Ano 3 • Número 108
R$ 2,00 São Paulo • De 24 a 30 de março de 2005
A farsa por trás dos juros altos Governo manipula dados para justificar o arrocho da economia. Já a imprensa conservadora aplaude e faz o mesmo
À margem da lei, transgênicos são liberados
Rolex dela Pena/EFE/AE
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grande mídia conservadora tenta vender à opinião pública a falsa informação de que a política de juros escorchantes não consegue conter a inflação porque o governo voltou a gastar muito, e mal. Por isso, os preços sobem. A verdade é que o Banco Central continua aumentando os juros, mas a inflação está sob controle e sem risco de explodir. A imprensa omite os dados que mostram como os gastos do governo não crescem, e sim diminuem. A mesma mídia continua apontando para um falso déficit da Previdência que, como tem mostrado o Brasil de Fato, é superavitária. No mundo real, os juros altos freiam as atividades produtivas, o que já se faz sentir na indústria, ameaçando emprego e salários. E também como resultado da alta dos juros, o governo gasta mais com o pagamento da dívida, o que, a rigor, está por trás do corte do orçamento de 2005. Pág. 7
Antes mesmo de o presidente Lula sancionar o projeto de lei de Biossegurança, aprovado pelo Congresso Nacional, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) autorizou, dia 17, o plantio e a comercialização do algodão Bollgard, da transnacional Monsanto. Para especialistas, a CTNBio segue sua própria lei e baseia suas decisões em aspectos políticos. A sociedade prepara sua reação. Romário Rosseto, do Movimentos dos Pequenos Agricultores (MAP), conta que haverá ocupações de mercados para retirar das prateleiras produtos transgênicos e queimá-los, caso a rotulagem não seja cumprida. Também é preparado um festival de ações na Justiça contra União, CTNBio e Monsanto. Pág. 13
Por um PT fiel às suas origens
Bush ataca e quer Wolfowitz no Banco Mundial
Deputados federais petistas lançaram, no dia 20, o Bloco de Esquerda, com o objetivo de resgatar o caráter militante do Partido dos Trabalhadores (PT). Em evento em São Paulo, os parlamentares se colocaram contra a autonomia do Banco Central, a reforma trabalhista e alguns pontos da sindical. O deputado Ivan Valente (PT-SP) criticou a política econômica do governo, “que concentra renda e impede investimentos nas áreas sociais”. Pág. 4
Indicado por George W. Bush, o vice-secretário de Defesa dos EUA, Paul Wolfowitz, deve ser o novo presidente do Banco Mundial. Wolfowitz formulou a política belicista dos EUA, que culminou nas intervenções do Afeganistão e do Iraque. Organizações do mundo todo repudiam a indicação por considerá-la um risco, pois dá ainda mais poder a Bush para pressionar governos de países pobres a se alinhar com sua política imperial. Pág. 11
Depois de o presidente argentino, Néstor Kirchner, convocar um boicote contra a Shell, no México, camponeses e ambientalistas realizaram manifestações contra as empresas estadunidenses Texaco e Shell. O motivo são as concessões no setor elétrico dadas pelo governo às petrolíferas. Os manifestantes dizem que a situação energética do país vai se agravar, pois entregarão a transnacionais o controle da eletricidade. Pág. 10
Busca da unidade na luta pela água As atividades do Dia Mundial da Água, 22 de março, tiveram um significado especial em 2005 para sindicatos, organizações e movimentos sociais. É que está em curso uma articulação inédita para alcançar uma
unidade entre todos aqueles que defendem a água como um bem comum da humanidade. Essa plataforma se opõe à privatização dos serviços de saneamento e à mercantilização dos recursos hídricos. Dois atos
impulsionaram essa aliança internacional: o Fórum Mundial Alternativo da Água, em Genebra (Suíça), e o lançamento da Plataforma Global de Luta pela Água. Pág. 5
Bispos pedem Reforma ameaça José Graziano libertação de organização dos analisa a presos políticos trabalhadores política agrícola Dezessete bispos da Igreja Católica publicaram, dia 21, carta em que denunciam a violência com as famílias afetadas pela construção de barragens no Brasil. “Antes de produzir energia, as hidrelétricas produzem excluídos”, resume o bispo emérito de Vacaria (RS), dom Orlando Dotti. Até o fechamento desta edicão, seis agricultores atingidos pela barragem de Campos Novos (SC) continuavam presos. Pág. 3
Críticos da reforma sindical argumentam que ela fortalece a cúpula das centrais, legaliza o fura-greve e estabelece a intervenção do Estado, entre outros retrocessos. A CUT defende a reforma, alegando que a base pode seguir o próprio caminho, quando discordar de alguma decisão sua: “O projeto representa um avanço em comparação com a atual legislação”, afirma João Felício, da direção da entidade. Pág. 6
Pág. 8
A luta das mulheres de Burkina Faso Pág. 12
Luciney Martins
Protesto contra a Shell: agora, no México
Protesto – Nas Filipinas, manifestação contra o sofrimento imposto pelas políticas neoliberais da presidente Gloria Arroyo
E mais: IRAQUE — No dia 19, em todo o mundo, pessoas saíram às ruas para protestar contra a Guerra do Iraque. Nos EUA, dobrou o número de cidades com mobilizações. Pág. 11 CULTURA — Projeto Cachuera! mistura canção, divertimento e ensinamentos, propondo educação musical para um público sem preconceitos. Pág. 16
Fraternidade e paz – Crianças e adolescentes participam da Via-Sacra, dia 18, em São Paulo, e pedem a implementação de políticas públicas de proteção social
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De 24 a 30 de março de 2005
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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NOSSA OPINIÃO
O governo e as armadilhas da direita Nas últimas semanas, a imprensa burguesa tem especulado insistentemente sobre quem fica, quem sai e quem entra no governo Lula. O PMDB e PP, entre outros partidos, fazem pressão e pedem cargos. O governo entra no jogo e articula alianças cada vez mais para a direita, com as mesmas forças que deram sustentação para a ditadura militar e os governos Collor e FHC. Na perspectiva do governo, a reforma ministerial é um meio de galvanizar apoio para a reeleição de Lula e garantir maior controle no Congresso. O tiro está a um ponto de sair pela culatra. O governo se coloca à mercê dos partidos conservadores e de tristes personagens da política brasileira, como o presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, do PP. Em discurso, amplamente veiculado pela grande imprensa, Cavalcanti ameaçou desestabilizar o governo, se Lula não cedesse o cargo de ministro das Comunicações a seu partido. O presidente Lula e setores de direita do governo se enfiaram em uma camisa de força da qual não conseguem – ou não querem – sair. Tudo começou há três anos, quando se aliaram ao PL, fidedigno representante das classes mais conservadoras do país, dizendo que este era o único meio de o partido sair
vitorioso das eleições. E, de fato, chegaram ao poder em 2003. A vitória de Lula, entretanto, marcou uma derrota do projeto político do PT e da esquerda brasileira. O PT nasceu como um partido operário, alheio aos interesses das classes dominantes. Assentava-se em um projeto alternativo: um Brasil justo, igualitário e solidário. Hoje, o governo caminha para o lado oposto: uma adesão ao ideário da burguesia, sem oferecer qualquer ameaça de resistência ou risco de ruptura. Os banqueiros e as velhas oligarquias rurais comemoram a cada vez mais, a capitulação do governo. Confraternizam com eles a segurança dos mercados, a manutenção dos contratos, que promovem a sangria de riqueza para os cofres dos banqueiros (inclusive com o FMI), a liberdade de trânsito para os capitais e toda a parafernália fiscal, cambial e financeira que garante a acumulação dos bens e da riqueza produzida, inclusive priorizando as exportações em detrimento do mercado interno. Comemoram, mas também impõem sua pauta. A reforma ministerial é a prova de que o governo prioriza a satisfação dos interesses das classes dominantes, sabida-
mente clientelista e eleitoreira, em detrimento do projeto original do Partido dos Trabalhadores. Aceitada a lógica burguesa, o governo Lula sente na pele que não há como voltar atrás. Seu interlocutor não é mais a classe trabalhadora, mas Severino Cavalcanti, que coloca abertamente sua posição contrária aos valores democráticos e populares. O projeto popular – da origem do PT – não pode conviver com personagens como o presidente da Câmara, como os integrantes da família Sarney. São, em sua essência, antagônicos. O governo Lula ainda não percebeu que é impossível conciliar projetos e conviver harmoniosamente com um sistema que degrada e humilha o ser humano, vive da exploração do trabalho alheio e jamais criará uma Nação livre e soberana porque não se propõe a acabar com a dependência nacional e a desigualdade na sociedade. A lógica do ganhar as eleições a qualquer custo, fazendo alianças com a direita, é submeter, inevitavelmente, o governo às classes dominantes. Traído, o povo tem diante de si um desafio heróico: entender as escolhas do governo e retomar, massivamente, a mobilização.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES ELEIÇÕES NA CÂMARA A eleição do deputado Severino para presidente da Câmara, como antagonista do candidato do presidente Lula, foi a maior homenagem que os deputados da oposição poderiam prestar ao presidente da República. Severino bem simboliza a nossa oposição: retrógrada e preocupada apenas com seus próprios interesses, dando as costas aos interesses da maioria da população. É como se proclamassem: vejam todos, enquanto o presidente está preocupado em criar uma sociedade mais justa, reduzir a diferença de salário entre os brasileiros, nós estamos querendo é mais privilégios, mais injustiça, mais concentração de renda! Antônio Rodrigues de Souza São Paulo (SP) AÇÕES ANTIEDUCACIONAIS As ações praticadas pelo governo estadual do Paraná, por meio da Polícia Militar, em revistar alunos da rede pública de ensino dentro de sala de aula cheira a uma prática ilegal, imoral, que constrange a sociedade, não somente os educandos e a família. Não fosse pouco demonstrar discriminação invadindo uma vila de Curitiba (Favela das Torres) cometendo excessos e abusos de autoridade contra a população local, agora policiais invadem as salas de aula e colocam os alunos de pé para serem revistados como se fossem criminosos. Discriminação, preconceito social? Sim. O governador e o senhor secretário de Segurança Pública de nosso Estado do Paraná agem equivocadamente com atitudes tresloucadas. É a sede de fazer aparecer na mídia, para tal passam por cima
da liberdade, do direito constituído de quem não deve nada para a Justiça ou para este falido Estado de direito! Célio Borba Curitiba (PR) VEJA QUE MENTIRA Meus pais, por muito tempo, assinam a revista Veja. Sou testemunha da campanha difamatória promovida pelo periódico contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Conheço o verdadeiro Movimento pela sua página eletrônica (www.mst.org.br), do maravilhoso livro Rompendo a Cerca, de Jan Rocha e Sue Branford, da revista Caros Amigos, do Brasil de Fato e outros veículos alternativos. Ainda assim, infelizmente, o que conheço é muito pouco. Me entristece saber que Veja alcança muito mais pessoas do que esses veículos alternativos, que tenho o privilégio de ler. Veja continua sua perseguição ao MST na edição de 9 de março, inclusive com uma chamada na capa para a matéria “Nós pagamos, eles invadem”. Provavelmente a resposta do Movimento à tais acusações não estará na seção “Cartas” da próxima revista. Duvido que Veja publicasse, porque não me lembro de ter visto, ao longo desses anos, o MST exercer seu direito de resposta em suas páginas – direito, aliás, assegurado pela Constituição Federal, em seu art. 5.º, inciso V. Creio que tenha até desistido, diante das intermináveis reportagens mentirosas da revista. Aline Prá Claudino Curitiba (PR)
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CRÔNICA
A Páscoa de 2005 e Oscar Romero Marcelo Barros Certas celebrações religiosas me recordam o que uma de minhas irmãs me contou. Um dia, o seu filho de três anos lhe chama para dar um presente. A mãe, comovida, vê o menino estender a mão que mantinha atrás das costas com o presente. Era uma rã, tirada do esgoto. Como mãe, ela tem o cuidado de não rejeitar o presente do filho e, ao mesmo tempo, descobrir a forma de se livrar da rã que ele insiste em lhe dar. Deus deve sentir-se assim com certos cultos que os crentes lhe oferecem. Não quer contrariá-los, mas não sabe o que fazer com “as rãs” de nossos sacrifícios, velas, incensos e devoções. Jesus denunciou: “Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim”. “Quero a misericórdia e não o sacrifício, a relação humana e não o culto” . Cada ano, a Semana Santa é o centro das celebrações da fé cristã. Mas, muita gente se liga apenas a costumes tradicionais como não comer carne e a ritos como procissões
e encenações da Paixão. Quem tem fé, lembra o que aconteceu com Jesus para seguir hoje o seu caminho e trabalhar pela paz e solidariedade à qual ele consagrou a vida. A morte de Jesus na cruz não foi um rito religioso e sim um assassinato político. Nós o recordamos cada ano para que esta memória nos ajude a viver de forma mais solidária. Neste 2005, a Quinta-Feira Santa cai na data em que se completam 25 anos da morte de Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado por militares do Exército de El Salvador, quando celebrava a missa. Romero era, antes, um bispo conservador e não gostava de ver a Igreja envolvida em coisas sociais. Aos 59 anos, o contato com a realidade o transformou. O seu amigo Jon Sobriño explica: “Ainda que possa parecer até estranho dizer isso, Romero foi um homem que acreditou em Deus”(*). Em um mundo no qual o nome de Deus aparece em notas de dólar, nas entrevistas de Bush e nas paredes de quartel, para Romero, crer e ser testemunha de
Deus significou amar e defender a vida onde ela estivesse ameaçada. Ele trabalhou por estruturas justas que tornassem possível a vida para todos os salvadorenhos. Dizia que a extrema pobreza dos lavradores tocava o coração de Deus. Na negação do ser humano, via a negação de Deus. Celebrar a Páscoa de Cristo não é apenas repetir ritos. É dar um passo a mais para crescermos em solidariedade e vivermos a fé como serviço à vida, à justiça e à paz. Na América Latina, isso significou para Romero e significa para nós, assumir a causa de todas as pessoas oprimidas. Romero retomava Irineu de Lyon: “A glória de Deus é que o pobre possa ser livre”. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 29 livros, entre os quais o romance A Festa do Pastor, da Editora Rede (*) JON SOBRIÑO, Para Romero, la injusticia es el verdadero pecado, in CISA PROCESO, 1804- 1980, p. 2.
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NACIONAL LUTA CONTRA BARRAGENS
Bispos pedem liberdade para atingidos Em carta à sociedade, prelados católicos denunciam o violento tratamento dispensado às vítimas das hidrelétricas ças e idosos. Foi humilhante, pois parecia que íamos fazer um ato de vandalismo”, relata André Sartori, liderança do MAB na região. Estão presos os agricultores Edio Grasse, do município de Celso Ramos; Carlos da Silva e Leodato Vicente (de 70 anos), de Campos Novos; Dorneles Vicente, Aurélio Dutra e João Vilmar de Oliveira, de Anita Garibaldi. Outros quatro dirigentes estão sendo procurados.
MAB
Eduardo Zen e Marcelo Netto Rodrigues de Brasília (DF) e da Redação
D
ia 21, bispos da Igreja Católica publicaram uma carta à sociedade brasileira (subscrita por 17 prelados até o dia seguinte), denunciando a violência com que são tratadas as famílias afetadas pela construção de hidrelétricas no Brasil. Em Santa Catarina, os seis agricultores atingidos pela barragem de Campos Novos, que foram tirados de suas casas nas madrugadas do dia 12 e 13, continuavam presos. “O que mais nos enche de indignação é que quando se decide pela construção de uma barragem, o governo federal desapropria as áreas a serem alagadas por ‘interesse público’ que, porém, são entregues para exploração de empresas privadas, a maioria delas transnacionais. Estas pouco se interessam pelos impactos sociais sobre as populações atingidas”, diz um trecho do manifesto, assinado, entre outros, por dom Tomás Balduino, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT) e dom Orlando Dotti, bispo emérito de Vacaria (RS). Acrescenta o documento: “Elas (as empresas privadas) reconhecem o direito de quem têm documentos de propriedade, mas os direitos das famílias de posseiros, meeiros, arrendatários, pequenos comerciantes e artesãos, pescadores e ribeirinhos que sempre viveram na área são simplesmente esquecidos. O Movimento dos Atingidos por
PM INVADE
Em Jaguaribara, CE, manifestantes fazem marcha durante semana do Dia Internacional de Luta contra as Barragens
Barragens (MAB) calcula que, para cada três famílias que recebem indenização, outras sete acabam simplesmente sem nada”.
construção da obra sem consultar os atingidos. A intervenção do Exército na Barragem de Tucuruí, no Pará, também é lembrada, assim como a prisão política dos seis agricultores catarinenses. Segundo a carta, para a aprovação das barragens são usados muitos subterfúgios e burladas normas legais, como recentemente ocorreu na fraude do Estudo de Impacto Ambiental da hidrelétrica de Barra Grande, no Rio Grande do Sul, onde quase seis mil hectares de Mata Atlântica, protegida
SEM DIREITOS Os bispos denunciam a violência praticada, semanas atrás, contra os atingidos pela Barragem de Jurumirim, em Minas Gerais, quando a polícia feriu 35 e prendeu seis lideranças por algumas horas (inclusive um padre, Antônio Claret Fernandes) durante protesto contra uma audiência pública que aprovaria a
por lei, simplesmente, foram ignorados no relatório.
PANCADARIA Na última terça, durante ato público em Campos Novos, mais de 500 pessoas pediram a imediata libertação dos seis presos políticos do MAB, que estão no presídio de Joaçaba desde as madrugadas dos dias 12 e 13. Na chegada para a mobilização, os ônibus foram barrados por mais de 300 policiais. “Todos os ônibus e as pessoas eram revistados, inclusive crian-
ENTREVISTA
Ao invés de energia, usinas produzem excluídos Dom Orlando Dotti, bispo emérito da diocese de Vacaria (RS), esteve em Brasília na semana passada, acompanhando lideranças do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em audiências com o governo federal. Dom Orlando é um dos grandes apoiadores do Movimento desde a sua criação, assistindo as populações atingidas na Bahia, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Mesmo como bispo emérito, continua ajudando a articulação dos bispos das dioceses da Bacia do Rio Uruguai para reuniões periódicas com o MAB. Dom Orlando fala ao Brasil de Fato sobre o papel da Igreja junto aos movimentos sociais e a sua criminalização. Brasil de Fato – Como o senhor vê a organização do MAB e a sua inserção na sociedade? Dom Orlando Dotti – O meu pensamento não é exclusivamente meu, é um pensamento que nós da Igreja temos. Em primeiro lugar, dizemos que o MAB é o legítimo representante dos atingidos por barragens. No contexto de exclusão, é um movimento próprio desses excluídos. BF – Do seu ponto de vista, qual é o papel da Igreja junto ao Movimento? Dom Orlando – Eu penso que hoje a Igreja se situa num outro patamar. Principalmente durante o período da ditadura, a Igreja fazia quase tudo: organizava e mobilizava o povo, produzia os subsídios etc. Com o passar do tempo, a Igreja entendeu que não é toda a sociedade, mas faz parte dela, aceitando a participação de entidades, da sociedade civil e também contribuindo com a
sociedade para um projeto novo. Eu diria que o nosso é o mesmo projeto do MAB, que quer uma vida melhor, o bem comum para todos, o projeto de uma sociedade livre, democrática, com menos desigualdade social. Então, a Igreja, hoje, não pretende mais criar entidades, ou fazer tudo, mas se valer daquelas que existem e, ao mesmo tempo, andar com elas. A relação com os movimentos sociais é um campo muito grande e a questão das barragens não envolve somente os atingidos, envolve toda a vida dos municípios que têm muito a perder. BF – As prisões de Campos Novos repetem ações da ditadura militar? Dom Orlando – A opressão aos atingidos acontece porque há promiscuidade entre as empresas, o Ministério Público e o Judiciário. Uma promiscuidade que dita o que se deve fazer para que a barragem seja construída e seja lucrativa para as empresas, não se importando com o que acontece com o povo. Nunca se faz um prévio levantamento de todas as pessoas que moram na região. E o que está acontecendo em algumas regiões é um abuso. A coisa mais fácil para se acabar com um movimento é criminalizar suas lideranças, e é o que estão fazendo neste pacto que existe entre o poder constituído e as empresas. Então, criminaliza-se dando ordens de prisão sem processo algum, para provar ou desaprovar, os presos são supostos criminosos e fica por isso mesmo. BF – Como o senhor vê os próximos passos da luta? Dom Orlando – Nós temos que entender que a barragem não é
sempre um mal em si. Ela é um bem que traz desvantagens. Por exemplo, onde se constrói uma barragem perde-se muita terra boa para o cultivo, ou a mata. E se criou essa mentalidade de ser contra as barragens porque se sabe de antemão que elas vão trazer grande malefícios para a vida das pessoas. É a vida humana que está em jogo e até hoje nunca se viu as barragens melhorarem a vida dos atingidos. Pelo contrário, sempre piorou! Por isso, tanta gente é contra esse modelo de produção de energia. O governo tem que implantar um novo modelo, que privilegie a pessoa humana e as populações que estão na beira dos rios. O MAB tem que lutar cada vez mais por isso e os investimentos públicos, que servirão somente a interesses particulares, devem ser revertidos ao bem-estar dos pobres ribeirinhos, pois antes de produzir energia, estas usinas produzem excluídos e isso deve acabar.
Douglas Mansur
Quem é Dom Orlando Octacílio Dotti, 74, é bispo emérito de Vacaria, Rio Grande do Sul. Também foi bispo de Caçador, em Santa Catarina (1969-1976) e de Barra, na Bahia (19761983). Foi presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) entre 1993 e 1997.
RoseBrasil/Abr
Alexania Rossato de Brasília (DF)
Para dom Orlando, onde se constrói uma barragem perde-se terra para o cultivo
Conforme documento produzido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a Polícia Militar invadiu as casas de quase todos, arrombou portas e revirou tudo, sendo que só havia autorização para busca e apreensão na propriedade de um dos agricultores. Na operação, os atingidos não foram informados do motivo de sua prisão. A explicação dada por Adriana Lisboa, a juíza que decretou as prisões, foi que a medida se destinava a garantir a ordem pública. Foram também apreendidos 16 veículos dos agricultores, sob a acusação de que seriam utilizados para transportar integrantes do MAB em seus protestos durante a semana do Dia Internacional de Luta contra as Barragens. O ministro da Pesca, José Fritsch, e o deputado estadual pelo Rio Grande do Sul, frei Sérgio Görgen (PT) foram até o presídio de Joaçaba dar apoio aos atingidos presos. Desde o dia 17, agricultores da região mantêm vigília pela libertação de seus companheiros numa praça da cidade.
Sem-terra fazem greve de fome da Redação Onze trabalhadoras e trabalhadores rurais ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que ocupam a sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Macéio (AL), há três semanas, estão sem comer há seis dias. A greve de fome, que começou dia 16, deve continuar até que o superintendente do Incra no Estado, Gino César Menezes, seja exonerado ou transferido. Segundo o MST, “o superintendente e a sua equipe vêm tentando jogar os movimentos que lutam pela terra uns contra os outros, causando um clima de tensão no campo”. Mesmo assim, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Incra Nacional não aceitam negociar a saída de Menezes. No dia 21, a greve de fome dos sem-terra teve a adesão de nove estudantes da Universidade Federal de Alagoas, que ficaram em jejum durante 24 horas, em solidariedade à luta do MST.“Uma das companheiras, após mais de 100 horas sem comer, desmaiou, teve convulsões e precisou ser removida para receber atendimento médico, sob risco de coma iminente. Depois de medicada, ela retornou à greve de fome”, diz trecho de nota divulgada pelos estudantes, que destaca a forte convicção e o estado de ânimo dos grevistas. A sede do Incra em Maceió foi ocupada para exigir o cumprimento da pauta negociada em novembro entre os sem-terra e o órgão. O acordo prevê melhorias estruturais em assentamentos, distribuição de cestas básicas para os acampados e desapropriações suficientes para assentar 3 mil famílias. Essa foi a meta estabelecida para Alagoas no Plano Nacional de Reforma Agrária. Promessas que, até o momento, continuam como promessas.
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Espelho
RUMOS DA ESQUERDA
Deputados querem salvar o PT
Luiz Antonio Magalhães Veja insiste...
... em se desmoralizar Parece que o semanário da Abril não entendeu bem o que ocorreu no Congresso, na semana passada, quando os parlamentares ouviram as explicações dos atuais comandantes da Abin (Mauro Marcelo de Lima e Silva, diretor-geral) e do gabinete de segurança institucional da Presidência, general Jorge Félix. Até os oposicionistas reconheceram que a história de Veja não tem pé nem cabeça, só a intenção de jogar lama na reputação de militantes e políticos do PT. Alguém pagou? Falando em revistas, note-se que os três semanários saíram com a mesma capa, o que não é pecado, pois muitas vezes a notícia é tão bombástica que todos os diretores de redação elegem o mesmo tema, como ocorreu com o ataque de 11/9 às torres gêmeas, ou com a tsunami na Ásia. Desta vez, porém, a bomba da semana foi o lançamento de novo livro do escritor Paulo Coelho. O leitor pode pensar que os editores das três revistas acharam interessante a idéia de divulgar o livro porque, afinal, o autor faz muito sucesso e, portanto, deve ajudar a vender as revistas. Não é bem assim. As reportagens das três capas foram combinadas entre a assessoria de imprensa de Coelho e as editoras responsáveis das três revistas. Tão combinadas que nenhum jornal diário conseguiu adiantar o assunto, dando um “furo” nas revistas. Alckmin em baixa A Folha de S. Paulo já esteve mais animada com as chances de o governador Geraldo Alckmin (PSDB) enfrentar o presidente Lula nas eleições de 2006. Nas últimas semanas, o diário luso-brasileiro editado na Barão de Limeira tem feito críticas mais ácidas ao governador e, na edição de domingo (20/3), resolveu patrocinar uma espécie de golpe branco para permitir a reeleição de Alckmin em São Paulo. O raciocínio da Folha é simples: se Alckmin puder, concorrerá ao governo, já que não é corajoso o suficiente para correr os riscos de concorrer à Presidência. O jornal dos Frias tem um candidato a presidente: José Serra. Resta convencer o prefeito de São Paulo a abandonar a administração municipal com apenas dois anos de mandato. Filme velho Pesquisa do Ibope sobre a sucessão presidencial mostra o crescimento do candidato do PFL, Cesar Maia, que já ultrapassou Aécio Neves, empatou com Geraldo Alckmin e diminuiu a diferença que o separava de José Serra. Enquanto Lula nada de braçada, embora em situação cada vez menos folgada, a oposição se divide sobre quem é realmente capaz de bater o presidente. Dividida, ela oferece menos resistência e facilita o trabalho do PT no próximo ano. A menos que José Serra aceite concorrer, a probabilidade maior é de que a oposição se divida, até para forçar uma nova contabilidade eleitoral, com vistas ao pleito de 2010. A mídia, de sua parte, também vai se dividir.
Em São Paulo, parlamentares petistas lançam bloco para fazer oposição ao governo Lula Luís Brasilino e Tatiana Merlino da Redação
Douglas Mansur
A revista semanal continuou, na semana passada, sua campanha para associar o Partido dos Trabalhadores às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — Exército do Povo (Farc-EP). Para tanto, apresentou o depoimento de um suposto espião da Abin e o nome de um coronel, hoje afastado do serviço de inteligência, sobre o caso. O espião conta que “ouviu falar” sobre a doação que as Farc fariam, mas afirma não saber se o dinheiro foi, de fato, repassado ao PT. Já do tal coronel, Veja arrancou a bombástica informação de que a Abin, realmente, estava investigando o assunto. Com todas essas “informações novas”, a revista teve a coragem de publicar nova “reportagem” sobre uma negociação que seus repórteres sequer conseguiram provar.
E
m um esforço para resgatar o caráter militante do Partido dos Trabalhadores (PT) e “atuar em conjunto como um contraponto dentro da bancada federal e do partido”, 15 deputados federais da esquerda petista criaram, dia 20, um grupo, batizado de Bloco de Esquerda. No ato de lançamento foi realizado um seminário para avaliar os dois anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva e traçar rumos para o futuro. Para Luizianne Lins, prefeita de Fortaleza (CE), a vitória petista em 2002 foi uma resposta às reformas neoliberais. Só que, na avaliação do economista Paulo Nogueira Batista Jr., professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), apesar de obter melhores resultados graças ao cenário internacional favorável, o metalúrgico faz a mesma política do sociólogo (o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso). João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), revelou que a reforma agrária “anda a passos de tartaruga” e que este governo pode ficar para a história como o que mais concentrou renda em todos os tempos. “Hoje, o povo não tem poder algum, a não ser eleger alguém que, depois, irá trai-lo”, analisou o jurista Fábio Konder Comparato, professor da Universidade de São Paulo (USP). Plinio Arruda Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), explicou que a eleição é a “agenda do inimigo” uma vez que o curto intervalo entre as campanhas prejudica o trabalho de base. Segundo Stedile, é nesta tarefa que a esquerda deve concentrar seus esforços. “Precisamos construir consciência de classe e organizar o povo, formar quadros e elaborar um projeto de nação”, enunciou. O dirigente sem-terra completou dizendo que, para o MST, a luta política não depende de interesses
Militantes petistas participam do seminário que avaliou os dois anos do governo Lula, em São Paulo, SP
individuais, e que a esquerda brasileira não tem clareza ideológica de qual caminho seguir. Luizianne, ao final do seminário, fez um apelo para que as forças reunidas no ato não se dispersassem.
GRUPO UNIFICADO O sociólogo Emir Sader, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da USP, alertou para o aspecto negativo da fragmentação dos setores de esquerda e defendeu a união dos progressistas. “Temos que definir o eixo que nos unifica. Mesmo tendo críticas diferentes ao governo Lula, temos em comum o descontentamento com a política econômica, e acredito que esse ato é um grande passo nessa direção”. Para ele, a criação do bloco é “uma forma importante de catalizar este setor da esquerda”. No ato, realizado em São Paulo (SP) e que reuniu cerca de mil pessoas, os integrantes do bloco afirmaram suas posições: resgatar os rumos históricos do PT, denunciar os efeitos da política econômica do governo, defender a autonomia do PT em relação ao governo e reatar o vínculo histórico do partido com os movimentos sociais. Segundo o deputado Orlando
Fantazzini (PT-SP), os integrantes do bloco são terminantemente contra a autonomia do Banco Central, a reforma trabalhista e alguns pontos da reforma sindical. “Não aceitamos propostas que prejudiquem os direitos dos trabalhadores”, afirma. Para o deputado federal Ivan Valente (PT-SP), os 13 pontos do documento “Compromisso Militante”, divulgado no evento, expressam a oposição dos parlamentares à política econômica ortodoxomonetarista “que concentra renda e impede investimentos nas questões sociais”. Com a criação do bloco, afirma o parlamentar, “pretendemos liberar as energias do petismo, que não pode ser punido pela sua coerência”, lembrando que o evento pretende reafirmar a bandeira socialista. O parlamentar acredita que a criação do bloco vai gerar questionamentos dentro do governo. “Mas lá dentro também há contradições, mesmo que alguns não assumam suas críticas”.
OPOSIÇÃO O deputado federal João Alfredo (PT-CE) acredita que a esquerda petista vinha fazendo uma oposição informal nesses dois últimos anos,
“como na reforma da previdência e no salário-mínimo”. Agora, será feita em bloco. “Vamos votar com referência no programa histórico do PT”, diz o deputado, afirmando ter como referência o movimento sindical, social e ambientalista. “É um sinal para o governo de que não queremos ser tratados como adolescentes irresponsáveis”, avisa Paulo Rubem Santiago (PT-PE). O bloco, porém, não deve atuar apenas dentro do plenário. Segundo o parlamentar pernambucano, serão realizados muitos debates como o do dia 20. “Provavelmente, em maio, faremos um encontro dessa mesma natureza no Recife (PE) para discutir política econômica, reforma agrária, desenvolvimento regional e, assim, queremos percorrer o país inteiro”, conta Santiago. O deputado revela que o grupo vai crescer para dentro do partido, na opinião pública e na base militante. Além dos deputados já citados na reportagem, são integrantes do Bloco de Esquerda: Luiz Alberto e Walter Pinheiro (BA), Maninha (DF), Gilmar Machado (MG), João Grandão (MS), Nazareno Fonteles (PI), Dr. Rosinha, Dra. Clair e Selma Schons (PR), Chico Alencar (RJ) e Iara Bernardi (SP).
Por um dia, gaúchos calam RBS Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) Na manhã do dia 15, quando quatro mil agricultores participavam de mobilizações cobrando políticas públicas por causa das perdas com a seca no Estado, um carro Parati e uma câmera do Grupo RBS – maior empresa de comunicação do Sul do Brasil – foram incendiados. Os autores foram “quatro homens com os rostos cobertos por camisetas”, segundo relato do repórter Leonel Lacerda, funcionário da empresa. Nem ele nem o cinegrafista Éverton Machado foram agredidos. A Polícia Civil está investigando os autores do incêndio, que ocorreu em Sarandi (RS). A ocorrência foi tratada pelo grupo RBS como uma agressão à liberdade de imprensa e à democracia. “No momento em que o país comemora com justificado orgulho o 20º aniversário da redemocratização, é uma pena que as ameaças à liberdade persistam em setores que não estão sabendo conviver com o jogo democrático e o regime de direitos”, dizia o editorial do jornal Zero Hora do dia seguinte. Em tempo: em décadas passadas, o mesmo jornal comemorava com justificado orgulho o aniversário da “revolução”. O Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, no entanto, discordou de que o incidente representava um ataque às instituições democráticas. Em nota, o sin-
Leonel Cristiani
da mídia
NACIONAL
Movimentos sociais condenam empresa de comunicação por perseguição
dicato lembrou que, em novembro de 2003, a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) entregou uma carta à direção da empresa, condenando a forma como os veículos da RBS tratavam as manifestações populares e propondo a criação de um espaço público de debates sobre o tema. A empresa não respondeu. “Responsabilizamos a direção do Grupo RBS por esta situação que pode levar a fatos que ameaçam a integridade física dos profissionais”, disse a nota. “Por que quando as rádios comunitárias são arrebentadas com truculência não aparece nada na mídia?”, questiona o professor Pedrinho Guareschi, autor do recente
Mídia e Democracia. Para ele, o ataque ao carro da RBS pode ser interpretado como uma reação ao silêncio imposto pela empresa aos movimentos sociais que só surgem no noticiário quando são criminalizados. “A RBS age como se fosse dona da mídia: publica o que quer, como quer, do jeito que quer. Se alguém reclama ou reage, é terrorista. Mas atenção: não foi a imprensa que foi agredida, nem a sociedade, mas apenas o patrimônio da RBS”, afirma Guareschi.
CONSERVADORISMO No Rio Grande do Sul, o Grupo RBS se encarrega de desengavetar reportagens com denúncias
contra assentamentos, cooperativas dos movimentos e lideranças. Paralelamente, a Associação Nacional de Jornais (ANJ), presidida pelo diretor do Grupo RBS, Nelson Sirotsky, encabeça a Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa e se opõe ao controle democrático de suas atividades. “Há ainda no Brasil uma tentativa exagerada de diversos setores da sociedade de interferir em nossa atividade nesse exercício da expressão livre que é um direito do cidadão”, disse Sirotsky quando do lançamento da Rede, em fevereiro. Dois dias depois de assumir o papel de bastião da democracia, no entanto, a própria RBS cometeu um ato falho. Noticiou em todos os seus espaços jornalísticos a integração da Televisão Joaçaba, em Santa Catarina, que será a sexta emissora de TV aberta da RBS em território catarinense e a 18ª se somada às operações do Rio Grande do Sul. Segundo a página da empresa, emissoras de rádio são 25 nos dois Estados. Mas a Constituição Federal, no parágrafo quinto do artigo 220, fala que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Como disse Zero Hora, referindo-se ao ataque ao seu carro, “o limite da lei e da democracia foi claramente ultrapassado”. Mas, neste caso, quem se importa?
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De 24 a 30 de março de 2005
NACIONAL DIREITO FUNDAMENTAL
Fôlego novo na defesa da água Organizações, sindicatos e movimentos avançam na construção de aliança contra a privatização dos recursos hídricos unificando os movimentos que se mobilizam em defesa da água.
João Zinclar
Tatiana Merlino da Redação
ESCASSEZ
H
oje, mais de 100 milhões de pessoas no mundo, de 130 diferentes nacionalidades, precisam pagar duas empresas francesas, a Vivendi e a Suez, para ter acesso à água. A mercantilização dos recursos hídricos vem se tornando um negócio tão lucrativo que ambas as transnacionais já figuram entre as 150 companhias mais lucrativas do planeta. Em 2005, no entanto, diversas organizações, sindicatos e movimentos sociais ensaiam uma ofensiva inédita para barrar o avanço dessas transnacionais. O primeiro ato dessa aliança global ocorreu em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial, quando as entidades construíram uma plataforma unificada. Agora, em Genebra, Suíça, em meio ao 2º Fórum Mundial Alternativo da Água, as organizações desenharam uma campanha internacional contra a privatização da água e em defesa do serviço público de sua distribuição. Foi com esse espírito renovado que ativistas e militantes sociais realizaram as tradicionais atividades do Dia Mundial da Água, em 22 de março. A declaração final do Fórum da Água, que ocorreu de 17 a 20, destaca quatro princípios: luta contra acordos multilaterais que prevêem a privatização da água, ações pela retomada pública dos serviços de água nas cidades onde foram privatizados, luta contra as propostas de liberação dos serviços públicos em discussão na Organização Mundial do Comércio (OMC) e na União Européia e a criação de mecanismos que permitam uma maior participação dos cidadãos na gestão e nos processos decisórios sobre a água.
As mobilizações do Dia Mundial da Água alertaram também que os problemas referentes aos recursos hídricos permanecem. “Ainda continuamos em uma situação de deterioração da qualidade das águas e de perda de mananciais”, avalia Gogó, citando que cerca de 20% da humanidade não tem água potável e 40% vivem sem saneamento ambiental. Em relação ao Brasil, o coordenador da CPT avalia que o problema da água é uma questão de administração dos recursos. “Há água em todos os Estados, mas o gerenciamento foi tão desastroso que, hoje, 70% dos rios estão contaminados, 20% da população brasileira não possui água potável, 40% das águas das torneiras não têm confiabilidade e 50% dos domicílios não têm coleta de esgoto”.
MOBILIZAÇÕES Brasil em perigo: 70% dos rios estão contaminados e 20% da população não possui água potável
apesar do problema da representatividade, “o Fórum representa uma tentativa de articular as forças de resistência mundial contra a mercantilização, mesmo que haja problemas de personalismo”.
DIREITO À ÁGUA Em Porto Alegre, a articulação que construiu a Plataforma Global de Luta pela Água, no Fórum Social Mundial, em janeiro, gerou menos controvérsias. Cerca de 80 entidades definiram dez
reivindicações direcionadas aos organismos internacionais e governos, alertando para os riscos da concessão dos serviços públicos de abastecimento de água e saneamento para empresas privadas. Entre as demandas da plataforma, Jocélio Drummond destaca a reivindicação para que a Organização das Nações Unidas (ONU) declare a água como um bem comum, o que a excluiria das discussões na OMC ou sua privatização. As entidades brasileiras pretendem exigir
também que o governo brasileiro não coloque o tema dos serviços de abastecimento em acordos de comércio internacionais, principalmente com a União Européia. Desde sua elaboração, o documento tem recebido adesões de outras entidades. “Organizações que representam mais de 30 milhões de pessoas já aderiram”, contabiliza Drummond. O cronograma da plataforma prevê que, em 2006, no Fórum Social das Américas, na Venezuela, a aliança esteja consolidada na América Latina e, em 2007, no Fórum Social Mundial, na África, em todo o mundo,
A Cáritas Brasileira e a Articulação do Semi-Árido (ASA) haviam programado uma série de atividades no Dia Mundial da Água. “Nossas mobilizações sociais visam chamar a atenção das comunidades para a preservação das lagoas e mananciais e também promover a discussão de políticas públicas”, explica a coordenadora da Cáritas Anadete Reis. Em Caruaru, Pernambuco, seriam organizados mutirões para limpar córregos e mananciais. Já, no Piauí, estava programada uma audiência pública com o governador do Estado para discutir a formulação de políticas para a convivência com a seca e a distribuição de água. (Colaborou Jorge Pereira Filho)
Reservas brasileiras sob ameaças
REPRESENTATIVIDADE Apesar de ativistas avaliarem o crescimento da articulação internacional, essa expansão não se dá sem controvérsias. Em Genebra, estiveram 150 organizações e movimentos, mas a participação de entidades brasileiras foi reduzida. Um dos críticos do Fórum é Jocélio Drummond, representante da Internacional de Serviços Públicos (ISP), para quem o evento foi construído por um grupo que trabalha em torno de personalidades, e não de organizações mundiais. “O problema é que as pessoas vão quase que individualmente falar em nome do Brasil, sem ter a menor legitimidade, sem consultar os sindicatos e movimentos sociais”, critica. Para o representante da ISP, o resultado do Fórum pode até ser positivo em termos de conteúdo, mas não em termos práticos. Já Roberto Malvezzi, o Gogó, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), discorda e acredita que,
As organizações brasileiras estão denunciando o interesse das transnacionais e de organismos internacionais pelas reservas de água brasileiras. Os ativistas citam o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como “mecanismos utilizados para gerenciar os recursos hídricos mundiais”. Desde 2000, o Banco Mundial liberou 25 milhões de dólares para o levantamento do potencial de exploração do Aqüífero Guarani, uma das maiores reservas de água pura do mundo, localizada no subsolo do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. A reserva tem potencial para abastecer de água toda humanidade por 300 anos. “Essas pesquisas não são feitas com transparência, e vão ser utilizadas para uso privado”, alerta Jocélio Drummond, representante da Internacional de Serviços Públicos (ISP). Já o BID, em 2003, financiou um projeto que estabelece o marco regulatório que permitiria a privatização dos serviços de água do Estado de Goiás, onde estão parte das nascentes da Bacia Amazônica, da Bacia do Prata e do Aqüífero Guarani. Em 2004, o Banco Mundial liberou mais de 10 milhões de dólares para pesquisas e definição de marcos legais para a gestão das águas da Amazônia. “Como asseguramos que a água na natureza será preservada e disponibilizada e não servirá aos interesses das transnacionais?”, questiona Drummond.
Fonte: Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente
Plataforma de Luta Global pela Água Reivindicações: 1 - Declaração da água como um direito humano e obtenção do reconhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU). 2 - Manutenção da água em mãos públicas e divulgação de boas experiências dos serviços públicos. 3 - Desenvolvimento de uma forte campanha contra as empresas transnacionais da água, como a Vivendi, RWE e, em especial, a Suez. Promoção de plebiscitos para definir se a água deve ficar em mãos das empresas, mostrando as conseqüências desastrosas de suas ações pelo mundo. 4 - Luta para que a água e o saneamento fiquem fora dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou de qualquer acordo regional ou bilateral. 5 - Combate às instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI). 6 -Denúncia das Metas de Desenvolvimento do Milênio que, por um lado, firmam compromissos com o combate à pobreza no mundo e, por outro, defendem acordos privatizantes da água, ampliando a exclusão do acesso. 7 - Combate a todas as modalidades de privatização, seja a Parceria Público-Privada (PPP) ou a venda de parte de ações de empresas públicas em bolsa de valores. 8 - Preservação da água na natureza e defesa de grandes reservas, como o Aqüífero Guarani e outros. 9 - Discussão com mulheres e grupos mais atingidos pela falta de água, garantindo que as populações participem diretamente na definição e na execução das políticas. 10 - Ampliar alianças e construir uma união em um grande movimento mundial e aglutinar todos que militam pela água. Fonte: Rebrip (www.rebrip.org.br) e da Aliança Social Continental (www.asc-hsa.org)
Bolívia e Uruguai: resistência popular A luta mundial contra a privatização das águas tem dois exemplos recentes de inspiração. As mobilizações populares na Bolívia contra as transnacionais e o plebiscito popular no Uruguai são referências na defesa dos recursos hídricos. No país andino, os indígenas e a população de El Alto (periferia da capital La Paz) conseguiram impedir que a empresa Aguas de Illimani, controlada pela francesa Suez, continuasse a prestar os serviços de água potável. Desde o início deste ano, protestos massivos liderados pela Federação das Juntas dos Vizinhos (Fejuve) exigem a expulsão da companhia. Os bolivianos estão insatisfeitos com as condutas da transnacional que passou a cobrar a tarifa da água de acordo com a variação do dólar e, desde que as-
sumiu o serviço, elevou os preços em mais de 200%. Os protestos levaram o presidente Carlos Mesa a assinar um decreto suspendendo o contrato com a empresa. Depois, Mesa recuou e tenta negociar a continuidade da presença da Suez no país, alegando que os investidores internacionais ficariam insatisfeitos com a expulsão. Já, em novembro de 2004, no Uruguai, a população não precisou tomar as ruas para expulsar as transnacionais, porque a sociedade civil pressionou o governo a convocar um plebiscito sobre a questão. E o resultado não deixou dúvidas: 60% do eleitorado ratificou que o acesso à água é um “direito humano fundamental”, rejeitando a privatização desse serviço. (JPF)
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NACIONAL REFORMA SINDICAL
Refundação petista Seminário realizado no Clube Transmontano, em São Paulo, reuniu várias correntes da esquerda do PT, que prometeram travar luta interna para recolocar o partido no rumo original de construção do socialismo. Discursos duríssimos de crítica ao governo Lula — de Plinio Sampaio, Fábio Comparato, Emir Sader e João Pedro Stedile — empolgaram o auditório lotado. Muitos dos presentes estiveram também em evento parecido, no Colégio Sion, 25 anos atrás. Isolamento político Na manifestação contra a guerra do Iraque, em São Paulo, no último dia 19, no meio de dezenas de bandeiras dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais havia uma única e solitária bandeira do PT. Sinal dos tempos, nem mesmo num evento global, amplo, aprovado no 5º Fórum Social Mundial, o outrora combativo Partido dos Trabalhadores mostrou a sua cara. Promoção sindical Distanciado da luta de classe, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro está agora oferecendo aos seus associados descontos especiais — de 10% a 12% – em veículos da linha Renault. Um “Scenic Hi-Flex”, por exemplo, que custa na tabela R$55.250,00, pode ser comprado pela bagatela R$48.224,00. Mais uma atividade do moderno sindicalismo brasileiro. Infantaria acreana A confusão político-ideológica está tão generalizada que até o coronel Jarbas Passarinho, ex-ministro da ditadura militar e conhecido expoente da direita, teceu inúmeros elogios ao presidente nacional do PT, José Genoíno, em artigo publicado no Estadão de 22/03/2005, no qual centra todos os ataques aos setores de esquerda. Como se sabe, a direita baba, mas jamais joga água no moinho dos outros. Pizzaria federal Estava na cara que isso iria acontecer mesmo, mas era preciso ver para crer: PT e PSDB acertaram acordo para congelar os pedidos de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre corrupção no processo de privatização no governo FHC e o envolvimento de Waldomiro Diniz com o crime organizado, no governo Lula. Mais uma obra contra a transparência e o direito do povo de saber a verdade dos fatos. Predadores ambientais Deve entrar em votação nos próximos dias, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei do governo da produção sustentável nas florestas públicas, e que concede áreas da Amazônia, no total de 13 milhões de hectares, para exploração durante 60 anos. As serrarias da Tailândia, Malásia e de outros países, aguardam ansiosamente pelos presentes. Quinta coluna Não é mera coincidência que o mês de fevereiro tenha apresentado valor recorde de remessa de lucros das empresas estrangeiras, e o dólar tenha ficado no patamar mais baixo dos últimos anos. Mais estranho ainda é o Banco Central de Henrique Meirelles não ter percebido a movimentação contra os interesses nacionais. Viva a liberdade financeira! Desvio portenho Acostumados a manter total subserviência ao pensamento neoliberal e ao imperialismo, muitos economistas e jornalistas econômicos brasileiros andam irritadíssimos com a rebeldia do presidente Néstor Kirchner, da Argentina, principalmente depois do boicote aos postos Shell. Pesquisa de opinião, no entanto, comprovou que 71,2% da população daquele país aprova a campanha presidencial. Cada qual com a sua turma.
Críticos consideram retrocesso; para a CUT, proposta é coerente com bandeiras históricas Luis Brasilino da Redação
O
governo federal apresent ou ao Congresso uma proposta que, na visão de seus críticos, fragiliza a base dos sindicatos, enfraquece a mobilização dos trabalhadores, flexibiliza direitos e reduz a autonomia sindical. Já a Central Única dos Trabalhadores (CUT) vê avanços no projeto, como o reconhecimento das centrais sindicais e a extinção do imposto sindical. Separada em duas partes – um projeto de lei (PL) e uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) –, a proposta foi entregue, dia 2, pelo ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, ao presidente da Câmara, deputado federal Severino Cavalcanti (PP-PE). Na visão de Grijalbo Coutinho, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), as centrais serão exageradamente fortalecidas com a reforma. “As cláusulas de âmbito nacional firmadas em acordos coletivos vão prevalecer sobre as decisões da base”, prevê ressaltando que é positivo o reconhecimento da participação das entidades nas negociações coletivas.
SINDICATOS “BIÔNICOS” Altamiro Borges, editor da revista Debate Sindical, cita outro ponto da reforma que vai concentrar ainda mais poderes nas centrais: a representação derivada, que permitirá o surgimento de “entidades biônicas”. Com esse mecanismo, as centrais poderão criar, de cima para baixo, sindicatos, federações e confederações. Para Borges, essas entidades nascerão fortemente atreladas à direção da central. O editor de Debate Sindical afirma também que a reforma vai restringir o direito de greve, pois se de um lado, a Justiça do Trabalho perderá o poder de conciliar os dissídios, sua atuação será ampliada no sentido de cercear as paralisações. Além disso, o projeto permite que, quando não houver acordo, a empresa poderá contratar trabalhadores temporários, “legalizando o fura-greve”. Texto do artigo 113 do projeto de lei: “o empregador poderá, durante o período da greve, contratar diretamente serviços mínimos”.
FLEXIBILIZAÇÃO “Se não abre a porta para a proposta do negociado prevalecer sobre o legislado, no mínimo, não fecha essa possibilidade”, comenta Grijalbo Coutinho, sobre a flexibilização
Paulo Pereira da Silva, da Força Sindical, e Luiz Marinho, da CUT, entregam proposta de emenda constitucional na Câmara
dos direitos trabalhistas. O governo retirou da reforma o princípio do uso da norma mais benéfica para o trabalhador. Atualmente, quando patrões e empregados não chegam a um consenso, vale o que está dito na lei. No entanto, segundo Borges, caso o projeto seja aprovado pelo Congresso, o acordo negociado vai valer sempre para solucionar eventuais impasses. As entidades sindicais vão ter, ainda, de lidar com a possibilidade de intervenção do Estado. A instituição do Conselho Nacional de Relações do Trabalho (CNRT) vai conferir poderes à União para definir se um sindicato pode existir ou não. O órgão será tripartite (governo, trabalhadores e patrões) e seus membros nomeados pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
CUT VÊ AVANÇOS Por outro lado, João Antonio Felício, secretário-geral da Central Única dos Trabalhadores (CUT), acredita que a proposta de reforma sindical enviada ao Congresso está mais próxima dos pontos defendidos historicamente pela central e pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Para o sindicalista, os principais avanços do projeto são o reconhecimento das centrais sindicais e da organização por local de trabalho, o fim do poder normativo da Justiça do Trabalho, a exigência de 20% do total dos trabalhadores da base para um sindicato poder funcionar e a extinção do imposto sindical. Felício discorda de quem acusa o projeto de fortalecer a cúpula das centrais. “Não é verdade. Está
UM PASSO ATRÁS Esses aspectos fazem com que o sociólogo Ricardo Antunes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) classifique o projeto como um “desastre”. Para ele, além de não avançar em direitos para os trabalhadores, a proposta destrói as conquistas. “No Brasil, essa reforma já tinha sido colocada durante os governos dos ex-presidentes Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Não passou porque enfrentou muita resistência da CUT e do PT, mas, agora, eles mudaram de lado”, afirma Antunes. Para o estudioso da questão sindical, podemos esperar uma exploração mais intensa da classe trabalhadora, caso a reforma seja aprovada. “Caberá ao governo Lula, sob pressão burguesa, alterar uma legislação social feita por um governo burguês (Vargas), sob pressão operária”, descreve. Antunes
No Congresso, derrotas à vista Os críticos da reforma trabalhista alertam que o texto proposto pelo governo pode trazer mais derrotas para os trabalhadores. Isso em função do conservadorismo do Congresso Nacional, comprovado no debate de outros temas, como a aprovação da Lei de Falências – que favoreceu a forma como os bancos recuperam seus empréstimos a empresas falidas, restringindo as possibilidades de os trabalhadores garantirem o pagamento de suas dívidas. Grijalbo Coutinho, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), teme que a reforma possa sofrer ataques do empresariado, pois no Congresso Nacional, a correlação de forças é ainda menos favorável aos trabalhadores. Para Altamiro Borges, editor da revista Debate Sindical, os trabalhadores precisam se mobilizar para derrubar a proposta da
entende que está se jogando fora uma oportunidade histórica. “Estamos perdendo, sob um governo que deveria ser democrático e popular, a chance de dar um salto que avançasse em relação à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT)”, completa
reforma sindical. Dois fatores podem contribuir nesse sentido. Diferentemente da reforma da Previdência, que afetava mais diretamente os servidores públicos, o professor Ricardo Antunes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), avalia que as modificações sugeridas pela reforma sindical vão tocar no conjunto total dos trabalhadores, gerando mais resistência na sociedade. Já o jornalista da Debate Sindical acredita que é possível alterar a posição da Central Única dos Trabalhadores (CUT), um importante instrumento de luta. Em abril e em maio, vão ocorrer plenárias estatutárias que vão debater o tema e poderão mudar o comportamento da central. “Por exemplo, na reunião da Diretoria Executiva, que definiu a posição da entidade sobre a reforma, a resolução favorável ao governo venceu por 13 votos a 12”, lembra Borges. (LB)
escrito que, caso o sindicato de base discorde do acordo firmado nacionalmente, terá toda a liberdade para fazer a sua própria campanha”, explica. Quanto às entidades criadas por representação derivada, o secretário-geral da CUT conta que o dispositivo serve para impedir a fragmentação do sindicalismo, uma vez que estas organizações só poderão ser criadas caso a base de determinada região e categoria não consiga formar um sindicato representando 20% dos seus trabalhadores. “Esse é o caminho da autonomia”, completa. Por fim, o sindicalista revela que a CUT deve lutar para alterar, no Congresso, alguns dos pontos da reforma, como o artigo que trata de greve – “pois restringe este direito”. A central está descontente também com o texto que estabelece que empresas com mais de 30 empregados tenham representantes sindicais. Felício afirma que a entidade vai defender também a estabilidade no emprego aos dirigentes sindicais e o princípio da norma mais benéfica ao trabalhador.
Antônio Cruz/ABr
Hamilton Octavio de Souza
Mais avanços ou um passo atrás? Rose Brasil/ABr
Fatos em foco
Sindicalistas de várias regiões do país protestam contra a Reforma Sindical
Projeto alternativo tramita na Câmara Tramita na Câmara dos Deputados, desde o dia 25 de agosto de 2004, uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com duas preocupações centrais: defender a organização dos trabalhadores e impedir que, em uma futura reforma trabalhista, direitos conquistados com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, sejam flexibilizados. A PEC 314/ 2004, conhecida como a “reforma sindical alternativa”, foi elaborada pela esquerda da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e por sindicatos de advogados e apresentada ao Congresso pelo deputado federal Ivan Valente (PT/SP). Para assegurar os direitos dos trabalhadores, o texto da proposta coloca que “os direitos mínimos
assegurados nesta Constituição e na legislação infra-constitucional não poderão, sob hipótese alguma, serem reduzidos por meio da livre negociação”. O projeto também elimina qualquer restrição ao direito de greve, inclui os servidores públicos na competência da Justiça do Trabalho, proíbe a dispensa sem motivo de representantes sindicais, assegura a livre associação sindical e impede a intervenção estatal em qualquer instância da estrutura dos sindicatos, dentre outras disposições. Após ficar parada por quase seis meses na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara, no dia 9, Maurício Rands, deputado federal (PT/PE), foi indicado como o relator da matéria. (LB)
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De 24 a 30 de março de 2005
NACIONAL POLÍTICA DE ARROCHO
Falsas premissas para subir os juros Mais pressões para arrochar gastos sociais e da Previdência, ao mesmo tempo que disparam despesas com a dívida Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
O RANKING MUNDIAL DOS JUROS REAIS Taxa anual descontada a inflação projetada para os próximos 12 meses
O
13,1%
6,7% 3,5%
5,7%
4,7%
3,3% 2,6%
EXPLOSÃO? No mesmo jornal paulista e em uma série de artigos publicados em toda a dita grande imprensa nas últimas semanas, numa espécie de manobra orquestrada, articulistas bem remunerados e analistas econômicos tentam demonstrar que os gastos públicos estariam em rota de explosão. Quais gastos?
Inglaterra
México
Hungria
BRASIL
Turquia
África do Sul
Israel
Austrália
2,2%
CORTES, CORTES Fonte: GRC Visão
pontos percentuais. A decisão assegurou ao país a manutenção do triste título de campeão mundial de juros altos.
desacelerar o ritmo de produção de televisores, geladeiras, calçados, roupas, desaquecendo a atividade econômica, e reforçando os riscos de novo avanço do desemprego.
INFAME LIDERANÇA Descontada a inflação, os juros reais (ou seja, a parcela das taxas que supera a variação dos preços em geral, incluindo os salários) subiram para 13,1% neste mês, quase duas vezes mais do que na Turquia (6,7%), segunda colocada no ranking elaborado pela GRC Visão, empresa de consultoria econômica (veja gráfico). Quanto mais elevados os juros, menores as chances de a economia continuar crescendo, como comprova estudo recente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Com o custo dinheiro mais elevado, o consumidor se retrai, produzindo menor crescimento ou queda nas vendas, o que leva as empresas a também
INFLAÇÃO COMPORTADA Sob o ponto de vista do BC, portanto, os juros têm que se manter nas alturas para que um consumo menor ajude a segurar os preços, já que as empresas, com vendas em baixa, não teriam como impor aumentos aos consumidores, fazendo a inflação refluir. Aqui, a manobra começa a operar, desconsiderando dados e distorcendo a realidade dos fatos. Em 2004, quando o BC decidiu que os juros deveriam entrar em nova fase de disparada, incrementando a ciranda financeira, a taxa oficial de inflação no país, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Manobra conservadora para enganar a sociedade Num exercício conhecido, quando se quer manipular dados, basta mostrar apenas um lado das estatísticas e projeções (supostamente) técnicas para tentar enganar a opinião pública. Um grande jornal paulista anunciou, em letras garrafais, na primeira página, que a Previdência terá R$ 50 bilhões a mais de despesas com aposentados e pensionistas até 2006. Isso, em tese, teria o poder de agravar o suposto déficit (despesas maiores do que receitas) do setor. A notícia ignora solenemente as receitas da Previdência. A elevação dos gastos pode mesmo ser considerada natural, diante da tendência de envelhecimento da população e da corrida às aposentadorias provocada pela reforma previdenciária. Em nenhum momento, no entanto, avalia-se o comportamento futuro das receitas. Como o Brasil de Fato tem demonstrado, com base em dados oficiais, o sistema de seguridade social vem registrando superavit (sobra de recursos), ano após ano: em 2004, o sistema registrou um saldo positivo de R$ 8,3 bilhões, quase quatro vezes mais do que em 2003, e não o rombo de R$ 32 bilhões alardeado pelo governo. A receita líquida total aumentou 24,4%, diante de um incremento de 19,3% para os gastos previdenciários e despesas de manutenção do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
4,7%
Polônia
3,2%
Rússia
debate econômico entrou por novo e arriscado desvio, numa distorção provocada por setores mais conservadores, aparentemente interessados em preservar a política de arrocho adotada pelo Banco Central (BC) e Ministério da Fazenda. Os rastros da manobra surgem claramente nas edições do último final de semana da chamada “grande imprensa”. Em resumo, tenta-se vender à opinião pública a (falsa) informação segundo a qual a política de juros escorchantes não tem conseguido conter o avanço dos preços porque o governo voltou a gastar muito e mal, promovendo uma farra de gastos — razão pela qual a inflação sobe. O estratagema conservador sofisma e manipula dados para justificar o que parece ser uma reação às críticas e pressões que a equipe econômica vinha sofrendo para aliviar a política de arrocho, num momento em que os juros foram aumentados mais uma vez. Na semana passada, as taxas de juros básicas — que servem de parâmetro para que os bancos definam quanto vão cobrar em seus empréstimos a empresas e pessoas físicas, influenciando o custo do dinheiro em toda a economia — saltaram de 18,75% para 19,25% ao ano. Desde setembro do ano passado, no sétimo aumento decidido pelo Comitê de Política Monetária (Copom), organismo formado pelo presidente e diretores do BC, encarregado de decidir a política de juros, aquela taxa já subiu 3,25
(USP), o aumento dos gastos do paulistano com transporte público deverá responder por quase 70% da variação esperada para a inflação em março. Prevê-se que a taxa pesquisada pela Fipe atinja perto de 0,8% — sem o aumento dos ônibus e do bilhete de integração com o metrô, aquela taxa estaria em 0,21%. Os dados, portanto, desmentem a primeira premissa embutida no raciocínio dos conservadores, segundo a qual a elevação continuada dos preços justificaria a manutenção e mesmo a ampliação do aperto ao crédito, com novas e maiores altas para os juros.
Em porcentagem ao ano 19,25 17,75 16,75 16,5 16 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dec Jan Fev Mar 2004 2005 Fonte: BC
GASTOS CAEM Em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), que soma todas as riquezas produzidas em um ano pelo país, as despesas do governo
SOB CONTROLE Em janeiro e fevereiro de 2005, o IPCA estacionou entre 0,58% e 0,59%. Neste mês, prevê-se uma elevação da taxa, explicada principalmente pelo aumento das tarifas de ônibus em São Paulo (reajuste de 17,6%, decidido pela prefeitura tucana). Nada dramático. Segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), vinculada à Universidade de São Paulo
Governo pisa no freio da economia
A EVOLUÇÃO DA TAXA BÁSICA
As chamadas despesas de custeio, que incluem gastos continuados com programas nas áreas de educação, saúde e assistência social, folha de salários, além de material de escritório e de limpeza, viagens e outras. Somados aos investimentos, os gastos do governo federal, segundo o jornalão conservador, desabaram de R$ 90,7 bilhões, em 2002, em valores atualizados com base na inflação, para R$ 79,6 bilhões no ano seguinte (12,2% de queda), crescendo para R$ 93,9 bilhões no ano passado, ou 18% mais do que em 2003. Na verdade, houve um ligeiro avanço de 3,5% na comparação com 2002, depois do achatamento registrado no primeiro ano do governo, um arrocho que paralisou a máquina estatal e agravou a concentração da renda (já que o dinheiro dos impostos foi desviado para o pagamento de juros).
Estatística (IBGE), estava em franca desaceleração. Havia despencado de 0,91% em julho, pico de alta no ano, para 0,33%. O clima de pessimismo em relação às perspectivas futuras desenhadas para a inflação, insuflado pelas decisões do BC, a alta dos combustíveis e de insumos industriais (como o aço) levaram a nova escalada do IPCA nos meses seguintes, elevando o índice para 0,86% em dezembro.
Ao mesmo tempo, aqueles dados ajudam a desnudar a segunda fase da manobra, que visa, agora, os gastos do governo com programas sociais, aposentados e pensionistas. Numa inversão da realidade, as manchetes da grande imprensa conservadora tentam vender a (falsa) idéia de que aquelas despesas seriam responsáveis pela alta dos preços (que não existe) e, portanto, pela política de juros altos (que penaliza toda a economia, inclusive o próprio governo). Para entender a polêmica fabricada por setores ligados aos economistas hoje no governo, segundo os manuais de economia mais ortodoxos, quando o governo gasta além da conta, o consumo como um todo aumenta, abrindo espaço para elevações de preços pelas empresas, criando mais inflação, no final. Os próprios dados utilizados nessa campanha conservadora servem para desautorizar seu argumento central, como o leitor poderá conferir a seguir.
declinaram de 5,4% para 4,7% entre 2002 e 2003, retornando a 5,2% em 2004 — sem explosões. Num cálculo da consultoria MS Consult, a participação dos gastos públicos no consumo total do país (que soma o consumo das empresas, das famílias e do setor público) baixou de 19,8% para 16,2% entre 2003 e 2004, depois de alcançar 18,6% em 1994. O dado demonstra, claramente, que as despesas do governo não podem ser responsabilizadas pela inflação. A retórica enganadora e a coleção de sofismas arregimentados pela onda conservadora tentam esconder um outro dado da realidade: o setor público, no Brasil, registra déficits baixíssimos, inferiores mesmo àqueles anotados pelas economias mais desenvolvidas. Nos 12 meses encerrados em janeiro deste ano, conforme dados do BC, aquele déficit representou menos de 2,5% do PIB. Para serem aceitos na União Européia, num exemplo, os governos da região tiveram que reduzir seus déficits para 3% do PIB, acima dos níveis registrados hoje no Brasil. (LVF)
A política de juros altos compromete o crescimento da economia e abre rombos nas contas do setor público, escamoteados pela campanha conservadora em marcha. Um estudo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que a produção industrial cresceu 0,4% entre setembro de 2004 e janeiro de 2005, depois de avançar 6,6% entre abril e agosto do ano passado. Segundo o Iedi, a atividade industrial estaria refletindo a alta dos juros, retomada em setembro pelo Banco Central (BC). Resultado: entre setembro e janeiro, encolhimento das indústrias têxtil (7,5%), de borracha e plásticos (6,9%), máquinas e equipamentos (6%) e de móveis (5,4%). Em janeiro, o emprego industrial cresceu 0,4% na comparação com dezembro, e 3,2% sobre janeiro do ano passado, enquanto a folha de pagamento do setor subiu 6,2% diante do último mês de 2004 e 5% em relação a janeiro de 2004. O Iedi adverte que os números deveriam ser vistos com cautela, uma vez que refletiriam, ainda, os resultados do final do ano passado, já que a atividade
industrial recuou 0,5% em janeiro. Isso significa, aponta o Iedi, “que o emprego poderá voltar a sentir o efeito, agora negativo, da produção da indústria”.
DÍVIDA Além dos efeitos negativos produzidos na economia real, a elevação dos juros causa um impacto fulminante sobre as contas do governo federal — dado não por acaso desprezado pela campanha conservadora. A dívida pública, expressa em títulos do governo, saiu de R$ 771,3 bilhões, em setembro de 2004, para R$ 845,4 bilhões em fevereiro (ou quase 10% a mais). Da dívida total, pouco mais de 58% são corrigidos pela taxa básica de juros, que o BC vem aumentando todo mês. Resultado: mantida a taxa atual de 19,25%, as despesas com juros, em um ano, passarão de R$ 79 bilhões para R$ 95 bilhões. Um gasto 20% maior. Equivalente a R$ 16 bilhões a mais — exatamente o valor dos cortes sobre o orçamento de 2005 (R$ 15,9 bilhões). Em janeiro, o governo federal desembolsou R$ 9,7 bilhões para pagar os juros da dívida, 26% a mais do que os R$ 7,7 bilhões gastos em igual mês de 2004. (LVF)
A DÍVIDA FEDERAL EM TÍTULOS PÚBLICOS Composição em fevereiro de 2005, em bilhões de reais
R$ 478,47 bi* (56,6%)
*Corrigidos pela Selic Fonte: Tesouro Nacional
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NACIONAL ENTREVISTA
Governo não desiste da reforma agrária É o que garante José Graziano, ex-coordenador do Fome Zero e assessor especial do presidente da República
Arquivo MST
Brasil de Fato – Como fica a reforma agrária com o corte de R$ 2 bilhões no orçamento? Com o que sobrou do dinheiro previsto só dá para assentar 40 mil das 115 mil famílias prometidas para este ano. Como as metas vão ser atingidas? José Graziano – A meta deste ano continua sendo 115 mil famílias. Por quê? Na verdade, não houve corte, mas contingenciamento. Gostaria de explicar: o governo faz um plano de gastos,
Quem é José Graziano da Silva, 54, é um dos idealizadores do Programa Fome Zero. Amigo pessoal de Lula desde 1981, o ex-ministro da Segurança Alimentar, é hoje seu assessor especial para assuntos que relacionam economia com redução da pobreza. Engenheiro agrônomo pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, é doutor em Economia e em Economia Aplicada, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graziano faz parte da Associação LatinoAmericana de Economistas Agrícolas, e é professor titular na mesma área, no Instituto de Economia da Unicamp.
Ocupação de sem-terra no interior de Pernambuco: desapropriação sempre mais difícil
um orçamento, e faz também um plano de receitas. Suponhamos que, por exemplo, uma família que faz um plano de gastos fique desempregada; obviamente, ela vai ter que rever os gastos que estavam programados. Quanto ao governo, tem que esperar para ver qual é a arrecadação que vai obter. Então, por agora, está autorizado o assentamento de 40 mil famílias, mas isto não significa que o dinheiro não virá para as restantes 75 mil. Estou envolvido pessoalmente na busca de outras fontes de recurso. BF – Como a reforma agrária pode ser uma prioridade se é a política econômica que é tratada como tal? Graziano – Não, ao contrário. Restringirmos, hoje, o sucesso ou não do programa de reforma agrária ao número de famílias assentadas me parece um erro. No governo anterior, eles se vangloriavam de ter assentado 500 mil famílias. Quando fomos ver, o número não passava de 1/3 disso. E as famílias não tinham acesso a água, luz, não tinham casa, nunca tiveram crédito, nem assistência técnica. Então, uma das prioridades estabelecidas por este governo foi, além de colocar novas famílias, dar prioridade à recuperação dos assentamentos que estavam completamente abandonados. Isso está sendo feito. Temos 85% dos assentamentos cobertos. Até 2006, o compromisso do Programa Luz para Todos é levar luz para todos os assentamentos. Com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o governo financia a educação popular nos assentamentos, em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Na nossa avaliação, o programa de alfabetização vai bem e deve continuar, temos recursos para isso no Ministério da Educação. Isto é que é importante, as dotações para a reforma agrária não vêm só do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O dinheiro para o programa da saúde família virá do Ministério da Saúde, e assim sucessivamente. BF – Oficialmente, quantas famílias foram assentadas até o momento nestes dois anos de governo? Graziano – O número divulgado pelo MDA, aceito pelo governo, é que, no primeiro ano, assentamos cerca de 35 mil famílias e, no segundo, aproximadamente
85 mil. Ou seja, teríamos 120 mil famílias assentadas, quando deveríamos ter algo como 160 mil famílias. Então, temos um déficit de 30 a 40 mil famílias. Volto a insistir: acho um erro julgar a prioridade dada pelo governo à reforma agrária apenas pelo número de assentados. O governo tem tido problemas, o preço da terra subiu muito. São cada vez maiores as dificuldades enfrentadas na Justiça para cumprir o ritual da desapropriação de terras. A falta de índices de produtividade mais coerentes com a realidade tem dificultado as vistorias em terras consideradas improdutivas. Enfim, há uma série de questões no marco legal, institucional, da reforma agrária que precisariam ser aprimoradas e que o governo não está conseguindo porque não tem maioria no Congresso para isso. BF – O senhor convive com o presidente desde 1981, assim como Ricardo Kotscho e Frei Betto, que saíram do governo. Se o seu pai estivesse vivo, ele estaria contente com a reforma agrária do governo Lula? Graziano – É difícil falar em nome do meu pai. Nunca fiz isso enquanto ele estava vivo, e não pretendo fazê-lo agora que ele está morto há quase dez anos. Ele era um batalhador pela reforma agrária e certamente estaria na luta, achando que podemos fazer alguma coisa. O que não podemos é cruzar os braços e desistir, dizer que não dá para fazer mais nada, que aí de fato, não se faz nada. BF – O senhor já afirmou que a agricultura familiar pode andar junto com o agronegócio. Como? Graziano – É um erro atacar o agronegócio como se fosse o responsável pelos percalços por que passam a agricultura familiar e a reforma agrária. Acho que as duas coisas não são conflitantes, exceto quando disputam fundos públicos. Este é o ponto central. E eu espero que esse conflito continue a ser resolvido como o Lula tem determinado, ou seja, em favor da agricultura familiar. Quer dizer, recursos públicos, fundos, subsídios para agricultura familiar, nunca para o agronegócio. BF – Mas a prática do agronegócio entra em contradição com a prática da agricultura familiar. Por exemplo, quando pagam salários insignificantes em relação ao que lucram... Graziano – O baixo nível sala-
rial também é o grande impeditivo do crescimento da agricultura familiar no Brasil. Este patamar baixo também diz respeito a toda a institucionalidade jurídico-trabalhista. Precisamos dar um jeito de aumentar o salário-mínimo para puxar toda a economia informal e os salários rurais. Isso é o que vai permitir ampliar o mercado para agricultura familiar que está no centro do debate. BF – A utilização do Exército no Pará poderia ser estendida a todo o Brasil como um mecanismo de agilização da reforma agrária? Graziano – Olha, o recurso ao Exército no Pará para defender
BF – Como avalia, hoje, a extinção da sua pasta e a criação do ministério comandada por Patrus Ananias? Graziano – Era plano do governo unificar os programas de transferência de renda. Eu mesmo participei deste processo. Sabemos também que o BolsaFamília não poderia continuar eternamente vinculado ao presidente da República. E que todo ministério precisa de instalações, pessoas contratadas, técnico concursados. A idéia era juntar o Bolsa-Família e as ações de Segurança Alimentar. Eu sabia dos planos, mas fui surpreendido pela junção também da área de assistência social. Ficou um ministério muito grande. E juntar assistência social com Bolsa-Família e Fome Zero é juntar água e vinho, não ajuda. Assistência social é um direito das pessoas incapacitadas para o trabalho regular. Não é o caso dos nossos pobres. No seu caso, trata-se de criar oportunidades. Por exemplo, a reforma agrária, que dá uma oportunidade para quem não tem um pedaço de terra, ter um pedaço de terra; para aquele que passa fome se alimentar bem para poder ir trabalhar; à criança que nunca foi à escola, poder ir à escola com uma boa merenda escolar. Enfim, me parece que
Agência Estado
A
migo pessoal de Lula, o economista José Graziano, 54, continua sendo um dos seus assessores mais próximos, mesmo depois de afastado da coordenação do Projeto Fome Zero, em janeiro de 2004. Sua proximidade não tem apenas a ver com a sala em que trabalha, ao lado do gabinete presidencial, no 3º andar do Palácio do Planalto. Mas se deve muito ao legado de seu pai, o agrônomo José Gomes da Silva, figura histórica na luta pela reforma agrária no Brasil, morto em 1996. Não por acaso, Graziano, que é professor de economia agrícola na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o assessor especial do presidente para assuntos econômicos relacionados à redução da pobreza, e que têm a segurança alimentar como meio. Isso, inevitavelmente, tem como princípio a questão agrária. Também não por acaso, assuntos dos quais seu pai era encarregado no governo paralelo que Lula formou após a derrota para Collor, em 1989. Em entrevista ao Brasil de Fato, Graziano não esconde a decepção de não poder ter sido o responsável pelos ajustes no Programa Fome Zero. “Eu já sabia dos planos. Só fui surpreendido pela junção da área de assistência social. No meu entender, ficou um ministério muito grande”. O Ministério de Segurança Alimentar, comandado por Graziano, e o da Assistência Social, encabeçado por Benedita da Silva, foram extintos em janeiro de 2004 e engolidos pelo recém-criado Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, entregue a Patrus Ananias.
Em tudo, agora, a gente quer pôr o Exército. Os traficantes no Rio tomam a favela, querem que o Exército vá lá desalojar... O Exército tem uma função constitucional e deve ser preservado para exercê-la. Devemos fazer com que as instituições civis que não funcionam passem a funcionar bem para que o Exército não precise desempenhar um papel que não é o seu.
Agência Estado
Marcelo Netto Rodrigues da Redação
Sem-terra reivindicam recursos para a agricultura familiar
os posseiros é um fato de que tenho notícia pela primeira vez. Pela primeira vez, o uso da força foi feito em defesa dos direitos dos setores populares. Ninguém foi lá defender grileiro, apoiar fazendeiro. O Exército foi garantir a lei e a ordem, uma lei que defende o direito do pequeno posseiro, dos pequenos camponeses daquela região. Isso não serve de regra. Acho que não podemos pensar em resolver a questão agrária sempre por meio do conflito, nem tampouco com a intervenção do Exército. Mas, no caso no Pará, foi mais do que justificado. Havia uma situação objetiva de uma reação contra as ações que o governo tentava implementar e a força do Exército é que garantiu que aquelas ações retrocedessem. BF – Pergunto isso porque a Venezuela está usando o Exército para fazer desapropriações que, de outra forma, não conseguem ser feitas... Graziano – O Exército não foi criado para fazer vistoria de terra. Mas para garantir a segurança nacional, as nossas fronteiras.
não foi uma boa política termos juntado tudo. BF – Afinal, deu ou não resultado? Graziano – Está feito. O ministério, com todas as dificuldades, está conseguindo monitorar o Bolsa-Família. Acredito que, em 2005, o Bolsa-Família chegue a 7 milhões de famílias que o governo espera. É verdade que há erros, como a imprensa aponta, mas há muitos acertos. É muito difícil num universo de 7 milhões de famílias não encontrar uma família aqui outra acolá indevidamente beneficiada pelo programa. BF – Qual o número oficial da fome no Brasil? Graziano – De acordo com o IBGE, entre 44 e 50 milhões de pessoas estão em situação de “insegurança alimentar”, um universo de, aproximadamente, 11 milhões de famílias. A distribuição de cestas básicas, num determinado momento, é uma medida necessária para a sua sobrevivência. Ou morrem como as crianças indígenas de Dourados.
Ano 3 • número 108 • De 24 a 30 de março de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO LEI DE HIDROCARBONETOS
Câmara aprova projeto de lei na Bolívia da Redação
A
Câmara dos Deputados da Bolívia aprovou, no dia 16, o projeto de lei de hidrocarbonetos (petróleo e gás natural) que estabelece em 18% os royalties que devem ser pagos pelas empresas petrolíferas, além de fixar 32% de impostos não deduzíveis nem compensáveis. A lei deverá ainda ser referendada pelo Senado e depois pelo presidente, que não apoiou a iniciativa e defendia que os impostos de 32% pudessem sofrer deduções ou compensações. O Movimento ao Socialismo (MAS), por meio de seu líder e principal opositor do governo, Evo Morales, aprovou a iniciativa, apesar de ela não contemplar todas as reivindicações do partido. “Não é um êxito, mas em grande parte, nos pontos centrais, o povo boliviano ganhou”.
Greg Salibian/ Folha Imagem
Projeto ainda passará pelo Senado e presidência; movimentos sociais prometem pressionar pela aprovação
REAÇÃO Morales explicou que a bancada do MAS e dos movimentos sociais apostaram em cinco objetivos, dos quais quatro foram alcançados. O único que não passou foi a aprovação de uma taxa de 50% de royalties a serem pagos pelas empresas petrolíferas. O líder ainda afirmou que a nova lei fez valer o direito que têm os povos indígenas sobre os hidrocarbonetos, na medida em que contemplou aspectos aprovados no referendo do ano passado, como a refundação da empresa estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos e a industrialização no país do gás natural. O ministro da Energia Guillermo
Se aprovada no Senado, nova lei dos hidrocarbonetos representa conquista dos povos indígenas
Torres, rechaçou a lei e advertiu: “Se a lei sair do jeito que está, não vai durar 15 dias e vamos ter problemas terríveis”. Ele ainda afirmou que a lei deveria ser corrigida, pois sua aprovação tal como está, significará “um suicídio econômico” para o país, pois as empresas estrangeiras desistirão de investir na Bolívia. Ainda segundo o ministro, a empresa British Gas teria ameaçado tomar
medidas legais contra o governo boliviano. A empresa britânica opera cerca de 15% das reservas de gás natural boliviano. Ao mesmo tempo, a Câmara Boliviana de Hidrocarbonetos, que agrupa as indústrias petrolíferas, qualificou a nova lei de “regressiva e contraproducente” para os interesses da Bolívia. “Se o projeto de lei, aprovado na Câmara dos Depu-
tados, passar no Senado, ocorrerá um confisco dos investimentos realizados no país”, ameaçaram, dizendo ainda que “o projeto de lei é inviável para a atividade do setor de hidrocarbonetos na Bolivia”
MOBILIZAÇÕES Com a aprovação da lei na Câmara, Morales anunciou “um recesso dos protestos”, em relação
AMÉRICA LATINA
da Redação O secretário da Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, desembarcou em Brasília em 22 de março. É a segunda etapa de uma turnê pela América Latina, onde pretende promover a política internacional do presidente estadunidense, George W. Bush, fundamentada em grandes investimentos em militarização e unilateralismo. A primeira parada de Rumsfeld foi na Argentina, no dia 21, e a próxima deve ser a Guatemala, onde deve encontrar-se com o presidente Oscar Berger. Rumsfeld não foi recebido pelos presidentes argentino, Néstor Kirchner, e brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. O secretário estadunidense teve reuniões com os ministros da Defesa dos dois países, José Pampuro e José Alencar. A viagem de Rumsfeld não foi tratada com grande alarde, que geralmente acompanha visitas oficiais, como esta. No Brasil, foi mantido um tom de discrição quanto à pauta da reunião entre o secretário e Alencar.
“PERSONA NON GRATA” No encontro, em Brasília, foi discutida a ocupação do Iraque. Em Buenos Aires, capital argentina, o secretário já havia abordado o assunto, afirmando que a retirada das tropas espanholas do país asiático foi feita “abruptamente” e “de forma não muito brilhante”. Tanto no Brasil como na Argentina, Rumsfeld falou sobre a situação na Tríplice Fronteira – território partilhado por brasileiros, argentinos e paraguais -, dizendo que devia ser considerada como uma região propícia ao terrorismo, e felicitou os governos dos países pela participação na ocupação militar do Haiti. Assim que Rumsfeld desem-
Hector Mata/ AFP
Em turnê, Rumsfeld propaga bushismo
aos bloqueios de estradas. Jaime Solares, líder da Central Obrera Boliviana (COB) – que realizava uma greve geral até o dia 16 – também descartou novos protestos sindicais. Entretanto, os movimentos sociais alertam, que enquanto a lei não for aprovada definitivamente, as mobilizações não irão cessar. Caso o Senado modifique a lei ou o presidente não a sancione, Morales declarou como “certa” uma maior resistência da população e disse que os cocaleiros radicalizarão suas ações à espera da aprovação da lei no Senado. De acordo com o líder da oposição, depois de um encontro entre as seis federações cocaleiras, decidiuse radicalizar as ações de defesa dos hidrocarbonetos com marchas e vigílias ao redor do Congresso, “em defesa dos interesses patrióticos”. Ele também apontou que centenas de camponeses irão, a partir do dia 22, ao Senado para realizar uma vigília durante a votação da lei e reiterou a proposta de elevar de 18% para 50% a cobrança de royalties das empresas petrolíferas. “Vou falar com todas as bancadas no Senado para explicar as razões em defesa do interesse nacional, vamos insistir em obter royalties de 50%”, disse. Morales relembrou que a exploração de hidrocarbonetos gera, anualmente, cerca de 500 milhões de dólares, e que a reivindicação de 50% de royalties arrecadaria cerca de 750 milhões de dólares em benefícios para o povo boliviano. Já a proposta do governo garante apenas 150 milhões de dólares por ano. (Com informações do La Jornada, www.lajornada.unam.mx)
Congresso rejeita proposta de Carlos Mesa da Redação
Capacetes azuis em ação no Haiti, um dos assuntos tratados na visita de Rumsfeld na Argentina e no Brasil
barcou na Argentina, organizações sociais iniciaram protestos. No aeroporto, foi recebido por centenas de manifestantes, que gritavam que o secretário não era bem-vindo. Patricio Echegaray, secretáriogeral do Partido Comunista da Argentina, uma das organizações que convocaram as manifestações, advertiu que Rumsfeld tem a pretensão de agregar mais países à lógica belicista de Bush. O deputado socialista Jorge Rivas, presente nas manifestações, apresentou Rumsfeld como “um dos criadores da doutrina de guerra preventiva, de um amigo e apoiador do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, do homem que aprovou publicamente a aplicação de torturas nos prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib”. Rumsfeld já está acostumado
com protestos populares e reticências diplomáticas durante as viagens que faz. Republicano da linha dura e ex-executivo do grande laboratório farmacêutico Searle & Co., ele parece até se comprazer com sua baixa popularidade. Também dentro dos Estados Unidos não tem uma imagem positiva, tanto que foi mantido cuidadosamente fora do noticiário durante a campanha pela reeleição de Bush.
HAITI E LEI DO ABATE O principal tema das reuniões na Argentina e Brasil foi o Haiti, pois militares dos dois países participam da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), que ocupa a nação caribenha desde junho de 2004. O general brasileiro Augusto Heleno Pereira Ribeiro tem o comando das tropas. Segundo informações
divulgadas por assessores do governo, representantes argentinos e brasileiros pressionaram Rumsfeld para que libere recursos financeiros prometidos para a Minustah. A demora desperta crescente impaciência no Itamaraty, à medida em que a situação haitiana se agrava – nos dias 19 e 20, dois “capacetes azuis” morreram em ações da força de paz da ONU em Porto Príncipe. No Brasil, entra na pauta a Lei do Abate, promulgada em 2003 pelo presidente Lula, que permite a derrubada de aeronaves suspeitas de serem usadas para o tráfico de drogas. Os Estados Unidos reagiram negativamente na época e, na opinião de fontes do governo brasileiro, continuam reticentes por causa do possível abate de aviões militares – espiões – estadunidenses. (Com agências internacionais)
O Congresso da Bolívia rejeitou no dia 17 o projeto de lei do presidente da Bolívia Carlos Mesa que pretendia antecipar as eleições gerais em dois anos, por considerar o pedido inconstitucional. “É inaceitável a solicitação do presidente da República para que o Poder Legislativo elabore uma lei interpretativa do artigo 93 da Constituição, por falta de base legal e por ser contrária à Lei Magna”, diz a resolução. Somente após a decisão do Congresso, Mesa anunciou, em rede nacional, sua permanência no poder até 2007, dizendo que não “abandonaria” o povo e não iria se eximir de suas responsabilidades como presidente da República. Porém, criticou as últimas decisões dos parlamentares, que marcaram “um caminho mais difícil para o país”. No dia 6, o Congresso já havia rejeitado o pedido de renúncia do presidente, frente aos intensos protestos da oposição. Tanto Evo Morales, líder do Movimento ao Socialismo (MAS) e principal opositor de Mesa, como outros dirigentes políticos consideraram, desde o princípio, o plano de Mesa “inconstitucional”. Morales classificou a atitude como uma forma de “enganar” o povo boliviano, “postergando mudanças profundas ao modelo econômico e, especialmente, ao sistema político” e não cumprindo com seu compromisso público de convocar uma Assembléia Constituinte. Mesa assumiu o poder em outubro de 2003, depois da queda de seu antecessor, Gonzalo Sánchez de Lozada, em decorrência de manifestações populares em relação a exploração dos hidrocarbonetos.
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AMÉRICA LATINA TRANSNACIONAIS
Protestos contra a Shell. Agora, no México da Redação
C
Mudança Climática do Greenpeace, Luis Arturo Moreno Vega.
SHELL
The Clearing
amponeses, organizações não-governamentais e ambientalistas das regiões mexicanas de Ensenada e Tijuana estão se manifestando contra as transnacionais estadunidenses Chevron-Texaco (ligada à secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice) e Shell. Ambas empresas possuem projetos de indústrias processadoras de gás natural nas áreas. Os protestos ocorrem dias após o presidente argentino, Néstor Kirchner, conclamar a população a fazer um boicote contra a Esso e a Shell por elevar, de forma exorbitante, os preços do combustível. No México, o Congresso prometeu receber os manifestantes para saber quais suas demandas. Recentemente, a Chevron-Texaco obteve concessão do governo de Vicente Fox (aliado de George W. Bush) para utilizar parte de um território em águas mexicanas durante 30 anos. Ali, a empresa pretende iniciar, ainda em 2005,
a construção da unidade industrial que abastecerá parte do consumo estadunidense. A transnacional é uma das corporações petrolíferas acusadas de financiar a invasão do Iraque, ocorrida há dois anos (veja reportagem na página 11). A ligação com o governo dos Estados Unidos é tamanha que a empresa batizou de Condoleezza Rice um de seus navios petroleiros, em homenagem à atual secretária de Estado, que foi acionista e administradora da companhia. Os manifestantes afirmam que as concessões dadas pelo governo mexicano às corporações estrangeiras não vão resolver o problema energético do país, mas sim agravar a situação, pois entregará a transnacionais o controle da eletricidade. O risco é que a população fique exposta à volatividade dos preços devido aos custos corporativos, prejudicando os cidadãos locais e as empresas consumidoras, advertiu o coordenador da campanha de Energia e
Chevron-Texaco também é acusada de financiar a invasão do Iraque
Também tem gerado resistências populares a concessão dada à empresa Sempra, ligada à transnacional anglo-holandesa Shell, para construir uma usina no Estado da Baixa Califórnia. Essa empresa é acusada de manipular suas subsidiárias elétricas para produzir uma escassez no abastecimento e viabilizar um aumento de 700% nas tarifas. “É um erro grave do governo permitir que as corporações ditem a política energética; essa política deve se guiar por critérios de interesse público e impacto ambiental”, critica Moreno Vega. As manifestações ocorreram por todo o fim de semana dos dias 19 e 20, com atividades políticas e manifestações artísticas. As ações são coordenadas pelo Comitê Estatal contra a Instalação de Indústrias Processadoras de Gás e de Energia Elétrica Multinacionais, o Grupo de Ecologia e Conservação das Ilhas, indígenas Kumiai e o Greenpeace. As diversas organizações divulgaram, na ocasião, uma informação técnica de especialistas alertando para o perigo das instalações, sobretudo em Baixa Califórnia. O estudo diz que o México ficará em uma situação de vulnerabilidade no setor enérgico dentro de sete anos. Até lá, 50% da geração de eletricidade vai depender do gás natural importado. A conseqüência é que o país ficará à mercê das corporações que manipulam os preços com grandes fraudes e dependente de um recurso proveniente de regiões distintas, algumas instáveis politicamente como Rússia, Indonésia, Bolívia e Golfo Pérsico. “Soma-se
ANÁLISE
Sobre a Shell e a Texaco na África As empresas petroleiras Shell e Chevron arrasaram o delta do Rio Niger. O escritor Ken Saro-Wiwa, do povo ogoni, da Nigéria, fez a denúncia em um livro publicado em 1992. O que a Shell e a Chevron têm feito a este povo, a suas terras, córregos e atmosfera chega ao nível do genocídio. A alma do povo ogoni está morrendo e eu sou sua testemunha. Três anos depois, no início de 1995, o gerente-geral da Shell na Nigéria, Naemeka Achebe, explicou assim o apoio de sua empresa à ditadura militar que existe no país: “para uma empresa comercial que se propõe a realizar investimentos, é necessário um ambiente de estabilidade. As ditaduras oferecem isso”. Meses mais tarde, ao final da 1995, a ditadura enforcou Ken Saro-Wiwa. O escritor foi executado junto com outros ogonis, também acusados de lutar contra as empresas que aniquilaram suas aldeias e reduziu suas terras a um lugar inabitável. Muitos outros haviam sido assassinados pelos mesmos motivos. O prestígio de Saro-Wiwa deu a este crime certa repercussão internacional. O presidente dos Estados Unidos declarou que seu país suspenderia o fornecimento de armas à Nigéria. O mundo aplaudiu. A declaração não foi vista como uma confissão involutária, mas era: o presidente estadunidense reconhecia que seu país vendia armas ao regime carniceiro do general Sani Abacha, que vinha executando gente a um ritmo de cem pessoas por ano, em fuzilamentos ou enforcamentos con-
vertidos em espetáculos públicos. Um embargo internacional impediu depois que qualquer país firmasse novos contratos de vendas de armas com a Nigéria, mas a ditadura de Achaba continuou multiplicando seu arsenal graças aos contratos anteriores e a adendos que, por milagre, foram anexados como elixires da juventude, para que os velhos contratos tivessem vida eterna. Os Estados Unidos vendem cerca da metade das armas de todo o mundo e compram cerca da metade do petróleo que consomem. Das armas e do petróleo, dependem, em grande medida, sua economia e seu estilo de vida. Nigéria, a ditadura africana que mais dinheiro se destina aos gastos militares, é um país petroleiro. A empresa anglo-holandesa Shell leva a metade, mas a estadunidense Chevron arranca da Nigéria mais de um quarto de todo o petróleo e gás que explora nos 22 países em que opera.
habitantes, o que é inestimável, os especialistas do governo estimaram em 400 milhões de dólares a indenização mínima que a empresa devia pagar para que a refinaria continuasse operando. A Shell não pagou nada e, em troca, comprou a impunidade a um preço de fábula infantil: vendeu sua refinaria ao governo de Curaçao por um preço irrisório, mediante um acordo que liberou a empresa de qualquer responsabilidade pelos danos que havia infringido ao meio ambiente e em toda sua sórdida história. (La Jornada, www.lajornada.unam.mx) Eduardo Galeano é jornalista e escritor uruguaio, autor de As Veias Abertas da América Latina e O Mundo do Avesso Arquivo Nigriza
Eduardo Galeano
O PREÇO DO VENENO Nnimmo Bassey, compatriota de Ken Saro-Wiwa, visitou as terras latino-americanas no ano seguinte ao assassinato de seu amigo e companheiro de luta. Em seu diário de viagem, conta instrutivas histórias sobre as gigantes petroleiras e suas devastações impunes. Em Curaçao, em frente à costa venezuelana, a empresa Shell ergueu em 1918 uma grande refinaria que, desde então, vem tomando rumos venenosos para a pequena ilha. Em 1983, as autoridades locais mandaram parar as atividades. Sem incluir os prejuízos à saúde dos
Ken Saro-Wiwa, enforcado pelo regime nigeriano em 1995
Robson Oliveira
Indígenas, camponeses e ONGs tentam barrar projetos das empresas apoiadas pelo governo de Vicente Fox
Ativistas no Fórum Social Mundial condenam o monopólio das transnacionais
a isso o risco de converter essas indústrias no México em alvos para terroristas, uma vez que abastecerão os Estados Unidos”, considera Moreno Vega. A Chevron é uma nova denominação para a empresa fundada por
J. D. Rockefeller, Standard Oil of California, chamada Esso Standard. Chevron e Texaco se fundiram em outubro de 2001 e, hoje, são a terceira transnacional do petróleo, atrás de Exxon-Mobil e da Shell. (La Jornada, www.lajornada.unam.mx)
Nestlé: a mais irresponsável da Redação Empresas transnacionais atuantes em vários países da América Latina – Nestlé (alimentos), Dow Chemical (química), Shell (petróleo), KPMG (consultoria financeira) e Wal-Mart (distribuição) – são consideradas as mais irresponsáveis do planeta nas questões sociais e ecológicas. Os participantes do Contra-fórum de Davos ou Fórum Alternativo de Davos, na Suíça, realizado em janeiro, elegeram estas cinco companhias entre 24 transnacionais propostas por ONGs de todo o mundo. O prêmio é uma pequena escultura, que representa o globo de um olho de madeira escura, rodeado de dois arcos de metal dourado. Dow Chemical, dos Estados Unidos, foi eleita na categoria direitos humanos por não assumir suas responsabilidades na catástrofe, na cidade indiana de Chopal, na qual um problema em suas instalações causou a morte de mais de 20 mil pessoas, em 1984. A petroleira Shell ganhou, por seus prejuízos ao meio ambiente, na Nigéria, onde queima gás ao ar livre e não limpa as zonas afetadas por seus vertidos, desde 1956. A empresa financeira KPMG recebeu o chamado Prêmio de Castigo, por utilizar técnicas agressivas de evasão fiscal, poupando dinheiro no pagamento de impostos. Pelas condições precárias de trabalho, obrigatoriedade de horas extras e pagamento de salários muito baixos na África e Ásia, a estadunidense Wal-Mart foi eleita na categoria irresponsabilidade trabalhista. O primeiro lugar, no entanto, ficou com à suíça Nestlé, que
atua de maneira irresponsável em vários países da América Latina. A companhia foi eleita a “mais irresponsável” por seus conflitos trabalhistas na Colômbia e suas agressivas campanhas de marketing para promover substitutos do leite materno, que prejudicam a amamentação materna, especialmente em países em desenvolvimento, expondo milhões de bebês, impunemente, a riscos de um desmame precoce do seio de suas mães, com as conseqüências epidemiológicas, sociais e econômicas. Na Bolívia, a Nestlé é acusada de contribuir, indiretamente, para a morte de pelo menos 28 mil bebês. A companhia continua ofertando seus substitutos na Bolívia, como seu produto NAN 1, com etiquetas que recomendam o uso “desde o nascimento”. Ou seja, vai contra a promoção, pelo governo boliviano, de uma alimentação e nutrição adequadas nos primeiros meses, por meio da amamentação materna exclusiva. No Brasil, a Nestlé também é acusada de extrair água mineral sem a devida autorização. A líder mundial no segmento acumula uma série de irregularidades, desde o lançamento de suas atividades no Parque das Águas, em São Lourenço, no Estado de Minas Gerais. As denúncias partem do Movimento Amigos dos Circuitos de Águas Minerais (Macam). Além de extrair a água no parque sem autorização, a empresa está provocando a desmineralização da água – proibida pela lei brasileira – e construindo uma planta sem um estudo de impacto ambiental e a licença necessária. (Adital, www.adital.org.br)
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INTERNACIONAL BANCO MUNDIAL
Bush indica um ideólogo da guerra Campanha repudia nome de Paul Wolfowitz, vice-secretário de Defesa dos EUA, para a presidência do Bird
P
aul Wolfowitz, vice-secretário de Defesa dos Estados Unidos e ideólogo da política internacional do atual governo de seu país, em especial da intervenção militar no Iraque, deve ser o novo presidente do Banco Mundial (Bird). Indicado por George W. Bush, ele deve substituir, a partir de junho, James Wolfensohn, no cargo desde 1995. A partir da indicação de Wolfowitz, cerca de 2 mil organizações e entidades de todo o mundo iniciaram uma campanha para impedir que ele assuma a presidência do Bird. Em sua trajetória política, o vice-secretário de Defesa ficou marcado como o promotor da ideologia neoconservadora, linha de pensamento ultranacionalista, fundamentada na exaltação da força das armas e desprezo ao multilateralismo. Essa corrente de pensamento foi adotada por Bush, a partir do ataque ao World Trade Center, em Nova York, em 2001, e resultou na ocupação do Afeganistão, em 2001, e do Iraque, em 2003, além de ameaças a todos os países que, de acordo com o governo dos Estados Unidos, ponham em risco a segurança do país. “O presidente do Banco Mundial é quem promove a política do organismo internacional, e tem um papel fundamental na condução das estratégias da organização. Wol-
Estados Unidos. Reunidos, 24 diretores da instituição podem ratificar ou rejeitar o candidato. De acordo com Magnólia, o encontro dos diretores é uma mera formalidade, pois sempre há alinhamento com a proposta estadunidense.
Luciney Martins
João Alexandre Peschanski da Redação
REFORMULAR O BIRD
Estratégia dos Estados Unidos é usar instituições financeiras para impor políticas de guerra
fowitz, no cargo, poderá utilizar o Banco para pressionar governos a se alinhar com a política imperial de Bush”, analisa Magnólia Said, da entidade Rede Brasil, que coordena a campanha brasileira de repúdio à indicação do falcão à presidência do Banco Mundial. Segundo ela, as pressões vão ocorrer na hora da negociação de empréstimos do organismo internacional a países do Terceiro Mundo. Magnólia acredita que Wolfowitz
No caso do Brasil, mensagens de repúdio à indicação de Wolfowitz podem ser enviadas ao correio eletrônico gabpr@planalto.gov.br. Magnólia afirma que a campanha internacional dificilmente vai conseguir impedir a escolha de Wolfowitz para o cargo, pois, diz, o presidente estadunidense tem o controle da decisão. No regimento interno do Bird, consta que a escolha dos candidatos à presidência é de responsabilidade do governo dos
pode condicionar o envio do dinheiro ao apoio incondicional à política de Bush.
CONSTRANGIMENTO O objetivo da campanha internacional é constranger os 24 diretores do Banco Mundial que formalizam a nomeação do presidente do organismo. Até o dia 18, haviam sido organizados abaixo-assinados, que devem ser enviados aos governos dos países que integram o Banco.
Os principais objetivos da campanha são informar à população mundial sobre os perigos que representam a nomeação de Wolfowitz, e lançar um debate público sobre a função do Banco Mundial. O primeiro objetivo da instituição, criada em 1944, era financiar a reconstrução da Europa, devastada após a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). Em seguida, como estampa a página na Internet do Banco, passou a intervir em políticas de desenvolvimento internacional para “lutar contra a pobreza, com paixão e profissionalismo, para obter resultados duráveis”. Segundo Magnólia, o Banco poderia ter um papel de promotor de iniciativas de desenvolvimento, mas se tornou um instrumento nas mãos do governo estadunidense. “A partir da instituição, os EUA implementam estratégias internacionais, obrigando os países pobres a aceitá-las, como o benefício a grandes empresas e a multiplicação de tratados de livre comércio”, analisa. Para ela, é preciso reformular a instituição, garantindo que seja um espaço democrático.
Povos marcham pelo fim da invasão da Redação Povos de todo o mundo foram às ruas no dia 19 para lembrar os dois anos de invasão ao Iraque e exigir a retirada imediata das tropas do país. Os Estados Unidos, que lideraram a ocupação, foram palco do maior número de manifestações: elas ocorreram em pelo menos 765 cidades e povoados dos 50 Estados, cifra quase duas vezes maior que a do ano passado, quando aconteceram protestos em 319 localidades. Apesar do número de manifestantes ter sido menor nas grandes cidades em relação aos anos anteriores, chama a atenção o fato de a onda antiguerra ter se alastrado por todo o país, inclusive em médias e pequenas cidades do interior, conhecidas por seu forte conservadorismo. Uma das maiores manifestações ocorreu em Fayetteville, na Carolina do Norte, cidade que abriga a instalação militar de Fort Bragg, sede da 82ª Divisão de Transporte Aéreo, várias unidades de elite do Exército e outras quatro bases militares. Cerca de 4.500 pessoas participaram do protesto, o maior já realizado na cidade, e marcharam até o Rowan Street Park, onde 90 caixões cobertos por bandeiras estadunidenses representavam os soldados da Carolina do Norte mortos no Iraque e no Afeganistão. Em Nova York, cerca de 27 manifestantes foram presos após se ajoelharem em frente a uma estação de recrutamento e se deitarem ao lado de caixões na Avenida Broadway. No Central Park, cerca de 5 mil protestaram, enquanto centenas de pessoas ouviram discursos antiguerra perto da sede das Nações Unidas e marcharam até o Times Square, carregando caixões cobertos uns por panos pretos, outros pela bandeira estadunidense.
REPRESSÃO Em Roma, ocorreram fortes repressões contra os manifestantes que tentavam chegar ao Palácio Chigi, sede do governo, para exigir do primeiro-ministro Silvio Berlusconi o retorno dos cerca de 3.300 soldados italianos no Iraque, o terceiro
maior contigente, atrás apenas dos EUA e do Reino Unido. Um forte esquema de segurança foi montado ao redor do Palácio, e os policiais reprimiram com cassetetes. Berlusconi havia anunciado recentemente – pressionado pela forte pressão popular e pelo seqüestro da jornalista italiana Giuliana Sgrena – o retorno das tropas a partir de setembro, o que muitos interpretaram como estratégia para as eleições que se realizarão em breve. No entanto, no dia 17 voltou atrás, após pressões de Washington. Na Europa, a maior marcha ocorreu em Londres, onde 150 mil pessoas – segundo a associação “Stop the War Coalition” – protestaram contra o primeiro-ministro Tony Blair. Dois ex-soldados britânicos carregaram até a frente da embaixada estadunidense um caixão de papelão com os dizeres “100 mil mortos”, número de civis mortos até agora desde o começo da ocupação, segundo a revista The Lancet. Na praça Trafalgar, destino final da marcha, discursaram o prefeito londrino Ken Livingstone e Martin Mubanga, ex-prisioneiro em Guantánamo. Em Bruxelas, às vésperas do encontro do Conselho Europeu, que se reuniu nos dias 22 e 23 na cidade, 70 mil marcharam contra a guerra, o racismo, o desemprego, a negligência com os direitos sociais, as privatizações e o domínio das transnacionais sobre a Europa. Em Istambul, na Turquia, cerca de 15 mil marcharam contra a guerra. Em Adana, onde está localizada uma base militar usada por forças estadunidenses, manifestantes deixaram uma coroa de flores negra em frente ao consulado dos EUA. Em Tóquio, cerca de 4.500 pessoas aproveitaram a visita ao Japão da secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, para exigir o retorno imediato dos 550 soldados do país no Iraque.
TIROS DA POLÍCIA No Brasil, aconteceram manifestações nas principais capitais e grandes cidades. Na favela Vigário Geral, onde ocorreu a concentração
da marcha contra a guerra, no Rio de Janeiro, a polícia deu 15 tiros para o alto para coibir o protesto e infiltrou dois espiões entre os manifestantes, segundo a organização. Um dos temas da marcha carioca era justamente a violência policial. Depois da confusão, mais de mil pessoas participaram da passeata pelas ruas da cidade. No domingo, cerca de 700 pessoas assistiram a sessões de cinema e colocaram duas cruzes em frente ao consulado dos EUA, cada uma representando um ano da ocupação. Em São Paulo, cerca de 2 mil pessoas marcharam da Avenida Paulista até a Praça da Sé. Durante o trajeto, pararam em frente a uma loja McDonald’s, atiraram contra ela grãos de arroz e feijão, representando “a verdadeira comida brasileira”, e exigiram sua volta aos EUA. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, entre mil e 1.500 manifestantes andaram da Praça Afonso Arinos até a Praça Sete, onde também protestaram contra a rede de lanchonetes McDonald’s. (Com agências internacionais)
Anderson Barbosa
IRAQUE OCUPADO
Manifestação contra a invasão do Iraque e do Haiti, em São Paulo
Estados Unidos libertam criminosos em troca da delação dos combatentes da Redação Notícia veiculada pelos meios de comunicação informa que oficiais da inteligência e da polícia militar dos Estados Unidos no Iraque estão libertando perigosos criminosos, em troca de seu compromisso de espionar os combatentes contra a ocupação. Segundo o jornal inglês Independent, há documentos que comprovam que, em um dos casos, a polícia resgatou um médico depois de um tiroteio com os seus seqüestradores, prendeu dois do bando, que confessaram tudo. Depois, entretanto, a polícia militar estadunidense simplesmente os deixou livres. Na delegacia onde estavam detidos os criminosos foi registrado que
foram entregues a um tenente da política militar estadunidense, que os transferiria para a prisão de Campo Cuervo, dirigida pelos EUA. Porém, um porta-voz militar estadunidense declarou ao Independent que não havia registro dos dois prisioneiros em seu banco de dados.
DESMANCHE “Os estadunidenses estão permitindo a decomposição da sociedade iraquiana, porque só lhes interessa combater a rebeldia”, disse um alto oficial da polícia iraquiana, que acrescentou: “Estamos vivendo uma epidemia de seqüestros, extorsão e crimes violentos, mas, mesmo que saibamos que os estadunidenses controlam as ligações por celulares ou satélite, freqüentemente utiliza-
das nas negociações de pagamentos de resgate, não nos repassam qualquer inteligência criminal. Só querem utilizar a informação contra os insurgentes”. Além disto, uma fonte do governo iraquiano confirmou que, muitas vezes, criminosos são libertados se aceitam dar informações sobre os insurgentes, apesar dos perigos que representa tal atitude. A classe média iraquiana vem sendo terrivelmente atacada por seqüestradores desde a queda de Sadam Hussein. Inúmeros médicos (um alvo preferido) e empresários têm fugido para a Síria, Jordânia e Egito. A polícia admite que não pôde fazer nada para deter a onda de seqüestros. (Com informações da Al Yazeera/Independent)
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INTERNACIONAL MARCHA MUNDIAL DE MULHERES
Tolerância zero à mutilação genital U
m dos principais problemas que atingem a mulher africana, a mutilação genital, é também uma das bandeiras de luta e reivindicação da Marcha Mundial de Mulheres, iniciada em São Paulo, dia 8 de março, e com término em Ouagadougou, capital de Burkina Faso, dia 17 de outubro. A mutilação abrange todos os processos de remoção total ou parcial dos órgãos genitais externos por razões de ordem cultural, e não terapêutica. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS), entre 120 e 130 milhões de mulheres são vítimas dessa prática que “atenta contra os direitos das crianças e contra a sua integridade, traduzindo-se em conseqüências irreversíveis na saúde das mulheres: conseqüências físicas, psicológicas e sexuais”, afirma em entrevista ao Brasil de Fato, Awa Ouedraogo, coordenadora da Marcha Mundial de Mulheres na África. “É uma das mais graves violações dos direitos fundamentais das mulheres e não pode ser justificada com base nas tradições ou na cultura.” Awa frisa a importância de investir na formação das mulheres para romper com o preconceito e a marginalização a que são submetidas. Brasil de Fato – Por que a Marcha Mundial de Mulheres terminará em Burkina Faso? Awa Ouedraogo – Nossas organizações feministas de Burkina participam da Marcha desde as primeiras reuniões de preparação, no Canadá. O comitê de organização considerou a importância dessa mobilização para nossa caminhada. Além disso, contamos com apoio do governo. Não diria apoio econômico, mas moral, no sentido de que diversos ministérios nos convidam para discutir a criação de políticas públicas voltadas para as mulheres. Em se tratando de um contexto africano, marcado pelo machismo, essa abertura para o diálogo é muito apreciada. BF – Como está a situação das mulheres em seu país? Awa – Um dos principais problemas é a pobreza, não só em Burkina, como em todo o continente africano. Acontece que a pobreza que atinge as mulheres é de muitas ordens. Porque não falamos somente da pobreza econômica. Claro, esse tipo de pobreza é mais visível e somos um dos países mais pobres da África. Por exemplo, a renda média mensal de uma família é em torno de R$ 200,00. Esse é o lado monetário da pobreza. Mas combatemos uma outra forma de pobreza, que é a falta de acesso aos direitos fundamentais. Um deles é a educação. As mulheres são as menos instruídas. Aquelas que puderam freqüentar uma escola não foram muito longe. As que concluíram o segundo grau ou universidade são muito poucas. No plano político, impedem as mulheres de terem acesso aos postos de decisão. Na Assembléia Nacional, por exemplo, há 110 deputados, sendo que somos apenas 3. Dos 27 ministros, somente 4 mulheres. BF – Quais as causas dessa discriminação? Awa – Trata-se de uma pobreza moral aliada à violência também moral e psicológica. Há mulheres que podem trabalhar muito melhor que certos homens no governo. Não é normal que, nos dias de hoje, homens ainda batam em mulheres. Não é normal que não se deixe uma filha ir para a escola. Não é normal que se obrigue
Paulo Pereira Lima
Paulo Pereira Lima da Redação
Anderson Barbosa
Movimento feminista quer o fim de uma prática que atinge mais de 80 milhões de mulheres, sobretudo na África
Quem é
Marcha Mundial das Mulheres lança, em São Paulo, manifesto contra e exclusão social
uma mulher a guardar seu filho doente em casa até que morra. Na África, em geral, a situação das mulheres é preocupante. Eu diria preocupante porque efetivamente há todo o problema de acesso aos direitos mas também há o problema igualmente da não consideração, quer dizer, a mulher não ocupa o lugar que deveria ocupar.
Em Burkina, há cinco anos temos uma lei que pune com prisão quem faz circuncisão feminina. Essa lei é fruto das lutas das próprias mulheres organizadas BF – Isso diz respeito também às tradições culturais? Awa – Sim, mas não é um problema nem africano, nem burkinense. É um problema mundial. É o patriarcado que se apresenta como a regra única para tudo e em qualquer lugar do Sul e do Norte do mundo. Prega, por exemplo, o homem acima de tudo, que dirige tudo, e a mulher é obrigada a segui-lo. BF – Nesse sentido, a mutilação genital é vista como uma violência na África? Awa – Esse é um grande problema na África, mesmo se não é em todos os paises. Os problemas estão ligados ao impacto das mutilações genitais sobre a saúde da mulhe. É muito difícil ter uma vida conjugal quando se tem se fístulas. As mulheres terão mais dificuldades na hora do parto. Então, é um problema de saúde. É nesse sentido que combatemos as mutilações genitais. As mulheres que fazem circuncisão de suas filhas nem sempre compreendem as conseqüências do ato. Depois, há também muitas crendices. Há quem acredite que, não fazendo a excisão, na hora do parto, a cabeça do bebê toca no clitóris e ele morre. BF – O que vocês fazem para reverter essa situação? Awa – Procuramos trabalhar no campo da conscientização e da educação das mães. O problema é que diversos governos e seus ministérios da Saúde erram com suas campanhas de esclarecimento, quando culpam as mães, sem oferecer a elas momentos de conscientização. As mulheres analfabetas não compreendem que a mutilação genital desempenha um papel na saúde.
BF – Os governos africanos estão comprometidos em combater as mutilações? Awa – Sim, em Burkina, por exemplo, há pelo menos cinco anos temos uma lei que pune com prisão quem faz circuncisão feminina. Essa lei é fruto das lutas das próprias mulheres organizadas. BF – Voltando ao problema da pobreza econômica, o que a Marcha Mundial de Mulher propõe? Awa – Trabalhamos na formação das mulheres a fim de que saibam gerenciar elas mesmas o que têm. Porque é necessário começar por aí. Nós não colocamos logo a ênfase sobre o dinheiro. Não devemos deixar que, logo de uma vez, o dinheiro tome a dianteira. Porque, quando a mulher tem o dinheiro, ela não procura mais estudar. Ela não procura mais compreender as raízes dos problemas sociais que a afligem. Ela só pensa em fazer render o seu dinheiro e como fazer para que seu capital não desapareça. Por isso, em primeiro lugar, a mulher tem que apreender a gerenciar o que tem. E, quando aprendeu isso, a segunda etapa, é de se juntar com o(a) outro(a). Isto quer dizer que queremos ir além das pequenas atividades geradoras de renda. Porque nos dias de hoje, quando você sai na rua, em Ouagadougou (capital de Burkina Faso), você vê 10 mulheres que vendem a mesma coisa. Elas estão sentadas, lado a lado, e vendem a mesma coisa. Queremos incentivá-las a criar pequenas empresas, para que desenvolvam cada vez mais o pouco que têm e olhem para o futuro. De forma coletiva e não somente para o dia em que vivem.
A Marcha Mundial de Mulheres também denuncia as políticas de submissão dos países africanos às instituições de Bretton Woods BF – E no plano mais geral, de política financeira internacional? Awa – A Marcha também vai denunciar as políticas de submissão às instituições de Bretton Woods. Desde nossa primeira marcha, em 2000, dizemos ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial que a política que desenvolvem em relação aos países pobres só faz aumentar o
número de pobres e é em benefício de poucos. Em Burkina, criamos a Associação Burquinense de Luta Contra a Dívida, uma rede que reúne uma dezena de organizações sociais. A idéia é informar a população sobre o endividamento e os problemas que são gerados pela política de exploração dos organismos internacionais em nosso país. Fizemos um estudo sobre nossa dívida e descobrimos que, ao nascer e prorromper em seu primeiro choro, um burkinense já deve mais de 114 euros (R$ 420,00). Nosso lema é: “Não aceite mais que nosso país se endivide!”
Os conflitos, em geral, não são por motivos étnicos, como costumam enquadrar. Há interesses de grandes potências pelas riquezas minerais BF – E qual a posição do movimento feminista africano sobre acordos como o Desenvolvimento da África (Nepad)? Awa – Somos contra desde o começo. Não estamos de acordo porque a sociedade civil não está sendo consultada pelos governos dos países. Em Burkina, por exemplo, nunca o ministro do Exterior nos chamou para sentar à mesa. Acordos econômicos como o Nepad, na verdade, abrem a África às empresas estrangeiras. Que benefícios terá nossa população com a abertura de nossas fronteiras ao mercado internacional? O Nepad contribui para empobrecer ainda mais as populações africanas. BF – Qual o mote que está mobilizando a participação dos africanos na Marcha? Awa – Estamos trabalhando com o lema da paz. Vamos interpelar o mundo sobre a necessidade de promover a paz. Em todas as circunstâncias. Nesse sentido, foi importante que o Nobel da Paz de 2004 foi para uma militante africana, a Wangari Maathai. BF – Este Nobel adquire um valor ainda mais forte devido aos conflitos no continente? Awa – Infelizmente são muitos os conflitos ainda em andamento na África, sendo os pontos quentes na região dos Grandes Lagos, República Democrática do Congo, Burundi e Ruanda. Em de-
Pedagoga, Awa Ouedraogo é coordenadora da Marcha Mundial de Mulheres no continente africano. Nascida na capital Ouagadougou, Awa entrou para o movimento feminista de Burkina Faso quando integrou uma organização de assistência a crianças, o Plano Internacional de Apadrinhamento. zembro, estive em Ruanda e percebi que o genocídio ainda não acabou. Porque os povos ainda sofrem e continuam se matando uns aos outros, hutus e tutsis. Outra região de conflito é a África Ocidental (Libéria, Serra Leoa e Costa do Marfim). E isso recai sobre Burkina. Recentemente milhares de refugiados e também burkinenses que estavam na Costa do Marfim retornaram ao país. Com isso, agrava-se ainda mais o estado de pobreza, pois não temos terra para toda essa gente nem como garantir educação para as crianças e jovens. É bom lembrar que os conflitos, em geral, não são por motivos étnicos, como costumam enquadrar. Mesmo nos Grandes Lagos, onde no fundo ha úm problema étnico, há interesses de grandes potências pelas riquezas minerais. BF – Que imagem de mulher é veiculada na mídia africana? Awa – Questionamos a imagem negativa da mulher nas mídias, um problema no mundo inteiro também. Se queremos lutar contra todas as violências contra a mulher, temos de parar de apresentá-la como uma subpessoa. Além disso, é preciso trabalhar para mudar a mentalidade de nossas etnias. Estudo feito com todas elas, aqui em Burkina, revelou que não há consideração pela mulher. São muitas as formas de discriminação por meio da linguagem. Há um provérbio: “O sapo, apesar de todas as suas tripas, pertence à serpente”. Usam esse provérbio para falar da mulher, para dizer que qualquer posição que ela venha a conquistar será sempre propriedade do homem. Outro estereótipo é dizer que a mulher é uma estrangeira, desde o seu nascimento até a morte. Quando nasce uma criança, no caso do sexo masculino, dizem que nasceu um “um chefe de família”; no caso da mulher, anunciam que nasceu “uma estrangeira”. A menina já nasce estrangeira na própria casa, consideram que vá partir, quando casar. Quando chega à casa do marido, a primeira coisa que se diz é “Dêem água à estrangeira”. Porque estrangeira, nunca terá direito às terras. No caso de morte do marido, retiram tudo dela e dizem que não pertence àquela aldeia. No caso de divórcio, ela não fica com os filhos.
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AMBIENTE SOBERANIA ALIMENTAR
Sociedade vai reagir aos transgênicos Luís Brasilino da Redação
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ão satisfeitos com os superpoderes que a aprovação do projeto de lei (PL) de Biossegurança lhes confere, os membros da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) autorizaram, dia 17, o plantio e a comercialização, no Brasil, do algodão transgênico Bollgard, da transnacional Monsanto. A decisão foi tomada antes mesmo de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionar o PL. “Além da sanção presidencial, eles não poderiam ter liberado essas sementes porque há uma ação na Justiça que proíbe a Comissão de tomar esse tipo de decisão. Os membros da CTNBio agem segundo sua própria lei”, afirma Gabriel Fernandes, assessor técnico da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA). Para Romário Rossetto, da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a liberação do algodão geneticamente modificado é absurda, uma vez que os ditos cientistas da CTNBio não seguiram qualquer critério ou norma. “Se o Lula tivesse vergonha na cara, faria um decreto extinguindo essa Comissão. Ela nunca foi técnica, suas decisões são meramente políticas”, declara Rossetto. Na avaliação do militante, o parecer da CTNBio foi elaborado com base em estudos de desempenho agronômico, e não de impacto ambiental. Ele acredita que não foi levado a sério o fato de que a reprodução do algodão se dá por polinização cruzada, o que significa que, com o vento, uma planta transgênica pode se misturar com uma convencional e gerar uma espécie nova.
Bruno Stuckert/Folha Imagem
No primeiro ataque das transnacionais após aprovação do PL de Biossegurança, CTNBio libera algodão da Monsanto
Manifestantes erguem faixa contra a utilização de alimentos transgênicos e pedem o cumprimento da lei de rotulagem
De seu lado, a CTNBio, para evitar que isso ocorra, determinou a construção de barreiras de separação entre as diferentes lavouras. Contudo, Rossetto avalia que essa medida é inócua, pois, na prática, quem plantar transgênicos não vai construir estas barreiras.
REAÇÃO “O algodão é dominado pelo agronegócio. Os pequenos produtores são os responsáveis pelos alimentos. A decisão da CTNBio, no entanto, vai afetá-los porque abre a porta para a liberalização, por exemplo, do milho – semente na qual também ocorre a polinização cruzada”, prevê Rossetto. Estão na lista da Comissão milhos geneticamente modificados das transnacionais Bayer CropScience, Monsanto e Syngenta, dentre outros oito pro-
dutos transgênicos. O diretor do MPA conta que, se não houver rotulagem dos produtos transgênicos, o Movimento vai ocupar supermercados, retirar tais alimentos das prateleiras e queimá-los em frente aos estabelecimentos. “O decreto (nº 4.680, de abril de 2003) exige a rotulagem, então, vamos cumprir a lei”, informa Rossetto. Já Gabriel Fernandes, da AS-PTA, conta que a Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos, da qual faz parte, vai pressionar pela fiscalização na rotulagem. Uma medida importante para que os 82% de brasileiros que se manifestaram contrários à liberação dos transgênicos (segundo pesquisa de julho de 2004 do Instituto de Estudos da Religião – Iser) possam ter assegurada sua liberdade de escolha. Paulo Pacini, advogado do
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), informa que, se um cidadão desconfiar da existência de organismos geneticamente modificados (OGMs) em um determinado produto, ele pode consultar a empresa a esse respeito. Se ela se recusar a responder, o consumidor pode processá-la.
NA JUSTIÇA Segundo Pacini, os agricultores também podem recorrer à esfera jurídica para defender seus direitos. “Caso um produtor tenha a sua plantação contaminada pelo vizinho, ele pode processá-lo. A ação pode ser contra a CTNBio também, vai depender de cada caso. A expectativa é que muitas disputas acabem na Justiça”, afirma a advogado do Idec. O economista Jean Marc Von der Weid, diretor da AS-PTA,
conta que a Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos vai reagir, sobretudo, no plano jurídico. “Vamos abrir um festival de processos contra a União, a Monsanto, os contaminadores e a CTNBio”, diz. Rubens Nodari, gerente de projeto da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e único membro da CTNBio a votar contra a liberação do algodão Bollgard, conta que o MMA quis evitar que os artigos da lei de Biossegurança pudessem ser questionados na Justiça. Fernandes, da AS-PTA, confirma que essa era mesmo a intenção do presidente Lula ao criar o projeto de lei. Contudo, “estamos vendo que isso não vai acontecer”, antecipa. Fernandes argumenta que dois fatores tornam o PL inconstitucional. Em primeiro lugar, um projeto deve tratar de apenas um assunto, mas o de Biossegurança aborda dois (pesquisas com células tronco e OGMs). A segunda razão está baseada no fato de o projeto contradizer a Constituição em quatro pontos: coloca a CTNBio acima dos ministérios, apesar deles constituírem o principal órgão de assessoramento do Executivo; deixa a cargo da Comissão a responsabilidade de pedir ou não estudo de impacto ambiental; passa por cima do pacto federativo, concentrando na CTNBio atribuições do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e do Sistema Único de Saúde (SUS); e fere o direito da sociedade de se informar e participar de questões relativas ao meio ambiente. “A discussão só acaba no Supremo Tribunal Federal (STF). Entendemos que até lá, os transgênicos não estão liberados”, assegura Paulo Pacini, do Idec.
POVOS INDÍGENAS
Priscila Carvalho de Dourados (MS) O confinamento dos indígenas Guarani-Kaiowá em pequenas extensões de terras, no Mato Grosso do Sul, é apontado como a causa principal da violência e da falta de recursos econômicos dos Kaiowá, dizem antropólogos e historiadores que trabalham com este povo. Os suicídios, que tornaram os Kaiowá nacionalmente conhecidos na década de 90, assim como os recentes casos de desnutrição, que levaram pelo menos cinco crianças à morte em 2005, estão diretamente relacionados ao reduzido tamanho das terras que os Guarani ocupam. Na terra indígena Dourados, onde é maior o número de mortes por desnutrição, vivem cerca de 11 mil indígenas, em 3.500 hectares. No entanto, a questão da terra não foi contemplada pelas medidas anunciadas pelo governo federal para combater a mortalidade infantil em Dourados. As ações anunciadas até agora (1º de março) têm a ver diretamente com a alimentação e a assistência social, questões ligadas à área da Fundação Nacional de Saúde – Funasa.
ASSISTENCIALISMO Em nota divulgada em 28 de fevereiro, a Relatoria Nacional para os Direitos à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural questiona a falta de medidas integradas para o enfrentamento do problema da insegurança alimentar e nutricional dos povos indígenas. “A área da saúde, por mais efetiva que seja, não conseguirá, de forma isolada, resolver um problema que exige atenção articulada de todos os setores
Priscila Carvalho
Sem terra, povo Kaiowá morre de fome
Confinamento do povo Kaiowá se agravou com a chegada da soja, nos anos 70
Os subgrupos Guarani No Brasil, o povo Guarani é dividido em quatro subgrupos, os Guarani Mbya, Guarani Xiripá, Guarani-Kaiowá e Guarani Nhandeva. No Mato Grosso do Sul, onde a população Guarani é de 27.500 pessoas, vivem os Nhandeva, em geral identificados apenas como Guarani, e os Kaiowá, que habitualmente são chamados de Kaiowá ou Kaiowá-Guarani. Os Mbya vivem principalmente nos Estados do Sul e do Sudeste, como São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
governamentais envolvidos com a elaboração e implementação de políticas públicas relativas aos povos indígenas, começando pela questão da demarcação e homologação das terras indígenas, con-
do Sul. Há também um grupo de Xiripá atualmente no Pará. À procura de territórios para sobreviver e reproduzir sua cultura, o povo Guarani mantém sua característica de caminhar pelos territórios “em busca da terra sem males”. Desde o início da ocupação dos territórios hoje conhecidos como o Estado do Mato Grosso do Sul, os Kaiowá eram identificados como um povo pacífico e amigável que praticava a agricultura e que, para evitar contato, refugiava-se em regiões de mata. (PC)
dição primeira para o exercício do direito humano à alimentação adequada”, afirma o documento. “Uma aldeia como Dourados não oferece qualquer condição para a organização social indígena”,
diz Antonio Brand, historiador que coordena o programa KaiowáGuarani da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande. Segundo o pesquisador, a falta de terras dificulta a produção de alimentos em áreas já degradadas, e a ausência de políticas públicas de apoio à produção cria dificuldades para o aproveitamento das poucas terras disponíveis. Brand identifica, nos últimos anos, o reforço de políticas de assistência, em detrimento de medidas que contribuam para a reestruturação da atividade econômica dos Guarani-Kaiowá. Em relação às administrações estadual e federal, ele declara que “o governo nunca investiu tanto em políticas de assistência para a área indígena, mas estas políticas, isoladas, podem agravar o quadro por levarem a uma diminuição ainda maior da produção. Não há discussão sistemática para a construção de alternativas. Há injeção de recursos sem debate sobre a absorção dos programas pelas comunidades”.
CERCO DA SOJA O confinamento se agravou a partir dos anos 70, quando a soja entrou no Mato Grosso do Sul, aumentando o cerco sobre as terras indígenas. Com a mecanização das lavouras, não há mais qualquer espaço livre. E aumentou o comprometimento dos recursos naturais na região toda. Algumas das terras indígenas foram demarcadas com tamanhos reduzidos ainda em 1928, mas, segundo Brand, até a década de 70 havia áreas de refúgio, nas proximidades, o que amenizava o problema da extensão das terras. “Eram os fundos de fazenda, bei-
radas de mato, matas ciliares onde o Guarani andava, caçava, pegava remédios. Na década de 80 não apenas o confinamento físico cresceu, como os indígenas foram realmente empurrados porque a mecanização fez com que a mão de obra Guarani deixasse de ser usada nas plantações”, conta.
ÁLCOOL E DROGAS O confinamento tem um significado especial em uma cultura como a Guarani. Tradicionalmente, os indígenas deste povo se organizavam em grupos que caminhavam por um território que abrangia toda a região Sul da atual América do Sul. Para este povo, a terra onde vive, chamada de Tekoha, significa “o lugar onde realizamos nosso modo de ser”. As perambulações dos Guarani por seu território eram marcadas pela busca do melhor lugar para a reprodução de sua organização social, e, também, uma forma pacífica de resolver conflitos entre os membros da tribo. “Nas aldeias de Dourados, é impossível haver deslocamentos, o que cria uma impossibilidade de distanciamento. Sem esse mecanismo de solução de tensões, os Kaiowá recorrem a outras alternativas. Álcool, violência interna e drogas estão entre eles”, afirma o pesquisador. Sem perspectiva de vida, cresce o alcoolismo entre os indígenas e, a partir dos anos 90, aumentam as taxas de suicídio. A Funasa registrou 41 casos de suicídio em 2001, 55 em 2002, 53 em 2003 e 20 suicídios em 2004 (esses últimos dados ainda estão sujeitos a alterações). (Priscila Carvalho é jornalista do Conselho Indigenista Missionário – Cimi)
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DEBATE LIVRE COMÉRCIO
O capitalismo e o meio ambiente João José Sady á alguns anos que diversos povos vêm lutando contra a tentativa do imperialismo norte-americano de unificar num só mercado, todos os países do continente, derrubando as fronteiras comerciais existentes. Este projeto conhecido como Alca (Área de Livre Comércio das Américas) é calcado no mecanismo já construído há um bom tempo, abrangendo EUA, México e Canadá (Nafta). Faz parte deste pacto a perda de parte da soberania, submetendo os governos respectivos, às decisões de comitês de arbitragem com força imperial que se sobrepõe aos sistemas judiciários de cada país. Para adoçar a pílula, os entusiastas da Alca afirmam que esta perda de soberania não é integral porque se mantém o direito de cada país legislar em defesa do interesse público, sem quaisquer interferências. O exame de dois processos muito interessantes que transcorreram nestes mecanismos de arbitragem, contudo, revela o caráter enganoso deste canto de sereia. Nos dois países, a defesa do interesse público fez com que viessem a ocorrer proibições de uso e comercialização de preparados químicos que entram na composição da gasolina, em razão de se vislumbrar, neles, ameaças perturbadoras ao meio ambiente e, por conseqüência, à saúde das pessoas. Num destes casos, a Methamex, empresa canadense, processou o governo norte-americano, pedindo um bilhão de dólares de indenização, por causa da proibição (na Califórnia) do aditivo conhecido como MTBE. De outro lado, a Ethyl, empresa norte-americana, processou o Canadá por haver proibido o comércio do MMT, que serve à mesma finalidade de entrar na composição do combustível.
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E a reserva de soberania que garantiria a independência ao legislar em defesa do interesse público ? Em ambos os casos, as queixosas contornavam este óbice, singelamente, alegando que a suposta defesa do meio ambiente era uma farsa e a intenção era favorecer os produtores locais de álcool, que poderia substituir este componente na composição da gasolina. Tais episódios revelam a fragilidade da reserva de soberania que vigora no Nafta e as perspectivas que nos esperam na Alca. A integração de países desiguais economicamente, num mercado unificado em que os mecanismos privados de solução dos conflitos se sobrepõem à jurisdição dos Judiciários nacionais, como se vê, é algo extremamente arriscado e perigoso. O rebuliço em torno de tais questões, no entanto, chama a atenção para outro ângulo do problema: por que estes aditivos estão sendo forçadamente substituídos pelo álcool, no centro do capitalismo e, por aqui, em nosso país, continuam em uso absolutamente livre e sem qualquer debate ? O chamado MTBE (methyl tertiary-butyl ether) é conhecido em nossa terra como éter metil terbutílico. É um líquido inflamável usado como aditivo na gasolina sem chumbo para melhorar a combustão do motor, representando o resultado da mistura de Isobutileno e Metanol. Começou a ser usado, nos últimos vinte anos, como fator de redução do nível de emissões de monóxido de carbono dos automóveis. É utilizado no Brasil sem qualquer preocupação quanto a riscos ambientais. De uns tempos para cá, todavia, vem crescendo a preocupação de que este preparado esteja causando graves prejuízos ao meio ambiente, por sua alta capacidade de infiltração no solo e de contaminação das águas
subterrâneas. A agência norteamericana de proteção ao meio ambiente (EPA) já o classificou como potencialmente cancerígeno e o debate está pipocando em face deste risco. Nos USA, 27 Estados estão em vias de proibir o uso do MTBE ou já o proibiram, como no caso, por exemplo, de Nova York e Califórnia. Os estudos encomendados pelo governo norte-americano detectaram que a contaminação em águas subterrâneas foi constatada em 35 Estados dos 44 pesquisados, encontrando-se o MTBE em, pelo menos, 20% das amostras. Enquanto esta dança vai ocorrendo no Norte, por aqui, o MTBE vem sendo usado em nossa gasolina de forma corrente. O álcool poderia substituí-lo na mistura, com 75% menos risco à saúde mas, tem sido desprezado porque seria muito mais caro. Veja-se que a Califórnia, por exemplo, tem a população, aproximadamente, equivalente à do Estado de São Paulo e baniu o éter metil terbutílico fundamentada na recomendação de um estudo produzido pela universidade daquele Estado. Ora, o Brasil está plantado sobre um verdadeiro oceano de águas subterrâneas que representam
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12% das reservas mundiais de água doce e poderiam, em tese, satisfazer suas necessidades por 2.500 anos. Já em 1997, estudos da Cetesb apontavam que elas abastecem total ou parcialmente, 72% dos 645 municípios do Estado. Apontava-se, ainda, que 47% dos municípios são inteiramente abastecidos por este recurso hídrico, dentre os quais, vale citar Catanduva, Caçapava, Ribeirão Preto, Tupã, Jales e Lins. Em 13 bacias hidrográficas do Estado de São Paulo a água subterrânea é fonte prioritária de abastecimento, por meio dos chamados aqüíferos que constituem massas rochosas com altas porosidade e permeabilidade, contida entre pacotes de rochas impermeáveis, que acumulam água subterrânea em quantidade e com vazão elevadas. O Aqüífero Guarani, por exemplo, é a principal reserva subterrânea de água doce da América do Sul e um dos maiores sistemas
aqüïferos do mundo, ocupando uma área total de 1,2 milhão de km2 na Bacia do Paraná e parte da Bacia do Chaco-Paraná. Estende-se pelo Brasil (840.000 km2), Paraguai (58.500 km2), Uruguai (58.500 km2) e Argentina, (255.000 km2), área equivalente aos territórios de Inglaterra, França e Espanha juntas. Sua maior ocorrência se dá em território brasileiro (2/3 da área total) abrangendo os Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Será que estas águas estão em segurança ? No ano de 2000, esta questão fez adernar um projeto do presidente Bush que implicaria em dezenas de bilhões de dólares em investimentos energéticos. Um deputado turrão fincou pé diante da proposta de um dispositivo que protegeria as grandes empresas diante de eventuais ações de indenização movidas por causa de lesões à saúde geradas pelo MTBE. O fato de que no centro do capitalismo exista tamanha preocupação com os riscos atribuídos a este produto não sensibilizou, ainda, as nossas autoridades. Com efeito, a Cetesb divulgou um extenso relatório de monitoramento das águas subterrâneas no Estado de São Paulo, no qual, menciona diversos fatores de vulnerabilidade dos aqüíferos, sem sequer cogitar do MTBE (ou, ao menos, dos agrotóxicos). Bem se vê que o fato de o álcool custar mais caro tece um véu que esconde o cenário de risco envolvido na questão. A grande dificuldade no cuidado com o meio ambiente continua a ser a encarniçada resistência do capital, na defesa da taxa de lucros. João José Sady é advogado, Doutor em Direito pela PUC/SP, Professor na Universidade de São Francisco, em São Paulo
PESCA ARTESANAL
Pescadores se reúnem na Argentina Adriane Lobo Entre os dias 28 de fevereiro e 4 de março, estiveram reunidos na praia de Santa Clara del Mar, em Mar del Plata, Argentina, um grupo de pessoas que têm em comum a defesa da pesca artesanal. Reunidos no Seminário Regional Latino-Americano “Pescadores Artesanais, Comunidades Costeiras e Povos Tradicionais: Reconhecer seus Direitos de Acesso aos Recursos Pesqueiros, Condição para a Pesca Sustentável na América Latina”, promovido pelo Coletivo Internacional de Apoio ao Pescador Artesanal – Ciapa (International Collective in Support of Fishworkers – ICSF), o Centro de Defesa da Pesca Artesanal da Argentina – CeDePesca e financiado pelo Programa FishCode da FAO, os participantes se dedicaram a discutir três temas básicos: Direitos de Propriedade na Pesca e Sistemas de Manejo, A Pesca Artesanal e a Segurança Alimentar e As Condições de Trabalho dos Pescadores Artesanais. Estiveram presentes em torno de 60 representantes de sete países – Equador, Venezuela, Peru, Chile, Brasil, Uruguai e Argentina –, de organizações de pescadores, comunidades pesqueiras, povos tradicionais, ONGs, pesquisadores e funcionários de órgãos governamentais. O que podemos verificar na realidade dos países presentes é que as lutas da pesca artesanal acabam por se assemelhar em diversos aspectos, embora tenha-
mos todos a consciência de que a definição de pesca artesanal está em construção, dada a diversidade e complexidade das cadeias estabelecidas. Todos os participantes concordaram que a pesca artesanal é, na verdade, um modo de vida, e que portanto está intimamente relacionada às culturas estabelecidas e aos conhecimentos locais desenvolvidos, que não deverão, em nenhuma intervenção, ser desconsiderados. Uma das questões amplamente debatidas foi a zona de exclusão, diploma existente em diversos países do mundo, inclusive o Brasil (embora não respeitado), que consiste em uma zona costeira de algumas milhas onde se exerça exclusivamente a pesca artesanal. Este tema, sempre que colocado em discussão trouxe um intenso debate, visto que em países como o Peru, onde esta zona existe, também existem movimentos legais para derrubá-la, em favor da pesca industrial. Um tema bastante polêmico se refere às carcinoculturas (criações de camarão em cativeiro). Em países como o Equador, as criações foram abandonadas pelo aparecimento da Mancha Branca (uma doença vírica que afeta os viveiros, matando os camarões), mas a destruição ambiental ficou como prova da insensatez humana. Por isso, existem grupos organizados que se dedicam a abrir as represas dos tanques e semear sementes de mangue para que a natureza volte a se equilibrar e as populações tradicionais que viveram tantos anos da produção
farta destes mangues, possam ter uma esperança no futuro. No Brasil, em especial no Nordeste, existe um forte movimento de resistência e oposição à carcinocultura, tal como está posta, devido à grande destruição dos mangues nacionais para dar lugar a grandes empreendimentos do gênero. Outro tema discutido diz respeito às Cotas Individuais Transferíveis – CITs – que foram consideradas pelos participantes como uma ferramenta de manejo totalmente inapropriada para as pescarias artesanais, com conseqüências sociais negativas e implicações prejudiciais para a sustentabilidade das pescarias. Esta questão está em discussão no Chile e já existe um movimento nacional para que o setor se posicione e resista a este instrumento. Tema comum a todos os participantes foram os relatos quanto às pescarias ilegais, não declaradas e não reguladas. Em todos os países os sistemas de estatísticas são precários, fazendo com que os dados disponíveis sejam falhos e não confiáveis, principalmente no que diz respeito à pesca artesanal. Resulta disso uma dificuldade imensa em desenvolver sistemas de manejo que sejam condizentes com a realidade e possam levar a pescarias sustentáveis. Algumas conclusões e recomendações do encontro incluem: Reconhecimento da importância do Código de Conduta da Pesca Responsável e a urgente necessidade de que seja implementado mais amplamente no nível nacional;
Necessidade de estabelecer zonas protegidas nas águas costeiras de todos os países latino-americanos para garantir a segurança alimentar das comunidades e a sustentabilidade dos ecossistemas, com direito de acesso exclusivo aos pescadores artesanais, comunidades costeiras e povos tradicionais; A necessidade de deter a expansão de atividades aqüícolas não sustentáveis; A necessidade de implementar o manejo integrado das zonas costeiras, como forma de assegurar a distribuição eqüitativa dos benefícios dos seus recursos. Neste sentido, o co-manejo foi reconhecido como uma ferramenta indispensável a ser desenvolvida nas pescarias artesanais; a extensão pesqueira pode ser o instrumento de auxílio neste processo; Foram expressas preocupações pelas pressões que o comércio internacional exerce sobre os recursos pesqueiros, ao incentivar o uso de práticas de pesca destrutivas, como o arrasto de fundo e a aqüicultura irresponsável. E, por último, importa dizer que também o tema gênero foi discutido, reconhecendo-se a importância das mulheres na atividade pesqueira assim como a sua invisibilidade no que diz respeito ao reconhecimento do trabalho por elas desempenhado nas diversas fases da cadeia produtiva. As recomendações em sua íntegra foram apresentadas na Reunião do Comitê de Pesca da FAO, ocorrida entre os dias 7 e 11 de março em Roma, Itália,
cujos temas principais foram as zonas marinhas protegidas, a pesca em águas profundas e a assistência à região de ocorrência dos tsunamis. No Brasil, apesar de existirem estudos que demonstram que as pescarias têm declinado fortemente, em especial nas últimas duas décadas, ainda estamos longe de termos um sistema adequado de gestão das pescarias, sejam industriais ou artesanais. As poucas espécies que são controladas, assim o são porque interessam às indústrias, embora algumas sejam também capturadas pelos pescadores artesanais. Infelizmente, os órgãos nacionais gestores da pesca têm investido pouco dos seus esforços na pesca artesanal e suas implicações sociais, econômicas e ambientais e ainda não se posicionaram de forma contundente em defesa desse setor, seja por meio de estruturas estatísticas sérias que apontem a real importância do setor (cerca de 60% do peixe consumido internamente vem da pesca artesanal), seja pela administração de áreas exclusivas, como as Resex Marinhas ou similares, seja por meio de um processo de co-manejo que além de estimular a participação das comunidades no processo de gestão, respeite o seu conhecimento tradicional e os seus espaços de trabalho, seja na água ou na terra. Adriane Lobo é medica veterinária, mestre em Educação Ambiental e extensionista rural da Emater/RS
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LIVRO
RIO DE JANEIRO
GALERIA F - LEMBRANÇAS DO MAR CINZENTO PARTE II A obra, de autoria do deputado estadual Emiliano José (PT-BA), resgata a memória dos presos políticos que passaram pela Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador. Prefaciado pelo jornalista e escritor Alípio Freire, o livro resgata as histórias de Theodomiro Romeiro dos Santos, prisioneiro que a ditadura condenou à morte, mas não ousou executar, e de comunistas importantes na vida política baiana como Ana Montenegro, Luís Contreiras, Mário Alves de Souza (de Alagoinhas), Everardo Públio de Castro (de Conquista) e Péricles de Souza, dirigente do PCdoB. Também resgata as histórias do militante cristão Sérgio Gaudenzi e do líder petroleiro Mário Lima. Na contracapa do livro, publicado pela Editora Casa Amarela, o secretário Especial dos Direitos Humanos, ministro Nilmário Miranda, afirma que “sem o resgate da verdade histórica, o Brasil não conseguirá construir uma sociedade democrática de fato”. O livro custa R$ 17,00 Mais informações: www.carosamigos.com.br
CURSO: “SEXUALIDADE E ADOLESCÊNCIA: PRAZER EM VIVER” De 5 de abril a 21 de junho Oferecido pelo Centro de Produção da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Cepuerj/Uerj), o objetivo do curso é capacitar profissionais e
TEATRO DO OPRIMIDO E DIREITOS SEXUAIS DE JOVENS Durante o mês de abril O projeto Dialogar para Aproximar, do Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (CTO-RJ), pretende promover um diálogo sobre os direitos sexuais de jovens por meio do teatro. Serão realizadas apresentações gratuitas dos espetáculos Fruto Proibido, do Grupo Artemanha, e É Melhor Prevenir do que Remédio Dar, do Grupo Pirei na Cena, que discutem como a religião influencia a sexualidade das pessoas. Os espetáculos têm, em média, 40 minutos de duração e podem ser apresentados em locais alternativos. O objetivo das apresentações é estimular a criação de oficinas de teatro a serem realizadas na sede do CTO-Rio, ou nas próprias instituições. A oficina é gratuita e tem três horas de duração. Mais informações: (21) 2215-0503
SÃO PAULO GERAÇÃO DE RENDA A partir de março O Sesi Catambi, em parceria com o Senai, está oferecendo cursos populares para geração de renda. Os valores variam de R$ 17 a R$ 25 para industriários, ou até R$ 35 para não-sócios. A programação de março inclui cursos de jardinagem, artesanato, pintura em tecido, em tela e em madeira, costura e moda entre outros. Mais informações: www.sp.senai.br
Local: Av. República do Líbano, 1520, Goiânia Mais informações: (62) 275-2740, eventos@prt18.mpt.gov.br
Como? As revoluções ainda existem?
5º FÓRUM NACIONAL DE DEFESA DA SAÚDE DA CRIANÇA INDÍGENA Dias 19 e 20 de abril Durante o encontro, realizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria, haverá palestras sobre os seguintes temas: a vida da família indígena no Estado de São Paulo, situação de saúde da criança indígena brasileira, medicina tradicional indígena – o que fazer para preservar esta prática milenar? Local: Av. Paulista, 119, São Paulo Mais informações: (11) 3849-0379
PEÇA TEATRAL: O HOMEM QUE ERA UMA FÁBRICA Até 1º de abril A Cia. Arthur-Arnaldo, vencedora do Prêmio Estímulo em 1998, com a montagem de Revolução na América do Sul, vai encenar O Homem que Era uma Fábrica, texto de Augusto Boal, inédito no Brasil. O espetáculo conta a história de Bonifácio da Silva, desempregado que resolve emigrar para os Estados Unidos na tentativa de “fazer a América” e, com as dificuldades de conseguir o visto, acaba descobrindo um grande capital escondido em seu próprio corpo e se transforma no “Homem que Era uma Fábrica”. Uma crítica à mídia, à arte e à sociedade de consumo. A peça é um convite à reflexão e à ação sobre o atual período político do país. A idéia de “fazer a América”, fio condutor da peça, é uma provocação sobre as convicções ideológicas dos brasileiros e suas crenças num mundo melhor, longe daqui. Local: Teatro da Cultura Inglesa Pinheiros, R. Deputado Lacerda Franco, 333, São Paulo Mais informações: (11)3814-4155
1º SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO ADOLESCENTE De 2 a 5 de maio Promovido pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, o evento tem como objetivo debater os novos desafios para a saúde e a educação dos adolescentes, e contribuir para a discussão de políticas públicas dirigidas ao jovem brasileiro, inspiradas nesses diversos campos do saber e da experiência. Entre os temas que serão debatidos estão: intersecção da saúde com a educação, experiências de atendimento da família do adolescente; orientação sexual e a prevenção da saúde mental; direito e família; a educação na adolescência: novos desafios; sexualidade – soropositividade na adolescência; gravidez na adolescência; direitos da criança e do adolescente. Local: Av. da Universidade, 308, Bloco B, sala 19, São Paulo Mais informações: (11) 3091-3574
“As revoluções de fevereiro recorrentes foram, nesse sentido, revoluções sociais ‘abortadas’”, conclui Arcary, lembrando que, “sem as massas não se fazem revoluções e sem a luta pelo poder não se fazem mudanças”. Vale a pena lembrar das últimas frases de “Tempos interessantes”, as
provocantes memórias do historiador inglês Eric Hobsbawm: “Não nos desarmemos, mesmo em tempos insatisfatórios. A injustiça social ainda precisa ser denunciada e combatida. O mundo não vai melhorar sozinho”. Arcary, pelo visto, acha o mesmo.
Divulgação
1º CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE A MULHER, GÊNERO E RELAÇÕES DE TRABALHO De 5 a 7 de maio Promovido pela Procuradoria Regional do Trabalho da 18ª Região, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT), o objetivo do evento é chamar a atenção para as questões de gênero, da violência doméstica e sexual praticadas contra as mulheres, além de discutir os princípios constitucionais e a efetividade das leis vigentes na proteção da discriminaço de gênero e promoção da igualdade de oportunidade no trabalho.
SEMINÁRIO: “ORÇAMENTO IMPOSITIVO NO BRASIL” Dia 1º de abril, das 14h às 18h Promovido pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), o encontro tem a finalidade de discutir algumas das alterações propostas para modificar o processo orçamentário no país. Local: Av. Rio Branco, 124, 8º andar, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2509-0660
COLÓQUIO: ENSINO MÉDIO, HISTÓRIA E CIDADANIA Dias 6 e 7 de abril O objetivo do encontro, realizado pelo Centro de Ciências da Educação, da Universidade de Santa Catarina, é debater a escolarização média na sociedade catarinense e brasileira. Local:Universidade de Santa Catarina, Campus Universitário CSE - Anexo 2 - sl 21, Florianópolis Mais informações: (48) 222-9168, www.coloquioensinomedio.cjb.net
Roberta Guimarães/Imago
GOIÁS
ENCONTRO DE BAMBAS Aos sábados, das 15h às 21h Três amigos e profundos conhecedores do samba de raiz se uniram para revitalizar o tradicional Clube Renascença, no Rio de Janeiro, palco, nas décadas de 60 a 80, de famosas reuniões da comunidade negra para aumentar a auto-estima e buscar o sucesso. São eles: Sérgio Marba, Meco e Carlinhos Doutor. Local: R. Barão de São Francisco, 54, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 268-2348
SANTA CATARINA
estudantes das áreas de educação e saúde para levar aos adolescentes a questão da sexualidade, transmitindo conhecimento teórico-científico, por meio de metodologia participativa, sempre com o cuidado de dirimir preconceitos e garantir uma postura ética frente às questões apresentadas. Local: R. São Francisco Xavier, 524, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2587-7707, www.cepuerj.uerj.br
Priscila Carvalho
AGENDA
O historiador brasileiro Valério Arcary afirma que sim e demonstra, em livro provocante, que elas não dependem da vontade de possíveis revolucionários. Resultam da entrada em cena de milhões de pessoas, até então politicamente inativas, empurradas pelas tensões não resolvidas e acumuladas pelas sociedades ao longo da História” Gilberto Maringoni Há na praça um grande livro, que não mereceu sequer uma linha de comentário na grande imprensa. O silêncio é compreensível: trata-se de um volume sobre Situações revolucionárias em perspectiva marxista, tema tido como superado e anacrônico para os observadores bem pensantes da cena política. É uma lástima, pois Esquinas perigosas da História (240 págs, R$27,www.xamaeditora.com.br), de Valério Arcary, é um trabalho brilhante, escrito por um dos mais competentes intelectuais da geração que se temperou ainda adolescente, e m 1974, na Revolução dos Cravos, em Portugal, e que participou ativamente das mobilizações populares no Brasil, entre a segunda metade dos anos 1970 e o final da década seguinte. Além da erudição e da recusa a qualquer tipo de maniqueísmo, Arcary trata de temas para lá de cabeludos com um estilo fluente e elegante, capaz de sensibilizar até mesmo os não-iniciados nas artes do que se convencionou chamar de materialismo dialético. Mas que diabos falar em revolução numa hora dessas?
CONDIÇÕES E VONTADES Arcary não se incomoda com
a estranheza. “Todas as sociedades recorreram, em algum momento de sua história, ao método das reformas ou ao método das revoluções para enfrentar a necessidade da mudança”, afirma ele, logo de saída. E completa: “Não o fizeram, todavia, quando o queriam. São exteriores à vontade dos partidos e organizações as condições que favorecem as reformas, ou precipitam o vendaval revolucionário”. A partir daí, ao longo de dez capítulos, o autor esmiuça o sentido de “situação revolucionária”, “crise revolucionária”, “revolução política” e “revolução social”. Não é uma autópsia ou uma exegese de um organismo morto o que o leva adiante. É, antes, a necessidade de buscar entender as grandes ondas revolucionárias do século 20, suas características essenciais, sua difusão internacional e sua influência no continente latino-americano. O historiador estende sua lupa para “La Paz, 2003, Buenos Aires, 2001, Caracas, 2002, Quito, 2000”, assinalando os levantes populares que sacudiram estruturas de poder assentadas em décadas de exploração e práticas ultraliberais. Valério Arcary se lastreia, entre outras, numa feliz definição de León Trotsky, que classificou as revoluções políticas e sociais. As primeiras foram denominadas de revoluções de fevereiro, em alusão àquela que
varreu o czarismo da Rússia, em 1917. Houve um levante popular, e o poder político mudou de mãos, mas o poder econômico se manteve onde sempre esteve. Já as revoluções sociais, ou de outubro, aludem à ruptura liderada pelos bolcheviques e que mudaram as estruturas sociais e econômicas e colocaram em xeque o maior pilar da ordem que se desfazia: a propriedade privada. Aqui, o autor se distancia dos manuais teóricos tão em voga nas décadas em que Moscou era tida como o centro irradiador da revolução mundial e percebe que cada processo construiu suas próprias características temporais, culturais e sociais.
DESENLACES DE TENSÕES Revoluções são desenlaces de tensões acumuladas em sociedades que não conseguiram recorrer a outras vias, como uma sucessão de reformas. Nem todas as revoluções de fevereiro, lembra ele, resultaram em revoluções outubristas. Ou seja, nem sempre confrontos que deitaram governos e regimes por terra descambaram para processos mais profundos, de mudanças nas estruturas econômicas e sociais. Aliás, nenhum dos processos revolucionários dos últimos 30 anos, depois da vitória definitiva dos vietnamitas contra os EUA, avançou o sinal para derrubar a sacrossanta ordem do capital.
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CULTURA
De 24 a 30 de março de 2005
EDUCAÇÃO MUSICAL
Caminhos para aprender a ouvir música Partindo da diversidade da cultura brasileira, a Associação Cachuera! quer educar um público sem preconceitos
“S
e você não conhece, venha conhecer, venha colher rosas, ver o sol nascer”. Foi este hino que começou a noite de carnaval com a bateria da Rosas de Ouro, escola de samba de São Paulo, na Associação Cultural Cachuera!. Vestidos de azul, rosa e branco, com estampas de flores douradas, os músicos, acompanhados do casal de mestre-sala e portabandeira, “The Flash” e Flávia, incendiou o público, que não resistiu a ficar sentado, e caiu no samba. Para apresentar o espetáculo, foi chamado o professor Alberto Ikeda, descendente de japoneses e especialista em música popular brasileira. A mistura de raças que o Brasil tem, só poderia resultar nisso: uma vastíssima diversidade cultural que é reflexo e, ao mesmo tempo, compõe os elementos estéticos e a sonoridade da música brasileira. “Devemos ter orgulho da nossa cultura. As escolas de samba são um sinônimo de qualidade artística”, lembra Ikeda. No final da festa, um bom bate-papo com os in-
argumenta.
João Marcelo de Lima
Bel Mercês da Redação
ERUDITO & POPULAR
Integrantes da bateria da escola de samba Rosas de Ouro se apresentam na vertente de música popular brasileira
tegrantes da bateria e especialistas. O assunto, claro, samba, carnaval e o papel essencial de cada integrante e cada instrumento. Assim foi a noite de sábado, 19, a segunda das dezoito que vão compor o projeto Cachuera! de Música. Durante seis meses, a Associação receberá artistas de diferentes
vertentes musicais, com o objetivo de ampliar o leque das audições e aproximar o público dos diversos universos da música brasileira. A bateria da Rosas de Ouro representou apenas um dos três afluentes musicais em que o projeto está divido, o de música popular tradicional brasileira. Os outros
dois são música popular urbana e música erudita. Cada um dos três sábados mensais em que transcorre o evento será destinado a uma modalidade. Além disso, cada mês tem um tema específico. Março é destinado à percussão, abril ao canto coral e maio à canção. Em junho, a música ganha forma (suíte), julho será o mês dos instrumentos de cordas e agosto dos instrumentos de sopro. Paulo Dias, fundador do Cachuera!, e curador do projeto, conta que a iniciativa de colocar as pessoas em contato com os mais variados estilos musicais, educando os ouvidos, é uma maneira de incentivar o público a abandonar os preconceitos estéticos, quase sempre ditados pela segmentação do mercado. “Trata-se de um projeto experimental que encerra uma utopia, a de que todos nós possamos ouvir música livre de preconceitos, independentemente da vontade do mercado de entretenimento. É poder ampliar os horizontes de fruição musical”,
Entenda as três vertentes do projeto TRADICIONAL – A música de tradição oral, transmitida de boca a ouvido há intermitentes gerações, mantida com poucos recursos, por determinados grupos que formam a base da pirâmide social do país. Está sempre associada à expressão corporal e acontece coletivamente. A festa popular é um dos ambientes de sua produção. Não existe para entreter uma platéia, mas reside em um cenário específico de comunidades que conservam na música um efetivo meio de expressão social e, na maioria dos casos, possui elementos espirituais e de
devoção religiosa. POPULAR – Nascida, em muitos casos, nos bairros humildes das grandes cidades brasileiras, fez a ponte entre os terreiros dos negros, mestiços e brancos pobres e a classe média. Os mais variados estilos da MPB resultam da fusão do popular de origem afro-brasileira com o europeu. Bebe das mais variadas fontes, desde a tradição oral até o erudito. Atuam, aqui, tanto os músicos formados na escola da vida, como os que estudaram em renomadas instituições.
ERUDITA – Resultado de ampla estilização, tem seu berço na Europa medieval, num tempo de hierarquização da sociedade, e foi cultivada em palácios e residências nobres. Posteriormente, com a ascensão da burguesia, migrou para os fechados ambientes dos teatros. Adota a escrita como suporte, e caminha na direção de uma arte pura, com altos níveis de abstração. Nos países de Terceiro Mundo, o contato com a música erudita permanece praticamente restrito a determinados grupos.
(*) Fonte: caderno de textos do projeto Cachuera! de Música.
Ele diz que o Cachuera! de Música representa também um pouco de sua trajetória pessoal. “Tive em casa uma formação musical e artística bastante plural. Freqüentei o conservatório e as rodas de samba do meu bairro. Fui como pianista erudito e percussionista de música popular”, conta. E acrescenta: “Descobri que o prazer da música é algo que se aprende, e para cada universo sócio-cultural, ele depende de modos de escuta diferenciados”. A didática dividida em temas, segundo Dias, serve para facilitar a percepção da música e os modos de ouvir peculiares a cada uma das três vertentes. A interação entre público e artista é fundamental na educação musical e, por isso, o evento pretende também preservar os rituais particulares de cada universo: a festa para a música popular tradicional, o show para a popular urbana e o concerto para a erudita. “O mais importante é a pessoa relacionar o que está ouvindo, vendo e vivenciando”, completa. As apresentações serão sempre seguidas de comentários de especialistas e bate-papos com o público. Todos os espetáculos serão registrados e o material de áudio dará origem a uma série de programas de rádio e um CD com 18 faixas, cada qual de uma das apresentações, sintetizando o projeto. Esse CD será distribuído gratuitamente para instituições de ensino e os músicos das comunidades participantes.
Serviço: Associação Cultural Cachuera! – Rua Monte Alegre, 1094, Perdizes, CEP 05014001 São Paulo (SP) – Tel.: (11) 3872-5113 – página na internet: www.cachuera.org.br
Há 17 anos, o etnomusicólogo Paulo Dias e seus alunos do coral da Universidade de São Paulo (USP) começaram a se dedicar à prática e à documentação da música-dança de tradição oral no Brasil. Eles notaram a escassez de registros dessa cultura na região Sudeste, e suas acentuadas marcas ancestrais africanas, e foi nesta lacuna que concentraram seus esforços. Assim nasceu o Grupo Cachuera!, hoje com cerca de 17 integrantes, e que se define como “coletivo de práticas e estudos das tradições populares de música e dança do Sudeste brasileiro, centrado na divulgação de duas vertentes principais desse repertório: os batuques
de terreiro e as congadas”, segundo texto publicado no endereço www.cachuera.org.br.
ACERVO ABERTO Cachuera!, que sugere queda d’água, é uma palavra dita nas rodas de jongo, tradição afro-brasileira pouco conhecida, para se iniciar uma nova música, como um pedido de licença para a expressão. Em 1998, o grupo deu origem à Associação Cultural Cachuera!, entidade não-governamental sem fins lucrativos, com sede no bairro de Perdizes, na cidade de São Paulo. “A partir de então, temos nos dedicado à produção audiovisual, com CDs, filmes e livros
sobre a cultura popular tradicional brasileira. Além disso, nosso espaço tem servido de palco a diferentes comunidades que mantêm tradições de música, dança e teatro”, conta Dias. Uma bela contribuição à preservação do patrimônio cultural brasileiro é o seu vasto acervo, aberto à pesquisa pública, que contém registros de música, dança, teatro, narrativas e depoimentos: são 1.200 horas de som digital, 10.400 fotografias e 700 horas de vídeo, tudo conservado em ambiente específico e climatizado. Além disso, o Cachuera! tem uma discoteca ,uma biblioteca e uma videoteca com cerca de 3.700 títulos. (BM)
Bel Mercês
Uma iniciativa para preservar a cultura nacional
O vasto acervo da Associação Cultural Cachuera! é aberto à pesquisa pública
HOMENAGEM
Viola Minha Viola, 25 anos de música caipira no ar O programa Viola Minha Viola, transmitido pela TV Cultura de São Paulo, acaba de fazer aniversário. No dia 14, comemorou-se, em um especial gravado na Sala São Paulo, Estação Júlio Prestes, 25 anos da música popular brasileira de raiz no ar. A homenageada da noite era outra aniversariante, bastante especial: Inezita Barroso, sua apresentadora, 80 anos, dos quais 73 dedicados ao estudo do violão caipira. A cerimônia também foi marcada pelo reinicio da transmissão do sinal da emissora via antena parabólica, o que ampliará o seu alcance para mais de 17 milhões de pessoas, principalmente no interior do Estado.
Com apresentações de Dominguinhos, Renato Borgethi, Almir Sater e da própria Inezita, acompanha pela Orquestra Paulistana de Viola Caipira, entre outros artistas, o especial levou para dentro de um espaço erudito, a Sala São Paulo, o melhor da música de raiz, numa síntese de todos os anos do programa. O evento incluiu, ainda, entradas ao vivo direto da cidade de Pirapora do Bom Jesus, com o violeiro Asa Branca.
CULTURA DE RAIZ Inezita Barroso, ou Inês Magdalena de Lima, iniciou a sua carreira profissional na década de 50. Hoje, além de violeira, cantora e apresen-
tadora, leciona Folclore Popular e História da Música Popular em duas universidades. Ela é considera uma figura de suma importância para a preservação da cultura caipira no país. Seu programa, com o mesmo formato, está há 25 anos no ar, fato raro em um meio de comunicação que exige inovação instantânea. Segundo o violeiro Ivan Vilela, mestre em composição pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o “Viola Minha Viola” começou em uma época de atrelamento da música às gravadoras, nos anos 80, o que levou ao desaparecimento gradativo da expressão sertaneja pura, então substituída no
mercado por cantores românticos. “O programa nasce para preservar a característica autêntica do violeiro de raiz,” observa. Vilela acredita que, passado o período áureo do sertanejo romântico, houve uma saturação do estilo. “Agora, a música caipira volta a ser resgatada, o próprio mercado está reeditando os clássicos mais antigos. Parece que o brasileiro, que gosta tanto de misturar português com inglês, está gostando de ser brasileiro novamente”, acredita. Ele atribui esta retomada dos valores tradicionais a uma série de fatores. À globalização que, apesar de transpor barreiras, acaba reafirmando culturas locais; à valoriza-
ção de ideais como a ecologia e a diversidade cultural pela sociedade moderna; à desilusão com o sonho da cidade grande. “As pessoas, hoje, querem ir para o campo. A figura do Almir Sater nas novelas contribuiu muito para isso. Elas não vêem mais o caipira como um jeca, mas como um cara bonitão, próximo do seu imaginário,” analisa. (BM)
Serviço: O programa “Viola minha Viola” é transmitido pela TV Cultura de São Paulo, todos os sábados, às 21 horas, com reprise aos domingos, às 9h.