BDF_115

Page 1

Ano 3 • Número 115

R$ 2,00 São Paulo • De 12 a 18 de maio de 2005

Cúpula defende direito à resistência N

ão funcionou a tentativa dos Estados Unidos de alterar a pauta da Cúpula América do Sul-Países Árabes, realizada em Brasília, de 9 a 11. A criação do Estado Palestino, a defesa da saída de Israel dos territórios ocupados, a escolha democrática de um presidente no Iraque e críticas às sanções impostas pelos estadunidenses aos sírios fizeram parte da agenda do encontro convocado pelo governo brasileiro. O documento final da Cúpula ressalta que os povos têm direito de resistir às invasões estrangeiras. “Não podemos mais aceitar a situação do povo palestino. Queremos que Israel se submeta às determinações internacionais”, defendeu o presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika. O discurso do presidente Lula teve como foco uma nova geografia econômica que fortaleça os países subdesenvolvidos. Durante o encontro, Argentina, Brasil e Venezuela anunciaram a criação da Petrosul, uma aliança das empresas estatais de energia dos três países. Pág. 9

Orlando Sierra

Encontro de líderes sul-americanos e árabes reafirma críticas às políticas dos Estados Unidos e de Israel

Excluídos – Enquanto os pobres na Guatemala mendigam pelas ruas, o presidente Oscar Berger viaja aos Estados Unidos junto com outros presidentes da América Central para debater o Tratado de Livre Comércio

Marcha nacional: solidariedade e organização

Washington cria governo fantoche no Iraque

econômica. Em uma cadeira de rodas, ajudado por companheiros da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, Jocélio Dantas é um legítimo representante

do “povo de Deus”, saudado e abençoado, dia 5, em Anápolis (GO), pelo presidente da Comissão Pastoral da Terra, dom Tomás Balduíno. O secretário

Especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, fala sobre a impunidade e a violência no campo. Págs. 2, 3 e 6

Francisco Rojas

Elogiado pelo secretário de Defesa estadunidense, Donald Rumsfeld, o governo do Iraque é uma verdadeira farsa. Cinco de seus ministros, em pastas como Defesa, Direitos Humanos e Petróleo, foram indicados diretamente por representantes dos Estados Unidos. Em entrevista ao Brasil de Fato, o sindicalista iraquiano Omar Qasri denuncia a falta de democracia no país. Pág. 11

Mesmo sob os maus-tratos do tempo, doze mil pessoas caminham animadas até Brasília, onde vão clamar por reforma agrária e mudanças na política

Vaticano mais perto dos Estados Unidos Um dos principais expoentes da teologia da libertação, José Comblin, 82 anos, está preocupado com uma possível aliança entre o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e o papa Bento XVI, em assuntos polêmicos como aborto, homossexualidade e bioética. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele diz que tal acordo poderia se dar pelo silêncio do Vaticano frente a novas ações imperialistas estadunidenses. Pág. 8

Presidente sai e Febem segue sem solução Pág. 4

Estagnação à vista por causa dos juros altos Pág. 5

Povo uruguaio reafirma apoio à Frente Ampla Pág. 10

Marcha Nacional pela Reforma Agrária chega a Brasília, dia 17, para cobrar do governo mudanças na política econômica

1.300 entidades na luta contra a transposição O governo federal ultrapassou a última etapa institucional para transpor as águas do Rio São Francisco e obteve a licença ambiental prévia para as obras. Movimentos sociais e ambientais lembram que, para tornar-se definitiva, a decisão do Ibama depende de condicionantes e ainda pode ser contestada na Justiça. Além disso, manifestos assinados ao todo por mais de 1.300 entidades informam a população sobre os erros do projeto. Pág. 13

E mais: DESMONTE – Geraldo Alckmin prepara mais uma privatização em São Paulo, a despeito da demissão de funcionários, do encarecimento dos serviços e do interesse público. Pág. 7 DEBATE – O historiador Mário Maestri resgata a importância revolucionária do 13 de maio de 1888, inclusive por parte do povo negro. Pág. 14


2

De 12 a18 de maio de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Marcelo 5555 Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretária de redação: Thais Pinhata 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: Taiga - Gráfica e Editora Ltda. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Enquanto ainda há tempo Para os democratas e patriotas, 17 de maio é dia de cumprir um dever cívico. Quem tiver possibilidade de ir a Brasília nesse dia, tem o dever de lá estar, a fim de ocupar um metro quadrado da Praça dos 3 Poderes, na recepção da cidade à Marcha Nacional pela Reforma Agrária, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Objetivo: mostrar aos sem-terra que eles não estão sós e compor a imagem da massa humana que, fotografada por todos os jornais do mundo, irá parar na mesa das pessoas que tomam decisões políticas. Quanto maior a mancha de gente retratada nas páginas dos jornais, maior será a pressão para que o governo acelere a reforma agrária. A Marcha congrega 12 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais. Eles estão marchando pelas estradas de Goiás desde o dia 2 de maio. Pretendem, com esse esforço, chamar a atenção da sociedade brasileira para a necessidade de acelerar a distribuição de terras às famílias que delas necessitam para ter um trabalho estável e um ganha-pão digno. Essas pessoas precisam ser ouvi-

das e apoiadas. Reformas estruturais removem obstáculos que estão entravando um desenvolvimento possível no plano econômico, social ou político. Depois que a necessidade desse desentupimento se coloca, toda demora é prejudicial. A abolição da escravatura deveria ter sido feita por ocasião da Proclamação da Independência, como queria o patriarca José Bonifácio. Mas os senhores de escravos conseguiram impedir essa medida durante 66 anos. Quando finalmente essa resistência foi vencida, – e mesmo assim de maneira parcial, posto que não foi acompanhada da entrega de um pedaço de terra aos libertos – já havia passado o melhor momento para colocar o país na rota das economias industriais mais desenvolvidas. A demora e a insuficiência da medida podem ser apontadas como fatores importantes do nosso atual subdesenvolvimento. A similaridade com a reforma agrária é óbvia. Deveríamos ter realizado esta reforma há 50 anos, quando a economia brasileira, havendo completado a primeira fase do processo de industrialização,

caminhava para a sua maturidade, com a montagem das indústrias de bens duráveis, intermediários e de base. A reforma agrária criaria o mercado interno que daria todo impulso a esse movimento. As elites dirigentes preferiram modernizar a agricultura sem desatar o nó da concentração fundiária, ou seja, sem ampliar o mercado interno. O resultado está aí, à vista de todos: pobreza rural, conflitos sangrentos no campo, proliferação de favelas e da violência nas cidades; mercado interno raquítico, insuficiente para sustentar um desenvolvimento industrial dinâmico e com capacidade de inovação. Antes que a massa de deserdados da terra entrasse em estado de desespero (vide a Colômbia), o MST conseguiu organizar parte dela e levá-la a exercer uma pressão pacífica, civilizada e democrática pela reforma agrária. Descontado do dever de solidariedade humana, é da mais elementar prudência que a sociedade brasileira ouça o grito desses trabalhadores e trabalhadoras e se disponha a apoiar suas demandas. Todos podem ajudar.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES A MARCHA DOS SEM-TERRA A marcha dos sem-terra já dura semanas, partindo de várias regiões do país, indo para Brasília. Seus portavozes são unânimes: “Não marchamos contra o governo Lula, exigimos reforma agrária”. A organização dos sem-terra impressiona! Com comida, alojamento e segurança para 12 mil pessoas. Tudo na marcha funciona como um relógio suíço. A mídia cobre a marcha com muito mais críticas do que deveria. Ao invés de aplaudir, tentam denegrir o governo de Goiás e de Goiânia, que doaram comida para a mobilização. Os que marcham são brasileiros em busca da terra para produzir e morar porque seus antepassados só receberam terra como última morada. O Brasil precisa urgentemente assentar essa gente para barrar o êxodo rural e o inchaço nas cidades. Dando condições dignas de vida a esse povo serão produzidos mais alimentos para buscarmos a fome zero, e também, aumentando a oferta de produtos agrícolas, o preço desses alimentos cairá, beneficiando assim toda a sociedade. Diante da marcha, alguém diria: poderosos os sem-terra! Na verdade, são uns pobres coitados, poderosos são os latifundiários com suas milícias, seus braços no governo, no parlamento, na Justiça e na polícia, pois esses sim estão vencendo, conseguiram transformar o Brasil no único país do planeta com dimensões continentais até agora sem ter realizado a reforma agrária! Emanuel Cancella por correio eletrônico Enquanto 15 mil trabalhadores dão exemplo de organização em massa numa grande marcha que percorre 233 quilômetros de Goiânia a Brasília, para reivindicar direitos básicos de sobrevi-

vência, a aniversariante do mês, Rede Globo, não pára com seus atos de lavagem cerebral. Em seus telejornais dos dias 5 e 6 mostrou todo descaso e ironia em relação à Grande Marcha: “Sem aperto – dinheiro público financia marcha do MST”, “Vinte e três cozinhas com cardápios variados a gosto de cada região”. Essa é a verdadeira cara dessa emissora: desmoralizar a qualquer custo. Protestos, reivindicações e a tão prometida reforma agrária são nossos direitos, pois “somos brasileiros e não desistiremos nunca”. Flávio Vieira por correio eletrônico SUGESTÃO Sem dúvida, o jornal Brasil de Fato é muito interessante não só pelo conteúdo das matérias, mas também pelos colaboradores. Para esses, sugiro que escrevam sobre o cooperativismo, para, quem sabe, o jornal possa ter uma coluna semanal ou quinzenal sobre esse assunto. Para as matérias sobre o nosso país, sugiro que, além da informação e do embasamento crítico, sejam apresentadas sugestões, idéias e projetos viáveis dentro da realidade nacional, acompanhados de uma linha construtiva e de conhecimento da opinião pública, procurando assim melhorar a realidade, por meio de um trabalho educativo e promissor. José de Jesus Moraes Rêgo Brasília (DF) ERRAMOS Na edição 114, o autor da reportagem “Sem-teto ocupam prédios do INSS” ( pág. 6) é Bruno Zornitta e não Rafael Luiz, como foi publicado.

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

Milagres acontecem Leonardo Boff A evolução teve que caminhar alguns bilhões de anos até produzir os sentidos corporais. Na verdade, é o universo que por meio destes sentidos começou a se olhar, a se sentir, a se tocar e a se ouvir a si mesmo. Mas quando surgiu o ser humano, esses sentidos ficaram conscientes e por isso espirituais. Por eles o universo se olha, canta e se extasia. Tanto para os sentidos corporais quanto para os espirituais pode ocorrer aquilo que parece impossível. Tais coisas surgem daquele fundo abissal e misterioso de energia, do qual tudo procede e para o qual tudo retorna. Chamam-no de vácuo quântico ou, numa expressão mais feliz, de “Fonte alimentadora de todo o ser”, outro nome para Deus. Porque é assim, o impossível acontece, como comentou acertadamente, numa recente crônica, Carlos Heitor Cony, ou acontece o milagre como preferem dizer os cristãos. Vou contar um milagre comovedor. Em 2003 visitei pela primeira vez a ilha de Fernando de Noronha, prova de que um pouco do paraiso terrenal ainda perdura. A população, em grande parte, cumpre o preceito divino dado a nossos pais originários, o de serem jardineiros e cuidadores daquela herança sagrada. Encontrei Ana, uma professora primária, es-

posa de um pescador, que vendia bolinhos logo abaixo da igreja, para completar a renda familiar. Conversamos de como é importante cuidar das belezas de Noronha, educar os jovens para essa missão e obrigar os turistas a zelarem pelo lixo. Estabeleceu-se, de imediato, uma relação de grande cordialidade. Ela tinha uma voz suave como a brisa que vinha do mar e seu olhar era terno como as areias finas da praia embaixo. Eu me animei e falei de como surgiram a Terra, os mares, as ilhas como Noronha. E ela escutava com brilho nos olhos como quem recebia uma mensagem esperada. De repente disse: “Nós somos pequenos e humildes. Vocês são doutores e sabem tantas coisas que nós podemos aprender e nos encher de admiração”. Minha companheira Márcia, educadora popular, retrucou, dizendo: “Ana, você também sabe coisas que nos fazem aprender e encher de encantamento”. Foi então que ela se abriu e disse: “Posso contar um milagre”? “Lógico, nós acreditamos em miliagres”. E então contou: “Foi o que Deus nos concedeu na Semana Santa de anos atrás. Em casa não tínhamos peixe nem água. O navio que devia trazer mantimentos não veio. Meu marido pescador, há dias, não conseguia pescar nada. Que iríamos comer na Semana Santa? Tínhamos só um

pouquinho de espagueti. Foi então que eu e meu marido, preocupados, fomos ver o mar. Olhávamos um ao outro, tristes, pedindo a Deus que cuidasse de nós, pequenos e humildes. O mar estava calmo. Eis que de repente, se elevou uma onda grande. Bateu nas pedras. E ao se retirar, ficaram milhares de sardinhas presas nas pedras. Eu tirei a anágua e a enchi de peixes. Fui correndo chamar meus quatro vizinhos, também pescadores. Ao chegarem, veio outra onda, trazendo ainda mais peixes. Todos encheram suas bacias e ainda sobrou peixe nas pedras. Deus escutou a prece dos pequenos e humildes”. E ainda há pessoas que não crêem em milagres porque não ativaram seus sentidos espirituais. Se os ativarem, vão descobrir muitos e muitos milagres em suas próprias vidas. Mas há uma condição: fazer-se pequeno e humilde como Ana e seu marido. Saí rezando ao Deus de Ana pedindo que me fizesse pequeno e humildade. Grande era Ana, pequeno era eu. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos

Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores. • Como participar: Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. • Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br. • Quanto custa: O jornal Brasil de Fato custa R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00. Você também pode fazer uma assinatura semestral, com direito a 26 exemplares, por R$ 50,00. • Reportagens: As reportagens publicadas no jornal podem ser reproduzidas em outros veículos - jornais, revistas, e páginas da internet, sem qualquer custo, desde que citada a fonte. • Comitês de apoio: Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilidade a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jornal ficaria restrito ao chamado eixo Rio-São Paulo, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato. • Acesse a nossa página na Internet: www.brasildefato.com.br • Endereços eletrônicos: AL:brasil-al@brasildefato.com.br•BA:brasil-ba@brasildefato.com.br•CE: brasil-ce@brasildefato.com.br•DF:brasil-df@brasildefato.com.br•ES:brasil-es@brasildefato.com.br•GO:brasil-go@brasildefato.com.br•MA:brasil-ma@brasildefato.com.br•MG:brasil-mg@brasildefato.com.br•MS:brasil-ms@brasildefato.com.br•MT:brasilmt@brasildefato.com.br•PA:brasil-pa@brasildefato.com.br•PB:brasil-pb@brasildefato.com.br•PE:brasil-pe@brasildefato.com.br•PI:brasil-pi@brasildefato.com.br•PR:brasil-pr@brasildefato.com.br•RJ:brasil-rj@brasildefato.com.br•RN:brasil-rn@brasildefat o.com.br•RO:brasil-ro@brasildefato.com.br•RS:brasil-rs@brasildefato.com.br•SC:brasil-sc@brasildefato.com.br•SE:brasil-se@brasildefato.com.br•SP:brasil-sp@brasildefato.com.br


3

De 12 a 18 de maio de 2005

NACIONAL MOBILIZAÇÃO POPULAR

Pés incansáveis, em busca da nova vida Francisco Rojas

Doze mil pessoas se aproximam de Brasília, depois de marchar mais de 200 km, para pedir mudanças na economia Marcelo Netto Rodrigues enviado especial a Alexânia (GO)

“T

emos admiração pelos pés de vocês. Vocês que são os colaboradores de Deus neste mundo novo”, foi a saudação de dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), dia 5, em Anápolis, à Marcha Nacional pela Reforma Agrária – que ganha em organização e repercussão, à medida que se aproxima de Brasília, onde deve chegar dia 17. As 12 mil pessoas que levavam uma hora e meia para formar três fileiras, nos primeiros dias, agora precisam de apenas vinte minutos. A velocidade média da marcha pulou de 3 km para 4 km por hora e o número de atendimentos médicos caiu para 40 casos por dia – o que equivale a menos de 0,5% dos participantes. A marcha, que vai percorrer ao todo 233 km, estava a 81 km de Brasília até o fechamento desta edição, dia 10, deixando mais uma vez evidente, até para os críticos, a capacidade que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem de organizar o povo e reverter as dificuldades em um gigantesco acúmulo organizativo. Os números impressionam ainda mais ao se considerar que grande parte dos marchantes são acampados que não se alimentam direito, alguns nessa condição há até seis anos, o que em tese os torna muito mais suscetíveis a complicações de saúde. Também são pessoas que, em sua maioria, não tiveram acesso à educação formal das

çoada. Para que os marchantes não deixem suas filas e se dispersem de suas delegações, alguns vão à frente com baldes d’água até o próximo carro-pipa e distribuem água em meio às fileiras.

COMUNICAÇÃO

Clima enfrentado pelos marchantes tem sido igual a de um deserto: de dia, calor insuportável; de noite, a temperatura cai

escolas e por isso, teoricamente, segundo os padrões sociais, teriam mais dificuldades em promover o diálogo e em conviver de maneira harmônica.

PRECONCEITO Apesar de os sem-terra demonstrarem tamanha eficiência a ponto de receberem elogios até de integrantes da Polícia Rodoviária Federal, uma lógica falsa e perversa ainda é impressa pela mídia local de maneira preconceituosa. Na semana passada, uma manchete do jornal O Popular comparou os sem-terra a animais: “Cuidado: marcha de semterra na pista”.

Ao contrário do sugerido, o que se vê, na prática, são atitudes das mais civilizadas. Sem falar na solidariedade e no cuidado com o outro: as 24 mil refeições diárias são servidas em marmitas de alumínio reutilizável, que são lavadas por mais de 150 pessoas, no intuito de evitar as marmitas descartáveis, que desperdiçam os recursos da natureza e geram lixo desnecessário. O restante do lixo é recolhido durante a marcha por militantes animados pelo bordão: “Marcha meu povo, olha o lixeiro aqui de novo”. Tão logo se levanta acampamento, os responsáveis pelo setor de limpeza de cada Estado deixam

Aos seis anos de idade, Jocélio Dantas de Souza sofreu “uma febre grande que não passava nunca”. Era um sinal da paralisia infantil que se agravou pela falta de atendimento adequado. Seu pai não tinha dinheiro para levá-lo a Fortaleza pois já havia gasto tudo o que tinha com seus outros seis irmãos. Hoje, com 28 anos, Jocélio está à frente da delegação do Rio Grande do Norte para marchar. De cadeira de rodas. Um dia antes do seu Estado puxar a marcha, Jocélio entrou em desespero. Quando um marchante do Pará enchia um dos pneus da sua cadeira – na verdade, um triciclo movimentado por uma manivela – a câmara de ar estourou. Com receio de ter seu sonho de marchar destruído , Jocélio desabafa: “Saí de casa para marchar, se fosse para andar de carro, teria ficado por lá”. Sua casa realmente fica longe: 4 mil km de distância de Goiânia, ou 3 dias e 3 dias noites de viagem, ou, ainda, 72 horas. Para a sua alegria – que contagia “outros que têm duas pernas e dois braços” – o mesmo marchante do Pará, responsável pelo estouro, conseguiu comprar uma câmara nova na cidade mais próxima. Acampado em Mossoró há dois anos, Jocélio ouviu falar dos sem-

Luciney Martins

“Saí de casa para marchar”

Dantas: exemplo aos mais jovens

terra pela primeira vez na novela Rei do Gado. Depois, teve seu primeiro contato com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao vender picolés e carregar água para algumas das mil famílias do acampamento “Eldorado dos Carajás”. Hoje, está marchando para dar o exemplo aos mais jovens de sua família que não quiseram vir para a marcha.

PESSOAS IMPORTANTES “Essas pessoas são importantes para o MST”, diz Ivonaldo da Costa Fernandes, 31, do acampamento Florestan Fernandes, em Ceará Mirim, que acompanha Jocélio a todos

os lugares dando a impressão de que eles são velhos conhecidos. Engano, eles se encontraram na marcha. De imediato ocorreu um pacto entre eles depois de Jocélio ter sido “esquecido” pela delegação do Rio Grande do Norte durante o ato político no Centro de Goiânia. Ivonaldo prometeu ser sua sombra e ajudá-lo a empurrar sua cadeira nas subidas. A solidariedade surge de todos os lados. Venta muito forte no dia em que ele puxa a marcha. “O gelo é grande”, como ele diz. Alguém lhe empresta uma blusa. Um italiano, Giorgio Ascioti, que vive na região de Vitória da Conquista, na Bahia, e que colabora no setor de teatro do MST, se oferece para revezar com Ivonaldo a tarefa de empurrar a cadeira de rodas na subida. Patrício Adriano de Freitas, da região do Mato Grande no Rio Grande do Norte também ajuda. Assim como Francisco da Silva, o Jacó, que vai à frente buscar água para Jocélio. Já no acampamento, para combater “o gelo”, os marchantes do Rio Grande do Norte fizeram uma “vaquinha” para comprar um cobertor para Jocélio que, na hora de dormir, tem a costela quente de Jane Medeiros, acampada há seis anos em Canaviera, para recostar sua cabeça. (MNR)

A MARCHA EM NÚMEROS • 12 mil pessoas de 22 Estados mais o Distrito Federal (7,8 mil homens e 4,2 mil mulheres) • 233 quilômetros em 17 dias • 4 quilômetros por hora • 31 caminhões, 8 ônibus e 25 carros • 6 ambulâncias • 10 caminhões-pipa • 12 barracas com capacidade para 600 pessoas e 20 para abrigar até 200 pessoas • 300 pessoas montando as barracas • 50 pessoas preparando a infra-

estrutura de água para os banhos • 250 mil litros de água por dia • 3,750 milhões de litros de água serão consumidos até o final da marcha • 2 médicos • 328 pessoas envolvidas com o setor de saúde • 150 banheiros químicos • 420 pessoas na cozinha • 24 mil refeições por dia • 22 toneladas de comida por dia • 130 crianças atendidas por 70 educadores • 19 bebês

• 1 escola itinerante • 6 grupos de teatro que vão apresentar 26 peças • 1 rádio itinerante que atinge 20 km de raio • 10 mil rádios portáteis • 300 ônibus para levar os marchantes a Goiânia • estão presentes comitês de apoio ao MST, jornalistas e organizações de 10 países: África do Sul, Bélgica, Bolívia, Espanha, Estados Unidos, Itália, Noruega, Paraguai, Suíça e Turquia.

o lugar exatamente como estava antes da chegada dos 12 mil que pernoitaram no lugar.

GELO Capas de chuva distribuídas aos marchantes estão sendo usadas para proteger do frio da manhã principalmente as delegações do Norte e do Nordeste que, como dizem, “não vieram preparadas para tanto “gelo”. O clima enfrentado pelos marchantes tem sido igual ao de um deserto: durante o dia, um calor insuportável; à noite, a temperatura cai drasticamente. A distribuição de água ao longo da caminhada também foi aperfei-

A Rádio Brasil em Movimento, que teve sua freqüência alterada para FM 89,7 após a passagem por Anápolis, é uma atração à parte. Onde a marcha vai, a rádio vai atrás, alcançando 20 quilômetros de raio. Além de ser a responsável pela comunicação simultânea entre os marchantes, na parte da tarde, funciona como instrumento formador. Especialistas em temas como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ou imperialismo estadunidense realizam palestras ouvidas pelos radinhos das 12 mil pessoas embaixo das barracas. Deitados em seus colchões, os marchantes aplaudem ao final da exposição. À noite, no acampamento, um telão exibe filmes e telejornais. Para a chegada a Brasília, está programado um teatro-procissão de 200 pessoas da brigada “Patativa do Assaré”. “Olhando vocês daqui de cima do palanque a gente se sente brasileiro de verdade. Porque sabemos que só o povo genuinamente brasileiro vai construir o que está escrito na bandeira do Brasil”, saudou os marchantes de maneira entusiasmada o prefeito de Anápolis, Pedro Fernando Sahium (PSB), durante ato público no dia 5. Dom Tomás Balduíno completou: “Nós que somos considerados a mãe ou a avó do MST assumimos esse título com muita honra”.

ANÁLISE

O povo de Deus caminha Dom Tomás Balduino Milhares de pessoas, homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos, todos juntos numa grande caminhada. Para que? Para dizer ao governo e à sociedade que a reforma agrária é uma necessidade, tem que ser feita, não se pode mais protelar sua concretização. Para mostrar a todos e todas que a concentração da terra, por meio dos latifúndios, tem que acabar. E que o agronegócio é predador dos bens naturais, poluidor do meio ambiente e causador do êxodo rural, com o conseqüente aumento do desemprego. Por onde o agronegócio passa, fica um rastro cada vez mais profundo de violência contra os trabalhadores e de violação dos direitos humanos. Enquanto os pés caminham, já cansados de uma longa jornada, cheia de tropeços, a mente e o coração vão se abrindo, entendendo as causas que provocam tanto sofrimento para os pequenos. Assim os olhos começam a vislumbrar no horizonte uma nova terra de partilha e de fartura, onde há lugar para todos, onde todos conseguem com alegria o pão de cada dia, e onde o cansaço se transforma em alegria. Esta marcha também vai deixar um rastro bem marcado e profundo na história do povo brasileiro. É o rastro da dignidade daqueles que, mesmo tendo sido excluídos do banquete preparado para todos, não se deixam abater e lutam para conquistar o espaço que é seu e do qual foram alijados. É o rastro da fé de quem sabe que esta luta vai construindo uma nova terra. A caminhada que esta multidão faz hoje de Goiânia para Brasília quer conquistar também a terra. E vai tomar de assalto o poder central que teima em manter intactas as estruturas arcaicas e injustas sobre as quais se alicerçou a sociedade

brasileira; que mantém os privilégios, muitas vezes espúrios de uns poucos, em detrimento da grande maioria do povo; que prefere empregar os recursos do povo para pagar juros de uma dívida que não se sabe ao certo como se formou, em vez de direcioná-los para atender as necessidades elementares dos cidadãos. Os marchantes, ao tomarem Brasília, querem acordar o presidente Lula, que mesmo tendo garantido ser a reforma agrária uma das prioridades de seu governo, não consegue dar passos concretos e significativos neste rumo. Querem sacudir o Congresso onde se aninham, não os defensores do povo, mas os negociadores dos grupos poderosos e das elites, que mantêm e ampliam os privilégios sobre os quais se assentam até hoje. Querem tentar abrir os olhos do Judiciário, cuja cegueira é emblemática. Realmente é cego para ver as justas e legítimas reivindicações dos pequenos à terra, à alimentação, ao trabalho, à moradia, à saúde, à educação, mas enxerga com nitidez o “direito” dos poderosos, sobretudo o direito à propriedade sem reservas e sem limites. Essa massa humana vai ocupar o Planalto Central para mostrar a todos que existe, que está de pé, que não se acovarda diante dos percalços, e das rasteiras que os grandes lhe prepara. Como o povo de Deus conquistou a Terra Prometida, este povo caminhante quer conquistar além da terra para trabalhar e produzir, a terra da consciência dos brasileiros e das brasileiras, para que se somem à luta pela conquista do direito de todos a uma vida digna. Dom Tomás Balduíno é bispo emérito da Cidade de Goiás e presidente da Comissão Pastoral da Terra


4

De 12 a 18 de maio de 2005

FEBEM

Ainda não há solução à vista

da Redação Sabujo patronal Conhecido por sua tradicional vinculação com a oligarquia rural brasileira, desde os tempos áureos do café, o jornal O Estado de S. Paulo escalou para acompanhar a Grande Marcha da Reforma Agrária, dos trabalhadores sem-terra, o repórter José Maria Tomazela, também conhecido pelas reportagens que fazia em favor dos grileiros-latifundiários do Pontal do Paranapanema. É a chamada imparcialidade da “grande imprensa”. Cadeia editorial Vários veículos da imprensa comercial, entre os quais o Estadão, a Folha de S. Paulo e a TV Globo, tentaram enfatizar que a marcha dos sem-terra está sendo patrocinada com dinheiro público, só porque o governo de Goiás e de algumas prefeituras, contribuíram com parte da alimentação, da água e com o apoio de ambulâncias. Nada disso é ilegal ou imoral, mesmo porque os marchantes são trabalhadores e cidadãos deste país. Censura inaceitável Um juiz de direito de Goiás determinou a apreensão do último livro do escritor Fernando Morais, Na Cova dos Leões, porque ele reproduz uma declaração que está sendo contestada pelo ex-dirigente da UDR, Ronaldo Caiado. O juiz exorbitou no seu poder, porque o certo seria pedir ao autor a comprovação da veracidade do fato e, só depois, dependendo do que for apurado, determinar a reparação de eventual dano moral e material. A censura prévia é a volta aos tempos da ditadura. Sem registro Principal referência do empresariado brasileiro, o jornal Valor Econômico, da sociedade Globo-Folha, não deu uma única linha sobre as manifestações do último Dia Internacional dos Trabalhadores. Se algum dia um pesquisador procurar, naquele jornal, os registros dos fatos ocorridos no 1º de maio de 2005, não encontrará nada para a história. Essa é uma das formas do capital anular o papel social do trabalho. Contestação bolivariana A embaixada da Venezuela no Brasil encaminhou para a revista Veja uma longa carta respondendo à matéria publicada há duas semanas com ataques diretos ao governo Hugo Chávez. Quase no final de sua carta, a embaixada afirma que a revista da Editora Abril é necessária, porque “si Veja deja de existir se corre el riesgo de que la mentira, la desfachatez, el servilismo y la ausencia de ética se perpetúen. No se puede erradicar el cretinismo sino hay un cretino a quien poner como ejemplo”. Demissões imperiais O poderoso provedor de internet American On-Line, vinculado a um dos maiores grupos de comunicação do mundo, a empresa Time-Warner, acaba de demitir 80 dos seus 580 funcionários no Brasil. Quando chegou aqui, no final dos anos 90, o AOL queria morder rapidamente boa fatia do mercado, mas isso não aconteceu, em parte porque o baixo poder aquisitivo da população limita a expansão do uso da internet no Brasil. Ética perdida O boletim eletrônico da revista Caros Amigos distribuiu, esta semana, um artigo de Mariana Diniz, estudante de jornalismo, sobre o debate da “Ética Jornalística” realizado no Instituto de Ensino Superior de Brasília. De acordo com ela, a jornalista Eliane Cantanhêde, da Folha de S. Paulo, admitiu, para espanto geral dos presentes, que a sua ética permite mentir e roubar documentos para levar informação ao público. Agora só falta defender a tortura como método ético para se obter informação. TV Globo Com as comemorações dos 40 anos da TV Globo e as tentativas de endeusar o falecido Roberto Marinho, vale a pena sugerir algumas boas leituras sobre sua história: A história secreta da Rede Globo, de Daniel Herz, publicado pela Ortiz; e A Fundação Roberto Marinho, de Romero Machado, publicado pela Caros Amigos.

Com a saída do atual presidente, novas fugas e rebeliões, a instituição continua em crise Dafne Melo da Redação

A

lexandre Moraes, secretário de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo e presidente da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), deixará os cargos em 2 de junho, para integrar o Conselho Nacional de Justiça. A notícia foi veiculada na mesma semana em que ocorreu a 26ª rebelião de 2005, apenas duas a menos em relação a todo o ano de 2004. O complexo do Tatuapé, no dia 4, viveu mais um dia de tensão, após uma rebelião que durou oito horas e deixou 50 feridos. Cinco dias depois, após uma tentativa de fuga, o fato se repetiu no mesmo local, com um saldo de 14 feridos. Na mesma semana, a unidade localizada na rodovia Raposo Tavares registrou dois motins, em apenas 24 horas. “Dentro do governo, a Febem é uma batata quente”, diz o advogado Ariel de Castro Alves, integrante do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, para quem o principal problema da instituição é a “descontinuidade administrativa”, que impossibilita a implantação contínua de um projeto, e acaba contribuindo para o clima de instabilidade. Eloisa Machado, da organização não-governamental (ONG) Conectas Direitos Humanos, tem a mesma opinião.

Moacyr Lopes Júnior/ Folha Imagem

da mídia

NACIONAL

Internos da Febem do Tatuapé, zona leste de São Paulo, fazem, dia 4, a 23ª rebelião em 2005; em 2004, foram 28 motins

Moraes conduziu sua administração, permitindo o acesso das entidades a documentos e vistorias nas unidades, e mantendo um maior diálogo com a sociedade civil organizada, que pôde fazer suas reivindicações diretamente. A demissão de funcionários acusados de abusos, a distinção de categoria entre educadores e agentes de segurança, foram outras boas ações, segundo Eloisa Machado. Conceição Paganele, presidente da Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco (Amar) ressalta, também, que só com Moraes a proposta de regionalização das unidades da Febem, uma antiga reivindicação das entidades, foi levada a sério. Mas, pondera, há ainda muito a ser feito pelos internos. Entretanto, quando o assunto é a transferência para o presídio em Tupi Paulista, todos condenam a decisão, e consideram que esse tipo de

BALANÇO Iniciada em agosto de 2004, a gestão Alexandre Moraes foi marcada pelo aumento no número de rebeliões e de ações negativas como a transferência de adolescentes para um presídio em Tupi Paulista (leia reportagem abaixo), mas, também, por iniciativas positivas, na avaliação de entidades envolvidas na questão. Alves cita como exemplo a maneira mais transparente com que

situação não pode se repetir. O deputado estadual Renato Simões (PT), de seu lado, critica a saída do presidente da Febem. Para ele, Alexandre Moraes, que em um primeiro momento manifestou a intenção de acumular as três funções, estaria “moralmente impedido” de assumir o novo cargo, e não deveria deixar a Febem, o que contribuirá para a “crônica” descontinuidade administrativa da instituição.

TEMORES “Independentemente de quem assuma o cargo, queremos que o governo estadual assuma a Febem e cumpra seus compromissos”, afirma Conceição Paganele. Já Eloisa, apesar de temer que sempre que há mudanças, “o medo é de que as coisas possam piorar”, o importante é exigir que as ações positivas de Alexandre Moraes continuem.

“Nosso papel é não deixar o governo recuar nos avanços já conquistados, e buscar o fim de algumas medidas negativas desta gestão, como a transferência de internos para presídios”, pondera. Renato Simões avalia que, com a reação de setores contrários às mudanças, que vem gerando mais conflitos nas unidades da Febem, o descontrole é evidente. A seu ver, o Estado deve diminuir o ritmo das mudanças e “endurecer sua atuação”, visando diminuir os conflitos. “Depois da crise causada pela rebelião na unidade da Imigrantes em 1999, também foi anunciada uma série de medidas, como desta vez. Mas na medida em que não conseguiram implementá-las, o resultado foi um endurecimento”, lembra. Até o fechamento desta edição, o nome do novo presidente da instituição ainda não tinha sido anunciado.

Em Tupi Paulista, torturas e maus-tratos “A Febem é o túmulo do Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirmou Ariel de Castro Alves, integrante do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, durante evento realizado pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo, no dia 5. Presidida por Ítalo Cardoso (PT), a sessão contou com a presença de deputados e entidades de defesa da criança e do adolescente, que ouviram as denúncias sobre abusos cometidos contra internos da Febem no presídio de Tupi Paulista (663 quilômetros da capital). A transferência de internos, anunciada 18 de março como parte de um pacote de medidas para a Febem, contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que determina que menores de idade devem cumprir medidas sócioeducativas em unidades especiais, e não podem ser recolhidos ao sistema carcerário. O procurador da República Sérgio Suiama, que participou da vistoria ao presídio, acrescentou que o fato do pedido do governo estadual ter sido aceito pelo Tribunal de Justiça e Ministério Público Estadual, é ainda mais grave. Alves concorda. “Desta vez, houve conivência do Ministério Público e do Tribunal de Justiça. Será que eles ignoram que isso é inconstitucional?”, questionou, acrescentando: “O Estado de São Paulo está reduzindo, na prática, a maioridade penal”.

VISTORIA Dia 4 de abril, representantes da sociedade civil foram até Tupi Paulista averiguar denúncias de irregularidades. Segundo Suiama, os jovens estavam em estado de “absoluta violação dos direitos humanos”. Conforme seu relato, os

Divulgação

Espelho

No presídio do interior paulista, pedaços de ferro foram usados para torturar menores

internos permanecem 21 horas do dia encarcerados e outras três em um pátio, sem qualquer atividade sócio-educativa. “É uma situação de deseducação”, completou. Mais grave são os 47 casos de tortura, comprovados por laudos do Instituto Médico Legal de Dracena, ocorrida na unidade 3 do presídio, no dia 10 de abril. Feridos com pedaços de ferro, os adolescentes foram torturados após um tumulto, para exigir a presença de um médico para examinar um interno que estava passando mal. Outra irregularidade é a distância entre os jovens e suas famílias, o que prejudica as visitas, um direito dos internos. De acordo com Suiama, 60% dos internos são da Grande São Paulo, Baixada Santista e Vale do Paraíba, o que significa uma viagem de cerca de 10 horas até o presídio. Ariel de Castro Alves relatou que apenas 10% dos internos que estão em

Tupi receberam alguma visita. Conceição Paganele, da Amar, informou que todos os jovens com os quais o grupo de vistoria conversou falaram em falta de alimentação. “Os olhos deles pediam comida. Eles pediram farinha de milho para misturar com água e comer”, informou. Abimael Silva, ex-interno da Febem transferido para Tupi, que estava na Assembléia, confirmou as denúncias, dizendo, ainda, que alguns internos, para matar a fome, picavam o próprio colchão para misturar na comida. A viagem até o presídio, disse Silva, foi feita em caminhão, durante cerca de 10 horas ininterruptas, sob forte calor, sem qualquer ventilação ou parada para que os adolescentes pudessem ir ao banheiro. Acrescentou que todos estavam algemados uns aos outros e com as mãos cruzadas para não se mexer. “Durante o percurso,

comemos apenas dois pães e uma maçã”, conta. Retirado de um internato (unidade menor onde é mais fácil atender às regras do ECA), Abimael Silva foi transferido faltando só uma semana para cumprir sua internação, e ficou onze dias a mais no presídio. “Eles não soltam quando devem, mas esperam juntar bastante gente para soltar de uma vez”, denunciou. Com a transferência, seu processo sócio-educativo foi interrompido, e ele perdeu a conclusão do curso profissionalizante. “Aqui, era melhor, tínhamos escola, curso, enfermaria. Lá, ficamos esquecidos”, lamentou o jovem, que não foi torturado, mas confirmou a prática dentro do presídio. “Eles batem e não deixam hematomas, são espertos”.

AÇÃO CIVIL Com base na vistoria, foi feito um relatório que, somado a outros, basearam a Ação Civil Pública impetrada no Ministério Público Federal, dia 2, pedindo a suspensão das transferências para Tupi Paulista, o retorno imediato dos internos que ainda estão no presídio e duas indenizações coletivas, uma para todos os transferidos, outra para os que foram torturados. Mais uma irregularidade apontada pelo procurador Suiama é que o presídio foi construído com 80% de verbas federais. O contrato com a União, entretanto, destina as vagas apenas para internos do sistema carcerário, o que caracteriza uma quebra nos acordos. A Conectas Direitos Humanos também levou as denúncias à Organização dos Estados Americanos (OEA), para que o organismo cobre ações do governo brasileiro em relação aos abusos em Tupi Paulista. (DM)


5

De 12 a 18 de maio de 2005

NACIONAL A ECONOMIA TROPEÇA

A indústria não cresce há sete meses Na análise do setor produtivo, o país está na ante-sala da retração, que virá, se a política econômica não mudar Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

INDÚSTRIA GERAL

N

ão se trata de mera coincidência. Desde que o Ministério da Fazenda e o Banco Central (BC) voltaram a aumentar as taxas de juros, a produção industrial literalmente parou de crescer. Entre agosto de 2004 e março de 2005, a produção da indústria experimentou um crescimento acumulado de apenas 0,8%, aponta o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nos sete meses anteriores, apenas para comparação, a expansão foi de 6,5%. “O que de fato está ocorrendo é uma estagnação que, se nada for feito, representará a ante-sala de uma retração na economia brasileira”, escreve o presidente do Iedi, Ivoncy Ioschpe. A virtual estagnação na indústria, afirma, vem acompanhada de uma paralisação das contratações no setor e de um esfriamento no comércio, onde as vendas avançam a taxas decrescentes “e já próximas do zero”. O diagnóstico coincide, parcialmente, com a avaliação distribuída à imprensa no dia 6 pela GRC Visão, empresa de consultoria especializada em análise econômica. “Os atuais resultados da produção física sugerem que a adoção da política monetária restritiva (juros altos e em elevação), empreendida pela autoridade monetária (Banco Central) desde setembro de 2004, se aproxima de uma situação delicada que é a de acentuar a acomodação do crescimento além do necessário e, com isso, paralisar as atividades em alguns segmentos industriais

Índices mensais de base fixa (2002=100) Média mensal móvel trimestral 2004 - 2005 - Março 2005 111 110,5 110 109,5 109 108,5 108 107,5 107 106,5 106 105,5 105 104,5 104

110,77 110,12

110,61 109,95

trimestre, o que mostra uma concentração ainda maior do crescimento, com fraco desempenho ou mesmo queda para os demais setores. A elevação dos juros além dos limites que poderiam ser considerados razoáveis coloca em risco a capacidade de a economia criar as condições para novas etapas de crescimento, no futuro, o que exigiria mais investimentos em novas indústrias ou na expansão das já existentes.

PLANOS ENGAVETADO

104,44 Mar04 Abr04 Mai04 Jun04 Jul04 Ago04 Set04 Out04 Nov04 Dec04 Jan05 Fev05 Mar05

Fonte: IBGE

como foi observado no segundo trimestre de 2003 quando o PIB industrial atingiu a recessão”.

em 2003, as taxas de crescimento têm sido declinantes, saindo de 8,3%, em dezembro, para 5,9% no primeiro mês deste ano, 4,3% em fevereiro e 1,7% em março – “o menor acréscimo desde dezembro de 2003”, conforme o IBGE.

SUSPIRO A paralisia é confirmada pela mais recente pesquisa de indicadores industriais do IBGE, divulgada na semana passada. O Instituto aponta um avanço de 1,5% na produção industrial entre março e fevereiro, depois de dois meses consecutivos de queda. Tratou-se de um mero suspiro, já que, analisa o Iedi, desde setembro do ano passado, a indústria cresceu apenas em dezembro e março, com a estagnação se transformando em tendência dominante no período. Mesmo na comparação com igual período do ano passado, quando a atividade industrial ainda se recuperava do tombo registrado

RECUO Em março, entre 27 ramos da indústria pesquisados pelo Instituto, 16 cresceram em relação a igual mês de 2004. Em janeiro, 23 daqueles setores ainda indicavam taxas positivas, recuando para 22 segmentos em fevereiro. Isso significa dizer que o total de setores em queda ou sem crescimento aumentou de quatro em janeiro para 11 em março, incluindo a produção de fumo, tubos de ferro e bobinas de aço, petróleo e derivados, computadores e móveis, entre outros.

Assim, a cada trimestre, a indústria tem apresentado evolução cada vez mais modesta, saindo de uma variação de 3% no segundo trimestre do ano passado, na comparação com os três meses imediatamente anteriores, para 2,2% no trimestre seguinte; 0,5% nos três meses finais de 2004; e apenas 0,2% nos três primeiros meses deste ano.

CONCENTRAÇÃO Entre janeiro e março de 2005, especificamente, as indústrias de veículos e de revistas e livros responderam por 37,5% de todo o crescimento da indústria no período, em relação a igual trimestre do ano passado. Apenas a produção de automóveis, jipes e caminhões, puxada pelas exportações, foi responsável por mais de um quarto de toda a expansão industrial do primeiro

Não é o que vem acontecendo, segundo dados da pesquisa mensal do IBGE. O desempenho do setor de bens de capital registrou queda ao longo dos dois últimos trimestres, em comparação com os três meses imediatamente anteriores. A produção de máquinas, equipamentos, galpões e instalações industriais recuou 0,2% no primeiro trimestre de 2005, depois de cair 0,4% nos três meses finais de 2004, quando já surgiam indícios mais claros da desaceleração. Traduzindo: a indústria parece ter engavetado seus planos de investimento, o que reduziria as chances de a economia reeditar taxas mais ambiciosas de crescimento a médio prazo. Um outro indicador, que reafirma essa linha de análise, são os pedidos de empréstimos encaminhados pela indústria ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), principal instituição no financiamento de investimentos no setor. As solicitações despencaram 12,4% no primeiro trimestre, encolhendo para menos de R$ 9,8 bilhões, diante de R$ 11,2 bilhões nos mesmos três meses de 2004.

Renda do trabalhador subiu 1%. Desde o Plano Real assalariados das seis regiões metropolitanas pesquisadas regularmente atingiu R$ 945,20, uma variação de 0,5% em relação a fevereiro, e de 1,7% sobre março do ano passado. Quando comparado a março de 2003, no entanto, persiste uma perda de 0,7%. Numa perspectiva de prazo mais longo, conforme a consultoria GRC Visão, pode-se Eduardo Nicolau/Ae

A lenta reação da renda e a parcimoniosa recuperação do mercado de trabalho não parecem ter alcançado força suficiente para relançar a economia em uma fase de crescimento sustentado, ao contrário do que tem apontado a equipe econômica. Em março, dado mais recente divulgado pelo IBGE, o rendimento médio pago aos trabalhadores e

entender por que a economia não tem conseguido alçar vôos mais altos. “O valor atual (da renda média do trabalhador) é praticamente o mesmo observado no momento da implantação do Plano Real, em julho de 1994”, dizem os consultores da GRC Visão. Na verdade, a análise aponta que o país “retrocedeu no tempo, no que diz respeito à renda da população”. O rendimento médio real chegava a R$ 935,10 no momento de lançamento do Real, o que significa que a renda sofreu uma ligeira variação de 1,1% em 10 anos e 9 meses.

APERTO Em sua melhor fase, nos anos mais recentes, o rendimento dos trabalhadores alcançou um valor médio de R$ 1.170,80, entre julho de 1996 e novembro de 1998, o que coloca o valor de março deste ano quase 20% mais baixo. Para retomar o poder de compra verificado então, seria necessário um aumento de 23,9%. Por isso mesmo, a participação do consumo dos brasileiros nas riquezas geradas pelo país despencou de 64%, em meados dos anos 90, para 55% no ano passado. Essa perda dificulta a recuperação de

Renda média do trabalhador é praticamente a mesma desde julho de 1994

Fonte: IBGE

A EVOLUÇÃO DA TAXA DE DESOCUPAÇÃO Em porcentagem ao ano 12.8

13.1 12.2 11.7 11.2

11.4 10.9 10.5

10.6

10.6

10.8

10.2 9.6

Mar04 Abr04 Mai04 Jun04 Jul04 Ago04 Set04 Out04 Nov04 Dec04 Jan05 Fev05 Mar05

setores que dependem do mercado interno e do desempenho da renda dos trabalhadores e do emprego, à exemplo das indústrias de alimentos, roupas, calçados, móveis e outras.

Na Grande São Paulo, de acordo com o Dieese, que pesquisa o mercado de trabalho na região em parceira com a Fundação Seade, o desemprego passou de 17,1% para 17,3%.

DESEMPREGO

BICOS

“Neste sentido, a atual condução da política monetária aplicada no país (ancorada exclusivamente na elevação dos juros) tem contribuído, e muito, para a manutenção desse quadro (de achatamento da renda)”, avalia a GRC Visão. Nos últimos dias, duas pesquisas recentes indicaram uma tendência de recrudescimento do desemprego, embora não com o mesmo ímpeto verificado nos piores períodos de 2003. Segundo o IBGE, a taxa de desemprego nas seis regiões metropolitanas que pesquisa (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre) subiu ligeiramente de 10,6% em fevereiro para 10,8% em março.

Embora nos últimos 12 meses, as contratações de empregados com carteira assinada tenham representado mais de 70% das vagas criadas, houve alguma piora desse indicador em março. Na comparação com o mesmo mês do ano passado, o total de pessoas com algum tipo de ocupação aumentou o equivalente a 743 mil (mais 3,9%), das quais 522 mil passaram a ter carteira assinada. Em relação a fevereiro, no entanto, foram abertas mais 130 mil vagas nas seis regiões metropolitanas, uma variação de 0,7%. Daquele total, 61 mil – ou 47% – passaram a fazer “bicos”, voltando a trabalhar por conta própria. (LVF)

Fantasma da inadimplência volta a assombrar Um dos motores da reação esboçada pela economia a partir do segundo semestre de 2004 começa a dar mostras de esgotamento – com o agravante de antecipar problemas futuros. O crescimento expressivo do crédito para o consumidor, especialmente sob a forma de desconto em folha, vinha turbinando as vendas de televisores e geladeiras, entre outros. Desde março, no entanto, o que se observa é um aumento nos atrasos de pagamentos de carnês e de prestações do crediário, sugerindo que o endividamento do consumidor teria atingindo seu limite. O total de cheques sem fundos foi

recorde em março, chegando a 20,8 cheques devolvidos em cada grupo de mil documentos analisados pelo sistema de compensações dos bancos. Foi o número mais elevado desde 1991, quando esse tipo de acompanhamento começou a ser feito. Na mesma linha, o total de registros negativos (ou seja, o número de consumidores com prestações em atraso) no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) saltou 43% em março, na comparação com fevereiro, passando a incluir 3,094 milhões de CPFs (registros no Cadastro das Pessoas Físicas). (LVF)


6

De 12 a 18 de maio de 2005

NACIONAL VIOLÊNCIA NO CAMPO

Sem-terra são libertados em Alagoas

Hamilton Octavio de Souza

Dinheiro sobrando Já virou rotina: os bancos nacionais e estrangeiros conseguem bater seus próprios recordes de lucro, no Brasil, há vários anos. O Bradesco, um dos maiores do país, fechou o primeiro trimestre de 2005 com aumento de lucro de 98% em relação ao primeiro trimestre de 2004. Só isso já diz tudo o que está errado no modelo administrado e defendido por Palocci e Lula. Cegueira judicial O Tribunal de Justiça da Bahia gastou quase R$ 2 milhões para pagar, no ano passado, abono de férias para 159 juízes aposentados. Não é piada. É abono de férias para juiz inativo, que já ganha aposentadoria de marajá. E ainda tem membro do Poder Judiciário ameaçando processar o governo de Goiás porque forneceu alimentos e água para os 12 mil sem terra da Marcha Nacional da Reforma Agrária. Escravidão digital O governo federal deve anunciar esta semana como será o programa de financiamento de um milhão de computadores para a população de menor renda, que prevê a venda de cada máquina por R$1.300, em 24 parcelas mensais. O detalhe é saber se as máquinas vão usar o software livre, sem custo, ou o programa da Microsoft. O lobby para manter Bill Gates um dos homens mais ricos do mundo é muito forte. Domínio estrangeiro O capital estrangeiro ataca o Brasil por etapas: na década de 60, impôs a indústria automobilística; nos anos 70, entrou com as usinas nucleares e passou a controlar a indústria farmacêutica; nos anos 80, tomou conta da computação; nos anos 90, pegou as telecomunicações, energia elétrica e autopeças; agora avança pesado no controle das sementes, na industrialização de alimentos e nas redes de varejo. Pressão contínua Mês sim, mês não, as empresas estrangeiras que assumiram os serviços públicos de energia elétrica e telefonia pressionam as agências reguladoras e as autoridades federais por novos reajustes de tarifas. Os investimentos e a qualidade dos serviços prestados caíram muito, e os usuários são tratados com desprezo. Mas os preços continuam subindo acima da inflação. Dinheiro público Privatizadas no governo Fernando Henrique Cardoso, as redes ferroviárias não melhoraram seu desempenho, não ampliaram sua participação no mercado de cargas e de passageiros, e algumas acabaram sucateadas. Agora, o BNDES deverá jogar mais R$1,5 bilhão do dinheiro público nas empresas privadas, mesmo naquelas que têm dívidas não pagas com a União. Concentração básica Para quem acha que o modelo econômico brasileiro é uma maravilha, basta ler o estudo divulgado recentemente pelo IBGE sobre a movimentação salarial dos trabalhadores. Em março de 2002, 11,1% dos empregados ganhavam até um salário-mínimo; em março de 2005, o número de empregados nessa faixa já era de 16,7%. Da mesma forma, o achatamento empurrou muita gente das faixas salariais maiores para as faixas de um a dois salários-mínimos. Autocrítica zero Em sua primeira entrevista coletiva desde que assumiu o governo federal, o presidente Lula foi poupado pela totalidade dos jornalistas presentes. Mas, questionado sobre promessas eleitorais não cumpridas e os graves problemas sociais do país, o ex-operário metalúrgico nem titubeou na declaração: “Durmo o sono dos justos todo santo dia”.

A pressão da sociedade foi fundamental para aceitação do pedido de habeas corpus Cristiane Gomes de São Paulo (SP)

D

epois de 14 dias na prisão, os sem-terra José Roberto da Silva, Hercílio Leandro, José Carlos da Silva, Maria do Ó dos Santos e Josivânia da Silva foram libertados, dia 10. O pedido de habeas corpus foi aceito pelo desembargador Petrúcio Ferreira, do Tribunal Regional Federal da 5ª região, em Recife. O Ministério Público Federal já havia solicitado a revogação da prisão dos trabalhadores e das trabalhadoras, mas o pedido tinha sido negado pelo juiz federal André Carvalho Monteiro. Os sem-terra estavam presos desde o dia 26 de abril. Convocados para comparecer à delegacia somente para prestar depoimento, receberam ordem de prisão e foram imediatamente detidos, sob acusação de cometer infrações durante a ocupação feita em março na sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Estado. Na época, cerca de três mil trabalhadores e trabalhadoras ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) montaram acapamento durante 32 dias em frente à sede do Incra, cobrando o atendimento de diversas reivindicações, entre elas a agilidade na reforma agrária. Em nota divulgada à imprensa, mais de 30 entidades da sociedade civil repudiaram a prisão política dos líderes do MST e denunciaram

Trabalhadores rurais sem-terra realizaram vigília de solidariedade aos companheiros presos

o retorno da arbitrariedade em Alagoas. “Os cinco militantes do MST são acusados de crimes que não cometeram. O que está acontecendo nada mais é do que uma represália política de setores que não aceitam o fim do latifúndio e querem intimidar as parcelas sociais que se posicionaram contra a opressão”, afirmam os representantes das entidades subscritoras da nota de solidariedade aos militantes do MST, entre os quais o sindicato dos Jor-

nalistas de Alagoas, a Procuradoria Federal e o Movimento Nacional de Direitos Humanos. Mais de 300 trabalhadores rurais ligados ao movimento permaneceram em vigília na frente dos presídios pedindo a libertação dos presos. Outros movimentos sociais ligados à luta pela reforma agrária, como Comissão Pastoral da Terra e Movimento de Libertação dos Sem Terra, além de entidades estudantis e sindicais, também manifestaram

solidariedade. De acordo com a direção estadual do MST em Alagoas, a pressão da sociedade civil foi fundamental para a decisão do desembargador Ferreira em acatar o pedido de habeas corpus. O ex-bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), dom Pedro Casaldáliga, foi um dos primeiros a manifestar sua indignação. Em carta ao desembargador, pediu “um gesto de compreensão e de liberalidade com respeito aos trabalhadores rurais”.

ENTREVISTA

Paz depende de regularização fundiária Beatriz Pasqualino de Brasília (DF) Se mantivermos o rumo de crescimento da riqueza, a reforma agrária pode avançar, na opinião do ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Nesta entrevista, o ministro também fala sobre a estreita relação entre violência no campo e reforma agrária. Segundo ele, para garantir a segurança no campo, especialmente na Amazônia, é preciso solucionar a questão ambiental e fundiária. Brasil de Fato – Dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), declarou que o agronegócio chefia crimes como o da irmã Dorothy Stang no Pará. O senhor concorda com ele? Nilmário Miranda – Não, eu não acredito. As informações que nós temos são de outro tipo. Nessa região da Terra do Meio, no Pará, são os grileiros que comandam. Eles são madeireiros ilegais e podem até ter articulação com o agronegócio, mas são grileiros que se cercam de pistoleiros. Ao mesmo tempo, são as pessoas da quadrilha dos “sudamzeiros”, ou seja, que pegavam empréstimos da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e não aplicavam, fraudavam etc. No caso de Rondon do Pará, por exemplo, uma pessoa só, um grileiro, tem um terço das terras do município. E nisso aí tem pistolagem... Agora, nas outras regiões do Pará, não sei se tem ligação com o agronegócio. BF – Como resolver a questão da violência no campo sem resolver a questão social, por exemplo, a reforma agrária? Miranda – Claro que essas coisas estão superligadas, inclusive a segurança. A questão fundiária e a ambiental, por exemplo, estão entrelaçadas naquela região. É

preciso regularizar a questão ambiental, que é o que estamos fazendo junto com o Estado do Pará. Nesses dois anos, já declaramos áreas de proteção integral milhões de hectares. Estamos fazendo também um zoneamento entre áreas de proteção integral, de desenvolvimento sustentável e de uso intensivo, onde cabem regularização fundiária e reforma agrária – que, na Amazônia, deve preservar a floresta. Então, no Pará, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) trabalha junto do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e, pela portaria 010, determinou o recadastramento das terras – o que naquela região é complicado por causa da indústria de grileiros que usam laranjas, cartórios etc. para “comprovar” a posse. Mas o Incra está resgatando as terras da União e qualquer nova concessão de uso vai ser condicionada ao projeto nosso, de ocupação racional. BF – Mesmo com poucos recursos previstos para esse ano o senhor vê perspectiva de diminuir a violência no campo? Miranda – Vejo, pois está havendo um trabalho de moralização e fortalecimento do Incra que, na verdade, estava sucateado nessa região e infiltrado por gente da indústria de desapropriações e de pagamento de altas indenizações. O Ibama também foi reforçado. E a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, coordenou a implantação das 19 bases operacionais – o chamado arco do desflorestamento – que vão conter a entrada massiva desse processo de expansão das fronteiras agrícolas até ter uma regularização e disciplinar o uso. Sobre os recursos, nós tivemos cortes em todas as áreas devido a sinalizações internacionais. Houve um contingenciamento, não são cortes definitivos. De toda maneira, a reforma agrária é irrever-

sível, é uma política de Estado no Brasil. Agora, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre falou, a reforma agrária não é uma coisa isolada. Há também outras medidas para fortalecer os movimentos sociais do campo, como o Programa de Agricultura Familiar, o Luz para Todos, o Brasil Alfabetizado etc. A reforma agrária, para Lula, não é simplesmente o assentamento na terra, são assentamentos de qualidade. BF – O que os movimentos sociais camponeses questionam é: como a reforma agrária pode ser uma política de Estado se, por causa do corte, o próprio Programa Nacional de Reforma Agrária não vai ser cumprido. Em vez de 115 mil novas famílias assentadas a previsão para 2005 é de assentar apenas 40 mil. Miranda – Isso é contingenciamento. Dependendo do desenvolver da economia, isso pode alterar. Agora, se ficar nos 40 mil, vão ser 40 mil com essa qualidade. E no ano que vem, se mantivermos esse rumo de crescimento da riqueza, vai ser mais do que esse ano. Nós também estamos frustrados em várias áreas onde esperávamos avanços maiores, como na questão dos quilombos, na questão indígena. Haverá grandes avanços mas tudo vai ficar aquém de nosso desejo porque é essa a realidade do país. BF – A CPT indica 174 pessoas ameaçadas de morte em função da luta pela terra. Como anda a política da Secretaria nessa questão? Miranda – Um avanço importante foi o lançamento do Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, inédito no Brasil. A idéia é convencer os governos estaduais de que um defensor de direitos humanos é tão importante quanto um juiz ou um promotor, por exemplo, porque também estimula a cidadania e, portanto,

Bia Pasqualino

Grande golpe O Banco Central fechou o Banco Santos com um rombo de quase R$ 3 bilhões de reais. Ficou provado que o dono, Edemar Cid Ferreira, havia criado mil operações para desviar recursos de terceiros para o seu patrimônio particular. O ladrão continua livre, leve e solto, com suas casas maravilhosas e suas coleções de artes valiosas. O crime nas elites é altamente compensador.

Débora Nunes

Fatos em foco

Quem é Secretário Especial dos Direitos Humanos, o mineiro Nilmário Miranda foi deputado estadual em Minas Gerais uma vez e deputado federal por duas vezes pelo Partido dos Trabalhadores (PT), quando ocupou o cargo de presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. deve ser protegido pelo Estado. É preciso entender que todo mundo quer ser protegido pela Polícia Federal, mas não adianta. Nós temos 700 mil policiais civis e militares no Brasil e somente 6 mil federais. Temos que fortalecer o sistema de Justiça dos Estados. É preciso lutar para que a polícia vire uma polícia de todos, dos movimentos sociais também. Ao contrário do que víamos nos anos 90, por exemplo, no governo do Lula, apesar de ser dos Estados, a Polícia Militar não mata mais. Isso é fruto desse trabalho de conscientização. A reintegração de posse em Goiânia (GO) foi um horror porque acabou com um saldo de dois mortos. Mas nós defendemos que reintegração não pode ser feita com armas de fogo. Se houver resistência, que levem balas de festim ou outros artifícios não letais. (Colaborou Nina Fideles)


7

De 12 a 18 de maio de 2005

NACIONAL O DESMONTE CONTINUA

Agora, é a transmissão de energia Projeto de Geraldo Alckmin na Assembléia prevê desestatizar a CTEEP para pagar dívidas...da privatização

G

eraldo Alckmin, governador de São Paulo, está ressuscitando uma velha prática tucana abandonada há mais de dois anos: as privatizações como instrumento fiscal. Até o fechamento desta edição, dia 10, o projeto de lei (PL) 02/2005 era o quarto item da pauta de votação da Assembléia Legislativa. Sua proposta é incluir a Companhia Transmissora de Energia Elétrica de São Paulo (CTEEP) no Programa Estadual de Desestatização (PED). O governo paulista traz, desde o período das privatizações do setor energético (1998 e 1999), uma dívida de quase R$ 11 bilhões, alocada na Companhia Energética de São Paulo (Cesp). Naquela ocasião, os passivos das empresas desestatizadas foram transferidos à Cesp de modo a saneá-las e tornálas atraentes ao capital privado. O Estado arrecadou R$ 51,76 bilhões, não pagou a dívida e, agora, a Cesp corre risco de quebrar. Se isso acontecesse, São Paulo ficaria sem luz e seria preciso achar uma solução.

cações, entre outras, foram desestatizadas sem que isso revertesse em resultados positivos para os funcionários, para a população e para o Brasil. Em todo o país, as tarifas de energia para o consumidor residencial cresceram 84% acima da inflação, entre 1995 e 2004. No setor industrial, a elevação foi de 63% e, no comercial, de 49%. Em São Paulo, ao passo em que as contas subiam, a taxa de emprego declinava. Neste mesmo período, quase 20 mil, dos 37 mil postos de trabalhos das empresas de energia foram fechados. Ou seja, 47% dos funcionários perderam seus empregos.

Evelson de Freitas/ Folha Imagem

Luís Brasilino da Redação

PERIGO

LIÇÕES

O ex-presidente Fernando Henrique e o governador Geraldo Alckimin inauguram a 10ª turbina da hidrelétrica de Rosana (SP)

Assim, em fevereiro, o governador enviou à Assembléia a proposta de privatizar a CTEEP para quitar as parcelas da dívida da Cesp que vencem ainda este ano. A Transmissora Paulista é uma empresa rentável que, em 2004, lucrou R$ 348 milhões. Por outro lado, seu preço de venda é estimado em R$ 1 bilhão, dos quais R$

640 milhões ficariam com o Estado, dono de 64% de suas ações. Inconformados com a estratégia de Alckmin, sindicatos ligados à indústria de energia e a oposição, majoritariamente petista, na Assembléia, vão tentar evitar a aprovação do PL. De acordo com Wilson Marques de Almeida, vice-

Bernardo Alencar de Belo Horizonte (MG) O déficit zero proclamado pelo governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), foi obtido por meio de um corte profundo de gastos na área social, de aumento dos impostos sobre os trabalhadores acima da inflação e da diminuição da participação do Estado na gestão de bens, ativos financeiros ou da produção, e mesmo na administração pública. Desde 2001, a receita corrente líquida de Minas cresceu 46,29%, graças ao espetacular salto na arrecadação, de uma média de R$ 840 milhões para R$ 1,264 bilhão por mês. Em 2003, o governo arrecadou R$ 10,8 bilhões, no ano seguinte, R$ 13 bilhões. Porém, o aumento do recolhimento de impostos não foi sentido na administração pública. A despesa líquida com pessoal no Poder Executivo caiu de 66,34% da receita, para 48,33%, em 2004, fato que transgride a Lei de Responsabilidade Fiscal que exige um gasto mínimo de 49%.

CARGA PESADA Três setores são responsáveis por mais de 50% da receita fiscal do Estado: telecomunicações, energia elétrica e combustíveis. Como nesses setores o índice de sonegação é menor, devido ao controle rigoroso, é neles que o governo carrega a cobrança do imposto sobre circulação de mercadorias (ICMS), elevando as alíquotas efetivas para 42,84% na conta de luz; 33,33%, na de telefone; e 33,33% sobre combustíveis. “Ou seja, a carga de impostos sobre o consumidor final continua muito alta”, analisa Lindolfo Fernandes de Castro, presidente do Sindicato dos Fiscais de Tributos do Estado de Minas Gerais (Sindifisco-MG). Ele toma como exemplo a energia elétrica para mostrar quem, efe-

tivamente, paga a conta. Em Minas, a indústria, que consome 61,96% da energia produzida, recolhe apenas 13,29% do total de impostos incidentes sobre o setor. Sendo que esse valor é embutido no preço dos produtos e repassado ao consumidor final. Já o consumo residencial, que representa 17,64% da energia produzida, responde pelo recolhimento de 41,56% do ICMS. “Para chegar ao déficit zero, de um lado, o governo mineiro congelou a folha de pagamentos do funcionalismo e os gastos sociais, de outro, a receita cresceu. O governo alterou benefícios como o adicional por tempo de serviço, e criou um modelo subjetivo de avaliação por desempenho que permite excluir aqueles benefícios”, diz Castro.

EXPLORAÇÃO Não é para menos que o diretor do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sindi-Ute/MG), Carlos Hilário, lamenta a situação dos trabalhadores na educação pública estadual. “Aqui, os professores do ensino fundamental estão recebendo menos do que o salário mínimo, precisamente R$ 212. Além disso, há uma redução no número de contratações de professores, acarretando a superexploração do funcionário e a perda na qualidade do ensino”, observa. Segundo Hilário, de fato o governo Aécio Neves não zerou o déficit, pois só com o Instituto de Previdência Social do Estado de Minas Gerais (IPSEMG), a dívida do Estado é de R$ 1,2 bilhão. “O que o Aécio fez logo que assumiu foi cortar cerca de 30% do orçamento da Secretaria de Educação. E, depois, por meio de uma propaganda falaciosa, anunciou que estava distribuindo livros didáticos, o que só serviu para amenizar o efeito negativo que sua política de déficit zero teve sobre a educação em Minas”, explica o sindicalista.

dos parlamentares que defenderem a privatização. As críticas à proposta de Alckmin se baseiam no histórico das privatizações feitas pelas gestões peessedebistas no governo federal, entre 1995 e 2002, e, em São Paulo, desde 1995. Empresas de saneamento, energia, telecomuni-

SEM-TETO

Aumenta número de moradores de rua Em Belo Horizonte, segundo informações da Pastoral de Rua, cerca de 1,5 mil pessoas moram na rua. Isso representa um aumento de 30% em relação ao último censo, de 1998, que registrava 1,2 mil moradores de rua. Associações e organizações trabalham para inserir os desabrigados na sociedade e reduzir os casos de indigência, porém encontram muitas dificuldades. Para Mery Cristina, gerente da república Maria-Maria, que abriga mulheres e filhos das moradoras de rua, “o principal obstáculo para quem trabalha nessa área é organizar e dar encaminhamentos às demandas do cotidiano dessas pessoas”. Entre essas últimas, ela cita dificuldades em arranjar moradia, resolver problemas de saúde dos desabrigados (muitos são portadores de doença mental ou viciados em drogas e alcoólatras), além da sua inserção no mercado de trabalho. “Mesmo após participar de cursos de qualificação profissional, muitos voltam para as ruas, pois não conseguem arranjar emprego e se estabelecer”, salienta Mery. Cristina Bove, representante da Pastoral da Rua, lamenta não haver uma política habitacional adequada às necessidades dos desabrigados. “Nossa principal dificuldade é conscientizar os moradores de rua de que devem ser sujeitos na transformação de suas vidas. Eles devem se organizar, lutar por moradia e dignidade, não esperar caridade”, completa.

SEM POLÍTICAS O catador e membro da diretoria da Associação dos Catadores de Papel Papelão e Material Reciclável (Asmare), Luiz Henrique, acredita, como Cristina, que “a situação dos sem-teto se deve à ausência de políticas públicas que integrem o morador à sociedade”. A seu ver, quem se dispõe a ser catador pode ganhar de um a três salários-mínimos e, além disso, contribuir para a reciclagem de lixo: “Isso é muito importante na

Giovani Pereira/ Folha Imagem

Déficit zero em Minas é farsa

presidente do Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado de São Paulo (Sinergia), estão sendo levadas à Assembléia pessoas de todo o Estado (dirigentes, militantes e aposentados) ligadas às bases de cada deputado estadual. Sua função seria denunciar, em 2006, ano de eleição, o comportamento

A privatização da CTEEP traz um complicador adicional, pois o setor de transmissão é estratégico. Wilson de Almeida, do Sinergia, cobra uma promessa feita por Mário Covas em 1996, e que foi repetida por Alckmin, na campanha eleitoral de 2002: a transmissão não pode ser vendida, pois é ela que regula a geração e a distribuição da energia, áreas já privatizadas. “Todos os últimos apagões do país começaram com problemas na transmissão em São Paulo”, ilustra Almeida. Outra preocupação é a transferência de um monopólio natural para mãos particulares. “Se o Estado quiser desenvolver determinado setor que não seja atraente para a empresa privada, podemos ter de lidar com uma contradição entre o interesse público e o privado”, explica Nilvaldo Santana, deputado estadual (PCdoB/SP).

População pobre de Minas sofre com cortes nos gastos sociais do governo tucano

nossa sociedade, hoje”. Mas nem tudo são facilidades, ressalta o diretor da Asmare: “O pessoal que compra o material que recolhemos faz um acordo e paga o mesmo preço por latas de alumínio, papelão e outros materiais”. Segundo Luiz Henrique, hoje, a Asmare é responsável por 47% do recolhimento do lixo que é destinado à reciclagem em Belo Horizonte. A Associação tem 380 catadores associados, e beneficia indiretamente 1,5 mil pessoas, que trabalham nas diversas etapas do processo da reciclagem. Além disso, explica, na Asmare, quem quer ser catador de lixo passa por oficinas de especialização para o trabalho que vai exercer.

LANCHES A R$ 1 Quando a fome aperta, a alternativa mais barata para quem tem pouco dinheiro são as lanchonetes da região central da capital

mineira. Com um real é possível comprar dois pastéis, um refresco sabor laranja ou caju, ou toma vitamina. É também possível almoçar no restaurante popular da prefeitura de Belo Horizonte. O morador de rua Fernando diz que sempre come pastéis fritos pela manhã: “Gosto desses pastéis quentinhos, que é o lanche que eu posso comprar com o dinheiro que consigo nos sinais”. Na hora do almoço, antes ele ia ao restaurante popular, mas agora não, pois a fila é muito grande e ele prefere pedir almoço em restaurantes de comida por quilo. O desempregado Geraldo Magela vai, à noite, tomar sopão no restaurante popular: “Só vou segunda e quarta porque nos outros dias sempre tem um pessoal de grupos religiosos que distribui pão com carne, sopa e uns cachorrosquentes”. (BA)


8

De 12 a 18 de maio de 2005

NACIONAL ENTREVISTA

Bush ganha um novo aliado: o Vaticano Paulo Pereira Lima

Paulo Pereira Lima da Redação

France Presse

Diante de nova ofensiva imperialista dos Estados Unidos no Oriente Médio, Bento XVI pode optar pelo silêncio, prevê teólogo

O

teólogo e sacerdote José Comblin, 82 anos, está preocupado com o rumos da Igreja Católica após a eleição do novo papa, Bento XVI, principalmente em relação a temas polêmicos, como a homossexualidade e a reprodução humana. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele – que é um dos principais expoentes da teologia da libertação, perseguida pelo então cardeal Joseph Ratzinger, quando esteve à frente da Congregação para a Doutrina da Fé – se diz preocupado com uma possível aliança entre o presidente dos Estados Unidos George W. Bush e o Vaticano ao redor desses assuntos, em troca de um silêncio frente a novas ações imperialistas estadunidenses no mundo. Para o teólogo, o fato de Bento XVI ter colocado nas mãos do cardeal Angelo Sodano dois importantes cargos da cúria romana: o de secretário de Estado (espécie de primeiroministro) e o de decano dos cardeais, reforça o conservadorismo no novo pontificado. Sodano passa a ser a segunda pessoa mais importante na hierarquia e, no caso da morte do sumo pontífice, presidirá o conclave dos cardeais para a eleição de um novo papa. O cardeal tem um perfil bastante conservador e tradicionalista em questões polêmicas como aborto, controle de natalidade e a participação das mulheres na Igreja Católica. É ligado à Opus Dei, organização católica ultraconservadora. Foi núncio apostólico em Santiago do Chile de 1978 a 1988, durante a ditadura do general Augusto Pinochet, condecorado duas vezes pelo amigo ditador. Brasil de Fato – Como será a Igreja Católica sob o comando de Bento XVI? José Comblin – Vamos ver as decisões que ele vai tomar. No entanto, já dá para afirmar que ele significa a continuidade, quer dizer, continua o mesmo sistema, a mesma administração e as mesmas prioridades. Além do mais, não esqueça, ele é um teólogo. Um teólogo geralmente não tem muitos planos, projetos, fica muito confinado nos assuntos teóricos, abstratos. Por isso, não creio que haverá mudanças. Se houver alguma, vai ser para pior em relação aos temas ligados à sexualidade, à família, à reprodução humana. São essas as prioridades de Roma hoje. BF – De alguma forma, isso o preocupa? Comblin – O que me preocupa realmente é uma possível aliança com Bush ao redor dessas questões. Tal aliança estaria ligada fundamentalmente a isso. Pela primeira vez, os católicos estadunidenses, em sua maioria, votaram num republicano com propostas ultraconservadoras em relação aos mesmos temas que defende o papa. BF – Por que o Vaticano estaria interessado numa aliança com Bush? Comblin – Bush representa forças religiosas de direita e tem um plano religioso, mas não é isso o que interessa ao Vaticano. O que interessa é a política dele contra o aborto, contra todas as transformações e manipulações biológicas, o que o leva a ser muito tradicional e conservador em matéria de sexualidade. Hoje em dia, fala-se cada vez mais de uma ofensiva dos EUA no Irã. Será que o Vaticano vai se opor a isso? Não creio que haverá muita oposição, quer dizer, serão feitos mil discursos pela paz e contra a guerra, mas no fim concordará com tal ação militar em mais um país do Oriente Médio e muçulmano.

Quem é José Comblin, 82 anos, nasceu em Bruxelas (Bélgica). Foi ordenado sacerdote em 1947. Trabalha na América Latina desde 1958 e foi um dos assessores de dom Hélder Câmara. Teólogo de larga experiência, lecionou no Equador, Chile e Brasil. Reside há duas décadas em Bayeux, interior da Paraíba. Em maio, lançou dois novos livros de uma vasta obra bibliográfica, O caminho, ensaio sobre o seguimento de Jesus e O que é a verdade? , ambos pela Editora Paulus. Papa Bento XVI reforça o conservadorismo na Igreja ao dar cargo de destaque ao cardeal Sodano, amigo de Pinochet

BF – Como avalia a nomeação do cardeal Angelo Sodano para secretário de Estado do Vaticano e, ao mesmo tempo, decano dos cardeais? Comblin – Isso só reforça o conservadorismo na Igreja e indica como será daqui pra frente. Sodano é aquele que fez uma intervenção diplomática junto ao governo inglês para pedir a libertação do Pinochet (ditador chileno entre 1973 e 1987), quando estava preso em Londres. Então ele fez uma intervenção que deveria permanecer secreta e confidencial, mas um cardeal chileno revelou e tornou-se um escândalo. Quando o Pinochet celebrou os 50 anos de casamento, o papa João Paulo II lhe mandou uma carta autografada, coisa que um papa quase nunca faz na vida, só se for para um rei ou coisa parecida. Sodano acrescentou um bilhete dizendo que tal carta era uma prova da alta estima que o papa tinha pelo ditador. Esses dois exemplos definem bem o papel político de Sodano, que, não esqueçamos, dirigiu os trabalhos para a eleição de Bento XVI.

Torço para que não venha nenhum concílio, porque seria um desastre. Imagine todas as televisões do mundo glorificando o poder do papa BF – O senhor acredita que movimentos católicos ultraconservadores, como a Opus Dei, terão um campo mais fértil para semear suas doutrinas? Comblin – Acho que sim e, sobretudo, porque Bento XVI terá que enfrentar um problema teológico fundamental, que é a relação entre o cristianismo e as outras religiões. É o que está no centro do debate teológico. Quando esteve à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, o papa já tinha condenado rigorosamente as outras religiões, defendendo a primazia do cristianismo. Agora, será tolerante? Buscará o diálogo com as outras religiões? Pode ser, mas é duvidoso. O mais provável é que ele vai se sentir pressionado por movimentos conservadores

para ser ainda mais duro, marcar mais as fronteiras, a separação clara entre o cristianismo e as outras religiões. BF – Por que movimentos como a Opus Dei são malvistos? Comblin – Primeiro porque é um movimento de gente de classe alta. Para eles, o centro do cristianismo está em o cristão se santificar pelo trabalho profissional. O importante é desempenhar da melhor forma possível a sua carreira. Não há qualquer alusão a uma preocupação pelos mais pobres. São completamente alheios a qualquer pensamento social. Isso é o paraíso neoliberal: cada um cuida de sua carreira, de sua vida; não se importando com a miséria e o sofrimento dos outros. Outro elemento importante é que procuram preservar a sua identidade católica a todo custo. Não questionam dogmas nem a moral. Não estão abertos ao diálogo. Eles estão fora da história e querem que a Igreja também fique fora da história, dos conflitos, e não tome partido diante de invasões como as patrocinadas por Bush. BF – O senhor participa de um movimento que pede a realização de um novo concílio para reformar a Igreja. Isso será possível com o novo papa? Comblin – Na verdade, ando muito preocupado com isso. Um novo concílio com esse papa, o que vai acontecer? Ele vai impor todo o seu rigor; o contrário do que fez o papa João XXIII, que deu início aos trabalhos do Concílio Vaticano II. João XXIII não quis intervir, deu liberdade completa. Não seria o caso desse novo papa. Um novo concílio nas condições atuais seria uma cerimônia de exaltação de poder do papa. Torço para que não venha nenhum concílio, porque seria um desastre. Imagine todas as televisões do mundo glorificando o poder do papa. Já basta, já tivemos bastante cerimônias. BF – Como a mídia, em geral, se comportou diante das cerimônias da eleição do novo papa? Comblin – É claro que João Paulo II tinha um dom de vedete, era o interlocutor ideal da mídia. Ele se apresentava com gestos espetaculares: beijava as crianças, beijava o chão quando chegava, coisas que não significam nada, mas que para mídia, são muito significativas. Mostrar um papa inclinado

beijando o chão é espetacular. Ele tinha o dom do espetáculo. Dizem os especialistas em mídia que a televisão tende justamente a criar vedetes, a concentrar toda atenção em numa única pessoa e criar os super-heróis. Esses merecem um destaque tão grande que os outros nem aparecem. Desde o pontificado de João Paulo II, a televisão deixou de lado todos os outros bispos.

A principal preocupação do PT atualmente não é a formação do poder popular, mas as eleições do próximo ano BF – Quais são os grandes temas que deveriam nortear a produção dos teólogos da libertação? Comblin – Oficialmente, pelos olhos do Vaticano, a teologia da libertação morreu e, por isso, não preocupa mais. Mas, eu acho que, de modo geral, os teólogos não enfrentaram ainda o sistema dominante. Até alguns anos atrás, muitos católicos viam no Partido dos Trabalhadores (PT) e em outros partidos de esquerda um instrumento para a construção de uma nova sociedade. Mas, no Brasil, e também em outros países, está ficando claro que o PT e demais partidos não vão fazer nenhuma transformação social. No caso do Brasil, o PT ficou prisioneiro do sistema que combatia. Inclusive, hoje, está em discussão se pode existir um partido que, por meio de eleições, realmente consiga promover uma transformação social. O fato é que se não existir uma força popular real para contrabalancear os poderes dos bancos e das corporações, não existirá mudanças. Nesse sentido, é muito importante a experiência do presidente venezuelano Hugo Chávez, que vem enfrentando as ofensivas da direita, da grande mídia, dos Estados Unidos e das corporações. E lá milhões descem os morros para apoiá-lo. Aqui, não. A principal preocupação do PT atualmente não é a formação do poder popular, mas as eleições do próximo ano. Em dois anos e meio de governo Lula, minha maior surpresa é que, toda vez que o presidente aparece no meio

dos trabalhadores é para pedir paciência. Em vez de criar um poder popular, ele faz o contrário, conclama à desmobilização das massas. O que foi o 1º de Maio senão um grande Carnaval? BF – E qual seria a saída para esse enfraquecimento do movimento popular que o governo está causando? Comblin – O presidente teria que fazer como Kirchner na Argentina e decidir renegociar a dívida externa a partir de outros patamares. Se, por exemplo, decidisse pagar só 25% da dívida, certamente o mundo financeiro ficaria indignado, mas provalvelmente conseguiríamos reunir mais de 10 milhões de pessoas na Avenida Paulista, na frente dos bancos, para apoiar o presidente, como aconteceu na Venezuela. Lula, porém, fez exatamente o contrário. É preciso construir um poder popular amplo, capaz de mobilizar milhões e milhões. É lamentável dizer, mas precisaremos de outros vinte anos para reconstruirmos a esperança do povo. BF – Em sua avaliação, a esquerda está em crise de identidade? Comblin – É claro, porque quem já foi desiludido, não recomeça, não se lança em outra coisa. Pior. Se deixa levar pelo sistema. Por isso, minha esperança está numa outra geração, que não fez essa experiência, que não teve essa desilusão. E isso significa vinte anos para preparar essa geração, começando com os jovens de agora. BF – E os teólogos da libertação, o que pretendem fazer diante de uma Igreja ainda mais conservadora e desse quadro político de desânimo? Comblin – Temos de nos aproximar ainda mais dos movimentos sociais e populares. É essa a saída. É preciso fazer teologia fora da Igreja, porque nessa conjuntura não dá mais. É a partir do trabalho com os movimentos populares que vamos ver quais são as palavras, os gestos e as ações que esse povo sofrido está desejando para aumentar seu poder de mobilização. Os movimentos populares constituem a base de uma aliança, de um conjunto de forças futuras. Também acho que o futuro da teologia da libertação está mãos dos leigos porque os sacerdotes estão muito reduzidos à sacristia, ao culto simplesmente.


Ano 3 • número 115 • De 12 a 18 de maio de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO GEOPOLÍTICA SUL-SUL

Pelo direito de lutar contra o império Claudia Regina Paiva de Brasília (DF)

E

nquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu adotar um discurso comercial na abertura da Cúpula América do Sul-Países Árabes, realizada entre os dias 9 e 11, em Brasília, os representantes dos países árabes assumiram um tom político e foram bastante aplaudidos pelos convidados presentes ao encontro. O presidente da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, o secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, e até o presidente do Peru, Alexandro Toledo, destacaram em seus discursos a defesa de um mundo multilateral, a criação de um Estado palestino, com a saída de Israel dos territórios ocupados, e a escolha democrática de um presidente para o Iraque. Esse último pedido, feito por Bouteflika, deixou o presidente iraquiano Jalal Talabani – sentado a poucos metros do presidente argelino – numa situação desconfortável, já que fora eleito recentemente pelo voto de um povo que tem a sua nação ocupada por tropas estrangeiras. O presidente Lula destacou a necessidade de se estabelecer no mundo um modelo de comércio mais justo, que assegure a todas as nações os benefícios da globalização. “Queremos desenhar uma nova geografia econômica internacional criando novos rumos para o desenvolvimento”, disse. Segundo o presidente, estabelecendo novas vias de comércio com autonomia e ousadia, as necessidades dos países em desenvolvimento terão maior peso para as nações mais poderosas. “Não estamos aqui reunidos somente em função de obter vantagens, mas também porque queremos que a voz dos países em desenvolvimento seja ouvida”, resumiu. Lula acrescentou que a cúpula atende à necessidade de se fortalecer no mundo o espaço po-

Ricardo Stuckert/PR

Líderes árabes criticam Estados Unidos e Israel e reafirmam resistência às invasões na cúpula com sul-americanos

Em encontro histórico, presidentes de países árabes e sul-americanos estreitam laços comerciais e defendem o direito à resistência dos povos

lítico que contribua com a paz, a democracia e a justiça social.

Árabes devido ao fato de exercer também a presidência da Liga Árabe, que reúne 22 países-membros. O secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, por sua vez, lembrou que o documento oficial da Cúpula, ao ratificar a decisão de combater o terrorismo, não poderia deixar de reconhecer o direito dos povos de resistir à ocupação. Houve rumores de que esse ponto estaria “legitimando” alguns tipos de terrorismo. Representando a Comunidade SulAmericana de Nações, o presidente do Peru, Alexandro Toledo, defendeu um mundo multilateral, onde a democracia e o Estado de Direito garantam um modelo de desenvolvimento social mais justo, independentemente das diferenças. “Devemos orientar o nosso encontro para a criação da zona livre de comércio, tudo dirigido para o desenvolvimento da justiça e em busca de um tipo

PALESTINA O presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika, destacou os esforços utilizados pelos países das duas regiões para construírem um desenvolvimento econômico equilibrado, por meio do Estado de Direito, onde os recursos sejam distribuídos com justiça. Ao destacar que as questões econômicas deverão ter a importância que merecem na Cúpula, o presidente argelino lembrou, porém, ser essencial a discussão política de temas que envolvem diretamente a segurança mundial. “Não podemos mais aceitar a situação do povo palestino. Queremos que Israel se submeta às determinações internacionais e aceite a paz negociada”, defendeu. Bouteflika é co-presidente da Cúpula América do Sul-Países

Ricardo Stuckert/PR

EUA ficaram contrariados

Lula e Abu Mazen: cúpula condenou ocupação do território palestino

Não foi à toa que parte da imprensa brasileira tentou dar a impressão de que a Cúpula América do Sul-Países Árabes estava esvaziada. Segundo o deputado Jamil Murad (PCdoB-SP), essas notícias estariam partindo dos estadunidenses e até dos israelenses. O parlamentar afirma que eles estavam interessados, primeiro, em impedir a realização da Cúpula; depois, queriam participar como observadores e, finalmente, tentaram impor os temas de discussão. “Não conseguiram e ficaram pregando o esvaziamento”, avaliou. Para ele, o encontro realizado em Brasília entre os dias 9 e 11 é vitorioso somente pelo fato de existir e se tornou um fato histórico. “Quando possibilitamos a reunião de 34 países, estamos propondo a mudança de pauta do império que almeja se dedicar apenas ao terrorismo. Enquanto isso, sugerimos um desenvolvimento com rosto humano, paz e justiça social”, disse o deputado. Murad defendeu o fortalecimento

das Nações Unidas com o intuito de se favorecer o multilateralismo e a paz, afirmando ser natural que num encontro entre nações árabes se discuta a questão palestina Para o secretário Especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, o encontro entre países da América do Sul e árabes representa uma “chance ímpar de se discutir soluções para problemas sérios por meio da mediação pacífica dos conflitos”. Para Miranda, questões como o terrorismo possuem destaque em qualquer discussão realizada entre as nações do mundo inteiro. O secretário citou exemplos – como o da Argélia, que permaneceu na luta armada durante mais de um século até reconquistar a soberania, depois de ser ocupada pelos franceses – para afirmar que, em algumas ocasiões, os ataques terroristas são a única opção de se atingir a democracia. “Muitos dos que hoje estão inseridos em modelos democráticos também já estiveram na luta armada”, disse. (CRP)

de globalização que só será viável se dermos a ela um rosto humano”, disse o presidente peruano, aplaudido pelo público. Toledo, cujo mandato se encerra no próximo ano, está em dificuldades no seu país onde possui apenas 4% de aprovação.

MULTILATERALIMO O teor do documento oficial da Cúpula, intitulado Declaração de Brasília, fechado há cerca de dois meses, no Marrocos, levanta questões que ainda não haviam encontrado consenso no primeiro dia da Cúpula (fechamento desta edição), como o reconhecimento dos direitos dos povos de resistir à ocupação, a defesa do multilateralismo e a condenação das sanções estadunidenses contra a Síria. A Argentina saiu vitoriosa do encontro ao conseguir incluir, no documento final, a histórica

reivindicação pela soberania sobre as ilhas Malvinas. Mereceu destaque também no primeiro dia de Cúpula a assinatura do Acordo-Quadro de Cooperação Econômica entre os países da América do Sul e árabes. Entre 2003 e 2004, as exportações brasileiras para os países árabes aumentaram 47%. Para o chanceler brasileiro, Celso Amorim, o acorIlhas Malvinas do propiciará a - Ocupadas pelos ingleses em 1833, ampliação da o território foi incluíexportações. Sedo recentemente rá criado um na Constituição da União Européia comitê integra(UE) como pertendo que vai aprocente à Grã-Brefundar o ententanha. A Argentina dimento entre os tentou recuperar militarmente as grupos particiilhas Malvinas pantes para a reaem abril de 1982, lização de um quando morreram 649 argentinos e acordo de livre255 britânicos. comércio.

Enfim, nasce a Petrosul da Redação Os presidentes da Argentina, Brasil e Venezuela assinaram, dia 10, um acordo de cooperação no setor energético criando a Petrosul. O acordo especifica parcerias entre as estatais petrolíferas dos três países, nos projetos de prospecção, refino e transporte e construção de navios O anúncio foi feito pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, e envolve a Petrobras, PDVSA (estatal da Venezuela) e a Enesa (estatal recém-criada na Argentina). De acordo com Chávez, os últimos detalhes para a criação da Petrosul foram acertados durante o jantar oferecido dia 9 pelo presidente Lula. Segundo o presidente venezuelano, um dos primeiros desafios será

ajudar a Argentina a recuperar os investimentos da Enasa. “Já temos alguns projetos específicos que precisam ser definidos de estudos (para prospecção) na Venezuela, refinação no Brasil e exploração na Argentina”. Segundo Marco Aurélio Garcia, assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, além da Petrosul, os presidentes dos três países discutiram fórmula para avançar no financiamento de empresas. De acordo com ele, estão sendo analisadas questões jurídicas para que o próprio BNDES comece a atuar nesses financiamentos. O embaixador da Argentina, Juan Pablo Lohlé, conta que o presidente Néstor Kirchner embarcou satisfeito com as negociações da Cúpula e o

país está disposto a apoiar as “conversas e propostas para dar continuidade à Petrosul”. A ministra Dilma Rousseff revelou que, há dois meses, os ministros dos três países têm tido vários encontros com a finalidade de elaborar a chamada Petrosul. A iniciativa tem como objetivo articular e coordenar políticas na área de energia, compreendendo combustíveis, eletricidade, eficiência energética, cooperação tecnológica, entre outros segmentos. O importante, conforme salientou a ministra, “primeiro é uma autoconsciência enorme de que somos um todo. Você começa a olhar a estrutura energética com olho de integração, e não com o olho exclusivo do seu país”. (Agência Radiobrás, www.radiobras.gov.br)

As relações Brasil-Argélia O presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika, teve a função de co-presidir a Cúpula América do Sul-Países Árabes, como presidente da Liga Árabe, entidade que reúne 22 países membros. No Brasil, pouco se fala da Argélia, país localizado no norte da África e que já sofreu invasão estrangeira. A Argélia é, hoje, o primeiro parceiro comercial do Brasil no mundo árabe. Depois da Cúpula, Bouteflika fará visita oficial ao país. Em 2004, as exportações argelinas para o Brasil alcançaram cerca de 2 bilhões de dólares, enquanto as vendas brasileiras chegaram a 350 milhões de dólares, um aumento de 126% em relação a 2003. O país africano teve relações

estreitas com o Brasil, sobretudo na ditadura militar, quando recebeu um dos nomes mais destacados da política nacional brasileira, o ex-governador Miguel Arraes. Hoje, presidente nacional do PSB, Arraes chegou em Argel, a capital argelina, em 1965, e lá permaneceu por 14 anos.

DIREITOS IGUAIS “Quando cheguei, o país tinha conquistado a independência três anos antes e lá encontrei alguns brasileiros, entre eles, o comandante Maurício Seidl, oficial da Força Aérea Brasileira (FAB), que depois viria a se orgulhar de possuir o brevê número um expedido pela Argélia”, disse o presidente do PSB. Segundo Arraes, esse fato de-

monstra que brasileiros e argelinos foram tratados com direitos iguais no período em que permaneceram no país. “Creio que éramos tratados com deferência, tanto pelo governo quanto pela população”, disse Arraes. Também na Argélia é possível apreciar a arquitetura do nosso gênio Oscar Niemeyer, outro que foi recebido pelos argelinos durante a ditadura militar brasileira. Apoiado pelos arquitetos Newton Arakawa e Cláudio Queiroz, Niemeyer criou as linhas arrojadas da Universidade de Constantine, projetada de uma maneira que facilita a circulação dos alunos. “É um dos meus projetos mais importantes no exterior”, disse o arquiteto. (CRP)


10

De 12 a 18 de maio de 2005

AMÉRICA LATINA URUGUAI

Um triunfo histórico da esquerda da Redação

A

esquerda no Uruguai obteve um desempenho histórico nas eleições do dia 8. Primeiro, conseguiu reter pelo quarto período consecutivo o governo de Montevidéu. Além disso, de forma inédita, o partido Frente Ampla (FA) venceu em 8 dos 19 departamentos (Estados). “Isto não estava previsto, superou todas as expectativas”, expressou o analista político Oscar Botinelli ao comentar as eleições. A surpresa foi grande, sobretudo para os direitistas do Partido Nacional (PN) que, até então, pareciam não dar importância para os avanços das forças progressistas na nação sul-americana. Tradicionalmente, nos processos eleitorais do Uruguai, prevalecia um bipartidarismo de centro-direita, já que o PN e o Partido Colorado costumavam dominar a cena política. Essa situação foi quebrada com a vitória de Tabaré Vázquez, eleito em 2004 pela Frente Ampla. Batizada de Encontro Progressita – Frente Ampla – Nova Maioria, a coalizão reúne ex-guerrilheiros, socialistas, comunistas e outros setores de esquerda e de centro-esquerda. Criada em 1971, tenta consolidar alianças políticas com expressão eleitoral. Desde seus primeiros passos até a atualidade, a Frente Ampla tem insistido na unidade dos partidos de orientação democrática e progressista frente ao domínio de uma oligarquia em cumplicidade com o poder do capital. Em sua base programática, constam compromissos de transformar o Uruguai em um país justo, com sentido nacional e progressista, livre da tutela imperial.

Dario Freire/AFP/Folha Imagem

Partido do presidente Tabaré Vázquez supera expectativas e vence eleições em 8 dos 19 Estados uruguaios

Oscar de los Santos, da Frente Ampla, venceu as eleições para governador de Maldonado: esquerda comemora vitória em 8 dos 19 Estados

atual presidente venceu em departamentos que concentram 75% da população do país. O eixo da campanha da esquerda foi a necessidade de mudanças em um país em que a pobreza atinge um terço da população de 3,4 milhões de habitantes e que pelo menos 12% está desempregada. A Frente Ampla manteve o controle de Montevidéu, onde o comando passará para o cientista Ricardo Ehrlich, de 56 anos de idade, filho de polacos. Em sua juventude, Ehrlich militou na guerrilha Tupamaros e esteve preso um ano antes do golpe de Estado de 1973 que impôs uma ditadura de 12 anos.

MUDANÇAS Os resultados das eleições do dia 8 ratificaram um apoio expressivo da população uruguaia à agenda da Frente Ampla. A coalizão do

O cientista viveu na Argentina, exilou-se na França e foi um dos articuladores da instalação no Uruguai do Instituto Pasteur de Paris. Seus discursos tinham como foco a superação da “fratura social” que existe em Montevidéu.

GEOGRAFIA POLÍTICA Entre as regiões do país, merece ênfase a vitória da Frente Ampla no cordão turístico de Canelones, Maldonado (com seu exclusivo balneário Punta del Este) e Rocha, na fronteira com o Brasil. A esquerda também saiu vencedora em Florida e em Trinta e Três – regiões que se destacam pela

VENEZUELA

Os dois países voltam a estreitar relações Gerardo Arreola* de Havana (Cuba)

Ricardo Stuckert/PR

As companhias transnacionais petrolíferas que trabalham na Venezuela terão que pagar suas dívidas – com juros e de modo retroativo – ou deverão ir embora do país. O recado foi anunciado pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, dia 8, em seu programa radiotelevisivo dominical “Alô Presidente” transmitido para todo o país. O governo acusa as companhias petrolíferas de evasão de impostos, violação de acordos comerciais e de falta de transparência em seus negócios. O mandatário venezuelano informou que deu “ordens à PDVSA (estatal venezuelana) e ao Seniat (órgão recolhedor de impostos) para efetuar uma cobrança de forma retroativa, e com juros, de tudo o que as transnacionais do petróleo nos devem”. Chávez disse também que, se as companhias não pagarem suas dívidas, “deverão ir embora daqui, (porque) têm que cumprir as leis venezuelanas”. O presidente explicou que boa parte das transnacionais do petróleo que trabalham na Venezuela pratica evasão fiscal e sonega impostos. Recentemente, o ministro do Petróleo, Ali Rodriguez, informou que a dívida das empresas pode chegar a 2 bilhões de dólares. Em seu programa “Alô Presidente”, Chávez acrescentou que não vai aceitar o argumento das transnacionais para justificar suas

colorados, tem perdido vigor econômico e a qualidade de vida de seus habitantes tem piorado gravemente. Já Maldonado é o terceiro departamento uruguaio em população. Os novos prefeitos eleitos vão assumir seus cargos no próximo dia 1º de junho e governarão por um período de cinco anos. O domínio do Partido Nacional nos departamentos uruguaios caiu, de 13 para 10 regiões. Já o Partido Colorado venceu em apenas um departamento, Riviera. Participaram do pleito 84% dos cerca de 470 mil eleitores uruguaios. (Com agências internacionais)

CUBA E ARGENTINA

As transnacionais do petróleo, na mira de Chávez da Redação

forte produção agropecuária – e os ricos municípios agroindustriais e turísticos de Salto e Paysandú. Milhares de pessoas saíram às ruas para comemorar o resultado em alguns departamentos. De acordo com a analista Mariana Pomes, da consultoria Cifra, já se havia verificado em outubro de 2004 uma elevação no número de votos da esquerda no interior do país. Canelones fica próximo a Montevidéu e se trata do mais importante departamento do país, sendo o segundo mais populoso. A região divide com a capital a mesma zona metropolitana e, depois de 10 anos de gestão dos

Chávez se encontra com Lula e Kirchner para reforçar as alianças entre os países

dívidas. As empresas alegam que estão tendo prejuízos com as operações na Venezuela. O presidente afirmou que esse argumento é uma “farsa” que seu governo não pretende tolerar, rebatendo que o negócio do petróleo não dá perdas em nenhum lugar do mundo.

PRESSÃO O Poder Legislativo também está apertando o cerco contra as transnacionais. Dia 7, a Assembléia Nacional da Venezuela anunciou que fará uma investigação dos convênios de trabalho operativos assinados pelo Estado com empresas transnacionais porque a Venezuela não estava arrecadando tudo o que devia. Segundo Nicolás Maduro, presidente da Assembléia

Nacional, as transnacionais violam as cotas de exploração do petróleo bruto, não pagam impostos e não cumprem várias leis referentes aos hidrocarbonetos no país. O Ministério de Energia, por sua parte, havia estipulado que em abril deste ano os convênios operativos com as transnacionais seriam transformados em função das perdas que têm gerado aos venezuelanos. Algumas das companhias que trabalham na Venezuela por meio desse tipo de acordo são: a estadunidense ChevronTexaco, a britânica British Petroleum, a espanhola Repsol YPF, a francesa Total-Fina, a brasileira Petrobras, a holandesa Shell e a Corporação Nacional de Petróleo da China. (Com agências internacionais)

Cuba e Argentina intensificaram relações bilaterais, retomando sua cooperação com a assinatura de dez acordos e a identificação de mais de 80 projetos passíveis de intercâmbio econômico, tecnológico e social, durante a segunda missão mista de cooperação cubano-argentina. Enquanto os representantes dos dois países subscreviam acordos e projetos conjuntos durante o encontro que terminou dia 29 de abril, em Havana, o presidente Fidel Castro voltava a fazer duras críticas à Organização dos Estados Americanos (OEA). Ele propôs sua “dissolução”, por considerar que a instituição não passa de um “ministério de colônias”, papel que chama de “sujo”. “Este é o primeiro passo na retomada de nossas relações, sobre bases mais promissoras”, assinalou Raúl Taladrid, secretário executivo do Ministério de Investimentos Estrangeiros e Colaboração Econômica de Cuba. Os convênios firmados com Cuba se destinam a implementar outros previamente acordados, informou Carlos Esteban Kulikowski, subsecretário de Coordenação e Cooperação Internacional do Ministério das Relações Exteriores e Comércio Internacional da Argentina. Entre os setores incluídos nos acordos destacam-se os de açúcar, agricultura, pecuária, indústrias siderúrgica e mecânica e educação. As relações entre Argentina e

Cuba voltaram a se estreitar em 2003, com a posse do atual presidente argentino Néstor Kirchner. Até então, estavam paralisadas desde a década de 90. Há, inclusive, insistentes rumores sobre uma visita de Kirchner à ilha em fins de maio, princípio de junho.

CRÍTICAS À OEA Em outra de suas habituais alocuções transmitidas por rádio e televisão, Castro declarou que “ao invés de ficar criticando Cuba sem fundamento, o que os funcionários da OEA deveriam discutir é quando acabar com esta sujeira, mudar de nome e deixar de ser um garoto de recados dos Estados Unidos”. O presidente cubano ressaltou que, hoje, “é cada vez maior o número de nações que não se subordinam aos ditames de Washington”. E manifestou “respeito” pelas declarações recentes do presidente Ricardo Lagos, do Chile, segundo as quais Cuba continua sendo membro da OEA, e que é sua a cadeira na organização que está vazia, pois Cuba foi expulsa em 1962. Contudo, Castro disse que “a ausência daquela cadeira nos livrou de muitas vergonhas, muitos crimes”. Na primeira semana de maio, o segundo homem forte de Cuba, Raúl Castro Ruz, encerrou viagem de trabalho de três semanas à Ásia, cumprindo uma missão civil. Durante 22 dias, ele visitou a China, Laos, Malásia e Vietnam. (*Correspondente do La Jornada em Havana, www.lajornada.unam.mex)


11

De 12 a 18 de maio de 2005

INTERNACIONAL IRAQUE

O governo democrático do faz-de-conta João Alexandre Peschanski da Redação

O

Iraque se tornou um país democrático. Pelo menos é isto que o governo estadunidense, por meio do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, e o primeiro-ministro iraquiano, Ibrahim Yafari, têm dito a quem lhes pergunta. Referem-se, entusiasmados, ao 28 de abril, quando 180 dos 185 deputados que compõem o Poder Legislativo do Iraque aprovaram uma lista com 36 nomes para integrar o governo. Em declaração oficial, dia 2, Rumsfeld congratulou o povo iraquiano pelo sucesso institucional. Afirmou ainda que, como fez nos três meses de negociações entre os parlamentares e Yafari, que culminaram na formação da lista de nomes, o governo estadunidense vai colaborar para consolidar a democracia iraquiana. Surge aí o primeiro problema de semântica: para Rumsfeld, o que é colaborar? O governo estadunidense, que ocupa militarmente o Iraque desde 2003, teve um papel decisivo na escolha dos integrantes do Executivo do país. É o que denuncia, em entrevista ao Brasil de Fato, por correio eletrônico, Omar Qasri, da Federação de Trabalhadores Iraquianos, entidade sediada em Faluja, região central do Iraque. “Democracia é o governo do povo para o povo. O governo de Yafari é dos estadunidenses para atender aos interesses dos estadunidenses. O povo iraquiano não tem poder”, comenta.

Cris Bouroncle/AFP/ Folha Imagem

Em acordo com deputados, o primeiro-ministro iraquiano, Ibrahim Yafari, montou um gabinete pró-estadunidense

Soldados estadunidenses prendem e assassinam iraquianos numa das maiores ofensivas em 2005

O principal critério para a escolha dos ministros e secretários que integram o novo governo, comenta Qasri, não foi a soberania, mas o vínculo que os políticos têm com os representantes estadunidenses no Iraque. Em cinco ministérios - Defesa, Direitos Humanos, Eletricidade, Indústria e Petróleo - Yafari não conseguiu articular um titular. Em saia justa, o primeiro-ministro assumiu o cargo de ministro da Defesa e deixou os outros para indicação de

representantes estadunidenses. A pasta do Petróleo, considerada chave, já que o recurso é a base da economia iraquiana, ficou, provisoriamente, com o empresário iraquiano-estadunidense Ahmed Chelabi, um dos homens fortes do governo de George W. Bush no Iraque. “De que adianta ter ministros, como no caso de Chelabi, se eles não defendem a soberania do Iraque? Querem que a ocupação do país pelas tropas estadunidendes

continue”, afirma Qasri. Yafari recebeu a anuência dos parlamentares para governar sem ter titulares em todas as pastas. Tem, entretanto, até o dia 7 de junho para completar seu gabinete. Se não cumprir o prazo, os deputados podem pedir a dissolução do governo.

QUEM É QUEM Segundo o representante da Federação de Trabalhadores Iraquianos, Yafari e o presidente do Iraque,

Jalal Talabani, são “tuteladores” do governo dos Estados Unidos no país. Ou seja, “são oportunistas que fazem qualquer coisa para se manter no poder, até mesmo se vender aos inimigos de seu povo. O governo não foi formado para representar os interesses da população, foi uma negociata entre algumas figuras da política iraquiana e representantes estadunidenses”. Um perfil dos governantes iraquianos, feito pelo pesquisador iraquiano Ghali Hassan e publicado na página da internet da entidade canadense Centro de Estudos sobre a Globalização (www.globalresearch.ca), Talabani é descrito como “um aproveitador do poder”. Isto porque, apesar de ser ex-aliado de Sadam Hussein, deposto pelas tropas estadunidenses que ocupam o Iraque, manteve influência no governo interino, até chegar à Presidência. Sua principal preocupação, segundo o perfil, é articular a administração da exploração dos poços de petróleo iraquianos por corporações estrangeiras. De acordo com a pesquisa de Hassan, o primeiro-ministro não é conhecido da população iraquiana. Viveu grande parte de sua vida na Inglaterra e não conhece o país que administra. Para facilitar seu trabalho, o ex-interventor estadunidense no Iraque, Paul Bremer, redigiu um documento com 100 orientações para realizar um bom governo. Entre elas, a progressiva privatização das fontes de petróleo que existem no Iraque.

Atentado à ONU ou assassinato de Vieira de Mello? Gilda Vieira de Mello é uma lúcida e enérgica brasileira de 86 anos que não acredita mais em ninguém, nem em Deus. Seu filho, Sérgio Vieira de Mello, foi assassinado em Bagdá, no dia 19 de agosto de 2003, junto com 21 funcionários das Nações Unidas. O carioca Vieira de Mello era o Alto Comissário para os Diretos Humanos das Nações Unidas, mas foi enviado ao Iraque, durante quatro meses, como representante especial de Kofi Annan, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Ele foi a Bagdá para preparar o processo de transição política logo após o início da guerra e da ocupação estadunidense no Iraque. “Era mesmo Sérgio quem eles queriam atingir. A bomba explodiu exatamente na frente do escritório dele”, afirma ao Brasil de Fato Carolina Larriera, funcionária da ONU em Bagdá e companheira do diplomata. Um dos muitos mistérios que envolvem a morte de Vieira de Mello é que ninguém reivindicou a ação terrorista contra a ONU. Foi a Casa Branca que solicitou à ONU que enviasse Vieira de Mello a Bagdá, escreveu Sandro Cruz (Qui a tué Sergio Vieira de Mello, Réseau Voltaire), diretor da agencia IPI e da editora Timéli, baseada em Genebra. E isso confirmaria a tese de que ele foi assassinado por seguidores de Sadam Hussein ou de Al Qaida. Brasil de Fato – Barbara Crossette, ex-chefe do The New York Times na ONU, declarou que acusações recentes feitas contra Kofi Annan seriam uma campanha contra a organização, conduzida pela direta republicana estadunidense. A senhora concorda com isso? Carolina Larriera – Pela natureza das acusações, diria que não. Segundo esse raciocínio, também se poderia dizer que o atentado contra a ONU em Bagdá seria uma manobra estadunidense

Loescher, que sobreviveu. Por que Sérgio não foi socorrido? Ele se encontrava em condições melhores, estava muito lúcido: comigo falava em espanhol; em francês com o guarda-costas Gabriel Pichon e em inglês com um militar.

Giuseppe Bizzarri

Giuseppe Bizzarri do Rio de Janeiro (RJ)

BF – É verdade que ele não queria ser protegido por militares estadunidenses? Carolina – Sérgio se preocupava, tinha medo e não confiava em quem estava perto. As instruções de Nova York eram precisas: uma alta presença militar estadunidense em volta do edifício da ONU não era recomendável porque teria sido considerada pelos iraquianos como uma forma de colaboração com as forças de ocupação. De fato, nós tínhamos só um pelotão de soldados.

Gilda e Carolina: Vieira de Mello estava preocupado com ação militar dos EUA

republicana. O mal-estar das Nações Unidas começou depois da intervenção estadunidense no Iraque. Os ataques são contra pessoas e não contra a organização. A ONU já passou por outros escândalos, como o do avião abatido na África (1994), onde morreram os presidentes da Rwanda e do Burundi, mas nada aconteceu e ninguém falou em reformas, apesar de que já se falava em reformar as Nações Unidas há muito tempo: estranho que isso esteja acontecendo durante a invasão do Iraque. BF – Segundo artigos publicados em jornais estadunidenses, o ex-diretor executivo do programa da ONU “Oil for Food Programme”, Benon Sevan, teria sido acusado de ter recebido propinas de Sadam Hussein para vender petróleo iraquiano,

de 1997 a 2002. Vieira de Mello e a sua equipe chegaram em 2003. Vocês percebiam algo de estranho? Carolina – Eram duas equipes totalmente independentes e distintas. Sevan tinha poder de decisão e não era residente no Iraque, vivia entre Nova York e Bagdá. O cargo de Sevan comportava contínuos contatos com fornecedores e Sérgio não era um contador, mas um negociador político na transição do governo iraquiano. A gente se cumprimentava formalmente. Foi ele quem procurei, entre outros, para pedir ajuda na tentativa de resgatar Sérgio debaixo dos escombros. Mas ele foi impassível às minhas súplicas. BF – Vieira de Mello podia ter sido salvo? Carolina – Perto dele tinha um outro ferido em condições piores, Gil

BF – Quando ele começou a se preocupar? Carolina – Depois do atentado na embaixada da Jordânia, ele dizia que todos podiam ser alvo de um atentado terrorista. Além do mais, já havia sofrido um atentado, dia 5 de agosto de 2003, mas a notícia foi divulgada só após sua morte. BF – Ele queria partir para Bagdá? Carolina – Não. Ele não queria deixar o seu lugar de direção na United Nations High Commissioner for Human Rights. Foi colocado contra a parede. Ele soube que era um dos candidatos pelos jornais. Todos eram contra: Sérgio sabia que era uma missão muito arriscada, em que não acreditava. BF – Há imprecisões nos laudos do atentado? Carolina – As Nações Unidas fizeram dois laudos. O segundo é quase segredo. O primeiro, muito superficial, afirma que o atentado foi feito com um caminhão bomba. Mas alguns especialistas me disseram que a explosão foi do

tipo vertical e não horizontal, como aconteceria com uma bomba. Várias famílias, como nós, estão procurando abrir uma investigação independente, para apurar o que aconteceu. BF – O que aconteceu com os objetos pessoais e documentos de vocês? Carolina – Sumiu tudo de nossos apartamentos em Bagdá ou em Genebra, incluindo o computador pessoal de Sérgio. Tentei várias vezes entrar em contato com os investigadores da ONU, queria colaborar, mas nunca recebi uma resposta deles. BF – Senhora Gilda de Mello, a senhora recebeu várias certidões de óbito de seu filho? Gilda – Ha menos de um mês o Itamaraty me enviou uma certidão feita pelo embaixador brasileiro em Amman. As outras que recebi da ONU eram somente xerox incompletos com informações erradas – por exemplo, que Sérgio morreu imediatamente, e que não era separado. Mas, sobretudo, presume-se que não foi feita autópsia, quando em caso de homicídio essa é uma prática internacionalmente obrigatória. Na primeira certidão faltava até uma página e a segunda não tinha o carimbo da ONU. Os documentos foram examinados por quatro advogados brasileiros e todos afirmaram que não são válidos. Antes de viajar para o Iraque, Sérgio tinha assinado um documento, ignorado pelos superiores dele, com o qual nomeava a irmã dele, minha filha, responsável por tudo no caso de sua morte. Infelizmente, a ONU resolveu ter como referência somente a ex-mulher dele, que não parece estar muito interessada em saber como foi a morte de Sérgio. Meu filho não tinha preconceitos com os Estados Unidos, mas prestava muita atenção a eles, estava preocupado com “a nova restauração mundial”.


12

De 12 a 18 de maio de 2005

INTERNACIONAL SAHEL

Uma outra “guerra contra o terrorismo” Camilla Lai de Roma (Itália)

Divulgação

Investimentos dos EUA em operações militares podem estimular fundamentalismo islâmico em países africanos

S

ahel é terreno fértil para o fundamentalismo islâmico. E a força militar dos Estados Unidos pode alimentar esse fundamentalismo. Essa é a conclusão do International Crisis Group (ICG), organização não-governamental internacional para prevenção de conflitos. Seu mais recente relatório se concentra em uma de tantas regiões esquecidas da África, o Sahel Ocidental, ao sudoeste do Saara, incluindo parte da Mauritânia, de Mali, do Níger e do Chade. O título do estudo é “Terrorismo islâmico no Sahel: realidade ou ficção?”. Há pouco mais de um ano, os EUA lançaram a Pan-Sahel Initiative, com orçamento de 6,2 milhões de dólares – soma pequena para o Pentágono, mas enorme para os países envolvidos. Apenas poucas semanas depois, a 9 de março de 2004, o Grupo Salafita para a Prece e o Combate, argelino, se defrontou numa feroz batalha contra tropas do Níger e do Chade, ajudadas por forças especiais dos EUA: 43 argelinos mortos e, alguns dias depois, Amari Saifi, o número dois dos salafitas, foi capturado pelo Grupo pela Democracia e pela Justiça, do Chade. Com esses êxitos imediatos, os EUA decidiram por um primeiro aumento de fundos, com mais 6,5 milhões de dólares; 25 fuzileiros navais estadunidenses começaram a adestrar entre 120

Governo estadunidense quer avançar com a militarização em países africanos, como Marrocos, Senegal, Argélia e Tunísia

e 150 homens em cada um dos quatro países africanos, para que pudessem controlar melhor um território na maior parte desértico, e assim facilmente penetrável por terroristas estrangeiros. Agora, os EUA estão pensando em ampliar as operações, para abranger Marrocos, Senegal, Argélia, Tunísia e Nigéria, chegando a aplicar 132

milhões de dólares, em 2005, e 400 milhões de dólares nos próximos cinco anos, em gastos com carros blindados, armas, sistema GPS de rastreamento por satélite.

MILITÂNCIA ISLÂMICA O ICG analisa os resultados de um ano de batalhas esquecidas entre as dunas. E ressalta os riscos de um

ANÁLISE

Stefano Liberti Desembarcaram na praia de modo discreto, com óculos escuros e armas de pequeno calibre. Olharam em volta e viram alguns pescadores, aos quais mostraram fotos. “Já viram esses rostos?”, perguntaram às pessoas na praia, que os observavam curiosas. Diante de suas respostas negativas, insistiram: “Se vocês sabem alguma coisa, digam; são terroristas perigosos”. Diante de mais negativas, puseram de volta no barco armas e bagagens e levantaram âncora. A cena – de sabor vagamente surreal – teve como protagonistas vinte fuzileiros navais dos Estados Unidos e ocorreu, dia 3, em Maydh, localidade costeira da Somalilândia, região do nordeste da Somália que se declarou independente em 1991 e desde então busca vigorosamente e, em vão, o reconhecimento internacional. Os vinte fuzileiros navais – conta a agência de notícias Reuters – tinham chegado a bordo de dois barcos. Vinham, se supõe, do vizinho Djibuti, onde desde 2002 estão presentes cerca de mil fuzileiros estadunidenses, para cobrir a frente africana na chamada guerra contra o terrorismo. Além dos acontecimentos do dia 3, vários sinais indicam uma ofensiva em todos os campos de atividade das forças dos EUA no pequeno Estado do Chifre da África. Dois helicópteros estadunidenses foram vistos em Berbera, principal porto da Somalilândia; dois outros navios foram vistos em Los Qorey, mais a oeste, onde aconteceu o mesmo que em Maydh, com soldados que interpelaram os pescadores sobre eventuais movimentos suspeitos. Quem ou o que os fuzileiros procuram na Somalilândia? Oficialmente, terroristas. Mas os métodos – mais adequados a uma busca da polícia num distrito de Nova York

Arquivo Brasil de Fato

Avançam manobras militares estadunidenses na Somália

EUA promovem operação militar na Somália com base em acusações infundadas

do que a uma operação de forças especiais na África – são pelo menos suspeitos. Tanto mais que, diferentemente do que se diz sobre a Somália, nunca se provou a presença de organizações terroristas estrangeiras na pequena (e bastante estável) região separatista. Se é difícil chegar a certezas, é talvez útil adiantar algumas hipotéses: os fuzileiros navais queriam que fossem vistos, queriam que se soubesse que está em andamento uma operação contra o terrorismo. Pretendiam, talvez, sondar eventuais reações à sua presença. Uma presença, de fato, não ilegal: está prevista em teoria num bizarro acordo antiterrorismo assinado entre a Somalilândia e o Djibuti – mas certamente pouco politicamente correto, levando em conta que o Estado independente, oficialmente, não existe.

RUMO AO SUL O dado certo é a intensa atividade dos EUA na região. Parece que voltamos aos anos 2001-2002, quando a Somália era apontada como a retaguarda do terrorismo internacional e durante um certo período se esperou até uma intervenção militar, da qual

não se falou mais, provavelmente porque era ainda muito dolorosa a lembrança da operação “Restaurar a esperança” (com 18 fuzileiros estadunidenses assassinados e arrastados pelas ruas de Mogadíscio, em 1993). Desde que descartou a opção da Somália, o governo George W. Bush escolheu operar a partir de sua base no Djibuti – de onde, em 2002, ocasionalmente, executou seis islamitas no Iêmen com mísseis teleguiados. E abriu uma base de escuta, com os israelenses, nas ilhas Dahlak, um pouco mais ao norte. Hoje, talvez, Washington decidiu estender seu próprio controle mais ao sul, em vista da eventual (e no momento pouco provável) estabilização da turbulenta Somália. Para esse propósito, há poucas dúvidas de que a Somalilândia esteja mais do que disposta a acolher os soldados de estrelas e listras. Mas, no momento, só se fez um ensaio geral. Pelo espetáculo verdadeiro, em si, será preciso esperar. Stefano Liberti é jornalista do Il Manifesto, www.ilmanifesto.it, veículo parceiro do Brasil de Fato

programa que “pode alimentar exatamente o que pretendia destruir: a militância islâmica”. O Sahel é vulnerável ao fundamentalismo. “Há indícios suficientes para justificar a cautela e um maior envolvimento ocidental em questões de segurança”, diz Mike McGovern, diretor da seção da África Ocidental do ICG: “Mas as operações devem ser leva-

das em frente com maiores avaliações do que foi feito até agora”. Os quatro países do Sahel estão entre os mais pobres do mundo: a frustração da população poderia levar à militância. Em outras palavras, o Sahel não é ainda terreno fértil para atividades terroristas. O fundamentalismo islâmico está presente na região há mais de 60 anos, sem por isso ter jamais estado ligado à violência contra os países ocidentais. Mas num momento em que os Estados fracos, sobretudo os de maioria muçulmana, são um objetivo atraente para organizações terroristas, o equilíbrio é delicado: a pesada mão militar pode fazer alterar os pratos da balança, enquanto, para manter a região pacífica, é preciso um empenho a longo prazo e fundos investidos no desenvolvimento. Uma resposta não pode ser só militar, muito menos só dos Estados Unidos. O terrorismo deve ser destruído com o desenvolvimento, não com as armas, recordam os coordenadores do ICG: “Se a ajuda militar é a única que chega do Ocidente, o resultado será o oposto do que se quer alcançar”. Os EUA e a União Européia deveriam cooperar para eliminar as condições sociais e econômicas que tornam o Sahel atraente para os militantes islâmicos. De outro lado, é evidente que a presença exclusiva dos EUA no Sahel está estrategicamente ligada ao seu petróleo e ao urânio no Níger. (Il Manifesto, www.ilmanifesto.it, veículo parceiro do Brasil de Fato)

Costa do Marfim denuncia pacto colonial com a França da Redação O presidente do parlamento da Costa do Marfim, Mamadou Koulibaly, 48 anos, pede, em um livro recém-lançado, a denúncia dos acordos de cooperação com a França, que constituem, segundo ele, um “pacto colonial”, impedindo relações diplomáticas justas. Integrante da Frente Popular Marfinense (FPI), o partido presidencial, Koulibaly foi ministro do Orçamento e, depois, da Economia. Ele explicou que se expressava a título pessoal, ao lançar em Abidjã, dia 3, seu ensaio As servidões do pacto colonial. Nele, expõe as razões para denunciar “o pacto colonial em toda a África e para nos lançarmos numa sociedade aberta que estimule uma justa globalização”. A publicação do livro ocorre no momento em que o governo está denunciando regularmente o papel da França na crise que partiu o país em dois desde a rebelião de setembro de 2002. Os interesses franceses – numerosos na Costa do Marfim, em que grandes empresas francesas obtiveram concessões de serviços públicos – têm regularmente servido de alvo para críticas, principalmente depois das violências em novembro do ano passado envolvendo cerca de 4 mil soldados franceses que integram as forças de paz das Nações Unidas no país.

EXPLORAÇÃO COLONIAL Trata-se de uma documentação comentada dos Acordos de Cooperação Franco-Marfineses, assinados durante o período da independência, em 1960, em matéria principalmente de defesa ou relações econômicas, mas também de justiça, ensino e turismo. Certos documentos são geralmente apresentados na França como tendo cláusulas “secretas”, como os acordos de defesa com a Costa do Marfim, Daomé (hoje Benin) e Níger, assinados há 44 anos, a 24 de abril de 1961.

COSTA DO MARFIM Localização: oeste da África Capital: Yamoussoukro Nacionalidade: marfinense População: 15,8 milhões de habitantes Território: 322.462 Km2 Línguas: francês (oficial), diula, baulê Moeda: franco CFA

O anexo II desses acordos fala da cooperação em favor da França em relação às matérias-primas estratégicas, como o petróleo e o urânio. Isso quer dizer, para Koulibaly, que “suas matérias-primas estratégicas são primeiro para eles. Parece que chegou a hora de dizer não a esse pacto colonial”, disse Koulibaly no seminário “72 horas Para Dizer Não ao Pacto Colonial”, organizado pelo jornal governamental Le Courrier d’Abidjan, que reuniu centenas de pessoas, entre as quais intelectuais de vários países africanos. “Isso não significa que vamos matar os franceses, nem que não vamos mais falar com eles. O que se pretende é que o funcionamento de nossos Estados se torne moderno. Não se trata de ódio, mas de direito, nada mais do que o direito. Queremos ser livres e esse livro reivindica que nos livrem das amarras”, disse Koulibaly. Ele sublinhou que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha se tornaram “os maiores amigos do mundo, após uma ruptura brutal”, com a declaração de independência das colônias inglesas da América em 1776. (Com agências internacionais)


13

De 12 a 18 de maio de 2005

AMBIENTE RIO SÃO FRANCISCO

Muita água ainda vai rolar Luís Brasilino da Redação

Envolverde

Enquanto o governo comemora a licença prévia da obra, os movimentos sinalizam com novas mobilizações

O

Ministério da Integração Nacional comemora e informa que o início das obras de transposição do Rio São Francisco depende apenas do processo de licitação. Segundo Luís Cláudio Cicci, assessor de imprensa do órgão, a publicação do edital para a escolha das empresas participantes da construção deve sair até o dia 13. Mas a situação pode não ser bem assim. Renato Cunha, da coordenação da Rede de Organizações não-Governamentais (ONGs) da Mata Atlântica (RMA), acredita que muita coisa ainda pode acontecer. A RMA compõe um grupo de movimentos sociais, ambientalistas e de entidades civis que, nos últimos dois anos, vem se desdobrando no levantamento de dados e de argumentos para provar que a transposição é “politicamente inconseqüente, economicamente inviável e socialmente injusta”, como define João Abner Júnior, hidrólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN). Essas organizações ficaram indignadas quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu, dia 29 de abril, a licença ambiental prévia para a realização das obras. Na ocasião, o governo venceu a última barreira institucional para iniciar a transposição. Porém, segundo o professor Apolo Heringer, coordenador do Projeto Manuelzão, o Ibama nunca foi imparcial nessa questão. A concessão do licenciamento foi acordada com o governo e o que se seguiu foi uma encenação, até a aprovação final. “Em Minas Gerais, por exemplo, não houve nenhuma audiência pública. Nas que ocorreram (foram quatro), o governo fez uma apresentação de duas horas e os demais participantes puderam expor seus pontos de vista por três minutos cada. O processo não teve seriedade”, avalia Heringer.

SEM DISCUSSÃO Para o coordenador do Projeto Manuelzão, a transposição é a guerra do Iraque do governo Luiz Inácio Lula da Silva. “Ninguém foi ouvido até agora”, relata. A referência se baseia nos antecedentes da intervenção militar de

Movimentos sociais e organizações de defesa do Velho Chico repudiam a licença ambiental concedida pelo Ibama para a realização das obras da transposição

2003. Os mandatários estadunidense e britânico, George W. Bush e Tony Blair, tomaram a decisão de invadir o país e foram atrás de justificativas, como a suposta existência de armas de destruição em massa. No processo, passaram por cima inclusive de deliberações da Organização das Nações Unidas (ONU). Luiz Carlos Fontes, secretário executivo do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), conta que, muito diferente do que diz o governo, está ocorrendo um atropelo legal e institucional da sua entidade. Fontes se refere à manobra impetrada pelo Ministério da Integração em dezembro de 2004 ao convocar o Conselho Nacional de Recursos Hídricos para reverter a decisão do Comitê de liberar o uso externo da água do Rio São Francisco apenas para o consumo humano e animal, nos casos de comprovada escassez

nos Estados receptores. Esse critério inviabilizaria a transposição por dois motivos: não falta água aos Estados do Semi-Árido e o objetivo da obra é impulsionar atividades econômicas na região. Contudo, “para o ministro (da Integração) Ciro Gomes, só há uma verdade, a dele. Por isso, sempre apela para o emocional e não discute os nossos números”, ataca Fontes.

CONSEQÜÊNCIAS Para o integrante do CBHSF, um dos problemas gerados por essa falta de diálogo é a criação de um ambiente de competição entre os Estados envolvidos no empreendimento: de um lado os receptores e, de outro, os doadores. “Não se faz uma obra desse porte sem uma pactuação prévia. Entretanto, o governo está levando à força a água do São Francisco”, critica Fontes.

Ele acha que o ministério tenta passar para a opinião pública a idéia de que, agora, a transposição é inevitável. Contudo, dois manifestos de repúdio à decisão do Ibama elaborados desde o dia 29 de abril mostram o contrário. O primeiro, divulgado ainda em abril, foi elaborado pela RMA e conta com a assinatura de 257 entidades ambientalistas espalhadas nos 17 Estados que compõem o bioma Mata Atlântica. No dia 7, 56 sindicatos, colônias de pescadores, associações, movimentos sociais, pastorais e, também, ONGs aprovaram moção contra o licenciamento prévio. Ambos os documentos batem na mesma tecla: a decisão do Ibama não levou em consideração fatos e estudos científicos sérios. Apolo Heringer prevê o surgimento de novas barreiras jurídicas e políticas e Fontes lembra que o projeto ainda não obteve licença

nem outorga definitivas. Além disso, a decisão do Ibama, certamente, será questionada na Justiça. Renato Cunha, da RMA, informa que o licenciamento prévio apresenta uma série de condicionantes que podem colocar em questão a viabilidade do empreendimento. Entre eles, o mais complicado é um mapeamento da área de 2,5 quilômetros nas margens dos canais que indique locais adequadas para reassentamento e reforma agrária. No Congresso Nacional, deputados federais contrários à obra prometem fazer tudo que estiver a seu alcance dentro da Comissão de Orçamento para zerar os recursos destinados à transposição. “A indignação é grande e muita coisa ainda virá à tona. O governo já sente o cheiro da resistência e pode começar a se preocupar pois até a reeleição de Lula será prejudicada”, alerta Heringer.

MANIFESTO

Transposição, para que e para quem ? A determinação do governo federal de levar adiante o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco a despeito dos questionamentos de diversos segmentos da sociedade brasileira fez necessário o esclarecimento público do posicionamento das organizações e movimentos sociais abaixo assinados. O fenômeno da estiagem é uma ocorrência natural no nordeste semi-árido, onde habitam cerca de 18 milhões de pessoas em uma área de 830.000 quilômetros quadrados. Para esta população, problemas socioeconômicos e políticos como o acesso à terra, água, saúde, educação e crédito têm representado limitação maior do que as condições climáticas, com as quais se têm convivido há, pelo menos, dois séculos. A ênfase no “problema das secas” tem, historicamente, servido a interesses eleitorais e ao uso privado de recursos públicos por grupos influentes. Em mais de um século de atuação do Estado na Região Nordeste, as obras hídricas implan-

tadas geraram um inegável potencial de armazenamento. O problema do acesso à água para consumo e produção, entretanto, permanece para a maior parte da população, até mesmo para aquelas comunidades próximas a açudes públicos e rios perenizados. O êxodo rural, o inchaço das cidades e a persistência das disparidades socioeconômicas refletem o saldo das políticas adotadas. Valendo-se de já conhecidas imagens de um Nordeste esteriotipado, de chão rachado, gado morrendo e povo sofrido, o governo federal quer fazer crer ao povo brasileiro que a transposição das águas do Rio São Francisco é a “solução definitiva para a seca do Nordeste”. A questão do desenvolvimento e dos problemas sociais da região é complexa e deveria ser tratada com seriedade pelos governantes. O projeto de transposição consiste em trazer água por dois canais de cerca de 700 km lineares, às bacias do Rio Jaguaribe (CE), Piranhas-Açu (RN), Paraíba (PB) e Ipojuca (PE). Os prováveis bene-

fícios do projeto abrangeriam, portanto, apenas uma determinada área e não o conjunto do Nordeste seco. A população difusa aí residente, de todo modo, continuaria disputando a água com usuários de maior porte e influência. No Estado do Ceará os governos estadual e federal têm realizado investimentos para a implantação de empreendimentos privados que demandam alto consumo de água. Os pólos de agricultura irrigada, as fazendas de camarão e o complexo industrial do Pecém, maiores demandantes da água do São Francisco, são empreendimentos que embora gerem crescimento econômico, reforçam a lógica de concentração de riquezas, exclusão social, e degradação ambiental. De acordo com o Comitê Gestor da Bacia do São Francisco, em virtude das agressões ambientais que sofre há décadas, o rio enfrenta atualmente problemas de vazão para atender às demandas de sua própria bacia, entre as quais se destaca a geração de energia elétrica. A transposição implicará em investimentos que podem chegar a 10 bilhões de

reais além do elevado custo energético e financeiro de manutenção do projeto, que envolverá o bombeamento da água na chapada do Araripe, e perdas por evaporação e infiltração que deverão onerar toda a operação. As organizações e movimentos sociais abaixo assinados não aceitam a transposição nos termos do projeto atual e esperam que o governo reconheça a legitimidade dos questionamentos e posições contrárias, e em respeito à democracia, submeta a questão a um amplo debate e consulta popular. Participamos da luta democrática que culminou com a eleição do presidente Lula e convidamos o governo a retomar compromissos assumidos em campanha e respaldados pela vontade popular. Somos favoráveis e apoiaremos políticas públicas que: - Retomem o planejamento regional com participação popular; - Assegurem o acesso à terra, água, moradia, educação e saúde de qualidade como direito fundamental a toda população; - Promovam uma verdadeira

reforma agrária; - Apóiem a agricultura familiar e a economia solidária; - Descentralizem os investimentos; - Possibilitem a convivência com o semi-árido; - Garantam a conservação, uso sustentável e recuperação do meio ambiente; - Promovam a revitalização das bacias hidrográficas do Nordeste; - Reconheçam os direitos étnicos, de gênero e geração. Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) - Regionais do Nordeste (76 organizações) Fórum da Zona Costeira do Ceará (23 organizações) Fórum Cearense pela Vida do Semi-Árido (101 organizações) Articulação no Semi-Árido (ASA) (800 organizações) Comitê Estadual da Marcha Mundial de Mulheres – Ceará (7 organizações) Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-CE)


14

De 12 a 18 de maio de 2005

DEBATE 13 DE MAIO

A única revolução social do Brasil Brasil foi uma das primeiras nações americanas a instituir e a última a abolir a escravidão, que dominou 350 dos 505 anos de sua história. Apesar da superação do escravismo constituir o mais significativo fato do nosso passado, neste 13 de maio, o aniversário da Abolição transcorrerá, outra vez, semi-esquecido. A Abolição já foi data magna, relembrada e festejada. Nos últimos anos, tem sido objeto de críticas radicais e verdadeira conspiração de silêncio. Paradoxalmente, essas iniciativas recebem o apoio do movimento negro brasileiro que, ao contrário, deveria desdobrar-se na sua celebração e na discussão de seu significado histórico real. O caráter cordial, transigente e pacífico do brasileiro já foi grande mito nacional. A abolição da escravatura foi apresentada como prova dessa pretensa realidade. No exterior, o fim da instituição motivara lutas fratricidas. A guerra de Secessão causou quinhentos mil mortos nos USA. No Haiti, em 1804, a destruição da ordem negreira causou a mais violenta guerra social americana. No Brasil, a transição teria-se efetuado sem violências devido a instituições sensíveis ao progresso, a líderes esclarecidos e à humanitária alma popular. Neste cenário de concórdia, brilharia a figura de Isabel – a Redentora. Apiedada com o sofrimento dos negros e despreocupada com a sorte do trono, assinou com pena de ouro o diploma que pôs fim ao cativeiro. Em 13 de maio de 1888, começaria a construção da sociedade fraterna e desprovida de barreiras intransponíveis. As desigualdades existentes deveriam-se a deficiências não essenciais da civilização brasileira, enraizada em concórdia estrutural entre ricos e pobres, brancos e negros. Ao menos, era o que se dizia. Tidos como acontecimentos pátrios de ímpar importância, a Independência, a República e a Abolição teriam como denominador comum o caráter pacífico da civilização brasileira. Apresentava-se também a essência patriarcal da ordem escravista como corolário da natureza magnânima do brasileiro, que quebrantaria confrontos de raça, credo e classe.

Kipper

Mário Maestri

O

SÓ NÃO VIA QUEM NÃO QUERIA

Com o fim da ditadura militar, em 1985, a organização popular e entidades negras combativas criaram as condições para desnudar a triste realidade subjacente à proposta da democracia racial e fraternidade brasileiras. As narrativas laudatórias sobre a Abolição, a escravidão e o caráter democrático nacional trincavam-se contra a triste realidade contemporânea. Em fins dos anos setenta, diante dos olhos mais míopes, desnudava-se situação onde o povo negro constituía a parcela mais sofrida de uma população crescentemente explorada, onde a pele escura dificultava a conquista do trabalho e facilitava o acesso à prisão, se não ao necrotério. Desde os anos sessenta, as descrições fantasiosas sobre o passado do Brasil foram refutadas por cientistas sociais como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso etc. que empreenderam análises mais objetivas sobretudo dos séculos 19 e 20. Porém, em geral, esses autores negaram significado histórico à Abolição. Apontavam a inusitada violência do escravismo brasileiro mas definiam a sua superação como um “negócio de brancos”, onde os cativos não teriam tido papel significativo e

los de cativeiro, que construiu as condições que ensejaram, mais tarde, a destruição da servidão. A rejeição permanente do cativo ao trabalho feitorizado impôs limites insuperáveis ao desenvolvimento da produção escravista, determinando altos gastos de coerção e vigilância que abriram espaços para formas de produção superiores. PRODUÇÃO ESCRAVISTA COLONIAL

ganhos substanciais. Em fins dos anos setenta, o movimento negro retomou sem crítica essa tese, para melhor denunciar a situação da população afro-descendente. Para desqualificar a Abolição, propôs que se efetuara sem indenização; que o movimento abolicionista buscava, libertando os cativos, mão-deobra barata; que ela talvez piorara as condições de existência das massas negras, tese defendida por Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, de 1936. Para melhor criticar os mitos da emancipação do povo negro em 1888, o movimento negro propôs a abominação do 13 de Maio e a celebração do 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil, data da morte de Zumbi, em 1695, último chefe palmarino.

Desconhecer o sentido revolucionário de 1888 é olvidar a essência escravista de dois terços de passado brasileiro Apesar de bem-intencionadas, essas leituras consolidaram as interpretações do 13 de Maio dos ideólogos das elites, que procuravam escamotear a Abolição como resultado do esforço dos cativos aliados aos setores abolicionistas radicalizados. Assentavam assim a pedra mestra na construção do esquecimento do nosso mais importante acontecimento histórico – a revolução abolicionista de 1887-8.

ti-Abolição, verdadeira invenção da tradição que resulta em grave perda da memória histórica pelas classes trabalhadoras, em geral, e afro-descendentes, em particular. Foi o profundo impacto da libertação na consciência e vida dos cativos que levou o povo negro a rememorar com carinho, por um século, o 13 de Maio, e festejar, imerecidamente, Isabel, herdeira da casa de Bragança, grande responsável pela manutenção do cativeiro quase até o século 20. Em inícios de 1980, Mariano Pereira dos Santos, ex-cativo centenário, que conhecera a miséria como homem livre, antes de morrer, afirmava comovido que após a “Libertação”, o povo negro vivera “na glória”. Maria Benedita da Rocha, ex-cativa também centenária, referiu-se arrebatada ao fim do cativeiro na sua fazenda. Em 13 de maio de 1888, nas cidades e nos campos brasileiros, os tambores e atabaques ressoaram poderosos ferindo em derradeira vendeta os tímpanos dos negreiros derrotados. A visão do 13 de Maio, pelo povo negro, como concessão da Redentora, constitui cristalização alienada na memória popular, determinada pela ideologia dominante, de acontecimento de profundo sentido histórico para os cativos e a nacionalidade brasileira. Ou seja, o resultado de operação de diluição da memória do protagonismo dos cativos naqueles sucessos. Não há sentido em antepor Palmares a 1888. A heróica epopéia palmarina jamais propôs, e historicamente não poderia ter proposto, a destruição da escravidão como um todo. Palmares resistiu por décadas, determinou a história do Brasil, mas foi derrotada. A revolução abolicionista foi vitoriosa e pôs fim ao escravismo.

MEMÓRIA DA RESISTÊNCIA

O movimento negro esquecia que celebrar a Abolição não significa reafirmar os mitos da emancipação social do povo negro em 1888 e de Isabel como sua promotora. Ignora que comemorar o fim da escravidão significa recuperar a importância daquela superação, através de frente política pluri-classistas e do protagonismo dos cativos. Em forma alienada e imperfeita, o povo negro sempre intuiu a importância de 1888. Apenas nos últimos anos essa consciência diluiu-se devido ao proselitismo an-

ESCRAVIZADORES E ESCRAVIZADOS

Desconhecer o sentido revolucionário de 1888 é olvidar a essência escravista de dois terços de passado brasileiro, é negar a contradição essencial que regeu por mais de trezentos anos de nossa história passado – escravizadores contra escravizados, é ignorar o caráter singular da gênese do Brasil contemporâneo, Nos anos cinqüenta, autores como Clóvis Moura e Benjamin Péret produziram importantes leituras sobre o agir dos cativos no Brasil. Nos anos sessenta,

Viotti da Costa, Stanley Stein etc. avançaram no conhecimento essencial da escravidão. Nos vinte anos seguintes, produziram-se numerosos estudos sobre a sociedade, a economia e as formas de resistência do cativo, destacandose entre eles a apresentação do escravismo colonial como modo de produção historicamente novo, por Jacob Gorender, em O escravismo colonial. Nesses anos, estudos, como o clássico Os últimos anos da escravidão no Brasil, de Robert Conrad, apresentaram a Abolição como o resultado da insurreição incruenta dos cativos cafeicultores que, nos últimos meses do cativeiro, abandonaram maciçamente as fazendas, reivindicando relações contratuais. Tais estudos desvelaram parcialmente a extrema tensão sob a qual o movimento abolicionista radicalizado alcançou a vitória, em 1888, e sua ligação com a massa escravizada, grande protagonista dessas jornadas.

A revolução abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas moderno, promovido pelos trabalhadores escravizados Em 13 de maio, a herdeira imperial nada mais fez do que, após o projeto abolicionista ter sido aprovado no parlamento, sancionar a Lei Áurea, assinando o atestado de óbito de instituição agônica devido a desorganização pela fuga dos cativos. Durante todo o Primeiro e o Segundo Reinados, os Braganças defenderam renhidamente a escravidão, já que unidos umbilicalmente aos escravistas. Nos meses finais da escravidão, os mais renitentes negreiros, que já reconheciam a crise final da instituição, defendiam ainda o cativeiro apenas para prosseguir reivindicando a indenização pela propriedade libertada. Rui Barbosa, no Ministério da Fazenda da República, mandou queimar os registros de posse de cativos para dificultar a reivindicação da “lavoura andrajosa”. Foi a ação estrutural das classes cativas, durante os três sécu-

Em 1888, a revolução abolicionista destruiu o modo de produção escravista colonial que ordenara a sociedade no Brasil. Negar esta realidade devido às condições econômicas, passadas ou atuais, da população negra, é compreender a história com visões não históricas. Os limites da Abolição eram objetivos. Nos últimos anos da escravidão, o cativo era categoria social em declínio que lutava sobretudo pelos direitos cidadãos mínimos. Foi a reivindicação da liberdade civil que uniu a luta dos cativos rurais à dos cativos urbanos, então pouco representativos. Não procede a proposta que a Abolição não teve conteúdo porque os cativos não foram indenizados. A propriedade latifundiária, a pouca difusão de hortas servis e a reivindicação prioritária da liberdade já dificultavam movimento pela distribuição de terras, que exigia a união de cativos, caboclos, posseiros, colonos etc., então praticamente impossível, devido ao baixo nível de consciência e organização e à elevada heterogeneidade-dispersão das classes rurais. Porém, tal medida foi defendida pelo movimento abolicionista. Na limitação das conquistas econômicas obtidas pela Abolição pesou a contra-revolução republicana, oligárquica e federalista, de 15 de novembro de 1889, que pôs fim ao movimento abolicionista como projeto reformista nacional. Os limites históricos da Abolição não devem minimizar a importância da conquista dos direitos políticos e civis mínimos por setecentos mil “escravos” e “ventre-livres”. Em 13 de maio de 1888, superava-se a distinção entre trabalhadores livres e escravizados, iniciando-se a história da classe operária brasileira como a compreendemos hoje. Nos anos 1990, a derrota histórica do mundo do trabalho e a euforia neoliberal determinaram os destinos gerais da historiografia. No Brasil como alhures, em tempos de Nova História, os holofotes da mídia, o interesse das editoras, o bom-tom historiográfico apontaram para estudos monográficos, intimistas, biográficos e exóticos, tranqüilizadores das consciências e pacificadores dos espíritos. De ciência que procurava libertar, a história evoluiu à arte de entreter. Decaíram o interesse e os incentivos para estudos sobre as classes trabalhadoras urbanas, o movimento camponês, os fenômenos essenciais da sociedade humana e estudos analíticos sobre o passado. As pesquisas sobre a escravidão, em desprestígio, foram dominadas pelas teses da escravidão benigna e consensual, defendidas no passado com singular inteligência e cabotinismo por Gilberto Freyre. A revolução abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas moderno, promovido pelos trabalhadores escravizados em aliança com libertos, trabalhadores livres, segmentos médios etc. Até agora, foi a única revolução social vitoriosa do Brasil. Mário Maestri, 56, é historiador e autor, entre outros, de Depoimentos de escravos brasileiros. (São Paulo: Ícone, 1988). E-mail: maestri@via-rs.net


15

De 12 a 18 de maio de 2005

agenda@brasildefato.com.br

LIVRO

Mais informações: www.wwf.org.br

REDE GLOBO – 40 ANOS DE PODER E HEGEMONIA Dos autores Valério Cruz Brittos e César Ricardo Siqueira Bolaño, o livro se propõe a iniciar um debate sobre a relação entre comunicação, democracia e dependência. Reunindo pesquisadores do campo acadêmico da comunicação, críticos das indústrias culturais, da radiodifusão e das estruturas de poder a elas vinculadas, a idéia não é apenas analisar criticamente a atuação da Globo ao longo de seus 40 anos, mas direcioná-la a partir da perspectiva do seu papel histórico no processo político de construção da democracia, apontando caminhos que poderiam ser trilhados pelos movimentos que lutam pela democratização das comunicações no Brasil. Lançado pela Editora Paulus, o livro tem 376 páginas e custa R$ 33,00. Mais informações: www.paulus.com.br

Local: R. Sobral, s/n, subsolo da Catedral Metropolitana, Fortaleza Mais informações: (85) 3226-1129

CEARÁ

Divulgação

AGENDA

SÃO PAULO PROJETO TEATRANDO PELA PAZ 14, 21 e 28, 9h O Espaço Geração Cidadã de Arte e Cultura promoverá, durante o mês de maio, seminários de lançamento, socialização e inscrição para as oficinas do projeto. O objetivo é promover a cultura de paz junto aos adolescentes e jovens dos quatro liceus de Fortaleza, por meio do teatro de rua como proposta de educação popular. Local: Liceus da Vila Velha, Conjunto Ceará e Messejana, Fortaleza Mais informações: (85) 3497- 3480 4ª SEMANA SOCIAL BRASILEIRA Incrições abertas O tema principal, em todo o Brasil, será “Mutirão por um Novo Brasil”. Em Fortaleza o debate será em torno do tema “Direitos Humanos e Cultura de Paz”. As reflexões e trabalhos serão realizados em forma de oficinas, abordando quatro temas e seus respectivos subtemas: moradia (áreas de risco, moradores de rua, ocupações, conjuntos habitacionais); meio ambiente (turismo sustentável, catadores e reciclagem); economia solidária, e criança e adolescente (liberdade assistida comunitária, combate à exploração sexual infanto-juvenil). A inscrição individual custa R$ 5, destinados às despesas com alimentação. A taxa deve ser paga no primeiro dia do evento, 3 de junho. As fichas de inscrição devem ser entregues ao Secretariado de Pastoral da Arquidiocese, pelo correio eletrônico contato@arqui diocesedefortaleza.org.br. O prazo final de entrega das inscrições é 25 de maio.

NACIONAL MOSTRA – ÁGUA PARA VIDA, ÁGUA PARA TODOS: BOAS PRÁTICAS EM SANEAMENTO até 30 de junho Uma iniciativa da organização nãogovernamental WWF Brasil, com o apoio da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente e da Agência Nacional de Águas, a mostra tem como objetivo identificar e divulgar boas práticas em saneamento que reduzam a poluição e o consumo desregrado da água e protejam rios e nascentes. Serão selecionadas experiências de governos, entidades civis, instituições de ensino e empresas de saneamento. As dezoito melhores iniciativas farão parte de uma publicação. O resultado da seleção será divulgado em outubro.

SEMINÁRIO – 30 ANOS DO FEMINISMO NO BRASIL 14 e 21 Promovido pela União de Mulheres de São Paulo, o seminário irá fazer um balanço e discutir perspectivas do movimento feminista no Brasil. Local: Câmara Municipal de São Paulo, Viaduto Jacareí, 100, São Paulo Mais informações: (11) 3106-2367 SEMINÁRIO - DIREITOS QUILOMBOLAS 17 Durante o encontro serão debatidos temas como o artigo 68 da Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, quilombos no Estado de São Paulo. Entre os debatedores estarão: Aton Fon Filho, advogado e diretor da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos; Patrícia Scalli dos Santos, analista de desenvolvimento agrário e antropóloga (Itesp-SP); Patrícia de Menezes Cardoso, advogada do Núcleo de Direito da Cidade do Instituto Pólis; João José Sady, presidente da comissão de direitos humanos do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo. Local: Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo, R. da Glória, 246, 3º andar, São Paulo Mais informações: (11) 3271-1237 DEBATE – DE LENIN A ZIZEK 17, 18h30 Durante o debate será feita uma releitura e reconstrução da esquerda por meio do livro Às portas da revolução – escritos de Lenin de

13ª CONVENÇÃO NACIONAL DE SOLIDARIEDADE A CUBA 25 a 28 A convenção, que acontece anualmente no Brasil, terá como tema “Encontro por uma América Latina livre”. Entre os participantes, representantes da sociedade e do governo cubano, além de convidados venezuelanos e brasileiros. O objetivo é divulgar a história e as conquistas da revolução cubana, informar e discutir as novas ameaças dos Estados Unidos e colaborar para articular, nos níveis estadual e nacional, iniciativas e ações das entidades e movimentos brasileiros solidários a Cuba. Local: Dia 25 - Memorial da América Latina, Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664, São Paulo; dias 26 a 28 - Instituto Sedes Sapientae: R. Ministro de Godoi, 1484, São Paulo Mais informações: www.13cnsc.kit.net

1917, de Slavoj Zizek. Entre os debatedores estarão Osvaldo Coggiola e Ricardo Musse. Local: Anfiteatro da História da Universidade de São Paulo, Av. Professor Lineu Prestes, 338, São Paulo Mais informações: (11) 3875-7285 CURSINHO POPULAR DOS ESTUDANTES DA USP Inscrições abertas - início dia 16 O curso pré-vestibular da Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores da Universidade de São Paulo (Acepusp) abriu inscrições para estudantes de

baixa renda. Os interessados podem optar pelos períodos manhã, tarde e noite. Há também aulas aos sábados. O material didático é produzido pelos próprios professores do cursinho. Além das aulas preparatórias para o vestibular, os alunos podem acompanhar, gratuitamente, diversas palestras, aulas de inglês, oficinas de canto coral, teatro e cinema. Todas as atividades acontecem no espaço cultural da Acepusp. Local: Rua da Consolação, 1909, São Paulo. Mais informações: (11) 3258-1436

FOTOGRAFIA

Mostra sobre os excluídos da globalização chega à Europa Paulo Pereira Lima da Redação Lançada durante o 5º Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em janeiro, a mostra fotográfica Excluídos: imagens de uma sociedade descartável, conquista a Europa. Sua extréia aconteceu entre 6 e 8, em Pádua, na Itália, por ocasião do Congresso da Solidariedade, Economia Civil e Social. Promovido pela Civitas, associação que reúne mais de 600 organizações não-governamentais italianas, o evento reuniu milhares de representantes de movimentos sociais, entidades e educadores e teve como um dos temas principais o combate ao turismo sexual. Parte da mostra reúne registros sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes em Fortaleza (CE). O trabalho é assinado pelo fotógrafo e cientista social Robson Oliveira. Colaborador do Brasil de Fato, Oliveira vive e trabalha há oito anos em Miami, nos Estados Unidos. Excluídos expõe a dura realidade vivida por moradores de rua e desempregados, semteto, sem-terra e povos indígenas. “A proposta desse trabalho é tirar do anonimato essas vítimas da globalização e colocá-los como atores de um novo momento. Elas estão por trás dos números frios e iníquos de centenas de estatísticas que provam o quanto estamos indo para o abismo”, diz Oliveira, que procura desenvolver novas tecnologias aplicadas à imagem digital.

APOIO AOS SEM-TERRA Acompanham os painéis fotográficos um filme de 15 minutos, gerado com a mais alta tecnologia, unindo imagens, frases de impacto e músicas de grandes nomes da música brasileira, como o cantor e compositor Tom Zé. Do ponto de vista técnico, Excluídos é resultado de um trabalho

Robson Oliveira

Fotógrafo brasileiro expõe imagens de “uma sociedade descartável” e denúncias sobre as mazelas do Brasil

Excluídos: imagens de uma sociedade descartável se propõe a tirar do anonimato as vítimas da globalização; as cores destacam valores ligados ao consumismo

pioneiro que utiliza novas técnicas de melhoria no tratamento e impressão de imagens digitais, garantindo alta qualidade de fotografia. As fotos foram capturadas com equipamento digital e programas de computador de última geração. As imagens são em preto e branco, mas com detalhes coloridos, produzidos a partir de uma técnica desenvolvida pelo próprio fotógrafo. Os cidadãos são cinzas como suas vidas; as cores destacam os produtos e o olhar da sociedade de consumo. Sob o viés sociológico, o trabalho de Oliveria é fruto de uma pesquisa socioeconômica e de uma

análise da sociedade globalizada ao longo dos últimos quinze anos, em cidades de vários países (Brasil, Estados Unidos, Jamaica, Egito, Espanha, Canada, México e Israel). “Esta análise tem por cenário o mundo urbano e rural”, explica Oliveira, que levou para a Europa também denúncias sobre tentativa de expulsão de sem-terra do acampamento Chico Mendes, no interior de Pernambuco, por parte do grupo econômico Votorantim. Com exclusividade, Oliveira levou para a Europa registros de outros fotógrafos, colaboradores do Brasil de Fato, que estão

acompanhando a Marcha Nacional pela Reforma Agrária, que saiu dia 2, a pé, de Goiânia em direção a Brasília, reunindo cerca de 12 mil sem-terra de 22 Estados mais o Distrito Federal. Durante o congresso em Pádua, os participantes tiraram uma moção de apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Além disso, quinze ONGs que atuam no combate ao turismo sexual na Europa adotaram o filme de Oliveira como parte de uma campanha a ser exibida em todo o continente. Também o indicaram como representante da

campanha no Brasil. A organização Capo d’Arco, que coordena a iniciativa, emitiu um documento em que considera Excluídos “um dos mais completos trabalhos sobre a exclusão, suas causas e seus efeitos, e principalmente como um dos mais competentes estudos sobre a civilização pós-industrial e a globalização”. “A idéia é entregar ao presidente Lula cópia do filme e da mostra, durante um evento sobre turismo sexual, dia 18, em Fortaleza”, diz Oliveira. Depois de Pádua, Excluídos segue para Milão, Florença, Roma e outras capitais européias.


16

CULTURA

De 12 a 18 de maio de 2005

COSTUMES

O dia de matar a saudade da Bolívia Tatiana Merlino da Redação

P

assear pela Praça Padre Bento, aos domingos, é como fazer uma visita à Bolívia. A língua que se ouve é o castelhano. Nas barracas de comidas típicas, lêse: Se sierve fricase, sajta de pollo, empanadas, salteñas. Localizada entre as ruas da Olaria e Pedro Vicente, no bairro do Pari, região central da cidade de São Paulo, a praça, rebatizada de Kantuta – nome de uma flor semelhante ao lírio, originária da Cordilheira dos Andes, de cores iguais às da bandeira da Bolívia – recebe, todos os domingos, cerca de três mil pessoas que tentam matar a saudade de casa, rever amigos e preservar suas referências culturais. Apesar da presença também de imigrantes peruanos, paraguaios e argentinos, a maioria dos visitantes da praça é boliviana, residentes legais e ilegais, que habitam e trabalham nos bairros vizinhos, como Brás e Bom Retiro. Nas cem barraquinhas de lona que funcionam das 11h às 19h, encontram-se cereais, pães, bolos, roupas coloridas, flautas, CDs com sucessos em espanhol e até fotografias de festas típicas. No centro da praça há uma quadra, onde rapazes disputam torneios de futebol de salão e um palco para apresentações de músicas e danças típicas da Bolívia. Em canto mais reservado, mural de anúncios recruta trabalhadores para oficinas de costura – onde os bolivianos

Giorgio D’ Onofrio

Milhares de bolivianos retomam suas raízes, na Praça Kantuta, onde preservam os valores culturais de seu país jovem, “aqui encontramos os amigos e lembramos de casa”.

PRATOS TÍPICOS

Aos poucos, a Praça Kantuta, no Centro de São Paulo, foi se tornando uma referência para a comunidade boliviana

fazem jornadas de até 16 horas por dia, recebendo salários baixos que, muitas vezes, acabam virando trabalho escravo (veja a reportagem na edição 114 do Brasil de Fato, de 5 a 11 de maio).

REFERÊNCIA Aos poucos, a Praça Kantuta foi se tornando uma referência para a comunidade boliviana, que “sente como se estivesse voltando para casa”, acredita Jorge Meru-

via, ex-presidente da Associação Gastronômica, Cultural e Folclórica Boliviana Padre Bento, organizadora do evento. “A praça é muito importante porque aqui as pessoas mantêm suas práticas culturais e cultivam relações sociais”, acredita Meruvia. A integração entre os freqüentadores da praça é tamanha que rende até casamento, como aconteceu com Marisa e Javier. Ambos vieram de La Paz para trabalhar

em oficinas de costura. Javier conta que começou a paquerar Marisa durante uma festa: “Chamei ela para dançar e estamos juntos desde então”. Todos os domingos, o casal vai à praça tomar sopa de chuño (batata boliviana) e suco de mocochinchi (pêssego). “Gosto muito de vir aqui”, diz Marisa. “A gente trabalha o dia inteiro, não vê a luz do dia. Quando venho aqui, como e vejo coisas que no Brasil não tem”, avalia. Além disso, diz a

Na maioria das barraquinhas dispostas nas calçadas, vende-se pratos típicos da região de La Paz, como fricase (sopa de batata, milho e pernil), sajta de pollo (coxa de frango, batata, macarrão e arroz), sopa de mani (amendoim), sopa de chairo (batata boliviana, cenoura, ervilha e carne seca). Entre os quitutes mais vendidos estão as salteñas (empanadas com massa doce e recheio de legumes, azeitona e batata) e as tucumanas (massa frita). Uma das únicas barracas que vende comida de outra região é a coordenada por Sabina Rojas, onde há pratos típicos de Cochabamba, como charquekán (carne bovina frita), pique a lo macho (batatas fritas, carne bovina, salsicha e ovos). Orgulhosa, a boliviana de 35 anos conta que sua barraca faz sucesso não apenas entre os “cochabambinos”, mas também entre pessoas de outras regiões da Bolívia e brasileiros que freqüentam a feira. Há três anos no Brasil, Sabina engrossa a lista dos bolivianos que trabalham em oficinas de costura e a acredita que a praça é fundamental para “ajudá-los a não se sentir tão sozinhos”. “Aqui a gente fala com os patrícios no nosso próprio idioma. Isso tudo ajuda a seguir trabalhando metidos em casa a semana toda”, se conforma Sabina.

MÚSICA

Na África, o rap é um instrumento de luta Um garoto negro, de chinelos e boné virado de lado, caminha pela favela. Ele seria facilmente confundido com os habitantes do lugar, se não fosse a curiosidade pelo desconhecido que aflora de seus olhos pretos. Ao ser conduzido por Roberto Castro – líder comunitário, loiro, olhos azuis – ouve com atenção as explicações sobre a vida no Jardim Fim de Semana, bairro localizado na periferia da zona sul da cidade de São Paulo. Vê o lixo espalhado entre as vielas, crianças correndo descalças entre barracos de tijolo aparente e papelão. MC Kappa, rapper angolano de 24 anos, reconhece ali um pouco de seu país. Nas periferias de Angola, em vez de Rappin`Hood ou Bonde do Tigrão, é a sua música que ecoa. No interior de seu país, dissemina suas idéias, à margem da mídia. Se esconde do governo, dos que estão no poder, que não aceitam suas letras de contestação política. Dia 26 de novembro de 2003, a guarda federal de Angola matou Arsénio Sebastião, o frentista Cherokee, 27 anos, por cantar “A téknica, as kausas e as konsekuências”, um de seus raps. Kappa é de Angola, país que teve sua independência em 1975, depois de quase 500 anos de colonização portuguesa, e desde então mergulhou em uma guerra civil de 30 anos, encerrada em 4 de novembro de 2002. Um país que sofre com absurdos contrastes sociais, onde não se respeitam as convicções ideológicas, as opções. Um país de escassos serviços públicos, quase todos controlados por quem tem nas mãos o poder político. Kappa está divulgando seu trabalho no Brasil, onde aproveitou para conhecer comunidades carentes do Rio de Janeiro e de São Paulo. No Jardim Fim de Semana, quer participar de um intercâmbio de idéias com a comunidade. Também visitam a favela quatro estudantes de Moçam-

também tem efeito sobre as outras pessoas, estimulando mais ainda os seus medos. O meu trabalho é respeitado por aqueles que vêem suas vidas representadas, mas as pessoas sentem pavor de fazer o mesmo, para não correr os riscos. De qualquer jeito, a minha música em Angola exerce um impacto muito forte.

Fotos: Anderson Barbosa

Bel Mercês da Redação

Jovens brasileiros e africanos trocam experiências culturais e políticas

bique, integrantes de um programa cultural promovido pela organização não-governamental Conectas. No terceiro andar da Associação Rainha da Paz, espaço de mobilização social e política da população, preparava-se um debate entre jovens africanos e brasileiros. Antes disso, MC Kappa conversou com o Brasil de Fato. Brasil de Fato – Quando a música se tornou instrumento de luta social para você? MC Kappa – Comecei a cantar em 1995. Meu primeiro contato com a música foi uma espécie de reprodução dos reflexos que eu tinha dos Estados Unidos. Com o tempo, a música foi se tornando um compromisso e houve a necessidade de eu refletir a importância dela sobre as nossas vidas. Particularmente na África, é o veículo mais imediato e mais dinâmico de informação e formação de consciências. Faz com que as pessoas procurem resgatar sua cultura, que estejam mais a par da verdadeira realidade, que é dura e cruel, diferente daquela fantasiada pelos meios de comunicação. O contato musical, no sentido de despertar consciências, faz com que as pessoas ganhem, por si mesmas, a capacidade de refletir. Na África, a música é um

grande instrumento de luta. BF – Como é o seu trabalho? É muito difícil ser rapper em Angola? MC Kappa – É difícil trabalhar contra a comunicação de ordem sensacionalista. As minhas músicas não são veiculadas nos meios de comunicação. A grande dificuldade tem sido na distribuição. Mas, felizmente, nós temos métodos independentes de fazer com que circulem. Mc Kappa é um artista hoje bem conhecido nos países de expressão portuguesa, mas é um trabalho que se fez fora dos meios oficiais de comunicação. A distribuição da música é feita como é o tráfico de drogas no Brasil. Não existe uma instituição legal, mas vende bem. BF – Como é o seu contato com o público? MC Kappa – As pessoas sabem qual é a sua realidade porque vivem diariamente as dificuldades. A população em Angola é fortemente asfixiada pelo medo porque o poder é mesmo repreensivo, como no caso do jovem morto por estar cantando a minha música. Isso é uma clara demonstração de abuso no poder, de violação do mais humilde dos direitos humanos: a vida. Um acontecimento desses

BF – O que você viu da cultura africana no Brasil? MC Kappa – A primeira coisa foram os traços, as afinidades culturais. Sente-se muito a África no comportamento dos brasileiros, na maneira de cantar, de se apresentar. Na capoeira, você sente o ritmo da África, o movimentar do africano. A música preta tem a grande intensidade textual da África, que é a denúncia das agressões, do modo de vida cruel da favela. Sinto que a educação musical brasileira recebe um bocadinho da experiência da tradição africana, de transmissão do conhecimento por via oral. Além disso, no Brasil há muitas disparidades sociais também, como em Angola. Há um grupo de pessoas que ostenta recursos e há um grande número de pessoas vivendo nas favelas. BF – O que você conhecia sobre o Brasil antes de chegar aqui? MC Kappa – As grandes informações que chegam em Angola sobre o Brasil são aquelas com um cunho na vertente comercial. A cadeia televisiva da Globo, assim como a da Record, tem muita audiência. As referências que temos são o que a imprensa brasileira exporta – o futebol, o carnaval, as novelas e em parte a música. Mas, depois desse contato verdadeiro que eu tive com o Brasil, percebi que o país não é só isso. BF – O que você discutiu na audiência com o ministro da Cultura, Gilberto Gil? MC Kappa – Foram assuntos

Quem é O artista angolano MC Kappa, que prefere não revelar seu verdadeiro nome, é músico, ativista político e estudante de filosofia. Lançou, de maneira independente, o CD Trincheira de Ideías. de intercâmbio cultural entre os dois países, no sentido de criar corredores de troca nas relações culturais. O Brasil é um país com projetos no campo de formação em cultura. Existem aqui mais escolas de música, de teatro, de arte em geral. Isso pode influenciar esse novo momento de Angola, relativamente um momento de paz, onde as pessoas precisam de formação cultural. Existem grupos e associações, tanto de Angola como do Brasil, que fazem estudos específicos sobre a história da África, sobre o processo de libertação de Angola, pesquisam figuras históricas como Agostinho Neto. Seria bom que essas pessoas tivessem acesso ao terreno para realizar suas pesquisas de maneira prática, tendo um maior acervo de informações e estabelecendo contato com pessoas que são espécies de enciclopédias vivas, que conviveram diretamente com essas personalidades. Tudo isso para construir a história resgatando a verdadeira identidade cultural da África.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.