política tem gerado resistência dentro e fora da sala de aula. Criado para atender jovens de baixa renda, o Cursinho da Poli se tornou uma referência na defesa de uma educação pública e gratuita e de
qualidade. Desde que as demissões se tornaram públicas, intelectuais, entidades acadêmicas, ex-alunos e atuais professores manifestaram seu repúdio. “O caráter político do ato arbitrário cometido pela direção do Cursinho fica explícito uma vez que não existe no curso nenhum tipo de avaliação pedagógica”, diz uma carta aberta assinada por intelectuais como Francisco de Oliveira, Fabio Konder Comparato e Demetrio Magnoli. Os alunos do Cursinho e outros docentes vão acionar o Ministério Público para exigir a readmissão dos demitidos e a democratização da estrutura do Cursinho.
CALA-BOCA Para Roberto Menezes, sua demissão e a de seus colegas foi “um cala-boca”. O professor rebate a acusação da coordenação, que alegou “discordância pedagógica”, dizendo que as apostilas escritas por ele continuarão sendo usadas. “Como professor eu não sirvo, mas meu material serve?”, questiona. Os alunos também acusam perseguição. João Vitor, da Associação de Alunos do Cursinho da Poli (AACP), revela que integrantes da atual gestão da entidade estão proi-
bidos de entrar no Cursinho desde o final de 2004 por “não estarem mais matriculados”, embora seu mandato dure até maio.
GOLPE Alunos e professores acusam, ainda, a atual coordenação de ter dado um golpe no estatuto do Cursinho. Em 2001, o grupo que comanda a entidade hoje realizou uma manobra jurídica para continuar no poder, mesmo perdendo as eleições do Grêmio Politécnico. Como explica Menezes, os então estudantes desvincularam o Cursinho do Grêmio e criaram o Instituto do Grêmio Politécnico para o Desenvolvimento da Educação (IGPDE). Definiram, ainda, que esse novo organismo seria vinculado a um Conselho Curador, com oito vagas distribuídas de forma nada democráticas. Seis cadeiras são vitalícias e as outras duas vagas destinadas ao Grêmio, “que tem apenas papel decorativo”, diz Menezes. Depois disso, o perfil do Cursinho mudou. Em 2004, eliminaram a análise socioeconômica que privilegiava o público de menor renda. De 2003 para 2004, as mensalidades quase duplicaram nas áreas de Exatas e Biológicas.
Estudantes reclamam da qualidade do ensino Cerca de 150 estudantes fecharam por uma hora a Avenida Príncipe Edgar, em Santo André, dia 12, para protestar contra medidas tomadas pela reitoria da Fundação Santo André. Durante o ato, os estudantes entregaram uma Carta Aberta denunciando a situação da Universidade. De acordo com o estudante de Ciências Sociais da Fundação, Mateus Trindade, além de manter laboratórios e bibliotecas defasados, o conselho diretor deliberou o fechamento de salas
em cursos como Ciências Sociais, Geografia, Pedagogia e Letras. Danilo Amorim, também estudante de Ciências Sociais, diz que embora não tenha havido nenhuma resolução oficial, a reitoria enviou documentos com novos horários e novas salas para os colegiados – instâncias que existem em cada um dos cursos e contam com a presença de 70% de docentes, 10% de funcionários e 20% de alunos.
REIVINDICAÇÕES Amorim conta que, com as mudanças, haverá um número maior
Estudantes protestam contra o aumento da passagem de ônibus em Porto Alegre (RS)
Julio Penz de Porto Alegre (RS)
FUNDAÇÃO SANTO ANDRÉ
da Redação
No Sul, protestos contra o preço dos ônibus Júlio Penz
da Redação
Marina Barbosa Pinto, presidente do Andes, concorda com as críticas à reforma: “Além de criar medidas para consolidar os ganhos de determinadas universidades privadas, cujos faturamentos não são aferidos, ainda cria uma sobrevalorização deste lucro com a distribuição de incentivos fiscais para estas empresas”. A docente considera a proposta do governo um retrocesso na política de educação brasileira. “Reforma é algo que avança, não algo que retrocede. É necessário barrar este processo como um todo para reabrir o diálogo com a sociedade e com o governo, permitindo a criação de um projeto de educação que possibilite avanços”, afirmou, em debate recente na Universidade Católica de Salvador (UCSal). Também com uma avaliação crítica ao projeto, outro setor do movimento estudantil que não participa da UNE, a Coordenação Nacional de Lutas dos Estudantes (Conlute), decidiu em seu encontro nacional que organizaria uma campanha contra a reforma universitária. Segundo o texto, os estudantes devem “lutar pela construção de uma greve nacional unificada entre estudantes, professores e funcionários para derrotar a reforma”.
de estudantes por aula. Em alguns casos, serão cerca de 80 alunos por sala. Alguns cursos estão com situação ainda mais grave. “Em Geografia, acabaram com o curso matutino e disseram os que não podem estudar à noite que se transferissem para outra faculdade, em Osasco”, explica o estudante. Outra reivindicação é a contratação de novos docentes. De acordo com Amorim, do terceiro ano de Ciências Sociais, faltam três professores nesse curso. Sem aulas, o estudante conta que muitos “têm medo de não poder se formar”.
O aumento de 12,9% no preço das passagens de ônibus, em Porto Alegre, efetuado dia 13, está desencadeando uma série de mobilizações de estudantes e trabalhadores. A tarifa de ônibus passou de R$ 1,55 para R$ 1,75. Já o preço do táxi lotação foi reajustado de R$ 2,20 para R$ 2,50. No início do ano, o metrô que liga Porto Alegre à região metropolitana também subiu: de R$ 0,75 para R$ 1,10. A primeira das manifestações ocorreu dia 10, quando o Conselho Municipal de Transportes Urbanos se reuniu para definir o reajuste da passagem de ônibus. Mil estudantes e integrantes de movimentos
sociais bloquearam, por cerca de quinze minutos, as avenidas Júlio de Castilhos e Mauá, no centro da cidade, e tentaram uma audiência com o prefeito, mas foram impedidos pela Polícia Militar e pela Guarda Municipal. “A Empresa Pública de Transportes e Circulação (EPTC) pretende acabar com a prática vigente de conceder um dia por mês de passe livre – o que representará mais ganhos para o empresariado às custas do povo já tão explorado”, afirma a estudante Fernanda Melchionna, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Moradores dos bairros da periferia também estão se mobilizando para mais manifestações.
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De 17 a 23 de março de 2005
NACIONAL DIREITOS HUMANOS
Fatos em foco
Área de segurança, um entrave
Hamilton Octavio de Souza
Lixão semanal A revista Veja, da Editora Abril, tem conquistado há anos o troféu de pior jornalismo de toda imprensa burguesa nacional. Seja pelas matérias sensacionalistas, preconceituosas e/ou mentirosas, a publicação bate todos os recordes de indecência. Na última edição apresentou fantasiosa história sobre as Farc, explorou de forma sórdida o sofrimento de uma jovem de 15 anos e tentou colocar o músico e escritor Chico Buarque no mesmo nível do esgoto freqüentado pela redação. Nunca uma publicação brasileira foi tão venal para a sociedade. Reação petista Documento de circulação interna no PT considera que “o monopólio de imprensa nas mãos do baronato associado ao PSDB e ao PFL não pode ser enfrentado apenas por meio da batalha de idéias ou de operações táticas que permitam aproximações com alguns veículos importantes”; sugere que o partido e o governo adotem medidas para “o fortalecimento de iniciativas que permitam romper este monopólio com uma política estratégica de apoio à imprensa independente”. Ufa! Descobriram que a Terra é redonda. Traição federal As mais altas autoridades do governo Lula andam declarando que a autonomia do Banco Central não é prioritária, ficou para outro momento, mas, por baixo do pano, provavelmente com a conivência das mesmas autoridades, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci articula a tramitação do projeto de lei via Senado, agora com autoria de um senador do PMDB. Imagina-se que dessa maneira será mais fácil quebrar as resistências da bancada do PT na Câmara dos Deputados. Isso é que é companheirismo. Fisiologismo puro Doce ilusão quem imagina que a reforma ministerial do governo Lula possa melhorar a competência e a qualidade política da administração, acelerar os programas sociais, aumentar o compromisso com o povo. Nada disso, é apenas uma recomposição com objetivos eleitorais e para ampliação do espaço da direita – malufismo, coronelismo e coisas do mesmo tipo. Ocupação petista A revista Veja é especialista em distorções e mentiras. Portanto, é preciso ponderar se tem fundamento a nota publicada na seção “Holofote” da edição de 16 de março, onde afirma que o senador Aloízio Mercadante lançou sua campanha ao governo do Estado de São Paulo num jantar na casa do empresário Benjamin Steinbruch, e que dez empresários presentes prometeram contribuir financeiramente. Mercadante, vale lembrar, é do glorioso Partido dos Trabalhadores. Medidas saneadoras A intervenção do governo federal em alguns hospitais municipais do Rio Janeiro é bem recebida pela população. O método poderia ser estendido para centenas de santas casas e hospitais falidos, faculdades e universidades privadas quebradas, empresas de transportes e prefeituras municipais sucateadas e tantos outros serviços públicos que não funcionam espalhados pelo interior do país. O povo agradece.
Tatiana Merlino da Redação
F
ugas e rebeliões têm sido rotina nas unidades de internação da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) de São Paulo, desde que o seu presidente, Alexandre de Moraes, anunciou um projeto de reformulação da entidade. Na madrugada do dia 11, a Fundação registrou a segunda maior rebelião da história, seguida de fuga de 307 adolescentes do complexo Tatuapé, zona leste da capital. O número de fugitivos, funcionários feridos e adolescentes rebelados só foi maior nos tumultos registrados em 1999, quando 644 internos conseguiram escapar de uma única vez do complexo da Imigrantes. No mesmo dia do motim no Tatuapé, no complexo de Franco da Rocha – onde os internos estavam rebelados desde o dia 10 – uma educadora social da instituição acusou quatro adolescentes de a terem estuprado. Segundo entidades de direitos humanos, os adolescentes não toleram o crime de estupro, e sempre respeitaram as funcionárias da instituição. De acordo com Ariel de Castro Alves, coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos, a crise que a Febem vive hoje é resultado de diversos fatores, entre eles, “os anos de inoperância do Estado, a reação de setores que querem manter seus privilégios, e a falta de limites dos internos, que, depois de tantos anos subjugados, não sabem como se comportar”. Alves reafirma a importância da reestruturação da instituição, mas alerta para a necessidade de planejar melhor as decisões. “Com as demissões em massa, os recémcontratados não receberam preparo para lidar com os adolescentes”, adverte. Para Conceição Paganele, o setor de segurança da Febem tem grande responsabilidade nas fugas e rebeliões que ocorrem na Fundação – ao todo, 17 motins desde o início de 2005. “Eles fazem terrorismo e incitam os meninos”, afirma ela. Em entrevista ao Brasil de Fato, a presidente da Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (Amar) afirma que a área de segurança é o maior entrave para a efetivação das mudanças na Febem. “Ela barra o trabalho dos familiares dos jovens”. Brasil de Fato – Em 2005, a Febem registrou 17 motins no Estado de São Paulo, e dia 11 de março, houve a segunda maior rebelião da história da Fundação, quando chegou a haver um caso de abuso sexual. Qual é a sua avaliação sobre a crise? Conceição Paganele – Ela é resultado da resistência à mudança. É a recusa do processo socioeducativo diferenciado iniciado pelo presidente da Fundação, Alexandre de Moraes. As mudanças começaram com a demissão de dez diretores da instituição. Depois, em janeiro, houve denúncia de um espancamento, e os funcionários foram presos. Aí, a guerra foi declarada. Em seguida, veio a demissão de 1751 funcionários. Foram medidas de muita coragem, que até então ninguém tinha tido. O presidente pediu aos diretores que indicassem funcionários de confiança. Mas, para muitos diretores, os considerados de confiança são os “caceteiros”. Por isso era necessário trocar os diretores. BF – Há uma relação entre o aumento das rebeliões e o mau treinamento dos funcionários da segurança? Conceição – A segurança deixa muito a desejar. Ela tinha que
Internos da Unidade Tatuapé da Febem, na zona leste de São Paulo, em rebelião, no dia 14
ser capacitada, treinada para evitar fugas e rebeliões, que só acontecem porque ela falha. Tem muita gente sendo treinada, mas eles não estão dando conta. Além disso, a segurança tem que ser externa. Há outro problema, que é o enfrentamento do grupo de segurança com os adolescentes. O que acontece, ainda, é que, às vezes, os educadores não entram para trabalhar porque há uma ordem do setor de segurança, que fica dizendo que a unidade está instável. Isso é terrorismo. Quando a segurança não previne fugas, e proíbe o que é de direito, como visitas de familiares, está incitando mais rebeliões. Isso causa muita instabilidade. Enquanto tivermos uma segurança com essa mentalidade e falta de capacitação, as coisas não vão funcionar. A diretora da unidade Vila Maria, uma pessoa muito respeitada, foi demitida porque enfrentou a segurança. A pedagogia e a segurança não estão andando de mãos dadas. BF – E em relação à denúncia de estupro? Conceição – Na Febem, estuprador não convive com os outros internos. Existe uma cultura que é a mesma da cadeia, onde este crime não é aceito de maneira alguma. Eu nunca vi na Febem essa história de internos estuprarem funcionários. Já vi funcionários abusarem de meninos e meninas, mas esse caso me deixa muito assustada. Em todos esses anos de experiência, vi muitas funcionárias se envolverem emocionalmente com os meninos, e chegarem a manter relacionamento sexual dentro das unidades. A versão dos internos para essa denúncia, é que havia um envolvimento amoroso entre a funcionária e o rapaz. Eles disseram que os dois estavam tendo relações e, quando foram flagrados, ela começou a gritar, dizendo que estava sendo estuprada. Os meninos têm muito preconceito contra o estuprador. Essa não é uma prática dos meninos. Eles não concordam com isso. BF – A senhora afirmou que os funcionários resistem às mudanças. Como isso se manifesta? Conceição – A cúpula dos funcionários do Sindicato dos Trabalhadores da Febem (Sintraenfa) é bandida, e está infiltrada em todas as unidades. Há um movimento de fora para dentro para desmontar todo o trabalho que está sendo implementado. É preciso ter garra, muita coragem para desafiar a máfia que existe dentro da Febem. Cada dia eles estão provocando situações mais difíceis, porque querem derrubar
o atual presidente. Nas unidades onde o pessoal do sindicato vai, os meninos recebem recados de que o grupo antigo vai voltar e vai espancar, bater e matar. Os meninos também estão sendo ameaçados o tempo todo pelos funcionários que estão no grupo de apoio da segurança e no recâmbio (funcionários que levam os meninos para o Pronto Socorro e para o Fórum). Nos recâmbios estão funcionários que foram afastados das unidades, e proibidos de entrar no pátio porque têm histórico de violência. BF – A situação problemática da segurança não é um entrave para a efetivação das novas medidas? Conceição – Com certeza. É o maior entrave que temos hoje. Atualmente, os funcionários da Febem não impedem nosso trabalho, mas a segurança sim. Eu tenho um problema seriíssimo com esse pessoal. Durante muito tempo, os familiares dos internos não foram respeitados pela instituição. Mas, quando a Febem decide que as mães são parceiras e parte fundamental na elaboração do projeto de vida dos adolescentes, vem outro grupo com uma autoridade grande paralela e atrapalha tudo. BF – E qual a importância da visita das mães? Conceição – A visita tranqüiliza os meninos e as mães. Ela não pode ser proibida de jeito nenhum. Nesses dias de rebelião, o chefe da segurança deu uma desculpa para não entrarmos, argumentando que era muito perigoso. Eles vão dizer o quê, que o adolescente vai pegar a mãe como refém, que vai estuprá-la? Ele não tem o direito de proibir as famílias de entrar para visitar seus filhos, alegando falta de segurança. Os filhos jamais vão agredir suas mães. Isso é uma desculpa para que elas não vejam a realidade lá de dentro. BF – O Tribunal Regional do Trabalho suspendeu a demissão dos 1.751 funcionários, alegando “segurança de trabalho”. Caso eles voltem a trabalhar, o que pode acontecer dentro da Febem? Conceição – Alguns funcionários até podem voltar. Mas se os torturadores afastados voltarem, vamos ter muitas mortes, e a Febem será destruída. Hoje, estamos colhendo os frutos plantados durante os últimos 30 anos. BF – Qual é a relação dos funcionários e do sindicato da Febem com a Amar e entidades de direitos humanos? Conceição – A relação não
Ana Maria Straube
Blindagem faraônica A escola de estelionato denominada Banco Santos operava com mais de 40 empresas de fachada em paraísos fiscais, por onde transferiram mais de um bilhão de reais do banco para o patrimônio particular do estelionatário-chefe, Edemar Cid Ferreira, que continua livre, leve e solto. E o Banco Central, que deveria ter descoberto os crimes há muito tempo, continua blindado pelo Palácio do Planalto.
Crise na Febem é resultado de 30 anos de erros acumulados e muita resistência a novos métodos Hélvio Romero/AE
Pressão biônica O lobby das sementes transgênicas – formado pela transnacional Monsanto, o ministro do latifúndio, fazendeiros que não se preocupam com o meio ambiente e a imprensa de direita – está fazendo campanha pesada contra o governador Roberto Requião, do Paraná, que insiste em preservar o porto de Paranaguá exclusivo da soja natural. O governo federal correu da luta e lavou as mãos.
Quem é Mãe de um ex-interno da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) de São Paulo, Conceição Paganele fundou, com um grupo de mães de adolescentes, em 1998, a Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (Amar). Ela preside a entidade, que conta com a parceria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e, em 2001, ganhou do governo federal o Prêmio Nacional de Direitos Humanos. existe. Eles são nossos inimigos declarados. Eu mesma não sento para conversar com este sindicato, que é malvisto por todos os defensores da infância. Os que estão à frente do sindicato são pessoas que sempre apoiaram espancamento e tortura. Eles nunca foram contra a violência. Pelo contrário, sempre a defenderam. As famílias dos internos jamais puderam contar com o apoio do sindicato. BF – Qual é a proposta pedagógica da Amar e das entidades de direitos humanos para a Febem? Conceição – O que pedimos é um atendimento pedagógico individualizado, em unidades pequenas. Bem ao contrário dos complexos, onde, se alguém espirra de um lado, ouve-se do outro. É preciso desconcentrar as unidades. Tem de haver um projeto sério para o atendimento dos adolescentes, reparando os danos causados durante esses anos todos. Separar as unidades, municipalizando-as, regionalizando-as, colocando os jovens cada dia mais perto de suas famílias. Espero que em alguns anos se consiga implementar essa proposta, porque, hoje, o principal problema da Febem são os funcionários sem caráter, que vêem os meninos como bandidos. É uma instituição viciada há 30 anos com essa estrutura de contenção e tortura. Não vamos romper com isso em seis meses.
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De 17 a 23 de março de 2005
NACIONAL POLÍTICA CAMBIAL
Mais uma armadilha para a economia Mudanças no câmbio favorecem a fuga de dólares e aumentam os riscos de nova crise
Movimentação de operadores na roda do dólar da Bolsa, em São Paulo
ATROPELANDO A LEI
DÓLARES EM FUGA Remessas anuais de moeda estrangeira por meio de contas CC5. Em bilhões de dólares
Reservas internacionais do Brasil, descontados os recursos do Fundo Monetário Internacional. Em bilhões de dólares. 1997
1998
1999
2002
2003
5,563
2001
1,661
2000
9,107
6,111
AINDA EM RECUPERAÇÃO
7,259
As principais medidas adotadas, que passaram a vigorar no dia 14, unificaram o mercado de câmbio, liberaram e facilitaram as remessas de dólares para fora, sem limites de valor, e ampliaram o prazo para que os exportadores tragam para o país os dólares recebidos nas vendas externas de produtos e serviços. Até então, conviviam dois mercados para o dólar: o primeiro, com taxas livres (mas definidas, em última instância, pela atuação do BC), registrava as exportações e impor-
Segundo Paulo Nogueira Batista Jr., ele mesmo um ex-diretor do BC, o processo de liberalização das normas que regulam a entrada e saída de recursos financeiros tem se baseado, grandemente, em interpretações ou reinterpretações da legislação em vigor. “Representam, às vezes, tentativas de driblar a lei”, conforme escreve Batista Jr., em
4,766
AS MUDANÇAS
tações, transferências de valores em moeda estrangeira entre instituições financeiras, investimentos externos no Brasil, entre outras transações; o segundo contabilizava gastos de brasileiros no exterior (compras no cartão de crédito, por exemplo) e as remessas pelas contas CC5. Como se recorda, as contas CC5, criadas a partir de uma carta circular do BC editada em 1969 e alteradas a partir de 1992, a pretexto de modernizar e simplificar o sistema (leia-se, reduzir os controles do governo sobre as remessas de dólares), permitiram a ocorrência de escândalos investigados pelo Ministério Público e pelo Congresso, por meio da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Banestado. Estima-se que o esquema teria favorecido a fuga irregular de quase 30 bilhões de dólares entre 1992 e 1996.
artigo publicado na Agência Carta Maior. Em suas considerações, o economista acrescenta que a Lei 4.131, de 1962, regulamentada pelo decreto 55.762, só autoriza a remessa de capitais ao exterior “mediante a apresentação do registro de ingresso”. Mais claramente, só poderia ser autorizada a remessa de recursos se as empresas e/ou pessoas físicas remetentes pudessem comprovar que os dólares correspondentes entraram no país regularmente, em operações anteriores. A legislação visava, portanto, impedir que o Brasil se transformasse em um paraíso fiscal. A partir de 1988, ressaltam as procuradoras da República no Distrito Federal, Valquíria Oliveira Quixadá Nunes e Raquel Branquinho P. M. Nascimento, a orientação original embutida na Lei 4.131 foi modificada de forma significativa por resoluções e circulares do BC. “...Apesar da aparência de rigidez e legalidade, (aquelas resoluções e circulares) atuaram de forma a deixar lacunas nessa normatização, estimulando a desenfreada entrada e saída de recursos do país, sem qualquer controle sobre a sua origem”, afirmam as procuradoras numa ação civil pública de improbidade administrativa movida contra ex-presidentes do BC. Reforçando o ponto de vista de Batista Jr., as procuradoras declaram que as mudanças introduzidas pela direção do BC padecem de “vício de origem”, ou seja, somente poderiam ter sido aprovadas pelo Congresso Nacional, já que alteram a lei.
24,817
crédito na economia (ou seja, dos recursos disponíveis para empresas financiarem suas operações e para o financiamento das compras pelo consumidor), além de decidir sobre a regulação dos mercados financeiro e cambial.
21,203
C
omo quem não quer nada, a diretoria do Banco Central (BC) decidiu impor ao país, no começo do mês, uma série de mudanças nas normas que regulam o mercado do dólar. Apresentadas à opinião pública como mera simplificação e desburocratização das regras em vigor, as alterações criam, na prática, mais uma armadilha para a economia brasileira, aumentando os riscos de um novo estrangulamento decorrente de eventuais instabilidades e turbulências internas e/ou externas, freqüentes nos anos 90 e até o começo da década em curso. As medidas propostas pelo BC, e aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), aprofundam a liberalização do mercado cambial, facilitando ainda mais as remessas de recursos financeiros, expressos em moedas estrangeiras, para o exterior. Empresas, bancos, investidores/ especuladores e pessoas físicas passam a ter facilidades ainda maiores para enviar dólares, euros, ienes para contas em bancos de paraísos fiscais e de outros países. Na visão do economista Paulo Nogueira Batista Jr., professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), por conta da tal “flexibilização”, e como resultado da falta de controle sobre as entradas e remessas de dólares no país, “em situações de instabilidade e incerteza (na economia), poderão ocorrer saídas maciças de capitais de brasileiros”, conduzindo a novos aumentos das taxas de juros, disparada do dólar e torra das reservas em moeda estrangeira do BC. Formado pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do BC, o CMN detém poderes que lhe permitem ditar, literalmente, o futuro de centenas de milhares de empresas e mesmo de trabalhadores/assalariados. Afinal, entre outras coisas, o Conselho define as metas de inflação que o BC deve seguir, com influência decisiva sobre as taxas de juros cobradas e, portanto, sobre o nível da oferta de
A unificação dos dois mercados e as novas facilidades aprovadas pelo CMN, na visão do economista João Sicsù, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), caminham na direção de uma maior liberalização do mercado do dólar, mas não devem representar alterações significativas no que existia no setor. “São medidas adotadas com o objetivo de consolidar a posição já conquistada (no processo) de liberalização financeira avançada da economia brasileira”, escreve o economista. A seu ver, os mecanismos hoje à disposição do BC para controlar a entrada e saída de dólares da economia (na verdade, a quase ausência desses mecanismos) não vão mudar substancialmente. Aqui, a palavra “controles”, ressalta Sicsù, não significa mais do que a mera informação a respeito da origem e destino dos recursos que entram e saem do país. No caso das CC5, nem mesmo se exigia a comprovação de origem do dinheiro a ser remetido para fora do Brasil – orientação que, aparentemente, tenderá a prevalecer depois das mudanças.
Eduardo Nicolau/AE
Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
2004
2002
2003
30,014
2001
20,525
2000
16,339
1999
27,541
1998
27,797
1997
34,362
52,106
60,059 1996
31,541
1995
Remessas via CC5 mais do que triplicaram 23,861
1994
50,918
37,887
Fonte: Banco Central
2004
2005
Fonte: Banco Central
Exportadores são transformados em especuladores financeiros Mais grave, aponta o economista João Sicsù, a ampliação do prazo para os exportadores trazerem para o país os dólares obtidos na venda de bens, mercadorias e serviços no mercado internacional poderá “alterar profundamente o funcionamento da economia brasileira”. Em termos simples e diretos, a medida transforma os exportadores em especuladores financeiros, uma vez que poderão segurar os dólares por sete meses, à espera de uma maior desvalorização do real ou, ainda, de novas elevações das taxas de juros, antes de trocá-los por reais. Trata-se de uma medida “instabilizadora do câmbio”, critica Sicsù, porque transforma o ritmo
estável de entrada de dólares na economia, resultante do saldo positivo entre exportações e importações na balança comercial, num “fluxo movido agora por cálculos especulativos”. Em momentos críticos para a economia, “empresários poderão adiar a entrada (de dólares)”, à espera de uma desvalorização ainda maior do real frente ao dólar, alerta Sicsù.
COBERTURA CAMBIAL O economista acredita que o objetivo final da equipe do BC nesse processo de liberalização é o fim da cobertura cambial nas exportações. Trocando em miúdos, cancelar a obrigação de venda de moedas estrangeiras ao BC em troca de reais, permitindo que
exportadores e empresas em geral, mas não só eles, tenham contas em dólar em bancos no exterior. Sem a obrigação de trocar dólares por reais, aqueles setores poderiam fazer pagamentos e compras diretamente lá fora, sem controle ou fiscalização do BC e da Receita Federal, deixando de pagar impostos no Brasil. Além da instabilidade das cotações do dólar frente ao real, que tenderiam a disparar ou recuar ao sabor da especulação financeira, o fim da cobertura traria perda de receitas para o governo, via redução da arrecadação de impostos, criando dificuldades para que o setor público continue a financiar seus gastos e a desempenhar suas funções constitucionais. (LVF)
As remessas de dólares por meio das contas CC5 continuaram ativas em 2004, conforme mostram dados oficiais (veja gráfico). O esquema permite que qualquer pessoa ou empresa envie recursos, mesmo que obtidos de forma ilegal, para fora do país, por meio de instituições financeiras, utilizando-se de contas abertas por bancos estrangeiros. Como os controles virtualmente inexistem, o sistema facilita as remessas irregulares, a lavagem de dinheiro e a sonegação de impostos, exatamente como ocorreu no escândalo do Banestado (cujas apurações, ao final, foram engavetadas). Em 2003, as remessas oficialmente registradas pelo BC tinham despencado para 1,66 bilhão de dólares, em relação aos 9,1 bilhões de dólares no ano anterior. Nos doze meses do ano passado, no entanto, quase 5,6 bilhões de dólares saíram via CC5, num salto de 235% em relação a 2003. Em janeiro de 2005, nova disparada: foram remetidos para fora do Brasil 440 milhões de dólares, o que representou um incremento de 233% na com-
paração com os 132 milhões de dólares enviados no primeiro mês de 2004. Os valores não se comparam com a farra observada em 1997 e 1998, quando o valor dos dólares enviados para outros países somou nada menos do que 46 bilhões de dólares (21,2 bilhões de dólares em 1997 e 24,8 bilhões de dólares no ano seguinte). Mas estão longe de serem considerados desprezíveis. Durante a crise especulativa que assolou o mercado brasileiro em 2002, pouco mais de 9,1 bilhões de dólares, como visto, evaporaram. Nas contas do economista João Sicsù, que se baseiam em dados oficiais do Banco Central, entre 1993 e 2004 foram registradas remessas líquidas (ou seja, já deduzidos os valores que entraram no país pelo mesmo caminho) superiores a 113 bilhões de dólares, ou quase um quinto de todas as riquezas que a economia brasileira consegue produzir em um ano. Entre 1997 e o ano passado, as remessas chegaram a acumular um valor correspondente a 80,5 bilhões de dólares. (LVF)
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De 17 a 23 de março de 2005
NACIONAL TRAGÉDIA ANUNCIADA
Operação de guerra contra acampados Paulo Pereira Lima de Cacoal (RO)
I
ndignação, expectativa e medo tomam conta dos moradores do município de Alto Alegre dos Parecis, a 540 quilômetros de Porto Velho, capital de Rondônia. É que a juíza da Comarca de Alta Floresta do Oeste, Sandra Beatriz Merenda, determinou o despejo de 128 famílias sem-terra (cerca de 500 pessoas) do acampamento Che Guevara, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A decisão favorece o empresário Antônio Marimoto, ex-deputado federal por São Paulo, do Partido da Mobilização Nacional, PMN. Mas a maioria dos 15 mil habitantes de Alto Alegre, que apóia os trabalhadores acampados, está apreensiva com as conseqüências da execução da ordem judicial e lamenta que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não tenha resolvido o problema, que se arrasta há oito anos. A área ocupada (1.684 alqueires) envolve três fazendas contínuas (cerca de 4 mil hectares) numa região que possui as terras mais férteis do Estado. “Mas quando ocupamos, a área não cumpria a sua função social e o Incra havia declarado as terras improdutivas”, explicam os acampados em carta-aberta à população intitulada “A tragédia premeditada”. Em oito anos, eles construíram uma escola, freqüentada por 145 alunos, e um posto de saúde; e implantaram a Pastoral da Criança que atende às necessidades básicas da população de Alto Alegre e dos municípios vizinhos. Começaram plantando 50 alqueires de arroz, feijão, milho, mandioca e legumes. Hoje, são 160 alqueires.
Alberto César Araújo/Folha Imagem
Em Alto Alegre dos Parecis (RO), mais uma ação da Justiça favorável ao latifúndio improdutivo pode verter sangue
Ação policial em acampamento de trabalhadores rurais sem-terra no interior de Rondônia: acampados de Alto Alegre dos Parecis temem massacre
quiriu a produção para o Programa Fome Zero. Para 2005, a estimativa é de uma colheita ainda maior – cerca de 36 mil sacas de milho e 26 mil de arroz. A apreensão dos moradores de Alto Alegre, inclusive dos empresários, não se limita apenas ao provável prejuízo financeiro que acarretará a quebradeira no comércio local. Eles temem uma violenta ação da polícia, como a que ocorreu em Corumbiara (RO), em 1995, que resultou na morte de nove sem-terra e dezenas de feridos. A população também teme pela situação das dezenas de crianças e adolescentes em idade escolar que ficarão fora das salas de aula em conseqüência da possível transferência das famílias para outro município.
AMEAÇA GERAL Em 2004, colheram 4 mil sacas de arroz, 12 mil de feijão e 16 mil de milho, produção que representa 20% do Produto Interno Bruto (PIB, as riquezas produzidas pela localidade em um ano) municipal. Os dados são da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que ad-
OPERAÇÃO DE GUERRA Para o despejo do dia 29, está sendo montada uma verdadeira operação de guerra. Na ata da reu-
nião convocada pela juíza, em 21 de fevereiro, na cidade vizinha de Rolim de Moura, os fazendeiros afirmaram que vão custear a ida de 450 policiais militares, armados de cacetete e gás lacrimogêneo, e equipados com helicóptero, motosserras, ambulâncias e caminhões. Não bastasse todo esse aparato policial, a família Marimoto avisou que estaria contratando 30 homens e utilizando tratores para destruir as casas, igreja, posto de saúde, escola e plantações. “Ora, pela própria ata da reunião, é possível que ocorra a destruição completa do local. Toda e qualquer benfeitoria será arrasada”, afirma, preocupado, dom Antônio Possamai, bispo da diocese de JiParaná, que está acompanhando as negociações. “Estou há mais de 20 anos na região e nunca soube que aquelas terras pertenciam à família Marimoto,” diz. O prefeito Mariton Benedito de Holanda também está apreensivo.
REFORMA AGRÁRIA
Beatriz Pasqualino de Brasília (DF) “Sem movimento camponês, não há reforma agrária, mas sem o Incra também não”. A opinião é do presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Plinio Arruda Sampaio, que participou do 2º Congresso Nacional dos Servidores do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que começou no dia 14, em Brasília. Sampaio afirmou que o órgão está sendo profundamente injustiçado, na medida em que foi designado para uma tarefa que não pode cumprir por falta de pessoal e de dinheiro. E completou: “O Incra não é um órgão imparcial. É parcial porque é a favor do sem-terra, dentro da lei, claro”. Durante os quatro dias de debates, cerca de 80 servidores do Incra vão discutir a política de reforma agrária, as metas do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e o papel do Incra, nove anos depois da primeira edição do Congresso. Segundo a Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi), que organiza a atividade, em 1996, diferentemente de hoje, a proposta era criar uma resistência à redução das possibilidades de execução de uma verdadeira reforma agrária no Brasil. Além de Sampaio, participaram da mesa representantes de movimentos sociais do campo. João
Ana Nascimento/ABr
As deficiências do Incra
“Os acampados não querem, com justiça, arredar o pé. Afinal, são oito anos produzindo na terra. O que me preocupa, ainda, é que requisitaram da prefeitura o fornecimento de água para a tropa e trabalhadores braçais. Temo que apliquem veneno que contamine o solo e a água do córrego que passa no acampamento, para evitar a permanência das pessoas. Ora esses córregos chegam à cidade”, reclama o prefeito.
RESISTÊNCIA Ele está convocando os movimentos sociais, parlamentares do Estado e chegou a ir a Brasília pedir a mediação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que resolveu realizar uma audiência pública em Alto Alegre, dia 18. “A audiência tem força política e esperamos chegar a uma solução pacífica. Paralelamente, o Incra moveu uma ação civil pública de retomada da área, alegando ter havido um atraso do pagamento dos títulos públicos pelo próprio fazendeiro.” Confirmaram presença na audiência, além dos acampados e de re-
Frei ameaçado de morte em Minas Gerais Bernardo Alencar de Belo Horizonte (MG)
Trabalhador fixa bandeira do MST na porta do prédio do Incra, em Brasília
Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), criticou a política econômica do governo Lula, principalmente o pagamento dos altos juros da dívida e o corte do orçamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário em R$ 2 bilhões. A representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Maria das Graças Darós, visivelmente descontente, reafirmou “que o Incra tem que retomar o papel para o qual foi criado, que é implementar a reforma agrária”. Já a opinião do coordenador do Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL), Renato Carvalho, destoou dos demais, ao propor a
ruptura dos servidores com o órgão. “Desvinculem-se! Vocês não são um obstáculo, mas o Incra é”, disse. Para Raulino Mendes Neto, do Incra de Goiás, antes de serem servidores, os funcionários do órgão devem ser militantes da reforma agrária. “Às vezes, temos que ser desobedientes civis dentro do Incra. Temos que brigar contra leis, normas e instruções para fazer algo pelos camponeses”, completou. O 2º Congresso Nacional dos Servidores do Incra tem como tema central o “Cenário atual da reforma agrária e do Incra frente ao modelo de gestão e desenvolvimento adotado pelo governo: problemas e alternativas de solução”. O encontro termina no dia 17.
presentantes do empresário Antônio Marimoto, parlamentares federais e estaduais, inclusive a senadora Fátima Cleide, do PT, o superintendente do Incra, Olavo Nienow, representantes do Ministério Público, do governo do Estado e da Pastoral da Terra. No entanto, coordenadores do MST avisam que, se não houver uma solução pacífica favorável à permanência dos acampados, eles estão dispostos a resistir à ação de reintegração de posse. O despacho da juíza está sendo afiançado pelo governador Ivo Cassol (PSDB), que está com a cabeça a prêmio. O Superior Tribunal de Justiça pediu à Assembléia Legislativa autorização para processar o governador por fatos de corrupção ligados à sua administração quando prefeito de Rolim de Moura. Cassol também está sendo investigado pelo Ministério Público por suposto envolvimento na extração ilegal de diamantes dentro da reserva Roosevelt, dos Cintas-Larga, onde 29 garimpeiros foram mortos em abril de 2004.
O frei Gilvander Moreira, assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Minas Gerais, procurou, dia 14, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de seu Estado e as polícias militar e civil para denunciar que está sofrendo as ameaças de morte. O religioso combate as violências praticadas por milícias de latifundiários no campo, se opõe aos crimes do agronegócio e defende a preservação de mananciais de água que podem ser extintos por mineradoras, como a Minerações Brasileiras Reunidas (MBR). Moreira teve participação fundamental na instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), na Assembléia Legislativa mineira, sobre a Mina de Capão Xavier. Durante as investigações, pesou contra a MBR o fato dela estar colocando em risco de extinção mananciais de água importantes para o abastecimento de Belo Horizonte. Nos últimos dias, o frei Gilvander foi procurado na Igreja Nossa Senhora do Carmo, zona sul de Belo Horizonte, onde reside e é pároco. Segundo o padre, no dia
13, dois homens foram à Igreja e fizeram perguntas sobre onde ele estava e a que horas seriam as missas que iria celebrar. “Quando eles estavam saindo, foi possível perceber que estavam armados”, conta. Além disso, o assessor da CPT afirma que outras ameaças foram feitas por telefone. Frei Gilvander revela que procurou as autoridades por precaução. Não quer que aconteça como em 20 de novembro de 2004, quando cinco sem-terra foram assassinados no acampamento Terra Prometida, em Felisburgo (MG), ou como na execução do dia 12 de fevereiro da freira Dorothy Stang, em Anapu (PA). Em ambos os casos, as ameaças de morte já haviam sido encaminhadas às autoridades. Durval Ângelo, deputado estadual (PT-MG) e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia, disse quºe fará o possível para que nada aconteça ao padre, apesar da inoperância dos órgãos de segurança pública. “A Polícia Militar de Minas Gerais falou que não pode designar um policial para cuidar da segurança do frei por falta de contingente”, lamenta o parlamentar. Por sua vez, a Polícia Civil argumenta que irá investigar as ameaças.
Ano 3 • número 107 • De 17 a 23 de março de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO IMPERIALISMO
Povos do mundo se unem contra Bush Igor Ojeda da Redação
O
mundo inteiro se prepara para gritar em uma só voz, dia 19: não à invasão do Iraque. Protestos estão sendo preparados em centenas de cidades dos cinco continentes contra a guerra iniciada há dois anos pelos Estados Unidos, sem consentimento da Organização das Nações Unidas (ONU). Os protestos foram convocados pela Assembléia Mundial de Movimentos Sociais, em janeiro, durante o 5º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Na avaliação dos movimentos antiguerra, as mobilizações de 2005 se fazem urgentes em virtude da reeleição de George W. Bush e da sua intenção declarada de continuar a invasão. Além disso, há ainda a ameaça – já declarada – de expandir esse mesmo modelo de intervenção militar para outros países do Oriente Médio, como a Síria e o Irã. Os Estados Unidos, sintomaticamente, serão palco do maior número de protestos. Pelo menos 573 cidades e povoados dos 50 Estados promoverão eventos no segundo aniversário da invasão. Para se ter uma idéia, no ano passado, esse número foi de 319. Entre as principais exigências dos manifestantes estadunidenses estão a retirada das tropas estadunidenses do Iraque e o pagamento de um valor em dinheiro para os iraquianos reconstruírem seu próprio país, destruído pela ocupação. “Uma pesquisa recente mostrou que 59% da população acha que os Estados Unidos deveriam retirar suas tropas do Iraque”, afirma Andrea Buffa, da organização Global Exchange (algo como Intercâmbio Global) e da coalizão antiguerra United for Peace and Justice (União pela Paz e Justiça). “Também há os soldados veteranos que voltaram do Iraque e que agora fazem parte do movimento antiguerra e vão participar dos protestos”, completa. A principal manifestação no país será em Fayetteville, na Carolina do Norte, onde está localizada a instalação militar de Fort Bragg, sede da 82ª Divisão de Transporte Aéreo, várias unidades de elite do Exército
Marcello Casal Jr./Abr
Dia 19, mobilizações em todo o planeta vão exigir que os Estados Unidos deixem o Iraque
População estadunidense começa a perceber que a presença das tropas enviadas por Bush ao Iraque é a principal causa da péssima situação no país asiático
e outras quatro bases militares. Por isso mesmo, nos últimos anos, vem crescendo na cidade o número de ativistas e organizações antiguerra. No sábado, participarão dos protestos famílias de militares, veteranos, estudantes e representantes das igrejas, que vêem o ato na cidade como fundamental na luta para a volta das tropas estadunidenses.
CAOS E TERROR Para Andrea Buffa, o movimento antiguerra vem crescendo nos Estados Unidos porque muitas pessoas começaram a perceber que a situação no Iraque está péssima e que a presença das tropas estadunidenses é a principal razão. “Muitas pessoas bem-intencionadas acreditavam que a guerra era um erro, mas se preocupavam que, se as tropas saíssem, o país iria virar um caos. Esse ano, elas perceberam que o Iraque já está um caos, e que a ocupação piora ainda mais a situação”, diz Na Europa, respondendo à convocação da Assembléia dos Movimentos Sociais, ativistas organizarão
mobilizações por todo o continente. Bruxelas, na Bélgica, será palco no dia 19 de uma marcha central que ocorrerá na véspera do encontro do Conselho Europeu, que se reunirá nos dias 22 e 23. São esperados mais de 50 mil manifestantes, que protestarão contra a guerra, o racismo e o domínio das transnacionais sobre a Europa e exigirão total atenção à geração de empregos e aos direitos sociais no continente. Além de Bruxelas, ocorreão manifestações também em Barcelona, Copenhague, Lisboa, Londres, Roma, Dublin, Atenas, Istambul e Oslo, entre outras. Na África, confirmaram participação da mobilização mundial contra a guerra Cairo, no Egito, e Joanesburgo, na África do Sul. No continente asiático, Tóquio (Japão), Seul (Coréia do Sul), Manila (Filipinas) e Dhaka (Bangladesh), entre outras. Ocorrerão protestos também na Austrália e na América Latina. Entre as confirmadas, Buenos Aires e Cidade do México. (Colaborou João Alexandre Peschanski)
Freira relata em carta a situação instável no Iraque Muito carinho para vocês! Recebi as mensagens que vocês me mandaram. Lamento a demora em responder: estamos tendo problemas devido a um suprimento de força danificado e nosso gerador vai estar impossibilitado de funcionar durante dez dias. Não temos como consertar, porque não há peças de reposição. Posso dizer que há uma pequena melhora na situação em nosso país, mas as coisas ainda estão instáveis. Quando saímos de casa, não temos certeza de podermos voltar em segurança. Os soldados e tanques estadunidenses são alvos para os “Mujahidins” e os terroristas, mas eles têm instrumentos que permitem que os danos sejam direcionados para longe deles. Em conseqüência, as vítimas são sempre os civis inocentes. Embora as forças iraquianas tenham sido capazes de prender muitos terroristas, todos dias há várias explosões em diferentes partes de Mossul. Há quatro dias, 47 pessoas foram bombardeadas
Os atos contra a guerra terão, no Brasil, como tema central as mesmas palavras de ordem que estarão presentes em todo o mundo: fim da ocupação do Iraque, retirada imediata de todas as tropas daquele país e apoio à resistência do povo iraquiano. No entanto, as questões nacionais e latino-americanas ocuparão lugar importante nas manifestações. No âmbito da militarização, as marchas do dia 19 vão exigir que as tropas brasileiras retornem do Haiti, o fim das bases militares dos Estados Unidos na América Latina e a extinção do Plano Colômbia. Os manifestantes vão protestar também contra as ameaças de agressões estadunidenses feitas ao Irã, Venezuela, Coréia do Norte, Cuba e Síria. Além disso, os movimentos pretendem tratar também da guerra econômica da qual a América Latina é vítima. “Queremos fazer a ligação das questões militares com as questões econômicas, como o modelo econômico implantado no Brasil e os acordos de livre-comércio”, diz Maria Luísa Mendonça, diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, de São Paulo. Os atos exigirão o fim dos acordos de livre comércio em geral, como o da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e as negociações entre o Mercosul e União Européia, a ruptura com os organismos financeiros internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, e um basta nos planos de infra-estrutura na região,
como o Plano Puebla-Panamá.
VIOLÊNCIA POLICIAL No Rio de Janeiro, haverá atos no sábado e no domingo, quando se fará a relação entre a guerra no Iraque e a violência policial na cidade. “Tanto que a marcha vai sair de Vigário Geral, para lembrar a chacina de agosto de 1993, quando 21 pessoas foram assassinadas. Queremos mostrar que a guerra é aqui”, afirma Sandra Quintela, do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e membro da Coordenação Nacional da Campanha contra a Alca e do Comitê Rio Contra a Guerra e Pela Paz Em Belo Horizonte, o Comando do Ato contra a Guerra Imperialista lançou declaração em que afirma que, no dia 19, os protestos mostrarão que a paz que os EUA querem aplicar no mundo não é a desejada pelos povos. “Não aceitaremos a paz dos mortos, dos amordaçados, dos silenciados. Em contraponto a isso lutaremos pela paz soberana, justa e popular”, diz o texto. Nas ruas da capital mineira, haverá manifestações também pela reforma agrária e pelo controle da Amazônia pelos brasileiros. Em documento de chamamento para o ato do dia 19, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) exalta a luta pela paz de todos os povos contra um inimigo comum, George Bush que, após invadir o Afeganistão, o Iraque e sustentar a ocupação da Palestina e o “genocí-
dio” de sua população, ameaça agora Síria, Cuba, Coréia do Norte e Irã. E conclui: “Todos devem ter o direito de viver em paz, e cada país de escolher o seu caminho. Chamamos você a mostrar o apoio do povo brasileiro aos que tiveram roubado este direito, e mostrar que queremos outro caminho, sem Alca, guerra, com trabalho, saúde e educação”.
João Zinclar
No Brasil, questões nacionais
durante um funeral shiita e 85 foram feridas. As crianças também são vítimas de abusos. Os terroristas as violentam e jogam os corpos num rio. Vocês talvez tenham ouvido de frei Najeebm, quando estadunidenses atacaram o convento dos frades dominicanos, às 22h00, há duas semanas. Arrebentaram o portão e forçaram sua entrada. Frei Phillip tentou explicar, em vão, que ali era um convento, quartos para os empregados, trabalhadores e técnicos. Eles apontaram armas para os sacerdotes, os noviços e os empregados e suas crianças e todos foram obrigados e se deitar no chão. Obrigada pela solidariedade de vocês. Valorizamos muito suas orações, que nos permitem permanecer junto ao nosso povo ferido, para animar as pessoas e ser um sinal de esperança. Irmã Sherine O.P. Trechos da carta escrita pela freira dominicana que nasceu e vive no Iraque e se opõe à invasão estadunidense.
ÂNIMOS REDOBRADOS “Enquanto a Europa e os EUA estão envolvidos diretamente com a guerra, no Brasil, a população está preocupada com outros temas, como o desemprego. Por isso, fica mais difícil mobilizar”, comenta Maria Luísa Mendonça. “Por outro lado, hoje em dia está muito mais claro a farsa que foi tramada pelos EUA, toda a mentira veio à tona. Nesse sentido, é uma situação mais favorável para os protestos”, avalia. Para Sandra Quintela, a tendência é que as marchas contra a guerra no Brasil tenham um bom comparecimento esse ano, já que em 2004 o número de manifestantes decaiu bastante em relação a 2003. Para ela, isso ocorreu em função do refluxo das mobilizações dos movimentos sociais de maneira geral, o que refletiu nas manifestações contra a guerra. Para 2005, a expectativa é que “se possa retomar uma grande manifestação. O calendário de lutas está unificado, coordenado, e a marcha das mulheres (realizada no dia 8) deu uma reanimada nos movimentos”, diz.
Na América Latina, movimentos vão relacionar guerra com ofensivas econômicas
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INTERNACIONAL EUA
Camponeses derrotam transnacional Igor Ojeda da Redação
O
s trabalhadores agrícolas do povoado de Immokalle, no sudoeste da Flórida, Estados Unidos, conseguiram uma vitória histórica no último dia 8. A transnacional do ramo de fast-food Yum!Brands aceitou pagar aos camponeses um centavo de dólar a mais por libra de tomate colhido. Isso significa, na prática, que os trabalhadores da Flórida vão quase dobrar seus rendimentos. Agora, a cada balde de 32 libras, receberão 77 centavos de dólar, contra os atuais 45 centavos. O acordo encerrou aos quase quatro anos de protestos contra a rede de restaurantes Taco Bell, da qual a Yum!Brands é proprietária, organizados pela Coalizão dos Trabalhadores de Immokalee (CIW – Coalition of Immokalee Workers). As mobilizações incluíram um boicote (iniciado em abril de 2001), vigílias, greves de fome, e os Tour da Verdade Taco Bell, que em sua versão 2005 culminou no atendimento das demandas. Além de pagar mais pelos tomates que compra, a Yum! Brands anunciou ainda alterações no seu código trabalhista para seus fornecedores, proibindo a “servidão involuntária” (ou seja, escravidão) de seus empregados. Na coletiva de imprensa onde foi anunciado o acordo, realizada na sede da Yum! em Louisville, Kentucky, o co-diretor da CIW, Lucas Benitez, declarou o fim do boicote à Taco Bell e destacou o alcance da vitória dos trabalhadores. “Esse acordo está estabelecendo novos e importantes padrões de responsabilidade social”, afirmou. Benitez fez um apelo para que outras redes de restaurantes e também cadeias de supermercados tomasse decisão semelhante. “Com uma ampla coalizão dos líderes da indústria alimentícia comprometidos com estes princípios, nós finalmente poderemos sonhar com um dia em que os trabalhadores agrícolas da Flórida desfrutaremos dos salários e das condições de trabalhos que merecemos”,disse. Anuradha Mittal, do Oakland Institute, uma das entidades que apoiaram os trabalhadores, disse ao Brasil de Fato que essa vitória representa mais munição para os movimentos sociais dos Estados Unidos. “É uma mensagem clara de que do jeito que está é insustentável. Que os direitos humanos, a dignidade humana e os direitos dos trabalhadores não podem ser postos para trás pelos lucros das corporações”,
CONDIÇÕES SUB-HUMANAS Em Immokalee, encontra-se a maior comunidade de trabalhadores agrícolas da Flórida. Os trabalhadores representados pela CIW (cerca de 2,5 mil) são em sua maioria imigrantes provenientes do México, Haiti e Guatemala, que trabalham na colheita de tomate e cítricos para grandes empresas do
Fotos: Jacques-Jean Tiziou / www.jjtiziou.net
Trabalhadores da Flórida conseguem quase dobrar seus rendimentos após quatro anos de lutas contra a Taco Bell
Em Bloomington, uma das cidades pela qual passou o Tour da Verdade Taco Bell, trabalhadores realizam manifestação por salário e condições de trabalhos justos
setor agrícola. Além dos salários baixíssimos – que os mantêm abaixo da linha de pobreza nos EUA – e das péssimas condições de trabalho, não recebem seguro de saúde, licença em casos de doença e não têm direito a férias. Segundo Anuradha Mittal, os ganhos insuficientes forçam muitos trabalhadores a viverem em trailers, algumas vezes com até 12 pessoas. Outros vivem em campos de trabalho, geralmente localizados perto dos locais de colheitas e dentro das propriedades de seus empregadores. “Os campos de trabalho ficam em áreas remotas e são geralmente vigiados. Até junho de 2002, um dos fornecedores principais da Taco Bell não permitia de nenhuma maneira que seus empregados recebessem visitas”, disse. Lucas Benitez, do CIW, faz coro à denúncia das condições dos trabalhadores na Flórida que, segundo ele, é palco de “alguns dos mais vergonhosos casos de exploração que esse país já soube, desde décadas atrás até hoje. Minha comunidade é uma das mais pobres do país e nossos sacrifícios têm ajudado a fazer dos tomates do Estado um dos menos caros e de maior qualidade do mercado estadunidense”.
TOUR DA VERDADE No dia 28 de fevereiro, dois ônibus compostos por 100 trabalhadores agrícolas partiram – cada um por uma rota distinta – de Immokalee rumo a Louisville, onde
Até a vitória, quatro anos de boicote, vigílias e greves de fome
está localizada a sede da Yum! Brands, a cerca de 2.5 mil quilômetros ao Norte. No caminho, realizaram protestos, palestras em escolas e universidades e atos públicos em 13 cidades do percurso, entre elas Memphis, Saint Louis, Indianapolis, Chicago, Atlanta, e Cleveland. No dia 6, chegaram ao destino final, onde dois dias depois, tiveram suas demandas atendidas. As atividades na cidade, que
contaram com manifestantes do todo o mundo, continuaram até o dia 12, quando ocorreu a celebração da vitória. Diversas entidades apoiaram o CIW durante esses anos de protesto. Entre elas, encontram-se importantes organizações, como a Aliança Comunitária Agrícola (CFA), a Coalizão Nacional de Agricultores Familiares (NFFC), a central sindical estadunidense
AFL-CIO, organizações estudantis de várias universidades, que vinham conseguindo anular contratos com restaurantes Taco Bell, e diversos setores da Igreja. Além disso, as demandas dos trabalhadores contaram também com a solidariedade de personalidades, como o lingüista Noam Chomsky, a escritora Naomi Klein e os atores Jeff Bridges, Susan Sarandon e Martin Sheen.
ANÁLISE
O extermínio invisível do povo palestino Catalina Caña Com a morte do líder palestino Yasser Arafat, foi aberto um novo capítulo na luta pela libertação do povo palestino. Um capítulo igual aos anteriores, já que para o Estado colonial de religião judaica, fabricado em 1948, trata-se de ganhar tempo para fazer desaparecer a população nativa palestina. O início desta nova fase se apresenta assim: no princípio, Israel havia manobrado muito bem a opinião pública, com sua rejeição ao diálogo sob o pretexto de que Arafat não era um homem de paz, o que permitiu a Israel continuar sua política de limpeza étnica contra a população nativa em nome da segurança e do combate ao terrorismo. Com as eleições democráticas numa Palestina Ocupada (um pleito tecnicamente boicotado por Israel, considerado curiosamente como a “única democracia” do Oriente Médio), foi eleito Mahmoud Abbas, conhecido também como Abu Mazen, o homem da linha palestina mais favorável ao diálogo com o Estado colonial israelense. Ora, o autor intelectual do massacre de Sabra e Shatila e executor dos massacres de Jenin, Quibia e outros, sabe que não tem alternativa a não ser encontrar o presidente palestino, do contrário ficará evidente que Israel é quem não procura dialogar. Sharon está consciente de que não poderá valer-se, contra Abu
Mazen, dos argumentos que usava para não dialogar com Arafat. Diante dessa situação, Sharon fingirá aceitar acordos de diálogo pela paz, impondo condições de submissão ao povo palestino e dando suas já folclóricas esmolas, como a de libertar alguns presos e desmantelar as colônias judaicas “ilegais”. Está claro para Israel que, a um dado momento, os processos de negociação devem ser interrompidos, já que a continuação dos diálogos seria uma ameaça à sua política colonial. É importante notar que o perigo, para Israel, não é de vez em quando encenar um diálogo; e sim (seja o Likud, seja o Partido Trabalhista) a continuação do diálogo, já que escaparia de suas mãos a razão de ser de Israel e romperia com seu princípio sionista segregacionista que lhe deu nascimento, ou seja, um Estado exclusivo para os judeus na Palestina histórica. Daí nasce a tese de que a paz, agora, é uma ameaça para o Estado colonial de Israel. O Estado sionista precisa de tempo para concretizar sua limpeza étnica contra a população nativa, esta é a sua solução para a paz na região. Abbas sabe que Israel é um gigante que ganha nas guerras, mas perde na mesa de diálogo para a paz. O novo líder palestino também está consciente de que seu povo não está capacitado a enfrentar essas grandes potências mundiais, Israel e os Estados Unidos. E que, além disso, os palestinos estão so-
zinhos, não contam com o apoio honesto dos regimes árabes, já que se trata de ditadores que só instrumentalizam a causa palestina, mas no fundo são tiranos que apóiam o Estado de Israel para permanecer no poder. Um apoio honesto aos palestinos por parte de um líder árabe o faria ser destituído do poder. A prova disso é que os ditadores árabes mataram palestinos do mesmo modo que Israel, pois, entre outras coisas, os ditadores árabes se sentiram ameaçados pela comunidade palestina, de grande tendência esquerdista, progressista, secular e feminista. Sharon praticará crimes diretamente contra a população palestina, para reabrir o círculo de violência e assim se retirar da mesa de diálogo. Abbas não conseguirá consolidar uma agenda de diálogo, os palestinos não podem enfrentar sozinhos o gigante de Israel. É necessária uma maior intervenção internacional para exigir que Israel saia da mesa de negociação. Essa intervenção internacional não existe, as cartas do baralho estão marcadas. Israel continuará sua prática de limpeza étnica, o que aqui os palestinos chamam de “extermínio invisível”, sem câmara de gás, que leva mais tempo, mas é muito mais eficaz do que o extermínio de Auschwitz. Catalina Caña é jornalista em Ramallah, Palestina
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Mulheres encerradas na pobreza Jennifer Mascia de Nova York (EUA)
A
falta de propriedade da terra em que trabalham encerra as mulheres rurais da África num círculo de pobreza do qual não poderão sair sem reformas fundamentais, afirmaram delegadas africanas na Conferência de Pequim – Dez Anos, que terminou dia 11, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, EUA. As camponesas são um dos grupos mais pobres do mundo, pois possuem apenas 1% da terra do planeta, mas chefiam pelo menos 25% dos lares. As delegadas discursaram na conferência que avaliou os progressos das mulheres desde a 4ª Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em Pequim, em 1995. A reunião do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), realizada durante a Conferência, analisou os programas de microcrédito e a inclusão das mu-
lheres em governos, como forma de alcançar, antes de 2025, vários dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, fixados pelos 191 países da ONU em 2000. Entre esses objetivos incluem-se a redução à metade da pobreza extrema e da fome, a educação primária universal, a promoção da igualdade e a autonomia da mulher, a redução em três quartos da mortalidade e em dois terços da mortalidade infantil, o combate à Aids, malária e outras doenças. As metas são para 2015 e se referem aos níveis de 1990.
PROPOSTAS As participantes propuseram soluções para erradicar leis de herança discriminatórias, que desconhecem os direitos de propriedade da mulher. Quando as mulheres tiverem acesso à terra, uma revolução silenciosa mudará as práticas que marginalizam mais da metade da população da África, Ásia e América Latina, afirmou Phrang Roy, chefe do departamento de assuntos
exteriores do Fida. Em geral, os países da América Latina e do Caribe têm sido receptivos às mudanças favoráveis à mulher. “Mas as sociedades tribais da África se amparam no costume e na religião quando lhes convém”, apontou Isatou Njie Saidy, vicepresidente do Gâmbia. As leis de herança em países como o Malauí e Zâmbia arruinam as mulheres quando seus maridos morrem, em especial de Aids, porque um membro masculino da família é que herda os bens do falecido. Além da Aids, a situação das camponesas africanas é agravada pelas guerras civis, pela migração masculina e pelas conseqüências do ajuste estrutural, sublinhou um relatório do Fida. Uma forma de conseguir a mudança de mentalidade seria estabelecer um diálogo com os chefes tradicionais que ditam as leis de propriedade da terra e impõem o costume, à revelia do sistema legal. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
Paulo Pereira Lima
Sem a propriedade da terra em que trabalham, camponesas africanas não conseguem sair da miséria em que vivem
As camponesas possuem apenas 1% da terra do planeta
ENTREVISTA
Brancos estão mais livres para explorar A situação na África do Sul piorou para a população negra, mesmo após dez anos do fim do apartheid. Nesta entrevista exclusiva concedida ao Brasil de Fato durante o 5º Fórum Social Mundial, Dennis Brutus, poeta, professor e militante sul-africano, explica que apesar de seu país não ter mais leis racistas, as estruturas que segregaram seu povo durante quase cinco décadas permanecem. “Assistimos a um processo global de concentração do poder, de uso de tecnologia e de mais mecanização das indústrias. Com isso, o trabalho está afundando”, descreve Brutus. Brasil de Fato – Dez anos após o fim do apartheid, o que mudou na perspectiva social da África? Dennis Brutus – Algumas coisas boas aconteceram, mas a maioria delas foi ruim. A parte boa é que todas as leis que eram racistas foram removidas, e isso é muito bom, mas as estruturas que foram criadas por aquelas leis permanecem. Mesmo havendo leis dizendo que se pode ficar em qualquer lugar, de fato, a maioria dos negros ainda vive em guetos e os brancos ficam com o melhor: grandes fazendas, hotéis, casas etc.. Para os negros, na verdade, as coisas estão pior do que era durante o apartheid, pois as leis foram removidas, mas as estruturas, não. E, com isso, os brancos ficam mais livres para explorar. Quando George W. Bush esteve na Pretória, disse: “Thabo Mbeki (presidente sulafricano) é meu homem na África, está fazendo o meu trabalho no continente”. BF – Thabo Mbeki é uma liderança realmente política na África, visto que ele está tentando mediar alguns conflitos em outros países? Brutus – Essa é uma boa pergunta, mas ao mesmo tempo muito complexa porque há uma série de elementos diferentes. É certo dizer que ele está tentando representar a si mesmo como um líder internacional para a África, como também é correto dizer que ele tenta promover a paz onde há conflitos. Isso é bom mas, se você resolve os problemas somente para permi-
tir que a Coca-Cola, o Citibank e todas as outras corporações entrem na África, a situação se complica. Enquanto ele parece estar fazendo um bom trabalho, Bush o chama de bom menino. Não adianta ser um bom menino apenas para a agenda das corporações e não para a agenda do povo. BF – E os movimentos sociais, como é a relação deles com o governo? Brutus – Não é boa porque, quando Mbeki chegou ao poder, prometeu devolver todas as terras que foram retiradas dos africanos. Em dez anos, apenas 1% dos casos relativos à ela foram resolvidos. O progesso é muito devagar. Mesmo com promessas de devolução de terra aos semterra e a permissão para irem à Justiça requerer suas terras de volta, as soluções não foram atingidas. BF – É verdade que além da terra, os bancos e as grandes indústrias ainda continuam nas mãos dos brancos? Como reverter esse quadro, dez anos depois? Brutus – É uma pergunta muito difícil porque, na verdade, o problema se tornou mais complicado após o processo que nós chamamos de globalização. Muitas das corporações da África do Sul se mudaram para a China porque lá o trabalho é mais barato. De um lado, as posses estão nas mãos de uma minoria branca, de outro, o mercado de trabalho diminuiu pois as fábricas saíram do país. O problema na África do Sul, a não ser que mude o contexto internacional, é o mesmo do México no plano doméstico, é também o da Nicarágua e do Equador. Trata-se de um processo global de concentração do poder, de uso de tecnologia e de mais mecanização das indústrias. Com isso, o trabalho está afundando. BF – A posição do governo do Zimbábue quanto à distribuição de terras não seria um exemplo a ser seguido pela África do Sul? Brutus – A situação no Zimbábue é muito controversa. Algumas pessoas dizem que o governo não está interessado em resolver a questão da terra. Estaria apenas querendo usar esse problema para manipular
a situação e permanecer no poder. O governo promete dar terra ao povo, mas está apenas dando para sua própria família. Assim, não resolve o problema de fato. Para tentar responder a questão, eles devem acelerar o processo de devolução da terra para aquelas pessoas que tiveram as suas retiradas. E você não precisa dar terra para seus amigos, nem precisa de ocupações ilegais. Um processo legal é que pode ser funcional para resolver o problema. Então, por que se teria que ocupar terras? Porque se trata de um processo vagaroso de cumprir, as promessas feitas 10 anos atrás. Mas há muito mais que o governo pode fazer em sua própria conduta legal, particularmente, quando faz suas próprias promessas para reeleição. Contudo, é preciso cumprir as promessas feitas.
O problema na África do Sul é que existe um grupo clamando por resistência a esse governo colaboracionista BF – Em fóruns sociais como estes, o movimento antiglobalização é muito forte. De que forma essas propostas antiimperialistas são mobilizadas na África do Sul? Brutus – O problema na África do Sul é que existe um grupo clamando por resistência a esse governo colaboracionista. Então, eles usam a linguagem, esses antiimperialistas, para combater isso. Mas, ao mesmo tempo, compramos armas automáticas e submarinos da Alemanha e dos Estados Unidos. Assim, inchamos uma máquina militar e se faz isso em colaboração com os imperialistas. Mas dizem: “Oh, mas nós somos antiimperialistas e eles estão oprimindo a Palestina”. Acontece que o governo sul-africano está produzindo armas para o governo de Israel. Eles vendem armas tanto para Israel quanto para os Estados Unidos. Como se pode dizer que somos antiimperialistas se, ao mesmo tempo, colaboramos com isso? Fala-se a linguagem da esquerda, mas a ação é de direita.
políticos para um evento nãogovernamental. Isso significa que a posição africana quanto ao Fórum Social não está clara e não posso prever como isso vai se desenvolver. Como sabem, o Fórum Social Mundial anunciou que vai para a África em 2007, então, por essa época, devemos ter alguns esclarecimentos, mas no momento, só posso dizer que isso não está claro.
BF – O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, está tentando fortalecer as relações comerciais e políticas na África, especialmente com a África do Sul. Como o senhor analisa isso? Brutus – Não sou um expert em Brasil, mas posso falar sobre a África do Sul. Acho que, de algumas maneiras, Thabo Mbeki é muito semelhante a Lula, porque ambos chegaram ao poder com os trabalhadores e, ao mesmo tempo, uma aliança de empresários os ajudou a chegar lá. Mbeki foi posto no poder pelo trabalho, mas, uma vez lá, ele não negocia com o povo. Eu vejo a mesma coisa acontecendo no Brasil – você tem um Estado que mantém o poder apoiado pela classe trabalhadora mas que não implementa políticas pró-trabalhadores. Na maior parte dos casos, suas medidas são pró-corporações e, em todos eles, pró-bancos.
BF – Por que foi necessária uma tragédia do tsunami, com mais de 160 mil mortes, para que os países ricos pudessem cancelar as dívidas dos países pobres? Brutus – Não estou certo, mas tenho uma explicação. O sucedido após o tsunami é muito significativo porque assistimos a uma resposta global. Ela veio de governos e ONGs e, com isso, nós vimos a possibilidade de ações globais também em outras questões, inclusive a dívida. Como há países sofrendo pelo tsunami, há também aqueles que já vinham sofrendo com uma altíssima dívida. A África, sozinha, tem 319 bilhões de dólares de dívida, o que ela não conseguirá pagar nunca. Mas estamos dizendo que a questão do tsunami é a oportunidade de aumentar a discussão sobre o cancelamento da dívida.
BF – A realização de um Fórum Social Mundial na África pode reforçar essa resistência africana contra o liberalismo? Brutus – Enquanto na África do Sul estamos propensos e solícitos a sediar o Fórum Social Mundial, os representantes africanos do Fórum Social possuem diferentes posições. Alguns, que estiveram em governos ou participam de ONGs, dizem que queriam ver os Estados participando do Fórum Social Mundial; e outros dizem que não faz sentido trazer
Quem é
Apartheid – Regime racista imposto aos negros pela minoria branca da África do Sul por quase 50 anos, interrompido em 1994.
João Alexandre Peschanski
João Alexandre Peschanski e Paulo Pereira Lima de Porto Alegre (RS)
Dennis Brutus nasceu em 1924 no Zimbábue. Filho de sul-africanos, mudou-se ainda pequeno para a terra dos pais. Aos 23 anos, graduou-se bacharel em artes pela Universidade de Fort Hare, na Cidade do Cabo. Um ano depois, passou a dar aulas de inglês para o ensino médio. Em 1950, Brutus começou a lutar contra o apartheid, liderando o movimento que culminou na expulsão da África do Sul dos Jogos Olímpicos, em 1970. Com 40 anos, foi preso por conta da sua luta contra o regime estabelecido em seu país e condenado a 18 meses de trabalhos forçados. Em 1966, ele deixou a África do Sul para ir morar na Inglaterra. A partir daí, Brutus passou a viajar pelo mundo dividindo as tarefas de combater o apartheid, com a de poeta e professor. Nesse período, ele acumulou passagens pela Universidade do Texas, Universidade de Denver e Northwestern University, dentre outras escolas estadunidenses.
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AMÉRICA LATINA INTEGRAÇÃO
Venezuela e Irã anunciam parcerias Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
O
s presidentes venezuelano, Hugo Chávez, e iraniano, Mohamed Khatami, afirmaram que seus países “estão firmes diante de qualquer agressão” do governo dos Estados Unidos. A declaração foi dada pelos chefes de Estado após reunião que tiveram em Caracas. “Nossos dois povos querem a paz e estão firmes diante de qualquer agressão a seus países”, disse Khatami, dia 10, no palácio presidencial Miraflores. Chávez, por sua vez, ressaltou que seu país e o Irã não vão ceder frente às pretensões imperialistas do governo de Washington. As duas nações figuram entre as maiores produtoras de petróleo do mundo e estão sob constante ameaça de Washington. Os Estados Unidos insistem em desestabilizar o governo do país latino-americano e ameaçam uma intervenção militar em Teerã sob o pretexto de desarmar nuclearmente os iranianos. Khatami afirma que sua produção nuclear é para fins pacíficos. “Da mesma
Marcelo Garcia
Chávez e Khatami constroem aliança para resistir ao imperialismo; em Israel, Sharon detona plano para atacar Irã
Os presidentes iraniano, Mohamed Khatami (à esq.), e venezuelano, Hugo Chávez: seus países não vão ceder ao imperialismo
forma que os senhores (os iranianos), também os venezuelanos estamos decididos a ser livres, e não haverá poder imperialista que se imponha O Irã tem todo o direito, assim como muitos outros países, de desenvolver sua energia atômi-
ca”, afirmou o presidente venezuelano.
INTEGRAÇÃO “MULTIPOLAR” De acordo com o jornal britânico Times, Israel – fiel aliado do governo de George W. Bush – está
ANÁLISE
detalhando um plano para destruir por meio de operações aérea e terrestre as instalações nucleares do Irã. Segundo a publicação, o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, deu “autorização inicial” ao projeto.
CONE SUL
Oscar Romero, 25 anos de morte e profecia
Governos reviram porões da ditadura
Pessoas do mundo inteiro devem visitar El Salvador por ocasião do 25º aniversário do martírio de dom Oscar Romero, arcebispo salvadorenho assassinado em 24 de março de 1980, enquanto celebrava uma missa no Hospital da Divina Providência, onde residia. E encontrarão um país, em alguns aspectos, semelhante e, em outros, diferente de 1980. A primeira coisa que qualquer pessoa de fora observará é que a pobreza do povo não só continua, mas se agravou. Todos os índices sociais revelam que a concentração de renda em El Salvador e em toda América Latina é ainda mais injusta e escandalosa do que no tempo em que Romero pregava do púlpito: Aquele El Salvador a que Romero se dirigia se espalhou por todo o continente. Hoje, a violência urbana, a corrupção política e a injustiça institucionalizada estão presentes em todos os países. A violência que matou tanta gente em El Salvador continua assassinando pobres e indefesos. Agora, não se trata mais de repressão militar contra a tentativa de revolução socialista como era a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) e os diversos grupos de linha revolucionária. A violência é atomizada e se expressa em um clima de confronto que opõe, de um lado, ricos que contratam seguranças particulares e, de outro, marginais que os tentam roubar. Multiplicam-se grupos parapoliciais que assassinam adolescentes e crianças de rua, como aumenta a violência generalizada que, a cada dia, ronda o povo. Há uma tirania mais eficiente e difícil de derrubar, que vem do dogma neoliberal que considera os pobres supérfluos. Desde os anos 60, a América Central, especialmente Nicarágua, El Salvador e Guatemala viviam uma verdadeira guerra civil com milhares de pessoas assassinadas pelas ditaduras militares que os Estados Unidos impunham a toda região. Em meio a essa situação, monsenhor Romero compreendeu o seu ministério de bispo não como doutrinador religioso ou adminis-
Reprodução
da Redação Marcelo Barros
O encontro entre Chávez e Khatami resultou na assinatura de mais de 20 acordos comerciais que, para os venezuelanos, significam mais um passo para a concretização de uma integração “multipolar”. Entre os acordos e protocolos de intenção, está o desenvolvimento de uma fábrica de tratores e cimento, projetos de exploração de petróleo, investigação nas áreas de petroquímica e gás, construção de moradias, transporte e linhas de crédito para exportação. Ambos os países, sócios na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), assinaram nos últimos seis anos 35 instrumentos bilaterais com o fim de “impulsionar e diversificar” suas relações, afirmou em coletiva de imprensa o chanceler venezuelano Ali Rodriguez Araque. O estreitamento das relações Venezuela-Irã ocorre poucos dias antes da reunião da Opep e gerou ainda mais descontentamento nos EUA, já que desde que Chávez assumiu a presidência, os preços do petróleo passaram a ser tabelados, evitando a superprodução, como deseja Washington.
Dom Oscar Romero, no funeral do padre Rutilio Grande, em março de 1977
trador eclesiástico, e sim como alguém que, em nome de Deus, procura promover entre os salvadorenhos o entendimento e o diálogo. Mas esse acordo só poderia ter como base a justiça e a verdade.
NÃO-VIOLÊNCIA ATIVA O compromisso com a paz não é passividade nem neutralidade diante da injustiça. Romero não hesitou em denunciar os abusos do poder e as injustiças praticadas pelos militares. Por isso, os poderosos passaram a vê-lo como ameaça. Mataram alguns de seus auxiliares para amedrontá-lo. Nos três anos em que foi arcebispo, seis padres da arquidiocese foram assassinados, além de muitos catequistas, leigos e agentes de pastoral. Antes de assassiná-lo fisicamente, os adversários tentaram, por todos os meios, desacreditar e desmoralizar sua atuação. Freqüentemente, circulavam folhetos acusando o arcebispo de “comunista infiltrado na Igreja” ou de “vendido aos grupos subversivos”. No mesmo dia em que ele foi assassinado, uma folha circulava chamando-o de “psicopata e mentiroso”, por acusar o glorioso exército nacional de assassinar a sangue frio dezenas de lavradores indefesos na fazenda Colima. O que caracteriza monsenhor Romero é que ele foi assassinado aos poucos. Era tão evidente
que, atuando como atuava, ia ser assassinado que, as pessoas mais “ajuizadas” da Igreja e do mundo evitavam andar em sua companhia para não morrer junto. O próprio monsenhor, desde que começou a receber ameaças de morte, nunca mais aceitou viajar de carro com outras pessoas. Não aceitava carona e não tinha motorista para não pôr em risco a vida de ninguém. Ao menos por duas vezes, as tentativas de assassinato falharam. Finalmente, em 24 de março de 1980, as irmãs do hospital e as pessoas presentes na missa o viram cair aos pés do altar, misturando seu sangue com o cálice de vinho que preparava para o ofertório. Tudo foi muito rápido. Parece que os assassinos estavam em dois grupos e a bala que o atingiu veio da janela lateral. Era um projétil blindado e explosivo, calibre 25. Passou perto do coração e fixou-se na quinta costela dorsal, a nove centímetros da clavícula. A morte se deu por hemorragia interna, provocada pela ferida da bala que ao penetrar no corpo explodiu e se dividiu em milhares de fragmentos mortais. Eram exatamente 18 horas e 25 minutos. Romero tinha 62 anos. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 26 livros, dos quais o mais recente é O Espírito vem pelas Águas
O novo presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, anunciou que dirigirá pessoalmente o início das investigações sobre o destino dos presos desaparecidos durante a ditadura militar (1973-1985). Depois dessa etapa, que ele não precisou quanto tempo vai durar, Vázquez passará a tarefa para uma Secretaria de Direitos Humanos que o novo governo pretende criar, para “atuar muito além dessa situação de desgraça sofrida pelo país”, o que significa atuar nos campos dos direitos da infância, de gênero, dos presos e das vítimas de delitos. Uma lei uruguaia, aprovada em plebiscito em 1989, exime os militares repressores de julgamento por violações a direitos humanos durante a ditadura, mas um de seus artigos permite investigar o destino dos desaparecidos. O presidente uruguaio definiu ideologicamente o programa de seu governo como nacional, e não socialista: “É um programa nacional, cuja elaboração terá a participação da sociedade, de modo a democratizar este país”. Vázquez garantiu ainda que os contratos de privatização serão respeitados, mas “da mesma maneira vamos
exigir que a outra parte também cumpra com o que foi acordado”.
NA ARGENTINA, INDENIZAÇÕES O Senado argentino aprovou um projeto de lei que permite indenizar exilados, tanto argentinos como estrangeiros, que, por razões políticas, precisaram abandonar o país entre novembro de 1974 e dezembro de 1983. Segundo o autor do projeto, senador Jorge Capaitanich, da agremiação peronista Partido Justicialista (PJ), os beneficiários deverão receber cerca de 25 dólares por cada dia passado fora do país. A proposta, que agora deve ser aprovada na Câmara de Deputados, alcança também os menores de idade que, por conta da perseguição a seus pais, tiveram que abandonar o país. “É um merecido ressarcimento para aqueles que viveram as seqüelas do ódio”, disse o senador Marcelo López Arias (PJ). Para se cadastrar, os exilados precisam apresentar um certificado concedido pela autoridade competente de exílio ou pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, além de uma resolução judicial de foro federal, que comprove suas condições. (Com agências internacionais)
EUA articulam manobra contra Cuba na ONU Os Estados Unidos estão pressionando países da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) a aprovarem uma resolução contra Cuba. É o que diz o texto de um abaixoassinado, distribuído pela internet, que conta com subscrições de personalidades públicas de todo o mundo. Argentina, Brasil, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México e Peru representam o continente americano nesse espaço da ONU, além dos próprios EUA e Cuba. A comissão vai se reunir entre 14 de março e 22 de abril. “O governo dos Estados Unidos não tem autoridade moral para se erigir em juiz dos direitos humanos em Cuba,
onde não tem existido um só caso de desaparecimento, tortura ou execução extrajudiciárias e onde apesar do bloqueio tem-se conseguido indicadores de saúde, educação e cultura reconhecidos internacionalmente”, registra o manifesto. Entre os que ratificaram o texto, estão os brasileiros Oscar Niemeyer, Theotonio dos Santos, Frei Betto, Emir Sader, Fernando Morais, Ferreira Goulart, Leonardo Boff, Heloisa Buarque de Hollanda e Walter Salles. Também subescreveram o documento: o argentino prêmio Nobel da Paz, Adolfo Perez Esquivel, os escritores uruguaios Mario Benedetti e Eduardo Galeano, e o jornalista francês Ignacio Ramonet.
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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA
A volta de Carlos Mesa Mariana Sanchez e Pedro Carrano especial para o Brasil de Fato de La Paz (Bolívia)
Fotos: Pedro Carrano
Presidente boliviano busca apoio da população enquanto o tema dos hidrocarbonetos permanece indefinido
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epois da rejeição do Congresso para o pedido de renúncia do presidente Carlos Mesa, dia 8, o que se viu em toda a Bolívia foi um falso clima de comemoração. Centenas de pessoas foram às ruas apoiar o presidente, é certo, mas os principais jornais do país tentaram vender a idéia de que o povo está com Mesa. Nao é verdade. Quem está com Carlos Mesa? Nao os trabalhadores, já que a Central Obrera Boliviana (COB) é uma das organizações mais ativas nos protestos que vêm agitando o país nas últimas semanas. A população indígena? Tampouco. De acordo com dirigentes do Movimento Indígena Pacha Mama, a nova Lei de Hidrocarbonetos proposta pelo governo atenta contra os interesses dos povos originários, que na Bolívia formam 62% da população. A Federação Única dos Desempregados também tem demonstrado rechaço às decisões do governo. Ao todo, quase 400 mil pessoas não têm emprego no país. Assim, se a maioria da população não está com Mesa, quem afinal apóia o presidente? A estratégia de renúncia e ligeiro retorno de Carlos Mesa teve muitas interpretações. Uma delas defende que um fantasma estava rondando seu governo em referência ao episódio ocorrido durante a gestão de Gonzalo Sánchez de Lozada, em outubro de 2003, e conhecido como Outubro Negro, quando 67 pessoas foram mortas e 142 ficaram feridas nos conflitos da Guerra (pela nacio-
Ao contrário do que sugere a imprensa local, os trabalhadores e os indígenas bolivianos vão manter protestos contra o governo
nalização) do Gás. Na ocasião, a situação era bastante semelhante à atual: o país sofria por várias semanas com bloqueios nas principais estradas, motivados pelas mesmas demandas que pararam Chuquisaca, Cochabamba, La Paz e outros Departamentos na semana passada. Seja para conter a pressão social, seja para favorecer empresas petroleras que atuam no país, como acredita o ex-reitor da Universidad Mayor de San Andres (UMSA), Pablo Ramos, a renúncia de Mesa conseguiu separar a classe média da esquerda boliviana e isolar do Congresso o partido Movimento ao Socialismo (MAS), sobretudo seu líder Evo Morales. Na última sexta-feira, a esquer-
da boliviana e os principais movimentos sociais do país, totalizando 60 organizações populares, se reuniram na Universidade Pública de El Alto para discutir futuras mobilizações, dando continuidade e intensificando as medidas de protesto anteriores. A partir dessa semana, novos bloqueios serão articulados. A região de Chapare (que liga a cidade de Cochabamba a La Paz) conta atualmente com cerca de 18 bloqueios; Potosí também aderiu aos protestos. Com a volta de Mesa, porém, participantes de bloqueios e manifestantes estão sendo acusados judicialmente pelo Ministério Público sob o argumento de violação das leis de direitos humanos. Con-
traditoriamente, a decisão está sendo combatida pelos próprios grupos de defesa de direitos humanos. São quatro as organizações que pressionam o governo a aprovar
Cerca de 60 organizações populares se reuniram na Universidade Pública de El Alto
ARGENTINA
LIVRE COMÉRCIO
Boicote à Shell: as petrolíferas na mira Claudia Korol especial para o Brasil de Fato de Buenos Aires (Argentina) O presidente argentino, Néstor Kirchner, convocou um boicote nacional contra a empresa petrolífera anglo-holandesa Shell, que no dia 8 aumentou o preço da gasolina e diesel de 2,4% a 4,6%. O principal objetivo do governo é evitar a disparada da inflação que, no primeiro bimestre deste ano, chegou a 2,5% e se calcula que, em março, subirá entre 0,8% e 1%. Segundo essas previsões, o indicador do custo de vida terá aumento de 3,2% a 3,5% no primeiro trimestre, colocando em risco as estimativas inflacionárias do Ministério da Economia, mas sobretudo agravando ainda mais a situação de milhares de pessoas. Segundo a consultoria privada Equis, o au-
a nova Lei de Hidrocarbonetos: a Federação de Juntas de Vizinhos (Fejuve), de El Alto, o MAS, a COB (Central Obrera Boliviana) e o Conselho de Ayllus y Markas del Qollasuyo (Conamaq ). O eixo central das reivindicações é a aprovação de 50% de royalties para o Estado na exploração de hidrocarbonetos; – gás e petróleo –, enquanto o governo pretende dividir essa porcentagem entre 18% de royalties e 32% de impostos. Para o dirigente da Fejuve, Mocario Tola, há a possibilidade de estes impostos serem sonegados ou pagos com atraso, daí a importância de se aprovar 50% exclusivamente de royalties – cobrança feita ainda nas bocas de poço pelo Estado sobre gás e petróleo extraídos, de acordo com o preço de mercado. Até agora, as empresas transnacionais devem 600 milhões de dólares ao governo boliviano. A cobrança sobre a produção, em vez da cobrança sobre a venda dos hidrocarbonetos, não estaria sujeita às quedas nas vendas, como explica o jornalista mexicano Luis Gómez. Os poços mais antigos na Bolivia já seguem o sistema de 50% de royalties. E tem funcionado.
mento da inflação nos dois primeiros meses do ano fez com que 200 mil pessoas caíssem abaixo da linha da pobreza – situação em que se encontram 44,3% dos 36,2 milhões de argentinos, de acordo com as estatísticas oficiais. Se essas tendências inflacionárias se mantiverem, no fim do ano, haveria 2,4 milhões de novos pobres na Argentina.
E AS OUTRAS EMPRESAS? O forte discurso presidencial contra a Shell desencadeou uma dinâmica de movimentação de movimentos sociais que estão realizando bloqueios em postos de gasolina e convocaram passeatas nos próximos dias para reforçar o boicote. A Federação dos Trabalhadores na Energia na República Argentina (Fetera) anunciou apoio ao boicote, mas lamentou que a medida não foi estendida a outras transnacionais pe-
trolíferas, “já que nenhuma respeita os custos internos e cobram o barril de petróleo como se fosse importado da Arábia Saudita”. Prossegue a Fetera: “Na Argentina privatizada, as transnacionais tiveram a liberdade de se conduzir quase sem leis, fixando preços sem regulamentação e desconhecendo leis trabalhista.” A Federação, que integra a Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), reivindica que se avance na recuperação dos recursos energéticos, abolindo as leis e decretos que privatizaram o setor. A Fetera recorda, ainda, que a concessão de 90% das áreas petrolíferas do país à transnacional Repsol é ilegal. Neste sentido, valeria a pena analisar por que no discurso em que Kirchner convocou o boicote contra a Shell se “deu graças a Deus pela existência da Repsol, YPF e Petrobras, que não aumentaram os preços”. São conhecidos os compromissos do presidente argentino com as empresas petrolíferas e as transnacionais de origem espanhola, já desde o tempo em que era governador da Província de Santa Cruz, quando apoiou ativamente o processo de privatização da YPF, levado adiante pelo governo nacional de Menem e Cavallo.
REPSOL No caso do petróleo, a parte fundamental da privatização foi levada pela Repsol e pela Techint. Em 1999, a Repsol aumentou para 98% seu domínio da ex-estatal YPF. A empresa obtém 61% de sua produção de poços argentinos, dos quais extrai por dia 460 mil barris de petróleo e 49 milhões de metros cúbicos de gás natural. O controle envolve desde a produção e a disponibilidade de petróleo até o refino e a comercialização de combustíveis Em todas essas áreas a Repsol par-
ticipa com mais de 50% do mercado e, hoje, é o primeiro exportador do país, em quantia superior a 1,4 bilhão de dólares. A Repsol também domina a produção e distribuição de gás natural e a distribuição de eletricidade. Devido a essa conformação oligopólica, em que sete empresas controlam 86% da produção, o grupo repassa para o mercado doméstico, e sem nenhuma referência aos custos locais, todos os aumentos que ocorrem no mercado externo, mas nunca as reduções de preços. O aumento de preços, assim, é o último elo de uma cadeia que se inicia com a extração dos nossos recursos, a contaminação de terras e águas, o deslocamento de populações e a perda de soberania – tudo isso condiciona fortemente as possibilidades de desenvolvimento nacional. Por sua parte, as associações de defesa do consumidor vão estender o boicote também contra a Esso e exigem que o governo use os instrumentos legais para frear os aumentos dos gêneros de primeira necessidade, especialmente dos produtos que integram a cesta básica.
PDVSA Outro lado do conflito com a Shell é a negativa da transnacional em vender ações à PDVSA (Petróleos de Venezuela), criando um obstáculo ao objetivo dos governos argentino e venezuelano de que a PDVSA comprasse a destilaria e 900 postos de gasolina. Após terem afirmado a necessidade de sair de todos os países em que não participam da produção de petróleo, ao receber a proposta da PDVSA, os dirigentes da Shell se retrataram e decidiram “continuar na Argentina”. Isso diante do risco de que se ampliasse o mercado do petróleo venezuelano e sua influência no continente.
Milhares param capital da Guatemala Milhares de guatemaltecos paralisaram as ruas da capital Cidade da Guatemala, dia 14, revoltados contra a posição do Congresso e do governo local que ratificaram a assinatura do Tratado do Livre Comércio da América Central (Cafta) com os Estados Unidos. Além da Guatemala, Honduras e El Salvador também já confirmaram a entrada no bloco. O Cafta faz parte da estratégia estadunidense de ampliar o livre comércio no continente. Com o bloqueio das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), os Estados Unidos partiram, então, para negociações bilaterais ou regionais. A polícia reprimiu os protestos com violência, deixando dezenas de feridos. Houve confrontos com manifestantes e os policiais utilizaram um veículo que disparava jatos de água para dissolver o protesto. Bombas de gás lacrimogênio também foram lançadas contra a população. Os protestos na capital estiveram acompanhados de cerca de vinte bloqueios nas estradas. O corpo de bombeiros disse atender, ao menos, a 50 pessoas que foram atingidas por objetos contundentes ou intoxicadas com os gases lacrimogênios. A promotoria-geral da Guatemala solicitou a prisão de 20 dirigentes do protesto, segundo uma advertência formulada pelo presidente Oscar Berger. Os protestos foram convocados pelo movimento indígena, camponês, sindical e popular com o objetivo de reverter a assinatura do TLC. (La Jornada – www.jornada.unam.mx)
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DEBATE SEGURANÇA ALIMENTAR
Como surgiu a Lei Monsanto Congresso Nacional aprovou dia 2 de março um projeto de lei que serve aos interesses das multinacionais da biotecnologia, e em especial da Monsanto, dona da soja transgênica Roundup Ready. Por isso a lei a ser sancionada pelo presidente Lula, muito justamente pode ser chamada de “Lei Monsanto”. A Lei Monsanto, que aqui na Câmara tramitou sob o pseudônimo de Lei da Biossegurança, é o resultado da pressão de uma empresa multinacional sobre o governo atual. A Monsanto humilhou este governo, obrigando-o a agir sob uma agenda determinada por ela mesma, atropelando o Congresso, os planos do governo, ministros, e até a Justiça brasileira. A multinacional Monsanto inclui no seu currículo a produção do Agente Laranja”, que os norte-americanos jogaram sobre as florestas do Vietnã, após invadirem o país nos anos 60, matando milhares na ocasião e fazendo nascer crianças defeituosas até hoje. A Monsanto fez valer a sua vontade obrigando o governo Lula a criar monstros na legislação brasileira, como é o caso das medidas provisórias ilegais e imorais que revogavam inclusive decisões judiciais que impediam a comercialização da soja transgênica. Esta empresa impôs à população um projeto que só serve aos interesses do seu setor. Obrigou o governo a fazer uma lei, a pretensa Lei de Biossegurança –, que faz com que um grupinho de duas dezenas de cientistas decidam por três ministérios! A partir de agora este colegiado de cientistas, instalados na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), decidirá acima dos Ministérios da Saúde, Meio Ambiente e Agricultura. Diversos artigos da lei estabelecem que estes ministérios só poderão atuar no cumprimento das suas obrigações, para proteger a população, caso a CTNBio permita! Aprovar esta lei foi uma decisão jamais pensada e que fere de morte o papel do governo e o valor das instituições públicas brasileiras. É importante resgatar a estratégia da Monsanto, utilizada pela multinacional em vários países, e que no Brasil funcionou além das expectativas dos executivos da empresa – possivelmente por esta razão acompanharam a votação na Câmara, comemorando cada resultado com pulos de alegria, vibrações poucas vezes vistas nas galerias da Casa. A estratégia começou assim: não existindo legislação, criava-se o caos. Estranhamente, no Rio Grande Sul os agricultores tiveram acesso facilitado a sementes de soja transgênica proibida. Por quase oito anos a soja é plantada, um crime é cometido, mas ninguém é punido, nenhum contrabandista é localizado, nenhuma empresa é indiciada. O segundo passo da empresa foi anunciar o fato consumado: “o plantio de soja transgênica é uma realidade!” E o governo foi obrigado a lançar mão de três medidas provisórias para conter os ânimos do setor, devidamente protegidos pela articulada bancada ruralista que teve as suas fileiras engrossadas por muitos petistas. Era a estratégia criminosa dos que resolveram desafiar as autoridades no Brasil, as instituições, o Judiciário. E o governo, por covardia, se submeteu. Acontece que o governo do “partido dos trabalhadores” em nenhum momento pensou na saúde da população que teria o dever de defender; ou na nossa biodiversidade. Não pensou
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também nos agricultores que padecem com este modelo agrícola perverso que faz deles reféns, escravos do mercado. Um modelo superado e falido que busca na transgenia um novo fôlego para manter funcionando a mecânica de dependência no consumo de agroquímicos. A Monsanto tinha pressa, pois seus negócios milionários, e sobretudo estratégicos de controle da produção de sementes no planeta, precisavam dar este passo em um dos maiores celeiros de produção de alimentos do mundo. Alguns dentro do governo reagiram, percebendo a gravidade do que estava acontecendo. “Alguns”, para ser generoso. Porque, para a minha mais profunda decepção, vi a ministra Marina e alguns dos seus colaboradores ainda reagirem, mas sem muitas perspectivas, pois o quadro estava desenhado pela fraqueza política do governo e a desinformação surpreendente da maioria da alta cúpula do Planalto, dos ministérios e dos líderes no Congresso. A “reação” veio com o presidente Lula, que cometeu um dos atos mais graves deste episódio. Negociou com a ministra: aprovavam-se as medidas provisórias e o governo se comprometia a enviar para a Câmara projeto que regulamentasse a atividade, batizada de Lei de Biossegurança. E assim foi feito. A Lei foi enviada à Câmara. Mas aí, um primeiro sinal: não houve empenho do governo em aprovar a proposta original que tinha sido negociada com a ministra. Em contrapartida, o governo deu o aval para as mudanças indicadas pela bancada ruralista. Foi essa bancada quem comandou o processo no Congresso Nacional, para o desgosto da população brasileira e, sobretudo, da ministra, que não teve nem mesmo como reagir. Depois de tudo só lhe caberia arrumar as malas e sair do governo que não a respeitou, que feriu a sua dignidade e a sua história, e que tenta fazer, da sua pasta, um simples jarro em um canto isolado da sala. Para obter a vitória, a Monsanto conseguiu um aliado inesperado mas fundamental: os deficientes físicos que acreditam nas pesquisas com células-tronco para solucionar seus problemas. Então, a liberação de pesquisas de células-tronco, que não tem nada a ver com transgênicos, estrategicamente foi incorporada ao projeto por sugestão da mul-
tinacional. Funcionou: o tema foi um dos principais argumentos emocionais e científicos para a aprovação da proposta. Ao final, já não se discutiam transgênicos ou os efeitos da soja, mas célulastronco. Também aí funcionou a estratégia da Monsanto. Considerando a dimensão dos negócios envolvendo o mercado brasileiro de soja, o segundo maior produtor do mundo, calculado sempre em bilhões de dólares, a Monsanto investiu pesado no lobby que lhe garantiria o monopólio sobre o produto. Às vésperas de cada votação os corredores do Congresso eram ocupados pelas “transgenetes”: garotas contratadas em agências de modelo para distribuir cartazes, folders, brindes, para os parlamentares. Na votação final do projeto, ardilosamente, essas modelos estavam em defesa não mais de transgênicos, mas de células-tronco. A Monsanto não parou nisso. Ela se juntou às outras empresas e financiou o surgimento de uma dezena de associações de cientistas pró-transgênicos. Estas associações encaminharam aos deputados cartazes defendendo a “liberdade e autonomia para a ciência”, ou a independência da CTNBio. Bancados pelas multinacionais do setor, cientistas ganharam bem para desempenhar o papel “de defensores da vida” – ganharam bem pelo serviço e devem continuar bem empregados nestas empresas, ou em empresas públicas A vitória da Monsanto é a humilhação de um governo. O governo Lula e a maior parte do Partido dos Trabalhadores se juntaram aos ruralistas, à extrema direita política, e aprovaram uma lei que é danosa aos interesses nacionais. Exatamente o PT, que se dizia aliado das classes trabalhadoras, do camponês, dos sem-terra, comete esta traição. Ele opta por defender as multinacionais, o agronegócio, a chamada “revolução verde”, o latifúndio, a poluição biotecnológica, enfim, o que há de mais atrasado no campo. Em plenário, finalmente o governo escancarou sua aliança com os ruralistas. A orientação do governo e da bancada era pela aprovação do projeto nos termos do substitutivo do Senado, resultado de um acordo com os ruralistas e com a Monsanto. O projeto que
saíra da Câmara, acordado entre governo e entidades e sociedade civil, foi para o lixo. Ficou valendo a nova proposta. Isto porque o governo jamais tinha bancado a proposta da sociedade, ao contrário do que deu a entender em certa ocasião. E como a própria ministra Marina Silva manifestou de público. Mentiram para Marina, e, pelo visto, ela acreditou. E, de mentira em mentira, o projeto foi tramitando na Casa. Nós, que somos da base aliada, nos juntamos ao sentimento da sociedade civil, muito bem expresso pela Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA): fomos traídos pelo governo Lula. O fato é que em nenhum momento o governo esteve ao nosso lado, ao contrário do que deu a entender. Pior, ele nunca esteve ao lado do povo que o elegeu e acreditava nele para defender seus interesses. No dia da votação do projeto, o presidente da Câmara recebeu a visita de dois ministros, o da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, e o da Agricultura, Roberto Rodrigues. Só ministros pró-transgenicos estiveram aqui. Não se registrou a presença do ministro do Desenvolvimento Agrário, da Saúde ou do Meio Ambiente, que seriam nossos aliados; do Ibama ou da Anvisa. Todas as autoridades que deveriam defender a
saúde, o meio ambiente, a agricultura familiar, foram ausentes neste momento histórico que deve marcar para sempre o governo no que diz respeito a sua política para o campo, o meio ambiente e para os consumidores. Estes e outros em que acreditávamos falharam o tanto quanto aqueles que agiram em defesa dos interesses das multinacionais. E não há justificativa que seja aceita, nem mesmo a ameaça que paira sobre a cabeça de todos: a suposta reforma ministerial. A Lei Monsanto aprovada no Congresso é um dos instrumentos mais perversos já criados por esta Casa. Seus efeitos sobre a agricultura, saúde e meio ambiente só devem se manifestar dentro de cinco, dez anos, talvez. Mas aí será tarde demais. Infelizmente, no afã de agradar às multinacionais e os parceiros ruralistas, o governo não teve o bom-senso de pensar nesta Nação, no seu povo, nas crianças, jovens e adultos. Pensou apenas no aspecto econômico, e em como servir a um setor. A Lei Monsanto, já se sabe, é inconstitucional. Ela retira completamente as competências do Ministério da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente para avaliarem a liberação comercial de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs). E permite a liberação comercial independentemente da análise destes ministérios. Uma vez que o Ministério da Saude e a Anvisa não serão consultados, a lei também contraria o art. 200 da Constituição, que atribui competência ao Sistema Único de Saúde (SUS) para controlar produtos de interesse da saúde e executar as ações de vigilância sanitária. Por isso, caso o governo não use de bom-senso e vete esta lei, pretendemos entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), tão logo ela seja sancionada. Não podemos aceitar que uma lei feita por uma multinacional deixe o Brasil como cobaia dessa multinacional, permitindo que um grupinho de cientistas na CTNBio decida por milhares de técnicos instalados nos ministérios. Ainda mais que a CTNBio, ao invés de cuidar de biossegurança, talvez seja hoje a maior propagandista dos serviços e produtos das empresas de biotecnologia. Apoiar a Lei Monsanto, que dá tamanhos poderes à CTNBio, é uma irresponsabilidade do governo Lula que a história não esquecerá. Edson Duarte é deputado federal (PV-BA) e vice-líder do Partido na Câmara dos Deputados
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Edson Duarte
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA PÁTRIA DESPEDAÇADA – A INVASÃO NORTE-AMERICANA NO BRASIL De autoria de Valter Goulart, a obra dá forma aos temores coletivos, cria a trama conspiratória que muitos afirmam existir e que coloca os Estados Unidos no epicentro de uma dominação mundial. Mas Goulart coloca o Brasil, e principalmente São Paulo, como palco de atentados terroristas e investigações do serviço secreto americano. O livro, publicado pela Editora Komedi, tem 384 páginas e custa R$ 29. Mais informações: www.komedi.com.br
cujos autores são integrantes do GTNA. Mais informações: (91) 231-8413
Mais informações: (21) 2278-6843
PROJETO CARTA DA TERRA Composto de uma cartilha e um vídeo, o projeto é uma parceria entre o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) de Petrópolis (RJ), o Ministério do Meio Ambiente e Itaipu Binacional. Seu objetivo é conscientizar os povos de todo o mundo sobre a alternativa de um novo desenvolvimento sustentável, com respeito e responsabilidade, pelo bem da própria humanidade e das demais espécies do planeta. Mais informações: www.cddh.org.br
PALESTRA E DEBATE: IMPERIALISMO E GUERRA Dia 18, às 19h A atividade, organizada pelo Instituto Zequinha Barreto em parceria com a Escola Estadual Walter Negrelli, faz parte do ciclo de manifestações contra a ocupação do Iraque. Entre os debatedores estão Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, professor doutor da PUC-SP e membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais, e José Arbex Jr., jornalista, editor da revista Caros Amigos. Local: Escola Estadual Walter Negrelli, Jd. Piratininga, Osasco Mais informações: (11) 3695-0661
RIO DE JANEIRO 10 ANOS TRABALHANDO PELA AGROECOLOGIA Lançado pelo Grupo de Assessoria em Agroecologia na Amazônia (GTNA), organização não-governamental que trabalha para o avanço de experiências agroecológicas, o livro relata experiências e aprendizados em dez anos de atuação da entidade em diversos Estados da Amazônia brasileira. A publicação é uma coleção de vários textos,
1º ENCONTRO DE EDUCADORES SOCIAIS Dias 18, 19 e 20 Promovido pelo Grupo Luz do Sol, durante o encontro serão discutidos temas como metodologias de projetos pedagógicos, desenvolvimento do ser na infância e na adolescência, e afetividade. Local: R. Engenheiro Richard, n° 83, Grajaú, Rio de Janeiro
Cristiane Barreto, coordenadora do programa de Liberdade Assistida da Prefeitura de Belo Horizonte/MG e consultora do Banco Social; Denise Paiva, sub-secretária da Secretaria Promocional dos Direitos da Criança e do Adolescente; Maria de Lourdes Teixeira, professora doutora de
SÃO PAULO
ENCONTROS SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS: ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: VINGANÇA OU INSERÇÃO SOCIAL Dia 31 Realizado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e Banco Social de Serviços em Psicologia, o encontro terá entre seus palestrantes:
SEMINÁRIO: 2 ANOS DO GOVERNO LULA, 25 ANOS DO PT E RUMOS DA ESQUERDA Dia 20, das 9h às 14h O evento, promovido pelo Jornal Correio da Cidadania, terá entre seus convidados Emir Sader, Fábio Konder Comparato, João Pedro Stedile, Luizianne Lins, Paulo Nogueira Batista Jr. e Plinio Arruda Sampaio. Local: Clube Transmontano, R. Tabatinguera, 294, São Paulo Mais informações: correio@correiocidadania.com.br
Vamos barrar a Alca! sição da Campanha contra as pretensões hegemônicas dos Estados Unidos, seja por meio da Alca ou dos demais acordos com a Organização Mundial do Comércio (OMC). Também para fortalecer a luta em favor da realização da Auditoria da Dívida Externa que é ilegal e ilegítima. O povo é o verdadeiro credor da dívida e não o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) que há décadas levam os recursos que deveriam ser investidos na saúde, educação, moradia, lazer etc. Durante a 5ª Edição do Fórum Social Mundial, a Campanha Brasileira contra a Alca e a Rede Jubileu Sul/Brasil realizaram diversas reuniões e assembléias. A continuidade da campanha contra este projeto de anexação dos Estados Unidos prevê um calendário de articulações e mobilizações conjuntas com diversas redes, entidades, organizações, movimentos sociais e populares. A participação de muitas pessoas é fundamental neste processo que se fortalece a cada dia. Por isso a Campanha convoca para que você também participe: 1º, 2 e 3 de abril: 5º Encontro de Formadores/articuladores da Campanha contra a Alca na região Centro-Oeste; 8, 9 e 10 de abril: 5º Encontro de Formadores/articuladores da Campanha contra da Alca nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste/Sul 10 a 17 de abril: Semana de Ação Mundial e de mobilização brasileira contra o livre comércio
e as transnacionais, com atos de protestos em todas as capitais Maio e junho: trabalho de base e esclarecimento, aplicando um questionário de consulta popular, em todo o país. Junho/julho: realização de assembléias populares em todos os municípios, com o tema: O BRASIL QUE QUEREMOS. Agosto: assembléias populares nos Estados sobre O BRASIL QUE QUEREMOS. Setembro: mobilizações do Grito dos Excluídos durante a Semana da Pátria. 19, 20 e 21 de setembro, em Brasília – Assembléia Popular Nacional sobre O BRASIL QUE QUEREMOS. 12 a 17 de outubro: jornadas mundiais das mulheres e da Campanha Continental do Grito dos Excluídos. Mobilizações contra o domínio da OMC e Dia Mundial da Alimentação Novembro: mobilização continental frente à cúpula dos governos. Também acontecerá a cúpula dos povos na Argentina. Mais informações: na Campanha Brasileira Contra a Alca ou na secretaria nacional da Rede Jubileu Sul/Brasil – Tel.: (11) 5572-1518, www.jubileubrasil.org.br Ou ainda nos comitês estaduais em seu Estado ou município. Mobilize suas bases, seu sindicato, sua pastoral, assentamento. Vamos barrar de vez a Alca! Campanha Brasileira Contra a Alca e Rede Jubileu Sul/Brasil
Resgatando a visão dos vencidos João Alexandre Peschanski da Redação Em Walter Benjamin: aviso de incêndio, recém-publicado pela Boitempo Editorial, o sociólogo francês Michael Löwy revisita o texto do filósofo alemão Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”. Trata-se, nos termos de Löwy, de recuperar a perspectiva dos vencidos e oprimidos para a compreensão da história. Diz Benjamin: “Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la”. A leitura revolucionária da história é aquela que não incorpora o discurso e elementos da classe dominante, vitoriosa, mas busca a perspectiva do povo, oprimido e vencido. O discurso dominante, no mun-
do capitalista, é aquele que trata o passado como algo glorioso. Sua expressão máxima é o monumento, como elemento de permanência de um tempo magnífico. Para o pesquisador estadunidense Francis Fukuyama, conhecido porta-voz da perspectiva dos vitoriosos, a história chegou a seu fim com a derrocada da União Soviética, em 1991. Ele afirma que o mundo, desde então, se rege pela linha inexorável do capitalismo. Rumo à mundialização eterna. Ao trazer o estudo de Benjamin para o presente, Löwy lembra que a história não acabou, pois os oprimidos continuam, e continuarão enquanto o capitalismo for o sistema dominante. “O Anjo da História gostaria de parar, cuidar das feridas das vítimas esmagadas sob os escombros amontoados, mas a tempestade o leva inexoravelmente
à repetição do passado: novas catástrofes, novas hecatombes, cada vez mais amplas e destruidoras”, salienta o sociólogo. A história, como um anjo, tem em si algo humano, que busca o consolo das vítimas e oprimidos, mas isto é impedido, insistentemente, pela classe dominante, que se aproveita da destruição para aumentar seu poder. Löwy entende Benjamin a partir da perspectiva dos vencidos da história, o povo, trazendo elementos para desafiar a ordem dos vitoriosos. Desmistifica o capitalismo, que se autodefine como progresso e bem-estar, e fixa o olhar sobre a dor e a esperança inerente aos oprimidos. Apresenta assim um guia para uma leitura revolucionária da história, instrumento fundamental para a mudança do presente.
COOP. CENTRAL DE CRÉDITO RURAL DOS PEQ. AGRIC. E DA REFORMA AGRÁRIA CREHNOR CENTRAL CNPJ: 05.879.577/0001-39 NIRE: 43400088547 DE 28/08/2003 ASSEMBLÉIA GERAL ORDINÁRIA EDITAL DE CONVOCAÇÃO O Coordenador Geral da Cooperativa Central de Crédito Rural dos Pequenos Agricultores e da Reforma Agrária - CREHNOR CENTRAL, inscrita no CNPJ sob o nº. 05.879.577/0001-39, estabelecida á Rua Pietro Cescon, 1622 sala 02, município de Sarandi -RS, no uso de suas atribuições que lhe confere o Estatuto Social, C O N V O C A todos os associados que nesta data somam 06 (seis) em condições de votar, para reunir em ASSEMBLÉIA GERAL ORDINARIA, a ser realizada no dia 31 de março de 2005 , nas dependências da sede social da Crehnor Sarandi, situada na Av. Expedicionário, 983 no município de Sarandi — RS, às 8h00 (oito horas) em primeira convocação com a presença mínima de 2/3 (dois terços) dos associados em condição de votar, às 9h00 (nove horas) em segunda convocação com a presença de metade mais um dos associados em condição de votar e às 10h00 (dez horas) em terceira e última convocação com a presença de qualquer número de associados em condição de votar, para deliberar sobre os seguintes assuntos: 1) Prestação de Contas do exercício de 2004, compreendendo: a) Relatório de Gestão; b) Demonstrativo de Resultados do exercício social; c) Apresentação do Parecer do Conselho Fiscal; d) Apresentação do Parecer de Auditoria; e) Rateio das perdas apuradas no exercício; 2) Eleição dos componentes do Conselho Fiscal; 3) Fixação do valor dos honorários, das gratificações e da cédula de presença dos membros do Órgão de Administração e do Conselho Fiscal 4) Assuntos Gerais de Interesse da Sociedade. Sarandi(RS), 14 de Março de 2005 Valdemar Alves de Oliveira Coordenador Geral OBS: A Assembléia não se realizará na sede da cooperativa por falta de acomodações aos delegados credenciados. Divulgação
Mais do que nunca a Campanha Brasileira contra a Área de Livre Comércio das Américas está fortalecida e sai às ruas contra este projeto de anexação dos EUA. Centenas de movimentos sociais e populares, pastorais, entidades sindicais, populares e ONGs participam ativamente, há vários anos, da Campanha Brasileira contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Há um grande acúmulo por parte destes movimentos sobre os objetivos e as conseqüências nefastas deste acordo à soberania das nações. Você deve se lembrar do Plebiscito Popular sobre a Divida Externa realizado em 2000. Mais de seis milhões de pessoas foram às urnas e 95,6% votaram não ao pagamento da dívida externa, sem antes realizar uma auditoria. Depois, em 2002, foi realizado o plebiscito sobre a Alca e a Base Espacial de Alcântara. Desta vez foram mais de dez milhões de brasileiros que votaram e 98% disseram não ao acordo da Alca. Com a vitória do Bush nas últimas eleições, a política estadunidense ficou ainda mais agressiva. Sentindo-se dono do mundo, Bush quer retomar as negociações de livre comércio e da Alca com pretensões ainda maiores. Quer viabilizar e aumentar a taxa de lucro de suas empresas. Até os empresários e industriais brasileiros já se deram conta que esses acordos inviabilizam diversos setores da industria nacional. O ano de 2005 será decisivo para assegurar e reforçar a po-
Psicologia na Pontifícia Universidade Católica – PUC – SP e consultora do Banco Social; Mário Volpi – oficial de projetos da Unicef. Local: R. Arruda Alvim, 89, São Paulo Mais informações: eventos@bancosocialpsi.org.br
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CULTURA
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Vodu e a experiência da história João Alexandre Peschanski de Hinche (Haiti)
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m torno de uma cruz, Paoussi Dansi Zoulon dança. Seus gestos, frenéticos, são a luta pelo controle de seu corpo. Debate-se. Pula. Grita. A fogueira, a um metro, ilumina seu rosto. Percussões, em ritmo alucinante. No chão, as trêmulas sombras multiplicam o desvario mágico de Zoulon. De repente, a silhueta se imobiliza. Não fala mais o homem, mas Papa Gede, o espírito da morte e ressurreição. As dezenas de camponeses que assistem à metamorfose, em Belle Fontaine, no Oeste do Haiti, tiram de seus bolsos, casacos e sacolas, uma oferenda. Um ovo. Esperam assim alcançar paz e serenidade. Colocam-nos aos pés de Papa Gede. O corpo, até então parado, ao lado das chamas, se mexe. Lentamente. Cuidadosamente. Fala. E todos ouvem. Belle Fontaine é uma das regiões mais pobres do Haiti. Sua população camponesa não consegue plantar, pois falta chuva. A estiagem já dura dez meses. Os rios secaram. O governo, por meio do Ministério da Agricultura, promete investir na captação e conservação de água. O anúncio foi noticiado pelo jornal haitiano Le Nouvelliste, em outubro de 2004. Até agora, nenhum funcionário foi deslocado para a região. “Bondye me envia”. É o Deus do vodu, principal religião haitiana. Pergunta: “O que têm feito de seus mortos? Abandonaram-nos?” Os voduístas devem honrar, sempre, seus antepassados. Pensar neles. Senão, eles voltam para o mundo dos vivos e podem ser perigosos, gerando doenças e tragédias. “Lembrem-se que os espíritos espreitam. Lembrem-se de Legba. Lembrem-se de Lamour Dérance”. Os personagens evocados são, respectivamente, o espírito da noite, considerado o guardião dos mundos, fonte de equilíbrio para os vivos; e um dos heróis da luta pela independência do Haiti, conquistada dos franceses em 1804.
de animais, e pregava o fanatismo, estimulando a criação de seitas. “Na verdade, a religião é um meio para pensar e entender a liberdade. Também desafia todo o conhecimento que vem do estrangeiro. O vodu se fundamenta na cura. Com ervas e a ajuda dos espíritos, podemos curar nossos males, e não precisamos dos remédios que vêm de fora. Não precisamos da cultura que vem de fora”, afirmou o líder religioso Zoulon, antes de ser possuído por Papa Gede. Na cerimônia, em Belle Fontaine, os houngan e as mambo (mulheres) se levantam, após a fala inicial do espírito. Preparam um sèvis, rito característico do vodu. Recomeçam os tambores. Delirantes. Os campo-
neses dançam, gesticulam, pulam. No meio da cena, Papa Gede ri. Os corpos, pouco a pouco, seguem a metamorfose de Zoulon. Deixam ser das pessoas para ser dos espíritos. Um dos camponeses, agora espírito, pega um cabrito. Nos sèvis, faz-se o sacrifício de um animal, como símbolo da libertação da experiência da vida. É uma oferenda para os espíritos, cansados de governar o universo, para que se revigorem. Um jovem passa por um lave tet (quando alguém é possuído pela primeira vez). Deixa-se levar pelas percussões. Em um altar, de madeira e palha, Papa Gede sacrifica o animal. Minutos depois, enquanto se dissipa a noite, Zoulon volta a si. Não se lembra do que aconteceu.
Fotos: Mauro Burzio
Ritos e cerimônias, na zona rural haitiana, mantêm vivas as lutas dos heróis do passado, como de Lamour Dérance
CONHECIMENTO Os sèvitê, como são conhecidos os adeptos do vodu, ouvem de Papa Gede a história dos marronages, as revoltas de escravos durante o período colonial. Eram lideradas por Dérance. “Lembrem-se dos feitos de nossos antepassados. Tinham o conhecimento. Da vida, dos invisíveis e faziam o avon (chamado dos espíritos). Estes vinham, pois a luta era boa, a luta era justa. Os invisíveis vieram e deram a vitória. Vieram felizes, vieram mal e bem. Veio até Agw”, conta Papa Gede, referindo-se ao senhor dos mares. Como 80% da população haitiana, os camponeses de Belle Fontaine são analfabetos. O único contato que têm com a história de seu país é pelas cerimônias vodus. Nelas, o relato dos acontecimentos do passado se mistura com a crença, pois, de acordo com a religião, tudo o que ocorre no mundo dos vivos é controlado e determinado pelos espíritos. Assim, Dérance ultrapassa sua posição de houngan (homem, em crioulo) e se confunde com os espíritos. Nos marronages, os escravos que fugiam das grandes fazendas organizavam comunidades autônomas. Plantavam o que comiam. Viviam de acordo com as crenças que traziam da África, onde nasce o vodu. Aqueles escravos, organizados, foram a base da luta que expulsou os colonizadores franceses do Haiti.
O RITUAL DO SÈVIS O vodu, seguido pela maioria dos 7,66 milhões de haitianos, era proibido até 1993. Diziam as autoridades que a religião era violenta, pois se fundamentava no sacrifício
As fotos que ilustram esta página são fruto de uma pesquisa de três anos do fotógrafo italiano Mauro Burzio. Ele percorreu os países africanos considerados berço do vodu: Benin, Gana e Togo. A tradição religiosa foi levada com os escravos dessas nações para o Haiti e outros países latino-americanos. Mas foi sobretudo nesse país do Caribe que o vodu tornou-se a principal religião da resistência do povo haitiano