Ano 3 • Número 113
R$ 2,00 São Paulo • De 28 de abril a 4 de maio de 2005
Os números ocultos da reforma agrária E
les cansaram de esperar. Trabalhadoras e trabalhadores rurais de todos os cantos do país se mobilizam para marchar, de 2 a 17 de maio, de Goiânia a Brasília. Exigem coerência e atitude do governo. Cobram do presidente Luiz Inácio Lula da Silva compromisso do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) de assentar 400 mil famílias até o final do mandato. O governo está longe de cumprir a meta. Números obtidos com exclusividade pelo Brasil de Fato mostram que os
dados da reforma agrária são maquiados. A maioria das 110 mil famílias que o Incra contabiliza como assentadas em 2003 e 2004 foram, na verdade, respaldadas por projetos de governos anteriores, como o de Fernando Henrique. Por uma reforma agrária verdadeira, e outras medidas, como a mudança da política econômica, os trabalhadores querem se encontrar com representantes do governo. Mais do que negociar, querem ação imediata. Págs. 7 e 8
Greg Wood/ AFP
Mobilização nacional cobra as promessas do governo, como o assentamento de 400 mil famílias até 2006
Monsanto tenta se infiltrar nas escolas zonte Geográfico, defendendo os transgênicos e o agronegócio. No final da tarde do dia 26 de abril, nota oficial do ministério vetou o projeto por ter desvirtuado seus objetivos originais. Pág. 3
Assalariados pagam mais IR do que bancos
EUA querem ajuda do Brasil contra Chávez
Principal beneficiário da política econômica, o setor financeiro deveria pagar impostos proporcionais aos seus ganhos. Em 2004, os lucros aumentaram 36%, e os tributos menos de 9%. Enquanto isso, em 2004, o IR recolhido pelas instituições financeiras foi de R$ 6 bilhões, e os trabalhadores foram espoliados em R$ 31,5 bilhões. Isto é, os assalariados recolheram cinco vezes mais IR do que os bancos. Pág. 5
A secretáriade de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, aterrissou em Brasília, dia 26 de abril, tendo entre suas missões principais conseguir a influência do Brasil para a estabilização da América Latina. Leia-se: apertar o cerco contra a revolução bolivariana da Venezuela. No entanto, as relações políticas e comerciais em curso entre os dois países mostram que a tarefa será bem difícil. Pág. 10
Mais um neoliberal cai no Equador Sentindo-se traída, a população da capital, Quito, promoveu intensos protestos que levaram, dia 20 de abril, à queda do presidente Lucio Gutiérrez. Eleito em 2002, ele prometeu reformas sociais, mas seu governo foi uma sucessão de políticas neoliberais, como a dolarização da economia e os acordos bilaterais com os EUA. Gutierrez se dizia o principal aliado de George W. Bush na América Latina. Pág. 9
Banrisul e Besc não serão privatizados Pág. 6
Franceses contra Constituição da União Européia Pág. 11
O legado de Andre Gunder Frank Pág. 15
Autonomia – Manifestantes protestam contra acordo para exploração de petróleo por parte da Austrália no Timor Leste
Antônio Cruz/ABr
Por pouco, a transnacional não obtém recursos do Ministério da Cultura para patrocinar o projeto “Janela para o Mundo”, que levaria para escolas públicas de 2º grau de vários Estados, material produzido pela editora Hori-
Forças Armadas devem ser vistas como parceiras
Terra livre – Setecentos líderes indígenas participam do Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas, em Brasília
Rede Globo, uma ditadura de 40 anos Nascida nos porões do governo militar, em 1965, a partir de um acordo ilegal com a empresa estadunidense Time Life, em 26 de abril a Rede Globo completou 40 anos de monopólio dos meios de comunicação. Em quatro décadas de hegemonia no setor, a emissora se firma como um dos mais influentes agentes econômicos da história, ao mesmo tempo que aprisiona o imaginário popular e omite seu verdadeiro caráter manipulador. Págs. 4 e 14
Em entrevista ao Brasil de Fato, o tenente-brigadeiro-doar Sérgio Ferolla, ex-ministro do Superior Tribunal Militar, defende a integração dos países da América do Sul contra os Estados Unidos. “O eixo tem de ser Caracas – Terra do Fogo”. Ele garante que 80% das Forças Armadas do Brasil, hoje, apoiariam um projeto de desenvolvimento para o país em conjunto com os movimentos sociais. Pág. 13
E mais: DEBATE – Marcelo Resende e Maria Luisa Mendonça, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, tratam do assassinato de irmã Dorothy e das causas da violência no campo. Pág. 14 CULTURA – Ensaio fotográfico de João Roberto Ripper com povos Guarani do Mato Grosso do Sul aborda a cultura indígena. Pág. 16
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De 28 de abril a 4 de maio de 2005
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Marcelo 5555 Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: Taiga - Gráfica e Editora Ltda. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
CARTAS DOS LEITORES CONCESSÕES NA AMAZÔNIA Por favor, venham conhecer a falácia do projeto de concessão de florestas públicas, que já está sendo implementado pelo governo do Acre. Apesar de ser um governo sério em vários aspectos, peca muito por colocar na mão de grandes empresas estrangeiras e dos latifundiários as concessões para exploração madeireira no Estado, que, se depender do Ministério do Meio Ambiente, será ampliada por toda a Amazônia. Vale ressaltar que vários estudos realizados por pesquisadores brasileiros, e acreanos, mostram que o produto derivado da madeira agrega bem mais valor e garante uma repartição de benefícios para os pequenos produtores bem maior do que exportar madeira. Ísis Campos por correio eletrônico INDIGNAÇÃO Caros companheiros: isso não é uma sugestão de reportagem e sim uma manifestação de indignação com o discurso do Brasil de Fato em suas reportagens – que, no entanto, possui conta em um banco privado. Não sei se estou certo, mas acho isso muito estranho, pois o jornal está contribuindo para essa dominação econômica. Essa foi a única forma que encontrei de expor a minha idéia e de outros amigos. Ivanildo Desterro São Paulo (SP) PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL Gostaria de parabenizá-los pelas reportagens independentes que vêm
veiculando nesse precioso órgão de comunicação. O nosso país carece muito desse tipo de meio. Mas queremos solicitar correção desse jornal em relação a uma postura que a grande mídia tem e que ainda é admissível, por ser reacionária e coerente. Me refiro a siglas e nomes do velho Partido Comunista, no caso, do nosso país. Na reportagem do jornal nº 109, página 3 do 1º caderno, “Desrespeito a João Amazonas; insulto à História”, o texto diz: “...ingressou em 1935 no Partido Comunista Brasileiro (PCB)”. Embora até alguns historiadores pouco neutros cometam tal erro, devemos dizer que, em 1935, a sigla era realmente PCB, mas o nome do partido ao qual referia tal sigla era, desde a sua criação em 1922, Partido Comunista do Brasil. Tal denominação, “Brasileiro”, só veio a ser adotada na década de 50 – confirmada na famosa Declaração de Março de 1958, momento em que houve a divisão interna dando origem à sigla que rompeu com os princípios revolucionários passando a adotar o “Brasileiro” e a sigla PC do B que, a partir de 1962, reorganizou o velho partido e, mantendo os princípios, manteve também o nome: Partido Comunista do Brasil. Portanto, devemos advertir com convicção que a referida atitude desse admirável jornal seria análoga a chamar as “ocupações” do MST de “invasões”, o que não encaixa no discurso progressista. No mais, parabéns, companheiros! Santão Bispo por correio eletrônico
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
NOSSA OPINIÃO
Equador: as lições que vêm dos Andes O povo equatoriano nos ofereceu muitas cenas de luta política que merecem reflexão. No mesmo período foram implantadas políticas neoliberais no Brasil e em toda a América Latina, inclusive no Equador. Com um agravante: trata-se de um país muito pequeno em termos territoriais, com uma população ao redor de 10 milhões de habitantes, uma economia baseada na exportação de petróleo e uma agricultura camponesa voltada para o mercado interno. As elites equatorianas exageraram na adesão ao neoliberalismo. Adotaram o dólar como moeda nacional e aceitaram todas as imposições dos Estados Unidos, inclusive uma superbase militar – Manta, às margens do Pacífico e a alguns minutos da floresta amazônica colombiana, é uma das poucas bases que unem as três armas (Aeronáutica, Exército e Marinha), o que mostra a importância que os imperialistas deram à sua localização geopolítica. Os resultados socioeconômicos foram um desastre. Milhares de camponeses viram sua economia inviabilizada. Mas as organizações sociais populares estavam num processo de
ascenso e não se deram por vencidas. De 1996 a 2005, em oito anos de neoliberalismo, os equatorianos tiveram oito presidentes, quatro deles derrubados nas ruas. O coronel Lucio Gutiérrez comandava as tropas repressoras em Quito, em 2000. No meio da repressão, mudou de lado. Ganhou a simpatia popular. O povo instaurou uma junta diretiva. O coronel adesista desistiu em prol do seu comandante, que assumiu ao anoitecer e traiu o povo na madrugada. Colocou Gutiérrez na cadeia, durante oito meses, o que aumentou o seu prestígio. Nas eleições de 2002, saiu vitorioso. Quando todos esperavam um governo progressista, nova traição. Gutiérrez priorizou as alianças com partidos conservadores. Na política externa, evitou se aliar com o Brasil e a Venezuela. Manteve a dolarização da economia e toda a política neoliberal. Transformou a embaixada dos Estados Unidos na sua principal conselheira. O povo voltou às ruas e o derrubou. A história da luta política no Equador deve nos trazer muitas lições. Políticas neoliberais podem
enganar o povo alguns meses, impor paciência, mas não enganam todo o tempo. De nada adiantam apoios de FMI, visitas de Condoleezzas, declarações de Bush etc. Se o povo resolver levantar “seu traseiro”, como disse o presidente Lula, alguma coisa acontecerá. A situação do Equador, que se repete em todos os países da América Latina, mesmo na Venezuela e na Argentina, é de encruzilhada de projeto político, de modelo econômico soberano. As elites nacionais abandonaram os projetos de industrialização dependente mantidos até a década de 70. Veio a crise. Tentaram substituir as crises com políticas neoliberais. Mas elas não representam projetos de desenvolvimento nacional. Podem até fazer a economia crescer. No entanto, não passam de um novo padrão de acumulação baseado no capital financeiro internacional. Enquanto as massas nas ruas e suas formas de organização não conseguirem unidade suficiente para construir um projeto nacional, os Gutiérrez, Collor, FHC, Menem... se sucederão em direção à lata do lixo da História!
FALA ZÉ
OHI
CRÔNICA
O papa e a estagiária Luiz Ricardo Leitão Tratado como um verdadeiro espetáculo pela mídia internacional, o funeral do papa João Paulo II, no Vaticano, tornou-se uma via de expiação e remissão dos “pecados” para todos aqueles que acorreram a Roma em abril. Não importa se eram anônimos ou famosos, tampouco se pairavam dúvidas sobre sua crença, como alguns especularam em relação ao nosso cardeal dom Inácio Lula da Silva. Todos que lá estiveram vestiram a máscara da contrição e redenção, em busca de um salvo-conduto canônico para tantos descaminhos terrenos. O gosto pelo martírio e (auto)flagelação com o qual o mundo moderno reinventou a mitologia cristã já fora, aliás, devidamente manipulado por Mel Gibson em sua polêmica película A Paixão de Cristo. Contemplando a via crucis alheia, cada espectador desta “aldeia global” compra uma assinatura da poderosa rede espiritual graças à qual, quem sabe, pensa obter a sua própria absolvição. Aliás, não foi à toa que um notório porta-voz dos monopólios transnacionais exaltou em sua capa “a grandeza da fé”, afirmando literalmente que, ao expor o seu “sofrimento terminal”, João Paulo II “mostrou a coragem dos grandes pastores e o significado original do sacrifício cristão”. Sem padecer exatamente os mesmos tormentos a que os míseros fiéis se expunham nas estreitas ruas de
Roma, outros “grandes pastores” do planeta globalizado também cuidaram de posar para as câmaras com rasgos de espiritualidade e compunção. Numa das primeiras filas da Capela Sistina, o “show da fé” conseguiu reunir um elenco multimilionário, em que ao lado de George W. Bush e da primeira-dama do império do Norte, despontavam ainda o galã Bill Clinton e sua virtuosa e compadecida esposa Hillary. A imagem do ex-presidente democrata e do atual falcão republicano (ambos egressos da maior nação neopentecostal do planeta) reunidos no epicentro grandioso da fé católica presta-se, decerto, a inquietantes reflexões. Bush, como já sabemos, estampava a mesma fisionomia de sempre, em que os traços de estupidez congênita se misturam a um esgar de sorriso cínico e sarcástico (a turma do “Casseta & Planeta”, aliás, acertou na mosca quando transpôs a discussão sobre o recente caso de eutanásia que abalou os EUA para a figura de Bush, que vive, literalmente, em estado vegetativo – com direito, inclusive, a uma couve-flor brotando em cada orelha...). O que pensaria aquele repolho, tão compungido e solene? Agradeceria aos céus o fervor religioso da nova coalizão cristã que se patrocina em seu país, um dos elementos decisivos para o resultado das eleições de 2004? O garboso Bill, por sua vez, ciente de que o fundamentalismo ianque soube valer-se muito
bem de certos “pecados da carne” a que ele próprio não pôde resistir, nãosefezderogado.Escoltadopelafiel escudeira Hillary, aquela que soube perdoar o “infiel” e sobrepor-se com altivez à execração pública, exibia com ar contrito e arrependido a plena idoneidade de sua crença. Afinal de contas, há ofensa maior para um ianque do que a acusação feita por Bin Laden de que os EUA são “um país descrente”? Ungidos pelo adeus ao Santo Padre, todos estão novos em folha para outras peripécias. Imaginem o que vem por aí... Se até os torcedores da Inter, poucos dias após o funeral, sentiram-se à vontade para transformar o estádio de Milão numa praça de guerra, o que fará o vegetal Bush? Já estaria pronto para invadir o Irã e exterminar aquele bando de “aiotalás heréticos”? E Clinton, ainda sentiria saudades do charuto (cubano, por certo, apesar do bloqueio...) que fumou com Monica Lewinsky? E a piedosa Hillary, a quem dedicará agora sua imensa compaixão, depois de reverenciar o papa e absolver a estagiária? Alea jacta est, senhores. Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)
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De 28 de abril a 4 de maio de 2005
NACIONAL SOBERANIA ALIMENTAR
Monsanto dá aula de meio ambiente N
o início de abril, a editora Horizonte Geográfico e a Monsanto anunciaram parceria no projeto “Janela para o Mundo”, que promoveria debates sobre ambiente e agricultura em 5.409 escolas da rede estadual da Bahia, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Goiás e Distrito Federal, utilizando material paradidático produzido pela editora. A iniciativa contou com o apoio do Ministério da Cultura (Minc), via Lei Rouanet, que financia 30% do valor do projeto. O restante foi garantido pelo patrocínio da transnacional de biotecnologia. O apoio do Minc, entretanto, durou pouco, mas não foi retirado com rapidez suficiente para impedir que o material fosse distribuído a alunos do Rio Grande do Sul. No fim da tarde do dia 26 de abril, em nota oficial, o ministério determinou a suspensão do material com conteúdo referente à agricultura, alegando que “as reportagens não foram fiéis aos conteúdos editoriais aprovados”. E exigiu a devolução do valor captado para a sua confecção (leia reportagem abaixo).
IMPARCIALIDADE? De acordo com Maria Immaculada Rodriguez, da Divisão Educacional da Horizonte Geográfico, o projeto com a Monsanto consiste em prover às escolas de material paradidático, formado de seis revistas e pôsteres ilustrativoinformativos. Também foi desenvolvido material específico para os professores, para guiar 16 oficinas com os alunos em sala de aula. Nota publicada na página da Monsanto na internet anunciava, ainda, que 560 professores seriam capacitados para orientar os debates. A parceria com uma empresa que possui em seu currículo diver-
Agricultura em laboratório A biotecnologia utiliza organismos vivos ou partes destes para produzir e melhorar produtos. Na agricultura, é possível gerar plantas transgênicas mais produtivas, enriquecidas com nutrientes ou resistente ao ataque de insetos e pragas e tolerantes às condições adversas do solo e do clima. Uma das técnicas da biotecnologia moderna é a do DNA recombinante que permite, por exemplo, que um DNA da alga seja introduzido na soja, criando uma variedade de soja enriquecida com Ômega - tipo de gordura polinsaturada que diminui as taxas de triglicérides e colesterol do sangue. O DNA é encontrado no interior das células de todos os seres vivos. Cada trecho de DNA, também conhecido como gene, é responsável pela codificação de uma característica.
Gene da característica de produção do Ômega 3 é isolado do DNA da alga e introduzido no DNA da soja.
A soja transgênica enriquecida vom Ômega 3 é idêntica à convencional.
discussões para os professores era pedagogicamente fechado. “Era um guia acabado, não houve discussão para construir um método coletivo, respeitando as especificidades de cada local”.
SEM ALTERNATIVAS
Pesquisas oficiais revelam que, se pudessem escolher, 71% dos entrevistados não comeriam produtos transgênicos
sos processos e infrações ambientais em todo o mundo, e é parte interessada na atividade agrícola, foi vista com receio por professores e ativistas. Maria Immaculada se defende. “A Monsanto não teve nenhuma influência no conteúdo do material. As informações apresentadas são corretas e não podemos ignorar assuntos que estão em pauta neste campo, como a biotecnologia”. Entretanto, Cristina Rappa, gerente de comunicação da Monsanto informou que a empresa deu “apenas alguns palpites”, incluindo a escolha dos Estados para apresentação do projeto. A informação foi confirmada pela Horizonte Geográfico. Curiosamente, os Estados contemplados figuram entre os maiores produtores de soja transgênica. Na Bahia, além de plantações de algodão transgênico é onde se localiza a fábrica de herbicida glifosato da Monsanto.
jornalismo científico da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), acredita que, mesmo sem analisar o material utilizado, e ainda que esse não tenha sofrido interferências da Monsanto, a parceria é, por si só, condenável.
SEM ÉTICA Seria algo equivalente a uma empresa tabagista patrocinar um projeto para debater saúde pública. “A editora foi infeliz na escolha do parceiro. A Monsanto é uma empresa tradicionalmente não ética, não tem qualquer legitimidade para patrocinar um projeto como este. O que vigorou foi o interesse comercial”, argumenta. Vencida a barreira legal, após a sanção da Lei de Biossegurança pelo presidente da República em 2 de março, o novo obstáculo das empresas de transgenia é criar uma imagem favorável dos organismos geneticamente modificados (OGMs), formando seus consumidores. No
Brasil, segundo pesquisa de 2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), só 37% dos entrevistados declaram saber o que era um OGM; porém, 71% declararam que, se pudessem escolher, não comeriam transgênicos. O professor Bueno compartilha desta visão. “É inaceitável o cinismo da Monsanto, que se aproveita de brechas para apresentar a sua versão de educação ambiental, divulgar seus valores, e educar as pessoas a aceitar o tipo de alimento que ela vende”, argumenta.
DECEPÇÃO Dia 8 de abril, Elizabeth Foschiera, professora da rede estadual em Passo Fundo (RS), participou de uma oficina de capacitação do projeto, na qual havia profissionais de cerca de 33 municípios da região. Ela conta que, como militante da área ambiental, se interessou pelo projeto e se inscreveu. Mas se decepcionou. Primeiro, porque o material de orientação de
SEM INGENUIDADE Para Viviane Amaral, da Rede Brasileira de Educação Ambiental, “se não se pode atestar que há má-fé, que não há a intenção de manipular, não se pode ser ingênuo também. Uma parceria que une Monsanto e discussão sobre agricultura e ambiente merece um olhar mais crítico”. Ainda segundo Viviane, o interesse da empresa talvez não seja manipular diretamente a opinião pública por meio de um projeto educacional, mas associar sua imagem a ações positivas na área ambiental, uma vez que entidades ambientalistas em todo o mundo movem intensa campanha de denúncia de suas ações predatórias. Wilson Bueno, professor de
Divulgação
Dafne Melo da Redação
Samuel Tosta/ Adital
A transnacional patrocina material para escolas de segundo grau, defendendo os transgênicos e o agronegócio
Ao lado e acima, pôster distribuído nas escolas pela Horizonte Geográfico
Mudanças indevidas no projeto original As Secretarias de Educação dos Estados que vão participar do “Janela Para o Mundo” informam que o projeto ainda não está em andamento. A exceção é o Rio Grande do Sul, onde o material foi aprovado e circula nas escolas. Elizabeth Foschiera, professora da rede estadual gaúcha de ensino, que participou das oficinas de capacitação, confirma a informação. De acordo com a nota oficial emitida pelo Ministério da Cultura (Minc), o material incluído indevidamente no projeto são as reportagens: “Soja, o grão que conquistou o Brasil” (que acompanha um cartaz de mesmo título) e “Afagar a Terra”, que vem com o pôster “Cultura de Terras
no Brasil” (veja imagem). Com a decisão do ministério, a editora Horizonte Geográfico, que é a proponente do projeto, deve depositar o valor captado para a confecção do material no Fundo Nacional da Cultura. De acordo com determinação do Minc, os exemplares devem ser recolhidos porque o tema agricultura não estava previsto no objetivo original do projeto.
INFRAÇÕES Há outras possíveis irregularidades que, entretanto, não foram mencionadas na nota do ministério. Na proposta original, consta que o projeto seria desenvolvido na região Sudeste. Entretanto, conforme apurou a reportagem do Brasil de
Fato, com confirmação tanto da Mosanto como da Horizonte Geográfico, os Estados que vão receber o projeto não só foram escolhidos pela transnacional, como nenhum deles se localiza no Sudeste. Isto infringe as regras para obtenção de apoio pela Lei Rouanet, que proíbe qualquer interferência de patrocinadores no projeto inicial. A reportagem tentou esclarecer os fatos com o secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, Sergio Xavier, mas não conseguiu localizá-lo. Já os ministérios da Educação e do Meio Ambiente informaram que vão emitir nota oficial conjunta sobre o episódio. (DM)
Um segundo fator, explica, foi a maneira como foi tratada após questionar um projeto que pretendia discutir ambiente, com a parceria da Monsanto. “O clima ficou pesado”, comenta, acrescentando que lhe garantiram que não havia manipulação. “Mas, no decorrer do curso, vimos que não era bem assim. Ao ler o material, nas entrelinhas fica evidente que a Monsanto defende o progresso, a evolução sem volta do agronegócio e da biotecnologia”. A seu ver, o material é tendencioso na medida em que não cita, por exemplo, a agroecologia, e as lavouras orgânicas e tradicionais são retratadas de modo a parecerem antigas e ultrapassadas frente às transgênicas. Quando questionou por que a rotulagem não era respeitada, ouviu que o símbolo escolhido tinha uma aparência pejorativa, como se o alimento contivesse veneno. Elizabeth ressalta que, durante toda a oficina não se fez contraponto ao material apresentado, nem houve orientação neste sentido. “Eu tenho usado o material, mas estou fazendo o contraponto, explico a razão do projeto. Porém, infelizmente, a maioria das professoras vai simplesmente reproduzir o que ouviu”, diz a professora, informando que o material tinha selos da transnacional e o certificado trazia a assinatura do diretor de comunicação da Monsanto, Lúcio Mocsányi. (Colaborou Daniel Cassol, de Porto Alegre)
Em cena, a soja transgênica imaginária A reportagem do Brasil de Fato solicitou à Horizonte Geográfico todo o material que será levado às escolas, e a editora prometeu enviá-lo. Após duas semanas, porém, não honrou o compromisso. A editora se limitou a mandar parte dele (um pôster ilustrativo-informativo) por correio eletrônico. O agrônomo Ventura Barbeiro, do Greenpeace, que conhece a produção da editora, diz que, em geral, é de boa qualidade, o que não é o caso do produzido em parceria com a Monsanto. Ele explica que a soja transgênica apresentada no cartaz (veja imagem ao lado) não existe em fase comercial “Sequer tenho conhecimento de que exista, de fato, até em laboratório. Não sei de onde tiraram isso”, comenta. Segundo dados do Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações de Agrobiotecnologia (ISAA), que agrega informações dos próprios produtores, das áreas destinadas ao plantio de transgênicos em todo mundo, 73% são de plantas resistentes a herbicidas, 18% são plantas-inseticidas (que contém genes de bactérias ou vírus, para evitar ataque de insetos), 8% de plantas que juntam essas duas características e apenas 1% de outras modalidades. Barbeiro diz que esses dados mostram que a soja transgênica que está hoje no mercado só é produzida para garantir o monopólio e o lucro das empresas de biotecnologia, não para ser mais nutritiva. O grão mostrado não existe, mas a imagem que fica na mente do aluno é positiva. “A apresentação não é imparcial. Honesto seria mostrar a soja transgênica real”, questiona. (DM)
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De 28 de abril a 4 de maio de 2005
Espelho da mídia
NACIONAL REDE GLOBO
40 anos de (des) informação
Luiz Antonio Magalhães
Denúncias à vontade É verdade que o ministro da Previdência, Romero Jucá, está todo enrolado para explicar os seus negócios galináceos, mas uma pesquisa recente no Tribunal de Justiça revelou que quase uma centena de parlamentares do Congresso Nacional respondem a algum tipo de processo. Em outras palavras, se Lula escolher um ministro no Congresso, a chance da nomeação ser questionada por razões judiciais é de pelo menos 20%. Direita, volver Alguém precisa começar a analisar com mais cuidado o fenômeno da ascensão da direita no mundo. Bento XVI e Bush à parte, o conservadorismo está em alta. Na semana passada, o Estado de S. Paulo publicou um perfil de Ann Coulter, uma espécie de “porta-voz midiática” da ultra-direita estadunidense, que se dedica a expressar aquilo que muitos estadunidenses pensam, mas não têm coragem de dizer. Imperialista, racista e preconceituosa, Coulter reflete o país que elegeu Bush duas vezes. Quanto ao novo papa, a única coisa a fazer é rezar para que Bento XVI esqueça que foi um dia Joseph Ratzinger. Polêmica inútil A polêmica sobre o episódio da prisão do jogador Desábato por racismo continua circulando na imprensa. Pode até ser verdade que o argentino não tenha praticado propriamente um ato de racismo, como argumentam algumas boas cabeças pensantes, e sim ofendido, pura e simplesmente, o jogador Grafite, do São Paulo. O que pouca gente reparou, no entanto, é que a prisão do argentino por racismo foi extremamente positiva pelo exemplo e pelo próprio debate que desencadeou. Se de fato as atitudes racistas começarem a ser punidas com prisão, o preconceito pode não acabar, mas as manifestações públicas de racismo certamente vão diminuir muito. Pauta interessante Os jornalões não repararam, mas as festas de 1° de Maio da CUT, antes de Lula assumir a Presidência, custavam R$ 600 mil. Este ano, a Central vai gastar R$ 3,5 milhões — mais do que a Força Sindical — com o megashow na Avenida Paulista, em São Paulo. Um jornal independente poderia fazer uma bela matéria sobre a guinada da Central Única rumo ao modelo da Força Sindical. Ainda o papa A cobertura da grande imprensa brasileira sobre o novo papa Bento XVI continua intensa e ainda sem responder a principal pergunta: por que um cardeal tão conservador venceu a eleição com tanta facilidade? Os liberais-otimistas dizem que ele venceu porque era o candidato de transição, mas não há nada que avalize essa tese. Bento XVI tem 78 anos e seu pontificado pode perfeitamente durar mais do que o tal “curto período de transição”, tão repetido pela mídia nacional. Importa agora olhar para frente e acompanhar as medidas que ele tomará no comando da Igreja.
Um dos maiores monopólios de comunicação do mundo, a emissora aprisiona o imaginário Bel Mercês da Redação
“A
imagem que vem à cabeça é de asfixia, claustrofobia”. Essa foi a reação de Silvio Mieli, jornalista e professor de comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), quando questionado sobre o significado dos 40 anos de atividades da Rede Globo, comemorados dia 26 de abril. Mieli acredita que a emissora, criada durante a ditadura militar, um ano após o golpe de 1964 (veja a reportagem abaixo), fez de refém o imaginário popular brasileiro: “Com modelo estético que aprisiona o olhar e uma fórmula artificial, rouba a vida e o tempo das pessoas”. O professor vê a Globo como uma máquina de criar sensos comuns, adequando todos eles a um estilo de vida burguês, como se esse fosse o ideal da sociedade. Ao responder a mesma questão, o também jornalista e professor da Universidade Federal do Sergipe (UFS), César Bolaño, foi enfático: “Significa a afirmação de uma estrutura hegemônica do setor de comunicação brasileiro. A Globo é um agente político e econômico da história”. Bolaño acaba de concluir a organização do livro Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia (Editora Paulus), ao lado de Valério da Cruz Brittos. A obra analisa de maneira crítica esse período, tendo como referência o papel histórico da família de Roberto Marinho – presidente já falecido das Organizações Globo – no processo político de construção (ou desconstrução) da democracia no país. Apesar de aprofundar suas análises em diferentes focos, tanto Mieli quanto Bolaño concordam que a Rede Globo é um poder a ser combatido, constituído a partir do casamento entre a forma e o conteúdo. O padrão estético tende a homogeneizar valores e as mensagens ideológicas, embutidas em toda a programação, carrega grandes interesses empresariais e econômicos. O jornalista e pesquisador do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs) Gustavo Gindre alerta para a atuação da emissora no cenário político brasileiro e ressalta a pressão exercida sobre os governos, para que atendam aos interesses imediatos da emissora. “A Globo mantém uma relação tensa com o poder, do tipo ‘olha, eu tenho uma Propriedade cruinfluência enorzada – Quando um mesmo grupo me, acho bom possui os mais vocês seguirem diferentes tipos de esses camiempresas no setor de comunicações, nhos’. Se comcomo TV aberta, porta como um TV por assinatura, partido polítirádio, revistas, co, defendendo jornais, telefonia e provedores de uma parcela da internet. sociedade”.
O TAMANHO DO IMPÉRIO GLOBO CABEÇA-DE-REDE* 23 veículos: 6 TVs VHF, 7 rádios AM, 6 rádios FM e 4 jornais
RBS (RS e SC) 43 veículos: 17 TVs VHF, 2 TVs UHF, 5 rádios AM, 14 rádios FM e 5 jornais
MAIS 1 editora - Ed. Globo, com 11 títulos de revista, 2 gravadoras – Som Livre e RGE, 5 canais de TV a cabo – Sportv, GNT, Multishow, Futura e Globonews, 1 operadora de TV a cabo – Net e 1 provedor de internet Banda Larga – Vírtua
GRUPOS AFILIADOS 204 veículos: 89 TVs VHF, 8 TVs UHF, 34 rádios AM, 53 rádios FM e 20 jornais
Eugenio Neves
2 MAIORES GRUPOS AFILIADOS REGIONAIS* Jaime Câmara (GO, TO e DF) 19 veículos: 9 TVs VHF, 2 rádios AM, 6 rádios FM e 2 jornais VERBA PUBLICITÁRIA 45% de toda a verba para mídia 78% da verba para TV aberta
DÍVIDA mais de R$ 6 bilhões
FATURAMENTO R$ 3,6 bilhões/ano
FONTE DE INFORMAÇÃO a única para 80% da população
ALCANCE 99.8% do território brasileiro
AUDIÊNCIA média de 54% MERCADO DE TV 1.550 bilhões de dólares
Família Sarney – Sistema Mirante de Comunicação (MA) 10 veículos: 3 TVs VHF, 2 rádios AM, 4 rádios FM e1 jornal
Família Alves – Sistema Cambugi de Comunicação (RN) 8 veículos: 1 TV VHF, 1 TV UHF, 4 rádios AM, 1 rádio FM e 1 jornal
5 CONGLOMERADOS FAMILIARES
Família CollorOrganização Arnon de Mello (AL) 6 veículos: 1 TV VHF, 2 rádios FM, 2 rádios AM e 1 jornal
Família Antônio Carlos Magalhães – Rede Bahia de Comunicação (BA) 10 veículos: 6 Tvs VHF, 1 TV UHF, 2 rádios FM e 1 jornal
Família Albano Franco – Rádio Televisão Sergipe (SE) 6 veículos: 2 TVs VHF, 2 rádios AM e 2 rádios FM
*Cabeça-de-rede: empresa geradora de programação nacional *Grupos afiliados regionais: empresas que transmitem a programação das geradoras Fontes:pesquisa Os Donos da Mídia (2002), Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC) e texto 40 anos de Rede Globo: não há nada para comemorar,Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
São questões que estão além da telinha – desconhecidas pela maioria dos cidadãos brasileiros – e que permitem a existência de um dos maiores monopólios comerciais do mundo, com domínio do mercado dos meios de comunicação sem qualquer tipo de restrição e regulamentação. Desde a ditadura militar a emissora tem ajudado, junto a outros veículos da empresa e seus afiliados, a manter um império de dar inveja a Roma antiga (veja a ilustração acima). Com alcance em quase todo o território brasileiro, a Rede Globo mantém um monólogo diário com a população, por meio principalmente de noticiários e novelas, inclusive pautando sua programação de maneira maciça em todos os outros canais televisivos. Gindre avalia o grande legado da Globo e sua capacidade de influenciar e ditar hábitos, padrões de consumo e comportamentos políticos: “Isso acontece porque a emissora tem um patrimônio técnico que se impõe, e por não ter nenhum concorrente à altura. Também foi beneficiada pelo Estado e pelas oligarquias regionais que se filiaram a ela”.
ALTERNATIVAS AO IMPÉRIO Como vencer uma estrutura que consegue, ao mesmo tempo, defender publicamente temas nacionais e importar produtos e formatos audiovisuais, além de firmar acordos com os principais conglomerados internacionais? Como combater uma empresa que defende a economia de mercado e a liberdade de expressão, mas
Paulo Pereira Lima
Distorção padrão Basta acompanhar o noticiário dos principais jornais e revistas do país para ficar com raiva da decisão do governo Lula de demarcar a reserva indígena de Raposa Serra do Sol, em Roraima. Afinal, segundo informam os diários e semanários, não há uma única alma na região que defenda a demarcação: o governador do Estado em questão é contra, a população da região é contra, os produtores locais (!!) são contrários e até os índios não gostaram da medida e estão protestando contra o governo. Trata-se evidentemente de uma leitura parcial dos fatos. Jornal algum foi até o centro da reserva perguntar aos beneficiados o que eles acharam da demarcação.
Movimentos sociais defendem comunicação para todos e o fim do latifúndio na mídia
exerce hegemonia sobre o setor a partir da propriedade cruzada? Quais seriam as alternativas para um modelo que, de tão imposto, se consolidou como padrão nacional estético e força política aparentemente imbatível? Não apenas parece, mas é difícil. Seria necessário, na opinião de Mieli, um processo de ‘desintoxicação industrial’ para que uma nova forma de comunicação possa vir à tona, estabelecendo um contraponto e oferecendo uma alternativa ao ‘padrão Globo de qualidade’. “Daí nascerá um novo imaginário, que talvez seja o nosso, aquele que foi feito de refém. Precisamos sair desse embate cultural, o Brasil precisa de um novo modelo estético”, argumenta.
Além disso, Bolaño também considera fundamental reformar os sistemas de comunicação brasileiros, estabelecendo um equilíbrio entre o privado, o público e o estatal, de maneira que os veículos de comunicação alternativa possam ter voz: “O sistema privado deve existir, desde que cumpra determinadas normas e seja regulamentado”. Gindre completa, enfatizando a importância da conscientização popular: “As pessoas devem acordar para o fato de que a comunicação é vital para se pensar uma sociedade democrática. No dia em que conseguirmos pautar essa discussão no conjunto dos movimentos sociais, aí acho que tem jeito”, conclui, esperançoso. (Colaborou Igor Ojeda)
Histórias para ninguém esquecer Igor Ojeda da Redação Não é pouco. São quatro décadas de irregularidades, manipulações, bajulações ao poder e mau jornalismo. Veja os principais (e mais graves) exemplos disso tudo ao longo dos 40 anos de TV Globo: - Após acordo com o grupo estadunidense Time Life, é criada, em 1965, a TV Globo. Na época, a legislação brasileira proibia vínculos entre empresas de comunicação e grupos estrangeiros. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), formada em 1966 para apurar o assunto, aponta até entrada ilegal no país de caros equipamentos. Mas a CPI não dá em nada. - Em 1964, a TV Paulista, hoje TV Globo de São Paulo, é vendida a Roberto Marinho. A transferência é formalizada 13 anos depois. No entanto, em 2002, a família Ortiz Monteiro, uma das antigas proprietárias, entra com processo contra a emissora, alegando que esta falsificou recibos e procurações para efetivar a compra. A acusação, comprovada em laudo pericial, aguarda julgamento na 42ª Vara Cível do Rio de Janeiro. - Durante o regime militar
(1964-1985), a emissora dá apoio incondicional à ditadura. Em editoriais explícitos e reportagens tendenciosas, enaltece os generais e ataca com força os “subversivos” que insistem em lutar contra o governo. - Em 1982, durante a apuração da eleição para o governo do Rio de Janeiro, feita por meio de sistema eletrônico, a TV e a Rádio Globo divulgam resultados parciais dando mais peso para o interior, onde Moreira Franco, candidato dos militares, tinha mais votos. A estratégia era plantar na mente da população sua vitória frente a Leonel Brizola, inimigo declarado da emissora e amplo favorito. A fraude é descoberta a tempo e Brizola é eleito. - Durante a campanha Diretas Já, em 1984, a TV Globo ignora o quanto pode em seus noticiários as grandes manifestações pró-democracia. - Nas eleições presidenciais de 1989, a emissora “elege” Fernando Collor de Mello como seu candidato. Às vésperas do segundo turno, entre Collor e Lula, o Jornal Nacional, visto por cerca de 60 milhões de pessoas, manipula imagens do debate entre os candidatos e apresenta uma versão claramente favorável a Collor, que ganha a eleição.
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De 28 de abril a 4 de maio de 2005
NACIONAL POLÍTICA DE PRIVILÉGIOS
Os bancos quase não pagam impostos Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
P
rincipal beneficiário das decisões da equipe econômica que assumiu o controle do Ministério da Fazenda e do Banco Central ainda no governo Fernando Henrique, ao setor financeiro deveria ser exigido ao menos que desse ao país contribuição proporcional aos ganhos que vem acumulando. Seria de se esperar, portanto, que a arrecadação de impostos e contribuições pelos bancos crescesse na mesma velocidade que seus lucros. Esperança vã. No ano passado, enquanto os lucros das instituições financeiras aumentaram 36% na comparação com 2003, segundo dados consolidados pelo Banco Central (BC), a arrecadação de impostos no setor experimentou uma tímida variação de 8,8%, de acordo com números da Secretaria da Receita Federal (SRF), trabalhados pela assessoria econômica do Unafisco Sindical. Em valores absolutos, os ganhos dos 108 bancos levantados pelo BC saíram de R$ 8,4 bilhões, em 2003, para R$ 11,4 bilhões no ano passado, praticamente R$ 3 bilhões a mais, quebrando mais um recorde. Sob a forma de Imposto de Renda (IR), Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), PIS/Pasep e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
Matuti Mayezo/Folha Imagem
Sobre o trabalho, carga de IR é cinco vezes maior do que sobre o setor financeiro, cujo lucro subiu 36% em 2004 SALÁRIOS PERDEM CORRIDA PARA OS IMPOSTOS Massa salarial versus IR retido na fonte sobre rendimentos do trabalho (em número índice*) 160,56
Massa salarial Imposto de Renda (*) Base: 1996 = 100
100
1996
102,30
1997
1998
1999
2000
2001
2002
90,35
92,30
2003
2004
Lucros dos bancos aumentaram 36% em comparação com 2003 Fonte: Unafisco Sindical
(CSLL), a arrecadação no setor passou de R$ 12,8 bilhões para R$ 13,9 bilhões – um tímido ganho, para a Receita, de R$ 1,1 bilhão, valor equivalente a 37% dos R$ 3 bilhões acrescidos aos lucros dos bancos no ano passado.
Período
Despesas com juros
1998
49.857
3.056
1999
51.643
3.899
2000
46.345
4.423
2001
46.851
6.434
2002
44.244
12.994
2003
100.896
12.815
menos impostos, com a carga mais pesada da arrecadação recaindo sobre as parcelas da população que menos têm recursos. Ainda em 2004, a soma do IR retido na fonte sobre rendimentos do trabalho – a parcela do imposto que os assalariados e trabalhadores com carteira são obrigados a antecipar, todos os meses, à Receita Federal sobre os salários – mais o imposto pago no acerto anual pelas pessoas físicas atingiu quase R$ 37,7 bilhões. Isso significou um incremento de 19,3% frente aos R$ 31,6 bilhões recolhidos em 2003. Aqueles quase R$ 38 bilhões corresponderam a 2,7 vezes mais do que os impostos e contribuições recolhidos pelos bancos. Entre 2000 e 2004, a arrecadação federal no setor financeiro mais do que triplicou, de fato, pulando de R$ 4,4 bilhões, sempre em valores nominais (ou seja, não corrigidos com base na inflação do período), para aqueles R$ 13,9 bilhões (mais 215%). Aqui, pesaram a criação da Cofins e o início da contribuição do setor ao PIS/Pasep, ambos a partir de 2001. O fato, no entanto, é que os lucros dos bancos dispararam ainda mais: registrou-se um salto de 244% no mesmo período (de R$ 3,3 bilhões para R$ 11,4 bilhões).
2004
79.419
13.941
ESPOLIAÇÃO
Total
419.255
57.562
Se considerado apenas o IR recolhido pelas instituições financeiras, a diferença é ainda mais brutal. A despeito do lucro recorde, bancos, financeiras, corretoras de valores e
ESCÂNDALO A comparação com a situação dos trabalhadores e assalariados do setor formal ganha contornos de um verdadeiro escândalo fiscal, confirmando o caráter regressivo da política de cobrança de impostos no país. Mais claramente, os números oficiais mostram que, no Brasil, quem pode mais, paga
JUROS ALTOS, IMPOSTOS BAIXOS Despesas com juros da União e arrecadação federal no setor financeiro (Em R$ milhões) Arrecadação federal*
(*) Inclui Imposto de Renda (IR), Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), PIS/Pasep e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) do setor financeiro. Fontes: Banco Central/Secretaria da Receita Federal
outras entidades do setor financeiro pagaram ao leão apenas R$ 6,2 bilhões, o que representou 5,5% mais do que em 2003. Os trabalhadores, de seu turno, foram espoliados em R$ 31,5 bilhões, recolhidos na fonte, num salto de 19,2% frente ao ano anterior. A relação entre os dois valores mostra uma discrepância gritante: os assalariados recolheram ao IR cinco vezes mais do que os bancos. A relação havia alcançado praticamente seis vezes mais em 2000, recuando timidamente para 4,5 vezes em 2003. Voltou a crescer no ano passado, fruto do congelamento da tabela do IR na fonte, que provocou um verdadeiro confisco da renda dos trabalhadores/assalariados.
CONFISCO “A arrecadação do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, retido na fonte, em 2004, subiu bem mais do que a massa salarial, denunciando um perverso mecanismo de confisco sobre a classe trabalhadora”, anota um estudo recente do Unafisco Sindical. De fato, enquanto a massa salarial (total de salários pagos em toda a economia) avançou tímidos 2,15% entre 2004 e 2003, conforme o mesmo estudo, o IR retido na fonte sobre os salários aumentou 12% em termos reais (ou seja, já descontada a inflação). Em relação a 2002, final do governo FHC, a massa salarial encolheu praticamente 8%. Mas o IR na
fonte aumentou 14,5%. Ou seja, os assalariados passaram a contribuir, proporcionalmente, bem mais do que permitia sua capacidade de pagamento.
PERDAS Neste caso, o achatamento operou por três caminhos. Houve perda de renda causada pela redução real dos salários, que não conseguiram acompanhar a evolução dos demais preços na economia, e pelo avanço do desemprego. Numa terceira via, o leão passou a abocanhar uma fatia maior dos salários em função do congelamento da tabela do IR. Como os limites de recolhimento e de abatimento foram mantidos inalterados, qualquer variação nominal dos salários fez com que os contribuintes pessoas físicas recolhessem mais IR na fonte. A série de dados preparada pelo Unafisco Sindical, com base em números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Receita Federal, mostra que o Imposto de Renda na fonte registrou um aumento de 60,6% entre 1996 e o ano passado, ao mesmo tempo em que o total de salários pagos a assalariados e trabalhadores em geral encolheu 7,7%. Com dupla colaboração do governo, que manteve a tabela do IR sem correção e insistiu numa política econômica sustentada por taxas de juros astronômicas e arrocho nos gastos públicos, produzindo desaquecimento na economia, desemprego e arrocho salarial.
Transferência de renda para os donos do capital Tem mais, e pior. A comparação entre a saúde financeira dos bancos e os impostos que pagam indica que tem havido uma transferência de renda dos demais setores da economia para os donos do capital, que incluem grandes grupos empresariais e financeiros, agravando a concentração. O fato é que a política de juros altos vem causando uma verdadeira sangria nos cofres públicos, provocando um aumento de despesas muito superior aos valores recolhidos pelo setor financeiro aos cofres da Receita Federal. Entre 1998 e 2004, as despesas da União com os juros de sua dívida consumiram nada mais, nada menos do que R$ 419,2 bilhões, segundo números oficiais do Banco Central (BC). O valor total dos impostos e contribuições pagas pelo setor financeiro, no mesmo período, chegou a R$ 57,6 bilhões, aproximadamente. Um pelo outro, o gasto com juros (que contribui para engordar os lucros do setor) foi 7,3 vezes maior.
que permitem aos bancos pagarem menos impostos do que deveriam. Tome-se os casos do Unibanco e do Santander (que comprou o Banespa). Quinto e sexto maiores bancos do país, respectivamente, os dois tiveram lucros gordos no ano passado, com crescimento, pela ordem, de 24% e 26% em relação a 2003. O Unibanco lucrou perto de R$ 725 milhões, enquanto o ex-Banespa acumulou um ganho líquido de R$ 824,6 milhões. Os dois pagaram impostos? Nada disso. A Receita
Federal devolveu dinheiro a eles. O Santander recebeu R$ 5,2 milhões de volta da Receita e o Unibanco conseguiu uma devolução mais gorda, de R$ 168 milhões. Os bancos, assim como muitas empresas, podem fazer abatimentos diversos, inclusive de impostos supostamente pagos a mais no passado. Além disso, podem utilizar créditos acumulados por instituições que vão comprando ao longo do caminho. O Santander “herdou” do Banespa créditos no valor de R$ 4,4 bilhões, que vêm sendo
QUEM PAGA MAIS Bancos recolhem menos IR do que trabalhadores (em R$ milhões) Período
Imposto de Renda na fonte – trabalho (1)
Imposto de Renda dos bancos (2)
Diferença (1/2)
1995
10.881
1.163
9,36
1996
10.871
1.521
7,15
1997
12.510
1.968
6,36
1998
14.649
1.978
7,41
DINHEIRO VOLTA
1999
15.277
2.530
6,04
Obviamente, nem toda aquela despesa com juros se transformou, diretamente, em lucros. Mas devese levar em conta, no entanto, que os impostos recolhidos pelo setor financeiro ficam bem distante do que se poderia considerar razoável – entre outros motivos, porque há uma série de “brechas” na legislação
2000
18.266
3.100
5,89
2001
21.582
2.361
9,14
2002
22.479
5.700
3,94
2003
26.455
5.871
4,51
2004
31.523
6.196
5,09
Fontes dos dados brutos: Unafisco Sindical/Secretaria da Receita Federal
utilizados para reduzir os impostos a pagar, a despeito dos lucros recordes que o banco tem registrado. O Itaú e o Bradesco também arremataram bancos estaduais. Em 2003 (assim como o Unibanco e o Santander no ano passado), ambos con-
seguiram receber mais devoluções de impostos e contribuições do que pagaram. O Itaú recebeu um “troco” da Receita Federal de R$ 858,4 milhões, bem mais polpudo do que a restituição de R$ 5,4 milhões recebida pelo Bradesco. (LVF)
Juros recordes fazem dívida pública crescer 15% desde agosto Desde que retomou a política de elevação das taxas de juros, em setembro de 2004, a equipe econômica conseguiu produzir dois efeitos, ambos perversos: um novo aumento da dívida pública, com crescimento das despesas com juros, e uma desaceleração da atividade econômica no começo de 2005. O primeiro é mais evidente: a dívida do governo federal saltou quase 15%: de R$ 761,8 bilhões, em agosto do ano passado, para R$ 873,6 bilhões, em março. Em sete meses, houve um inchaço na dívida equivalente a R$ 111,8 bilhões, ou 3,5 vezes mais do que todo o (suposto) rombo projetado para a Previdência neste ano. Na semana passada, o BC decidiu elevar a taxa de juros para 19,5% ao ano, consolidando a liderança mundial do país nesta área. Segundo a consultoria GRC
Visão, descontada a inflação projetada para os próximos 12 meses, os juros reais no Brasil chegaram a 12,9%, diante de 7,3% na Turquia, segunda colocada no ranking dos juros altos. Tomando o valor da dívida em março deste ano, caso os juros estivessem nos mesmos 16% registrados até agosto de 2004, as despesas do governo federal com juros chegariam a pouco mais de R$ 80,6 bilhões em um ano. Com a taxa vigente, os gastos com juros devem saltar para R$ 98,3 bilhões nos próximos 12 meses, numa sangria adicional de R$ 17,6 bilhões, em valores arredondados. Detalhe final: mesmo que estivesse em 16% ao ano, essa taxa já asseguraria ao país o campeonato mundial dos juros altos, de quase 9,5% depois de descontada a inflação. (LVF)
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De 28 de abril a 4 de maio de 2005
NACIONAL NÃO À PRIVATARIA
Em defesa dos bancos públicos
Hamilton Octavio de Souza
Governos gaúcho e catarinense não querem se desfazer de seus estabelecimentos bancários
Momento decisivo O ex-deputado Plinio Arruda Sampaio colocou seu nome na disputa para a presidência do PT, caso as correntes de esquerda consigam se articular para formar uma chapa unitária de oposição. Além do candidato da situação, José Genoíno, foram lançadas as candidaturas de Maria do Rosário, do Movimento PT; de Raul Pont, da Democracia Socialista; e de Valter Pomar, da Articulação de Esquerda. Riqueza transferida O Brasil é o 4º maior pagador de juros do mundo, em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), depois de Jamaica, Líbano e Turquia. Em 2004, o Brasil desembolsou R$ 128,1 bilhões com o pagamento de juros. Se tivesse investido na construção de moradias populares, obras de saneamento, recuperação das estradas e em projetos sociais, o país teria gerado milhões de empregos e melhorado a qualidade de vida da população. Distorção privatista 1 Estudo recente comprova a relação entre a excessiva privatização do Estado brasileiro e a carência dos serviços públicos. No Brasil, o investimento nos serviços para o povo representa apenas 42% do PIB, enquanto nos países capitalistas mais desenvolvidos – como Suécia Dinamarca e França, nos quais a população dispõe de bons serviços públicos – o investimento fica entre 54% e 58% do PIB. Distorção privatista 2 O balanço orçamentário do Brasil revela uma inversão total de prioridades: em 2004, o governo federal gastou R$ 89,4 milhões para pagamento de pessoal, incluindo as Forças Armadas, e, no mesmo período, desembolsou R$ 74,4 milhões em juros, um dinheiro jogado fora. Já o investimento público do ano passado representou somente 0,6% do PIB, enquanto os recursos destinados a quitar os juros foi o equivalente a 4,2% do PIB. Até quando? Direita televisiva Desde que decidiu ser capacho da TV Globo, o ex-cineasta Arnaldo Jabor não perde a oportunidade para criticar movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores, partidos de esquerda – tudo, enfim, que faça alguma luta por direitos iguais e melhores condições de vida para os brasileiros. Sexta passada, sem mais nem menos, chamou os dirigentes do MST de “agitadores delirantes”. É fácil usar a TV como arma quando se sabe que as vítimas não poderão se defender. Dívida tucana Se todos os administradores tivessem que repor aos cofres públicos os prejuízos causados em seus mandatos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso seria obrigado a devolver R$ 4,75 bilhões ao Banco Central, exatamente o que os bancos privados pegaram do Proer, em 95 e 96, e até agora não pagaram. Por que a União não cobra de quem autorizou os empréstimos? Não seria uma forma de aumentar a responsabilidade dos governantes? Diáspora brasileira A situação no Brasil está tão boa, o governo Lula tem ido tão bem, o povo está tão feliz – que o número de brasileiros que tenta entrar ilegalmente nos Estados Unidos, pela arriscada fronteira mexicana, aumenta a cada mês. Foram pegos pela polícia estadunidense mais de 10 mil imigrantes só nos últimos quatro meses. Não se sabe quantos furaram a vigilância da fronteira. Manobra parlamentar Mercadoria de troca entre políticos das elites brasileiras, as concessões de rádio e televisão constituem uma das mais fechadas caixas-pretas da República. Ninguém sabe os nomes reais dos concessionários desses serviços públicos. O projeto de lei 1879/03, que obriga o Ministério das Comunicações a divulgar a relação completa, continua cozinhando no Congresso Nacional.
André de Oliveira* de Porto Alegre (RS)
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abitualmente, os governos criam bancos públicos (estatais), porque são indispensáveis ferramentas de execução de políticas econômicas, com função de estimular (ou desestimular) investimentos em áreas estratégicas para o desenvolvimento nacional e/ou local, aplicar recursos a fundo perdido em áreas de interesse econômico e social, direcionar recursos para o desenvolvimento de tecnologia, prover linhas de financiamento mais baratas do que as oferecidas pelo setor privado, etc. etc. Mas o Brasil, desde o fim dos governos militares e com a assunção de desbragadas políticas neoliberais pelos sucessivos governos, que aumentaram ao extremo a dependência externa do país, abriu mão de sua soberania para atender às exigências dos credores, sejam eles bancos privados ou instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, entre outras. Hoje, mesmo que a atual administração federal não tenha assinado um novo acordo com o FMI, não abandonará a cartilha do Fundo, cuja direção, aliás, continua cobrando o “aprofundamento” das reformas. E aquela cartilha prega a continuidade da privatização do Estado – seja no nível federal (estradas, previdência, saúde, educação, saneamento), ou estadual. Não sobraram muitos bancos públicos estaduais. Dois deles são o do Rio Grande do Sul (Banrisul) e o de Santa Catarina (Besc) que, reorganizados, voltaram a apresentar resultados econômico-financeiros positivos. Seus controladores, os Estados, querem mantê-los na esfera pública. Não é possível prever até quando.
BANCO GAÚCHO Está em curso no Rio Grande do Sul, desde o final do ano passado, uma incipiente tentativa de reativar um movimento pela privatização do Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul). Diagnóstico elaborado por grupos empresariais ligados ao Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade (PGQP), intitulado “A Crise do Estado: Reformas para Racionalizar a Máquina Pública”, foi entregue em caráter não-oficial ao governador Germano Rigotto (PMDB), no início de 2005. Entretanto, o governo afasta qualquer possibilidade de federalização do banco estadual, um primeiro passo para colocá-lo sob gestão do governo federal que o incluiria no Plano Nacional de Desestatização (PND), uma antiga promessa, por escrito, do ministro Antonio Palocci, da Fazenda, ao Fundo Monetário Internacional. “Em nenhum momento, o governo teve a intenção de vender ativos do Banrisul como forma de enfrentar a crise estrutural nas finanças do Estado”, garante o governador. Para Rigotto, o banco é uma importante ferramenta para atender aos interesses do Rio Grande do Sul, no desenvolvimento e no fomento. “Queremos o Banrisul público, cada vez mais integrado na vida das nossas comunidades, agindo como prestador de serviços e como um verdadeiro indutor de desenvolvimento. Ele não é, e nem pode ser, um banco como qualquer outro”, completa o governador gaúcho.
OS PRIVATISTAS Mas é diversa a posição dos empresários. Para eles, “a hora certa de negociar a federalização é agora, quando o banco está saneado financeiramente”. Nem
Agência Estado
Fatos em foco
O governador gaúcho Germano Rigotto e o ministro da Fazenda Antônio Palocci: privatização em nível federal e estadual
o fato de o Banrisul vir obtendo lucros desde 1999 é suficiente para mantê-lo estatal. Seu resultado “não compensa o custo adicional em termos de pagamentos de juros e de elevação de endividamento que a decisão de não privatizar causou neste mesmo período”. Aqui, o documento faz referência à impossibilidade de redução dos percentuais de pagamento da dívida à União, acordados após a desistência do governo Olívio Dutra (PT) de federalizar o banco. “Portanto, uma eventual decisão de privatizar o Banrisul teria não apenas efeitos positivos no gerenciamento da instituição, mas poderia ainda reduzir a elevação da dívida do Rio Grande do Sul com o governo federal”, argumentam o documento. E, acrescenta, além de servir para abater outros passivos como a dívida acumulada pelo Instituto de Previdência do Estado (IPE).
DEBATE LONGO De acordo com estimativas, a privatização do Banrisul não renderia mais do que R$ 2 bilhões ao Estado, valor para o qual os autores do documento procuram atribuir alguma função social. Mas a lógica do PGQP é furada, já que, se o banco está saneado financeiramente e dá lucro, mostra que a sua gestão é eficiente e que cumpre o seu papel nas contas do Estado. De mais a mais, garantem servidores da Secretaria da Fazenda da área do orçamento estadual, a federalização não traria vantagens. Os recursos obtidos com a venda seriam insuficientes para assegurar um rebaixamento sensível da dívida com a União. Além disso, o Banrisul tem se mostrado uma instituição de vanguarda, por exemplo, com o melhor sistema de segurança de internet do país e com uma carteira significativa de crédito popular e fomento econômico a empreendimentos de pequeno porte.
de atendimento e de clientes, mas o contingente de servidores não acompanhou essa expansão”, disse. Também há vagas para outros Estados, como Santa Catarina, que recebeu um grande número de agências nos últimos anos e hoje conta com a segunda maior rede de atendimento do Banrisul. As outras vagas são para sete outros Estados e o Distrito Federal. O banco possui, ao todo, 383 agências.
PLEBISCITO Mas os defensores da redução do Estado que elaboraram o documento esquecem da prerrogativa estabelecida na Constituição Estadual, segundo a qual só será possível a desestatização do Banrisul mediante consulta popular, sob a forma de plebiscito.
O Besc não será vendido, assegura o seu diretor Adenilson Teles de Blumenau (SC) “O Banco do Estado de Santa Catarina (Besc) está fora da agenda de privatizações do governo em 2005 e 2006”, declarou o seu diretor de administração, Jorge Lorenzetti, durante a visita à sede do Sindicato dos Bancários de Florianópolis e Região, no dia 10 de março, quando esteve reunido com representantes da Federação dos Bancários da Central Única dos Trabalhadores de Santa Catarina (Fetec/CUT/SC). Em 2004, o Besc obteve lucro líquido de R$ 33,1 milhões, o que mostra que é economicamente viável e pode continuar estatal. Entretanto, como ele continua no Plano Nacional de Desestatização (PND), apesar das boas intenções do atual governo estadual, ainda corre o risco de ser privatizado.
PENDÊNCIAS HÁ VAGAS Uma mostra de que, ao menos por ora, a privatização está fora de cogitação é o edital publicado no início de abril para o concurso do Banrisul, abrindo 400 vagas em cargo de nível médio, para preenchimento imediato. Porém, as entidades sindicais estaduais acreditam que o número de convocados será maior. O diretor de política sindical da Federação dos Bancários do Estado, Carlos Augusto Rocha, estima que devem ser contratados entre mil e 1.500 escriturários. “O Banrisul cresceu em número de postos
A introdução de emenda constitucional foi aprovada por unanimidade da Assembléia Legislativa, em junho de 2002, o que confirma a impopularidade de qualquer iniciativa para se desfazer do Banrisul. Além disso, a conjuntura política também joga para um futuro imprevisível o assunto desestatização, já que Germano Rigotto tem intenção de se reeleger. Porém não se pode esquecer do tamanho do desequilíbrio das contas públicas do Rio Grande do Sul, agravada pela recente seca que debilitou consideravelmente a economia estadual. Nessa hora, proliferam os conselheiros de plantão apontando para bons negócios de privataria. (*Repórter da Cooperativa Catarse – Coletivo de Comunicação – catarse@terra.com.br)
Segundo o sindicato estadual dos bancários, Lorenzetti disse que os próximos dois anos “serão determinantes para que o Besc consolide o processo de recuperação”, comprovando a sua viabilidade como instituição pública. O sindicalista e ex-presidente da CUT/SC, Jorge Lorenzetti, que assumiu o cargo no dia 4 de março, acredita que a estratégia de fortalecimento do Besc está diretamente ligada à área de recursos humanos. Na reunião, os representantes da Fetec/CUT/SC relataram as principais pendências dos bancá-
rios sem solução nos últimos dois anos. Como o pagamento do valor referente à participação nos lucros e resultados (PLR) do exercício de 2004, e das horas extras, além da necessidade urgente de correção do piso salarial dos funcionários, que ganham abaixo do piso da categoria. Os sindicalistas também reivindicaram a ampliação do quadro de empregados do banco, com a contratação de mais funcionários, já aprovados nos últimos concursos públicos.
FUNÇÃO SOCIAL O Besc foi federalizado em 2000 pelo então governador Esperidião Amin (PP), com a desculpa de que era deficitário e tinha inúmeras dificuldades financeiras. Acontece que, historicamente, a instituição sempre foi usada por sucessivas administrações estaduais para encobrir rombos nas contas públicas. Apesar de lucrar em 2004, uma conseqüência da federalização, desde que entrou no PND o Besc não tem cumprido a função social de banco público e está cada vez mais distante dos objetivos para os quais foi criado, que é incentivar e fortalecer pequenos, micro e médios agricultores e empresas de Santa Catarina. Outra conseqüência direta do PND foi o enxugamento do quadro de funcionários. Nos últimos três anos, o banco reduziu o quadro de pessoal em mais de 40%. Em junho de 2002, empregava 4.852 bancários, e em junho de 2004 o contingente caiu para 2.881.
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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA
Os números que o governo embaralha Jorge Pereira Filho e Marcelo Netto Rodrigues da Redação
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onrar compromissos não é um princípio que vale para todas as metas anunciadas, até o momento, pelo governo Lula. Se, com o setor financeiro, os acordos vêm sendo cumpridos à risca, a mesma regra não vale para as questões sociais. Em 2004, por exemplo, o governo superou, com folga, a meta acordada com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de fazer um superavit primário (economia dos gastos públicos) de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB), atingindo 4,61%. Já a história das metas de reforma agrária é um enredo de desinformação com um ponto em comum: o governo não cumpre suas promessas. A novidade, agora, é um número obtido com exclusividade pelo Brasil de Fato, mostrando que apenas uma minoria dos assentados em 2003 e 2004 foi, de fato, resultado de projetos iniciados no governo Lula. A maioria dessas 117 mil famílias contabilizadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) foi alocada em projetos criados durante governos anteriores (como o de Fernando Henrique Cardoso), ou simplesmente teve sua situação regularizada. Essa sutil diferença, omitida quando são divulgados os números oficiais, reforça o fato de que os compromissos do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) estão bem distantes de serem cumpridos. “Isso mostra que o processo está lento. O ritmo da reforma está menor do que precisaria ser”, avalia Plinio Arruda Sampaio, atual presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), que elaborou uma proposta de plano ao governo.
DEMORA Os números mostram essa morosidade. Para 2004, o compromisso assumido pelo governo Lula previa o assentamento de 115 mil famílias. O Incra divulga que foram beneficiadas cerca de 80 mil famílias (70% da meta). Mas, de fato, apenas 25.735 mil (21% da meta) foram contempladas em projetos criados pelo governo Lula (veja quadro abaixo). As restantes foram alocadas em projetos de outros governos. Ocorre que não há informações se as famílias beneficiadas já estavam assentadas e tiveram sua situação
Joel Silva/ Folha Imagem
Gestão do PT assentou, em projetos próprios, 38,3 mil famílias em dois anos, não 117 mil, como costuma anunciar
Acampamento de trabalhadores rurais sem-terra em Ribeirão Preto (SP): reforma agrária não é prioridade no governo Lula
regularizada. Tampouco se divulga se os contemplados estão substituindo justamente agricultores que deixaram os assentamentos justamente por não terem tido apoio para produzir. Não se trata de questões menores. Para Guilherme Delgado, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e um dos integrantes da equipe coordenada por Plinio Arruda Sampaio, isto representa um prejuízo para os objetivos do PNRA. “Primeiro, a meta original de um milhão de assentamentos em quatro anos foi reduzida para menos da metade (400 mil famílias). Depois, mesmo isso não está sendo cumprindo, nem contando junto famílias assentadas em projetos de outros governo”, observa. O geógrafo da Universidade de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino, acrescenta que este tipo de mecanismo contribui para não reduzir o número de acampamentos. “O governo está contando, nas metas, as famílias beneficiadas em assentamentos já existentes”, explica.
CRITÉRIOS Para Delgado, os números não devem ser divulgados como se fossem uma coisa só. “É preciso fazer
2º PLANO NACIONAL DE REFORMA AGRÁRIA (PNRA) Meta de assentamentos: 400 mil famílias 2003: 30 mil 2004: 115 mil 2005: 115 mil 2006: 140 mil Meta de Regularizações Fundiárias: 530 mil famílias, até o final de 2006
a observação. O governo Lula tem o mérito de ocupar um assentamento vazio, mas o investimento não foi feito por ele e, evidentemente, tudo não pode ser creditado ao seu governo”, considera. Segundo ele, o ideal seria elaborar uma estatística apontando o estoque de famílias assentadas, por período. A partir desse número, seria possível identificar se há crescimento no volume de beneficiados. “Somente dessa forma podemos perceber se há aumento no fluxo novo de assentados ou se trata de substituição”, afirma.
FANTASMA O pesquisador do Ipea acrescenta que, historicamente, faltam transparência e critérios aos números da reforma agrária. “Não são números sistemáticos, não têm clareza. Qual é o conceito de assentado com que se trabalha? Ficamos nos fiando na informação de um assessor, de boca em boca”, diz. Delgado propõe que o governo crie um anuário estatístico da reforma agrária. “É o que já faz o Ministério da Previdência, que divulga todos os anos suas informações com critérios mais claros”, argumenta. Esta discrepância nos números
OS NÚMEROS VERDADEIROS Famílias assentadas em projetos criados pelo governo Lula, em dois anos Ano de criação do projeto 2003 2004 Total:
Famílias 12.525 25.735 38.260
Fonte: Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária
Crédito Fundiário*: 130 mil famílias * Programa que permite acesso à terra por meio de financiamento da aquisição do imóvel rural. Substituiu o antigo Banco da Terra. Agência Estado
Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
da reforma agrária já era sentida pelos movimentos sociais. “O fantasma do Jungmann (Raul Jungmann, ex-ministro de FHC) não foi embora do Ministério do Desenvolvimento Agrário. A maquiagem continua. Vínhamos dizendo que os números não se sustentavam, da mesma forma como não se sustentavam os números do Fernando Henrique. O governo Lula tem de fazer uma profunda autocrítica sobre o seu desempenho na reforma agrária. Até o momento, os números são pífios”, afirma o deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PTRS), integrante da Via Campesina. Raul Jungmann ganhou notoriedade por inflar, de forma grotesca, os números da reforma agrária. Hoje deputado federal pelo PPS, o ex-ministro contabilizava nas estatísticas as vagas abertas por assentamento – e não as famílias que, de fato, as preenchiam. “O governo FHC considerava, em seus números, até quem se inscrevia no Correio para ser beneficiado pela reforma agrária.
Era uma coisa completamente caótica”, recorda Delgado.
MUDANÇA Esse procedimento foi alterado logo no início do governo Lula. Para Plinio Sampaio, o problema, agora, é que o tema reforma agrária não está recebendo a devida atenção no governo Lula. “É um problema orçamentário, não tem dinheiro. Demora muito para desapropriar porque a lei é muito ruim, estão pegando o que dá para assentar”, afirma o presidente da Abra. Sampaio não se empolga com a recente promessa do presidente Lula de liberar mais recursos para o ministro Miguel Rossetto. “Temos de ver quando esse dinheiro vai ser entregue, porque o Rossetto consegue que o Lula diga sim, mas a Fazenda demora para repassar”, analisa. Segundo ele, ainda é possível cumprir a meta de assentar as 400 mil famílias previstas no PNRA, mas, para tanto, será necessário destinar mais verba para esse fim.
EUA investigam MST em Pernambuco A tentativa de associar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) “faz parte de um processo para jogar a sociedade e o presidente Lula contra o MST, às vésperas da Marcha Nacional pela Reforma Agrária”, acredita o dirigente nacional do Movimento em Pernambuco, Jaime Amorim. “Os Estados Unidos sabem que a Marcha vai inspirar outros movimentos da América Latina”. Em entrevista publicada, dia 26 de abril, no Jornal do Commercio, a superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Pernambuco, Maria de Oliveira, declarou que foi procurada, no dia 10 de fevereiro, pelo cônsul dos Estados Unidos em Pernambuco, Peter Swavely, e o segundo secretário para Assuntos Políticos da Embaixada, Richard Thomas Reiter, para responder se o governo do Brasil estava preparado para dar uma resposta ao Abril Vermelho. Depois de um tempo, conta Maria, eles telefonaram tentando marcar novos encontros, agora com o objetivo de investigar a presença de membros das Farc em Pernambuco, que estariam atuando junto a militantes do MST. Cons-
ciente de que esses assuntos deveriam ser tratados pelo Itamaraty, ela resolveu não atendê-los mais e transferiu a responsabilidade para o Ministério do Desenvolvimento Agrário em Brasília.
SOBERANIA “A atitude da superintendente foi muito feliz. Mesmo se arriscando a comprometer o governo, ela veio a público e denunciou esta tentativa de coação. O normal seria se intimidar e repassar informações. Foi muito importante para nós percebermos que há transparência em algumas pessoas do governo”, analisa Amorim. Até o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), presidente da CPMI da Terra, conhecido adversário do MST, considerou o episódio uma afronta à soberania nacional. João Pedro Stedile, da direção nacional do MST, também se pronunciou sobre o incidente, dizendo que o Movimento vai pedir explicações ao governo brasileiro e exigir providências para que os representantes oficiais dos EUA se restrinjam às atividades diplomáticas, não sendo permitido sua ingerência nos assuntos internos do Brasil. Muito menos nos assuntos dos movimentos sociais que atuam aqui. (MNR)
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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA
Rumo a um projeto popular para o Brasil João Alexandre Peschanski e Marcelo Netto Rodrigues da Redação
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elhorar a vida do povo brasileiro. Imediatamente. O objetivo da Marcha Nacional pela Reforma Agrária supera seu nome e reivindica muito mais do que reforma agrária. Apelidada Grande Marcha, a mobilização, que reúne cerca de 15 mil trabalhadoras e trabalhadores e que, de 2 a 17 de maio, vai percorrer os 233 quilômetros que separam Goiânia (GO) de Brasília (DF), carrega propostas para a elaboração de um verdadeiro projeto nacional para o Brasil. As reivindicações foram elaboradas pelos movimentos que organizam a Grande Marcha, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Via Campesina, o Grito dos Excluídos e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a partir de consultas a outras organizações. Sintetizados em dezesseis pontos, os temas vão de propostas sobre as políticas econômica e internacional do governo a cobranças de promessas feitas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante sua campanha eleitoral, em 2002, como o assentamento de 400 mil famílias até o ano que vem (leia abaixo um resumo das reivindicações da Grande Marcha). Dia 17, integrantes da mobilização devem reunir-se com representantes dos três poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo) para discutir as reivindicações. Os
Ichiro Guerra/ Folha Imagem
Mobilização nacional exige empenho e agilidade do governo para resolver os problemas do povo
Entre os caminhantes da Marcha de 1999, o poeta baiano Luiz Beltrami de Castro (ao centro, com a bandeira do Brasil), de 96 anos
organizadores da Grande Marcha esperam encontrar-se com Lula. Segundo o deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT-RS), integrante da Via Campesina, a preocupação não é só negociar com o governo, mas cobrar soluções concretas para os problemas apresentados. “Não estamos preocupados em nos encontrar com tal ou tal mi-
O trajeto da mobilização Os marchantes vão percorrer o trecho da BR-060 que liga Goiânia a Brasília Dia 17 de maio ato público de chegada da marcha na Esplanada dos Ministérios Dia 12: parada para descanso
Dia 5: ato público em Anápolis
Dia 30 de abril: chegada das delegações próximo ao Estádio Serra Dourada Dia 1º de maio: marcha até o centro de Goiânia para ato já com os marchantes Dia 2: saída da Marcha
nistro. Pode ser com o porteiro do Ministério da Fazenda, desde que se resolva algo. Não vamos trocar, como muitos fazem, a pauta pelo palco”, afirma.
Por que marcho Luiz Beltrami de Castro
“Seguimos todos com Deus porque Deus é nosso pai. E vamos todos marchando, cantando e fazendo um ensaio, com viola e violão, com pandeiro e chocalho. Vamos gastando ‘havaianas’ para sair de Goiânia dia primeiro de maio” Luiz Beltrami de Castro, 96 anos, poeta, nascido em Paramirim, na Bahia, dia 10 de outubro de 1908. Vive no assentamento da Fazenda Reunidas, em Promissão (SP), desde 1991. “Seu Luiz” puxou a Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em 1997, de São Paulo (SP) a Brasília (DF), percorrendo 1.580 quilômetros. Ele vai marchar de novo este ano.
A Marcha Nacional em números
- Participantes: de 10 a 15 mil marchantes vindos de 22 Estados brasileiros mais o Distrito Federal - Transporte: os marchantes vão chegar a Goiânia de ônibus para de lá começarem a marchar. O Estado de São Paulo, por exemplo, vai com mais de 20 ônibus - Duração:16 dias - Distância: média de 300 km - Média de caminhada diária:16 km ( mais ou menos 4 horas), o dia mais longo vai percorrer 21 km - Comunicação: o Fórum Social Mundial emprestou 9.800 radinhos para que os marchantes acompanhem a marcha que deve chegar a 15 quilômetros de pessoas alinhadas em duas filas
- Bonés: os tradicionais bonés vão ser substituídos por chapéus de palha de aba larga em virtude do sol - Barracos: a lona preta vai ser substituída por grandes lonas de circo - Comida: vão ser duas cozinhas fixas, uma no início da marcha e a outra na metade. Carros vão transladar as marmitas - Estudo: na parte da tarde, os marchantes vão discutir os 16 temas reivindicatórios da marcha
A Grande Marcha defende a criação de um projeto soberano e sustentável de desenvolvimento do Brasil, tendo como prioridade o bem-estar do povo, de acordo com João Paulo Rodrigues, do MST, e Ari Alberti, do Grito dos Excluídos. Nesse sentido, os marchantes exigem a mudança da política econômica, que deve se transformar em um meio para atender aos direitos da população: educação, emprego moradia, saúde e terra. Os organizadores da mobilização dizem que não querem confrontar o governo, mas exigir deste vontade política para resolver as mazelas sociais. “A origem dos problemas é estrutural, mas as soluções devem e podem começar imediatamente. A política econômica está baseada em altas taxas de juros e benefícios para bancos. Esperamos que nossa mobilização nacional leve o governo a aplicar os recursos humanos e financeiros necessários para cumprir suas
promessas. As soluções devem e podem começar imediatamente”, analisa Rodrigues. A Grande Marcha faz parte de uma agenda mais ampla de mobilizações. Para setembro e outubro, estão previstas outras manifestações. Não por acaso, diz Alberti, explicando que 2005 é um ano decisivo: “É preciso politizar a esperança que elegeu Lula, antes que recomece a disputa eleitoral e percamos a possibilidade de fazer um trabalho de conscientização da população”. A conscientização se refere à criação de um debate nacional – na opinião pública, pelos meios de comunicação, e nos setores organizados da sociedade, por assembléias populares – sobre os rumos do Brasil. “Todos sabem dos problemas da população e querem que sejam resolvidos, de forma prioritária. Mas ninguém discute como resolver as coisas ou como pressionar o governo pelas soluções”, conclui Rodrigues.
Dezesseis pontos para a mudança Na chegada a Brasília, prevista para dia 17 de maio, a Marcha Nacional pela Reforma Agrária vai entregar a representantes dos três poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo) uma série de propostas para melhorar as condições da população brasileira. O documento, com dezesseis pontos, deve ser entregue ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Leia abaixo o resumo das propostas. O que precisa ser feito para melhorar a vida do povo: 1. Assentar 400 mil famílias sem-terra até 2006, conforme o prometido no Plano Nacional de Reforma Agrária 2. Implementar um programa de agroindústrias e de crédito especial para os assentamentos 3. Defender a Amazônia e a biodiversidade brasileira dos interesses das transnacionais e impedir a privatização da água 4. Impedir a liberação do plantio comercial de qualquer semente transgênica, até que haja pesquisas confiáveis sobre o impacto da tecnologia no ambiente e na saúde das pessoas 5. Punir os fazendeiros acusados de praticar violência contra trabalhadores e aprovar a lei de expropriação de fazendas onde ocorra trabalho escravo 6. Demarcar todas as áreas indígenas e regulamentar as terras quilombolas
7. Aplicar os R$ 60 bilhões do superavit primário anual em geração de emprego, moradia popular, saúde pública e educação 8. Baixar as taxas de juro real dos atuais 19,5% ao ano para 2,5% ao ano 9. Aumentar o salário-mínimo e a aposentadoria para R$ 454 mensais em maio de 2005, e para R$ 566 em maio de 2006 10. Recuperar o controle governamental e público sobre o Banco Central 11. Não negociar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e manter apenas acordos comerciais que beneficiem a população 12. Realizar uma auditoria pública da dívida externa e renegociar seu valor 13. Aprovar a regulamentação do Plebiscito Popular, para que o povo decida sobre as questões fundamentais que lhe digam respeito 14. Democratizar o acesso e o uso dos meios de comunicação de massa 15. Condenar a política de guerra do governo estadunidense e retirar as tropas brasileiras do Haiti 16. Promover um mutirão nacional para discutir, com a sociedade, um projeto de desenvolvimento para o país, assegurando o combate à desigualdade social e a criação de uma verdadeira democracia política
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SEGUNDO CADERNO EQUADOR
Traição ao povo derruba presidente Luís Brasilino da Redação
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urante mais de uma semana, os equatorianos da capital, Quito, tomaram as ruas e deram um basta às políticas neoliberais que empobreciam o país. “Aparentemente, se fecha um ciclo histórico de governos que não conseguem atender às reivindicações populares”, analisa o sociólogo Emir Sader, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade de São Paulo (USP). Nestes dias, a população saiu às ruas para protestar contra o presidente Lucio Gutiérrez, o mesmo que há pouco mais de dois anos tinha levado ao poder, eleito com a promessa de promover reformas sociais. Antes mesmo da posse, em 15 de janeiro de 2003, Gutiérrez foi aos Estados Unidos se reunir com o presidente George W. Bush, para, depois, se autoproclamar o “principal aliado” do estadunidense na América Latina.
Rodrigo Buendia/AFP/ Folha Imagem
Protestos em Quito derrubam Lucio Gutiérrez, que trocou promessas de reforma social por adesão ao neoliberalismo
GOLPE Em meados de 2004, ficou claro para os equatorianos que as reformas sociais tinham dado lugar a um aprofundamento do neoliberalismo. A elite continuava desfrutando de privilégios, e as negociações para um Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos avançavam. Na área militar, Gutiérrez mantinha sua subserviência ao império com a inclusão do Equador no Plano Colômbia, e permitia a manutenção de tropas estadunidenses na base de Manta, no litoral central. Mas o esgotamento definitivo da popularidade de Gutiérrez começou
Manifestantes pedem reforma total no Congresso e no governo; foram mais de dois anos de políticas neoliberais que só empobreceram o Equador
em 8 de dezembro de 2004, quando ele articulou uma maioria parlamentar e destituiu todos os juízes da Corte Suprema de Justiça e do Tribunal Constitucional. Nos postos vagos, Gutiérrez colocou aliados do ex-presidente Abdalá Bucaram que, graças à nova Justiça, pôde, dia 2 de abril, abandonar o exílio e voltar ao Equador. A chegada do ex-governante, que fugira sob acusações de corrupção, foi a gota d`água. Os primeiros protestos exigindo a renúncia de Gutiérrez começaram
a acontecer. No dia 13, as manifestações se intensificaram e aos gritos de “Que se vajan todos!”, passaram a exigir também a saída dos juízes da Corte Suprema e dos parlamentares do Congresso Nacional. A partir da rádio La Luna (para escutar, visite www.radiolaluna.com), movimentos populares, setores da comunidade indígena e a classe média quitenha começaram a organizar assembléias sem lideranças em seus próprios bairros e, a partir delas, protestos diários em dife-
Bruno Fiuza de Quito (Equador) A decisão do governo brasileiro de conceder asilo político ao ex-presidente Lucio Gutiérrez descontentou os forajidos, equatorianos que participaram dos protestos que levaram à destituição do coronel. Na tarde do dia 20 de abril, antes de ser confirmada a notícia de que Gutiérrez estaria na embaixada brasileira, centenas de manifestantes já se reuniam em frente à residência do embaixador brasileiro em Quito, Sérgio Florêncio. Os forajidos pretendiam impedir que mais uma vez um presidente deposto fugisse do país para se livrar de acusações que pesavam sobre ele. Os dois últimos presidentes destituídos, Abdalá Bucaram, em 1997, e Jamil Mahuad, em 2000, eram acusados de corrupção e saíram do país logo após serem depostos. O caso de Bucaram foi ainda mais grave pois, segundo jornalistas locais, o ex-presidente teria levado consigo 3 milhões de dólares sacados do Banco Central equatoriano momentos antes da fuga. Logo após a destituição de Gutiérrez, no próprio dia 20, Cecília Armas, fiscal-geral da nação, expediu ordens de prisão preventiva contra o ex-presidente e Bolívar Gonzalez, subsecretário do Ministério do Bem Estar Social, para apurar a responsabilidade de ambos em duas mortes decorrentes da violenta repressão policial em protestos populares. Essas ordens de prisão, no entanto, não tinham eficácia jurídica pois deveriam ser sancionadas pela Corte Suprema de Justiça que está dissolvida desde o dia 17. A embaixada brasileira in-
Rodrigo Buendia/AFP/ Folha Imagem
Brasil decepciona ao conceder asilo a Lucio Gutiérrez
Para equatorianos Gutiérrez saiu do país para não responder por corrupção
formou que não tinha conhecimento dessa ordem de prisão quando o ex-presidente pediu asilo. Para o sociólogo Emir Sader, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o Brasil fez bem em conceder o asilo: “Com a saída de Gutiérrez do país, fica mais fácil reconhecer que ele foi deposto”.
VIGÍLIA Confirmada a notícia de que o governo brasileiro tinha dado asilo ao ex-presidente deposto, os manifestantes organizaram uma vigília ininterrupta em torno da residência do embaixador, até o dia anterior à partida de Gutiérrez. Durante todo o dia pessoas “vigiaram” para que Gutiérrez não saísse, mas o cerco à residência foi mais intenso durante a noite, quando centenas de manifestantes impediram a entrada e a saída de qualquer pessoa.
O sentimento geral era de frustração com o governo brasileiro. Até então, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva era visto como uma pessoa sensível às causas populares e sociais. Os equatorianos, a princípio, se sentiram decepcionados com fato de o Brasil aceitar asilar um personagem considerado por eles um ditador. As primeiras palavras de ordem confirmavam essa simpatia: “Lula, amigo, não lhe dê asilo”. Com o passar do tempo, a decepção foi se transformando em revolta. Os manifestantes chegaram a agredir um diplomata brasileiro e a arremessar objetos no pátio da residência, o que fez com que a embaixada solicitasse reforço policial. A insatisfação com a decisão brasileira chegou ao ponto de os manifestantes lançarem uma campanha de boicote a produtos brasileiros no Equador.
rentes locais da capital. Na noite do dia 19, uma grande marcha que percorria as ruas de Quito chegou a dois quarteirões do palácio de governo. Nestas manifestações, Julio García, fotógrafo chileno radicado no Equador, faleceu, aos 60 anos, intoxicado pelos gases atirados pela polícia. Pressionados pela população, 60 dos 62 deputados presentes à seção do dia 20 do Congresso Nacional, votaram a favor da destituição de Gutiérrez. O vice, Alfredo Palacio,
assumiu a presidência e Gutiérrez se asilou, dia 24 de abril, em Brasília (DF). Segundo Emir Sader, os protestos articularam uma grande quantidade de reivindicações dos diversos setores que deles participaram e a gestão de Palacio será de transição. O novo presidente não anunciou quando serão as próximas eleições gerais, inicialmente programadas para o fim de 2006, mas a expectativa é que o novo governo seja, finalmente, um governo popular.
Mudança de rumo? Sally Burch de Quito (Equador) O novo presidente equatoriano, Alfredo Palacio, que tomou as rédeas de um país em condições de extrema fragilidade das instituições democráticas, e sem Corte Suprema de Justiça, declarou que a primeira prioridade de seu governo será a de lhe devolver a legalidade e a legitimidade. Porém, deu a entender que isso não implica em apressar as eleições, pois diante do atual regime eleitoral ele estaria perpetuando um sistema político deslegitimado. Palacio, médico guayaquilenho, sem filiação partidária, que se distanciou de Gutiérrez desde o início de seu governo, criticando-o pelo abandono do programa eleitoral, manifestou a intenção de reformar o orçamento do Estado e a política econômica, para priorizar as metas sociais. Na sua opinião, o país deve investir em saúde, educação, ciência e tecnologia, proteção social e na reativação produtiva com vistas a diminuir a dependência da exportação petroleira. Os primeiros integrantes de seu gabinete, que não incluirá militantes de nenhum partido político, parecem ratificar uma mudança de rumo. Em particular, Rafael Correa, ministro da Economia, que criticou muito a dolarização e o Tratado de Livre Comércio (TCL) em negociação com os Estados Unidos. Mas também reconheceu que não há condições para abandonar, por agora, a dolarização. Além disso, Correa se comprometeu a não privatizar o petróleo e a fortalecer a empresa estatal Petroecuador. Em relação ao TLC, Correa propõe uma revisão da negociação. Para o presidente Palácio, apesar dos acordos comerciais serem inevitáveis, os países não devem negociar em condições de escravidão. Ele considera que a equipe
negociadora deve ser fortalecida para negociar em temas de taxas e subsídios, além de temas como a dívida, a transferência tecnológica e a propriedade intelectual. Sobre este último, como médico, Palacio enfatiza a necessidade de estabelecer salvaguardas para a saúde pública e de restringir as patentes na área de engenharia genética, que implica em patentear a vida. Também mencionou que o TLC poderia ser um tema de consulta popular.
APOIO VIGILANTE O novo governo goza, no momento, de um apoio vigilante de grande parte da população que se levantou contra Gutiérrez. Mas fora isso, sua margem de manobra é fraca. A legitimidade da resolução parlamentar que, com uma maioria simples, destitui Gutiérrez por “abandono de poder”, é questionada por alguns setores e a comunidade internacional ainda não reconheceu o novo presidente. Dia 20 de abril, o alto comando militar demorou várias horas para reconhecer Palacio como novo presidente, não obstante sua nomeação no Congresso e o fato de eles mesmos terem retirado seu apoio a Gutiérrez. Isso colocou em evidência as diferenças internas no corpo militar, mas também deixou claro que quem decide, em última instância, nas crises políticas equatorianas, continua sendo as Forças Armadas. A conferência Episcopal também anunciou seu reconhecimento ao novo presidente. Já as autoridades estadunidenses evitam reconhecer o novo governo, apesar de dizerem que mantêm “relações”. A secretária de Estado Condoleezza Rice fez um chamado para “apoiar um processo democrático, constitucional” e insistiu na necessidade de adiantar as eleições. (Alai / Portal Porto Alegre, www.planetaportoalegre.net)
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De 28 de abril a 4 de maio de 2005
AMÉRICA LATINA OFENSIVA DO IMPÉRIO
Condoleezza Rice à procura de aliados Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
N
a semana em que a secretária de Estado estadunidense, Condoleezza Rice, fez um giro pela América Latina para tentar convencer seus aliados a conter a “influência desestabilizadora” da Venezuela no continente, o presidente Hugo Chávez mostrou uma vez mais estar disposto a enfrentar as pressões de Washington em nome da soberania de seu país. Antes da aterrissagem de Rice em Brasília, dia 26 de abril, os jornais estadunidense New York Times e o britânico Financial Times, anunciaram que a secretária de Estado tinha como uma de suas missões principais utilizar a influência brasileira para ajudar a “estabilizar a América Latina”. De acordo com aqueles veículos, além da instabilidade em países como Bolívia e Equador, a missão Rice é uma estratégia do governo Bush de se apoiar nos países aliados para reforçar um provável “endurecimento” da política estadunidense com a Venezuela, quinto maior exportador mundial de petróleo. Outra provável tarefa de Rice é garantir apoio à eleição do chanceler mexicano Luis Ernesto Derbez à presidência da Organização dos Estados Americanos (OEA), principal instrumento utilizado pelos EUA para justificar sua política de intervenção no continente. No entanto, no que se refere à posição brasileira frente à revolução bolivariana, Rice terá um pouco
Joedson Alves/AE
EUA querem conter influência da Venezuela, e José Dirceu vai a Caracas para uma reunião de governos amigos
A secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, visita Brasília, uma das etapas de seu giro pela América Latina
mais de trabalho. O estreitamento das relações políticas e comerciais entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chávez sinaliza que o Brasil não deve contribuir, ao menos dessa vez, com a missão encomendada por Washington. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, esteve em Caracas dia 25, véspera da visita de Condoleezza Rice, em um “encontro entre dois
governos amigos”, segundo Maximilien Arvelaiz, assessor presidencial para assuntos internacionais, que esteve reunido por mais de quatro horas com Dirceu.
ASSUNTOS PERIFÉRICOS Diferentemente do que especularam alguns jornais brasileiros, de acordo com Arvelaiz, a visita de Condoleezza Rice e as relações com Cuba foram “assuntos periféricos” da reunião, onde se tratou da implementação dos 26 acordos comerciais firmados em março entre os dois países. Quanto à possibilidade de o Brasil se aliar ao bloco que incluiria Colômbia, Chile e El Salvador para tentar isolar a Venezuela, Arvelaiz informou que a posição brasileira foi reforçada, há um mês, quando o presidente brasileiro esteve em Caracas. “Lula foi bastante claro: disse que se opunha e denunciaria qualquer tentativa de difamação do ‘companheiro Chávez’ e apoiou a compra de armas para reforçar nossa defesa. Somos governos amigos e isso está cada vez mais claro”, afirmou o assessor presidencial. Na ocasião, Lula
Chávez ocupa cenário político brasileiro César Fonseca de Brasília (DF) A mais nova sensação da vida política nacional é a transmissão, aos domingos, pela TV Comunitária de Brasília, do Alô Presidente, programa semanal de seis horas do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Nele, Chávez discute, de maneira franca e humorada, todos os problemas do seu país e de todos os países sul-americanos. Virou pauta obrigatória da mídia brasileira. No domingo, 24 de abril, por exemplo, suas declarações levadas ao ar pela TV Comunitária chamaram a atenção da classe política. A TV Globo, no Bom Dia Brasil, de segunda, 25, repetiu as imagens do presidente venezuelano, que disse que investigava possíveis ações de espionagem de militares estadunidenses. Se confirmadas as suspeitas, ele não titubearia e expulsaria os militares dos Estados Unidos, o que acabou acontecendo. Diplomaticamente, Hugo Chávez debateu com os ouvintes a queda do presidente do Equador,
Lucio Guitiérrez. Que explicou como “quartelada” parlamentar, que se traduziu na retirada de apoio das Forças Armadas ao presidente eleito. Irritado, Chávez bradou que, em uma democracia, os militares não têm o direito de subtrair o apoio a um presidente da República Dispõe de tal direito somente o povo, razão pela qual as Forças Armadas devem estar a serviço do povo. Nesse sentido, Chávez reiterou sua decisão de formar um exército popular sob coordenação das Forças Armadas da Venezuela. É uma alternativa para proteger os interesses do país, destacou, e representa um novo fato político na América Latina, a união das Forças Armadas com o povo. Ao colocar Chávez e suas opiniões em noticiário nacional, a Rede Globo não apenas acusou a importância da TV Comunitária de Brasília, crítica ao governo Lula, mas obrigou-se a transmitir opiniões divergentes para o embate de idéias. Assim, Chávez acabou levando a Globo a democratizar a sua própria cobertura.
ENFRENTAMENTO Enquanto os EUA reforçam as ameaças contra a Venezuela, o presidente Chávez enfrenta, uma vez mais, os interesses estadunidenses. “Suspende-se qualquer intercâmbio de oficiais dos Estados Unidos (...) não haverá mais operações combinadas, e nada desse tipo”, afirmou Chávez, dia 24, no programa dominical
de rádio e televisão Alô Presidente. Para o presidente venezuelano, a presença de oficiais estadunidenses no país “só servia para esquentar as orelhas” de seus oficiais, o que a seu ver não é “desejável” para a estabilidade política e para a soberania do país. Diante de uma suposta invasão militar dos EUA, Chávez argumenta que a medida tende a preservar a integridade física dos oficiais estadunidenses no país, cerca de 17 mil. Para explicar a estratégia de Washington, o presidente citou a invasão dos EUA no Panamá, justificada pela agressão que vinham sofrendo os oficiais estadunidenses no país. A decisão afeta diretamente cinco oficiais que atuavam como instrutores e facilitavam acordos logísticos e de intercâmbio de armas. Parte desses militares estavam realizando uma “campanha desestabilizadora”, como definiu Chávez, no interior das Forças Armadas. Há um ano, o governo exigiu a retirada de membros de uma missão militar dos EUA do Forte Tiúna, principal base militar do país em Caracas, acusados de conspiração.
LIVRE-COMÉRCIO
Acordo pró-EUA e contra Cafta Anamárcia Vainsencher da Redação
F. Castillo/ Micphotopress
MÉXICO
Ao contrário do que se pensa, os votos favoráveis à aprovação de tratados de livre-comércio (TLCs) no Congresso dos Estados Unidos não são favas contadas. Em reunião do Comitê de Finanças do Senado, 13 de abril, representantes democratas e republicanos de Estados agrícolas argumentaram que a aprovação do Acordo de Livre Comércio com a América Central (Cafta, sigla em inglês) quebraria os produtores rurais estadunidenses. Mas o presidente Bush tem pressa na aprovação dos TLCs porque, em junho, expira o prazo de validade da lei de Autoridade para a Promoção Comercial (TPA, em inglês), que dá ao executivo inteira liberdade nas negociações de tratados comerciais, cujos textos não podem ser alterados pelo Congresso. Apesar dos protestos, na América Central, os Congressos de El Salvador, Honduras e Guatemala já ratificaram o acordo.
QUEM GANHA... Solidariedade a Obrador – Uma multidão estimada em quase um milhão de pessoas marchou, dia 24 de abril, pelas principais avenidas da Cidade do México, capital do país, para manifestar apoio ao prefeito Andrés Manuel López Obrador. A luta é para que Obrador não sofra um processo judicial e, assim, seja impedido de disputar a eleição presidencial do ano que vem, para a qual é um dos favoritos.
disse que “nós, os países latino-americanos, somos capazes de resolver nossos problemas internos”. Os EUA correm contra o tempo. O crescimento do apoio popular ao presidente Chávez com o avanço do processo revolucionário em curso torna inevitável sua reeleição em 2006. Segundo Maximilien Arvelaiz, Condoleezza Rice se encontrará com grupos da oposição venezuelana em sua passagem pelo Chile, durante a 3ª Cúpula Ministerial da Comunidade de Democracias, mais uma invenção dos EUA. espaco criado pelos EUA, obviamente. “Sabemos que nesta reunião o governo estadunidense tentará definir uma nova ofensiva contra a revolução bolivariana”, afirma.
Face à resistência de vários setores agrícolas e industriais, a possibilidade de não aprovar o Cafta é maior nos EUA do que na América Central, avalia Daniel Britto, prin-
cipal assessor do democrata Raúl Grijalva. Exemplo disso é a reação do segmento açucareiro, que teme o aumento das importações regionais. Mas Paul Allgeier, representante interino do Comércio Exterior (USTR) tranqüilizou a agroindústria, argumentando que o Cafta inclui mecanismos de compensação que permitem aos EUA impor limites às importações de açúcar da América Central. Para o senador Charles Grassley, republicano de Iowa, presidente do Comitê de Finanças, e que apóia o Cafta, votar contra o TLC é manter altos os impostos incidentes sobre as importações de produtos dos EUA. Ele ilustrou: com o Cafta, a tarifa de importação de uma escavadeira Caterpillar pela Costa Rica cairia de 14% (140 mil dólares) para zero.
... E QUEM PERDE “O Cafta, como o Nafta (com o México e o Canadá), é um fracasso. Com esse último, perdemos mais de um milhão de empregos, e o Cafta não vai ajudar os pobres, mas vai encher os bolsos das grandes corporações”, diz Linda Chávez-Thompson, vice-presidente da poderosa federação sindical estadunidense AFL-CIO. Ela argumentou, ainda, que,
com o Nafta, no México, “os salários reais caíram, o número de pobres cresceu e o de pessoas migrando para os EUA em busca de trabalho dobrou”. Stephanie Weinberg, analista da organização não-governamental (ONG) Oxfam-América, vai além: “Todo pacto tem ganhadores e perdedores e, de nosso ponto de vista, o Cafta aumentará ainda mais a pobreza e colocará em perigo a segurança alimentar na América Central”. Allgeier prova que Stephanie tem toda razão. Segundo ele, a indústria e a agricultura estadunidenses não têm por que temer o Cafta já que, mesmo depois de 15 anos de vigência do acordo, as importações da América Central e da República Dominicana (que aderiu ao TLC regional) não vão representar mais do que 1,7% do consumo dos EUA. O representante interino do USTR também disse que a indústria têxtil dos EUA se beneficiaria com o TLC: uma camiseta fabricada em Honduras tem um conteúdo de importação de insumos estadunidenses de mais de 50%, enquanto o mesmo item produzido na China tem pouquíssimo ou nenhum conteúdo importado dos EUA. (Com noticiário veiculado pela bilaterals org, www.bilaterals.org)
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INTERNACIONAL FRANÇA
União contra a Constituição européia Thomas Lemahieu de Paris (França)
Pierre Trovel
Um professor de segundo grau leu a proposta da Carta, criticou-a na internet, e mobilizou a esquerda e o país
A
campanha do “não” no referendo sobre a Constituição européia (que consagra o neoliberalismo), iniciada por cidadãos comuns, conseguiu reunir, dia 14 de abril, a esquerda francesa, no auditório Zenith de Paris, com a presença de seis mil pessoas, ocupando toda a capacidade do local. Isso é um fato inédito, pois aquela esquerda mais briga entre si do que se une. Foi mais um feito conseguido pelos cidadãos franceses. Compareceram ao ato a esquerda política, a esquerda social e a esquerda altermundista. A iniciativa foi de Marie-George Buffet do Partido Comunista Francês (PCF), que reuniu todos os líderes do “não de esquerda”, o socialista Jean-Luc Mélenchon, a ecologista Francine Bavai, o trotskista Olivier Besancenot, o comunista Francis Wurtz, líderes da esquerda republicana, sindicalistas da Confederação Geral dos Trabalhadores, militantes da Attac, e outros. O caráter internacionalista e europeu foi dado pela presença de Fausto Bertinotti, secretário-nacional da Refundação Comunista da Itália e presidente do recém-criado Partido da Esquerda Européia, mais Tiny Kox, secretário-nacional do Partido Socialista da Holanda. Os italianos não terão referendo, mas os holandeses, sim, logo depois dos franceses. É o espírito do Fórum Social de Porto Alegre soprando sobre a campanha do “não de esquerda”.
Representantes de vários partidos de esquerda da França participam de ato contra a proposta de Constituição européia
devem ler o texto, mas são mais de 300 páginas. Eu mesmo não li. Pois a questão não é esta, e sim se a Europa vai para a frente ou não.” Nas últimas semanas, Giscard d’Estaing, presidente da República de 1974 a 1981 e ex-presidente da convenção que redigiu parte do projeto da Constituição européia, tem aconselhado os franceses a lerem só os primeiros 60 artigos, não mais compridos do que a Constituição francesa ou a americana.“Leva uma hora e meia para ler”, argumentava. Mas a parte 3, com 322 artigos, define com precisão de ourives as políticas neoliberais da Constituição e contradiz radicalmente a maioria dos princípios definidos
OBSCURANTISMO Há apenas alguns meses, mas parece que faz um século, Malek Boutih, partidário do “sim” e muito próximo do líder do Partido Socialista (PS), François Hollande, podia ironizar, na campanha do referendo interno sobre a Constituição européia: “Dizem que os franceses
nos 60 primeiros artigos. E, contrariamente ao que diz a mídia dominante, os cidadãos querem ler a Constituição inteira.
CIDADANIA Por exemplo, Étienne Chouard. Quem? Você não o conhece, mas ele é um professor de 48 anos num liceu de Marselha, pai de quatro filhos, e nunca fez política, nem sindicalismo, nem mesmo um único dia de greve, algo surpreendente para um professor do ensino público francês. Dia 25 de março, Chouard publicou na sua página pessoal na Web, http://etienne.chouard.free.fr/, um texto de dez páginas a partir de sua leitura da Constituição, apontando para o seu caráter profundamente
antidemocrático. O texto de Chouard se espalhou como um rastilho de pólvera por toda a internet; militantes o imprimiram e distribuíram como panfleto, aos milhares. Apoiado pela Attac, promotora do Fórum Social Mundial, o “não” de Chouard já conta com 60% do eleitorado de esquerda, apesar da opção pelo “sim” do Partido Socialista e dos Verdes. O “não” é apoiado, ainda, por comunistas, trotskistas, socialistas dissidentes e sindicalistas de todas as correntes.
ILUSIONISMO De maneira reveladora, uma das frases mais citadas pelos cidadãos que levam avante a campanha do “não” foi dita pelo sociólogo Pierre
Bourdieu, falecido em 2002, que havia lançado um apelo “pelos Estados Gerais do movimento social europeu”, como precursor do Fórum Social Europeu. Bourdieu declarou: “A Europa não diz o que faz, não faz o que diz, diz o que não faz, faz o que não diz. Esta Europa que constroem para nós é uma Europa de ilusão de ótica.” Agora, segundo as pesquisas, a maioria dos franceses não quer essa Europa, quer outra. Assim, se os franceses, contra todos os grandes partidos e contra toda a mídia, liderados por um modesto professor de segundo grau e por um sociólogo morto, fizerem o “não” ganhar, e a esquerda afinal se unir, ninguém deve se surpreender, nem se assustar.
ANÁLISE
Patrick Le Hyaric Dia 29 de maio, os franceses vão decidir entre a atual Europa neoliberal e uma nova Europa, social, pacifista e solidária. O texto do projeto da Constituição continental tem características particulares que contrastam muito com as Cartas existentes. Uma Constituição tem por objetivo definir os grandes princípios da organização dos poderes e de garantir o exercício da soberania popular. Para isso, tem de ser clara e concisa, para ser entendida por todos. A Constituição européia é contrária a esses princípios: tem 448 artigos, 36 protocolos, dois anexos e 50 declarações. Em qualquer democracia, é o poder legislativo que redige a Carta. Com a européia, aconteceu o contrário: foi escrita por uma convenção de 210 especialistas, não eleitos pelos cidadãos, mas escolhidos e nomeados pelo governo de cada país da União Européia (UE). Em geral, uma Constituição pode ser modificada ou emendada. Nesse caso, não poderá ser, salvo se todos os países o quiserem, por unanimidade. Isso será praticamente impossível, se o projeto for aprovado. Os Estados-membros perderão toda soberania de legislar.
SEM SOBERANIA O artigo 1-6 estipula que o Direito da União prevalece sobre o dos Estados-membros. Habitualmente, uma Constituição é suficientemente flexível para admitir uma série de políticas diferentes, a serem decididas pelos cidadãos, em cada eleição.
Pierre Trovel
Uma Carta neoliberal e antidemocrática Direito na UE. O Banco Central Europeu e a Comissão Européia são bem conhecidos pelos cidadãos pelas políticas anti-sociais que impõem aos Estados-membros. O BCE exige dos governos a redução cada vez maior das verbas sociais e a privatização da saúde, transportes, energia, água, correio e telecomunicações. A proposta de Constituição européia reforça o poder do BCE na sua missão de estabilizar os preços, de tornar a Zona Euro“atraente para os investimentos” e de reduzir os custos salariais. Em suma, de suprimir todos os obstáculos ao neoliberalismo. A CE, em julho de 2004, se destacou ao ratificar, antes dos Estados-membros, o Acordo Geral sobre os Comércios de Serviços (GATS). Este acordo, proposto pela Organização Mundial do Comércio em 2004, prevê que“os membros se esforçarão para obter uma elevação progressiva dos níveis de liberalização, sem que nenhum setor de serviço, ou provedor, seja a priori excluído”. O artigo III-148 da Constituição consagra esse princípio. Em diversas pesquisas sobre o referendo, franceses dizem “não”
GLOBALIZAÇÃO No caso da Carta da UE, ela define, de antemão, a política econômica a ser seguida pelos países do bloco, fundada no princípio único de“abrir o mercado, em que a concorrência é livre”. Isso a torna antidemocrática. Se for aprovada, o verdadeiro governo não será exercido pelo Parlamento Europeu, ou pelos parlamentos nacionais escolhidos por sufrágio universal, mas pelo Banco
Central Europeu (BCE) e a Comissão Européia (CE), não eleitos. O artigo III-118 estabelece que o BCE fica fora do alcance dos cidadãos, ao decretar que o Banco“não pode solicitar, nem aceitar, instruções das instituições, órgãos e organismos da União, dos governos, dos Estados-membros ou de qualquer outro organismo”. O artigo 1-26 concede à Comissão o poder de vigiar a aplicação do
Antidemocrática e anti-social, o projeto de Constituição tem como objetivo fazer da União Européia uma zona de livre comércio totalmente integrada na globalização capitalista. O artigo III-314 estabelece que“a União contribui para o desenvolvimento harmonioso do comércio mundial, para a supressão progressiva das restrições nos intercâmbios internacionais”. Em nome do livre-comércio,
a soberania dos Estados deve se limitar às funções de Polícia e Forças Armadas. A única área em que a Constituição autoriza o aumento dos gastos públicos é a militar, no mesmo artigo que estabelece que a política de segurança e de defesa comum da União deve ser compatível com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), ou seja, deve estar a serviço dos Estados Unidos.
SEM PROTEÇÃO Atualmente, na Europa, há 20 milhões de desempregados e 60 milhões de pobres, dos quais 17 milhões são crianças. A Constituição proposta significa a destruição dos sistemas de proteção social, sobretudo na França, Grã-Bretanha, Alemanha e Itália. Implica, também, na concorrência entre os trabalhadores dos diferentes países da UE, e nivelar por baixo as legislações sociais nacionais. Isso é um problema para os trabalhadores do mundo inteiro, que não poderão exigir direitos sociais e salários nos atuais níveis europeus. Essa Carta servirá para as transnacionais colocarem os trabalhadores e camponeses do mundo inteiro numa competição desenfreada. Dizer não a essa Constituição será uma mensagem de esperança dirigida aos povos, para construir uma Europa de solidariedade e de cooperação, comprometida com a construção de um mundo de paz e de um caminho de desenvolvimento sustentável mundial. Patrick Le Hyaric é diretor do jornal L’Humanité
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INTERNACIONAL TOGO
Candidato do governo vence eleições Issouf Sanogo/AFP
Após pleito que resultou em mortes, presidente da Nigéria tenta encontrar saída para crise política togolesa da Redação
O
candidato do partido governista, Faure Gnassingbé, venceu as eleições presidenciais do Togo com 60,22% dos votos, à frente dos candidatos de oposição Emmanuel Akitani Bob (38,19%) e Harry Olympio (0,55%). Cerca de 3,5 milhões de eleitores foram chamados, dia 24 de abril, a escolher um novo presidente para suceder Gnassingbé Eyadéma, morto em fevereiro, encerrando um governo que durou 38 anos. Dia 25, o líder da oposição togolesa, Gilchrist Olympio, e Faure Gnassingbé fizeram um acordo em Abuja para formar um governo de união nacional, fosse qual fosse o resultado do pleito do dia 24. Esse encontro, sem precedentes, foi promovido pelo presidente nigeriano Olusegun Obasanjo, também presidente da União Africana. Obasanjo pretende buscar uma saída para a crise política no Togo, agravada pela explosão de violência dia 24, quando do fechamento das urnas. Três pessoas morreram e aproximadamente 20 ficaram feridas, segundo médicos togoleses da capital Lomé.
GOVERNO DE UNIÃO A entrada da União Africana na crise evidencia o fracasso da missão da Comunidade Econômi-
TOGO Localização: Oeste da África Nacionalidade: togolesa Cidades principais: Lomé (capital), Sokodé, Kpalimé, Lama-Kara Línguas: francês, cabiê e euê (oficiais) Divisão administrativa: 5 regiões População: 5,1 milhões Moeda: franco CFA Religiões: crenças indígenas (70%), cristã (20%), muçulmana (10%) Após eleições marcadas pela violência, oposição e governo discutem acordo para reformar Constituição
ca de Estados da África Ocidental (Cedeao). A Cedeao, que escalou uma equipe de 160 observadores para vigiar as eleições, elogiou o desenvolvimento da votação e afirmou que examinaria em detalhes os erros que aconteceram, para emitir um comunicado. A coalizão de partidos da oposição que apresentou Akitani como candidato presidencial lamentou a falta de neutralidade da missão africana e a acusou de parcialidade em favor
do candidato governista. O acordo prevê a formação de um governo de união nacional e a mudança para uma Constituição mais democrática. Porém, os dirigentes da coalizão de oposição togolesa sinalizaram, dia 26, que não havia indícios da formação desse governo de união. “ Não há acordo. Olympio nos disse que se tratava apenas de uma proposta de Obasanjo, que é o único chefe de
ANGOLA
Paulo Pereira Lima
O foco epidêmico de febre hemorrágica de Marburgo, em Angola, o mais grave do mundo até agora conhecido, já matou 237 pessoas e afeta particularmente crianças pequenas. A gravidade da doença está em seu grau de contágio e na quantidade de vítimas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A mortalidade do foco epidêmico é de 91% dos casos, e 80% das vítimas são crianças menores de 5 anos. Apesar de o vírus infectar os seres humanos independentemente de sua idade, esse perfil da epidemia pode ser explicado pela maior vulnerabilidade por parte das crianças, quase sempre desnutridas e que já são portadoras de outras doenças, como diarréia e malária. Informações de autoridades sanitárias angolanas indicam que até dia 18 de abril a febre de Marburgo matou 237 pessoas, em 261 contágios registrados. Os novos contagiados e as mortes ocorreram na província de Uíge, no norte do país, onde está localizado o foco da epidemia. As províncias de Luanda, Cabinda, Cuanza Norte, Cuanza Sul e Zaire, as outras seis que se encontram em estado de alerta, não registraram casos pelo segundo dia consecutivo. As equipes de vigilância médica controlam 518 pessoas na região norte, 406 das quais estão em Uíge, 93 na comarca de Amboim, na província de Cuanza Sul; 10 em Mbanza Congo, capital da província de Zaire, e os demais na capital, Luanda. Esse controle é feito com pessoas que tiveram contato direto com infectados, e é uma das medidas destinadas a frear a proliferação da epidemia, junto com o confinamento dos doentes. A infecção não pode ser prevenida com vacinas, e tampouco há medicamentos eficazes para combatê-la. A OMS anunciou que os casos estavam sendo reclassificados, por
Não é o poder que nos interessa, mas as propostas africanas para apaziguar a situação”, acrescentou Fabre. A oposição seria favorável a um governo de união nacional à condição de que seu candidato, Emmanuel Akitani Bob, vencesse as eleições presidenciais, informava, um pouco depois, Jean-Claude Homawoo, um colaborador de Akitani Bob. (Com agências internacionais)
AFRO-ARGENTINOS
Pior foco de febre do mundo mata crianças desnutridas Mario de Queiroz de Lisboa (Portugal)
Estado da região interessado na crise togolesa”, declarou JeanPierre Fabre, secretário geral da União de Forças de Transformação, principal partido de oposição, liderado por Olympio. “Essas propostas devem ser examinadas pela coalizão, depois dos resultados. Não significam um acordo. De qualquer modo, neste momento não estamos com o espírito disponível para isso.
Crianças angolanas estão entre as principais vítimas da nova epidemia
isso não forneceu números da totalidade desse vasto país, de 1,4 milhão de quilômetros quadrados e 12 milhões de habitantes. No terreno estão equipes médicas e enfermeiros especialistas da OMS, do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, com sede em Atlanta, e da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras, em um esforço conjunto com as autoridades angolanas para tentar evitar a propagação da enfermidade. A infecção viral se manifesta rapidamente como uma síndrome febril hemorrágica, apresentando como primeiros sintomas dores de cabeça e musculares, febre alta, mal-estar geral, vômitos, diarréia e náuseas. A fase hemorrágica aparece em uma segunda etapa. A infecção é causada pelo vírus de Marburgo, isolado em 1967 em um laboratório da cidade alemã de mesmo nome, pertencente à mesma família do agente patogênico da febre hemorrágica do Ebola. Não está claro qual é a espécie animal hospedeira do vírus, embora esteja documentado que o macaco verde é seu principal portador. A OMS está preparando um plano de ação para controlar o foco, e alerta que para colocá-lo em prática precisa de um apoio substancial de recursos da comunidade interna-
cional. Uma das prioridades mais urgentes, segundo os peritos da organização, consiste em conseguir que a população entenda melhor a doença e aceite as medidas de controle. Com esse propósito, os especialistas no terreno realizam reuniões com os “sobas” (chefes tribais de Uíge). As autoridades da província liberaram os sobas de seus deveres habituais durante sete dias, para que possam acompanhar as equipes médicas e móveis de vigilância na busca de casos e recolhimento de cadáveres, decisão qualificada pela OMS como “um importante passo para conseguir que a população aceite as medidas necessárias para controlar o foco da doença”. A Organização Mundial da Saúde decidiu solicitar a ajuda dos sobas, muito respeitados pela população, em todos os demais municípios afetados pela enfermidade, com o apoio das autoridades angolanas. Em resposta a um chamado internacional da OMS, Alemanha, Holanda, Grã-Bretanha, Suécia e o Escritório de Ajuda Humanitária da Comissão Européia, órgão executivo da União Européia, se comprometeram a arrecadar fundos para financiar as atividades de assistência e prevenção. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
Argentina rejeita suas origens africanas da Redação O episódio da manifestação racista do jogador argentino Desábato contra o seu colega brasileiro Grafite, que confirma a tendência geral dos torcedores da Argentina de chamar de “macaquitos” os jogadores brasileiros faz lembrar que poucos argentinos sabem que seu povo também tem origens africanas, principalmente na região de Córdoba. Desde os inícios da colonização, Córdoba funcionou como centro distribuidor do tráfico de negros para o resto do Vice-Reinado do Prata. Os escravos eram criados domésticos, artesãos e trabalhadores rurais. Segundo dados estatísticos, na cidade, em 1840, os afro-descendentes representavam 62% da população. Mas ninguém lembra disso. Para entender esse esquecimento da história, os pesquisadores Diego Buffa e María José Becerra, do Programa de Estudos Africanos da Universidade Nacional de Córdoba e professores da Escola de História rastrearam relatos de meados do século 19 e começo do século 20, de autoria de comerciantes, cientistas e militares, argentinos e estrangeiros, já que, desde 1869, os censos deixam de indicar os negros. Apesar de a massa de imigrantes europeus ter alterado os traços físicos e debilitado a cultura dos afro-argentinos, os pesquisadores encontraram seus indícios, na segunda metade do século 19, nos usos lingüísticos, modismos, bailes, cultos afros, carnavais, cancioneiro popular e arte culinária.
MESTIÇAGEM Maria José Becerra argumenta que o desaparecimento dos negros em Córdoba não se deve unicamente às guerras de independência, em que os escravos encabeçavam os batalhões. Segundo a pesquisadora, houve fatores como a queda da fecundidade das mulheres negras e a mestiçagem. “Essas questões fi-
caram ignoradas até aparecer o ‘cabecita negra’, que chega do interior para as grandes cidades de Córdoba e Buenos Aires. “Contrariamente ao que se acredita, nossa população só em parte é européia. Estamos mais vinculados com genótipo do Norte e dos escravos, o que comprova uma marcante mestiçagem”, diz Fernando Blanco, professor de Antropologia Social e História da Cultura da Escola Nacional. Blanco assinala que a história não é uma ciência neutra e por isso, na Argentina, tentou negar ou minimizar a influência negra: “Assumir que fomos um país escravista não corresponde aos ideais democráticos e republicanos em que se baseou a criação da nação”. Maria José argumenta que, na Argentina, é muito forte o racismo. “Cremos que somos só descendentes de europeus e negamos a influência indígena e, muito mais, dos negros, por sua cor e pelo estigma da escravidão.” Diferentemente do Brasil e Uruguai, a ausência de comunidades que reivindiquem sua afro-descendência contribui para o esquecimento dos negros argentinos.
RESISTÊNCIA Karina Dimunzio e Claudia García fizeram tese de licenciatura em História com uma análise da resistência escrava em Córdoba, na passagem do século 18 para o 19, o que lhes permitiu desmentir “a idéia de que a escravidão no país foi benigna e, portanto, não havia atritos entre senhores e escravos”. As pesquisadoras trabalharam com documentos de escrivãos, tribunais civis e criminais, inventários, cartórios e cartas de alforria. Encontraram formas de resistência desde o simples insulto e desobediência até o roubo, a fuga e o assassínio: “Trabalhamos muito com detalhes que nos indicam como reagia o escravo, já que era muito difícil que sua voz ficasse registrada nos documentos oficiais”. (Com Argenpress, www.argenpress.info)
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NACIONAL ENTREVISTA
A “esquerda” ainda joga pedra na Geni Marcelo Netto Rodrigues da Redação
Agência Brasil
Ex-ministro militar diz que as Forças Armadas devem ser vistas hoje como parceiras na integração sul-americana
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Brasil de Fato – O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, disse que a principal função de um militar é servir ao povo. Como o senhor vê o papel das Forças Armadas? Sérgio Xavier Ferolla – Em visita à Venezuela, a convite de Chávez, visitei um programa social realizado numa favela, com participação das Forças Armadas. Elas também estão presentes nas escolas, dando aulas de educação física. Todas as semanas, caminhões das Forças Armadas levam para o povo alimentos que são vendidos a preços muito baixos. No Brasil, tivemos problemas com as Forças Armadas num passado recente, devido a uma conjuntura internacional muito diferente da atual. Mas, passados 40 anos, não tem cabimento transformar os militares em Geni. Isso é fazer o jogo do inimigo, estimulado pelos organismos internacionais, pela CIA. BF – O senhor se refere à prostituta Geni, personagem de uma música de Chico Buarque que é apedrejada? Ferolla – Sim. No Brasil, isso ainda existe, principalmente por parte dessas pessoas que se dizem de esquerda – o que, na minha opinião, é outra besteira, porque nesse governo há alguns “esquerdistas” fazendo um papel pior do que qualquer neoliberal. Eu uso sempre uma expressão perfeita do professor Barbosa Lima Sobrinho: o que interessa é ser do Partido Tiradentes e não do Partido Joaquim Silvério dos Reis. O resto é besteira; esse negócio de esquerda e direita também é jogo internacional. O que interessa é: quem é que defende o Brasil e quem é traidor do Brasil. Com rótulo de esquerda, de direita, de centro, de fascista, do que quiser. E esses nossos amigos, erradamente, como já falei a vários deles, têm de parar de jogar pedra na Geni. Estão fazendo o jogo do inimigo porque os Estados Unidos sabem que as Forças Armadas brasileiras são um obstáculo. No conjunto, a maioria é nacionalista, é patrio-
Quem é O tenente-brigadeiro-do ar Sérgio Xavier Ferolla, de 71 anos, é engenheiro eletrônico pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica e ministro aposentado do Superior Tribunal Militar. Foi comandante e diretor de estudos da Escola Superior de Guerra (1993-1994) e chefe do Estado Maior da Aeronáutica (1995-1996).
Soldados brasileiros se preparam para missão no Haiti, criticada pela esquerda por fazer o jogo dos Estados Unidos
ta. Mas às vezes, como patriota, faz patriotada e faz besteira. BF – As Forças Armadas apoiariam um projeto de desenvolvimento nacional que contemplasse as reivindicações dos movimentos sociais organizados? Ferolla – Te garanto que mais de 80% dos integrantes das Forças Armadas apoiariam. É claro que, para o militar, existe uma situação bastante delicada, que envolve um problema de hierarquia. O militar, em princípio, não pode falar em política. Quem fala sobre isso é o comandante supremo, isto é, o presidente da República. Criaram o Ministério da Defesa para quê? Para calar os militares. Isso é jogada do governo estadunidense.
A esquerda tem de parar de jogar pedra na Geni porque está fazendo o jogo do inimigo BF – O senhor concorda com a nomeação do vice-presidente José Alencar para ministro da Defesa? Ferolla – O vice-presidente é uma pessoa espetacular, você nota como ele acalmou o ambiente. Ele está acima dessa fofoca de gabinete de ministro. Ele é vice-presidente da República. Ele não está vice-presidente. É bem diferente. Muito diferente do (ministro da Defesa) anterior (José Viegas). Isso eu sempre critiquei porque entra um fulano que é um embaixador, de fora da equipe de alto gabarito do ministro (das Relações Exteriores) Celso Amorim e começa a dar opinião, reformular o Exército, criar mordomias, construir coisas para a família... enfim, desmoraliza tudo, começa a dar opinião em coisas que não pode dar. Existe uma estrutura a ser respeitada. Diga-se de passagem, se há uma área onde o Brasil está fazendo uma revolução, é o Ministério das Relações Exteriores. BF – Como o senhor vê os convênios entre Brasil e Venezuela? Ferolla – Convênio estratégico tem de ser sul-americano. O eixo deve ser Caracas – Terra do Fogo. Agora, temos aí o novo presidente do Uruguai (Tabaré Vázquez), quebrando o ciclo de neoliberais no governo. Estamos com uma linha hoje perfeita, ligando o Caribe à Antártica. Já pensou se a gente une o esforço dessa gente toda? BF – O petróleo também estaria
incluído nesses acordos? Ferolla – Claro. O governo brasileiro está cometendo um crime ao fazer licitação. Eu não entendo como a ministra Dilma Roussef (Minas e Energia), que foi uma mulher revolucionária, foi guerrilheira, cai nessa conversa de licitar nossas áreas de petróleo. Nós temos reservas de 30 anos. O Brasil já está muito próximo da auto-suficiência, tem 95% do petróleo de que necessita. BF – Como o senhor vê as declarações do secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, de que a Venezuela estaria incentivando uma escalada armamentista na América Latina com a compra dos 100 mil fuzis da Rússia? Ferolla – Hugo Chávez quer ter a capacidade de armar o pessoal dele, enquanto os EUA querem garantir o fornecimento de petróleo. Onde? A Venezuela está ali, do lado de Miami. O Brasil eles acham que controlam. A Costa da África está sendo controlada por eles. O México está com o petróleo todo dominado. A Colômbia tem petróleo e por isso tem guerra lá, também. O Equador está dominado porque tem petróleo. Tudo, no fim, além da idéia do imperialismo barato do estadunidense, é petróleo. Então, na hora que a gente começa a se unir, começa a ter uma idéia de nação, de soberania, com todos os limites que ela possa ter. Aí o Chávez vira bandido, tem que ser destituído; o Lula (Luiz Inácio Lula da Silva) está errando; o (Néstor) Kirchner está errado; o Tabaré Vázquez não pode ser eleito. O império reage e vêm essas Condoleezzas Rices (secretária de Estado dos EUA) aí, eu não gosto nem de falar esses palavrões, esse pessoal me dá nojo. Do (George W.) Bush para baixo, eu não quero pronunciar o nome de ninguém. Então, essa gente vem para cá para tentar cooptar. Impor o poder econômico e militar deles para destruir isso que está acontecendo: a união dos povos da América do Sul. BF – No começo do ano, a imprensa publicou um relatório do Centro de Inteligência do Exército sobre o Comando Sul dos EUA, mapeando os exercícios militares de tropas estadunidenses nos países da América do Sul. Entre 2001 e 2002, 6.300 militares estavam do outro lado da nossa fronteira. O senhor tem informações de como estão esses exercícios hoje? Ferolla – As Forças Armadas estão acompanhando as movimentações. A fobia internacional sobre a Amazônia é muito grande e as pretensões imperialistas não
são só dos EUA, mas também da França, de Israel. No passado, o Exército tinha apenas 4 mil homens nas chamadas unidades de fronteira; hoje tem 25 mil homens na Amazônia, presentes em 11 mil quilômetros de fronteiras. BF – Aviões fazem o controle da área? Ferolla – Nós projetamos um avião, que está sendo fabricado. É um avião de guerra super moderno, que o Brasil está querendo vender para a Venezuela e os EUA estão criando caso. É um avião turbo-hélice, muito bem armado, para operar nesse tipo de região. Não adianta você ter um avião de alta performance numa região dessas. Veja a imbecilidade dos estadunidenses no Iraque, combatendo guerrilheiros com aviões supersônicos, três vezes a velocidade do som. E bombardeiam uma casa onde está havendo um casamento. Então, na Amazônia, o Exército tem de entender de guerra de guerrilhas. Não sei se você sabe que a guerra de guerrilhas foi criada pelo Exército brasileiro na Batalha de Guararapes, em Recife, contra os holandeses. Assim o Exército prepara os soldados na Amazônia. E sabe quem são os soldados? Oriundos de índios ianomami. BF – O Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) fornece informações para os EUA? Ferolla – Não, não vai nada para os Estados Unidos. Essa é outra ilusão. O projeto foi feito com equipamentos estadunidenses por uma questão conjuntural, que eu condeno. Mas os programas de informática são todos feitos no Brasil. O projeto é nosso, não é nada deles. BF – Mas o secretário de Defesa estadunidense Donald Rumsfeld chegou até a ir à Amazônia, em recente visita ao Brasil. Ferolla – Ele foi a um Centro de Controle, onde não ia ver nada.
BF – É verdade que os EUA tiram cointainers da Amazônia sem que os brasileiros possam vistoriar? Ferolla – Mentira. Tudo mentira. São os nossos sargentos, oficiais e soldados que estão lá, poxa! Lá não tem nenhum estrangeiro, a manutenção é feita pela nossa gente.
Convênio estratégico precisa ser sul-americano. O eixo deve ser Caracas – Terra do Fogo BF – Como o senhor analisa a relação entre o governo brasileiro e o cubano? Ferolla – Cuba é uma ilhazinha que deu azar de estar encostada em Miami. Fidel foi forçado a adotar uma política como essa que o Chávez está adotando. Fidel se alinhou com a União Soviética porque não teve apoio dos Estados Unidos. Não foi revolução comunista, foi revolução nacional, contra uma oligarquia que estava transformando os homens em escravos e as mulheres em prostitutas, como disse Jean Paul Sartre no livro Furacão sobre Cuba. A Petrobras está ajudando a descobrir petróleo por lá. A gente podia transferir muito mais tecnologia na área de canade-açúcar para fazer biomassa, combustível. É um trabalho que o Brasil tem a obrigação de fazer. Eu vejo o Brasil assim: um irmão grandalhão, rico, com a obrigação de ajudar os companheiros da região. Não adianta querer construir uma mansão cercada de favelas. Temos que ajudar a desenvolver o Uruguai, o Paraguai, a Bolívia, a Venezuela, o Peru, o Equador, nós temos que nos integrar. Para ter condição e volume para dialogar com o lado rico. Mesmo que os parceiros do Norte não queiram que isso aconteça.
Ricardo Stuckert/ PR
s declarações do tenente-brigadeiro-do-ar, Sérgio Xavier Ferolla, têm combustível para horas de vôo. Abastecido por 54 anos de Aeronáutica, Ferolla lança frases explosivas que parecem não sair da boca de um militar. Em entrevista ao Brasil de Fato, o ex-ministro do Superior Tribunal Militar dispara contra Bush, Rumsfeld e “essas Condoleezza Rices aí, eu não gosto nem de falar esses palavrões, eles sabem que estamos com uma linha hoje perfeita, ligando o Caribe à Antártica” formando um “eixo Caracas – Terra do Fogo”. Sobra também para os “esquerdistas” que após 40 anos ainda jogam pedra nos militares brasileiros como se fossem a Geni, a prostituta daquela música do Chico Buarque dos anos 70. “Estão fazendo o jogo do inimigo, o que interessa é ser do Partido Tiradentes, defender o Brasil”, sentencia.
Porque as informações estratégicas não vão ser colocadas nas mãos dele, vão para os órgãos de governo. Ali, você tem dois tipos de informações. Uma é militar, sobre movimentos suspeitos debaixo das árvores – o radar vê debaixo das árvores. A outra é sobre as riquezas naturais. Ele foi lá ver a mesma coisa que ele veria se visitasse o centro de controle de Brasília, uma porção de telas e radares. Nos EUA eles não têm isso, é uma esculhambação, apesar de serem metidos a desenvolvidos. Na Colômbia, no Equador e no Peru, eles fazem o controle do espaço aéreo – na Venezuela, o Chávez não permitiu. E eles mandaram atirar no avião onde estava um pastor estadunidense com a família. Eles têm total acesso ao espaço aéreo da Colômbia, do Equador e do Peru e com base aérea instalada lá. Mas, na Venezuela e no Brasil, eles não entram.
Presidente Lula e oficiais do Exército exibem sucuri durante visita à Amazônia
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DEBATE REFORMA AGRÁRIA
Os seis tiros que mataram Dorothy Amazônia legal, como é o caso do Amapá, onde a empresa estadunidense de celulose, International Paper, conseguiu adquirir seis mil hectares. Esse mecanismo de aquisição ilegal ocorreu por meio da regularização de terras públicas ocupadas por posseiros, com a conivência do Incra e dos cartórios locais.
Marcelo Resende e Maria Luisa Mendonça s seis tiros que atingiram a irmã Dorothy Stang têm calibre maior do que podemos imaginar. Eles têm origem em diversos elementos da nossa história e da conjuntura atual, relacionados à estrutura fundiária brasileira, ao uso e ocupação da terra e ao controle de recursos naturais. A iniciativa do governo em reforçar a segurança na região de Anapu, assim como as medidas administrativas que restabelecem áreas de proteção ambiental e destinam terra para comunidades locais, têm um importante significado. Porém, é necessário combater outras causas da violência e da desigualdade social no campo. Dos quatro milhões de imóveis rurais do país, apenas 70 mil detêm 43% do total das terras registradas no cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Estes imóveis somam 200 milhões de hectares em relação a um total de 420 milhões. Na região amazônica, por exemplo, uma só propriedade possui área superior ao Estado de Sergipe. Esta grande distorção fundiária ilustra a importância de estabelecermos legislação sobre o limite da propriedade no Brasil, como é o caso em muitos países. Portanto, pode-se dizer que o primeiro tiro contra a irmã Dorothy teve sua origem na nãorealização da reforma agrária. No governo FHC, 70% dos assentamentos foram criados na Amazônia. No governo Lula, esta cifra caiu para 51%. Entretanto, este alto índice de assentamentos na região não foi motivado por um verdadeiro compromisso com a reforma agrária. Ao contrário, o motivo tem sido o baixo preço das terras. Porém, estes assentamentos se encontram em condições muito precárias em relação à infra-estrutura básica, como acesso a estradas, água e energia. As difíceis condições de sobrevivência nestes projetos representam o principal motivo de abandono das áreas, estimulando a grilagem e o desmatamento. O fracasso da política de colonização da Amazônia, nos anos 60 e 70, bem como as dificuldades
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Kipper
Os supostos proprietários – e não o governo – deveriam ter que provar a legalidade do registro dos imóveis
dos atuais projetos de reforma agrária na região já deveriam ter indicado a importância de mudanças neste modelo. Como a irmã Dorothy defendia, o governo deve garantir condições para a criação de projetos coletivos de assentamento, que permitam o manejo não destrutivo dos recursos naturais. As terras destinadas à reforma agrária devem ser inalienáveis, isto é, devem continuar pertencendo ao Estado.
O primeiro tiro contra a irmã Dorothy teve sua origem na nãorealização da reforma agrária O combate à grilagem e a aceleração da reforma agrária podem ser estimulados por meio de medidas administrativas como a inversão do ônus da prova nos processos de desapropriação. Ou seja, quem deveria ter que
provar a legalidade do registro dos imóveis, sua produtividade e localização são os supostos proprietários – e não o governo. Esta regra serve para todos os brasileiros que declaram imposto de renda. Serve também para qualquer pessoa que seja abordada pela Polícia Rodoviária e que tenha que apresentar os documentos de seu veículo. Seria ridículo imaginar que o policial é quem deveria procurar os documentos do motorista. O segundo tiro representa o poder dos grileiros e madeireiros. A grilagem de terra no Brasil é um sinal da ausência do Estado na defesa de seu território. Ou seja, só ocorre o “grilo” das terras públicas porque há omissão (e, em alguns casos, complacência) de diferentes setores do Executivo, Legislativo e Judiciário. Segundo dados do Incra, dos 600 milhões de hectares cultiváveis no Brasil, 250 milhões são áreas presumivelmente devolutas, a maior parte ocupada por “grileiros”. A prática de venda irregular de lotes é comum nos Estados da
O terceiro tiro pode ser representado pela lentidão do governo na homologação de terras indígenas e na regulamentação de áreas quilombolas. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), somente 6,66% das terras indígenas demarcadas foram homologadas até 2004. Em relação à regularização das mais de 2 mil áreas quilombolas, dados do antropólogo Alfredo Wagner demonstram que somente 71 foram tituladas desde 1988. Se os processos seguirem no ritmo atual, sua regularização irá demorar mais 500 anos. A expansão do agronegócio, por meio de uma política agrícola voltada para a exportação, poderia ser comparada ao quarto tiro. Algumas das principais conseqüências desta política são a degradação do meio ambiente, a concentração de renda e o desemprego no campo. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), a soja gera somente um emprego para cada 200 hectares, devido ao seu alto grau de mecanização. Esse modelo tem sido relacionado ainda com sérias denúncias de trabalho escravo e violência contra trabalhadores rurais. De 1995 a outubro de 2004, o Grupo Móvel registrou a libertação de 13.119 trabalhadores escravizados, sendo 78% deles encontrados nos Estados da Amazônia legal. De 1985 a 2003, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 429 casos de assassinatos de trabalhadores rurais na região
Norte, o que representa mais de 50% das mortes em todo o país. O governo tem priorizado uma política agrícola que favorece principalmente grandes empresas. Em 2000, mais de 75% do comércio mundial de grãos era controlado por cinco transnacionais. Hoje, somente três empresas (Cargill, Bungi e Dreyfus) dominam este mercado e têm grande interesse na Amazônia. A Cargill, por exemplo, insistiu na construção de um porto graneleiro em Santarém. A armazenagem de grãos requer ainda um alto consumo de energia, o que nos leva ao quinto tiro, ou seja, os grandes projetos na Amazônia. No Brasil, existem aproximadamente dois mil barragens. A Eletrobrás prevê a construção de mais 494 grandes barragens até 2015, sendo que 64% do potencial hidroelétrico brasileiro está na Amazônia. Alguns dos maiores projetos previstos na região são o de Belo Monte, no Rio Xingu (Pará) e as barragens de Santo Antonio e Jirau, no Rio Madeira (Rondônia). O faturamento das empresas geradoras e distribuidoras de energia no Brasil em 2003 foi de R$ 48 bilhões. A maior parte destes recursos foi enviada ao exterior, como remessa de lucros. Por fim, o sexto tiro representa a disputa pelo controle de recursos naturais na Amazônia. A luta da irmã Dorothy na defesa da biodiversidade gerou forte oposição, com conseqüências dramáticas para ela e para as comunidades com as quais ela trabalhava. Esta é uma disputa histórica, que já resultou na apropriação indevida de conhecimento tradicional por meio da biopirataria e na destruição de milhares de hectares de floresta. Mas, principalmente, resultou na morte de centenas de pessoas que defendiam justiça econômica, social e ambiental. Marcelo Resende é membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Foi presidente do Instituto de Terras de Minas Gerais (1999-2002) e presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2003. Maria Luisa Mendonça é jornalista e membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
40 ANOS DA TV GLOBO
O maior partido político brasileiro Mário Augusto Jakobskind TV Globo das Organizações Roberto Marinho – que festeja 40 anos de existência em 26 de abril como a emissora de maior audiência no Brasil – é considerada por setores não comprometidos com o sistema como um verdadeiro partido político. Dona Lily Marinho, a viúva do patriarca do grupo, deixou claro em um livro que o seu marido elegeu o ex-presidente Fernando Collor de Mello e posteriormente o retirou do cargo. Em 1989, a TV Globo teve participação intensa na campanha da primeira eleição direta para presidente. Roberto Marinho apostou em Collor por entender que, naquele momento, o ex-governador do Estado de Alagoas seria uma alternativa às candidaturas do governador carioca, Leonel Brizola, ou de Luiz Inácio Lula da Silva, ambos bem cotados nas pesquisas de opinião pública, mas que poderiam criar problemas para o seu grupo e outros setores empresariais. No segundo turno, Collor disputou com Lula e contou com um empurrão da TV Globo, sobretudo na edição do Jornal Nacional (audiência de cerca de 60 milhões
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de telespectadores) sobre o último debate entre os candidatos. Em 1964, as Organizações Globo já colocavam o seu poderio midiático – então “apenas” rádios e jornais – em favor dos conspiradores, civis e militares, que acabaram derrubando o presidente João Goulart e iniciando um período de trevas que durou 21 anos. Os primeiros passos da TV Globo foram dados de forma ilegal, por meio de um acordo com o grupo estadunidense Time Life. A legislação brasileira, mesmo na ditadura, não permitia a associação de empresas nacionais de comunicação com grupos estrangeiros. Marinho passou por cima desse obstáculo. A associação Globo Time Life chegou a ser objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em 1966. O relator dessa Comissão, o então deputado Roberto Saturnino Braga, apontou as irregularidades, inclusive a entrada ilegal no país de caros equipamentos, mas como diz o dito popular a CPI “acabou em pizza”. FRAUDE
Como retribuição aos governos militares, as Organizações Marinho deram integral apoio
ao regime ditatorial, inclusive com noticiários que enalteciam os generais de plantão ou mesmo justificavam a repressão que se abateu sobre o povo brasileiro.
Segundo o laudo pericial, os documentos usados por Roberto Marinho para assumir o controle da TV Globo de SP foram fraudados Neste período, ocorreu um fato grave que está para ser julgado: a compra irregular da TV Paulista (hoje, TV Globo de São Paulo). O fato foi praticamente omitido pela mídia, tendo sido este Brasil de Fato uma das exceções. Os demais veículos silenciaram. A história é a seguinte: a juíza Maria Helena Pinto Machado Martins, da 42ª Vara Cível, julgará um processo que os herdeiros da família Ortiz Monteiro movem contra o espólio de Roberto Marinho e a TV Globo Ltda, com objetivo de retomar o controle da TV Paulista, responsável por mais de
50% do faturamento da rede. Os autores da ação alegam que Roberto Marinho assumiu o controle da emissora com documentos falsificados. Segundo o laudo pericial do Instituto Del Picchia de Documentoscopia, todos os documentos usados por Roberto Marinho para assumir o controle da emissora são espúrios, com datas fictícias e conteúdo contraditório. A técnica Denise Gonçalves Rivera, nomeada para atuar como perita judicial no processo, já reconheceu que os documentos (recibos, procurações e subestabelecimentos) eram falsos. Apesar de terem datas de 1953 e 1964, todos foram produzidos em 1975, em uma mesma máquina de datilografia. A perita afiançou que outros recibos datados de 5 de dezembro de 1964 também teriam sido datilografados depois de 1971, visto que a máquina usada só foi lançada no Brasil naquele ano. TENTATIVA DE FRAUDE ELEITORAL
A TV Globo se viu envolvida em outro fato político grave, em 1982, ao tentar evitar a eleição de um inimigo histórico do grupo para o governo do Rio de Janeiro. Leonel Brizola vencia a dispu-
ta, mas por meio de um sistema eletrônico diferenciado, a TV Globo apresentava resultados da apuração dando mais peso ao voto do interior e tentando anular a diferença que se apresentava no maior colégio eleitoral, o município do Rio de Janeiro, em favor de Brizola. Alertado por seus assessores e pela rádio Jornal do Brasil (cujo diretor de jornalismo, Procópio Mineiro, detectou a tentativa de fraude), Brizola conseguiu abortar a manobra que visava dar a vitória ao candidato do regime militar, Moreira Franco. Brizola conseguiu se eleger e tomar posse, mas contou com uma violenta oposição da TV Globo durante o seu mandato. A história nefasta das Organizações Globo não pára por aí. Hoje, pelo menos dois em cada três políticos fazem de tudo para aparecer na tela da Globo. O terceiro fica em dúvida se vale mesmo a pena se contrapor ao esquema que tem apoiado a manutenção dos privilégios e dos privilegiados de todas as épocas na história do Brasil. Mário Augusto Jakobskind é jornalista
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA QUARTA CULTURAL das 18 às 22 horas A Fundesol, por meio da Sala da Economia Solidária, promove todas as quartas-feiras, a Quarta Cultural do Bom Jardim, com apresentações de músicos locais e espetáculos humorísticos. O objetivo do evento é envolver a comunidade do Bom Jardim nas ações para o desenvolvimento sustentável e estimular o desenvolvimento socioeconômico local. Local: Av. Osório de Paiva, 5710, Fortaleza Mais informações: (85) 3498-5099 fundesol@cdvhs.org.br
PARÁ 4º SEMINÁRIO NACIONAL DE RELIGIÕES AFROBRASILEIRAS E SAÚDE 28 a 30 de abril Promovido pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras, o evento reunirá pela primeira vez mais de 80 mães e pais de santo de várias regiões do país, além de gestores e profissionais das áreas da saúde e da educação. O seminário pretende refletir sobre a importância dos terreiros como núcleos de promoção da saúde; estimular a discussão sobre saúde integral, tendo como foco a saúde sexual e reprodutiva e suas relações com a religiosidade afro-brasileira, enfatizando as questões de gênero, raça/etnia e direitos humanos; estimular os adeptos dos terreiros na gestão participativa e controle social das políticas públicas de saúde, entre outros objetivos. Local: Beira Rio Hotel, Av. Bernardo Sayão, 4804, Belém Mais informações: (91) 4008-9000 www.redereligioesafrosaude.org
RIO DE JANEIRO EXIBIÇÃO FILME: OS COMPANHEIROS Dia 1º de maio, às 9h Em homenagem aos trabalhadores, o Projeto Domingo é Dia de Cinema exibe o filme Os Companheiros, de Mário Monicelli. O filme relata uma das tantas lutas da classe operária italiana ao longo dos duzentos últimos anos da sua história. O projeto é voltado para os alunos de pré-vestibulares comunitários. Após a sessão, haverá debate sobre o filme com Marina Santos, da coordenação nacional do MST, Neuza Pinto, do Sindicato dos Trabalhadores da UFRJ (Sintufrj) e Vito Giannotti, do Núcleo Piratininga de Comunicação. Local: Odeon-BR, Praça Maharma Gandhi, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2262-5089 DEBATE SOBRE MÍDIA E VIOLÊNCIA URBANA 11 de maio Promovido pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), o debate contará com a participação de especialistas, jornalistas e familiares de vítimas da violência. Entre os debatedores estará presente o historiador e membro da ONG Justiça Global, Marcelo Freixo. Local: Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro, Av. Rio Branco, 277, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2532-1398
da, historiadora e ex-militante do POC; Janaína Teles, historiadora; Ceici Kameyama, ex-militante da Polop. Coordenação de Vera Vieira, professora de história da PUCSP. À noite, haverá palestra com Jacob Gorender, historiador; Hélio Bicudo, jurista; Marcelo Ridenti, sociólogo; Criméia de Almeida, exguerrilheira do Araguaia e integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos Local: PUC-SP, R. Monte Alegre, 984, sala 333, prédio novo, São Paulo Mais informações: (11) 3670-8400, ramal 240 LANÇAMENTO: MANUAL DE DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES JOVENS 28 de abril, 19h A iniciativa do manual é do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito (Ilanud) e da Rede Latino-Americana e Caribenha de Jovens pelos Direitos Sexuais e Reprodutivos (Redlac). Tem o objetivo de contribuir para o fortalecimento dos direitos humanos
das mulheres, além de apoiar as mulheres jovens para articular, apresentar e advogar por seus direitos humanos. A publicação foi desenvolvida a partir de uma proposta teórico-metodológica de capacitação dirigida às mulheres jovens e construída a partir de três eixos centrais: gênero, juventude e direitos humanos. O material será distribuído gratuitamente durante oficinas de capacitação voltadas às mulheres jovens que trabalham com a temática dos direitos humanos e da juventude. O lançamento, promovido pelo Instituto Intercultural e pelo grupo Jovens Feministas de São Paulo, contará com um debate sobre os direitos das mulheres e das jovens e uma apresentação cultural. Local: R. da Consolação, 847, São Paulo Mais informações: (11) 3257-1757 40 ANOS DA TV GLOBO 29, a partir das 19h Para protestar contra 40 anos de ditadura midiática, o Centro de Mídia Independente está promo-
vendo um ato-festa com projeções de filmes, sessões de VJs e DJs, música e cerveja barata. Local: Vão livre do Masp, Av. Paulista, São Paulo Mais informações: www.midiaindependente.org PALESTRA: “A REFORMA DA ESCOLA SECUNDÁRIA BÁSICA EM CUBA” 4 de junho, das 9h às 12h - inscrições até 27 de maio A palestra, ministrada pela professora Maria do Carmo L. Caldas Leite, irá discutir a concepção de uma “nova revolução” na educação cubana, o que mudar e como fazê-lo. Serão debatidos temas como a universalização do ensino superior; a presença dos professores tutores nas escolas; o redimensionamento das tecnologias de comunicação; a dicotomia entre instrução e educação e as forças resistentes às mudanças. Local: Centro de Ciências da Educaçlão, Unisantos, R. Euclides da Cunha, 247, Santos Mais informações: (11) 3227-9905
RIO GRANDE DO SUL 1º DE MAIO INTERNACIONAL Promovido pela Coordenadoria das Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS) e pela CUTParaná, o evento começa às 12 horas, com atividades culturais e artísticas. Haverá apresentações de músicos e artistas latino-americanos, além de uma feira com produtos oriundos da agricultura familiar. Já estão confirmadas as presenças de Dante Ramon Ledesma, da Argentina, e do grupo Viento Sur. Às 18 horas está previsto o ato central, que vai reunir lideranças de todas as centrais que compõem a CCSCS. A temática do 1º de maio internacional será focada em quatro eixos: integração real do Cone Sul, emprego, igualdade de oportunidade de gênero, e livre circulação dos trabalhadores do Mercosul. Local: Espaço Cultural da Itaipu, Foz do Iguaçu Mais informações: (11) 2108-9124
SÃO PAULO ATO: DESARQUIVANDO O BRASIL 28 de abril Durante o ato haverá a exibição do documentário Filhos, de Maria Oliveira e Marta Nehring, com depoimentos de Marta Nehring, de militantes e de familiares das vítimas da ditadura militar. Presença de Ângela M. Mendes de Almei-
Felipe Varanda/ Folha Imagem
CEARÁ
MEMÓRIA
Um vazio no pensamento social: morre Gunder Frank
Q
uem é o economista mais citado e discutido no mundo? Não perca seu tempo procurando entre os prêmios Nobel e outros muitos promovidos na grande imprensa. André Gunder Frank é, de longe, o mais citado e o mais discutido no mundo, como revelam vários estudos sobre o assunto e as mais de 30 mil entradas na internet. Sua morte, dia 23 de abril, produz um vazio no pensamento social contemporâneo difícil de ser substituído. Mas André era bem mais do que isso. Ele era um tipo de intelectual completamente conseqüente com suas idéias. Um lutador permanente pela verdade e pela transformação do mundo. Embora ele tenha se equivocado muito, como todo ser humano, era fértil e motivador, inclusive em seus erros. Esta é uma qualidade que só os gênios possuem. André se formou, academicamente, na “cova das serpentes”: recebeu seu doutorado na Universidade de Chicago e conviveu com a brilhante geração de conservadores, que tanto deformou as ciências sociais nas décadas de 50 e 70, para abrir caminho, finalmente, nos anos 80, à hegemonia do pensamento único, que ainda nos asfixia. Sua crítica aos Chicago boys, que tomaram o controle do Estado chileno no governo fascista de Augusto Pinochet, é, nesse sentido, esmagadora e definitiva. Quando o conheci em Brasília, em 1963, ele havia sido convidado por Darcy Ribeiro, reitor da recémfundada Universidade de Brasília, para dirigir um seminário sobre “o estrutural funcionalismo”, corrente de pensamento conservador que dominava naquele momento as ciências sociais. Ele já havia se distanciado dessa corrente majoritária na Universidade de Chicago
através de seu contato intelectual com Paul Baran e Paul Sweezy. Seu artigo sobre a remessa de lucros e pagamentos de serviço superiores à entrada de capitais do exterior causou grande comoção e foi o que o levou a ser convidado por Darcy. Em seu seminário, estávamos eu, Ruy Mauro Marini e Vania Bambirra, que seríamos posteriormente consagrados como a corrente radical da teoria da dependência. Discutimos muito o tempo todo. Mas não há dúvida de que assumimos um compromisso intelectual e político comum que durou toda uma vida, através de dois exílios políticos do Brasil ao Chile e do Chile ao exterior. E, em nosso caso, numa anistia que nos lançou a um Brasil profundamente comprometido com o capital financeiro internacional.
VISITA AO BRASIL Em sua participação no Seminário Internacional da Reggen, em agosto de 2003, no Rio de Janeiro, sobre hegemonia e contra-hegemonia, Andre teve a oportunidade de ir até Brasília, São Paulo e Santa Catarina. Apesar de sua doença já tão avançada, ele fez questão de deslocar-se até todos esses lugares para deixar testemunho de que a teoria da dependência começou naqueles anos de 1963-1964, em nossos debates e acordos dentro dessa experiência pedagógica colossal que foi a Universidade de Brasília de Darcy Ribeiro, destruída em grande parte pela ditadura de 1964. Exilado no Chile, como nós, André se incorporou em 1967 ao Centro de Estudos Sócio-Econômicos (Ceso) da Faculdade de Economia que eu dirigi. Aí estavam, outra vez, Rui e Vania, o que nos permitiu realizar muitos trabalhos conjuntos. Aí se consolidou a recuperação dos ciclos longos como instrumento fundamental para a compreensão
da história econômica contemporânea. A experiência do governo da Unidade Popular estimulava de maneira impressionante o trabalho intelectual. Trata-se de um laboratório fantástico para analisar a mudança social e a revolução. Frank viveu muito profundamente essa realidade tendo o apoio de sua esposa Marta, de origem chilena. O golpe no Chile destruiu o Ceso e nos dispersou outra vez. Eu e Vania fomos para o México, onde fomos recebidos com uma solidariedade comovedora. Andre e Ruy foram, inicialmente, para a Alemanha. Ruy veio posteriormente para o México e se incorporou ao doutorado de Economia da Unam, que eu dirigia. André iniciou um périplo pelo mundo, terminando por um bom período na Holanda, onde se aposentou. Nesses anos sofreu muito pela perseguição da imigração estadunidense. Costumava entrar nos Estados Unidos pela fronteira canadense. Sua principal
culpa era ter abandonado a nacionalidade americana e retomado sua identidade alemã. Mas ele se sentia, principalmente, um latino-americano, embora não houvesse espaço para ele numa América Latina dominada por ditaduras militares.
TEORIA DO SISTEMA MUNDIAL Depois da morte de Marta, ele continuou seu périplo pelo Canadá e depois nos Estados Unidos de Clinton, onde pôde trabalhar, mas com restrições imigratórias. Seus últimos dias foram vividos em Luxemburgo ao lado de Alison, uma mulher de muita fibra e disposição, que o ajudou muito a enfrentar sua doença por doze anos de uma luta colossal. Sua produção nos anos 70 é menos conhecida, apesar de sua profundidade e sua força provocante. Ele foi um dos criadores da teoria do sistema mundial, cuja crise analisou em dois livros extremamente impressionantes. Além disso, iniciou o balanço histórico do sistema mun-
Ana Carolina Fernandes/ Folha Imagem
Theotonio dos Santos
O economista Gunder Frank, um dos formuladores da “teoria da dependência”
dial, que fez retroceder pelos menos até o século quinto antes de Cristo. Seu livro Re-Orient mostrou o papel de liderança que ocupou a China nesse sistema mundial, criado em torno da rota da seda. Hegemonia que só perde no século 18 com a ascensão do poderio marítimo ocidental e com a revolução industrial. Nada há de mais importante que essa revisão da história mundial que sugere André, e que provocou uma polêmica colossal, inclusive dentro do grupo do sistema mundial. Seus últimos escritos assinalavam o papel do dólar e do Pentágono na hegemonia estadunidense atual e a crise definitiva que ambos vivem no presente. Outra tese polêmica que é, entretanto, mais próxima do enfoque do sistema mundial em seu conjunto. Quantas polêmicas mais não estariam germinando no cérebro colossal de André Gunder Frank? Seu filho Paulo Frank conta que ele trabalhou até seu último suspiro. Tenho este sentimento de perda de um intelectual de vanguarda, mas principalmente de um amigo e camarada. Porém, me dói pensar em como toda uma geração de economistas foi levada a desconhecer esta obra grandiosa pela influência decisiva do chamado pensamento único, que se impôs em várias universidades de todo o mundo. Resta, entretanto, a certeza de que nos movimentos sociais e no espírito do Fórum Social Mundial sua obra é uma referência fundamental. Theotonio dos Santos é professor titular da UFF. Diretor da REGGEN. Autor da Teoria da Dependência: balanço e perspectiva, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, que foi comentada por Andre Gunder Frank em seu artigo A dependência de Theotonio
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CULTURA
De 28 de abril a 4 de maio de 2005
ENSAIO
A terra é o sentido da vida para os Guarani João Roberto Ripper do Rio de Janeiro (RJ)
P
ara o povo guarani, a terra é o sentido da vida. É a mãe, a conexão com o Criador, e o local sagrado. É nas “casas de reza” que fazem seus rituais, mantêm a transferência da sabedoria milenar para os mais jovens. A terra não tem função de acúmulo. Não é para ser usada para monocultura, venda do excedente e ampliação para latifúndio. Quando tiramos a terra dos Guarani, tiramos literalmente o chão dos pés deles. Ficam sem norte e sem reza. Perdem a noção do sentido de vida, se matam. Como não acumulam, não lutam e não guerreiam. Diversas teses tentaram decifrar a “passividade” desse povo. Mas, no Mato Grosso do Sul, a década de 90 foi uma virada de recuperação cultural e de retorno à terra; lideranças indígenas partiram para o confronto. O resultado foi a recuperação de muitas áreas sagradas, com vestígios de casa de reza, mas sobretudo o uso do argumento irrefutável sobre a recuperação de algo que, um dia, lhes pertenceu de fato e permaneceu sendo espiritualmente deles. As crianças guarani do Mato Grosso do Sul morrem semanalmente, por desnutrição, por falta de terras. É um trabalho de limpeza étnica.
mil propriedades rurais detêm, pelo menos, 20 milhões dos 35 milhões de hectares. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), existem ainda cerca de quatro mil Guarani Kaiowá desaldeados nas periferias das cidades, às margens de rodovias, sobrevivendo do artesanato e subempregados em fazendas. Entretanto, são povos que ainda mantêm a noção do seu território sagrado, que se estende ao norte, até os rios Apa e Dourados, e ao sul, até a Serra de Maracaju e afluentes do Rio Jejuí.Todos esses aspectos estão documentados nas fotos desta página. João Roberto Ripper é repórter fotográfico e documentarista social. Há 11 anos acompanha a luta dos Guarani do Mato Grosso do Sul, no processo de retomada de suas terras e na reorganização social das aldeias
Fotos: João Roberto Ripper
Fotógrafo mostra a força da cultura indígena na luta contra a expansão do agronegócio no Mato Grosso do Sul
Só a conquista da terra resolve a morte de crianças por desnutrição e o suicídio de adolescentes
OS RITUAIS Vejamos como são os rituais desse povo. No alto, as estrelas parecem astros leves e sensuais, exercendo a dança da solidariedade no céu, voluntárias em manter o equilíbrio, a beleza e a harmonia com a lua, nas noites que iluminam as danças e os cânticos das aldeias Kaiowá. Cá na terra os índios cantam, dançam e brincam, até o amanhecer quando, então, se despedem do espetáculo, como as estrelas, para que o sol seja novamente o dono da festa. Mas não foi sempre assim. Há mais de 20 anos essa nação indígena sofria com a freqüência com que seus jovens guerreiros e mulheres se suicidavam. Desde 1986, foram registrados 310 casos de suicídio, a maioria de moças e rapazes, sem horizontes ou perspectivas. Mas o retorno dos indígenas às suas antigas terras vem reduzindo drasticamente os casos. “Hoje, o Kaiowá ou luta ou morre. Onde ele conquista sua terra sagrada de volta, ele não se mata”, resume o cacique e pajé Marcos Veron, 68 anos, da Aldeia Takuára. O Mato Grosso do Sul é o Estado que possui a segunda maior população indígena do Brasil: são cerca de 56 mil índios divididos entre várias etnias: Guarani Kaiowás e Nandeva, Guató, Terena, Kadiuei, Ofaié. Há 200 anos, os Guarani chegaram a ocupar 25% do Mato Grosso do Sul, possuindo cerca de 8,7 milhões de hectares. Atualmente, formam a maioria da população indígena, principalmente os Kaiowá, que se distribuem por 28 pequenas áreas indígenas demarcadas pelo governo. O processo de criação das reservas indígenas no Mato Grosso do Sul teve início no final da década de 20, quando os Guarani começaram a ser expulsos de suas terras e a ser usados como escravos em fazendas de cultivo de erva-mate. O governo brasileiro, nas décadas de 30 e 40, removeu os indígenas para oito reservas demarcadas, de pequenos espaços – cerca de 1,5 hectare por pessoa. Atualmente os índios ocupam menos de um por cento das antigas terras. Hoje, o Mato Grosso do Sul é o Estado com a maior concentração fundiária do Brasil. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50
Mato Grosso do Sul possui a segunda maior população indígena do Brasil, com 56 mil pessoas, e é o Estado com a maior concentração fundiária do país
Na década de 20 a ameaça veio das fazendas de erva-mate; hoje é o agronegócio da soja que coloca em risco a vida do povo guarani