Ano 3 • Número 112
R$ 2,00 São Paulo • De 21 a 27 de abril de 2005
Conquista histórica dos povos indígenas Valter Campanato/ABR
Raposa Serra do Sol é homologada de forma contínua, após 30 anos de conflitos no campo e na Justiça
No Dia do Índio, 19 de abril, povos indígenas vão a Brasília pressionar o governo Lula pela homologação de suas terras e saem vitoriosos
Estimulados pelos chamados da rádio La Luna, cidadãos equatorianos estão nas ruas, em Quito, para exigir a renúncia do presidente Lucio Gutiérrez e de todos os deputados. Protestos tiraram Abdala Bucaram do poder, em 1997, e Jamil Mahuad, em 2000. Gutiérrez chegou a decretar estado de emergência para conter a mobilização, mas recuou depois que os militares desobedeceram suas ordens. Pág. 9
Eleições em Cuba têm 96% de participação
Rodrigo Buendia/AFP/Folha Imagem
Novo levante popular no Equador
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nfim, a terra volta a seus legítimos donos: os povos indígenas. Foram 30 anos de resistência e luta em conflitos que fizeram dezenas de mortos, vítimas da truculência de fazendeiros e de uma morosa batalha judicial. Dia 15, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva finalmente assinou a homologação, de forma contínua, da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O decreto destina 1.743.089 hectares de solo para 164 aldeias. Também foi anunciada a criação de um pólo de desenvolvimento agropecuário e de um pacote de compensações para famílias afetadas pela homologação. Inconformado, o governador de Roraima, Ottomar Pinto, apela para artifícios demagógicos, como decretar luto de sete dias no Estado, enquanto ameaça entrar com uma ação contra a União. A Polícia Federal iniciou uma operação para evitar enfrentamentos, mas lideranças locais temem pela continuidade dos conflitos na área. Pág. 3
Em Cuba, o voto não é obrigatório. No entanto, mais de 96% dos eleitores foram às urnas, dia 17, para escolher seus delegados nas Assembléias Municipais do Poder Popular. Na ilha, o sistema eleitoral tem características próprias, como a possibilidade de revogar o mandato do eleito. Boa parte dos candidatos, por exemplo, são definidos em reuniões públicas realizadas nos bairros das cidades. Pág. 10
O déficit da Previdência é uma invenção
Nações Unidas, o mais novo alvo do império
Nos postos do INSS, longas filas. Falta pessoal, o atendimento é ruim. Mas cresce a campanha para jogar em cima de pensionistas e aposentados a culpa pelo rombo do setor público e, em Brasília, trata-se de desmontar a Previdência e o sistema de Seguridade Social. O caminho: o dinheiro é desviado ilegalmente para pagar juros da dívida. Nos últimos cinco anos, foram mais de R$ 165 bilhões. Pág. 7
O presidente estadunidense, George W. Bush, inicia campanha para orientar as reformas da Organização das Nações Unidas (ONU), previstas para setembro. Na pauta, a política da instituição para a segurança mundial, principalmente a luta contra o terrorismo, base da doutrina bélica do governo dos Estados Unidos. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, deve decidir: render-se de vez ao império ou resistir? Pág. 13
“Que saiam todos!” é a palavra de ordem dos movimentos sociais, partidos de oposição e cidadãos comuns do Equador
CPT mostra conflito rural recorde em 2004
Um controverso projeto para a região amazônica
Pág. 5
O governo tem pressa em conceder 13 milhões de hectares da Amazônia, por até 60 anos, para exploração por empresas locais e transnacionais. O projeto, apoiado pelo governo, é rechaçado, entre outros, pelo geógrafo Aziz Ab’Saber. Para os críticos, a iniciativa vai internacionalizar a Amazônia a curto prazo. Para o governo, porém, vai garantir a soberania da região, reduzir o desmatamento desenfreado, gerar emprego e renda. Pág. 8
Papa Bento XVI: Igreja fica mais conservadora Pág. 11
Na Itália, a farsa política de Berlusconi Pág. 11
E mais: MORADIA — O relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para Moradia Adequada, Miloon Kothari, avalia o quadro dramático da população brasileira. Pág. 6 CULTURA — Músicos de todo o país se mobilizam por políticas públicas e criam a Câmara Setorial de Música em parceria com o Ministério da Cultura. Pág. 16
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NOSSA OPINIÃO
CONSELHO POLÍTICO
Direito à moradia, já
Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
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LUTA PELA PAZ Sou de Brasília e acho interessante relatar sobre um movimento, a Campanha União Pela Paz, inédito no Brasil, e que vem sendo perseguido por pessoas do Estado, por não quererem a sua evidência. Por que será? Eu e outros simpatizantes do movimento gos-
vários níveis de governo – foram minguando. O déficit habitacional aumentou na mesma proporção do avanço das políticas neoliberais; a oferta de moradias para a população de baixa renda diminuiu no sentido inverso da demanda; o poder público lavou as mãos e deixou o assunto entregue ao jogo do mercado. Em países socialmente mais desenvolvidos, mesmo quando não são potências econômicas, o problema da moradia costuma ser enfrentado com prioridade; é raro encontrar – em muitos países europeus, principalmente – famílias vivendo nas ruas ou em barracos de favelas. O direito à moradia costuma ser tratado no mesmo nível dos direitos à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho e a viver com segurança e dignidade. É assustador verificar como a questão da moradia tem sido relegada ao abandono completo; não há projeto e nem iniciativa, não há mobilização dos setores públicos; o país contempla, anestesiado, os sem-casa, os favelados, os acampados – como se essas condições fossem a coisa mais natural do mundo, e não que estivessem a
exigir uma ação política imediata. Ainda mais quando se sabe que os programas habitacionais costumam dinamizar a economia e gerar emprego para a população de menor renda. A gravidade da situação exige sair da apatia e do comodismo; é urgente carrear recursos públicos para reduzir o déficit habitacional, abrindo espaço para o direito inalienável à moradia digna. Falta determinação política. E, mais grave ainda, os governos estaduais e municipais têm sistematicamente reprimido os moradores de rua, os que ocupam prédios e terrenos abandonados e os movimentos populares do campo e da cidade. Igualmente, na ótica das classes dominantes, que dão sustentação ao modelo neoliberal, é mais urgente e preferível pagar bilhões de dólares de juros para os banqueiros do que investir em moradia para os brasileiros. Os movimentos de sem-teto e sem-terra precisam unir forças, mobilizar, fazer pressão, fazer chegar aos palácios dos governos os gritos das ruas. O que se quer é o direito à moradia digna para todos.
FALA ZÉ
OHI
CRÔNICA
“Os seus não o receberam”
CARTAS AOS LEITORES TRANSGÊNICOS ROTULADOS Todos nós sabemos das pressões que o governo e os grupos econômicos norte-americanos exercem sobre os governos do mundo, a ponto de levá-los a ignorar os mais elementares direitos dos seus respectivos cidadãos. Esta surpreendente vitória do lobby pós-soja transgênica, a ponto de começar a solapar a grande vantagem competitiva que a nossa soja tem nos mercados do mundo por ser natural, não deve cegar o nosso governo do fato de que o nosso povo, do mesmo modo que o povo europeu tem o direito de saber o que está ingerindo. Não temos que ingerir as rações que, por quaisquer razões que sejam, os lobbies norte-americanos queiram nos impor. Exigimos que os alimentos transgênicos sejam devidamente rotulados. Antônio Rodrigues de Souza São Paulo (SP)
Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que o déficit habitacional no Brasil é superior a 7 milhões de moradias. Falta casa para gente que mora em favela, palafita, acampamento e debaixo dos viadutos nos principais centros urbanos. Falta casa para as famílias que foram expulsas da terra pela concentração fundiária e que não tiveram a oportunidade de uma qualificação profissional em outra atividade. Vive precariamente – sem moradia digna – a população desempregada e subempregada, os 50 milhões de brasileiros que estão abaixo da linha da pobreza, com remuneração inferior a dois dólares por dia. Vivem precariamente os milhões de trabalhadores que ganham o saláriomínimo de R$ 260 e que consomem toda a sua remuneração em alimentação e transporte, e que formam os cinturões de favelados em torno dos centros industriais mais ricos do país. Na medida em que as elites brasileiras foram privatizando o Estado, transferindo recursos públicos para os seus negócios particulares, os programas habitacionais – nos
taríamos que a campanha fosse para frente, pois corresponde aos ideais que há muito tempo desejamos em relação à segurança pública. Alexandra Irineu Brasília (DF) SUGESTÃO Soube que há uma missão da Unesco em Dili, Timor Leste, para restauração da língua portuguesa. Que tal uma matéria sobre educação e reconstrução da língua? Maria da Gloria Bomfim Yung por correio eletrônico
ERRATA Na matéria “Bush indica um ideólogo da guerra” (ed. 108), sobre a candidatura de Paul Wolfowitz a presidente do Banco Mundial (Bird), Magnólia Said, da entidade Rede Brasil, não defende uma visão reformadora do Bird, como parece ter sugerido a matéria. Segundo ela, quanto mais governos democráticos houver no mundo, mais provável será a atuação do Bird de acordo com o objetivo que lhe deu origem, ou seja, contribuir para o desenvolvimento dos países membros, incluindo o Brasil.
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Leonardo Boff Cardeais da Igreja Católica vieram de todas as partes do mundo, cada qual carregando as angústicas e as esperanças de seus povos, alguns martirizados pela Aids e outros atormentados pela fome e pela guerra. Chegaram à sede de Pedro para elegerem um novo papa. Conforme o rito, entraram na aula conciliar para juntos rezarem e discutirem o estado da Terra e da Igreja e considerarem, à luz do Espírito de Deus, qual deles seria mais apto para cumprir a dificil missão de “confirmar os irmãos e as irmãs na fé”, mandato que o Senhor conferira a Pedro e a seus sucessores. Enquanto lá estavam, fechados e isolados do mundo, eis que apareceu um senhor que parecia um semita. Alto e imponente, rosto alongado, olhos penetrantes, misto de vigor e ternura, pele bronzeada, cabelos longos e barba solta, vestes esvoaçantes parecendo um beduino. Veio à porta da Capela Sistina e disse a um dos guardas suiços: “Peço licença para entrar pois tenho que falar urgentemente com os meus representantes, os cardeais”. O guarda o olhou de cima para baixo e não acreditando no que ouvira, pediu, perplexo, que repetisse o que dissera. E ele repetiu calmamente: “Tenho algo de muito importante
a dizer a meus representantes, por isso, peço para entrar”. O guarda com certo desdém lhe disse: “Aqui entram somente cardeais e ninguém mais, por importante que seja a pessoa”. Mas esta figura enigmática insistiu com voz convincente e sem qualquer arrogância: “Mas eles são meus representantes e tenho direito de estar com eles”. O guarda, com razão, pensou estar diante de um paranóico destes que se apresentam como César ou Napoleão. Chamou o chefe da guarda que tudo ouvira. Este o agarrou pelos ombros e lhe disse com voz alterada: “Aqui não é um hospital psiquiátrico. Só um louco imagina que os cardeais são seus representantes”. Mandou que o entregassem ao chefe de polícia de Roma. Lá ouviu o mesmo pedido: “Preciso falar urgentemente com meus representantes, os cardeais”. O chefe de polícia nem se deu ao trabalho de ouvir direito. Com um simples gesto determinou que fosse retirado. Dois fortes policiais o jogaram numa cela escura. De lá de dentro continuava a gritar. Como ninguém o fizesse calar, deram-lhe murros na boca e muitos socos. Mas ele, sangrando, continuava a gritar: “Preciso falar com meus representantes, os cardeais”. Até que
irrompeu cela adentro um soldado enorme que começou a golpeá-lo sem parar até que caisse desmaiado. Depois amarrou-lhe os braços com um pano e o dependurou em dois ganchos que havia na parede. Parecia um crucificado. E não se ouviu mais gritar: “Preciso falar com meus representantes, os cardeais”. Ocorre que este estranho personagem não era cardeal, nem patriarca, nem metropolita, nem arcebispo, nem bispo, nem padre, nem batizado, nem cristão. Por isso, jamais poderia entrar na Capela Sistina. Era um homem, um judeu. Tinha uma mensagem que poderia salvar a Igreja e toda a humanidade. Mas ninguém quis ouvi-lo. Seu nome é Jeshua. Qualquer semelhança com Jesus de Nazaré, de quem os cardeais se dizem representantes, não é mera coincidência mas a pura verdade. “Veio para os seus, e os seus não o receberam” observou tristemente um seu evangelista. Leonardo Boff é teólogo, professor universitário e também autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos
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NACIONAL RAPOSA SERRA DO SOL
Brasil repara dívida com indígenas André Vasconcelos e Ana Marques de Boa Vista (RR)
Arquivo CIR
Povos comemoram homologação de suas terras, a despeito de protestos do governador de Roraima
A história da luta por um direito secular
A
A terra indígena Raposa Serra do Sol fica a noroeste de Roraima, na fronteira com a Guiana e a Venezuela. Tem 1,67 milhão de hectares e é habitada por aproximadamente 15 mil índios. Veja, abaixo, a cronologia do processo de sua demarcação.
Lideranças de Raposa Serra do Sol comemoram homologação, de forma contínua, de terras indígenas
ca que, por intermédio da Diocese de Roraima, sempre manteve seu irrestrito e incondicional apoio aos direitos dos povos indígenas no Estado, especialmente nas figuras de dom Aldo Mongiano e dom Aparecido José Dias”.
ção e ficarão por tempo indeterminado nas áreas consideradas conflitantes. A Aeronáutica e o Exército brasileiro também participam da operação, dando apoio logístico no que se refere à comunicação, transporte, equipamentos e mantimentos.
TENSÃO E PROTESTOS CRÍTICAS A LULA
Em Boa Vista, as manifestações contra a homologação começaram logo depois de assinado o decreto. Produtores de arroz e políticos ocuparam emissoras de rádio para chamar a população para uma manifestação na praça central da cidade. Participaram do protesto algumas dezenas de pessoas, inclusive índios contrários à homologação. Apesar de todo o esforço, a adesão popular foi mínima. Espera-se uma grande manifestação no Estado para os próximos dias, especialmente depois que o governador Ottomar Pinto deflagrou campanha aberta contra a homologação, garantindo que vai entrar com uma ação contra a União para tentar tornar nulos os efeitos da portaria nº 534. Os líderes indígenas temem que ocorram ataques às aldeias, como os de novembro de 2004, quando 37 malocas foram destruídas. A polícia foi acionada para evitar possíveis conflitos. Upatakon – que significa “nossa terra”, na língua Macuxi – é o nome da operação que reúne mais de uma centena de policiais federais e rodoviários federais numa força-tarefa organizada pelo Planalto, para garantir a segurança. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, acredita que não deverá haver conflitos. “A operação Upatakon visa garantir que não haja nenhum distúrbio, nenhuma provocação, e eu acredito que não vai haver”, disse. De acordo com o delegado Francisco Malmann, os policiais vão fazer um trabalho de preven-
Demora da homologação de Raposa Serra do Sol acirrou conflito na região
federação em termos econômicos e populacionais. O presidente da Associação dos Arrozeiros, Luiz Afonso Faccio disse que o ato do presidente Lula representa um abuso do poder central. “Ele decidiu contra a vontade da sociedade e de grande parte dos indígenas daquela região”, defende o arrozeiro. Ainda na reunião com o governador, a bancada federal de Roraima prometeu votar contra o governo nas duas casas do Congresso. Ao tomar conhecimento de que Ottomar Pinto pretende propor ação contra o decreto de homologação, o Ministério da Justiça convocou o governador e a bancada parlamentar para uma reunião. “Queremos o entendimento. O governador é meu amigo, eu o conheço há muitos anos. Acreditamos que possamos trabalhar em parceria”, diz o ministro Márcio Thomaz Bastos.
Valter Campanato/ABR
O presidente da Assembléia Legislativa de Roraima, deputado Mecias de Jesus, não economizou críticas ao ministro da Justiça e ao presidente Lula. “Eles tiveram uma atitude covarde, traiçoeira e entreguista”. A Assembléia aprovou uma moção de repúdio contra o dois. Os representantes das entidades classistas demonstraram preocupação com o futuro econômico do Estado e creditaram ao governo federal a responsabilidade pela estagnação econômica do menor Estado da
1917 – O governo do Amazonas edita lei destinando terras para ocupação e usufruto dos índios Macuxi e Jaricuna. 1919 – O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) inicia a demarcação física da área, mas o trabalho não é finalizado. 1977 – A Fundação Nacional do Índio (Funai) institui um Grupo de Trabalho (GT) Interministerial para identificar os limites da terra indígena, mas nenhum relatório conclusivo é apresentado. 1979 – Novo GT propõe uma demarcação provisória de 1,34 milhão de hectares. 1984 – Mais um GT identifica cinco áreas contíguas, totalizando 1,57 milhão de hectares. 1988 – Outro GT realiza levantamento fundiário e cartorial sem chegar a qualquer conclusão sobre o tamanho da área. 1993 – Pareceres de novos GTs, em caráter conclusivo, são publicados no Diário Oficial da União, propondo ao Ministério da Justiça o reconhecimento da extensão contínua de 1,67 milhão de hectares.
Meta do governo é homologar mais cem áreas até 2006
Presidente Lula homologa mais seis terras indígenas da Redação
Arquivo CIR
pós 30 anos de luta, união e organização, os índios Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepang e Patamona respiram mais aliviados. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou, dia 15, o decreto que homologa de forma contínua a área Raposa Serra do Sol, em Roraima. A medida, que deveria acabar com os conflitos entre índios, fazendeiros, plantadores de arroz e garimpeiros na região, causou a ira do governador de Roraima, Ottomar Pinto (PTB), que decretou luto oficial por uma semana e disse que vai entrar com uma ação contra a União para tentar tornar nulos os efeitos da portaria nº 534, do Ministério da Justiça, que culminou com a assinatura do decreto de homologação das terras. O coordenador do Conselho Indígena de Roraima, Marinaldo Macuxi, considera que a homologação, mesmo não atendendo todas reivindicações dos 16.684 indígenas da região, foi uma grande vitória: “Vamos viver com mais dignidade na terra que é nossa”, destacou. O decreto garante 1.743.089 hectares para 164 aldeias e determina também que ficam excluídas da área a sede do município de Uiramutã, o 6º Pelotão Especial de Fronteira, as linhas de transmissão de energia elétrica e os leitos das rodovias públicas federais e estaduais. Um pacote de compensações também foi anunciado. O governo federal vai destinar 150 mil hectares da União para a implantação de três pólos de desenvolvimento agropecuário; regulamentar 10 mil propriedades familiares, identificar e cadastrar todas as famílias afetadas pela homologação que se enquadrem nos pré-requisitos do Programa Nacional de Reforma Agrária e instalá-las em projetos de assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e concluir o levantamento, a avaliação e a indenização das benfeitorias identificadas na reserva. O decreto estabelece o prazo de um ano para indenizar e retirar os ocupantes da reserva. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em nota oficial, destacou os esforços do presidente do Incra, Rolf Hackbart, e do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, “sem os quais as medidas administrativas que viabilizarão o reassentamento dos ocupantes não-índios da terra indígena não seriam efetivadas, com respeito aos princípios e normas que orientam a administração pública”. No mesmo comunicado, o Cimi lembrou que “a demora para a homologação de Raposa Serra do Sol contribuiu para o recrudescimento das pressões e reações contra a homologação, contra os povos indígenas, contra o Conselho Indígena de Roraima e seus aliados no governo federal e na sociedade. As reações atingiram também a Igreja Católi-
Em comemoração ao Dia do Índio, 19 de abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou mais seis terras de oito etnias indígenas, no Amazonas, no Maranhão, no Pará, em Roraima e no Tocantins. No total, as terras somam 600 mil hectares, segundo o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes. A maior reserva é a de Inãwébohona, com 377 mil hectares, em Tocantins, onde vivem 97 índios Avá-Canoeiro – povo em extinção –, Javaé e Karajá. A reserva Awá (Maranhão) abriga 198 índios Guajá. São duas terras no Amazonas: São Sebastião, de 61 mil hectares, com 224 índios Kaixana e Kokáma; e Espírito Santo, de 33 mil hectares, com 121 índios Kokáma. Os 302 índios Ma-
cuxi e Wapixana receberam a reserva Tabalascada, em Roraima, de 13 mil hectares. Na Maranduba, vivem 31 índios Karajá, em 375 hectares, na divisa do Pará com Tocantins. Com isso, sobe para 55 o número de reservas homologadas durante o governo Lula. Segundo o presidente da Funai, a meta é homologar cem terras até o final de 2006. “Um recorde”, ressaltou Gomes. Ele disse que atualmente vivem no Brasil 440 mil índios, de 220 etnias, que falam 170 línguas. A Funai reconhece 604 terras indígenas, das quais 481 já foram homologadas ou estão em processo de demarcação. Na cerimônia de homologação, foram homenageados 30 caciques e sábios de diversas etnias. Esteve presente, além do presidente da Funai, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
1996 – O presidente Fernando Henrique Cardoso assina decreto possibilitando contestação por parte dos atingidos. São apresentadas 46 contestações. O ministro da Justiça, Nelson Jobim, assina o Despacho 80, rejeitando os pedidos de contestação, mas propondo uma redução de cerca de 300 mil hectares da área. 1998 – O ministro da Justiça, Renan Calheiros, assina despacho revogando o Despacho 80/96, assim como a Portaria 820/98, que declara a terra indígena Raposa Serra do Sol posse permanente dos povos indígenas e dá início à demarcação pela Funai. 1999 – O governo de Roraima impetra mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ), com pedido de anulação da Portaria 820/98. 1999 – Concedida liminar parcial ao mandado de segurança do governo de Roraima. 2002 – Superior Tribunal de Justiça nega pedido do mandado de segurança impetrado por Roraima e revoga liminar parcial, abrindo espaço para a homologação. 2005 – Dia 15 de abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologa a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol
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Espelho Luiz Antonio Magalhães Cobertura intensa... Os meios de comunicação brasileiros até que torceram bastante, mas não foi desta vez que o Terceiro Mundo conseguiu ser representado no comando da Igreja Católica. Foi só a fumaça branca aparecer e o óbvio ocorreu: Bento XVI, ou Joseph Ratzinger, é o novo papa. Desde a morte de João Paulo II, a imprensa local vem realizando uma ampla cobertura dos acontecimentos na Igreja. Apesar dos inevitáveis deslizes que aparecem em qualquer evento de cobertura muito intensa, a imprensa brasileira até que não fez feio. Produziu bons perfis dos principais “papáveis”, ouviu os principais teólogos brasileiros, reproduziu as opiniões dos “vaticanólogos”, descreveu a contento o processo de sucessão e enviou bons profissionais para Roma. ...sem o essencial Em Roma, os limites da imprensa brasileira foram os mesmos da mídia de todo o planeta. Quando a porta se fechou e começou o Conclave que escolheu Ratzinger, todos os veículos ficaram na mesma situação: de olho na chaminé, à espera da fumaça branca. O maior problema da cobertura local foi, ao lado da torcida pelos papáveis brasileiros, uma certa complacência com o conservadorismo de João Paulo II. Evidentemente, na comparação com Ratzinger, o falecido papa pode até passar a ser visto como um moderado, tal o grau do fundamentalismo católico do recém-empossado Bento XVI. Mas, verdade seja dita, o papa polonês foi, sim, conservador, tanto na doutrina como no sentido político que imprimiu ao seu pontificado. Poucos jornais ressaltaram esse aspecto. Mais complacências Os jornais paulistas adoram o prefeito José Serra (PSDB). Na semana passada, um dos diários denunciou que um secretário de Serra é sócio de uma empresa que havia sido desclassificada em uma licitação para a construção de uma ponte na capital, ainda durante a gestão de Marta Suplicy (PT). Pois foi só o tucano chegar ao poder que a desclassificação da empresa foi revista e o secretário emplacou a obra. Tivessem os fatos ocorrido na gestão Marta, com um secretário dela, o assunto certamente seria manchete do jornal e permaneceria nas primeiras páginas até pelo menos a renúncia do secretário. Como o prefeito é o tucano Serra, o assunto nem chega à primeira página e some do noticiário no dia seguinte. Na verdade, o jornal praticamente se envergonha de dar tal notícia. Crises e crises Os jornalões são engraçados. Quando as correntes internas do PT lançam candidatos para disputar a presidência do partido — em eleição prevista no Estatuto e já tradicional —, os colunistas correm para avisar que há uma séria crise na agremiação e que os postulantes estão “desafiando o Planalto”. Quando, no entanto, o PSDB bate cabeça para escolher o seu candidato a presidente, ou mesmo para acertar o sucessor de Serra na presidência da legenda (até agora, Eduardo Azeredo é interino no cargo), aí, então, não há crise alguma. É só um pequeno desacerto na cúpula. Lugar de índio Muito fraca a cobertura da mídia sobre a histórica demarcação da reserva indígena de Raposa Serra do Sol. Há uma grande história para ser contada: o governador do Estado de Roraima já avisou que irá a Justiça contra a demarcação; o ministro da Justiça mandou a Polícia Federal para a região, a fim de garantir a segurança; há, inclusive, índios que são contrários à medida do governo Lula. Por outro lado, a demarcação foi considerada por entidades indigenistas um verdadeiro marco histórico. Alguém precisa explicar direito o que está acontecendo. E certamente não será a grande imprensa, acostumada a tratar como marginal as questões indígenas.
VIOLÊNCIA URBANA
Cariocas na rua contra genocídio Ativistas e familiares de mortos pedem fim da impunidade Bruno Zornitta do Rio de Janeiro (RJ)
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ara lembrar o genocídio constante de que é vítima a população brasileira, centenas de pessoas saíram às ruas, dia 15, no Centro do Rio de Janeiro. Programada para acontecer em abril, mês marcado por vários casos de assasinatos em massa, a Marcha Contra a Violência do Estado e das Elites partiu da Igreja da Candelária, desceu a Avenida Rio Branco e terminou em frente ao Fórum. A manifestação foi organizada pela Rede de Comunidades e pelos movimentos Contra a Violência, Posso Me Identificar e Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Participaram também representantes dos setores sindical, estudantil, do movimento de mulheres e de partidos políticos, que gritavam frases como “Chega de chacina, polícia assassina” e “A polícia mata o pobre, o Estado vem e encobre”. Marta Dailer, mãe de um dos quatro rapazes assassinados pela polícia na comunidade do Borel, dia 16 de abril de 2003, acredita que esse caso só ganhou repercussão porque seu filho tinha passaporte suiço: “Eu acredito que a elite só vai abrir os olhos para essa situação quando acontecer uma chacina dessas em
Nestor Cozetti
da mídia
NACIONAL
Comunidades da periferia cobram investigação a fundo e fim da impunidade
um grande condomínio de ricos”. Abril também foi o mês em que 21 trabalhadores rurais sem-terra foram mortos, em Eldorado dos Carajás, no Pará. O massacre completou nove anos dia 17. “Lamentamos a inoperância dos poderes constituídos, principalmente do judiciário, por não terem julgado e condenado os assassinos. Nos preocupa muito
a impunidade, porque é justamente o que permite que cada vez mais trabalhadores, tanto do campo, como da cidade, sejam assassinados e nada aconteça”, declarou Valquimar Reis, da coordenação nacional do MST. Também estiveram presentes parentes de vítimas da chacina de Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense, que deixou 30 mortos.
Diego Couto, de 20 anos, perdeu o primo Rafael Couto, de 17 anos. Rafael foi assassinado por policiais em 31 de março deste ano, quando voltava para casa de bicicleta. “As chacinas continuam acontecendo por conta da demora da Justiça em solucionar esses casos”, desabafou Couto, emocionado. Para Maurício Campos, ativista da Frente de Luta Popular, a apuração da chacina da Baixada segue o mesmo caminho da investigação do massacre de Vigário Geral, ocorrido em 1993. Segundo ele, em caso de grande repercussão, alguns policiais são rapidamente presos e o inquérito é feito o mais rápido possível a fim de parar logo as investigações. Dessa forma, a investigação não vai adiante, não atinge os grupos que estão por trás das chacinas. “Isso é feito para dar uma satisfação para a sociedade, e não mexer na estrutura fundamental do extermínio”, afirmou. “A desigualdade, a concentração de renda, a manutenção do aparato repressivo que foi montado ao longo desse século, em particular durante a ditadura militar, hoje se refletem nessa violência sistemática e na corrupção policial”, explicou Campos, para quem a violência praticada contra os pobres é um problema estrutural da sociedade brasileira.
ENTREVISTA
Sem credibilidade, mídia perde vendas Gissela Mate de São Paulo (SP) As vendas dos três maiores jornais diários do Brasil – Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo – dão sinais de desgaste desde 1995. Enquanto isso, os lucros aumentam a cada ano, segundo pesquisa elaborada pela revista de publicidade Meio & Mensagem. Na opinião da professora Maria Aparecida de Aquino, essa queda na circulação dos grandes periódicos não pode ser explicada apenas pela crise financeira, pelo preço dos exemplares ou pela conjuntura econômica. Pesquisadora do regime militar de 1964, a professora de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) analisa a crise que afeta a credibilidade – e as vendas – da mídia. Brasil de Fato – A Folha de S. Paulo chegou a vender 606 mil exemplares/dia, em 1995. Hoje, vende cerca de 308 mil/dia, mas tem faturamento maior. A publicidade manda nos jornais? Maria Aparecida de Aquino – Acho que mandar, a publicidade sempre mandou. O que acontece agora é que os jornais estão vendendo mais espaço para anunciantes para sair um pouco do seu déficit. Não é o aumento da publicidade que explica a queda das vendas porque a publicidade sempre foi muito forte. Certa época, a Folha fazia aquela propaganda “de rabo preso só com o leitor”. Isso não existe. Hoje vende-se mais espaço aos anunciantes para tentar saudar as dívidas, drama comum a todas as empresas de comunicação. BF – Como fica a credibilidade do jornal diante dessa invasão da publicidade? Maria Aparecida – A perda da credibilidade pode explicar a queda nas vendas. Aliás, é a razão mais importante. Assusta, por exemplo, que um jornal como O Estado de São Paulo, que já foi o maior do país, tenha caído tanto – uma pesquisa da Associação Nacional dos Jornais conclui que as vendas do Estadão, entre 1995 e 2004, diminuíram 39,4%. Na
época áurea do Estadão, ninguém conseguia bater suas vendas ou prestígio. Os altos índices foram mantidos até 1960, década em que o jornal fez uma escolha que lhe custou caro: conspirar ao lado do regime militar, mostrando a face conservadora que sempre teve. Até hoje o Estadão paga o ônus de ter feito essa escolha. Anos depois da instalação do regime, quando o jornal foi censurado, não conseguiu encontrar defensores. O jornal gostaria de ter sido visto como vítima da censura, mas suas escolhas não permitem que ele tenha essa imagem. Isso tudo pesa na perda de credibilidade. Os jornais falam em nome da opinião pública e dizem “nós”, como se falassem em nome do povo. Mas o povo do Brasil não desejava nada parecido com o golpe militar ou com a repressão que veio depois. BF – E a Folha de S. Paulo? Maria Aparecida – A Folha chegou a fazer algumas escolhas acertadas durante o regime militar. Exatamente quando se desenhava a transição para a democracia, ela esteve ao lado do povo. Lembro que, em 1984, quando eu era professora da rede pública, a Folha chegou a colocar fotos das greves na capa. Mas aquilo era o “máximo” que o perfil de empresário dos donos da Folha conseguiram fazer. De 1984 em diante, as escolhas não levaram em conta a população. E isso faz perder a credibilidade. A Folha levou o bastião das Diretas Já e depois adquiriu posturas extremamente antidemocráticas. BF – O rabo preso que a Folha diz só ter com o leitor, parece que tem também com os bancos. O que sobra disso tudo? Maria Aparecida – Estamos num período muito ruim da imprensa. Olhando de perto, dá impressão que não sobra nada. Os jornais trazem um “mesmismo” impressionante. Cobre-se sempre a mesma coisa. Vão buscar as notícias sempre nos mesmos lugares. No Palácio do Planalto, no Senado, na Câmara... Onde está o espaço para o homem comum falar? O inusitado não está presente no jornal. É tudo
sempre igual. Mas o Brasil já teve experiências diferentes. A imprensa alternativa, que surgiu na década de 60 e durou até a década de 80, era, de fato, uma alternativa. O jornal Movimento, por exemplo, funcionava por cotas. Era um espaço de debate e de pluralidade. Os jornalistas compravam partes do jornal e havia muita briga nas redações. É isso que falta hoje: multiplicidade de opinião. Enquanto tivermos apenas as grandes agências de notícia ditando o que se deve falar, não dá. Não é disso que precisamos, isso não é jornal. As grandes agências não podem dominar a ponto de não permitir a especificidade de um jornal. O mundo dos conglomerados precisa dar espaço aos menores. O Movimento tinha uma coluna para entender como viviam as pessoas comuns. Fazia perfil do cidadão que nunca é atingido. Os jornais precisam continuar a fazer isso, mostrando o homem comum para o homem comum. BF – Algumas análises apontam que a mídia virou o espaço da direita e do conservadorismo diante da vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da possibilidade de um governo mais alinhado à esquerda. Maria Aparecida – O conservadorismo é muito complicado. Se você analisar, por exemplo, como a imprensa tratou o João Goulart, é assustador. Ele foi vendido como fraco, como homem que não toma posições, comprado pelo Partido Comunista. Nada disso era real. João Goulart foi simplesmente um proprietário de terras, um latifundiário do Rio Grande do Sul. No entanto, foi um homem com um ponto de vista social mais avançado. Foi sensível aos problemas sociais. Tinha defeitos enormes, sim, mas estava legitimamente colocado em seu papel de presidente. A imprensa foi dilapidadora. De um conservadorismo atroz. O jornal carioca Correio da Manhã, por exemplo, teve dois grandes editoriais famosos com relação ao caso João Goulart: “Basta” e “Fora”, isso nas vésperas do golpe. Quando o jornal viu a loucura que iria se instalar com os militares, começou
Eduardo Knapp/ Folha Imagem
Quem é Maria Aparecida de Aquino é professora do departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Estuda a relação do regime militar com a imprensa por meio de materiais censurados durante o período mais duro do regime (1964-1979). Hoje, conclui análise dos processos abertos contra jornalistas durante o período: ao todo, 160 profissionais foram censurados e tidos como criminosos de acordo com a Lei de Segurança Nacional. a abrir espaço para críticas, mas logo foi fechado pelo golpe. Guardadas as proporções, não há muita diferença entre o que falavam ontem e o que se fala hoje. Hoje, a Veja mete o pau no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)... Mudaram os nomes, mas é exatamente a mesma coisa. BF – Existem algumas tentativas na Europa de fazer um diálogo aberto entre leitores e sociedade para se pensar um novo jornal. Isso seria viável no Brasil? Maria Aparecida – Sim. É preciso manter pesquisas de opinião, formar um conselho de composição diversa. É preciso um conselho consultivo amplo, ligado à pesquisas de opinião. Isso oxigenaria a crise. Os conglomerados acharam que precisavam destruir um ao outro para chegar ao ponto que chegaram. Pois bem, chegaram ao topo. E daí? Como pode-se ousar falar em “opinião pública”? Esse “nós” é em nome das empresas e dos anunciantes. A opinião pública tem se mostrado pouco.
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NACIONAL QUESTÃO AGRÁRIA
Violência no campo bate recorde Dafne Melo da Redação
importância para dar visibilidade aos conflitos contra trabalhadores rurais brasileiros”.
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ançado no dia 19, o Caderno de Conflitos Brasil, uma publicação anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), mostra que, apesar da redução do número de assassinatos, a violência contra os trabalhadores rurais é a maior desde 1985, ano em que a entidade iniciou a catalogação destes números. Entre 2003 e 2004, os assassinatos recuaram de 73 registros para 39. Mas, nesse mesmo período, os conflitos no campo subiram de 1690 para 1801 ocorrências (entram nesse tipo de estatística o número de mortes, tentativas de homicídio, ameaças de morte, prisões, agressões, torturas). “O relatório mostra a cara do Brasil. É um livro de denúncias de fatos reais e concretos que informam o governo federal e a sociedade brasileira da situação daqueles que denunciam a violência praticada no campo”, avalia Joaquim Bernardo Pereira, dirigente nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), atingido pela barragem de Candonga, em Minas Gerais, no Vale do Alto Rio Doce. O advogado Darci Frigo, da ONG Terra de Direitos, acredita que “o Caderno é o trabalho produzido pela sociedade civil de maior
CRIMINALIZAÇÃO Frigo considera positiva a diminuição do número de mortes, e espera que essa diminuição seja constante nos próximos anos. Entretanto, destaca que esse dado pode apontar para o aumento de outras formas de repressão. “Nos últimos anos, houve um deslocamento do eixo dos conflitos da esfera do social para a do Judiciário”, diz. Os números confirmam essa hipótese. De 2002 para 2003, o número de prisões subiu de 187 para 449. Em 2004, esse número foi de 421. Para o advogado, um fato preocupante é que o próprio Estado passa a ser um dos agentes desse deslocamento, contribuindo para a criminalização dos movimentos sociais. Nesta tarefa, o judiciário tem papel ativo.“A parcela majoritária do Judiciário defende, acima de tudo, a propriedade, direito que para eles está acima dos direitos humanos, do direito à vida”, completa. Romario Rossetto, da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) no Pará, acrescenta que a ação do Judiciário contribui também para a impunidade que “tornou-se rotina
no país”. “Os fazendeiros armam milícias para assassinar o povo brasileiro e o Judiciário apóia os assassinos, soltando, por exemplo, o (Adriano) Chafik, em Minas Gerais”, diz o coordenador do MPA. Rossetto exemplifica a violência cotidiana no campo, citando o caso de outro coordenador do movimento, o agricultor Saul de Oliveira, que já recebeu ameaças por telefone: “Ou você pára com isso ou vamos te mandar num paletó de madeira para o Rio Grande do Sul”. As ameaças, segundo o dirigente, vêm sobretudo das transnacionais que plantam eucaliptos na região. Outro dado que aponta para o aumento de conflitos é a presença do agronegócio, disputando terras que seriam destinadas à reforma agrária. Darci Frigo aponta que a região onde, em dados relativos, há mais violência é a CentroOeste – fortemente concentrada pelo modelo do agronegócio. “A causa mais profunda que explica a violência no campo é a lentidão da distribuição de terras e de renda no país. Uma forte diminuição da violência no campo só irá ocorrer com a efetivação das políticas públicas que coloquem em prática os direitos humanos no campo, com a realização da reforma agrária”, acredita o advogado. (Colaborou Marcelo Netto Rodrigues)
Lindomar Cruz/ABR
Número de conflitos agrários é o maior em 20 anos, aponta relatório anual da Comissão Pastoral da Terra
Dom Tomás Balduíno na apresentação do relatório sobre a violência no campo
Depois do assassinato da missionária estadunidense Dorothy Stang, em Anapu, oeste do Pará, a mídia vem progressivamente deixando de lado o assunto. Evitar que as pessoas se esqueçam do contexto de violência e impunidade que permite que crimes como esse ocorram – e levar essa discussão à universidade – foram os objetivos do “Ato em repúdio aos assassinatos de Anapu”, organizado dia 6 pelas associações de professores e funcionários da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) — a Apropuc e a Afapuc. Para o evento, foram convidados dois personagens que conviveram e lutaram com a irmã Dorothy por anos: o padre José Amaro Lopes de Souza, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Pará, e Gabriel Domingos do Nascimento, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anapu. Ambos estão na lista de ameaçados de morte da região e, em entrevista ao Brasil de Fato, fazem comentários sobre o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) que tanto incomodou os poderosos latifundiários da região. Brasil de Fato – Como funciona o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) e como está sua aceitação ? Padre José Amaro – O PDS surgiu do próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), idealizado pela irmã Dorothy e pelos movimentos sociais. Foi um projeto necessário porque os assentamentos não estavam dando resultados, os lotes eram vendidos e viravam pastos. O grupo de fazendeiros e madeireiros que se opunham ao projeto tentou colocar os trabalhadores e trabalhadoras contra, mas o pessoal que está dentro o aceita. Por ser bom e tão ameaçador para os grandes é que tiraram a vida da Dorothy. BF – O que é cultivado dentro do PDS ? Gabriel Domingos Nascimento – Temos uma cultura de subsistên-
Luciney Martins
Ana Maria Straube de São Paulo (SP)
Greenpeace
Em Anapu, nada mudou além do circo
Entrerro da irmã Dorothy, em fevereiro: violência e impunidade reinam no sul do Pará
Gabriel Nascimento e padre José Amaro, ameaçados de morte pelo agronegócio
cia, que chamamos de cultura branca (arroz, feijão, milho, pepino e cebola). Outras culturas como cacau, café e pimenta-doreino também podem ser trabalhadas. Há projetos de criação de peixes e animais silvestres, sem falar daquilo que é da floresta, como açaí, cupuaçu, resinas medicinais e a própria madeira.
caras são muito certos, têm que achar algum jeito de pegar eles.” Ou seja, a própria polícia procura uma forma de nos prender. Disseram que nós precisaríamos ser escoltados por policiais 24 horas. Não achei necessário e disse que só precisaria ser acompanhado quando saísse da cidade. No dia em que vim para São Paulo, disse
que precisava de acompanhamento até Altamira, mas não tinham transporte e nem gente suficiente.
BF – Existe relação entre as pessoas que cometeram o crime e o governo estadual ? Padre Amaro – O Estado fica de rabo preso com essas pessoas que financiam suas campanhas políticas. Com as eleições do ano que vem, ninguém vai bater de frente e, enquanto isso, as pessoas estão morrendo. Quero ver se muda alguma coisa, mas até agora foi só alegoria. Exército, polícia militar, civil, mas nada de concreto, até porque os assassinos se entregaram sem que ninguém fosse buscá-los.
IARAS (SP)
BF – Como anda a questão da segurança de vocês? Nascimento – Nós não temos segurança, mesmo ameaçados de morte. No dia do velório da Dorothy, comentei com um caboclo: “Infelizmente, o que um grupo queria fazer, fizeram, que era assassinar a Dorothy. Agora espero que assumam as conseqüências.” Ele foi lá e me denunciou por calúnia e difamação. Fui à delegacia dar meu depoimento e o delegado disse claramente: “Esses
BF – Vocês acham que a cobertura da imprensa procurou mostrar o contexto em que o crime ocorreu ? Nascimento – Nem todos os veículos, alguns mostraram um pou-
quinho mais, mas grande parte da imprensa esteve lá para filmar a Dorothy morta, e não a história da Dorothy viva. Não se falou quase nada sobre a história da cidade ou da situação. Contar a história da Dorothy viva ajudaria a mostrar as diferenças do nosso país e a procura do povo por dignidade.
Sete anos depois, a conquista da terra Gissela Mate de São Paulo (SP) Na cidade de Iaras, interior de São Paulo, há 80 mil hectares de terras públicas com amplo histórico de grilagem. Se toda essa área fosse desapropriada para fins de reforma agrária como manda a lei, cerca de 4 mil famílias poderiam ser assentadas, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O primeiro assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região foi o Zumbi dos Palmares, conquistado em 1997, hoje com 54 famílias. Anos de luta depois, os sem-terra comemoram novas conquistas. Dia 7, foram entregues cerca de 8 mil hectares de terras a 172 famílias do MST, a grande maioria delas acampada em Iaras há sete anos. A comemoração foi organizada não só em função da recente con-
quista, mas também para ampliar a importância da luta contínua. A festa teve início às 16h com uma mesa de debates. Em seguida, entrega simbólica da documentação dos lotes a seis famílias, churrasco e forró. Estivem reunidos na festa militantes, políticos, religiosos, admiradores do movimento, representantes do Incra. Entre comemorações e cumprimentos, as falas dos convidados destacaram a importância de se fazer reforma agrária com a participação dos trabalhadores. “Essa conquista em Iaras é muito importante, mas a luta é permanente. Não haverá reforma agrária no Brasil sem a participação dos trabalhadores”, afirmou o dirigente estadual do MST, Delwek Matheus. Raimundo Pires, o superintendente regional do Incra, ressaltou a união entre movimentos sociais e o governo na luta pela reforma agrá-
ria. “Existem 80 mil hectares de terras que ainda serão arrecadados nessa região com a participação de todos os lutadores sociais”, afirmou. O governo promete desapropriar 50 mil hectares até o final de 2005.
AGROECOLOGIA Sem perder de vista a importância da luta constante, o MST já elaborou um modelo de produção agroecológico para ser implantado nos novos lotes. A preocupação na hora de dividir as terras foi inserir amplamente os acampados. A metodologia incluiu a entrega de lote também aos idosos e solteiros, normalmente excluídos do regulamento de distribuição de terras. Dos 190 lotes que serão distribuídos, 57 são menores e se tornarão área coletiva de produção. O restante será de lotes individuais maiores, mas com foco no trabalho em grupo, previamente discutido entre os acampados.
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NACIONAL MORADIA
Entre o discurso e a prática
Hamilton Octavio de Souza
O Ministério das Cidades tem boas intenções, mas não tem recursos para implementar projetos
Eleição insegura O Tribunal Superior Eleitoral está defendendo o recadastramento dos 121 milhões de eleitores brasileiros e a adoção de um novo título. O objetivo é tentar reduzir as fraudes, já que em pequenas cidades do interior dominadas por coronéis e velhas oligarquias ainda há mais eleitor do que morador. As histórias sobre os mortos que votam não são fantasias. Iniciativa precoce Concentrados somente nas eleições e nas disputas de cargos públicos, os potenciais candidatos do PT aos governos estaduais estão em plena campanha, mesmo porque a prévia partidária foi antecipada para setembro. Vale lembrar que falta um ano e meio para as eleições gerais de 2006. Dependência transgênica A União Européia decidiu fechar as portas para a importação de milho transgênico, da mesma forma como tinha feito com a soja. Na direção contrária, o governo brasileiro – pressionado pela Monsanto e pela visão estreita do agronegócio, que pensa no lucro imediato e não no futuro da agricultura – acabou liberando também o plantio do milho transgênico. Uma péssima medida para a inserção brasileira no comércio mundial. Saúde corporativa O governo do Tocantins contratou e não conseguiu manter 96 médicos cubanos para o atendimento público de 42 municípios do Estado. Na ausência de médicos brasileiros, que esnobaram o salário mensal de R$4.500, as vagas foram ocupadas pelos cubanos, mas o Conselho Regional de Medicina moveu ação contra o trabalho deles no Brasil. Os médicos brasileiros, todo mundo sabe, são formados para o exercício da medicina privada. Realidade camuflada Por mais que o Ministério da Fazenda tente mostrar que a situação econômica do país é altamente promissora, alguns dados insistem em provar que nem tudo vai bem. Um deles, por exemplo, é o balanço do Programa de Recuperação Fiscal, o Refis, lançado em 2000, no qual apenas 20% das empresas optantes estão com o pagamento em dia, 5% quitaram seus débitos e 75% abandonaram o programa por inadimplência. Ou essas 90 mil empresas vivem dificuldades ou esses empresários são realmente safados. Doce mamata O Tribunal Federal de São Paulo acaba de tomar uma decisão em benefício das usinas de açúcar da região Centro-Sul e Centro-Oeste, que deixaram de recolher o IPI entre 1992 e 1997 e pediram à Justiça equiparação com a alíquota mais baixa cobrada em outras regiões do país. A fortuna que deixa de entrar nos cofres públicos é espetacular. Engordou o patrimônio dos usineiros. Carta magna O documento aprovado pelo Campo Majoritário do PT, que controla o partido e o governo Lula, comete alguns lapsos imperdoáveis para uma organização constituída de base operária e trabalhadora: não faz qualquer referência à recuperação do poder aquisitivo do saláriomínimo e nem toca na questão da violência contra os trabalhadores do campo e da cidade. A posição do grupo dominante é esclarecedora dos novos tempos do PT.
Tatiana Merlino da Redação
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ão foi apenas o quadro dramático das condições de moradia e acesso à terra da população brasileira que o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para Moradia Adequada, Miloon Kothari, avaliou no relatório que foi apresentado à Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Suíça. No documento, Kothari afirma que muitos dos projetos e das iniciativas existentes para solucionar o problema da moradia no país são isoladamente positivos. E manifesta sua boa impressão com a vontade política do atual governo, apontando como exemplo a criação do Ministério das Cidades. É outra, no entanto, a visão de representantes dos movimentos de moradia, para os quais, no governo, “até há boas intenções, mas falta prática”. Ou seja: as medidas de atendimento à população de baixa renda não saíram do papel. De acordo com Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, da coordenação da Central de Movimentos Populares (CMP), a visita do relator da ONU ao país serviu apenas para constatar aquilo que já se sabia. “Ele não coloca o governo na parede. Pelo contrário, poupa”, critica. No relatório, Kothari destaca que diversas ferramentas foram instituídas para aprimorar os mecanismos de controle social, como o Conselho Nacional das Cidades, que tem entre suas responsabilidades propor diretrizes para a criação e implementação de políticas de desenvolvimento urbano. Cita também a criação do Estatuto da Cidade, que define as políticas que os diferentes níveis do governo devem utilizar para lidar com os problemas de desigualdades de habitação em áreas urbanas, mas aponta que o foco “deve ser agora dirigido à implementação”.
Movimentos pela moradia reivindicam o fim dos despejos forçados e saneamento básico
está muito aquém do desejado. O Estatuto estabelece que, até outubro de 2006, os municípios com população igual ou superior a 20 mil habitantes devem elaborar seu Plano Diretor. Essa meta, segundo um dos coordenadores da CMP, “será difícil de cumprir”. Benedito Roberto Barbosa, da coordenação nacional da União Nacional de Moradia Popular (UNMP), considera a ineficiência do Ministério das Cidades em encaminhar políticas de habitação um problema estrutural, porque a pasta é refém das regras de contingenciamento. “O Ministério não tem recursos orçamentários, tem um monte de boas idéias e quase nada de ações práticas”, analisa.
FUNDOS O relatório da ONU também cita como fato promissor a aprovação pela Câmara dos Deputados da lei que prevê a criação do Fundo Nacional de Habitação e Interesse Social, após 12 anos em tramitação no Congresso Nacional. O objetivo da lei é promover o acesso à moradia rural e urbana por meio da implementação de um sistema de subsídios para financiamento de habitações para famílias de baixa renda. No entanto, o texto aprovado na Câmara aguar-
ESTATUTO Gegê diz que o Estatuto da Cidade não é uma iniciativa do governo, mas uma das reivindicações históricas dos movimentos de moradia. E acrescenta que sua implementação
da votação no Senado há mais de dez meses, sem que haja definição que possibilite a sua implantação definitiva. “Nessa velocidade vão se passar uns dez, doze anos sem que o Fundo seja implementado”, lamenta Gegê. O relatório defende o uso do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para gerar recursos para o Fundo Nacional de Habitação, como previsto no projeto de lei inicial, originado de uma iniciativa dos movimentos sociais de moradia no início dos anos 90.
MOROSIDADE Para o coordenador da CMP, essa questão é fundamental. “O problema é que o texto aprovado na Câmara foi alterado. Não há mais a possibilidade de utilizar o FGTS como uma das fontes do Fundo de Habitação. Se for aprovado dessa maneira, será um Fundo sem fundo”, observa. Também em âmbito federal, havia compromisso do governo de repassar uma série de áreas ociosas da União para o Ministério das Cidades, para fins de construção de moradias populares, mas não foi cumprido. “Não há uma política nacional de habitação para a população de baixa renda”, afirma Gegê. Para ele, apesar das boas intenções do Ministério
das Cidades, isso não resolve nada. Ele atribui a morosidade da pasta em parte à falta de experiência, em parte como proposital.
MARCHA As quatro entidades nacionais do Fórum Nacional de Reforma Urbana – Central de Movimentos Populares, União Nacional de Moradia Popular, Confederação Nacional das Associações de Moradores e Movimento Nacional de Luta por Moradia estão organizando a Marcha pelo Direito à Cidade, programada para o período de 12 a 18 de agosto. Entre as reivindicações do Fórum estão a agilização na aprovação do Fundo Nacional de Moradia Popular; não-congelamento dos recursos orçamentários do Ministério das Cidades para habitação popular; fim da criminalização dos movimentos populares; repasse imediato de terras ociosas pertencentes à União; fim dos despejos forçados; direito a saneamento ambiental; transporte público; regularização fundiária. A marcha deve começar com um ato em Goiânia, dia 12 de agosto, com uma manifestação de repúdio à desocupação violenta que ocorreu na cidade em fevereiro, e chega em Brasília, dia 16, onde será montado um grande acampamento, até dia 18.
POVO DA RUA
Minas não tem déficit. Tem miséria Bernardo Alencar de Belo Horizonte (MG) Belo Horizonte, de acordo com pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é a quinta capital mais violenta do Brasil. São 48,6 homicídios para cada 100 mil habitantes. Mais assassinatos até mesmo do que em metrópoles maiores como São Paulo e Rio de Janeiro. Enquanto o governo Aécio Neves (PSDB) faz propaganda de uma Minas Gerais cujo déficit é zero, os reflexos dessa política estão nas ruas da capital mineira. O motivo é simples: ao zerar o déficit mediante uma redução brutal dos gastos públicos – enxugamento que acontece principalmente em áreas essenciais como saúde e educação, pois em propaganda e publicidade os gastos aumentaram de R$ 36 milhões, em 2004, para R$ 46 milhões neste ano – o governo estadual joga toda uma sociedade na barbárie. Faltam remédios em postos médicos do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais e em hospitais da capital. Segundo o Sindicato da União dos Trabalhadores do Ensino, um professor de nível médio recebe menos de R$ 600 por mês. A polícia do Estado não tem dinheiro o
Luciney Martins
Grandes ladrões Em surpreendente confissão, o “empresário” Maurílio Miguel Cury, marido de Lygia Maluf e genro de Paulo Maluf, do PP, admitiu que a família tem contas bancárias e empresas fantasmas no exterior. O Ministério Público acredita que o ex-prefeito de São Paulo tenha desviado 440 milhões de dólares de obras públicas. E ainda tem partido político e autoridade protegendo os Maluf.
Luciney Martins
Fatos em foco
Pedreira Prado Lopes.
CERCAS & MUROS
Capital mineira sofre com descaso da administração tucana
suficiente para a gasolina dos carros que fazem as rondas.
DROGA BARATA Às três da tarde, na Avenida Antônio Carlos, um dos caminhos que levam do centro da cidade para a Pampulha e o estádio de futebol Mineirão, dois homens, com cerca de 35 anos, imundos e esfarrapados, fumam crack. A avenida é margeada pela favela Pedreira Prado Lopes, onde se pode comprar a pedra por R$ 2, R$ 3, R$ 5. Os dois homens, que pedem para não ser identificados, explicam que o lugar é ponto para os “noiados”, gíria utilizada pelos usuários
de crack. Ao longo de toda Antonio Carlos, o cenário é de decadência e miséria. São homens, mulheres, jovens, adultos. Um rapaz, de não mais que 16 anos anda cambaleando. Descalço, na perna, algumas feridas, nas mãos o cachimbo e um isqueiro. Ele passa por um ponto de ônibus, pede dinheiro, as pessoas negam. Ele segue. Atravessa a avenida correndo por entre os carros, entra em um bar e pede mais esmola. Ninguém o atende, o dono do bar diz para ele sair. Ele continua andando. Sobe para uma rua da favela, senta no chão, fuma um pouco, levanta e entra em um dos muitos becos da
À noite, na avenida, a miséria é a mesma. Uma espécie de terra de ninguém. Do ônibus, vê-se uma mulher sozinha, nua, suja, conversando e gesticulando. Além de pessoas drogadas e moribundas, não há mais nada na avenida e nas ruas que sobem para a favela. Dá medo descer no lugar. Nos bairros de zona sul de Belo Horizonte, são comuns as cercas elétricas nos muros de casas e prédios. Reina a intranqüilidade. Maurício Almeida, morador do bairro Luxemburgo, conta que, na semana passada, um jovem foi baleado por uma pessoa que estava em uma moto. “O cara da moto pediu a carteira, o rapaz entregou sem reagir, mas, mesmo assim, levou um tiro na barriga”. Ele não soube se o rapaz sobreviveu. No bairro Gutierrez, dona Emília, 69 anos, diz que só sai de casa até certa hora. “Não dá mais. Belo Horizonte era um lugar muito tranqüilo. Quando era mocinha, saía para tomar sorvete e paquerar, e voltava a pé para casa. Hoje, está uma tristeza, tenho muito medo”. Andar pelo bairro durante a noite é uma aventura. A partir das 22 horas, as ruas ficam quase completamente vazias.
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De 21 a 27 de abril de 2005
NACIONAL FALSO DÉFICIT DA PREVIDÊNCIA
Um rombo fabricado para pagar juros Ano a ano, sobra dinheiro na Seguridade, mas governo desvia bilhões para pagar juros e piora o atendimento Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
O TAMANHO DO DESVIO Dinheiro da Seguridade cobre despesas da União e ajuda a pagar os juros da dívida (Em bilhões de reais)*
O
cenário nos postos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é o mesmo em todas as capitais do país. Filas a perder de vista, desde a madrugada. Falta pessoal e o atendimento, por isso mesmo, é capenga. Os salários dos servidores, achatados. Para completar, cresce a campanha que pretende responsabilizar pensionistas e aposentados pelo rombo do setor público, numa tentativa de arrochar ainda mais os benefícios assegurados pela Previdência a mais de 23 milhões de brasileiros – 30% dos quais, ou quase 7,2 milhões de pessoas, moram em zonas rurais. Por trás dos balcões da Previdência, nos gabinetes refrigerados da Esplanada dos Ministérios, na capital federal, economistas almofadinhas se ocupam em desmontar a Previdência e todo o sistema de Seguridade Social implantado a partir da Constituição de 1988. Nesse desmanche, o dinheiro do sistema é desviado para pagar juros da dívida do governo, alimentando a ciranda financeira e concentrando a renda. O tamanho do desvio foi mensurado, agora, por um estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Anfip). Concluído em abril, o levantamento mostra que o governo desviou da Seguridade Social – que inclui, além do INSS, a saúde pública e os
Período
Superavit da Seguridade Social
Saldo primário da União
Juros da dívida do governo
2000
26,660
30,605
46,345
2001
31,460
29,550
46,852
2002
32,960
38,239
44,244
2003
31,730
48,431
102,659
2004
42,530
52,385
79,419
Total
165,340
199,210
319,519
(*) Superavit fiscal da Seguridade é a diferença entre receitas totais do sistema de Previdência e Saúde menos despesas; o saldo primário da União corresponde às receitas do governo federal, Previdência, Banco Central e empresas estatais menos despesas, excluídos gastos com juros da dívida do governo central Fontes: Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Anfip) e Banco Central
programas federais de assistência social – algo próximo a R$ 165,34 bilhões nos últimos cinco anos.
FORA DA LEI Com esta dinheirama, o governo poderia se dar ao luxo de bancar integralmente uma segunda Previdência Social, cobrindo todas as despesas do INSS durante um ano inteiro, com sobras de praticamente R$ 13,6 bilhões – a se considerar os pagamentos realizados pelo INSS no ano passado, de R$ 151,74 bilhões. Nos cinco anos, pelo menos R$ 76,84 bilhões foram desviados sem qualquer cobertura legal. Explica-se. Por decisão da equipe econômica, e aprovação do Congresso, todos os
anos, o governo federal é autorizado a utilizar livremente 20% de impostos e contribuições previstos no orçamento da União. A isso os economistas oficiais deram o pomposo nome de Desvinculação das Receitas da União, com a respectiva sigla (DRU) para qualificar aquelas receitas. Na prática, o dinheiro termina alimentando o superavit primário do governo (receitas menos despesas, exclusive gastos com juros) e vai parar no cassino de juros altos, driblando – com a cobertura do Congresso, que aprovou a DRU – a destinação originalmente definida no orçamento, segundo regras constitucionais. Com base na DRU, portanto, o
governo poderia retirar da Seguridade Social, entre 2000 e 2004, nada mais do que R$ 88,50 bilhões, mas sacou os R$ 165,34 bilhões apontados pelo estudo.
RECURSOS HÁ Mas como isso foi possível se toda a campanha dos economistas no poder e setores mais conservadores está ancorada na suposta falência do INSS, por falta de recursos? Exatamente porque, aponta a Anfip, não faltam recursos. Ao contrário, sobra dinheiro, a ponto de a Associação comprovar que seria possível ampliar o sistema de Seguridade, reforçando os programas de combate à miséria e de redistribuição de renda,
revitalizando o sistema de saúde pública, revendo o achatamento de salários e benefícios no setor. Na verdade, o dinheiro de aposentados, pensionistas e usuários da saúde vem sendo utilizado para financiar o equilíbrio das contas do setor público federal. O superavit (receitas maiores do que despesas) acumulado pela Seguridade entre 2000 e 2004 correspondeu a 83% do saldo primário total registrado pela União no mesmo período. Descontadas as despesas com juros, as receitas do governo central superaram seus gastos em R$ 199,21 bilhões.
JUROS E ROMBO Mesmo assim, aquela montanha de dinheiro não foi suficiente para pagar toda a conta dos juros da União, que consumiram R$ 319,52 bilhões naqueles cinco anos, deixando um rombo de R$ 120,31 bilhões – coberto com mais dívida pública, que exigirá, nos próximos anos, mais gastos com juros, numa bola de neve. Sem o dinheiro da Previdência, o buraco seria ainda maior, obrigando o governo a tomar dinheiro emprestado no mercado financeiro, o que agravaria seu endividamento e ampliaria o peso dos juros sobre o orçamento. Em números, os recursos desviados da Seguridade Social corresponderam a praticamente 52% do valor destinado pelo governo ao pagamento de juros. Sem que os beneficiários da Previdência recebessem qualquer tipo de compensação.
Sobra de recursos cresce 60% em cinco anos Em 2004, somando os recursos desvinculados das contribuições pelo governo federal, via Desvinculação das Receitas da União (DRU), as receitas da Seguridade superaram as despesas em R$ 42,5 bilhões, mais 34% em relação ao superavit registrado em 2003 (R$ 31,7 bilhões). Segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Anfip), o saldo positivo da Seguridade cresceu 59,5% nos últimos cinco anos, depois de atingir R$ 26,7 bilhões em 2000. Mesmo descontados os recursos da DRU, a diferença entre receitas e despesas totais da Seguridade continuou positiva, com superavit de R$ 17,6 bilhões. O resultado, afirma a Anfip, “reforça a tese de que
é perfeitamente possível expandir as ações da Seguridade Social, pois esses recursos excedentes deveriam ser alocados exclusivamente nas despesas dos programas fins” (ou seja, no pagamento de benefícios do INSS e dos programas de saúde pública e assistência social). O dinheiro, no entanto, foi utilizado ilegalmente pelo governo, basicamente para fazer frente ao serviço da dívida pública federal (pagamento de juros e prestações). Oficialmente, numa contabilidade atravessada, o governo atribuiu à Previdência um rombo de R$ 32 bilhões no ano passado. Nessa conta, o governo considera apenas receitas advindas do pagamento de contribuições por empresas e pessoas físicas,
menos gastos com benefícios, num procedimento classificado como “simplista” pela Anfip. Além disso, o governo ainda desconsidera a parcela da arrecadação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) que deveria ser destinada exclusivamente ao custeio da Previdência Social.
TRUQUE SUJO “Ao isolar o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) do sistema de Seguridade Social, e distorcer a composição de seu orçamento, as fontes oficiais omitem para a sociedade que os repasses constitucionais das fontes exclusivas de recursos que deveriam ser alocados nos programas-fins de saúde, previdência e
O BALANÇO DA SEGURIDADE EM 2004 Regime geral de Previdência Social, em bilhões de reais (1)
I – Receitas
Valores
Receita previdenciária líquida (2)
93,77
Outras receitas do INSS (3)
1,24
II – Despesas Pagamento total de benefícios (5)
134,07
1. Benefícios previdenciários
125,75 102,99
Cofins
77,29
1.1. Urbanos
CSLL
19,31
2.2. Rurais
Concursos de prognósticos (loterias etc)
1,45
CPMF
26,39
Receitas próprias do Ministério da Saúde
0,81
Outras contribuições sociais (4)
0,07
Total das receitas
220,34
Saldo Total (Receitas - Despesas): 42,53 Fontes: Anfip, Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) e fluxo de caixa do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)
NOTAS: (1) Receitas e despesas da Seguridade Social, conforme artigo 195 da Constituição Federal (exclui PIS/ PASEP, FAT, juros, amortizações, etc). (2) Receita líquida = Arrecadação bancária + Simples + Refis + FNS + CDP + FIES + depósitos judiciais - restituições de arrecadação - transferências a terceiros. (3) Correspondem a rendimentos financeiros e outras receitas patrimo-
Valores
22,76
2. Benefícios assistenciais
7,58
2.1. Renda Mensal Vitalícia (RMV)
1,85
2.2. Lei Orgânica da Assistência Social (Loas)
5,73
Encargos previdenciários da União – legislação especial (6)
0,74
Saúde (7)
32,15
Assistência social geral (8)
5,67
Custeio e pessoal ativo dos Ministérios de Previdência Social e de Desenvolvimento Social
4,07
Outras ações da Seguridade (9)
1,84
Total das despesas
niais. O valor difere do fluxo de caixa do INSS, que foi de R$ 2,61 bilhões, mas não foi adotado, pois a rubrica “Outros” não explicita seus componentes de receitas. (4) A contribuição sobre o DPVAT está classificada como receita do Ministério da Saúde; receita de bens apreendidos (leilões) está no Ministério da Assistência Social e são valores pequenos. (5) Referem-se aos benefícios mantidos (previdenciários + assistenciais + EPU legislação especial).
177,80
(6) Encargos previdenciários da União: benefícios concedidos por meio de leis especiais, pagos pelo INSS, com recursos da Seguridade Social, e repassados pelo Tesouro. (7) Inclui ações de saúde do SUS, saneamento, custeio e pessoal ativo do Ministério da Saúde. (8) Inclui ações do Fundo de Combate à Pobreza.. (9) Referem-se a ações, inclusive de assistência social, prestadas em outros ministérios.
assistência social são, na execução (do orçamento), realocados (desviados) para a cobertura de gastos fiscais e obtenção de superavit primário”, analisa a Anfip. O truque, no caso, consiste em esconder que a arrecadação da CPMF, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), devida por empresas e bancos, e da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) deveria financiar todo o sistema, inclusive o INSS. No ano passado, por exemplo, a receita somada daquelas três contribuições foi de R$ 123 bilhões.
DÁ E SOBRA Acrescida dos valores recolhidos ao INSS por empresas, instituições financeiras, autônomos e profissionais liberais em geral, a título de contribuição previdenciária, a receita total do sistema chegou a R$ 220,3 bilhões. As despesas, por seu turno, alcançaram R$ 178 bilhões, já incluídos os pagamentos de benefícios e pensões pelo INSS, gastos com a Saúde, assistência social e o custeio dos ministérios da
Previdência e de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Como visto, o resultado foi uma sobra de R$ 42,5 bilhões. Num mero exercício matemático, apenas para reforçar as conclusões de seu trabalho, a Anfip agregou as contas do sistema de previdência dos servidores públicos civis e militares, embora considere essa comparação “conceitualmente distorcida e inaceitável” – já que o sistema público dispõe de normas e de fontes de recursos distintas e exclusivas. Neste caso, somando R$ 6 bilhões que a União deveria recolher ao sistema público, como parte de sua contribuição para aposentadorias e pensões do serviço federal, as receitas totais do sistema somariam R$ 230 bilhões, mais do que suficientes para fazer honrar despesas de R$ 215,5 bilhões. “Verifica-se, portanto, que mesmo incluindo a previdência dos servidores públicos federais, que deveriam ser cobertas com recursos do orçamento fiscal, obteve-se um superavit de R$ 14,54 bilhões”, resume a Anfip. (LVF)
Pouco interesse em cobrar a dívida O governo engrossou, nos últimos meses, o discurso em favor de uma ação mais dura contra devedores da Previdência Social, e contra desvios e fraudes na área. À intenção, por ora, não tem correspondido fatos concretos. Em 2004, enquanto a arrecadação líquida do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) avançou 16%, para R$ 94 bilhões, o resultado da ação fiscal (ou seja, o dinheiro de contribuições recuperado pelos fiscais e agentes do INSS) cresceu apenas 8,7%, atingindo R$ 18,2 bilhões – o que representou 19,4% da receita líquida. Em 2001, a relação entre o resultado da ação fiscal (R$ 17,7 bilhões) e a arrecadação líquida (R$ 62,5 bilhões) havia alcançado 28%. Mantida essa mesma proporção, em 2004, a arrecadação
poderia ter sido de quase R$ 4,5 bilhões a mais. Entre 1999 e 2004, período para o qual há dados disponíveis no endereço eletrônico da Previdência, a arrecadação líquida acumulada foi de R$ 413 bilhões, dos quais 24% vieram do trabalho dos fiscais do INSS. No mesmo período, a arrecadação cresceu 91%. Em valores atualizados com base no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve um aumento real de 26%. O resultado da ação fiscal registrou uma taxa de crescimento de apenas 48,5%, o que indica uma queda real de 2% entre 1999 e 2004 – ou seja, a variação não foi suficiente sequer para acompanhar o ritmo de variação dos preços no período. (LVF)
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De 21 a 27 de abril de 2005
NACIONAL AMAZÔNIA EM RISCO
Na região, concessões por até 60 anos Governo quer leiloar 13 milhões de hectares para exploração por empresas privadas locais e estrangeiras
POLÊMICA O projeto, apoiado pela ex-seringueira e ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e rechaçado por intelectuais encabeçados pelo geógrafo Aziz Ab’Saber, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), regulamenta a gestão de florestas públicas (federais, estaduais e municipais) para “manejo florestal sustentado” no Brasil, cria o Serviço Florestal Brasileiro e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal. Em documento elaborado para recolher assinaturas contra o projeto, a iniciativa do governo é considerada “como principal instrumento visando a internacionalização da Amazônia, no curto prazo”. Entre outros argumentos levantados pelos que são contrários à iniciativa inclui-se a possibilidade de concessões de grandes glebas de florestas, por meio de leilões, por prazos de até 60 anos, o que assume a forma de cessão de territórios; o risco de monopólio da produção madeireira por uma mesma empresa que compre todas as concessões;
PRÓS E CONTRAS
Denúncia: “(É o) principal instrumento visando a internacionalização da Amazônia, no curto prazo”
e a possibilidade de obtenção de financiamentos pelas concessionárias, a partir da garantia (hipoteca das florestas) de futuros produtos.
DESASTRE Ab’Saber lembra que processo idêntico de gestão “imposto pelos governos dos países do Sudeste Asiático e África Equatorial acabou se transformando em gigantesco desastre ecológico-ambiental, com perdas irreparáveis nos domínios da flora e da fauna”. Algo parecido como o que ocorreu recentemente também na Austrália, lembra ele. Por ironia, a Austrália é o mesmo país que técnicos do Ministério do Meio Ambiente (MMA), durante a elaboração do projeto, visitaram às custas dos cofres do Serviço Florestal Americano e da Usaid, a agência do governo estadunidense para o desenvolvimento internacional, segundo documentos obtidos pelo jornal O Globo. A fiscalização das áreas concedidas é outra controvérsia. O projeto de lei retira 129 vagas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), repassandoas ao Serviço Florestal Brasileiro a ser criado com a aprovação do projeto. Aliás, a Associação dos Servidores do Ibama também assina o documento contra o projeto. O secretário nacional de Biodiversidade e Florestas do MMA, João Paulo Capobianco, diz que,
ao invés da privatização, o projeto garante a soberania total da Amazônia e que os vencedores das licitações teriam direito de explorar os recursos naturais das florestas, mas não ganhariam a propriedade da terra. Ainda segundo ele, o projeto vai reduzir o desmatamento desenfreado na região, gerando emprego e renda por meio de atividades sustentáveis. Já segundo a ministra Marina Silva, o projeto, discutido com as comunidades da Amazônia desde 2003, combate a grilagem e impede a futura privatização das terras públicas. “O objetivo do governo é recuperar terras griladas, dar poder de gerenciamento às comunidades locais e frear o desmatamento ilegal da Amazônia”, argumenta. Ela acrescenta que não haverá a menor possibilidade de titulação dos 13 milhões de hectares que serão oferecidos em regime de concessão para empresas de grande porte, e em regime de reforma agrária específica para pequenos manejadores comunitários, na modalidade de reservas extrativistas e de projetos de assentamento florestal, ou de Projeto de Desenvolvimento Sustentável, como era o caso do PDS da irmã Dorothy.
representa 20% do total das florestas públicas disponíveis a serem licitadas em anos subseqüentes. No período, a expectativa é de geração de receita direta de R$ 180 milhões, arrecadação de R$ 1,9 bilhão por ano em impostos da cadeia de produção, além de geração de 140 mil empregos diretos. O MMA calcula que, para produzir de forma sustentável (ou seja, sem danos ao meio ambiente) os 30 milhões de metros cúbicos de madeira consumidos anualmente na Amazônia, será preciso abrir à iniciativa privada, anos mais à frente, algo em torno de 50 milhões de hectares de florestas. Ou seja, 15% de toda a região amazônica, que atinge 5 milhões de quilômetros quadrados – uma área
De acordo com Capobianco, do total de terras da Amazônia, 20% são propriedades privadas, 33% foram destinadas a terras indígenas e unidades de conservação e 47% das terras pertencem ao poder público (União, Estados e municípios) dos nove Estados brasileiros que compõem a Amazônia (representando áreas não protegidas, arrecadadas ou devolutas, caracterizando a maior área de florestas do mundo sem regulamentação para o uso sustentável). Ele ainda destaca “que o manejo florestal que está sendo preconizado nessas áreas, no caso da produção de madeira, significa a extração de cinco a seis árvores por hectare (ou seja, menos de 3% dos indivíduos) a cada 30 anos, o que é bem diferente do desmatamento, que implica a retirada total da floresta, com perda de biodiversidade”. E que as concessões não serão apenas para a produção de madeira, mas também de bens nãomadeireiros (como óleos, resinas e frutos) e atividades de serviços, como turismo. Entre ambientalistas e organizações não-governamentais (ONGs) também há divergências. O Greenpeace e o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) – que reúne mais de 500 ONGs e entidades de defesa do meio ambiente situadas nos nove Estados amazônicos – estão alinhados com o governo, enquanto o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento ainda se mostra reticente em relação ao projeto.
Maristela do Valle/ Folha Imagem
O
governo Lula tem pressa em conceder 13 milhões de hectares da Amazônia a empresas privadas nacionais ou estrangeiras para fins de exploração por até 60 anos. Dia 14, nove dias depois de retirar o regime de urgência do projeto de lei 4776/2005, que prevê a concessão de florestas públicas, o Executivo reapresentou o pedido à Câmara, conseguindo estender por mais 45 dias o limite para sua votação. O recuo momentâneo foi necessário porque quando o presidente da República solicita que projetos de lei de sua autoria tramitem em regime de urgência, a Câmara tem 45 dias para votar a matéria, e o Senado mais 45 dias para apreciá-la. Quando o governo agiu, evitando um desgaste maior em sua empreitada de aprovar o projeto a qualquer custo, faltavam apenas dois dias para expirar o prazo estipulado. Caso isso acontecesse, nada poderia ser votado antes que o projeto fosse apreciado, trancando a pauta de deliberações da Casa, e aumentando a polêmica já existente em torno do projeto que, para os críticos, é o início da privatização da Amazônia. O prazo para votação na Câmara, a partir de agora, é 29 de maio.
quase igual à da Bahia e maior do que os Estados do Rio, São Paulo e Espírito Santo somados.
Arquivo Brasil de Fato
Marcelo Netto Rodrigues da Redação
EXPECTATIVAS A previsão do governo é que, no período experimental de dez anos, a área total sob concessão atinja cerca de 3% da Amazônia – 13 milhões de hectares, o que
Posto de gasolina flutuante no Rio Negro, no Amazonas
SEGURANÇA ALIMENTAR
Depois dos transgênicos, a ameça da nanotecnologia A sociedade brasileira está a ponto de mergulhar no debate sobre uma nova tecnologia que pode assumir as mesmas proporções das discussões que precederam a irresponsável liberação dos produtos transgênicos no país. Trata-se da nanotecnologia – manipulação de matéria viva ou inerte, em escala nanométrica, ou seja, de átomos e moléculas, ou, ainda, ciência desenvolvida em nano escala, o que equivale a uma bilionésima parte de um metro. Resumindo, partículas extraordinariamente pequenas que começam a ser manipuladas em laboratórios. No Brasil, existem cientistas trabalhando em nanotecnologia desde 2001, e alguns produtos, como protetores solares, já circulam no mercado contendo nanopartículas. A legislação brasileira, contudo, ignora completamente o tema. Segundo especialistas, a indústria da nanotecnologia movimenta,
atualmente, mais de 50 bilhões de dólares em todo o mundo, e a maior parte de suas aplicações comerciais é na engenharia de materiais, informática, medicina e defesa. E o uso de produtos baseados em nanotecnologia cresce aceleradamente na agricultura e na indústria de alimentos. Tudo indica que na nova área se repetirá o que aconteceu no segmento da engenharia genética, de controle corporativo desde a semente até o supermercado. Mais: a agricultura nanotecnológica pode controlar, inclusive, os átomos que compõem os produtos, alerta Silvia Ribeiro, pesquisadora do grupo ETC. Todas as corporações que dominam o negócio mundial dos transgênicos estão investindo em nanotecnologia. Nesse grupo estão, dentre outras, a Monsanto, a Pfeizer e a Syngenta.
MESMO FILME Não é para menos que alguns especialistas temem que a futura regulamentação da nanotecnolo-
gia siga o mesmo caminho que desaguou na liberação dos transgênicos no Brasil. Os produtos geneticamente modificados foram empurrados goela abaixo dos brasileiros por meio de uma estratégia de fatos consumados que culminou na sanção presidencial, dia 24 de março, à Lei de Biossegurança. Essa lei permite a liberação de produtos transgênicos sem a realização de estudos prévios de impacto ambiental. “Precisamos evitar o fato consumado”, adverte Paulo Roberto Martins, pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), do Estado de São Paulo. Ele defende um processo que tenha como resultado legitimidade, e não conflito. Em outubro de 2004, ele coordenou a criação da Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente. Na entidade, são discutidos os impactos humanos (sociais, éticos e ambientais) da nova ciência. No dia 14, iniciativa similar ocorreu na Câmara dos Deputados. Soli-
citada por Edson Duarte (PV/BA), uma audiência pública debateu os efeitos sobre a saúde humana e o meio ambiente da nanotecnologia. Segundo Martins, o mesmo elemento químico, em tamanho nano, tem um comportamento diferente
podendo apresentar, por exemplo, maior condutividade elétrica. “Ele ultrapassa a célula? Vai para a corrente sanguínea? Como atua dentro do corpo humano? Nós não sabemos o que acontece”, avisa Paulo Roberto Martins.
Arquivo Brasil de Fato
Luís Brasilino da Redação
Monsanto, Syngenta e Pfeizer investem na nova ciência
Ano 3 • número 112 • De 21 a 27 de abril de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO EQUADOR
Chegou a vez de Lucio Gutiérrez Bruno Fiúza De Quito (Equador)
U
m grito ecoa por Quito, capital equatoriana: “Que se vayan todos !” – algo como “que saiam todos!” Depois de quatro meses de uma crise política que parecia apontar para nenhuma direção, os equatorianos se cansaram da eterna disputa entre governo e partidos de oposição e decidiram organizar seu protesto de maneira autônoma. O dia 13 foi um divisor de águas na crise local. Nessa data, um grupo de cidadãos resolveu organizar um protesto em vários pontos da capital equatoriana para pedir não apenas a saída dos juízes da Corte de Justiça, mas também do presidente Lucio Gutiérrez e dos parlamentares do Congresso Nacional. A reivindicação da cidadania independente surpreendeu a todos pelo seu ineditismo. Como explica o professor Alejandro Moreano, da Universidade Andina Simón Bolívar, até então, o conflito era institucional, entre o governo e os partidos de oposição, como a Izquierda Democrática (ID) e o Partido Social Cristiano (PSC), em torno da destituição da Corte Suprema de Justiça. Naquela noite, segundo Moreano, “começou um processo muito rico, que está se estendendo por todas as partes, com muitas semelhanças com aquele que se deu na Argentina na época da deposição do (ex-presidente Fernando) de La Rua”. Segundo Moreano, a grande reivindicação é pela construção de “uma democracia a partir das bases”, por meio da criação de um contrapoder popular “que vá amadurecendo e se estendendo por toda a sociedade”. Um dos passos para essa construção foi dado dia 18, quando o povo começou a organizar assembléias sem lideranças em seus próprios bairros.
VOZ DO POVO Esse novo tipo de organização popular tem como coração a rádio La Luna, um veículo não comercial ligado a uma ONG chamada Centro de Educación Popular (Cedep). A partir do espaço de discussão criado pelo diretor e apresentador Paco Velasco, as pessoas começaram a ligar para a rádio para expressar seu descontentamento com o governo e organizar protestos em seus próprios bairros, a partir da noite do dia 13. O resultado foi uma série
Rodrigo Buendia/AFP/Folha Imagem
Impulsionado pelos chamados da rádio La Luna, movimento cidadão exige renúncia do atual presidente
Pelas ruas de Quito, equatorianos exigem a renúncia do presidente Gutiérrez
de protestos em diversos pontos da cidade, sendo que os maiores foram realizados na Avenida de Los Shyris, no Norte, e na Avenida Villaflora, no Sul. Segundo o economista Alberto Acosta, integrante do conselho do Cedep, “a rádio lançou a semente que germinou em terreno fértil. A cidadania está descontente há
muito tempo, mas não encontrava os canais adequados para expressar esse mal-estar porque os partidos tradicionais e seus políticos acabaram traindo a confiança popular. Nestas circunstâncias, as pessoas não querem responder aos chamados dos partidos, mas sim aos chamados da cidadania”. Emilio Larreategui, um arquite-
to que decidiu participar das manifestações, endossa o raciocínio de Acosta: “O papel da rádio La Luna foi fundamental porque soube captar em um determinado momento o sentimento da população. Antes da intervenção da rádio já havia movimentos sociais e políticos, mas que não deram resultado”. Desde então, a rádio tem sido
alvo constante de intimidação governamental, embora os protestos sigam a cada dia com mais força. No dia 15, um grupo de civis a serviço do governo tentou colocar fogo na rádio, mas foram impedidos pelos cidadãos – que fizeram uma barreira humana para protegê-la. O sinal da La Luna tem saído do ar durante algumas horas. Paco Velasco atribui essas interrupções a uma estratégia de sabotagem por parte do governo, mas não apresentou provas. Ainda dia 15, uma sexta-feira, o presidente Lucio Gutiérrez decretou estado de emergência no distrito metropolitano de Quito sob a alegação de que a cidade passava por uma grave comoção social e dissolveu a Corte Suprema de Justiça. O objetivo real do decreto, como admitiu depois o próprio Gutiérrez, era a dissolução da Corte, tanto que o estado de emergência foi revogado um dia depois. Os protestos estão ocorrendo diariamente, reunindo em média 10 mil pessoas em toda a cidade. No sábado, um grupo de aproximadamente 5 mil pessoas tentou entrar no palácio presidencial e foi violentamente reprimido por um pesado esquema de grades e policiais. Segundo revelou o jornal El Comercio, de Quito, o presidente está preocupado com os protestos na cidade, mas faz questão de enfatizar que não cogita a renúncia.
Cronologia de uma crise ainda sem solução Eduarto Tamayo G. de Quito (Equador) A mobilização do povo de Quito (Equador) é um fator chave que determinou, ao mesmo tempo, o fim do estado de emergência decretado pelo governo Lucio Gutiérrez e a destituição, pelo Congresso, da Corte Suprema de Justiça que, de fato, foi nomeada em 8 de dezembro de 2004 por uma maioria legislativa oficialista. Usando a rádio La Luna como meio facilitador – a mesma rádio que teve papel importante quando foram depostos Abdala Bucaram, em 1997, e Jamil Mahuad, em 2000 –, o povo de Quito iniciou, na noite do dia 13, uma série de protestos criativos. Panelas nas mãos,
mulheres, jovens, crianças, adultos, famílias inteiras marcharam até a Corte Suprema, onde foram violentamente reprimidos pela polícia. O movimento cidadão, espontâneo e autoconvocado, tem alguns objetivos claros: questionar todos os partidos políticos que, em 25 anos de democracia, foram incapazes de resolver os problemas e só têm defendido seus interesses particulares; exigir a saída não só da Corte, mas do governo de Gutiérrez e do Congresso. No dia 15, o presidente Gutiérrez dissolveu a Corte e decretou estado de emergência para reprimir as mobilizações, restringindo direitos individuais. Mas os militares ignoraram a medida impetrada por Gutiérrez. Já os cidadãos quitenhos, em vez de recuarem, pas-
saram a organizar protestos mais numerosos, fazendo pouco caso do estado de emergência. O presidente se vê obrigado a suspender o estado de emergência. Para tentar dar ainda um respiro ao regime, o presidente do Congresso, Omar Quintana, decidiu convocar uma sessão extraordinária para o dia 17 para ratificar a dissolução da Corte. Os protestos se intensificaram. Caravanas saíram do norte e do sul de Quito até o centro. As pessoas caminham pelo centro histórico para chegar ao Palácio, quando grupos armados do governo se enfrentam com os manifestantes, agredindo-os e golpeando carros. O movimento questiona os meios de comunicação, especialmente a TV, porque não cobriram as mobilizações e a repressão. No dia 17,
pressionados pela população, os parlamentares aprovam a proposta da oposição de anular a resolução de 8 de dezembro que elegeu os magistrados da Corte Suprema. Mesmo com a decisão, no entanto, a crise está distante de ser resolvida. O caminho e os procedimentos para eleger os novos magistrados será um tema controverso, pois serão os novos magistrados que revisarão as providências ditadas pela Corte destituída, incluída a anulação da decisão que favoreceu Bucaram. Enquanto isso, o movimento cidadão de Quito anuncia novas mobilizações para exigir a saída de Gutiérrez e de todos os políticos corruptos. (Agência Latino-Americana de Informação www.alainet.org)
OMC
Ação global contra a agenda neoliberal Em todo o mundo, os ativistas que lutam contra o neoliberalismo celebraram a Jornada de Ação Global entre os dias 10 e 16 de abril. Definidas na Assembléia dos Movimentos Sociais, no 5º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, as jornadas são uma resposta ao “capitalismo neoliberal, que avança diante do enfraquecimento dos Estados, a desregulamentação das economias e a “legalização” de privilégios para as corporações transnacionais pelos Tratados de Livre Comércio (TLCs)” – como define a declaração da assembléia. No Brasil, além de manifestações no dia 15 nas principais cidades do país, a semana de jornadas tomou forma do seminário Acordos Comerciais e o Movimento Social, realizado em São Paulo por diversas entidades, com o objetivo de informar representantes sindicais, de ONGs e movimentos sociais sobre a
Anderson Barbosa
Daniel Merli de São Paulo (SP)
alguns países, como o Brasil, desempenharam na última reunião ministerial da OMC, em Cancún, em 2003. “Todos os países em desenvolvimento tiverem um diálogo muito grande com a sociedade civil e rejeitaram um acordo que representaria muitas perdas”, relembra. Mas acredita que o cenário deve ser mais complicado em dezembro deste ano, quando acontece a próxima reunião ministerial da OMC, em Hong Kong.
PACOTE DE JULHO
Em São Paulo, movimentos sociais protestam contra a política de opressão da OMC
agenda, para este ano, da Organização Mundial de Comércio (OMC). “A sociedade civil já teve um papel muito importante em evitar avanços do chamado livre-comércio. Devemos agora estar atentos
para os novos desafios”, alertou no seminário o pesquisador chinês Goh Chien Yen, da Rede do Terceiro Mundo (TWN, pela sigla em inglês). Goh reconhece o papel que
“Após o pacote de julho, há um nível de acordo muito maior”. Goh refere-se ao acordo realizado ano passado, batizado de pacote de julho, em que Estados Unidos e União Européia fizeram maiores promessas de redução de seu protecionismo agrícola em troca de avanços nas negociações na OMC. Participaram do encontro, além das duas potências, Brasil, Austrália e Índia. Goh teme que, alguns dos paí-
ses que antes se opuseram a um acordo em Cancún, possam ser mais maleáveis em Hong Kong, em troca de uma abertura dos mercados agrícolas. O Brasil poderá ser um desses países, a julgar pelo discurso do representante do governo no seminário. “Nosso interesse básico nas negociações é mais que óbvio: obter melhores condições de colocar nossos produtos no mercado internacional”, explicitou o diretor econômico do Itamaraty, Piragibe Tarragô. “O Brasil tem sido extremamente pragmático nas negociações o que, às vezes, não é muito bom”, alerta Goh. “O desenvolvimento econômico é um processo dinâmico e alguns setores que não são tão estratégicos hoje, podem ser importantes amanhã”. O pesquisador chinês refere-se ao risco de países como o Brasil cederem em questões como propriedade intelectual, serviços e produção industrial apenas em troca da abertura do comércio agrícola.
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AMÉRICA LATINA CUBA
Eleições: mais de 96% de participação Mesmo sem o voto ser obrigatório, cubanos vão às urnas escolher seus delegados e reafirmam a democracia na ilha
N
o domingo, dia 17 de abril, os cubanos foram de novo às urnas. Se para a maioria da população da ilha foi uma atividade rotineira, para os cerca de 380 mil jovens que completaram 16 anos tratou-se de uma bela novidade. Aqueles que vêem de fora a realidade de Cuba se dividem basicamente em duas posições: uma de compreensão e respeito em relação a um sistema eleitoral em que os habitantes propõem os candidatos e decidem, com seu voto, quem será seu delegado; outra, de franca oposição, que questiona uma forma de eleger que não se encaixa, segundo os cânones ocidentais, na “democracia representativa”. Cerca de 96% dos eleitores participaram do pleito que definiu delegados para as 169 Assembléias Municipais do Poder Popular. O voto, em Cuba, não é obrigatório, mas mesmo assim desde 1976 a taxa de participação supera os 95%. A forma de eleger dos cubanos e cubanas busca manter a orientação participativa direta dos eleitores (veja quadro ao lado). São milhares de cidadãos que se envolvem nesse tarefa, desde a elaboração dos registros dos votantes até a integração nas mesas eleitorais. As pessoas comuns participam da indicação de candidatos, da prestação de contas, do exame dos problemas do bairro, da circunscrição, do município, da província e da nação. Isto, no entanto, não significa que seja um sistema perfeito, nem que os delegados dos vários níveis possuam varinhas de condão para resolver as dificuldades. Mas existe uma base social que legitima as aspirações dos cidadãos e possibilita que seja mais participativo um projeto que garanta direitos básicos – como a educação e a saúde gratuitas, o emprego e a cultura.
QUE DEMOCRACIA? Uma razão pela qual freqüentemente se critica o sistema parlamentar de Cuba é o seu caráter não presidencialista. Omite-se, no entanto, que em muitos países são os deputados que elegem o chefe de Estado. Além disso, há nações em que 90% da população não quer um presidente, mas tem de esperar o término de seu governo porque não se permite a revogação do seu mandato. Isso é democrático? Em Cuba, o sistema parlamentar tem mecanismos que obrigam o governo a prestar contas aos deputados. Em qualquer comunidade da cidade ou do campo, as pessoas
assunto tem, no caso cubano, um fundamento histórico de profunda raiz democrática. Quando, nas guerras pela independência, no século 19, os mambises – cubanos que se levantaram em armas contra o domínio espanhol – aprovaram constituições, elegeram corpos representativos, governos, adotaram leis e criaram a República de Cuba em Armas. O princípio era de instituições, e não tinha partidos. Na era de José Martí, fundou-se um partido, o Partido Revolucionário Cubano, que tampouco era eleitoral e tinha como função unir o movimento democrático dentro e fora da ilha, mas não era responsável por eleger os delegados que integravam as assembléias constituintes e o governo que atuava no território livre. Detalhe: já naquela época os negros podiam ser eleitos. Nos Estados Unidos, só um século depois, em 1965, se aprovou o direito de voto dos negros.
Marcelino Vazquez/ AFP
Idania Trujillo de la Paz de Havana (Cuba)
INTERVENÇÃO Fidel Castro vota nas eleições para delegados das 169 Assembléias Municipais: festa da democracia, com 96% de participação
propõem e elegem os candidatos a delegados – que, uma vez eleitos, integram o governo municipal. Esses escolhidos têm de prestar contas de suas funções e o povo pode
revogar seus mandados a qualquer momento. Um dado ineressante: até 50% dos integrantes da Assembléias Provinciais do Poder Popular e da Assembléia Nacional têm
de ser delegados de base. Há quem questione a democracia em Cuba porque deixa de lado a discussão sobre a participação dos partidos nas eleições. Esse
O processo eleitoral cubano Quem pode votar? Todos cubanos e cubanas maiores de 16 anos, exceto quem está impedido pela Justiça, por ter cometido algum delito. O voto é obrigatório? Não, é um direito e um dever cívico. Como são eleitos os parlamentares (delegados) da nação, dos municípios e das províncias? Pelo voto livre, direto e secreto. Quem pode se candidatar? Cubanos e cubanas, maiores de idade, em situação regular com seus direitos políticos. Os candidatos podem anunciar sua própria candidatura nas reuniões públicas realizadas nos seus bairros, ou serem indicado por organizações políticas (estudantes, trabalhadores etc.). O Partido Comunista Cubano não indica nem escolhe candidatos. Como funciona o processo? Os eleitores escolhem, entre si, os delegados da Assembléia Municipal do Poder Popular. Até 50% desses eleitos têm de estar ligados a uma circunscrição eleitoral, ou seja, suas candidaturas precisam ter sido definidas em reuniões públicas realizadas nos bairros dos municípios. Esse princípio serve para garantir uma representatividade regional e de base no sistema de poder. Depois, os cubanos escolhem os delegados da Assembléia Provincial e os deputados da Assembléia Nacional. Os candidatos a esses postos são definidos pela Assembléia Municipal. Quando ocorrem as eleições? As eleições para a Assembléia Municipal ocorrem a cada dois anos e meio. Já os pleitos para a Assembléia Provincial e a Assembléia Nacional são realizados a cada cinco anos. O que é a Assembléia Nacional do Poder Popular? É o órgão supremo do poder do Estado. Algumas de suas atribuições: alterar a Constituição, legislar, convocar consultas populares, aprovar a linha geral da política externa, definir as diretrizes gerais da economia nacional, eleger o presidente, o vice, o secretário de Estado e os demais membros do Conselho de Estado. Como é eleito o presidente do Estado cubano? O presidente, na prática, passa por dois processos eleitorais. Primeiro, tem de ser escolhido para a Assembléia Nacional pela população. Depois, pelos deputados, por voto direto e secreto. O chefe de governo pode dissolver a Assembléia Nacional ou vetar uma lei aprovada pelos deputados? Não.
da Redação Não bastaram os milhares de apelos de um abaixo-assinado endossado por personalidades internacionais, tais como os vencedores do Prêmio Nobel Adolfo Pérez Esquivel (Paz), José Saramago (Literatura), Rigoberta Menchú (Paz). O documento rogava aos países que “não permitissem que a Comissão (Direitos Humanos da ONU) fosse utilizada para legitimar a agressividade anticubana da administração Bush, no momento em que a atual política belicista de Washington torna previsível uma eventual escalada de muitas graves conseqüências”. Por mais contraditório que seja, dia 14, a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou por 21 a 17 votos uma resolução proposta pelos Estados Unidos contra supostas violações de direitos humanos em Cuba. O texto contou com apoio, ainda, da União Européia.
O governo brasileiro ficou em cima do muro e, ao lado da Argentina, Peru e Equador, decidiu se abster da votação. Na justificativa, o Itamaraty manifestou “sua preocupação pela utilização da Comissão por alguns países membros para criticar outros ou evitar críticas a suas próprias situações”. Apesar de registrar que há “avanços em Cuba no campo dos direitos econômicos, sociais e culturais”, o Itamaraty não saiu em defesa do governo cubano na votação. Diferente, por exemplo, dos governos de Rússia, China, Sudão e Zimbábue, entre outros páises, que votaram contra a resolução. Com a omissão, o Brasil acabou corroborando com a desmoralização dessa Comissão que condenou Cuba, mas não fez menções em relação ao próprio autor da resolução: um país responsável pelo massacre dos povos afegãos e iraquianos, depois de invadir seus territórios, à revelia da própria ONU.
Arquivo Brasil de Fato
Brasil se omite; ONU condena a ilha
O que havia sido um autêntico ganho democrático para a época, veio abaixo com a intervenção dos EUA, em 1898, que impuseram restrições para votar: necessidade de uma renda mínima e nível educacional. Construíram uma sociedade elitista. A bancarrota dessa “partidocracia” ocorreu no golpe militar de Fulgêncio Batista, em 1952. Nesse momento, perdeu-se por completo a credibilidade nesses partidos, que não tinham capacidade de mobilização. Com a revolução de janeiro de 1959, instaura-se outra idéia de república, mais autenticamente democrática, com um partido que – como o de Martí – não intervém nas eleições, pois não persegue objetivos eleitorais. A democracia em Cuba tem uma sustentação histórica e um presente que se transforma, na medida em que o povo propõe novas metas em todos os âmbitos da vida do país. Para conseguir que essa participação seja cada vez mais consciente, no entanto, é preciso avançar no terreno da educação e da cultura, fundamentando melhor as propostas dos candidatos a partir da base, de modo que as pessoas possam discernir melhor os nomes propostos, atendendo a suas condições, mérito, prestígio e compromisso social. E isso, por conseqüente, vai redundar em que as prestações de contas dos candidatos sejam menos formais e funcionem como espaços que proporcionem a reflexão coletiva e a análise profunda dos nossos problemas cotidianos.
EUA escondem terroristas, diz Fidel da Redação
Cubanos aprovam governo soberano de seu presidente Fidel Castro
O presidente cubano, Fidel Castro, denunciou: os Estados Unidos estão dando asilo para o terrorista de origem cubana Luis Posada Carriles. A ação contaria, ainda, com o apoio de funcionários do governo estadunidense, entre eles, Roger Noriega (subsecretário de Estado), John Boton (embaixador na ONU) e Otto Reich (subsecretário de Estado). Fidel está exigindo que o governo estadunidense se pronuncie sobre o que vai fazer com Carriles. O terrorista esteve preso na Venezuela por ser um dos autores de um atentado contra um avião civil cubano em 1976, que estava próximo de Barbados. Morreram, na ocasião, 73 pessoas. Mas, em 1985, Carriles fugiu da prisão e reiniciou suas atividades terroristas. (Prensa Latina, www.prensa-latina.com)
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INTERNACIONAL NOVO PAPA
Fumaça branca para a ala conservadora Marcelo Netto Rodrigues e Tatiana Merlino da Redação
C
onsiderado o mentor intelectual de João Paulo II, o alemão Joseph Ratzinger, de 78 anos, foi eleito o novo representante de Deus na Terra, dia 19, após menos de dois dias do conclave e apenas quatro votações. Optando ser chamado de papa Bento XVI, o novo papa é um legítimo representante das correntes mais conservadoras da Igreja Católica. Recebeu o apoio dos cardeais ligados ao movimentos reacionários como Opus Dei e Comunhão e Libertação. “Bento XVI não estará preocupado em dialogar com o mundo que está mudando, mas sim com a unidade da Igreja Católica”, analisa o religioso Javier Mateo Arana, padre basco radicado no Brasil há 37 anos e alinhado à Teologia da Libertação. Segundo ele, o novo papa tende a ter menos disposição para viajar do que João Paulo II, “por ser mais frio e distante do povo, o que indica um governo rígido, centralizador”. Politicamente, a trajetória de Ratzinger foi marcada por um forte sentimento anticomunista, assim como o de Karol Wojtyla. O novo papa reprimiu teólogos que saíram de sua doutrina e foram seus alunos, como o teólogo da libertação e
Tony Gentile/ AFP/ Folha Imagem
O braço direito de João Paulo II se torna o papa Bento XVI, eliminando esperanças de avanços na Igreja
Cardeais elegem o conservador Joseph Ratzinger como papa Bento XVI, porta-voz dos movimentos reacionários da Igreja
escritor Leonardo Boff. O professor Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que a eleição de Ratzinger significa a continuidade do conservadorismo de João Paulo II. “A política de Karol foi idealizada e executada com o auxílio dele. As posições sobre temas como o papel das mulheres na Igreja, diálogo entre religiões, controle de
natalidade e homossexualismo vão continuar as mesmas”. Uma mostra das posturas conservadoras de Ratzinger foi a preparação de uma campanha mundial na Igreja contra a legalização do casamento homossexual. O documento dizia que a homossexualidade é “um fenônemo moral social inquietante”, uma “depravação” e “uma ameaça à família e à estabili-
dade da sociedade”. “Se Bento XVI for um papa de transição devido à sua idade avançada, vamos segurar a respiração e deixar passar”, conclui padre Javier. Vale lembrar que quando um grupo de cardeais brasileiros intercedeu por Leonardo Boff junto a João Paulo II, este respondeu: “Não posso fazer nada, meu cardeal é mais severo do que eu”. O cardeal
em questão era Ratzinger. A escolha do nome Bento XVI indica que o seu pontificado deve se caracterizar pela tentativa de resgatar fiéis dentro da própria Europa. Em 1964, o papa Paulo VI proclamou São Bento (que viveu entre os anos 480 e 547) o patrono principal de toda a Europa. Além disso, o último papa que havia decidido homenagear São Bento, o papa Bento XV (1914-1922), governou a Igreja Católica durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que também teve a Europa como palco central. Para Romano, a perda de fiéis é preocupante no mundo todo, mas “a descristianização é mais forte na Europa”. O maior desafio do novo papa, segundo o professor, é a diminuição da população católica européia. “O continente está deixando de ser católico. Além disso, enfrenta o problema do aumento do número de imigrantes de países islâmicos, para os quais a Igreja não tem uma resposta.” Padre Javier segue a mesma linha de raciocínio: “A Europa está ficando cada vez mais agnóstica. Não adianta nada ter 2 milhões de jovens na Praça de São Pedro se a juventude européia está totalmente descomprometida com a Igreja Católica. Eles têm total indiferença sobre o que o papa diz. E as coisas vão continuar assim se o tom do diálogo não mudar”.
ANÁLISE
ITÁLIA
O destino de Berlusconi, nas mãos do parlamento
O que esperar do novo papa Bento XVI Marcelo Barros
Erika Piacentini Zidko de Roma (Itália) O apego de Silvio Berlusconi ao poder surpreende até mesmo seus aliados. Contrariando o acordo feito com os partidos de sua coalizão, a Casa da Liberdade, o primeiroministro italiano não apresentou sua demissão ao presidente da República, Carlo Azeglio Ciampi. “Desta vez, surpreendi vocês”, disse ele aos jornalistas, no mesmo dia em que os holofotes estavam voltados para a Praça São Pedro, no Vaticano, quando foi anunciado o sucessor de João Paulo II. A demissão de Berlusconi – que já havia inclusive sido anunciada, dia 17, por Gianfranco Fini, ministro das Relações Exteriores e líder da Aliança Nacional (AN), o segundo maior partido da coligação –, era tida como solução para a atual crise do governo, iniciada após a esmagadora derrota da coligação de direita para a oposição de centro-esquerda nas eleições regionais dos dias 3 e 4. A situação se agravou ainda mais com a demissão de quatro ministros da União dos Democratas-Cristãos (UDC), incluindo o vice-primeiroministro, Marco Follini. O Novo Partido Socialista, outro aliado, também deixou o governo. Além de contrariar a própria coalizão, a insistência em manter-se no cargo é definida pela oposição como “um escândalo”, “o ponto mais baixo da política italiana”. Os líderes de partidos de esquerda passaram a ver como única solução para a crise a realização de eleições antecipadas. “A crise do governo está se transformando numa farsa indecente. Com o seu comportamento, o primeiro-ministro está brincando não apenas com a coalizão do governo, mas com as instituições e com todo o país. A Itália não merece ser governada com esse desprezo às regras democráticas e aos cidadãos”, disse Pier Fassino, líder do Partido Democrático da Esquerda (PDS).
“Isso já é demais. Atingimos o ponto mais baixo da política em toda a história da República”, afirmou Fausto Bertinotti, da Refundação Comunista. “É uma ofensa à inteligência da população, um desrespeito às regras democráticas. A única manifestação política possível diante dessa degradação é a indignação”, disse ele. Para o líder do Partido Verde, Alfonso Pecoraro Scanio, o comportamento do premiê é “um verdadeiro insulto ao voto popular”.
DIREITA, VOLVER! A tentativa de Berlusconi de manter-se no cargo, “para completar tudo o que começamos”, agora está nas mãos do Parlamento. O primeiro-ministro deve submeterse ao voto de confiança no Senado e na Câmara dos Deputados, dia 21, para confirmar se o Executivo continua a dispor de maioria para governar. Se ele perder a consulta parlamentar, as eleições gerais, marcadas para abril de 2006, serão antecipadas para junho deste ano. Na opinião dos analistas, a dissolução da legislatura e a convoca-
ção de eleições antecipadas é uma possibilidade remota. Conforme um editorial de um dos principais jornais do país, o conservador Corriere della Sera, “embora seja praticamente excluída esta hipótese, as eleições antecipadas seriam mais convenientes a Berlusconi, já que ele poderia ser reeleito ou, caso contrário, cair de pé, preservando algum capital político”. “É muito provável que os mesmos partidos que deram início à crise do governo dêem o voto de confiança a Berlusconi. Será o preço a ser pago para evitar as eleições antecipadas”, diz Sérgio Mora, correspondente do jornal espanhol El País. Segundo ele, o governo continuará, com algumas mudanças de ministros, e dará início a uma forte campanha em vista das eleições gerais de 2006. Para o contador Matteo Ascione, ouvido na rua, o Parlamento irá preferir partir para as eleições antecipadas. “O governo de Berlusconi chegou ao fim. A direita já percebeu que só terá chances de se reeleger se livrando dele o mais rápido possível”, diz ele.
Em pleno século 20, os meios de comunicação mostraram o que podiam do ritual barroco do conclave dos cardeais, que elegeu o papa Bento XVI, o cardeal alemão Joseph Ratzinger. Apesar de que a Igreja Católica tem ensinado que política é uma atividade humana nobre, os homens de Igreja insistem que, na eleição do papa, os cardeais se reúnem por nove dias para conversar e orar, mas não estabelecem nenhuma estratégia política. Na campanha de opinião prévia a esta eleição papal, boatos sobre uma imediata canonização de João Paulo II e a imposição de silêncio aos cardeais não favoreceram um clima de discussão livre nem a expressão de opiniões diferentes da oficial. Bento XVI não será o último dos papas. Mais de cem vezes na história, a expressão habemus papam (temos papa) foi proclamada, desde que, em 1059, Nicolau II determinou que o bispo de Roma passasse a ser eleito pelos cardeais, na época, presbíteros e diáconos das paróquias das periferias romanas. Hoje, a mesma expressão não possui igual ressonância, nem acarreta as conseqüências do tempo em que o mundo conhecido era a Europa, o regime de todos os governos era a monarquia e a sociedade ocidental era cristã. Atualmente, dos seis bilhões de seres humanos, 30% são cristãos. A maioria é católica, mas o número tem diminuído. Muitos buscam grupos religiosos menos presos a rituais medievais e que se proponham a responder às necessidades dos fiéis. Outros, e não poucos, simplesmente abandonam a fé ou optam por caminhos de espiritualidade desligados da Igreja. A eleição de Bento XVI pôs fim a dias de incerteza. Agora, o importante é colher das palavras e gestos do novo eleito sinais que indiquem a direção que ele deseja dar à Igreja e à sua missão. O
primeiro desafio será: o que fazer com a pesada herança recebida. O novo papa recebe uma Igreja Católica mais centralizada do que sempre foi e uma Cúria Romana ciosa do seu poder e receosa de perdê-lo. O papa recém-eleito precisará tomar uma posição urgente frente às finanças da Sé Romana, atualmente deficitárias. Por essa razão, mais principalmente por coerência evangélica, muitos cristãos o aconselham a renunciar à função de chefe de Estado e fechar a página dos papas reis. Não estamos mais no século 8, quando Pepino, o Breve, rei dos francos, deu ao papa o “Estado Pontifício” para libertar-se das pressões que ameaçavam Roma. Criou-se a lenda de que o imperador Constantino teria dado ao papa Sivestre (335) a tiara (tríplice coroa) e o título de “Sumo Pontífice”, até então reservado ao imperador como sacerdote supremo da religião imperial romana. O novo papa conhece essa história e sabe da imensa capacidade de adaptação do papado. Em 1978, o cardeal Koning, arcebispo de Viena (Áustria), disse: “É necessário reduzir o peso do cargo papal e delegar certas funções, a fim de não ultrapassar os limites da fadiga suportáveis por um ser humano”. Há décadas, fala-se da urgência de um processo conciliar que reúna não só bispos, mas representantes de todo o povo de Deus e culmine em um concílio verdadeiramente ecumênico, com representantes das diversas igrejas, comprometidas com a paz, a justiça e a defesa da criação. O mundo que reverenciou João Paulo II como artesão da paz precisa que o novo papa recoloque a Igreja em diálogo com a ciência, com as artes e a parte da humanidade que busca “um novo mundo possível”. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de vários livros, dos quais o mais recente é Il Sapore della Libertà, publicado na Itália
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Violência e mortes em eleições no Togo da Redação
A
campanha para a eleição presidencial do dia 24, no Togo, desandou para a violência. Dia 16, um confronto entre militantes rivais nas ruas da capital Lomé resultou na morte de sete pessoas, das quais seis do partido no poder, e mais de 150 feridos. São os incidentes mais graves desde o início da campanha, depois da morte, dia 5 de fevereiro, do presidente Gnassingbé Eyadéma, que ficou 30 anos no comando do país. Tanto a coalizão de oposição União de Forças pela Mudança, como a agremiação governamental Juventude da Reunião do Povo Togolês (RPT) negaram ser responsáveis pelos atos violentos. A situação se acalmou dia 17, no centro da capital, onde o candidato da RPT, Faure Gnassingbé, filho do ex-presidente, realizou um comício. Faure havia sido empossado presidente pelo Exército, após a morte do pai, mas teve de se afastar por causa da pressão internacional, principalmente africana, que estava levando o Togo ao isolamento diplomático.
SUSPEITA DE FRAUDES Gilchrist Olympio, filho do primeiro presidente do país, Sylvanus Olympio – assassinado por ocasião
Schalk Zuidam/AP/AE
Militantes do partido no poder e da oposição se enfrentam durante campanha para eleger próximo presidente
TOGO Localização: Oeste da África Nacionalidade: togolesa Cidades principais: Lomé (capital), Sokodé, Kpalimé, Lama-Kara Línguas: francês, cabiê e euê (oficiais) Divisão administrativa: 5 regiões População: 5,1 milhões Moeda: franco CFA Religiões: crenças indígenas (70%), cristã (20%), muçulmana (10%)
Clima de tensão e violência durante a campanha para a eleição presidencial, no Togo, em razão da suspeita de fraudes
do golpe que levou Gnassingbé Eyadéma ao poder, em 1963 – chegou a animar as fileiras da oposição e apoiar o candidato único da coalizão, Emmanuel Akitani Bob. “Abaixo o sistema antigo, viva a renovação”, disse Olympio a milhares de simpatizantes. Há quatro
candidatos no total, mas Gnassingbé e Akitani Bob são os favoritos. Há várias semanas a oposição exige a revisão das listas de eleitores, que julga estarem repletas de fraudes. Mesmo assim, Olympio garantiu que a coalizão não vai boicotar as eleições, exceto se “as coi-
ARGÉLIA
sas se deteriorarem esta semana”. Houve choques anteriores entre militantes da oposição e da RPT, com vários feridos. No dia 15, primeiro dia da campanha, um oposicionista foi morto por forças de segurança. “Não estamos satisfeitos com a organização das eleições, mas ire-
DESENVOLVIMENTO
Governo prende jornalistas O diretor do jornal argelino Le Matin, Mohamed Benchicou, está preso há dez meses. Esse jornal, que vendia 150 mil exemplares por dia, parou de circular em junho de 2004. Desde então, milhares de pessoas assinaram petições exigindo a libertação de Benchicou. O governo argelino, em vez de responder, a cada semana processa mais jornalistas. É o caso de quatro jornalistas do Le Matin, além de Benchicou, que ousaram se interessar por dossiês reveladores de desvio de verbas públicas e corrupção. O redator-chefe Youssef Rezzoug e os seus colegas Yasmine Ferroukhi, Habla Chérif e Hassane Zerrouky correm o risco de pegar seis meses de prisão e serem condenados a pagar multas de várias dezenas de milhares de dinares. Em Paris, há duas semanas, o jornal L’Humanité organizou uma
manifestação de protesto diante da Embaixada da Argélia.
EM PERIGO No primeiro aniversário de sua reeleição como chefe de Estado, em 8 de abril de 2004, Abdelzaziz Bouteflika declarou que “a paz civil está restaurada em nossa sociedade graças aos benefícios da concórdia civil, logo transformada em reconciliação nacional”. Na véspera, treze pessoas haviam sido assassinadas por islamitas extremistas, que armaram uma falsa barreira perto de Larbaa, a 30 quilômetros ao sul de Argel. Além disso, parece que a concórdia civil também não inclui os jornalistas. “Hoje em dia, basta ser jornalista para ser culpado. A profissão de jornalista tem alto risco penal. O jornalista se torna um delinqüente simplesmente por causa de sua profissão”, disse, no L’Humanité, Khaled Bourayou, advogado em Argel e defensor de numerosos jornais.
O que está sendo questionado, de fato, na Argélia, é a liberdade de expressão. Entretanto, o governo argelino não se perturba. Recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), consagrado ao desenvolvimento humano no mundo árabe, espantosamente inclui a Argélia como um dos cinco países árabes onde está garantido o direito dos jornalistas ao acesso à informação e à comunicação. Depois de dez meses de prisão, o estado de saúde de Benchicou piorou e as autoridades do cárcere não permitiram nenhum tratamento digno. Preso numa cela com outras cinqüenta pessoas, com direito a apenas dez minutos de caminhada por dia, o diretor do Le Matin não abdicou de sua convicção e sua determinação é total, segundo sua esposa, Fatiha. Ela informou ainda que um habeas corpus foi impetrado e seria julgado dia 20. Até essa data, as mobilizações prosseguiram de formas diversas.
PAN-AFRICANISMO
Renasce articulação intercontinental Jackson Miller de Kingston (Jamaica) Cada vez mais líderes políticos e personalidades públicas vislumbram uma nova era de cooperação entre África, Brasil e Caribe. Um deles é Ralph Gonzalves, primeiro-ministro de San Vicente e Granadinas, no Caribe, que aspira a um grande aumento das viagens e do comércio entre essas regiões, bem como a cooperação cultural, esportiva, educacional e sanitária. A concretização desses objetivos, segundo esse governante caribenho, poderia começar pelo estabelecimento de “uma comissão permanente entre África, Brasil e Caribe. O momento é agora”, disse. “Temos novos líderes na África, e os do Caribe são muito receptivos a essas idéias”, prosseguiu, acrescentando que também conta com a presença de Luiz Inácio Lula da Silva à frente do governo do Brasil, onde está radicada a maior comunidade negra fora da África. “As circunstâncias internacionais são tais que necessitamos do espaço,
como resposta de pessoas que são marginalizadas do sistema”, afirmou Gonzalves. Para o poeta e músico de reggae Mutabaruka, é óbvia a resposta à pergunta se o pan-africanismo mantém sua validade: “A maioria da população jamaicana é de origem africana e nunca pudemos forjar o vínculo entre o Caribe e a mãe-pátria. Devemos nos decidir a desenvolver uma relação Sul-Sul porque sempre estamos olhando para o Norte”. Em sua acepção mais usual, o pan-africanismo é um movimento pela unidade da própria África. Mas, num sentido mais amplo, apela para o despertar da consciência de todos os povos e comunidades de origem africana. Muitos pan-africanistas colhem os ensinamentos do jamaicano Marcus Garvey, que no início do século 20 promovia um estreitamento de vínculos entre as comunidades negras das Américas e do Caribe com a África. Sua mensagem de incentivo ao orgulho negro, em um momento histórico de submissão e iniqüidade,
conseguiu a adesão de milhares de pessoas. Os pequenos países do Caribe se mostram agora muito dispostos a reanimar a relação histórica e cultural e a traduzi-la em cooperação, nesta era histórica de alianças comerciais e desafios crescentes para o Sul em desenvolvimento. A idéia predominante é de aprofundar e fortalecer as áreas de colaboração existentes, como as estabelecidas no grupo de ex-colônias da África, do Caribe e do Pacífico (ACP), que negociam preferências comerciais com suas antigas metrópoles da União Européia. Uma recente conferência realizada em conjunto pela União Africana (que reúne os 53 países do continente) e a Comunidade do Caribe (Caricom, com 15 membros plenos e cinco associados) recomendou que os dois blocos se concedessem reciprocamente o estatuto de observadores. Também propuseram que uma comissão afro-caribenha se encarregue de centralizar os passos para o fortalecimento do vínculo. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
União Européia propõe mais ajuda para africanos Stefania Bianchi de Bruxelas (Bélgica) A União Européia (UE) anunciou uma série de propostas para aumentar o montante e a qualidade de sua ajuda para o desenvolvimento, concentrada na África. A medida visa cumprir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio fixados pela Organização das Nações Unidas, que incluem redução da pobreza extrema e da fome pela metade, educação primária universal, promoção da igualdade de gênero, redução da mortalidade materna em três quartos, da mortalidade infantil em dois terços, combate à Aids, malária e outras enfermidades. As metas específicas devem ser cumpridas até 2015 e têm como referência os níveis de 1990. Em setembro, uma cúpula mundial vai avaliar o progresso no cumprimento desses objetivos e fixará a agenda de desenvolvimento para a próxima década. Louis Michel, comissário de Desenvolvimento da União Européia, exortou os 15 membros mais antigos do bloco regional a incrementar os investimentos em ajuda para o desenvolvimento em, no mínimo, 0,51% de seu produto interno bruto até 2010. Os dez novos integrantes aumentariam para 0,17%. Esse aumento – que significaria 20 bilhões de euros (25,640 bilhões de dólares) adicionais, até 2010 – seria um passo prévio para o cumprimento, em 2015, da promessa internacional dos países ricos, feita em 1970, de destinar 0,7% de seu PIB à cooperação
para o desenvolvimento. Todos os integrantes da UE se comprometeram a cumprir esse objetivo de 0,7%, mas, até agora, somente Dinamarca, Holanda, Luxemburgo e Suécia o fizeram. Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Grã-Bretanha e Irlanda fixaram cronogramas para alcançar essa meta antes de 2015. Outros países, como Áustria e Itália, estão muito longe dessa porcentagem. “A África deve ser o centro de nossa atenção. Necessitamos de mais recursos para a África subsaariana, região mais pobre do mundo, e apresentarei um autêntico plano de emergência para essa região”, anunciou Michel ao lançar as propostas junto com o presidente da Comissão Européia, José Manuel Barroso. “A África é um sócio geopolítico que se tornará cada vez mais importante. China e Estados Unidos já entendem isso, e por essa razão estão dando mais atenção a essa parte do mundo”, acrescentou. As organizações não-governamentais Oxfam Internacional, Eurodad e ActioAid Internacional vêem com reticências a nova iniciativa do bloco europeu. Os novos objetivos de ajuda para o desenvolvimento são “um passo na direção certa”, mas, “a verdadeira prova será nos próximos meses, quando a Europa enfrentar oportunidades-chave de ações decisivas para transformar essas propostas em realizações”, advertiram as entidades em uma declaração conjunta. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
CMI
Pierre Barbancey de Paris (França)
mos às urnas, apesar das condições difíceis, disse Olympio, que, depois de ter sofrido um atentado em 1992, vive exilado na França desde 1999 e só faz breves visitas ao Togo por questão de segurança. Aos 68 anos, ele é o líder da oposição, mas não pode se candidatar por não ter domicílio eleitoral no Congo. Por isso, apóia Akitani Bob. (Com agências internacionais)
Organizações sociais esperam que plano de ajuda não fique apenas no papel
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INTERNACIONAL ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
Resistir ou render-se ao império? João Alexandre Peschanski da Redação
Arquivo ONU
O presidente estadunidense, George W. Bush, se mobiliza para orientar a reforma da ONU, prevista para setembro
Tumultuados sessenta anos
O
secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, pretende liderar um amplo programa de reformas da instituição. Em março, apresentando o relatório “Em uma liberdade maior: desenvolvimento, segurança e respeito aos direitos humanos para todos”, em Genebra (Suíça), ele justificou a proposta: criada em 1945, a ONU não consegue lidar com os novos desafios do mundo. Refere-se, principalmente, ao crescente intervencionismo do governo dos Estados Unidos, que emergem como potência imperial no pós-Guerra Fria. A pauta definitiva da reforma deve ser elaborada em Nova York, de 16 a 18 de setembro, durante as celebrações do aniversário das Nações Unidas. O relatório de Annan indica, entretanto, o tom das mudanças. A prioridade deve ser a luta contra o terrorismo, definido – de forma insuficiente – pelo secretário-geral como uma ação que ataca a população civil para atingir objetivos políticos. Annan propõe uma nova estrutura de direção para fortalecer o papel do secretário-geral, o que lhe daria mais poder na instituição. Hoje, para tomar uma decisão, Annan deve passar por diversos conselhos da ONU. A parAssembléia Geral tir disso, espera da Organização reduzir a um das Nações Unidas – Principal terço os gastos órgão administrativo administrativos da ONU, que reúne da instituição. representantes dos 191 países integran- Também pretes da instituição. tende revitalizar Conselho de Segua Assembléia rança da Organização das Nações Geral e modifiUnidas – Grupo car a estrutura de países com a responsabilidade de do Conselho de orientar a política de Segurança, aupaz da ONU. Tem mentando para 15 integrantes: 24 o número 10 são temporários de participantes e 5 (China, Estados Unidos, França, (no lugar dos Grã-Bretanha e 15 atuais) – seis Rússia), permanendos quais com tes. Estes últimos têm o poder de vagas permavetar qualquer pronentes, mas sem posta. direito de veto.
Fernanda Campagnucci da Redação
Nos planos para a reforma da ONU, destaque para a segurança e o combate ao terrorismo
Estados Unidos, George W. Bush. A avaliação é da pesquisadora Béatrice Pouligny, do Centro de Pesquisa e Estudos Internacionais da Escola de Ciência Política de Paris (França), para quem Annan propõe uma visão securitária da instituição, dando destaque à questão militar. Nessa lógica, afirma a pesquisadora, a ONU pode fazer um contra-
O Brasil, segundo Annan, deveria tornar-se um dos países com representação permanente.
VISÃO SECURITÁRIA O secretário-geral pretende restaurar a legitimidade da ONU, abalada pelo unilateralismo estadunidense, mas periga fazer concessões em demasia ao presidente dos
peso à política imperial do governo dos Estados Unidos, trazendo novas definições e orientações para a luta contra o terrorismo, os direitos humanos em casos de conflito e a ajuda humanitária. Bush vai pressionar – e já pressiona – Annan para fazer da instituição, ainda mais, um instrumento de legitimação de seu belicismo.
Bush ataca com críticas e pressão O governo dos Estados Unidos não poupa esforços – e ações truculentas – para pôr na sua linha a Organização das Nações Unidas (ONU). Em março, quando o secretário-geral da instituição, Kofi Annan, divulgou as linhas da reforma da instituição, o presidente George W. Bush fez um discurso afirmando que a ONU deveria adaptar-se às novas regras da política internacional e ser mais ativa no combate ao terrorismo. Em outras palavras,
ele quer que a instituição se alinhe a sua doutrina da guerra. Não só nos discursos se dá a pressão do governo estadunidense sobre Annan e a ONU. No final de 2004, após a divulgação de um relatório da instituição que criticava a administração do Iraque pelas tropas de ocupação, iniciou-se nos Estados Unidos uma campanha pedindo o impedimento de Annan. A justificativa, não comprovada, era seu suposto envolvimento em um esquema de desvio de dinheiro de
missões de ajuda humanitária. Para garantir sua influência na instituição, Bush deslocou, em 2005, dois de seus principais aliados para cargos na ONU. Em primeiro, indicou – e elegeu – seu vice-secretário de Defesa, Paul Wolfowitz, para presidente do Banco Mundial (organização que integra a ONU). Depois, indicou John Bolton, um dos idealizadores da doutrina bélica de Bush, como embaixador na Organização. (JAP)
Sob os escombros da Liga das Nações, entidade criada em 1919 que falhou ao não evitar a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), nasce a Organização das Nações Unidas (ONU). Ainda durante a guerra, em 1º de janeiro de 1942, 26 nações se reuniram para manifestar a intenção de continuar lutando contra os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Na ocasião, a expressão “Nações Unidas” – cunhada pelo presidente estadunidense Franklin Roosevelt – foi utilizada pela primeira vez na chamada Declaração das Nações Unidas. Dois anos depois, uma proposta de organização internacional foi elaborada. A instituição foi finalmente oficializada dia 24 de outubro de 1945, data em que a Carta das Nações Unidas – considerada uma Constituição da ONU – foi ratificada e promulgada por 51 países. Na carta, a manutenção da paz e a segurança no mundo, o fomento às relações cordiais entre as nações, a promoção do progresso social e a melhoria dos padrões de vida e direitos humanos foram estabelecidos como objetivos da instituição. Com a derrocada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1991, a ONU se viu cada vez mais refém das orientações políticas dos Estados Unidos, que emergem, no final do século 20, como potência imperial. Nas raras vezes em que houve desacordo entre a instituição e o governo dos EUA, prevaleceu a opinião estadunidense – como no caso da ofensiva contra o Iraque, iniciada em 2002, que havia sido condenada pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan.
A guerra privatizada dos Estados Unidos que haja 150 mil soldados. No sentido estrito, não são mercenários (soldados que, em troca de salários, servem, por vontade própria, um exército estrangeiro). São “prestadores de serviços militares”, funcionários de grandes corporações privadas, que servem ao exército estadunidense a partir de contratos empresariais.
expansão das corporações militares está diretamente ligada à doutrina bélica de Bush. “A guerra contra o terrorismo, principal bandeira do governo estadunidense, depende da elaboração de complicadas redes de coleta de informação, que as grandes empresas se dispõem a construir”, afirma a cientista política. As corporações militares – como as estadunidenses DynCorp e Kellogg Brown & Root – movimentaram, segundo projeções realizadas em 1997, citadas por Deborah, 55,6 bilhões de dólares em 1990. Em 2010, a soma deve subir
EMPRESAS MILITARES As empresas que prestam serviços militares atuam na parte logística, formação, segurança, informação, análise de riscos, interrogatório e repressão. Em entrevista ao Brasil de Fato, a professora de Ciência Política da Universidade George Washington, na capital estadunidense, Deborah Avant, especialista em questões militares, considera que a
Militares estadunidenses reprimem iraquianos contrários à invasão do país
para 202 bilhões de dólares. Os militares privados, freqüentemente, colocam-se acima da lei. Muitos soldados que participaram das torturas na prisão de Abu Ghraib, perto de Bagdá (capital do Iraque), em 2003, eram contratados das grandes empresas. Na ocasião, amplamente divulgada pela grande mídia, prisioneiros iraquianos aparecem encapuzados, espancados e aterrorizados por militares estadunidenses.
LÓGICA DO MERCADO Segundo Deborah, os soldados privados são mais propensos a co-
meter abusos pois são motivados pela lógica do mercado. A cientista política explica: “São contratados por sua eficiência. Quando têm que fazer interrogatório, são compelidos a trazer resultados, então acabam usando qualquer método para isso”. As tropas privadas não atuam de modo transparente – o que facilita a proliferação e o acobertamento de abusos, como no caso dos prisioneiros iraquianos. As empresas prestadoras de serviços militares respondem aos governos que as contratam, mas os soldados privados têm certa autonomia de ação. (JAP)
Bush garante: em 2005, mais imperialismo Mehdi Fedouch/AFP
O governo dos Estados Unidos implementa, na ocupação do Iraque, iniciada em 2002, uma pérfida inovação militar. Satisfeito, tenta vender o modelo a outros países, como a Inglaterra, e a organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Parte significativa dos soldados em território iraquiano, principalmente os envolvidos nas missões de maior interesse estratégico para o presidente George W. Bush, não integra as tropas estadunidenses. Também não faz parte dos contingentes inglês ou italiano – que participam da ocupação. Um quinto dos militares que estão no Iraque é de tropas apátridas, de grupos articulados e formados por grandes empresas. No país, estima-se
O presidente estadunidense, George W. Bush, pretende intensificar as intervenções militares no mundo. É o que se entende pelo recém-lançado relatório “A Estratégia da Defesa Nacional dos Estados Unidos da América”, escrito pela Secretaria de Defesa do país, encabeçada por Donald Rumsfeld. O documento é um tipo de resumo das diretrizes bélicas de Bush para seu novo mandato, iniciado em 2005. O argumento geral do texto é: para manter a segurança dos Estados Unidos, é preciso derrotar os inimigos do país e assegurar mais aliados. Toma então contornos de extremo unilateralismo, pois as
relações internacionais são entendidas como um meio para garantir os interesses estadunidenses. Afirma o texto: “Vamos fazer uso de nossa posição de destaque no cenário internacional para construir um mundo mais seguro, um mundo melhor, que leve em consideração a liberdade humana e a democracia”. Evidentemente, no relatório, não foi mencionado que esse objetivo só é realizado, na lógica de Bush, com guerras – e, conseqüentemente, mortes.
COMUNIDADE DE AMIGOS No documento, o governo estadunidense se compromete em articular as bases de um sistema internacional, no qual participariam
seus aliados. O principal objetivo, segundo o relatório, é a luta contra o terrorismo, considerado um mal que prolifera em todas as regiões do mundo. “Mais de 170 países se comprometeram a articular atividades que vão desde congelar os fundos financeiros de organizações terroristas até partilhar as atividades de inteligência”, destaca o documento. Em parte alguma, o texto se refere à Organização das Nações Unidas (ONU), instituição criada para funcionar como uma comunidade internacional multilateral e abarcar os temas militares que a Secretaria de Defesa dos Estados Unidos abordam. (JAP)
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DEBATE VENEZUELA
Para aprofundar a revolução Ubirajara Farias uando completaram-se três anos do levante popularmilitar que recolocou o presidente Hugo Chávez novamente no Palácio de Miraflores – ele que havia sido derrubado dois anos antes por um golpe de direita apoiado pelos Estados Unidos – foi realizado, dia 13, no Pátio das Forças Armadas, em Caracas, o ato de constituição das Reservas Militares e da Mobilização Nacional, e empossado como comandante das Reservas Militares o general Julio Quintero Vitória. No ato, o presidente Chávez conclamou o povo venezuelano a ingressar nas Reservas Militares, formadas por civis, homens e mulheres até 50 anos de idade, que, como voluntários, receberão treinamento militar-político nos quartéis de todo o país, para defender a Venezuela de agressões externas. “No mesmo momento em que a Venezuela for invadida, terá início a guerra de guerrilhas para defender nossa soberania e expulsar o invasor”, declarou o presidente Chávez em seu programa dominical pela televisão. Na mesma semana, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas dos EUA, General Jeff Meyer, visitou o insurreto Equador e a ocupada Colômbia, onde fez declarações enigmáticas e ambíguas. Ao mesmo tempo em que dizia que os EUA não querem invadir a Venezuela, afirmou que, se países “perturbadores da ordem” atuarem na região, o governo estadunidense poderá ser obrigado a intervir, sem especificar qual exatamente seria essa intervenção. Basta recorrer à história para se ter uma idéia, pois a história da política externa dos EUA é uma história de intervenções militares em vários cantos do planeta. Evidentemente, os segmentos da direita venezuelana reagiram furiosamente à decisão do governo Chávez de formar um contingente de 2 milhões e meio de homens e mulheres preparados para a defesa de um país que, pelo simples fato de possuir as maiores reservas de petróleo conhecidas em todo o mundo, corre grande risco – já que a produção de petróleo mundial é declinante e o maior consumidor do mundo é também o país mais armado do planeta e não produz sequer metade do petróleo de que precisa a cada ano. Para quem acha esse raciocínio muito alarmista ou simplista, aí está a ocupação militar do Iraque, para demonstrar o risco que a Venezuela corre. Ainda assim, as críticas da direita venezuelana à decisão de Chávez de comprar cem mil fuzis da Rússia, algumas fragatas da Espanha e aviões do Brasil, beiram a mais completa irracionalidade. O raciocínio do deputado Eduardo Zambrano, da conservadora Ação Democrática, partido que se revezou no poder nas várias décadas em que houve o maior enriquecimento da oligarquia petroleira venezuelana, é muito didático: “A Venezuela é um país pacífico – diz candidamente em um programa da TV estatal que abre espaço para a oposição – não haverá nenhuma guerra. Isso é apenas um circo de Chávez, fruto de sua imaginação, preparar-se para uma suposta guerra contra os Estados Unidos e a Colômbia”. Nem mesmo a informação de que os EUA gastam anualmente 500 bilhões de dólares na indústria bélica, ou que elevaram para 20 bilhões de dólares o volume de efetivos militares na vizinha Colômbia é capaz de trazer uma dose de realismo às suas análises. No mesmo programa televisivo, o general da reserva Miguel Aparício, tam-
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bém da oposição, tentava dizer que a criação da Reserva Militar é apenas resultado do desejo de Chávez de militarizar o país, dada a sua formação militar. “Para que Chávez quer 2,5 milhões de reservistas se nem mesmo os EUA ou a China possuem tal contingente?”, fustiga nas telas da TV estatal aberta à oposição. Vale lembrar que o contingente militar chinês alcança 100 milhões de homens/mulheres e que apenas no Iraque os EUA têm mais soldados que o número de fuzis que Chávez está comprando da Rússia. Enquanto um telespectador chavista lamentava que Chávez comprasse apenas cem mil fuzis – “deveria comprar 25 milhões, um para cada venezuelano” –, outras informações, mais objetivas, eram repartidas para demonstrar que não há nenhuma militarização frenética e paranóica do país. A começar pelo fato de que há 50 anos não há reposição de armamento das forças armadas venezuelanas, razão da compra dos fuzis russos, apesar dos protestos dos EUA, o maior fabricante e comerciante de armas do mundo. Enquanto arma Israel, a Colômbia e a Guatemala, o governo de George W. Bush protesta contra a decisão da Espanha de vender aviões e fragatas à Venezuela, apesar da explicação do primeiro-ministro José Luiz Zapatero de que esses equipamentos têm finalidade defensiva, destinam-se ao combate ao narcotráfico e aos desastres naturais. O argumento espanhol foi desprezado pelos estadunidenses, na mesma semana em que marines foram presos com grandes quantidades de cocaína ao voltar da Colômbia, e o governo estadunidense recusa a extradição dos mesmos para serem julgados no país sul-americano. Obediente, a Colômbia se cala. O BRASIL NO DEBATE
Como o Brasil, por meio da Aliança Estratégica firmada com a Venezuela em fevereiro, também se dispôs a vender aviões militares ao país vizinho, bem como a uma cooperação militar para a defesa da região amazônica, veio do jornal Valor Econômico
uma estridente manifestação de solidariedade à direita venezuelana, afirmando que a formação da Reserva Militar é um avanço do governo Chávez rumo à ditadura. Como se sabe, o Valor Econômico pertence aos grupos Folha e Globo, ambos defensores do golpe militar de 64 no Brasil e, atualmente, defensores militantes de que o governo Lula mantenha o pagamento integral das dívidas externa e interna, a estabilidade da política econômica que favorece o setor financeiro e propõe que o dirigente petista distanciese de Chávez. O tom do editorial do jornal, entre furioso e desolado, talvez seja um bom termômetro para medir o quanto a mobilização de um povo, bem preparado política e militarmente, elevando seus indicadores sanitários e educacionais, pode assustar os representantes da grande capital, os anunciantes que controlam a linha editorial da grande imprensa. Porém, o ataque do jornal Valor Econômico dirige-se também contra a decisão do governo venezuelano de acabar com os privilégios seculares que as multinacionais petroleiras sempre tiveram por lá, adotando providências para que a receita petroleira seja cada vez mais nacionalizada e usada em benefício dos milhões de venezuelanos que no passado jamais usufruíram dessa riqueza imensa. Notem a confissão do Valor Econômico: “Chávez resolveu também apertar o cerco às companhias estrangeiras de petróleo, que respondem por quase metade da produção. Ele elevou os royalties de 1% para 16,6% das empresas que operam na bacia do Orinoco e estabeleceu que novas parcerias terão termos mais favoráveis ao governo – 30% de royalties e 51% de participação da PDVSA. Com a produção estabilizada ou cadente e medidas que afugentam investidores, o governo venezuelano poderá em
breve ficar com recursos menores para programas sociais.Ou seja, o jornal que se cala diante da clamorosa rapina que as transnacionais fazem das riquezas minerais aqui no Brasil – seja do silício, do ouro, do petróleo, do nióbio, do alumínio produzido com energia elétrica subsidiada, enquanto os brasileiros comuns pagam tarifa cheia – revolta-se contra a decisão soberana do governo Chávez de cobrar preços mais justos pelo que vende, como em qualquer regra capitalista. Como, por exemplo, os países hegemônicos nos cobram por seus produtos industrializados, pelos pacotes tecnológicos, pelos royalties. Se um país rico cobra, tudo bem, mas se é a Venezuela... EDUCAÇÃO E ARMAS
A direita venezuelana, em sintonia com a Casa Branca, recebeu uma surpreendente solidariedade em sua campanha contra as Reservas Militares. O senador Cristóvam Buarque, ex-ministro da Educação no primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, declarou ao jornal El Nacional, um dos promotores do golpe contra Chávez em 2002, que “de nada serve entregar fuzis a um povo sem educação”. Buarque, conselheiro da Fundação Roberto Marinho, pertencente ao Grupo Globo, ao qual também pertence o Valor Econômico, pode ter sido traído pela desinformação contida na pergunta do jornalista que o entrevistou, onde se afirma que pela primeira vez em 40 anos a Venezuela irá gastar mais em armas que em educação. Os números mostram exatamente o contrário: o governo Chávez quadriplicou o orçamento educacional e a Venezuela é hoje um país em que a grande maioria do povo está estudando, seja nos
cursos regulares, seja nas Missões Robinson, Sucre ou Ribas, programas sociais sustentados com recursos do petróleo. Como resultado, a Venezuela está prestes a ser declarada pela Unesco como território livre do analfabetismo, façanha que na América Latina pertence unicamente a Cuba – não por acaso, país que vem defendendo sua soberania por meio de um povo armado e organizado em milícias, tal como agora se pretende fazer na pátria de Bolívar. Talvez o professor Cristóvam não goste dessa lição da história, mas foi com armas nas mãos que a Nicarágua sandinista eliminou o analfabetismo no período revolucionário para vê-lo retornar na Nicarágua neoliberal e corrupta de hoje. Igualmente, foi com armas nas mãos que a China deixou de ser um país das trevas do analfabetismo, onde as mulheres eram vendidas nas feiras, para se tornar uma nação que lança satélites e é a maior produtora de computadores pessoais do mundo. A preparação militar de um povo soberano é condição para defender essa soberania e para implementar todas as outras formas de soberania como a soberania educacional, a soberania alimentar pela reforma agrária, a soberania sanitária por meio de fortes políticas públicas de saúde, que na Venezuela bolivariana se realiza com milhares de médicos cubanos, os mesmos que estão sendo expulsos daqui do Brasil, onde milhões de brasileiros só conhecem os médicos pelas novelas da Rede Globo, sustentadas pelas gordas verbas publicitárias públicas, verbas que faltam ao magro orçamento educacional. Orçamento que o mministro Cristovam não conseguiu engordar. Ubirajara Farias é jornalista
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AGENDA MODERNIDADE E DISCURSO ECONÔMICO Leda Paulani, professora de economia da USP, analisa as raízes filosóficas e ideológicas das idéias e dos discursos na economia, recupera o debate sobre os fundamentos teóricos da economia política, o contexto social e as idéias filosóficas que influenciam as correntes econômicas. A autora discorre sobre a obra e influência da evolução das idéias modernas e pós-modernas, com suas contradições entre indivíduo e sociedade, partindo desde Hegel até chegar ao discurso econômico ortodoxo. A partir das análises de Karl Marx e Guy Debord, Leda retoma a importância da crítica da economia política e do ideário da modernidade, de não se perder de vista seu significado em termos de projeto de emancipação, muito diferente da visão neoliberal que trata as relações sociais, e entre elas, a economia, como um fenômeno “natural”, como se fosse natural e inevitável a crescente desigualdade, pobreza e outras “maravilhas contemporâneas” do capitalismo. O livro foi editado pela Boitempo Editorial, tem 216 páginas e custa R$ 29. Mais informações: www.boitempo.com SOCIOAMBIENTALISMO E NOVOS DIREITOS: PROTEÇÃO JURÍDICA À DIVERSIDADE BIOLÓGICA E CULTURAL A obra, de autoria da jornalista e promotora Juliana Santilli, discute temas como o conceito de socioambientalismo e sua influência sobre o sistema jurídico brasileiro, o abismo existente entre as questões sociais/ ambientais e os movimentos sociais e as políticas públicas, que tendem a atuar de forma divergente. O livro é uma análise do desenvolvimento histórico e do contexto social e político, do surgimento do movimento socioambientalista no Brasil e do processo constituinte brasileiro e seu significado para a democratização do país. Além disso, aborda a
Florestan Fernandes – vida e obra Laurez Cerqueira Intelectual e militante, de incontestável importância para o conhecimento de nossa realidade social e para a prática política, Florestan nos deixou uma obra que deve ser estudada e entendida pelos que lutam por um mundo melhor. 192 páginas - R$ 10,00* ISBN: -87394-67-3
proteção constitucional à cultura, ao meio ambiente, às minorias éticas e à função socioambiental da propriedade e fala da proteção jurídica à biodiversidade. Editado pela Editora Fundação Peirópolis, tem 303 páginas e custa R$ 48. Mais informações: www.editorapeiropolis.com.br
NACIONAL VIDEOCONFERÊNCIA SOBRE TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO Dia 2 de maio, 9h O debate vai utilizar o sistema Interlegis, que interliga as Assembléias Legislativas dos Estados brasileiros. No encontro, a transposição será analisada na perspectiva da justiça social, do desenvolvimento do Nordeste e da convivência com o semi-árido, confrontando posições e pontos de vistas com relação aos riscos colocados para a sobrevivência do Rio São Francisco. Serão abordadas questões como impactos ambientais, sociais e econômicos da agricultura irrigada de exportação no Nordeste; gestão democrática da água em áreas urbanas e acesso à água para as unidades familiares no sertão do Nordeste. Mais informações: (81) 301-5241, (81) 9959-1357 MOSTRA DE BOAS PRÁTICAS EM SANEAMENTO Estão abertas as inscrições para a Mostra lançada pela Campanha Água para a Vida, Água para Todos, do WWF-Brasil que tem por objetivo identificar e divulgar iniciativas modelo – de prestadores de serviço e instituições com experiências saneamento – que propiciem conservação da água, proteção dos mananciais, redução da poluição hídrica, tecnologias que promovam o uso eficiente dos recursos hídricos, acesso a saneamento básico e o envolvimento da sociedade. As inscrições poderão ser feitas até o dia 30 de junho. As melhores experiências reunidas serão documentadas em um livro, que será lançado em outubro de
Alvo: Iraque – o que a imprensa não contou Norman Solomon e Reese Erlich Esta obra põe a nu a subserviência da mídia em um contexto específico, a guerra no Iraque, quando o imperialismo estadunidense não respeita a soberania dos povos e a imprensa alia-se à farsa e às mentiras do governo Bush. 144 páginas - R$ 8,00 ISBN: -87394-65-7
2005, durante a mostra propriamente dita. A publicação terá distribuição nacional. Mais informações: (61) 8122-8770, (61) 364-7482/00
CEARÁ FESTA DA SOLIDARIEDADE E DA PAZ Dia 21, a partir das 8h O objetivo da festa é refletir sobre o tema, dentro da programação da Campanha da Fraternidade 2005. A atividade começa às 8 horas, com o hino de São Francisco, que fala da paz. Em seguida, balões brancos serão soltos na praça. Acontecerão também diversas apresentações de grupos musicais, repentistas, bandas de jovens, palhaços, capoeira, mímica e uma palestra do Corpo de Bombeiros. No encerramento, haverá a participação de idosas e será formada uma grande ciranda, simbolizando o reforço da amizade, alegria e solidariedade, em busca da paz. Local: Praça do bairro Otávio Bonfim, Fortaleza Mais informações: (85) 3243-6280
Episódios que marcaram a luta dos sindicalistas também terão destaque, como na época da República Velha, a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, fatos ligados ao golpe militar, as greves no ABC paulista nas décadas de 70 e 80 e as situações vividas pelo ex-sindicalista Lula. Local: Estação Hebraica-Rebouças, Linha C da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), São Paulo SEMINÁRIO: AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM
SAÚDE E DIREITOS SEXUAIS REPRODUTIVOS Dias 17 e 18 de maio O seminário pretende estimular a avaliação e o aperfeiçoamento de programas e políticas desenvolvidas ao longo dos últimos vinte anos para enfrentar os efeitos da iniquidade social, de gênero, raça/ etnia e de geração no Brasil. A promoção é da Comissão de Cidadania Reprodutiva. As inscrições pode ser feitas pela internet. Local: R. Capote Valente, 500, São Paulo Mais informações: (11) 5575-7372,
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LIVROS
SÃO PAULO EXPOSIÇÃO: NA TERRA DE MACUNAÍMA Até dia 30 A mostra cenográfica pretende mostrar ao público as condições em que o clássico da literatura nacional, Macunaíma – o herói sem caráter, foi escrito por Mário de Andrade. Além da exposição irão ocorrer outras atividades paralelas a fim de popularizar a obra e o conhecimento. Entrada franca. Local: R. Ipiranga, 155, Piracicaba Mais informações: (19) 3434-4022 EXPOSIÇÃO: SINDICALISMO NO BRASIL Até 1º de maio Momentos importantes da história sindical no Brasil poderão ser conferidos em uma exposição organizada com diferentes materiais iconográficos: 96 fotos, 12 textos, quatro reproduções de telas, trechos de músicas, livros e artigos.
SEMINÁRIO: SALÁRIO-MÍNIMO E DESENVOLVIMENTO Dias 28 e 29 O seminário vai discutir a importância do salário-mínimo para o desenvolvimento do país, considerando os seus efeitos sobre o mercado de trabalho, a seguridade social, as finanças públicas e a distribuição de renda. Estarão presentes pesquisadores, representantes de entidades de trabalhadores, líderes empresariais e do governo. Entre os temas a serem trabalhados estão: salário mínimo e desenvolvimento econômico; salário-mínimo e mercado de trabalho; salário, seguridade social e finanças públicas; salário-mínimo, política social e distribuição de renda; diretrizes para uma política de valorização do salário-mínimo e salário-mínimo e atores sociais. Local: Auditório do Instituto de Economia da Unicamp, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Barão Geraldo, Campinas Mais informações: (19) 3788-5720
Um homem um povo Marta Harnecker
Che Guevara - política Eder Sader (org.)
À sombra do libertador Richard Gott
A autora, em entrevista a Hugo Chávez, líder da revolução bolivariana na Venezuela, aborda questões que extrapolam as fronteiras da política venezuelana e nos fazem pensar na necessidade de uma América Latina unida para a luta. 256 páginas - R$ 13,00 ISBN: 85-87394-58-4
Textos que situam politicamente as obras e apresentam o mais significativo das contribuições teóricas de Che: desde as campanhas guerrilheiras à construção do socialismo, até as questões da moral revolucionária e a luta contra o imperialismo. 304 páginas - R$ 13,00 ISBN: 85-87394-66-5
Uma retrospectiva da trajetória política de Hugo Chávez na história da Venezuela e na história política desse país dá, à revolução bolivariana, um grande livro que toda grande revolução merece. 288 páginas - R$ 13,00
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CULTURA
De 21 a 27 de abril de 2005
MÚSICA
Vozes afinadas por políticas públicas Músicos participam de encontro nacional, criam fóruns regionais e tiram propostas para câmara setorial lizá-los. Quem não paga a anuidade é impedido de exercer a profissão. A instituição, porém, não garante condições de trabalho dignas aos seus associados, nem assegura o pagamento de cachê conforme a tabela. Por conta dessa situação profissional insustentável, um grupo de músicos começou a se articular politicamente. Segundo o pianista paulistano Amilson Godoy, “a OMB é um mal nacional que precisa ser resolvido, mas é apenas um dos problemas. Existem também as questões do funcionamento do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) – órgão responsável por arrecadar e distribuir direitos autorais – , das relações trabalhistas com o governo, das orquestras públicas, das leis de incentivo e fomento, do ensino de música nas escolas que deveria ser obrigatório por sua força efetiva de transformação social”.
U
m homem entra num estúdio fotográfico no Centro da cidade de São Paulo, veste uma camisa branca, terno e gravata de propriedade do dono desse estúdio. A roupa já foi vestida por vários outros homens, no mesmo dia, mas não importa – é preciso tirar a foto com terno e gravata, para a carteirinha profissional. É assim que a maior parte dos músicos cumpre uma exigência instituída há 41 anos pelo presidente da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), Wilson Sândoli, desde que tomou posse, durante o regime militar. O processo eleitoral indireto da OMB, estatutário, é o que vem permitindo a Sândoli exercer uma ditadura cujas conseqüências vão muito além da obrigatoriedade de uma foto com “traje completo”. Quando foi criada, em 1960, pelo presidente Juscelino Kubitschek, a Ordem tinha o objetivo de defender os direitos da categoria. Entre seus conselheiros estavam Heitor Villa Lobos, Radamés Gnatalli e Jabaculê – Mais Francisco Minconhecido como gone, que, após jabá, é a prática o golpe de 1964, exercida pelas graforam acusados vadoras, que pagam para que as de comunistas músicas de seus e destituídos de artistas sejam veiseus cargos. culadas em rádios e televisões, geralCom Sândoli mente sem levar na presidência, a em conta critérios OMB deixou de como diversidade e qualidade sonora lutar pelos direicaracterísticas do tos dos músicos Brasil. e passou a fisca-
vo do Minc). Viajamos o Brasil para conversar com os músicos e estimular a organização. Estou esperançoso, parece que o governo tem uma dívida a ser paga conosco e que o Gil (Gilberto Gil, ministro da Cultura) tomou essa responsabilidade para si”.
Marcio Baraldi
Bel Mercês da Redação
AO TRABALHO
O COMEÇO DA MOBILIZAÇÃO No primeiro semestre de 2003, um movimento, a princípio batizado de Mobilização Musical, foi iniciado pelos artistas Ana Terra, Cristina Saraiva, Dalmo C. Mota, Francis Hime e Ivan Lins, no Rio de Janeiro. Durante os seminários “Cultura para todos”, realizados pelo Ministério da Cultura (Minc) no mesmo ano, representantes do setor apresentaram suas reivindicações. Ao mesmo tempo, estava sendo criado o Fórum Carioca de Música, espaço permantente de discussão e proposição política, pioneiro entre os Fóruns que hoje existem em dezessete Estados do Brasil.
Mais de um ano se passou sem que nada acontecesse. Os músicos, cansados de esperar, retomaram a mobilização. Via correio eletrônico, os profissionais do Rio de Janeiro entraram em contato com os de São Paulo, que criaram o Fórum Paulista de Música. Enquanto isso, o Ministério da Cultura iniciou um projeto para a construção de políticas públicas na área de cultura (além de música, inclui artes cênicas, artes visuais, livro e leitura e dança). Denominado Câmaras Se-
toriais, o projeto prevê a formação de órgãos consultivos integrados por representantes do governo, da sociedade civil e de grupos econômicos. Godoy, que participou dessa articulação em São Paulo, conta que o Ministério deu prazo até novembro de 2004 para os músicos apresentarem propostas, mas eles acharam que os outros Estados deveriam ter representantes. “Conseguimos mais um tempo do Juca Ferreira (secretário Executi-
No dia 23 de fevereiro, foi realizada uma videoconferência com a presença de músicos de nove capitais e do Distrito Federal, onde se decidiu por um Encontro Nacional, realizado este mês, entre os dias 11 e 13, em Brasília. No encontro, definiu-se a composição da Câmara Setorial de Música. Terão cadeira doze representantes dos fóruns estaduais, dez entidades (entre as quais grupos econômicos), o próprio Ministério da Cultura e a Fundação Nacional de Arte (Funarte), entidade vinculada ao Minc. Também foi criado o Fórum Nacional de Música, onde os músicos se organizarão com independência para elaborar propostas para a Câmara. O trabalho da Câmara se dará provavelmente via o Centro de Música (Cemus) da Funarte. Segundo Ana de Hollanda, cantora e diretora do Cemus, a situação é grave: “Os músicos têm que se submeter a condições de trabalho humilhantes, a qualquer tipo de contrato com gravadoras, pois dependem delas. Têm de conviver com o jabaculê, um crime escandaloso, responsável por colocar o que há de mais pobre da música em evidência. Agora vamos sentar para discutir, encontrar as soluções”.
FESTIVAL
A busca do presente, com fórmula do passado A música era Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes. No palco, surpresa: uma desconhecida gauchinha de 21 anos girava os braços como se fossem hélices. Nunca ninguém tinha visto algo parecido. Era abril de 1965 e a TV Excelsior – hoje extinta – promovia a rodada final do 1º Festival da Música Popular Brasileira. A canção – que causou impacto pela temática, distante do que até então soava na Bossa Nova dos beijinhos e peixinhos – não só foi a vencedora, como figurou por muito tempo no topo das listas dos discos mais vendidos e das mais tocadas nas rádios. Além, é claro, de ter revelado ninguém menos que Elis Regina. Passados 40 anos do início da era de ouro dos festivais, como o crítico de música Zuza Homem de Melo define o período de 1965 a 1972, vai entrar no ar o Festival Cultura – A Nova Música do Brasil. Iniciativa da TV Cultura, de São Paulo, a nova competição – marcada para acontecer de 13 de agosto a 8 de outubro – tem a missão de mapear o cenário musical brasileiro, de onde sairá um vencedor que receberá R$ 200 mil. Para garantir o sucesso, a emissora foi buscar o produtor Solano Ribeiro, o mesmo organizador do Festival da TV Excelsior e de outros de sucesso que se seguiram, na Record e na Globo.
RESSALVAS “Nosso objetivo é abrir um espaço para a música de qualidade na televisão, que é o mesmo de 40 anos atrás, quando realizei o primeiro festival”, diz Ribeiro. Apesar de tarimbado na área, ele se sente ‘aprendendo de novo’: “Não sabemos o que é um festival hoje, vamos partir do zero”, anima-se. Para Ribeiro, é impossível reviver o passado, fazer um festival nos moldes dos anos 60 e 70. A música
de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, que participou daquele festival como compositor, explica: “O júri não podia dar a impressão de ter uma cabeça antiga. Então optou por valorizar músicas que não precisavam nem ser boas, desde que parecessem joviais. Foi um desastre”. Tatit considera um festival como “coisa já fora do ar, defasada”. Para ele, a televisão poderia fazer melhor pela música se produzisse programas com a presença de novos nomes. O músico destaca, no entanto, um ponto positivo: “O festival acaba tendo um certo poder de dinamização do cenário musical, pois faz muita gente produzir”.
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Igor Ojeda da Redação
OUTROS TEMPOS Solano Ribeiro, organizador do Festival da TV Cultura, e ao fundo, Elis Regina: espaço para música de boa qualidade
é outra, assim como a temática e a linguagem. Por isso, para “modernizar” o Festival Cultura, as doze melhores músicas serão contempladas com um clipe cada, que
também irão a julgamento numa espécie de festival paralelo. Novidade sobre a qual Homem de Melo está um pouco reticente. Para ele, “é preciso deixar a
música ser a dona da festa, sem interferência da TV, como aconteceu com o Festival da Música Brasileira da Globo em 2000”. Luiz Tatit, músico e professor do Departamento
Os grandes espetáculos, no palco e nos bastidores 1965 – 1º Festival de Música Popular Brasileira, na TV Excelsior: Elis Regina inova na interpretação de Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, e conquista o primeiro lugar. 1966 – No 2º Festival de Música Brasileira, na TV Record, o júri escolhe A Banda, de Chico Buarque, como melhor canção. Sabendo disso antes da divulgação do resultado, e consciente da superioridade de Disparada, de Théo de Barros e Geraldo Vandré, Chico ameaça devolver o prêmio. Os jurados optam pelo empate. 1967 – 3º Festival de Música Brasileira, na TV Record: a Tropicália aparece com suas guitarras em Domingo no Parque, de Gilberto Gil, e Alegria, Alegria, de Caetano Veloso. 1968 – No 3º FIC, da Globo, Caetano Veloso faz um veemente discurso contra a esquerda universitária após receber uma chuva de ovos e tomates enquanto defendia É Proibido Proibir. Na segunda fase, no Rio, sob ordens militares, a Globo dá a vitória a Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, para que não ganhasse a canção de protesto de Geraldo Vandré, Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores.
Nos anos dourados dos festivais, a música era, de fato, a dona da festa. Principalmente se tivesse conteúdo político. Enquanto o regime militar endurecia, escrever canções era uma forma de se fazer ouvir. Além disso, a TV se transformara em um dos principais espaços de convergência do cenário musical brasileiro. “Possivelmente, foi a única vez na história da música que eventos desse tipo acabaram se transformando em manifestações da classe estudantil universitária contra o regime da época”, opina Homem de Melo, para quem um festival hoje não alcançará a mesma repercussão na sociedade. Mesmo que o festival deste ano não tenha grande impacto, a TV Cultura aposta alto em um novo ciclo de festivais televisivos. Solano Ribeiro garante: “A idéia é continuar”.
1969 – A Record realiza seu quinto e último Festival de Música Brasileira. Paulinho da Viola, com Sinal Fechado, leva o prêmio máximo. 1972 – Após críticas à ditadura, Nara Leão, presidente do júri do 7º FIC, é proibida, pelo regime, de aparecer na TV. Em solidariedade, os demais jurados, que haviam escolhido como vencedora Cabeça, de Walter Franco, abandonam a competição. Os militares recrutam às pressas um novo júri, que coroa Fio Maravilha, de Jorge Ben.
Serviço: Informações e inscrições até 15 de maio, pela internet, www. tvcultura.com.br/festivalcultura