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Ano 3 • Número 116

R$ 2,00 São Paulo • De 19 a 25 de maio de 2005

Milhares, em Brasília, cobram promessas Sem-terra, organizados pelo MST, chegam à capital federal para exigir reforma agrária e mudança na politica econômica Jorge Araújo/ Folha Imagem

Cerca de doze mil trabalhadores rurais sem-terra, que participaram da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, chegam à capital federal, depois de percorrer, a pé, mais de 200 quilômetros

Cuba: EUA apóiam o terrorismo

A

Governo paga em juros mais de R$ 1 trilhão Entre 1983 e 2004, as despesas com juros de todo o setor público foram à estratosfera: R$ 1,33 trilhão. Algo como 99% de tudo o que o Brasil produziu em 1995. Ou quase 76% de todas as riquezas produzidas em 2004 por todos os brasileiros. É o que mostra estudo de economista do Ipea, do Ministério do Planejamento. Nos próximos doze meses, estes gastos com os juros chegam perto de R$ 1 bilhão. Essa é a política econômica que se perpetua no Brasil. Págs. 2 e 7

Centenas de milhares de cubanos tomaram as ruas de Havana, dia 16, exigindo do governo Bush a extradição do terrorista Luis Posada Carri-

les, ex-agente da CIA acusado de articular um atentado que matou 76 pessoas. “Não é uma marcha contra o povo dos Estados Unidos, mas contra o

terrorismo, a favor da vida e da paz de nosso povo e de nosso povo irmão dos EUA”, afirmou o presidente Fidel Castro. Pág. 9

Adalberto Roque/ AFP/ Folha Imagem

capital se cobriu de vermelho dia 17. Homens, mulheres e crianças, de 22 Estados, chegaram a Brasília, depois de caminhar 16 dias. Exigiam reforma agrária, emprego e justiça social. Durante o dia, esses brasileiros protestaram. Na frente da embaixada dos EUA, uma fogueira com restos de produtos-símbolo do imperialismo; no Ministério da Agricultura, pediram mudanças na política agrícola e críticas aos transgênicos; na Fazenda, pesadas reclamações contra a política econômica. Por fim, um ato em frente ao Congresso, com a participação de políticos e artistas. Uma delegação de 50 lideranças do MST e de outras entidades foi recebida pelo presidente Lula, para entregar as reivindicações da Marcha. Numa autocrítica, Lula reconheceu que está em dívida com os sem-terra. “Se não cumprirmos as metas da reforma agrária, teremos um problema de consciência com nós mesmos”, afirmou. Págs. 2, 4 e 5

Povos europeus se unem contra a Constituição Nos 25 países da União Européia, milhares de pessoas vêm se manifestando contra a proposta de Constituição, que deve ser votada até o final de 2006. Para seus críticos, a Carta é neoliberal e fere os direitos dos trabalhadores. No dia 28, a opção dos franceses será decisiva, e influenciará o voto dos povos de outros países da UE. Pág. 11

Mobilização pelos direitos das crianças

Mais de um milhão de cubanos marcham pelas ruas de Havana contra ações terroristas dos Estados Unidos

E mais: ENTREVISTA – Na América Latina, ventos revolucionários, segundo analisa Valério Arcary, da direção nacional do PSTU, em entrevista ao Brasil de Fato. Pág.10 VIOLÊNCIA – George W. Bush mente. No Iraque, que os EUA invadiram em 2003, a guerra não acabou. Só neste ano, mais de 2 mil iraquianos foram mortos. Pág. 13

Para lembrar o dia nacional de combate ao abuso e à exploração sexual infanto-juvenil, 18 de maio, diversas atividades foram realizadas entre os dias 16 e 18. O tema central foi “Direitos Sexuais são Direitos Humanos”, destacando o direito das crianças e adolescentes de desenvolver a sua sexualidade de maneira saudável e protegida. Pág. 8

Na Bolívia, o presidente sofre mais pressões Pág. 9

Recuperação de fábricas no filme de Klein Pág. 16


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De 19 a 25 de maio de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Marcelo 5555 Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretária de redação: Thais Pinhata 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

É hora de honrar compromissos Depois de percorrer 233 quilômetros, os doze mil trabalhadores e trabalhadoras sem-terra, oriundos de 23 Estados, tomaram a capital federal para exigir do governo Lula a democratização do acesso à terra. Mais do que isso, a marcha organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) reivindica que sejam honrados os compromissos sociais assumidos pelo governo com a sociedade. Para tanto, os milhares de manifestantes afirmam que sem mudança nos rumos da política econômica, é impossível atender às históricas demandas do povo brasileiro. Em 2002, o governo federal desenhou o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária. Nele, garantiu assentar, até 2006, 400 mil famílias sem-terra, e prometeu financiamento para aquisição de imóvel rural para 130 mil famílias. Passaram-se dois anos e meio de governo e o sonho de ver uma ampla ação contra o latifúndio, por enquanto, foi frustrado. Nesse período, os números oficiais divulgados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) apontam que foram assentadas 117 mil famílias. Reportagem exclusiva do Brasil de Fato mostrou que, na verdade, a grande maioria dessas famílias beneficiadas foram assentadas em projetos de assentamentos criados em governos anteriores, como os do Fernando Henrique Cardoso. Em 2004, as me-

tas do Plano Nacional estipulavam o atendimento de 115 mil famílias. O governo diz que assentou cerca de 80 mil famílias. Mas, de acordo com números internos do Incra, o governo Lula beneficiou apenas 25,7 mil dessas famílias em assentamentos criados durante o seu governo — ou seja, 21% da meta. A questão dos números é apenas um aspecto. Outras ações previstas no Plano Nacional, como a atualização do Índice de Produtividade da Terra, continuam existindo apenas como promessa. Hoje, o Incra utiliza, ainda, indicadores de 1975 para avaliar se o latifúndio é improdutivo. Ocorre que o mesmo agronegócio que diz semear a modernidade em nosso país não aceita submeter à prova esse discurso de que é altamente produtivo. Ao mesmo tempo, o governo não teve ainda a disposição necessária para corrigir esta distorção histórica de 20 anos que, segundo o próprio Incra, dificulta a democratização da terra. O mais grave é que, se o governo não alterar as diretrizes de sua política econômica – um dos principais consensos entre os movimentos populares –, será impossível avançar no resgate da dívida social dos brasileiros. Dos R$ 3,4 bilhões previstos no orçamento deste ano para o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), o ministro da Fazenda,

Antônio Palocci, cortou R$ 2 bilhões para fazer caixa e assegurar cerca de R$ 60 bilhões do superavit primário, para pagar juros da dívida externa. Enquanto Palocci corta os gastos públicos e reduz a ação do Estado no atendimento das carências sociais, o Banco Central age livremente e atende às reivindicações do mercado, elevando os juros mês após mês. A conseqüência é que, com juros maiores, novos cortes no orçamento, o Brasil segue patinando nessa ciranda neoliberal que espalha desemprego e miséria. O Brasil tem cerca de 800 milhões de hectares de terra cultiváveis. Somos um dos únicos países do mundo que ainda não fez reforma agrária. Todas as nações desenvolvidas fizeram reforma agrária, democratizaram o acesso à terra. Está mais do que comprovado que a atividade rural é a que mais emprega no Brasil. As estatísticas mostram que mais de 60% dos alimentos que chegam à mesa das famílias brasileiras são produzidos pela agricultura familiar. No entanto, a sociedade convive com alarmantes índices de desemprego. Fazer a reforma agrária significa pôr fim ao êxodo rural, que continua a inchar os grandes centros urbanos, reduzir o número de favelas, diminuir a desigualdade social e a violência nas cidades. Chegou a hora de agir.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES RAÍZES AFRICANAS NA ARGENTINA Todo juízo de valor deveria ter uma assinatura, de pessoa física. É o que não acontece na reportagem sobre as raízes africanas na Argentina, de autoria da redação (Brasil de Fato, edição 113). O juízo de valor existe por generalizar que este é o pensamento de todos os hermanos, parece que o racismo é moeda corrente no país. Atos de racismo como o do jogador argentino são inadmissíveis, como também é a armação do São Paulo Futebol Clube para colocar na cadeia o infeliz esportista do clube argentino. Armação com TV ao vivo (a Rede Globo!) e com o delegado na beira do campo pronto para agir. Seria bom se vocês tivessem mencionado isso na matéria também. Quanto às raízes africanas, pergunto: como pode se negar alguma coisa que se desconhece? A informação dos pesquisadores da Universidade de Cordoba é muito boa, só esqueceram de dizer que a escravatura foi abolida na Argentina em 1813 e que na escola deste país hermano não ensinam nada sobre raízes africanas e suas derivações. Então, quem não sabe, como pode negar? Os que podem negar são os filhos de europeus, podres em dinheiro e que acabaram com o país. Acredito que seria mais importante mostrar a condição infra-humana em que vivem os primitivos habitantes da Argentina: os indígenas dos quais este povo herdou traços e costumes. Grato. Eduardo Ferraro por correio eletrônico BOICOTE AO ENADE Carta Aberta do Serviço Social da Universidade Federal Fluminense sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade): “Os estudantes de Serviço Social-UFF vêm esclarecer o resultado do Enade. O Ministério da Educação nos põe como o pior curso

do Rio de Janeiro, com 0,7, mas omite que o resultado é um boicote deliberado no Encontro Nacional de Estudantes de Serviço Social. O Enade é parte da reforma universitária que visa financiar as privadas e justificar os cortes de verbas nas públicas com ranqueamentos que estimulam a concorrência entre as instituições e os estudantes. O governo não discute com os estudantes e a UNE não responde por nós. É urgente esclarecer à sociedade que este resultado é fruto de organização política. Diretório Acadêmico Maria Kiehl. Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense/Niterói por correio eletrônico E A MARCHA? Mais um domingo fantástico em que a Marcha Nacional do MST não foi notícia, nenhuma notinha sobre os companheiros que caminham há mais de quatorze dias. Mais uma vez nos ludibriaram com uma programação ilusionista, a serviço da classe dominante. Será que não é importante transmitir uma marcha que reúne doze mil pessoas pela luta por um Brasil sem latifúndio? De fato, para a classe dominante que detém os veículos de comunicação, esta marcha vai contra os interesses de manutenção da ordem, do sistema em vigor que explora a maioria em detrimento dessa minoria que marginaliza as ações dos movimentos sociais por terem seu poder questionado. Neste momento, os companheiros devem estar se preparando para mais um dia de caminhada e luta, alimentados pela esperança da construção de um país justo, onde os frutos da terra seja um direito de todos. Bárbara Zeferino por correio eletrônico

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CRÔNICA

No reino do faz-de-conta Luiz Ricardo Leitão A marcha dos trabalhadores semterra logrou ocupar algum espaço no poderoso latifúndio da mídia tupiniquim, essa enorme sesmaria controlada por meia dúzia de “modernos” coronéis da burguesia nativa, quase sempre em sólida parceria com alguma corporação transnacional. É claro que boa parte dos editores de plantão apenas se interessou em saber como — e de onde — a direção do MST obteve recursos materiais e financeiros para organizar a iniciativa. Até os “colunistas sociais”, mestres na arte de destilar veneno em três ou quatro linhas, trataram de lançar suas farpas contra o movimento, disparando ironias furiosas acerca dos ônibus ou computadores que algumas prefeituras e ONGs cederam aos lavradores. Esquadrinhando os jornais pude constatar um processo típico desta era dita “neoliberal”: a interferência cada vez mais ostensiva do mundo midiático virtual sobre a nossa dura e prosaica realidade cotidiana. Afinal de contas, mesmo ciente das agruras que a esfera privada inflige ao espaço público, quem poderia imaginar que em pleno século 21 a decantada “aldeia global” servisse apenas de passarela eletrônica para o fetiche da mercadoria?

O gosto pelo banal e o fait divers, por certo, não é nenhuma novidade na história burguesa. Ele nasce junto com a própria imprensa na Europa, consolida-se nos folhetins do século 19 e torna-se hegemônico no século 20 com a ascensão da “indústria do entretenimento”, um dos maiores investimentos da moderna economia capitalista. Seu tema, quase sempre, é a vida (de preferência, exótica ou escandalosa) dos artistas e personalidades globais – o que hoje também inclui estrelas do futebol (Beckham e Ronaldo que o digam) e desportistas em geral. Os tablóides ingleses e os paparazzi italianos são dois ícones eloqüentes desse processo. Na própria sede do atual império, quantas matérias não têm sido dedicadas às peripécias sexuais de seus presidentes, desde o esfuziante caso de Kennedy com Marilyn Monroe até o rumoroso episódio de Clinton com uma estagiária da Casa Branca? O que diferencia a nossa época não é, pois, a obsessão pelos tititis daqui ou de acolá, mas sim a irrefreável invasão da realidade pelo universo virtual da mídia. Enquanto os sem-terra marchavam em busca de soluções para a justíssima causa da reforma agrária no Brasil, com que se deleitava a “opinião pública” na-

cional? Sem falar da novela Ronaldo & Cicarelli, um prato cheio para o nosso edificante jornalismo, ou da visita da senhorita Rice à colônia (que, não por acaso, foi saudada por virulentos ataques a Chávez nos mais reacionários magazines), tudo o mais eram refrações da telegenia pasteurizada que nos servem de bandeja a cada minuto. O patético cenário pode ser muito bem resumido no “drama” que uma ex-BBB (a mais nova categoria de aposentados em Tupinicópolis) “protagoniza”: deverá ela posar nua para a Playboy ou aceitar o convite para substituir Xuxa no posto de “rainha dos baixinhos”? No reino do faz-de-conta, a vida é assim: sob a égide do Big Brother Mercado, seus 15 minutos de fama servirão somente para vender um novo produto, talvez uma reluzente prótese para suas nádegas ou, quem sabe, a própria educação dos filhos pelas protuberantes titias da telinha. Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)

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NACIONAL DIREITOS HUMANOS

Em vez de manicômios, inclusão social Bel Mercês da Redação

O

texto que circula pela internet, junto à programação da Semana da Luta Antimanicomial de 2005 provoca: “Quem está louco? Os internos dos hospitais psiquiátricos, com seus comportamentos que divergem dos padrões vigentes? Ou os grandes (e pequenos) detentores do perverso poder mundial? Ou, ainda, aqueles que se calam diante desse cenário de dominação?” Realizada pelo Movimento da Luta Antimanicomial (MLA), desde o dia 10 até dia 21, a Semana está promovendo na cidade de São Paulo diversas atividades culturais, debates e até mesmo campeonato de futebol. Tudo isso tem uma só finalidade: tornar pública a reflexão sobre as formas de tratamento substitutivas ao internamento manicomial de pessoas diagnosticadas como doentes mentais. “Buscamos ocupar espaços para falar sobre essa questão. A Semana tenta trazer isso, essa pauta, para a sociedade, e também para a mídia”, resume Patrícia Villas Boas, psicóloga e militante do MLA há oito anos. “Há 200 anos, a psiquiatria apropriou-se do conceito da loucura e a transformou em doença”, enfatizou Patrícia, tentando explicar o porquê do preconceito da sociedade em relação às pessoas com algum tipo de transtorno mental. “Existe o hábito de associar à loucura conceitos deturpados, como incurabilidade, incapacidade e periculosidade. Isso não é verdade”, argumenta.

Robson Oliveira

Debates e atividades culturais promovem a reflexão pública sobre tratamentos alternativos ao internamento

Manifestação durante o Fórum Social Mundial: no Brasil, cerca de 70% da verba destinada à saúde pública são revertidas para hospitais psiquiátricos

psiquiátricos, que trabalham na mesma lógica das prisões, com pacientes internos. Os tratamentos geralmente são feitos à base de muito remédio e pouca terapia. Por isso, tanto o MLA quanto outras entidades que trabalham com o tema defendem alternativas viáveis e absolutamente necessárias à prática do que chamam de “encarceramento”. Exigem nada mais que o cumprimento da Lei Federal nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtorno e redireciona o modelo de assistência em saúde mental. O parágrafo único do artigo nº 2 garante: “São direitos da pessoa

ALTERNATIVAS Hoje, no Brasil, cerca de 70% da verba destinada à saúde pública é revertida para os leitos de hospitais

portadora de transtorno mental... ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade”. Além disso, o parágrafo primeiro do artigo nº 4 assegura: “O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio”. Muita pressão e organização social para que esses direitos sejam respeitados resultou na implementação de algumas alternativas, mesmo que lentamente. É o caso da Rede de Atenção à Saúde Mental, que oferece serviços de tratamento visando

SINDICATOS

Agência Brasil

Palco da criação de uma plataforma para unificar – ao menos na maioria – o movimento sindical brasileiro em torno da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 369, da reforma sindical, foi realizada, entre os dias 10 e 13, em São Paulo (SP), a 11ª Plenária Nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT). O projeto da reforma, enviado pelo governo federal ao Congresso em março, tem gerado divergências entre todas as tendências da central pelas polêmicas alterações à legislação sindical. Na sociedade, então, considerando-se o ponto de vista dos empresários, as diferenças são ainda mais gritantes. Nesse contexto, onde a perspectiva de aprovação da reforma sindical se torna cada vez mais remota, a Corrente Sindical Classista (CSC), tendência de oposição dentro da CUT ligada ao PCdoB, apresentou uma proposta de conciliação chamada “Plataforma Democrática Básica”. Apoiada pela cúpula, a proposta foi aprovada por 84% dos delegados presentes à Plenária. “Todas as tendências tiveram que ceder um pouco, mas o importante foi romper com a idéia polarizada de ser contra ou a favor e fazer a reforma andar”, explica Wagner Gomes, vice-presidente da CUT e integrante da coordenação nacional da CSC. O ponto que unificou a maioria da central foi a “manutenção da esUnicidade – Regra trutura atual nos que proíbe a criação de de mais de um sindi- sindicatos cato por categoria na base”, ou seja, mesma localidade. a unicidade sindical. Segundo Antonio Carlos Spis, secretário nacional de comunicação da CUT, o que está posto na legislação atual não dá conta da nova dinâmica do mundo do trabalho: “Isso

INDÚSTRIA DA LOUCURA O filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky, retrata o caso do jovem Neto, adolescente da classe média internado em um manicômio por seus pais, após terem descoberto

a relação do filho com as drogas. Ele vê sua vida mudar drasticamente na rotina de uma “clínica de recuperação” – na verdade, um grande centro de detenção onde é diariamente dopado e até mesmo torturado. Essas coisas também acontecem na vida real: a maioria dos hospitais psiquiátricos (cerca de 90% são particulares ou filantrópicos) recebe o repasse de verbas públicas por quantidade determinada de leitos ocupados. Patrícia conta que, no interior, “tem muito manicômio que interna gente sem motivo. Mas essas pessoas enlouquecem lá dentro. É a verdadeira indústria da loucura”, garante a psicóloga.

PT NO GOVERNO

84% da CUT quer salvar reforma Luís Brasilino da Redação

a inclusão social em todo o Brasil – por meio de ferramentas como a arte-educação – e recebe cerca de 30% da verba para saúde pública. Na mesma lógica, existem projetos de residências terapêuticas, que são como repúblicas onde as pessoas com transtorno mental estabelecem moradia, integrando-se à comunidade e visitando os hospitais da rede pública apenas para tratamento.

Partido e movimentos sociais: uma luta comum Tatiana Merlino da Redação

Proposta que mantém unicidade sindical conta com apoio de sindicalistas da CUT

deixa muitos trabalhadores sem representação e indica a necessidade da reforma”. Para Júlio Turra, houve uma capitulação. Diretor executivo da CUT nacional, ele gostaria de sustentar bandeiras históricas da central, como o fim da unicidade e do imposto sindical. Na sua avaliação, faltou coragem para enfrentar as dificuldades que o projeto de reforma encontraria com a correlação de forças desfavorável no parlamento. “O projeto ficaria atolado num Congresso de 300 picaretas comandados pelo Severino (Cavalcanti, presidente da Câmara dos Deputados) e eles estão tentando salvar a reforma por meio da obstrução dos seus pontos negativos. Por isso, querem reintroduzir a unicidade na base”, denuncia Turra.

POLÍTICA ECONÔMICA Além da reforma sindical, a Plenária definiu outros três eixos de mobilização da CUT até a realização do seu congresso nacional, previsto para maio de 2006: a conversão da dívida externa em recursos para a educação (proposta da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, lançada em janeiro); a redução da

jornada de trabalho sem redução de salários; mudanças na política econômica do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ficou agendada para agosto uma marcha de aproximadamente 40 quilômetros até Brasília (DF), para discutir e pressionar por estas questões. A política econômica é, certamente, o maior fator de agregação dos movimentos brasileiros. Por isso, a Plenária adotou uma resolução de apoio à Marcha Nacional pela Reforma Agrária, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Júlio Turra conta que a presença de João Pedro Stedile, da coordenação nacional dos MST, na abertura da Plenária, foi importante para colocar a marcha não como uma mobilização apenas dos sem-terra, mas como de todos os movimentos que querem ver cumpridas as promessas do presidente Lula. “Promessas não cumpridas por submissão aos ditames de Washington (capital estadunidense), que nos impõem uma política econômica voltada para o mercado externo e para o pagamento de juros em detrimento do investimento público”, avalia Turra.

Com 30 meses de atraso, a relação entre o Partido dos Trabalhadores e os movimentos sociais foi discutida, dias 14 e 15, durante a Conferência Nacional “O PT e os Movimentos Sociais”. Na opinião unânime dos representantes da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), o debate foi positivo, mas muito atrasado. “Deveríamos ter feito essa conferência no primeiro dia do governo Lula”, acredita Sônia Hipólito, do Diretório Nacional do PT. Não é apenas o debate com os movimentos que está atrasado. Na opinião de Nalu Faria, representante da CMS e do coletivo de mulheres do PT, ao longo dos anos 90, o PT passou a priorizar a agenda institucional e foi se afastando das bases. Esse processo se intensificou com a chegada ao poder. “Houve uma institucionalização do partido, voltado mais para a governabilidade baseada na maioria parlamentar, com a construção de alianças”, diz. Em conseqüência, afirma Nalu, hoje o PT tem como desafio modificar a relação com os movimentos sociais, recuperar a democracia interna e retomar o programa histórico do partido – debates que também estão muito atrasados.

RUMOS DO SOCIALISMO Em relação ao governo anterior, Nalu acredita que hoje há um diálogo maior com os movimentos sociais: “Porém, os setores mobilizados não têm poder de decisão”. Para ela, o papel dos movimentos, “que estão atuando com sabedoria e generosidade”, é continuar lutando para mudar a política econômica e forta-

lecer a CMS – que vem trabalhando para “qualificar o debate e não deixar os movimentos sem referência”. Paralelamente à conferência dos movimentos sociais, houve um debate em comemoração aos 25 anos do PT, no qual foram discutidas as estratégias e os desafios da esquerda no século 21. O ministro da Educação, Tarso Genro, defendeu a revisão de todos os paradigmas da esquerda. Segundo ele, o ponto de vista marxista-leninista levou a esquerda socialista a um “retumbante fracasso”. Genro afirmou ainda que o socialismo real apontou menos para as classes trabalhadoras do que a social-democracia. Na avaliação de Valter Pomar, terceiro vice-presidente do PT, o debate deixou evidente que “há um setor do partido que abandonou o socialismo”. De acordo com ele, a afirmação de Genro sobre a contribuição da social-democracia para a classe trabalhadora é “totalmente equivocada”. “Quem disse que o socialismo do século 21 pretende repetir tudo do socialismo do século 20?”, questiona. “A experiência da União Soviética serve para que as pessoas saibam o que se deve e o que não se deve fazer”, completa Pomar. Apesar de haver um setor social-democrata dentro do PT, avalia Pomar, “o partido ainda é socialista. O perigo, alerta, “é que a posição social democrata persista majoritariamente. Aí sim o partido pode se tornar social democrata”. Para que isso não aconteça, afirma o petista, “temos que mudar a direção do partido, hegemonizada pela direita, atualizar a análise crítica ao capitalismo, reafirmar o partido como socialista e nos reproximar dos movimentos sociais”.


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Espelho

NACIONAL MARCHA NACIONAL

da mídia

E Brasília se cobriu de vermelho

Hamilton Octavio de Souza Má vontade Normalmente empenhada na defesa cega das políticas emanadas dos Estados Unidos e, na maioria, partidária do Estado de Israel, boa parte da imprensa brasileira e do mundo ocidental cobriu com má vontade o encontro da Cúpula América do Sul – Países Árabes, realizado em Brasília. Alguns jornais deram mais destaques aos detalhes – especialmente às intrigas entre governantes latino-americanos – do que ao significado e aos resultados efetivos do encontro.

Bel Mercês enviada especial a Brasília (DF)

O

Distrito Federal ficou vermelho, como a cor do barro do Cerrado. A música anunciava a manifestação pacífica: “Não é guerra não, minha gente, são os sem-terra. A marcha segue na capital federal. E vai cobrar de quem comanda o país a reforma agrária, emprego e justiça social”. Um mar de bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) adentrou a capital do Brasil no dia 16 e levantou as barracas de lona, divididas em 22 Estados mais o Distrito Federal, no Estádio Mané Garrincha. A Marcha Nacional pela Reforma Agrária, que saiu de Goiânia no dia 2, com mais de 12 mil pessoas, cumpriu seu destino. Chegou a Brasília para cobrar do governo o assentamento das 430 mil famílias, como promete o Plano Nacional de Reforma Agrária, pedir o fortalecimento e reestruturação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a atualização dos dados que definem do índice de produtividade agrícola e a criação de créditos especiais para as famílias do campo. Os manifestantes caminharam cerca de 233 quilômetros durante 16 dias para exigir mudanças na política econômica, redução da taxa de juros e a renegociação da dívida externa.

Interesse desagregador Quem leu a cobertura do evento no jornal O Estado de S. Paulo (11/5), deve ter ficado com a sensação de que Brasil e Argentina estão na iminência de uma guerra. Vejam os títulos das matérias: “Kirchner abandona cúpula e irrita o governo brasileiro”; “Ele passou dos limites, criticam diplomatas”; “Setor têxtil argentino acusa Brasil de ter política comercial depredadora”; “CNI apóia governo e diz que posição Argentina é inaceitável”. E vai por aí afora... Partido reacionário Fiel ao imperialismo dos Estados Unidos e ao fascismo do atual governo de Israel, o Estadão deixou muito claro o que pensa no editorial do dia 12: “A América do Sul, em geral, não ganhou nada, os países árabes obtiveram o que queriam – usar a conferência como um palco novo para atacar Israel e os Estados Unidos – e o Brasil só teve prejuízos”. Como se pode ver, a questão é mesmo político-ideológica, pois até os acordos comerciais foram ignorados. TV independente Presente no encontro da Cúpula América do Sul – Países Árabes, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, anunciou que a TV Sul – a emissora criada por Venezuela, Argentina e Uruguai – deve iniciar testes de transmissão em duas semanas, mas em setembro entra em operação com a apresentação de telejornais para toda a América Latina. Será o primeiro canal não comercial a operar em vários países do continente.

Os manifestantes caminharam cerca de 233 quilômetros durante 16 dias para exigir mudanças na política econômica

ÚLTIMO DIA O último dia da Marcha começou mais tarde. Os manifestantes, acostumados a levantar das barracas às 5h, puderam dormir um pouco mais na terça-feira, 17. Durante a manhã, o acampamento recebeu a visita de políticos e artistas, enquanto as delegações dos Estados faziam grupos de estudo, discussões ou simplesmente tocavam pandeiro e cantavam. Sergio Mamberti, secretário da Identidade e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, veio conhecer as instalações e declarou seu apoio à marcha nacional, ressaltando que “o MST é um dos movimentos sociais mais importantes do mundo, não apenas na questão da terra, estendendo suas reivindicações para outras áreas. A marcha é uma expressão política e cultural, e a cultura um instrumento fundamental para a transformação do país”.

Língua ideológica A maior parte da imprensa comercial-burguesa caiu de pau na “cartilha” das expressões politicamente incorretas, publicada pela Secretaria dos Direitos Humanos do governo federal. Em parte, a crítica e a tentativa de ridicularizar a iniciativa fazem sentido quando se observa o tratamento utilizado pelos principais jornais do país. A Folha de S. Paulo, por exemplo, só edita reportagens do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) sob as palavras (chapéu) CAMPO MINADO. O que quer dizer com isso?

ÍNDIOS, MÃES-DE-SANTO O sol do meio-dia anunciou o início da caminhada de 7 quilômetros que finalizou uma das manifestações políticas mais importantes do país. Sem-terra caracterizados de índios dançavam, outros encenavam escravos recebendo chibatadas, e um grupo de baianas e mães de santo distribuíam fitinhas do Senhor do Bonfim para a população, que observava e interagia com os manifestantes nas ruas de Brasília. À frente da enorme fileira vermelha tremulava a bandeira do Estado da Bahia, e sua delegação conduzia a passeata. O primeiro ato de protesto foi realizado em frente à embaixada dos Estados Unidos, onde foi feita uma fogueira com dejetos de produtos que simbolizam o imperialismo,

Disfarce angelical Depois de 40 anos de sacanagens contra o povo brasileiro, a concessionária do serviço público de radiodifusão denominada TV Globo, da família Marinho, está empenhada agora em parecer uma emissora boazinha, preocupada com as manifestações culturais do povo, interessada em projetos sociais, e aberta ao diálogo com a sociedade. Um de seus projetos é envolver estudantes e professores e aplacar, nas universidades, a visão crítica sobre a verdadeira história da Rede Globo.

como caixas e copos da lanchonete Mc Donald’s e garrafas de CocaCola. De cima do carro de som, Ana Shã, da coordenação nacional pelo coletivo de cultura, exclamava: “Estamos aqui para devolver o lixo que vocês produzem. Não queremos nada disso, queremos um país soberano”.

UMA LIÇÃO Um túnel levou os manifestantes para dentro do Ministério da Agricultura, onde foram feitas reivindicações específicas por mudanças na política agrícola e protestos contra os alimentos transgênicos. Depois, a marcha contornou o Congresso Nacional, passou em frente ao Palácio do Planalto e se dirigiu para a portaria do Ministério da Fazenda, onde o segundo ato começou com uma mística. Em cima do caminhão de som, a brigada de teatro fez uma apresentação em que um ator se colocava como o ministro Antonio Palocci, enquanto outros artistas representavam os movimentos sociais, pedindo uma política econômica para os brasileiros, na qual o povo não dependa de programas como o Fome Zero. Em seguida, Plínio Arruda Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária, deu uma breve aula de economia aos marchantes, e didaticamente, explicou o modelo neoliberal adotado pelo Brasil durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso e estendido por Lula. “Nós não precisamos de interferência estrangeira no Brasil para ajudar a economia. Precisamos fazer o modelo da barriga cheia, da

Marcello Casal Jr./ ABR

Distorção rotineira A ONG Ação Educativa, uma entidade séria e respeitada em São Paulo, enviou carta de protesto à revista Veja, por ter publicado na edição 1904 uma matéria sobre a indisciplina dos alunos da escola pública, na qual distorce a realidade, manifesta preconceito contra os jovens e tenta estigmatizar os filhos das camadas mais pobres da população. Veja não aprende mesmo. Quinta coluna A revista Fórum de abril publica uma excelente reportagem sobre o lobby da multinacional Microsoft para impor o uso de seus programas nos computadores do mundo, e conta como os governos do PSDB, de FHC a Geraldo Alckmin, preferem gastar uma fortuna do dinheiro público nesses programas do que usar o software livre, com custo zero. Entreguismo é apelido.

João Zinclar

Não foi guerra. Os sem-terra cobraram dos governantes a reforma agrária, emprego e justiça social

Fogueira com dejetos que simbolizam o imperialimo, diante da embaixada dos EUA

mudança digna, da escola eficiente, do hospital que recebe as pessoas. E nós temos condições de mudar com o que já temos no Brasil”, afirmou.

VIOLÊNCIA O último ato programado para o dia 17 foi em frente ao Congresso Nacional. No momento que os manifestantes ocupavam o gramado, um helicóptero da polícia fez vôos rasantes sobre a multidão, atrapalhando, inclusive, o teatro popular que estava sendo encenado. Outros policiais partiram para cima da massa à cavalo e distribuíram surras de cassetete, deixando um saldo de 14 sem-terra feridos. Enquanto isso, uma delegação com cerca de 50 pessoas, entre as quais dirigentes do MST e representantes de entidades amigas, era recebida pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. A direção nacional do MST publicou uma nota em sua página na internet sobre o ocorrido: “Nesses 21 anos, o MST nunca foi adepto e nem adota princípios da violência

para resolver o problema da reforma agrária no Brasil. Somos contra o uso de armas para resolver problemas sociais. Queremos uma justa distribuição da terra, onde todas as famílias possam viver e trabalhar com dignidade.” Dezenas de políticos de diversos partidos, como Eduardo Suplicy (PT-SP), Babá (PSOL) e Zé Maria (PSTU) prestaram solidariedade ao MST e sua marcha. Heloísa Helena, do PSOL, ressaltou que “queremos uma pátria fraterna, soberana e socialista. Um dia vamos celebrar um país livre, com uma política econômica que não seja ditada pelo Fundo Monetário Internacional”. A classe artística também marcou presença. Estiveram em Brasília, entre outros, o ator Chico Dias e os músicos B Negão e Marcelo Yuka que, mesmo de cadeira de rodas, foi levado para cima do carro de som. O ator Osmar Prado tentava entender a razão da ação violenta da PM. “O policial também é explorado, recebe ordens e vem do povo”, argumentou.

A música da Marcha Nacional Gissela Mate de Brasília (DF) Na Marcha pela Reforma Agrária, um instrumento de comunicação democrático e eficaz ajuda no deslocamento e na animação dos marchantes: a rádio Brasil em Movimento, que entra no ar logo cedo. Cada um dos milhares de caminhantes liga seu radinho para ouvir informes sobre a jornada, sobre o que foi publicado na grande imprensa, dicas de saúde e muita música. Boa parte das canções são tocadas ao vivo, tendo como tema a própria Marcha. O Hino da Marcha, Marcha Brasil, entre outras músicas, foi criado em oficinas culturais realizadas em abril, com a participação de artistas como Tales Ribeiro, Ana Mascarenhas, Victor Batista e José Pinto, entre outros. Cida Dias é uma das cantoras que anima a Marcha Nacional de cima do carro de som, onde fica o transmissor da rádio. “A música é uma rápida fonte de conscientização”, diz a cantora, que veio da Paraíba para participar da oficina. Pedro Munhoz, um dos músicos or-

ganizadores da oficina, ressalta que em todos os processos revolucionários da humanidade a música esteve presente: “O papel do artista é estar junto do povo e ser povo também”. A própria história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra também pode ser contada por músicas. “De certa forma, a oficina fez uma síntese de todos esses anos de experimento. A cada dia melhoramos nossa composição e contamos nossa história com mais poesia”, explica o músico Mineirinho. A idéia de promover uma oficina de música surgiu em 1997, quando ocorreu a primeira experiência nacional do gênero. A partir daí, a música passou a ser estimulada, oficialmente, no resgate da arte como valor próprio do movimento. Quando marchar torna-se cansativo, sob o sol forte, a música é fundamental. “Daqui de cima (do carro), quando vemos os marchantes ultrapassando seus limites e se esforçando tanto, nos sentimos renovados”, afirma Cida, que no próximo ano deve tentar estudar música em Cuba, país que tem convênio com o MST para alguns cursos.


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NACIONAL MARCHA NACIONAL

Após 16 dias, extensa agenda oficial Marcelo Netto Rodrigues enviado especial a Brasília (DF)

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pós 233 quilômetros e 16 dias de caminhada, a Marcha Nacional pela Reforma Agrária chegou a Brasília, no dia 17, e foi recebida pelos presidentes Lula (da República), Renan Calheiros (Senado) e Severino Cavalcanti (Câmara). Cinqüenta representantes da marcha se reuniram com Lula para entregar a pauta com os 16 pontos de reivindicação, enquanto 200 sem-terra entraram na Câmara dos Deputados e outros 80 no Senado para participar das suas respectivas sessões. Foram feitos quatro pedidos aos parlamentares: acabar com a venda de armas e munição no país, expropriar toda a terra onde for constatado trabalho escravo, regulamentar o artigo 14 da Constituição que trata do plebiscito e criar uma comissão mista incluindo o Senado e a Câmara para realizar uma auditoria das dívidas externa e interna. Os quatro pontos só dependem da vontade dos 513 deputados federais e 81 senadores, que só precisam votar e aprovar projetos que já existem e criar uma CPMI para investigar quanto o país já pagou da dívida. Os números dos projetos são: Projeto de Decreto Legislativo 1274/04 sobre a autorização de realização de referendo sobre a comercialização de armas de fogo em território nacional; Projeto de Emenda Constitucional 438/01 sobre a expropriação de terras; e o projeto de lei 4718/04 que regulamenta os plebiscitos.

Robson Oliveira

Presidentes do Senado e da Câmara acolhem bem os sem-terra, elogiam e prometem atender às reivindicações recebidas minhada de presente, Calheiros elogiou a organização da marcha: “Pela grande organização e serenidade, o MST provou que é possível, sim, reivindicar com civilidade no Brasil”. Serenidade que faltou a Polícia Militar do Governo do Distrito Federal de Joaquim Roriz. Às 18 horas, quando grupos de teatro em frente ao Congresso se preparavam para se apresentar para os integrantes da marcha, vôos rasantes de um helicóptero com um policial com uma metralhadora voltada para a multidão começou a provocar os sem-terra e destruir os bonecos gigantes do teatro.

CAVALOS E FERIDOS

Na pauta de reivindicação entregue aos parlamentares, o confisco de terras onde for constatado trabalho escravo

pretende apresentar proposta para que o orçamento da reforma agrária e de projetos sociais não sejam passíveis de contingenciamento em anos futuros, enquanto Severino se comprometeu a apresentar imediatamente para votação o projeto que trata da venda de armas e munição, assim que a pauta da Câmara for desobstruída.

HOMENAGEM Na manhã do dia 17, 200 representantes da marcha participaram de sessão solene em homenagem a dom Luciano Mendes de Almeida, arcebispo da arquidiocese de Mariana, Minas Gerais, e ex-presidente da CNBB, pedida pelo deputado federal César Medeiros (PT/MG). O vice-presidente da República, José Alencar, presente, cumpri-

PROMESSAS Calheiros e Severino se mostraram favoráveis às reivindicações. O presidente do Senado disse que

mentou “os brasileiros do MST” que vieram saudar dom Luciano. O MST estendeu uma faixa que dizia: “Dom Luciano, bispo dos pobres”.

HOMENAGEM O deputado federal Adão Preto (PT/RS) usou o microfone para dizer que dom Luciano pode ser considerado “um verdadeiro representante do Cristo legítimo, que foi assassinado por estar ao lado dos pobres, já que Cristo não escolheu entre seus apóstolos nenhum latifundiário”. A atriz Letícia Sabatella, o ator Marcos Winter, Plinio Arruda Sampaio, dom Tomás Balduíno, Patrus Ananias, Luiza Erundina e Ivan Valente também estavam na homenagem. O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, chegou com duas horas de atraso e, após a sessão,

Cristiane Gomes enviada especial a Brasília (DF) Uma delegação de 50 lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de outras entidades foi recebida em audiência pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dia 17, para entregar a pauta com as reivindicações da marcha nacional pela reforma agrária. Além dos dirigentes do MST, participaram da reunião dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e representantes da União Nacional de Estudantes (UNE), Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Movimento Fábricas Ocupadas e Conselho dos Religiosos do Brasil (CRB). Dom Demétrio Magnolli representava a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e os artistas Letícia Sabatella e Marcos Winter, do Movimento Humanos Direitos também participaram da audiência. Do governo, além do presidente Lula, estavam na audiência o ministro da Casa Civil, José Dirceu; o do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto; o secretário Geral da Presidência, Luiz Dulci, e o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart. O presidente da República se disse feliz em receber a delegação do MST. “Estou admirado com a capacidade de organização do Movimento”. Em um momento de autocrítica, Lula reconheceu que está em dívida com os sem-terra. “Se não cumprirmos as metas da reforma agrária, teremos um problema

Ricardo Stuckert/PR

Presidente Lula recebe representantes da marcha

Presidente Lula reconheceu que está em dívida com os sem-terra

de consciência com nós mesmos”, afirmou.

AUTO-ELOGIO Sobre a política econômica, Lula disse que só é possível mudar alguma coisa depois de dois anos de governo. Ele elogiou a política externa do seu governo, afirmando que as relações comerciais com os países do Oriente Médio e África, significam uma maior autonomia do país. O presidente afirmou que é preciso intensificar o diálogo com o movimento dos sem-terra. Por isso, sugeriu a criação de uma comissão para ficar em contato permanente com o MST. “Vocês, mais do que ninguém têm o direito de cobrar o governo”, disse. Os anúncios das medidas para a área rural ficaram a cargo de Miguel Rossetto. Entre as reivindicações feitas estão o fortalecimento do Incra, a revisão dos índices de produtividade e o cumprimento

das metas do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Rossetto anunciou a contratação de 4,5 mil novos funcionários para o Incra e a melhoria dos salários dos servidores.

CRÉDITO INCERTO O impasse ficou com a questão dos créditos. Além do Pronaf, o governo anunciou outros tipos de crédito: um para o custeio da lavoura e outro para reestruturar os assentamentos já existentes. Além disso, Rossetto reafirmou o compromisso de cumprir as metas do PNRA. “Todos os recursos para isso serão assegurados”, garantiu, acrescentando que, até o dia 31 apresentará projeto de suplementação orçamentária. Porém, a ausência de medidas concretas nesta questão, fez com que as lideranças do MST reivindicassem o anúncio de ações concretas para a liberação dos créditos, que não chega até os assentados por causa da burocracia.

conversou com Gilmar Mauro, da direção nacional do MST, no saguão do prédio da Câmara, em frente dos 200 representantes da marcha. “Não posso aceitar que muitos tenham quilômetros e quilômetros de terra enquanto outros não tenham nada”, afirmou Severino, que chegou a receber uma caixa das mãos de Gilmar Mauro contendo milhares de assinaturas pedindo a regulamentação do plebiscito no Brasil.

PM EM CENA Ciceroneado pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP), 20 marchantes foram à ante-sala do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) para que ele também recebesse a pauta com os quatro pontos citados acima. Ao receber uma mochila da ca-

De repente, a Cavalaria Montada com espadas de fios cortantes e pontiagudas entrou no meio do povo e cavaleiros feriram alguns manifestantes, que foram encaminhados ao hospital. “Ninguém vai jogar sapatos e bandeiras contra a polícia sem que tenha sido agredido”, disse a senadora Heloísa Helena que, junto com Eduardo Suplicy, Plinio Arruda Sampaio, João Alfredo, Adão Preto e o deputado Babá se interpuseram entre os cavalos e os feridos. Enquanto conversavam com o comandante, os cavalos bufavam nos seus rostos, devido à proximidade que estavam do conflito, forçando-os a também sair da frente até que a própria segurança do MST conseguiu recuar os marchantes para evitar mais provocações. Um repórter chegou a receber uma proposta em dinheiro da Polícia Militar para vender sua reportagem, ao invés de publicála no jornal. O repórter dizia aos policiais que tinha visto tudo desde o começo e podia provar que a polícia começou o incidente.

Porto Alegre e Recife também se mobilizam Daniel Cassol e Eduardo Zen de Porto Alegre (RS) e de Brasília (DF) Pernambuco, Rio Grande do Sul e Santa Catarina também foram palco de manifestações, no dia do ato final da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em Brasília. Em Porto Alegre (RS), protestos contra a política econômica do governo, com cerca de 1,2 mil manifestantes da Via Campesina, em frente à Receita Federal, terminaram com 12 agricultores e três policiais feridos. Os coordenadores da manifestação informaram aos policiais que não ocupariam o prédio, apenas o pátio externo. Mas os policiais tentaram fechar o portão de acesso ao local, iniciando um confronto. Adilson Schuch, integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), foi detido por “lesão e dano ao patrimônio”, segundo o coronel Jones Barreto dos Santos. “Eu estava tomando chimarrão. Prenderam o primeiro que apareceu”, conta Schuch. Ivanete Tonin, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), lamentou o ocorrido, uma vez que a intenção dos movimentos era fazer uma manifestação pacífica: “Essa violência é algo que não devemos mais admitir em nossa sociedade. Nos revoltamos com a forma com que as autoridades tratam os trabalhadores”. A manifestação da Via Campesina prosseguiu após negociações entre coordenadores e a Brigada Militar. Um grupo de manifestantes entregou aos representantes do Ministério da Fazenda o documento “O que precisa ser feito para mudar a vida do povo”. Segundo informações do coordenador estadual do MST em Pernambuco (PE), Alexandre Conceição,

cerca de 800 manifestantes ligados a vários movimentos sociais realizaram uma caminhada pela capital pernambucana, passando pela embaixada estadunidense, onde foi feito um protesto contra espionagens dos Estados Unidos sobre o MST. Há um mês, o cônsul dos EUA em Pernambuco, Peter Swavely, procurou a superintendente do Incra no Estado, Maria de Oliveira, para pedir informações sobre as manifestações do “abril vermelho”. Da embaixada, os manifestantes seguiram para a Receita Federal, onde protestaram contra a política econômica. Desde o início da semana, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o MPA deram início a uma jornada de lutas na região oeste do Estado, com o objetivo de “fortalecer a Marcha Nacional pela Reforma Agrária, denunciar a perseguição das empresas construtoras de barragens contra o povo atingido e os abusivos preços cobrados nas tarifas de energia elétrica, desmascarar o agronegócio e exigir políticas públicas para a realidade da pequena agricultura”. As mobilizações, que passarão pelos municípios de Chapecó, Concórdia e Joaçaba (SC) chegam até dia 19, quando está previsto um ato público no centro do município de Campos Novos. Entre os pontos de pauta apresentados pelos agricultores consta a realização da reforma agrária, a liberação de crédito para a produção e de recursos para investimentos nas pequenas propriedades. Os movimentos sociais também pedem o fim da construção de barragens na região, a garantia dos direitos dos agricultores expulsos pelas obras e mudanças no modelo energético nacional que impeçam a privatização das águas e garantam tarifas mais baixas na conta de luz.


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NACIONAL MORADIA

Despejos e falta de alternativas

Hamilton Octavio de Souza

Famílias que vivem em ocupações no Centro de São Paulo estão sendo ameaçadas

Riqueza inexplicável Protegido pelo Palácio do Planalto, que lhe deu status de ministro e a blindagem de foro privilegiado, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, não tem mais como escapar do inquérito no Supremo Tribunal Federal pelos crimes de evasão de divisas e sonegação fiscal. O seu patrimônio saltou de R$ 1,8 milhão, em 1996, para R$ 104,4 milhões, em 2001, graças – segundo ele – unicamente aos salários que ganhava no BankBoston, onde trabalhou. Dá para acreditar? Assalto legalizado Uma pesquisa realizada pela Fundação Procon de São Paulo apurou que, neste mês de maio, a taxa média de juros cobrada no cheque especial está em 8,25% ao mês. Ou seja, se o cidadão ficar devendo R$ 100 durante um ano, terá de pagar ao banco mais de 100% de juros. Tempos atrás, quem cobrasse mais de 1% de juro era considerado agiota – um criminoso repudiado pela sociedade. Proposta polêmica Por mais de 20 anos, a CUT defendeu o fim da unicidade sindical e a liberdade de criação de mais de um sindicato por categoria na mesma base territorial. No entanto, agora, para tentar viabilizar a aprovação da reforma sindical, voltou atrás e decidiu pela manutenção da unicidade sindical, que garante aos sindicatos filiação única e sustentação financeira sem concorrência. Venceu a acomodação sindical. Armação do golpe O ministro do latifúndio, Roberto Rodrigues, mudou radicalmente o seu discurso ufanista do agronegócio, que anunciava a grande produtividade do campo, o recorde da safra e outras sandices mais. Agora está tudo ruim, os fazendeiros estão quebrados e precisam de socorro – tudo porque estão querendo renegociar as dívidas com o Banco do Brasil. Pelo andar da carruagem, o povo pagará mais esse calote dos agroboys. Confusão mental O programa televisivo do PT, levado ao ar na semana passada, cuidou muito mais de apresentar e defender os projetos do governo federal do que falar das lutas, das propostas e das atividades do partido junto ao povo brasileiro. Na afobação de fazer o marketing oficial, o programa petista ignorou o projeto Fome Zero, cantado em prosa e verso pelo governo, mas, aparentemente, muito próximo do baú do esquecimento. Amnésia providencial Durante o encontro da Cúpula América do Sul – Países Árabes, vários discursos – inclusive o do presidente Lula – citaram o Iraque como um país em processo de institucionalização democrática e de reconstrução. Mas faltou dizer que o Iraque foi atacado e invadido pelas tropas dos Estados Unidos e que essas forças de ocupação já assassinaram 24 mil cidadãos iraquianos – sem contar a destruição urbana e física daquele país. Obra “palocciana” Os balancetes do primeiro trimestre dos quatro maiores bancos privados em operação no Brasil indicam que eles tiveram, em 2005, em média, um aumento de lucro superior a 50% em relação ao ano passado. O modelo econômico defendido pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, continua tirando dinheiro de quem trabalha e produz para concentrar com quem especula. É o que há de pior no próprio capitalismo. Tudo igual O modelo de gestão pública montado pelo governo tucano de Fernando Henrique Cardoso continua funcionando sem grandes alterações. O maior exemplo disso é a agência reguladora das telecomunicações a Anatel, que recebe mais de 20 mil reclamações por mês contra as empresas privadas de telefonia – contas erradas, serviços que não funcionam, atendimento demorado etc. – e nada faz. Ou seja, foi montada para isso mesmo.

Tatiana Merlino da Redação

A

mais antiga ocupação de um imóvel do Estado na cidade de São Paulo está sob ameaça. Os moradores do prédio da Rua do Ouvidor, ocupado pelo Movimento de Moradia do Centro (MMC) desde 1997, correm perigo de despejo. No mês passado, a Justiça estabeleceu um prazo para a desocupação: até dia 17, com reintegração de posse do prédio que pertence à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Porém, no Plano Diretor do Município de São Paulo, de 2002, o edifício é classificado como Zona Especial de Interesse Social (Zeis). Na prática, isso significa que se destina a habitação de interesse social. Até dia 11, apesar da ordem de despejo, o governo estadual não havia apresentado nenhuma alternativa para as 89 famílias que vivem no prédio. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) propôs uma carta de crédito para que as famílias possam adquirir o imóvel, mas a maioria dos moradores não tem como assumir tal despesa. De acordo com Edson Dantas, da coordenação do MMC, a maioria das pessoas trabalha, “mas não há condições de assumir essa carta de crédito”. Segundo ele, o movimento não consegue uma reunião com o Estado para fazer uma contraproposta: “É isso que nos resta: carta de crédito ou reintegração. Isto é: rua”.

Luciney Martins

Fatos em foco

O MESMO DO MESMO Valnize Araújo é uma das moradoras da ocupação da Rua do Ouvidor. Ela trabalha com artesanato e o marido trabalha na Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). “Não temos outro lugar para morar. Se querem nos tirar daqui, que dêem outro lugar para a gente ir, que seja possível pagar. Aqui, a maioria ganha salário-mínimo”, desabafa. A situação das famílias do prédio da Rua do Ouvidor é semelhante à

Governo tucano promove política de “limpeza social” em relação à moradia no Centro da cidade de São Paulo

de várias famílias que vivem em ocupações no Centro de São Paulo. Muitas já foram despejadas e outras vêm sendo ameaçadas de despejo desde o início da gestão do prefeito de São Paulo, José Serra. Para os meses de maio e junho, estão previstas diversas reintegrações de posse na cidade. Durante o lançamento, dia 11, do Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada no Brasil 2004, foi discutida a chamada “limpeza social” promovida pelas administrações estadual e municipal. Na véspera do lançamento do relatório, as 140 famílias de uma ocupação na Mooca foram despejadas sem ter como recorrer da decisão. Um policial avisou que o despejo ocorreria no dia 11, mas a polícia chegou dia 10, com um caminhão de lixo. “Essa é a prova de que para o

governo nós somos lixo. Nos tiram daqui e nos jogam foram da cidade. Ou os movimentos se unificam, ou vamos ser triturados”, afirma Ivanete Araújo, da coordenação do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC).

REINTEGRAÇÃO Duas ocupações do MSTC na Rua Prestes Maia, no Bom Retiro, também estão na mira dos governantes. Desde 2002, os moradores negociam com a Secretaria Municipal de Habitação a desapropriação do terreno. Junto com a nova administração, este ano, veio a reintegração de posse, determinada para junho. “Somos 468 famílias, mais de 300 crianças, e muitos idosos que não temos para onde ir. Neste governo, sem-teto não têm direito de morar na cidade”, protesta Ivanete. Nelson Saule Jr., relator nacional

pelo Direito à Moradia Adequada, propõe a constituição de uma comissão com representantes dos movimentos de moradia, organizações da sociedade civil, ministérios da Cidade, Justiça, Ministério Público, governo do Estado e prefeitura para discutir os despejos em São Paulo. Não é apenas por conta de reintegrações de posse que sofrem os semteto. Em março, foi expedido mais um mandado de prisão preventiva de um dos principais líderes do movimento de moradia, Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê. No começo do ano passado, Gegê passou 21 dias na prisão, acusado de um suposto homicídio, que teria ocorrido há três anos. Tanto ele quanto várias testemunhas negam o fato. “Estamos tentando um habeas corpus para recolher o mandado de prisão e recorrer da decisão”, afirma a advogada Luciana Bedeschi.

VIOLÊNCIA URBANA

Ativistas articulam rede de comunicadores populares Bruno Zornitta do Rio de Janeiro (RJ) Criar uma rede de comunicadores ligados aos movimentos populares para denunciar a situação da violência no Rio e a criminalização da pobreza por parte da grande imprensa. Com esse objetivo, estudantes, sindicalistas e ativistas sociais se reuniram, dia 11, no Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro (Senge). O debate “Mídia alternativa e combate à violência” contou com a presença de Cláudia Santiago, do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), Márcia de Oliveira Jacintho, mãe de um menor assassinado pela Polícia Militar do Rio, e Marcelo Freixo, pesquisador da organização nãogovernamental Justiça Global. O evento foi promovido pelo NPC, pela Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência e pelo Senge. Cláudia contou que despertou para a questão da violência nas favelas depois da chacina do Borel: “Duas coisas aconteceram: uma, foi me sentir tocada por algo tão próximo a mim; a outra foi perceber a distância do movimento sindical dos trabalhadores da favela”, disse. Na noite em que os sem-teto entraram no prédio que hoje abriga a ocupação Chiquinha Gonzaga, Cláudia percebeu a necessidade de uma rede de comunicadores,

nos moldes da Rede Nacional de Advogados Populares: “Não dá para a gente ser tão amador”. Para Cláudia, a rede de comunicadores deve inserir o tema da violência nos veículos alternativos e capacitar moradores de comunidades carentes para produzir sua própria mídia. “Precisamos de uma rede de jornalistas dispostos a colocar o seu conhecimento a favor das causas populares”, disse. Márcia, que teve seu filho Hanry Silva Gomes, de 16 anos, assassinado por policiais militares, no Lins de Vasconcellos, em 2002, desabafou: “Meu filho morreu porque não era bandido”. Segundo Márcia, a polícia captura os traficantes, pede dinheiro e armas como resgate – o “arrego”, na linguagem do crime. Quando morre um inocente, é comum a polícia dar tiros para o alto, para dizer depois que houve troca de tiros, além de colocar armas e drogas junto ao morto, o “kit bandido”. Márcia esteve no local onde seu filho foi assassinado, tirou fotos, conversou com moradores e descobriu até a placa do carro dos policiais: “Tudo que descobri foi por investigação própria”. Depois de dois anos e cinco meses, conseguiu o Boletim de Emergência de Hanry, um dos cinco itens que o Ministério Público pediu e não foram cumpridos. “Eu, a mãe, dei en-

trada duas semanas atrás na seção de arquivo. E fui buscar hoje, para dar à delegada”, disse. Enquanto a dificuldade das camadas populares em obter justiça desanima alguns, outros, como Márcia, fazem disso seu combustível: “Me dá cada vez mais força para lutar, para quebrar esses autos de resistências e essa imagem de que no morro só tem bandido”. Marcelo Freixo aponta o Estado como o principal violador dos direitos humanos, “tanto por sua ausência, quanto por sua presença no controle e na preservação da ordem que está colocada”. Para o pesquisador, os jornalistas têm um papel importante na luta contra a violência, que é o de quebrar a “perversa invisibilidade” do genocídio cotidiano. Marcelo contou que um garoto de 19 anos foi executado na favela do Vidigal por policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar. O rapaz, que trabalhava em uma lanchonete de manhã e estudava à noite, levou um tiro de fuzil na nuca e a morte foi justificada com um auto de resistência. “O laudo comprovou claramente que ele foi executado e ninguém sabe disso”, denunciou. Marcelo disse também que os comunicadores devem lutar contra a criminalização da pobreza, propagada pelos meios de comunicação e pelo judiciário. O pesquisador mos-

trou uma reportagem do jornal O Globo na qual um tiroteio no Morro do Borel é criticado por tirar o sono de moradores do asfalto. Mostrou também trecho de uma sentença do juiz Alexandre Abraão, em que o magistrado refere-se aos policiais como “incorruptíveis” e às classes populares como “lixo genético”. Além disso, Marcelo contou que, desde a caça a Elias Maluco, assassino de Tim Lopes, os mandados de busca genéricos tornaram-se prática comum entre os juízes. Esse instrumento permite que a polícia, baseada em uma denúncia, invada “qualquer casa de portão preto” em determinada comunidade, por exemplo. Ele disse que, se a denúncia fosse de um traficante escondido em um condomínio da Barra da Tijuca, em uma casa de portão marrom, nenhum juiz concederia o mandado genérico. “Quero ver qual é o juiz que assina isso”, desafiou. O representante da Justiça Global disse ainda que a luta contra a violência é uma luta pela construção de uma cultura de direitos: “Se a gente conseguisse fazer com que a lei fosse cumprida para todo mundo, a gente faria uma revolução”, afirmou. Para Marcelo, essa luta depende fundamentalmente de visibilidade e denúncia, funções de uma Rede de Comunicação Popular. O Núcleo Piratininga de Comunicação está articulando a rede.


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De 19 a 25 de maio de 2005

NACIONAL POLÍTICA PARA RICOS

Juros engolem mais de R$ 1 trilhão Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

M

antido o ritmo atual, o governo federal deverá “devolver” aos donos do dinheiro no país praticamente metade de todos os recursos que pretende destinar aos programas sociais em 2005. Os números estão nos relatórios oficiais do Banco Central (BC) e do Ministério da Fazenda e mostram por que, entre outras razões, a concentração da renda permanece inabalável no Brasil, a despeito dos avanços que o governo afirma ter alcançado na área social. A política de elevação dos juros, reafirmada mês a mês pela diretoria do BC desde setembro do ano passado, em sua versão mais recente, não só impede a economia de crescer, ao afugentar investimentos públicos e privados e gerar desemprego e achatamento dos salários, mas tem criado, ao longo dos anos, obstáculos permanentes à justa redistribuição dos ganhos e riquezas produzidos no país. Aos números. Projetadas para os próximos doze meses, as despesas com os juros da dívida da União, em vias de ultrapassar os R$ 970 bilhões, atingiram, no primeiro trimestre, o correspondente a 8,4% do Produto Interno Bruto (PIB). O valor do PIB, como se sabe, reflete a soma de todas as riquezas produzidas, a cada ano, por pessoas físicas, trabalhadores, assalariados e autônomos, bancos e empresas em geral, incluindo o setor público e suas estatais. Pelo que mostram os dados do BC, apenas a conta dos juros da dívida da União tende a consumir mais de R$ 160 bilhões em 2005.

PROGRAMAS SOCIAIS No ano passado, segundo um estudo divulgado com estardalhaço pelo Ministério da Fazenda, considerando-se todos os programas sociais, inclusive as despesas com aposentados e pensões da Previdência, os gastos chegaram a R$ 280,7 bilhões ou o correspondente a 16% do PIB – idêntico percentual registrado em 2001, ainda no governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Mantido o mesmo compasso neste ano, só as despesas com ju-

U. Dettmar/ ABR

Em 22 anos de arrocho, o governo transferiu aos mais ricos quase todas as riquezas que o país produz em um ano

Em dois anos de governo Lula, país ainda ostenta um dos piores índices de pobreza e concentração de renda

ros devem drenar – se não houver mudança na política vigente – o correspondente a mais de 52% de todos os recursos destinados a combater a miséria e a fome, aos programas na área da Saúde, reforma agrária, habitação e saneamento, criação de empregos e proteção aos desempregados, à Educação e Cultura e outras formas de proteção social. Dito de uma forma mais clara, mais da metade do dinheiro que o governo utiliza para melhorar a vida de milhões de excluídos retorna

às mãos de algumas centenas de famílias que participam do jogo de ganhar juros no cassino financeiro. É esta a verdadeira face da política de juros altos.

RECONCENTRAÇÃO E, como é notório, não se trata de uma política “emergencial”, adotada para corrigir desarranjos temporários na economia (como uma alta de preços e da inflação, num período determinado). Mas de uma política permanente de transferência de

renda aos que mais ganham no país, como demonstra trabalho desenvolvido pelo economista Rogério Nagamine Costanzi, mestre em economia pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em políticas públicas e gestão governamental, diretor em exercício de Estudos Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão do Ministério do Planejamento. Ao contrário do que sugerem as constantes campanhas na grande

imprensa contra um suposto excesso ou descontrole dos gastos públicos, Costanzi mostra que, entre 1983 e 2004, o governo conseguiu poupar recursos, “mas não pôde utilizar esse superavit (receitas maiores do que despesas, quando desconsiderados os gastos com juros) em investimentos ou gastos sociais”. O motivo? Porque foi obrigado a transferir, ao longo de todo aquele período, em média, o equivalente a “quase 5% do PIB por ano para os mais ricos, por meio das despesas com juros”. Para o economista, essa transferência “certamente dificulta, ou mesmo inviabiliza, a melhora da distribuição de renda no Brasil”. Suas contas, embora considerem apenas a parcela das despesas com juros que superou a inflação naqueles anos, desnudam o tamanho daquela transferência e, portanto, da concentração patrocinada por uma política de arrocho permanente. Entre 1983 e 2004, as despesas com juros de todo o setor público, incluindo o efeito da variação do dólar (que pode engordar ou encolher a conta), chegaram a impensáveis R$ 1,330 trilhão – algo como 99% de tudo o que o Brasil produziu em 1995, por exemplo. Apenas para efeito de comparação, sem qualquer atualização, aquele trilhão representa quase 76% de todas as riquezas produzidas no ano passado por todos os brasileiros.

Como o governo estimula a concentração da renda Num longo e cansativo trabalho, divulgado em abril, o Ministério da Fazenda tentou demonstrar que os gastos sociais, hoje, pouco ajudam a redistribuir a renda e, em alguns casos, como o da Previdência (alvo preferido dos setores conservadores), tendem mesmo a concentrar a renda, numa incrível distorção da realidade. Em parte, como visto, a concentração é causada pela política de juros altos, que “rouba” com uma mão o que o governo distribui com a outra aos mais pobres. Dizem os técnicos da Fazenda que o governo injetou R$ 911,6 bilhões nos programas sociais (benefícios previdenciários incluídos) entre 2001 e 2004, e a distância entre os 20% mais ricos

e os 20% mais pobres praticamente não se alterou. Nos países da União Européia, argumentam os sábios da equipe econômica, programas semelhantes, com níveis de gastos proporcionalmente equivalentes, conseguiram reduzir aquela diferença pela metade. O que há de errado nesses números? Nada e tudo. Os dados, ao que parece, são esses mesmos, só não incluem todas as variáveis, nem acrescentam informações cruciais, que ajudariam a ter um retrato mais fiel dos processos de redistribuição da renda nos países mais ricos, ou de concentração da mesma no Brasil. O primeiro fator está, mais uma vez, na política de juros: os governos dos países europeus não precisam pagar

juros tão altos como aqui e, por isso, o dinheiro que vai para os mais pobres permanece com eles.

DESIGUALDADE Num segundo ponto, as políticas de arrocho aplicadas no Brasil nos últimos 22 anos fizeram a renda do brasileiro encolher, penalizando, obviamente, os mais pobres. Apenas um exemplo, com base em dados do Unafisco Sindical: a partir de 2002, o desemprego e a queda dos salários impuseram uma perda de R$ 4,9 bilhões aos trabalhadores. Ainda no Brasil, de acordo com o Unafisco, a faixa dos 10% mais ricos sofria uma tributação inferior a 30% de seus rendimentos brutos, enquanto a carga de impostos para os

30% mais pobres superava aqueles 30%. Mais claramente, as camadas de renda menor contribuem mais, pagando proporcionalmente mais impostos do que os mais ricos. Analisada a questão sob outro aspecto, o total de impostos pagos no país penalizam mais o consumo (de bens, mercadorias e serviços), responsável por 67% dos impostos recolhidos, do que a renda (29% do total de impostos) e o patrimônio (4%). Neste caso, os impostos penalizam mais os brasileiros mais pobres, que são obrigados a pagar o mesmo que os mais ricos no consumo de alimentos, material de limpeza, geladeiras, televisores e outros bens e serviços. (LVF)

Falsas campanhas para cortar gastos públicos Nos últimos 22 anos, desconsideradas as despesas com juros, Rogério Nagamine Costanzi mostra que os governos federal, estadual e prefeituras obtiveram saldos positivos (isto é, receitas maiores do que despesas) ao longo de 18 anos, o que desautoriza as (falsas) campanhas veiculadas pela imprensa tradicional para ampliar o desmonte do setor público. Na média, aponta Costanzi, o superavit alcançou quase 2,2% do PIB ao ano. Apenas para dar uma noção de valor, esse percentual corresponderia, hoje, a R$ 38,5 bilhões por ano. Mais precisamente, a economia realizada representa 21% a mais de toda a despesa com Saúde feita pela União no ano passado (R$ 31,8 bilhões). Visto por um outro ângulo, seria possível, portanto, mais do que dobrar o orçamento da Saúde. Isso, claro, se o governo desistisse de pagar juros tão altos. “A mídia (jornais, revistas, tevês, rádios, internet e outros meios de comunicação) tem enfatizado”, escreve Costanzi, “o papel de determinados gastos correntes, por exemplo, os benefícios previdenciários, como verdadeiros vilões do déficit público (despesas maiores do que receitas) no Brasil”. Até mesmo os tais “economistas especializados em finanças públicas”, alfineta Costanzi, contribuíram negativamente para associar o rombo nas contas

do setor público às despesas da Previdência. Segundo o economista, a análise das contas públicas desautoriza esse tipo de associação, já que houve sobra de recursos em 18 dos 22 anos analisados. O rombo só aparece quando acrescentados os gastos

com juros. Neste caso, a equação se inverte: em apenas quatro anos, dos 22, o governo conseguiu arrecadar receitas suficientes para fazer frente a todas as suas despesas e ainda honrar a conta dos juros (o que significa dizer que houve rombos em todos os demais 18 anos).

Na média, houve um déficit de 2,55% do PIB ao ano. Em valores do ano passado, as despesas, incluídos os juros, superaram as receitas em alguma coisa ao redor de R$ 45 bilhões por ano – cerca de 41,5% a mais do que o governo gastou com a saúde dos brasileiros

A FONTE DE TODO O “DESCONTROLE” 22 anos de despesas com juros da dívida pública – 1983-2004 Ano

PIB em R$ bilhões de 2003

Juros reais em % do PIB (a)

Juros reais em R$ bilhões de 2003 (b)

Juros reais em % do PIB (c)

Juros reais em R$ bilhões de 2003 (d)

1983

925,1

4,70

43,5

4,70

43,5

1985

1.051,6

7,03

73,9

7,03

73,9

1987

1.170,3

4,64

54,3

4,64

54,3

1989

1.206,6

6,07

73,2

6,07

73,2

1991

1.166,0

2,90

33,8

2,90

33,8

1993

1.216,7

2,98

36,3

2,98

36,3

1995

1.342,3

5,26

70,6

5,26

70,6

1997

1.423,1

3,35

47,7

3,35

47,7

1999

1.436,2

4,35

62,5

6,64

95,4

2001

1.518,5

4,69

71,2

5,04

76,5

2003

1.556,2

7,10

110,5

5,14

80,0

2004 (PIB estimado)

1.634,0

3,15

51,5

2,54

41,5

Média 1983-2004

-

4,60

58,5

4,73

60,5

Total 1983-2004

-

-

1.288,0

(a/b) Gastos com juros sem os efeitos da desvalorização do real frente ao dólar (c/d) Gastos com juros com o impacto da desvalorização do real frente ao dólar Fonte: Costanzi, Rogério Nagamine (com dados do Banco Central, Ipeadata e Revista Conjuntura Econômica, da Fundação Getúlio Vargas)

-

1.330,5

em 2004. Mais claramente, aponta Costanzi, “nota-se que a fonte de déficit (rombos) do setor público no Brasil, nos últimos 22 anos, tem sido os juros”. A conclusão contraria o diagnóstico alardeado aos quatro ventos pelos setores mais conservadores, que defendem, por meio de falsas campanhas, mais arrocho nas despesas e a retomada das políticas de desmonte do setor público. “O atual esforço fiscal (via corte de gastos, excluídos os juros) já é elevado, sendo difícil, inclusive do ponto de vista político, a obtenção de superavit primário ainda maior”, diz Costanzi, que recomenda ao governo cautela nas decisões relacionadas às taxas de juros, até para evitar estragos de difícil correção no futuro. O economista conclui seu trabalho com uma outra advertência, agora dirigida aos que decidem os destinos da política de juros dentro do governo (BC e Ministério da Fazenda). Por enquanto, diz, aquela política tem sido coberta de elogios e salamaleques pelo mercado financeiro. “Pois esse será o primeiro a mudar de opinião caso passe a ter a percepção de que a referida política monetária (leia-se, juros altos) está gerando uma situação fiscal (rombos) insustentável a médio e longo prazo”. (LVF)


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De 19 a 25 de maio de 2005

NACIONAL CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Por uma sexualidade saudável e protegida Igor Ojeda da Redação

H

á sete anos, 18 de maio é lembrado como Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto-Juvenil. A cada ano, um tema é escolhido para os diversos atos e atividades que acontecem em todo o país. Em 2005, o tema da mobilização nacional foi “Direitos sexuais são direitos humanos – pelo direito ao desenvolvimento de uma sexualidade saudável e protegida de crianças e adolescentes”. Segundo Karina Figueiredo, do Centro de Referência de Estudos e Ações Sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, que organizou os atos, o enfoque foi deslocado da denúncia do crime em si para a preocupação com a condição da vítima. “Ao ter seu corpo violentado, a criança tem violados o respeito, a dignidade e o direito”, diz. Karina afirma que as mobilizações do 18 de maio têm como objetivo “além de marcar politicamente a luta, sensibilizar a sociedade para a existência do Tríplice Fronteira — Nos dias 12 e 13, problema”. Para sob iniciativa da Organização Internacio- ela, nos últimos nal do Trabalho (OIT), anos isso tem juízes, promotores, acontecido, pois defensores públicos, o Disque Denúnprocuradores e advogados da Argentina, cia do governo Brasil e Paraguai se federal (0800 990 reuniram em Foz do 500) vem receIguaçu e criaram o bendo cada vez Plano de Cooperação Trilateral, que vi- mais ligações. sa agilizar os trâmites A Secretaria legais entre os três Especial dos Dipaíses na proteção e defesa das vítimas reitos Humanos de exploração sexual da Presidência comercial na região. da República Segundo os organizadores, a ação é (Sedh-PR) coninédita. tabiliza, desde de

Robson Oliveira

Ativistas chamam atenção para índices de abusos, exploração comercial e violência infanto-juvenil

Calcadão da beira-mar, em Fortaleza, é um dos principais focos da exploração sexual de crianças e adolescentes

maio de 2003, mais de 10 mil denúncias recebidas e encaminhadas pelo Disque-Denúncia, vindo de 2.173 municípios de todos os Estados e envolvendo cerca de 24.500 crianças e adolescentes. Dos relatos, 32,44% eram de abuso sexual, 17,11% de exploração sexual comercial e 50,45% de maus-tratos. São Paulo é o Estado de onde partiu o maior número de denúncias, 14,53% do total, seguido de Rio de Janeiro (11,73%) e Rio Grande do Sul (11,44%). A mobilização nacional começou dia 16, em Fortaleza, Ceará, cidade com alto índice de violência sexual contra crianças e adolescentes,

principalmente no que se refere à prostituição. O Estado aparece em sexto lugar em número de denúncias, com 6,61% do total, embora represente cerca de 4% da população brasileira.

ATIVIDADES Com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi lançada, no Palácio do Governo, a “Pulseira Promocional”, cuja arrecadação de vendas irá para o Fundo Nacional para Enfrentamento do Turismo Sexual. O governo federal aproveitou a ocasião para assinar convênios e lançar campanhas e

publicações sobre o tema. Antes disso, na Assembléia Legislativa, a Frente Parlamentar Pela Criança e o Adolescente do Congresso Nacional firmou protocolo de intenções com representantes das assembléias legislativas para fomento ou criação de Frentes Parlamentares estaduais. Em Brasília, aconteceram atos nos dias 17 e 18 com a presença de um adolescente ou jovem de cada Estado. No primeiro dia, foram organizados painéis sobre o tema e discussões a respeito da alteração de leis na Câmara dos Deputados em favor de uma maior punição nos casos de violência sexual. À tarde,

foi confeccionado um mapa do Brasil com o “recado” de cada Estado e elaborado um documento com as diretrizes do protagonismo juvenil no combate ao problema, que seria destinado ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Para dia 18, estava prevista uma audiência com o Conanda, a costura do mapa do Brasil no gramado do Congresso Nacional, uma audiência com o presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcante, e a subida dos jovens na rampa do Congresso para encontro com parlamentares.

É um negócio internacional que gera 12 bilhões de dólares por ano. O produto? Gente. O Tráfico de Seres Humanos (TSH) só perde hoje em lucratividade para o comércio ilegal de armamentos e de drogas, mas especialistas prevêem que em breve será o primeiro. Em entrevista ao Brasil de Fato, Priscila Siqueira, articuladora da organização não-governamental (ONG) Serviço à Mulher Marginalizada (SMM), explica de que forma o ser humano é tratado como mercadoria no capitalismo e por que mulheres e crianças do sexo feminino representam 90% dos quatro milhões de pessoas traficados anualmente. Brasil de Fato – Como se dá o Tráfico de Seres Humanos (TSH)? Priscila Siqueira – O TSH é um crime resultante da sociedade neoliberal globalizada. Karl Marx já dizia, no século 19, que no capitalismo tudo é mercadoria. Hoje esse fenômeno está no auge. As pessoas têm valor de mercado. O TSH é considerado a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo. Dados da Organização das Nações Unidades (ONU) mostram que cerca de quatro milhões de pessoas são traficados por ano no mundo, em um negócio que gera 12 bilhões de dólares de lucro por ano. Só perde para os tráficos de armamento e de drogas. Especialistas dizem que dentro de quatro ou cinco anos o TSH será o mais lucrativo, pois a legislação para esse crime ainda é muito fraca, enquanto para os outros tipos de tráfico é mais dura. Na legislação brasileira, por exemplo, o TSH é regido pelo código penal de 1939, e o tráfico interno não é considerado crime. Há também o tráfico com vista

ao trabalho escravo e à adoção ilegal. Um bebê branco, loiro, de olho azul, vale 3 mil dólares no mercado internacional. Existe muita criança brasileira em Israel, por exemplo. E há também tráfico de órgãos. Mas sabemos que a questão não é só de legislação, não é só policial. É um triângulo: demanda, oferta e impunidade. O que faz com que o Brasil seja o maior ofertante de crianças e mulheres da América Latina? Miséria, pobreza, falta de trabalho e discriminação à mulher. Porque acreditam que 90% do TSH seja de mulheres e crianças do sexo feminino. A pobreza e a miséria incidem muito mais em cima da mulher. O homem faz o filho e se manda. Na nossa cultura machista e patriarcal, o filho é uma questão da mulher, ela que se vire. Então, aqui, tem causas socioeconômicas e causas culturais. BF – Também é cultural a visão da mulher como mercadoria... Priscila – A mulher não é cidadã. É o que eu digo: enquanto tiver um Dia da Mulher, alguma coisa está errada. BF – Quais as regiões do Brasil que mais oferecem mulheres para o exterior? Priscila – Nordeste e Centro-Oeste. Mas vai da América Latina inteira. A rota do tráfico é a rota da grana. As mulheres vão atrás de condições de vida. Das regiões pobres para as regiões ricas de um país, dos países pobres para os países ricos. A mulher é uma mercadoria! BF – Como o governo federal tem enfrentado o TSH? Priscila – Em relação ao tráfico,

nunca tivemos um governo tão bom quanto este. Na época do FHC, não se podia falar sobre isso, era tabu. O presidente Lula, pelo menos, uma das primeiras coisas que ele disse é que era contra a exploração sexual comercial de crianças. Já foi um passo. A partir daí a imprensa passou a divulgar, então acho que ele teve um grande papel. E o Ministério da Justiça está trabalhando em relação a isso. Por outro lado, enquanto ele mantiver a macropolítica econômica, isso não vai acabar. A gente conversou com uma menina do Recife, de 16 anos, que faz turismo sexual, que é uma porta para o tráfico, e ela falou o seguinte: “Tudo bem, minha senhora, eu não gosto de ficar dando para gringo, mas eu sustento minha mãe e seis filhos, o que a senhora quer que eu faça? Como balconista não consigo”. O governo tem que dar outra alternativa para a população brasileira. Principalmente se for mulher, negra e analfabeta, qual o destino que ela tem? Uma das coisas que estamos discutindo muito também é a demanda. Tem uma pesquisa mostrando que todo homem, seja de que condição for, usa a mulher. O perfil: 40 anos, casado. BF – Na teoria, quem nasce nos países demandantes tem uma base cultural maior. Priscila – E grana. Mas, veja, nós discutimos tráfico interno também. Não xingamos só o gringo. Em Fortaleza, por exemplo, tem filhos da elite usando aquelas meninas, às vezes crianças de oito, nove anos. Em uma cidade de Tocantins, foi detectado um leilão de virgens! Quando a menina menstrua pela primeira vez, os

pais chamam os coronéis e seus filhos para darem seus lances. O Pestraf (pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil) mostra que, no final de 2002, havia 285 rotas internas e 168 externas. O TSH está relacionado também à imigração. Porque uma imigrante ilegal é muito fácil de ser traficada. Não tem cidadania, então é muito fácil cair na garras dos exploradores. Tem um estudo que mostra que para uma mulher pagar ao “recrutador” – a pessoa que a leva à prostituição – sua passagem de São Paulo para Espanha ou Portugal, ela tem que transar 4,5 mil vezes. Enquanto isso, ela tem que comer, dormir, se ficar doente precisa comprar remédio, quando está menstruada não pode trabalhar... BF – Então são bem mais do que 4,5 mil vezes? Priscila – Ela está cada vez devendo mais. Até teve um dono de bordel, em entrevista à revista Macleans, que disse o seguinte: “Vender mulher dá muito mais grana que vender arma ou droga. Porque droga e arma você só vende uma vez. Mulher você vai revendendo. Até ela morrer de Aids, ficar louca ou se matar”. Então, como ela é devedora, ainda é dele. BF – Quem são os traficantes? Priscila – São máfias muito poderosas, de russos, israelitas, coreanos. Hoje, as redes internacionais do Leste Europeu, depois do fim da União Soviética, são uma coisa absurda. É um fenômeno internacional. Na Rússia tem histórias de arrepiar. Eles roubam criança para esmolar. Então eles cortam o braço da criança para gerar

Divulgação

Tráfico: expressão máxima do capitalismo

Quem é A jornalista Priscila Siqueira é articuladora da organização não-governamental (ONG) Serviço à Mulher Marginalizada, que nos últimos anos vem dando ênfase ao combate ao tráfico de mulheres e crianças. mais piedade. Agora eu pergunto: quem corta esse braço? Tem que ser um médico numa clínica boa, com todas as condições de higiene. Senão ela morre. BF – Qual o perfil da mulher traficada? Priscila – A maioria tem de 13 a 23 anos, mas vai de 5 até 30 anos. Mulata, mas hoje há também muita branca de olhos azuis que vem do Sul do país. O Itamaraty reconhece que na Espanha há 20 mil mulheres brasileiras. Só na cidade de Bilbao, são 10 mil. A grande pedida deles é a mulata. Tem em Portugal, tem na Espanha, na Itália, na Alemanha, e até na Noruega, mas menos. A Copa do Mundo do ano que vem é na Alemanha. Já estão recrutando mulheres! Hoje em dia está abrindo o mercado para o Japão e para os Estados Unidos. (IO)


Ano 3 • número 116 • De 19 a 25 de maio de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO CUBA

Contra o apoio dos EUA ao terror da Redação

C

entenas de milhares de cubanos repudiaram, dia 16, o terrorismo e pediram paz e justiça, em uma compacta marcha em Havana, diante do prédio da Seção de Interesses dos Estados Unidos. Liderada pelo presidente Fidel Castro e pelo general-de-exército Raúl Castro, a multidão exigiu a prisão e a extradição do terrorista internacional Luis Posada Carriles e de outros criminosos que passeiam com impunidade em Miami. “Essa não é uma marcha contra o povo dos Estados Unidos, mas sim contra o terrorismo, uma marcha a favor da vida e da paz de nosso povo e de nosso povo irmão dos Estados Unidos, em cujo valores éticos confiamos”, discursou Fidel, acrescentando que os governantes estadunidenses criaram e desenvolveram o terrorismo em seu mais dramático e moderno conceito, com apoio de sofisticados e explosivos meios técnicos. A cubana Laritza Ávarez, professora, disse que pede ao governo dos Estados Unidos a extradição do criminoso, avaliando que se Bush lutasse verdadeiramente contra o terrorismo já teria agido. “Acho que a marcha mostra o apoio dos cubanos às denúncias feitas contra o governo dos Estados Unidos, que diz combater o terrorismo, mas recebe Posada”, disse David Acuña, funcionário dos estaleiros de Santiago de Cuba. O governo cubano tem criticado

Adalberto Roque/ AFP/ Folha Imagem

Presidente Fidel Castro lidera marcha e reivindica a Bush a extradição do terrorista Posada Carriles

O presidente cubano Fidel Castro (à esq.) participa da marcha com mais de um milhão de pessoas contra o terrorismo patrocinado pelos Estados Unidos

duramente o presidente George W. Bush por ter feito vistas grossas à entrada nos Estados Unidos do terrorista Posada Carriles (ex-funcionário da CIA, agência de inteligência estadunidense), articulador, em 1976, de um atentado contra um avião cubano que deixou 73 pessoas mortas. É acusado também de ser autor de ex-

plosões em hotéis cubanos em 1997. Carriles estava preso com mais três comparsas no Panamá desde 2000, sob a acusação de ter planejado um novo atentado contra Fidel, desta vez durante a 9ª Cúpula Iberoamericana celebrada na capital do país. No entanto, a então presidente Mireya Moscovo, tra-

dicional aliada dos EUA, libertou os terroristas em seu último ato de governo em agosto de 2004. Os cubanos contam, ainda, com um aliado na sua reivindicação. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, solicitou oficialmente a extradição de Carriles porque o terrorista ainda responde a um processo no

CAFTA

CRISE NOS ANDES

Um exemplo de submissão

Após 18 meses de ingovernabilidade, cujo responsável direto é o presidente Carlos Mesa, a Bolívia ingressou em uma etapa de definições com base em uma agenda que se arrasta desde outubro de 2003 quando bolivianas e bolivianos expulsaram da Presidência Gonzalo Sánchez de Lozada. As demandas que buscam soluções estruturais para o país são: a Assembléia Constituinte, uma nova Lei de Hidrocarbonetos (petróleo, gás), a eleição de prefeitos e a convocação de um Referendo Autônomo. “A incapacidade do presidente, que perdeu autoridade para governar, está levando o país a uma situação de confronto e incerteza. Os movimentos sociais buscam a unidade nacional com autonomia para todo o povo, enquanto a oligarquia crupretende Oligarquia cruceña ceña – Referência à elite impor a divisão de Santa Cruz de la para beneficiar Sierra, Estado próxium pequeno mo à fronteira com o Brasil, que coordena setor”, afirmou um movimento sepa- o deputado Evo ratista na região. Morales. Milhares de cocaleros, camponeses, operários, desempregados, indígenas, sem-terra, estudantes, mulheres e de outros setores sociais iniciaram uma marcha, dia 16, rumo à La Paz, sede do governo, onde chegarão dia 23. Os últimos dias no país foram críticos. Vários setores

Aizar Raldes/ AFP/ Folha Imagem

Em risco, a unidade nacional Alex Contreras Baspineiro de La Paz (Bolívia)

país. O ex-agente da CIA estava na Venezuela sob acusação de sabotar uma aeronave da empresa Cubana, mas fugiu do cárcere em 1985. Dia 13, a embaixada venezuelana em Washington entregou oficialmente o pedido para o Departamento de Estado dos Estados Unidos. (Com agências internacionais)

Jorge Pereira Filho da Redação

Crescem protestos em La Paz e El Alto contra a Lei dos Hidrocarbonetos

da sociedade rechaçaram um convite presidencial para realizar um Encontro Nacional por Unidade. Na porta da brasileira Petrobras, em Santa Cruz, explodiu um carrobomba, atentado assumido por um grupo supostamente terrorista. Os dirigentes do Movimento Sem Terra foram agredidos por membros da União Juvenil Cruceñista. Já a Central Obrera Boliviana (COB) convocou uma greve geral com bloqueio de estradas. Os movimentos sociais defendem a convocação de uma Assembléia Constituinte como única garantia democrática para a solução dos problemas sociais. O Pacto de Unidade que aglutina camponeses, indígenas, sem-terra e mulheres agrárias do país, em aliança com setores da COB, denunciaram que a conspiração oligárquica tem o apoio de forças estrangeiras, transnacionais e setores polí-

Mesa devolve lei ao Congresso Dia 17, o presidente Mesa decidiu devolver a Lei dos Hidrocarbonetos ao Congresso, depois de ameaçar vetá-la. A legislação propõe a elevação dos impostos das petrolíferas para 32% e da cobrança de royalties para 18%. Aproveitando-se de uma brecha na legislação, Mesa decidiu não assumir o ônus da decisão sobre a questão. De acordo com o ministro José Antonio Gallindo, “a legislação não terá a assinatura do presidente”. Até o fechamento dessa edição, a expectativa era de que o presidente do Senado, Hormando Vaca Diez, promulgasse a Lei dos Hidrocarbonetos. O partido Movimento ao Socialismo (MAS) prometeu que, defende a elevação dos royalties para 50%, afirmou que tão logo a lei fosse promulgada entraria com um projeto para modificá-la.

ticos conservadores com o objetivo de impedir a realização dessa assembléia. Por meio de um referendo, a elite quer que cada Estado boliviano defina livremente a legislação sobre seus recursos naturais de valor estratégicos, como hidrocarbonetos, os minerais, a água e a terra.

MAIS INCERTEZA Nesse quadro, o governo, os partidos neoliberais e as transnacionais movem suas fichas para evitar a aprovação de uma nova lei que recupere os hidrocarbonetos para o povo, enquanto setores populares se unificam para exigir o cumprimento de suas demandas. O principal dirigente da COB, Jaime Solares, assegurou que se iniciarão mobilizações pela nacionalização dos hidrocarbonetos, o fechamento do Parlamento e a renúncia de Carlos Mesa. Os professores se uniram aos trabalhadores de saúde e entraram em greve indefinida. Os moradores de El Alto se mobilizaram em La Paz, os camponeses ameaçaram cortar as rodovias e desabastecer as cidades, e a marcha continua se massificando. “O presidente tem dois caminhos: continuar defendendo os interesses das transnacionais, da oligarquia e da classe política corrupta ou atender às demandas da maioria da população indígena, camponesa, trabalhadora e pobre. Não há mais alternativas”, advertiu Morales. (Agência Latino-Americana de Informação – www.alainet.org)

Enquanto seus países registravam protestos e marchas, os presidentes de seis nações da América Central cumpriram uma missão pouco soberana: foram aos Estados Unidos pressionar os congressistas locais a aprovarem o Tratado de Livre Comércio da América Central (Cafta, na sigla em inglês). Participaram da excursão Abel Pacheco (Costa Rica), Oscar Berger (Guatemala), Ricardo Maduro (Honduras), Enrique Bolaños (Nicarágua), Elías Antonio Saca (El Salvador) e Leonel Fernandez. (República Dominicana). A negociação para implantar na região o mesmo projeto neoliberal da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) segue avançada, mas longe de ser concluída. O acordo já foi assinado pelos presidentes dos países envolvidos, mas apenas os deputados de El Salvador, Honduras e Guatemala ratificaram a decisão. A viagem foi idealizada pelo presidente estadunidense, George W. Bush, que enfrenta dificuldades para aprovar o Cafta no Congresso. A correlação de forças é desfavorável ao republicano, pois tem a oposição dos deputados democratas e da bancada ruralista que teme perder se os Estados Unidos reduzirem impostos para produtos como o açúcar. Segundo estimativas publicadas na imprensa estadunidense, 255 congressistas se opõem ao Cafta. Para aprová-lo, Bush precisa de 218 votos em um universo de 435 deputados.

IMPACTOS Para convencer os parlamentares, o presidente estadunidense discursou dizendo que o Cafta é “uma oportunidade histórica, um mercado de 44 milhões de consumidores que compra mais produtos dos Estados Unidos do

que a Austrália ou o Brasil”. A oposição reagiu. Sindicatos locais e membros do Partido Democrata afirmaram, em protestos, que a iniciativa “aumentaria a pobreza e faria mais ricas as transnacionais”. A ONG Public Citizen, que participa de campanhas contra o livre-comércio, divulgou que o Cafta terá o mesmo efeito negativo do Tratado de Livre Comércio do Atlântico Norte (Nafta). Esse acordo arruinou 28 mil pequenas empresas e fechou 2,5 milhões de postos de trabalho nos Estados Unidos. A maior central sindical do país, a AFL-CIO, também está contra o acordo. Na Nicarágua, organizações sociais, sindicatos e até empresários planejaram intervenções públicas para manifestar seu descontentamento. “A igualdade comercial do acordo será similar à que existe entre um tigre solto (Estados Unidos) e um burro amarrado (o povo)”, comparou o sociólogo Orlando Nuñez para o endereço eletrônico Prensa Latina. Na Costa Rica, dia 16, houve uma massiva manifestação nas ruas da capital. Já na República Dominicana, o Fórum Social Alternativo organizou mobilizações contra o presidente Leonel Fernández e preparam, para 14 de junho, uma jornada simultânea de protestos por mudanças na economia do país. Já na Guatemala, os movimentos sociais acusam o presidente Oscar Berger de reprimir os protestos contra o Cafta. A novidade, agora, são as ordens de busca e apreensão na sede das organizações. Em 7 de maio, invadiram a Coordenadora Nacional de Organizações Camponesas (CNOC) e levaram 15 computadores e documentos internos. Outras três entidades também sofreram a mesma ação. Em 17 de março, um cidadão foi morto pela polícia durante os protestos contra a assinatura do Cafta. (Com agências internacionais).


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AMÉRICA LATINA

CURTAS

Direito das crianças violados no Peru Cerca de um terço das 11 milhões de crianças e adolescentes peruanos são vítimas de maus-tratos, revelou o Estudo Mundial sobre Violência contra Crianças realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Entre 70% e 80% dos pais que foram maltratados na infância reproduzem a violência contra seus próprios descendentes. O estudo aponta também a relação direta desses dados com a deterioração no desenvolvimento das capacidades intelectual e emocional dos menores. Paraguaios contra a privatização Organizações de trabalhadores e camponeses protestaram, dia 13, no Paraguai, contra as privatizações de empresas. A mobilização foi definida pela Frente de Defesa dos Bens Públicos e do Patrimônio Nacional como reação aos planos do presidente Nicanor Duarte. A pedido do Executivo, o Senado estuda uma proposta para privatizar as empresas de telecomunicações, cimento, água, eletricidade e portos. A venda de empresas estatais é uma das exigências ao país do Fundo Monetário Internacional (FMI), em acordo assinado em dezembro de 2003. Microsoft avança na Argentina Deputados da esquerda argentina estão tentando barrar um programa lançado pelo presidente Néstor Kirchner com suposto objetivo de difundir o uso de computadores. Batizada de Meu PC, a iniciativa parte de uma parceria do governo com as transnacionais Intel e Microsoft. Citando o programa brasileiro PC Conectado como exemplo – que obrigatoriamente trabalha com software livres –, os deputados denunciam que Kirchner está favorecendo as empresas estadunidenses e contribuindo para o monopólio na área de computação. Tabaré aprova lei contra pobreza A Câmara dos Deputados aprovou, dia 13, um programa de ajuda social para retirar milhares de pessoas da situação de indigência e pobreza extrema. Cerca de 40 mil famílias vão passar a receber uma renda mensal de 55 dólares (o equivalente a R$ 135). O projeto faz parte do Plano Nacional de Emergência Social (Panes), lançado pelo novo presidente, Tabaré Vázquez, prevendo iniciativas nas áreas de alimentação, saúde, educação, emprego, habitação e miséria. Impulso à mídia alternativa O governo de Hugo Chávez anunciou que vai investir, este ano, cerca de 60 milhões de dólares no fortalecimento da produção da imprensa independente. O projeto “Nova Ordem Comunicacional” tem como objetivo transmitir o que ocorre na Venezuela, sem as distorções dos meios privados, e favorecer a unidade latino-americana.

Novas situações revolucionárias Inserção mais subordinada no mercado mundial está na raiz da crise crônica da América Latina Jorge Pereira Filho da Redação

A

rgentina, 2001. Bolívia, 2003. Equador, 2004. Embora as recentes mobilizações nesses países tenham uma história particular, o historiador Valério Arcary procura as semelhanças nesses processos e identifica que há uma situação revolucionária se abrindo na América Latina. Para ele, as massas já condenaram ao esgotamento a agenda neoliberal de ajuste fiscal e de combate à inflação. “Todos os governos eleitos não podem governar apoiado na base social que os elegeu, como ocorreu com Gutiérrez, Lula e Kirchner, se não romperem com o imperialismo”, avalia. Brasil de Fato – O Equador teve três presidentes derrubados em menos de dez anos e, mesmo assim, os novos governantes colocaram em prática a mesma agenda neoliberal. Isso ocorreu em outros países, como a Bolívia. Que análise o senhor faz disso? Valério Arcary – Essa pergunta levanta três questões. A primeira é avaliar as seqüelas desse intervalo histórico que corresponde aos ajustes inspirados na plataforma neoliberal e impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) aos governos latino-americanos nos anos 90. Esse processo corresponde ao período em que América Latina passa a se inserir no mercado mundial de forma mais subordinada e se manifesta pelo estrangulamento das dívidas externas. O alongamento do pagamento da dívida preservou uma tutela externa sobre o conjunto do continente. Estamos vendo o esgotamento desse período. Junto com o programa de ajuste fiscal, vieram os programas de dolarização (como no Equador) ou de semidolarização (como na Argentina). Esse é primeiro aspecto que podemos chamar de recolonização. BF – E qual foi a amplitude desse processo? Arcary – Essa recolonização não atingiu todos os países da América Latina por igual. O império estadunidense (e os europeus) não se relaciona com todos os países do hemisfério da mesma forma. Segundo aspecto: os Estados latino-americanos são todos semicolônias – conceito marxista que caracteriza Estados que, do ponto de vista econômico, são colônias, ainda que tenha formalmente independência política. Apesar dessa característica similar, os países latino-americanos possuem diferenças entre si. Equador, Bolívia e Peru são semicolônias dramaticamente fragilizadas, são sociedades camponesas que não completaram a etapa de urbanização, industrialização, como Argentina, Brasil e México. O neoliberalismo fez o ajuste e as massas deram crédito: o fim da inflação corresponde a um período em que os governos que estabilizaram a inflação tinham crédito. Esse período histórico se esgotou.

O alongamento do pagamento da dívida preservou uma tutela externa sobre o conjunto do continente. Estamos vendo o esgotamento desse período BF – E por que os governos e as instituições financeiras tinham (e têm) essa fobia no combate à inflação, esse objetivo não

No Equador, população vai às ruas para exigir a saída de deputados envolvidos em corrupção

muito claro que subordina todas as outras questões da política econômica? Arcary – Em situação de crise, o capital tenta se refugiar na forma monetária, uma forma líquida, para se proteger das crises e fugir. É a forma da máxima mobilidade. Os capitalistas não podem sair de um país com uma fábrica, mas podem sair com dinheiro. Seria bom um pesquisador ir a fundo nesse tema tabu. Na Argentina, por exemplo, isso é muito estudado. A fuga de capitais e a estabilidade da moeda são garantias para viabilizar a acumulação que está sendo realizada. BF – De que forma essa agenda prejudicou os países latinosamericanos? Arcary – A questão de fundo é que há uma crise crônica, de longa duração, que tem na sua raiz uma inserção cada vez mais dependente de todo o continente no mercado mundial. Mas essa queda afeta o Brasil, os países andinos, a Argentina, a Colômbia, o México, em proporções e ritmos desiguais. Na decadência, há diferenças. O Brasil caiu menos do que os andinos. O Estado brasileiro e a burguesia se associaram aproveitando as oportunidades da decadência. Em mais de 20 anos, o Brasil vem se expandindo as suas relações comerciais com a América do Sul. Há uma nova divisão internacional do trabalho no subcontinente. A nossa burguesia começou a receber uma parte da mais-valia que é mais expropriada pelas burguesias bolivana, paraguaia, equatoriana. Esse processo se dá em associação com o imperialismo, em uma relação de submetrópole. BF – E o terceiro aspecto? Arcary – O outro aspecto do problema é político com o despertar de novos sujeitos sociais. Os marxistas nunca dissemos que os proletariados eram os únicos que lutavam contra o capitalismo. A preservação tardia do capitalismo obriga o capital a impor à sociedade um conjunto de políticas que despertam outros setores para resistências anticapitalistas. No mundo andino, há um sujeito com grande protagonismo que são as massas camponesas indígenas. O segundo segmento são as classes médias pauperizadas, plebéias, não são mais as pequenas proprietárias da América Latina da primeira metade do século 20. São as classes médias assalariadas, da área de serviços, com uma escolaridade mais alta, que se deslocaram para mobilizações de massa, começa-

ram a usar métodos de luta que correspondem historicamente ao que foi o protagonismo proletário. Vimos isso na Argentina, com a reação das classes médias contra o corralito, em dezembro de 2001. Na crise boliviana, em outubro de 2003, setores da classe média apoiaram o povo contra Goni (apelido do presidente deposto Gonzalo Sanchez de Lozada). Esses setores entram em movimento com suas próprias reivindicações e surgem com potencial de serem aliados dos trabalhadores. É o despertar de novas classes para a mobilização revolucionária.

A preservação tardia do capitalismo obriga o capital a impor à sociedade políticas que despertam outros setores para resistências anticapitalistas, como as massas camponesas indígenas e as classes médias pauperizadas BF – Por que revolucionária? Arcary – Porque usam os métodos da ação direta, marcham através do país, grandes passeatas, cercam o Congresso, os Parlamentos, os Palácios, fazem denúncia dos líderes corruptos. Quando milhões se mobilizam e derrubam um governo, é uma revolução. Não socialistas, como a Revolução de Outubro, mas são revoluções democráticas, no regime, políticas. Na Argentina, sabemos que dois milhões e meio de pessoas saíram às ruas em três dias. No Equador, 20% da população economicamente ativa de Quito se uniu para derrubar o presidente. Foi uma insurreição sem direção, não havia uma organização com projeto de construir uma situação revolucionária. Em Quito, houve tudo de uma insurreição, menos a existência de um núcleo organizado que dissesse: bem, agora tomamos o poder. Que dissesse: “nós não fizemos isso porque o Parlamento é extraordinário e queremos que ele governe, ou que o vice governe”. Ninguém disse “todo poder ao Palácio” (Alfredo Palácio, que substituiu Lucio Gutiérrez). Ficou clara a tarefa de derrubar o governo, mas não ficou claro o que se pretende colocar no lugar.

Arquivo Pessoal

Ossadas na Guatemala Apenas nos quatro primeiros meses de 2005, foram encontrados cerca de 160 esqueletos humanos em cemitérios clandestinos de vítimas da repressão militar, informou a Fundação de Antropologia Forense da Guatemala (FAFG). A ditadura na Guatemala contou com apoio militar dos Estados Unidos e durou de 1960 a 1996. Estima-se que mais de cem mil pessoas foram mortas.

ENTREVISTA

Rodrigo Buendia/ AFP/ Folha Imagem

No México, bloqueios de estradas Milhares de professores fecharam rodovias do Estado de Chiapas, dia 13, com apoio de organizações indígenas e camponesas para protestar contra as políticas do governo local. Os manifestantes exigiram respeito à representação sindical e a libertação dos quatro professores presos em um bloqueio de estrada realizado no final de abril. A Secretaria do Trabalho despediu também 38 docentes que estiveram na mobilização. O governo estadual respondeu que não vai ceder aos protestos e disse que não vai libertar os professores porque se tratam de “delinqüentes”.

Quem é Valério Arcary é historiador, doutor pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de São Paulo (Cefet) e compõe a direção nacional do PSTU. É autor do livro As esquinas perigosas da história, editora Xamã.

BF – Mas que análise o senhor faz disso? Arcary – Nesse quadro de crise crônica, todos os governos eleitos não podem governar apoiado na base social que os elegeu, como ocorreu com Gutiérrez, Lula e Kirchner, se não romperem com o imperialismo. Governabilidade é ter, além do apoio político, um pacto com a sua base social, pode ser um pacto de colaboração de classes, por exemplo. Mas é preciso avisar os latifundiários, o capital financeiro que vão ter de fazer concessões. Ocorre que do ponto de vista político, o regime eleitoral não pode ter na América Latina a estabilidade que tem no centro do sistema. Tony Blair lançou a Inglaterra na guerra do Iraque, gerou manifestações de milhões de pessoas, mas acabou reeleito. Nos países centrais, o pacto social está de pé, a distribuição da riqueza se dá em condições completamente diferente da que ocorre na América Latina, mesmo no capitalismo. Mas, aqui, não há concessões às massas. As políticas sociais compensatórias têm como objetivo distribuir “bombons” para pequenos segmentos, de forma a dar mais estabilidade para esse regime eleitoral, como contrapartida da diminuição de investimento em programas universais. Isso vem sendo testado em larga escala na América do Sul. Até o momento, no entanto, tudo sugere que isso é insuficiente para bloquear o caminho para a mobilização de massas. Pode ganhar tempo, mas não traz estabilidade para o regime. Por isso, podemos dizer que há uma vaga revolucionária atravessando o continente.


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INTERNACIONAL UNIÃO EUROPÉIA

Unidos, povos rejeitam Constituição João Alexandre Peschanski da Redação

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ein. Non. No. Niet. Não! Os idiomas dos 25 países que compõem a União Européia (UE) se juntam e misturam. Em atos internacionais, os povos europeus se unem para dizer “não” à Constituição Européia. Em maio, protestos ocorreram em todos os países do bloco, principalmente na Alemanha, França, Itália, Polônia e Reino Unido. A proposta, elaborada pelo Conselho de Ministros da UE, é considerada neoliberal por seus oponentes, pois limita a participação do setor público na economia, abandonada ao controle do mercado. Além disso, acreditam, põe em risco conquistas históricas dos trabalhadores europeus, como a jornada reduzida de trabalho e a previdência pública. “Dizemos SIM à Europa, mas NÃO a essa Constituição. Queremos fortalecer a integração dos povos. Pensamos em uma União Européia com forte teor social, trazendo uma alternativa ao modelo ultraliberal dos Estados Unidos. Manifestamo-nos contra a Constituição, mas também por uma outra Europa”, afirma Peter Wahl, coAção pela Tributafundador da enção das Transações tidade Ação Financeiras em pela Tributação Apoio aos Cidadãos (Attac) – Movi- das Transações mento internacional Financeiras em criado em 1998, que Apoio aos Cidaresiste e apresenta propostas à globali- dãos (Attac) na zação econômica. Alemanha. Em entrevista ao Brasil de Fato por correio eletrônico, ele diz que os chefes de Estado da Europa, que defendem a Constituição, querem criar uma zona continental de livre comércio, nos mesmos moldes do que seria a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) no continente americano.

ABAFANDO PROTESTOS Os governantes da Alemanha, França, Itália e Reino Unido – respectivamente, Gerhard Schröder, Jacques Chirac, Silvio Berlusconi e Tony Blair – estão mobilizados para conter as manifestações populares e as críticas à Constituição. Temem que a proposta, cuja elaboração influenciaram diretamente, seja rejeitada. No início de maio, os primeiros-ministros alemão e inglês fizeram um giro pela França para ajudar seu colega Chirac a defender a Constituição. Convencer a população é a prioridade dos governantes em pelo menos dez dos 25 países que integram a União Européia. Na Dinamarca, Espanha, França, Irlanda, Luxemburgo, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido e República Tcheca, a aceitação da Constituição depende de um referendo popular. Na Espanha, esse referendo ocorreu em 20 de fevereiro, e a proposta foi aprovada. Nos outros países, as votações acontecem até o final de 2006. Em muitos deles, o resultado previsto por pesquisas de opinião é a rejeição da Constituição (veja o mapa acima).

SEM DEMOCRACIA Na Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Finlândia, Grécia, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia, Malta e Suécia, a decisão é parlamentar. Os debates sobre a Constituição nesses países têm sido mínimos – e as votações legislativas, muito rápidas. Oito dos quinze países já decidiram pela aprovação da proposta. A última votação ocorreu na Alemanha, em 12 de maio, e a Constituição foi aceita na Bundestag (parlamento alemão). “A votação parlamentar pretende silenciar os povos. Os alemães não tiveram o direito de escolher se

Philippe Huguen/AFP/ Folha Imagem

Governantes da Alemanha, França, Itália e Reino Unido se mobilizam para defender o projeto; movimentos protestam

Militarização à moda estadunidense

Dia 29, os franceses vão às urnas para votar a favor ou contra a nova Constituição Européia, considerada neoliberal

aceitam ou rejeitam a Constituição. Pesquisas de opinião indicam que a população teria dito ‘não’ à proposta”, comenta Wahl. No entanto, ele acredita que os alemães, em sua maioria, ficaram indiferentes, até mesmo porque, segundo ele, o governo não realizou debates sobre o impacto da Carta e não informou suficientemente a população sobre os detalhes do texto. Apesar da proposta ter sido aprovada, a Attac alemã pretende organizar mobilizações nacionais contra a Carta. Para Wahl, é um meio de se solidarizar com a luta dos outros povos europeus, principalmente o francês.

NA FRANÇA Governos da União Européia e movimentos sociais concordam que os rumos da Constituição vão se definir dia 28, quando os franceses vão decidir, por referendo, se aceitam ou rejeitam a proposta. Após dois meses de equilíbrio entre as duas posições, cada uma com metade do eleitorado, recen-

Fonte: Página na internet da União Européia e pesquisas de opinião, realizadas por diversos institutos e jornais

tes sondagens indicam um avanço do “não”. Estima-se que o resultado do referendo vai ser a rejeição do projeto, com 54% dos votos. Segundo Wahl, a decisão

francesa é fundamental, pois vai influenciar os povos dos outros países europeus. Em declarações oficiais, os governantes da Dinamarca, Polônia, Reino Unido e Re-

O governo estadunidense torce pela aprovação da Constituição européia. Isto porque a proposta indica um alinhamento com a doutrina da guerra contra o terror, do presidente George W. Bush, e garante aos Estados Unidos o poder de influenciar as orientações militares da União Européia (UE). A Carta compromete os governos europeus a melhorar seu poderio bélico, aumentando progressivamente as despesas no setor. Com o intuito de intensificar o combate ao terrorismo. Em casos de risco à segurança de países da UE, estabelece a possibilidade de ataques preventivos. Nesse sentido, a justificativa alinhase à de Bush, no caso dos Estados Unidos. Além disso, de acordo com a Constituição, a política militar do bloco deve estar de acordo com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Criada em 1949, ela é uma aliança entre países europeus, Canadá e Estados Unidos. No entanto, a Otan é administrativa e politicamente controlada pelo governo estadunidense, que tem o seu comando. Em 2001, Bush atacou o Afeganistão, usando as tropas da Otan. (JAP)

pública Tcheca afirmaram que, em seus países, o resultado vai, certamente, depender do da França. Tanto Chirac quanto os movimentos sociais franceses não dão como certa a vitória de uma ou outra posição. Por isso, têm intensificado mobilizações. Até o dia 28 de maio, estão previstas mais de 200 atividades, contra e a favor da Consituição.

O desenho pouco democrático da UE A União Européia (UE) se fundamenta em instituições que carecem de democracia, governabilidade e transparência. Em 29 de outubro de 2004, os três elementos se somaram e representantes dos governos mais conservadores do bloco elaboraram a proposta de Constituição Européia, considerada neoliberal por movimentos sociais do continente. A capacidade deliberativa e decisória está concentrada no Conselho de Ministros, composto por representantes dos 25 países que integram a UE. Nessa esfera, são definidas as orientações políticas e econômicas

do bloco. Apesar de todos os países terem direito a expressar sua opinião e votar, as decisões dos mais populosos – Alemanha, França, Itália, Reino Unido e Espanha – têm peso maior. No momento da formulação da Constituição, os governos e representantes no Conselho de quatro desses cinco países eram de partidos de direita. No mesmo período, o Parlamento Europeu, cujos 732 deputados são eleitos diretamente pela população dos 25 países da União, era composto majoritariamente por

partidos de esquerda. Mesmo mais representativo, o Parlamento é uma instituição puramente consultiva e pouco influenciou na elaboração da Constituição. O Conselho de Ministros não precisa divulgar as negociações que nele ocorrem. Assim, o Parlamento e a população européia não tomam conhecimento das discussões que lhes dizem diretamente respeito. Até recentemente, a distribuição de cópias da Constituição era restrita. Atualmente, pode ser encontrada na página na internet em 20 idiomas, mas a maioria de seus artigos é

técnica e pouco compreensível para grande parte das pessoas. Além disso, o imbróglio se complica por atropelamentos das leis. As decisões e propostas do Conselho devem sempre estar de acordo com as normas fundadoras da União. Isto é verificado pela Comissão Européia, que deve levar em consideração o âmbito comunitário (supranacional) e específico de cada país. Em casos como militarização, direitos sociais e imigração, onde cada integrante do bloco tem uma legislação e estratégia próprias, geralmente há incoerência entre aquelas duas esferas. (JAP)

Etapas da construção do bloco continental 16 de abril de 1948 – Criação da Organização Européia de Cooperação Econômica (OECE), primeira tentativa de integração de países do continente. 4 de abril de 1949 – Ratificação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). 25 de março de 1957 – Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos assinam o Tratado de Roma, criando a Comunidade Econômica Européia (CEE). 2 de dezembro de 1969 – A CEE se expande com a adesão da Dinamarca, Irlanda, Noruega e

Reino Unido. Em 1972, a Noruega sai da comunidade. 7 a 10 de junho de 1979 – População dos nove países da CEE elege, por sufrágio universal, deputados para o Parlamento Europeu, recémconstituído. A votação ocorre a cada cinco anos. 1º de janeiro de 1981 – A Grécia entra na comunidade. 1º de janeiro de 1986 – Adesão da Espanha e Portugal. 1º de novembro de 1993 – Entrada em vigor do Tratado de Maastricht (nome da cidade holandesa onde foi elaborado o documento),

que cria a União Européia, aumentando o grau de integração econômica, política e social dos 12 países que formavam a CEE. 1º de janeiro de 1995 – Nasce a Europa dos Quinze, com a entrada de Áustria, Finlândia e Suécia na UE. 19 de novembro de 1996 – Manifestações em diversos países contra uma proposta da Comissão Européia para flexibilizar os direitos dos trabalhadores europeus. Janeiro de 1999 – Onze países adotam o euro como moeda. 28 de outubro de 2002 – Apresentação do primeiro projeto da

Constituição Européia pelo Conselho de Ministros. 1º de maio de 2004 – Mais dez países entram na UE: Chipre, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia e República Tcheca. 18 de junho de 2004 – Adoção do projeto da Constituição Européia pelos 25 governos da União. 11 de novembro de 2004 – Por voto parlamentar, a Lituânia é o primeiro país a ratificar a Constituição Européia. Até o início de 2006, todos os países da União devem ter decidido se aprovam ou rejeitam o documento. (JAP)


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INTERNACIONAL ETIÓPIA

Eleições maciças, em clima pacífico da Redação

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om base nas primeiras avaliações, 85% dos 26 milhões de etíopes – num país de 74 milhões de habitantes – compareceram para votar, dia 15. O clima das eleições foi pacífico, segundo observadores internacionais europeus e do Centro Jimmy Carter. O comparecimento foi maciço – especialmente na capital, Adis-Abeba, foi de 2 milhões de habitantes. Apesar disso, houve protestos dos dois principais grupos oposicionistas, a Coalizão para a Unidade e a Democracia (CUD) e as Forças Democráticas Etíopes Unidas (UEDF). O eleitor preenchia uma cédula azul para os 547 deputados e uma verde para os nove conselhos regionais que elegerão 110 senadores. Disputavam a eleição outros 34 grupos, entre os quais o do governo, a Frente Democrática Revolucionária Popular Etíope (EPRDF), do primeiro-ministro Melez Zenaui, no cargo desde 1991. A chefe dos observadores europeus, Ana Gomes, apontou como falsas as acusações dos oposicionistas de que centenas de seus cabos eleitorais tinham sido presos dia 14 e de que as eleições foram fraudadas. De todo modo, Zenaui proibiu as manifestações de rua em Adis-Abeba e vizinhanças, até dia 15 de junho (os resultados oficiais da votação só sairão em 8 de junho). Quem tiver reservas sobre os resultados eleitorais, deve se manifestar de forma legal e constitucional.

CRIANÇAS VOTANDO Ana citou “alguns incidentes isolados lamentáveis”, como crianças se apresentando para votar no norte do país, com títulos eleitorais e tudo; mesários com machetes e tentativas de intimidação em Harar, no leste. Beyene Petros, vice-presidente da UEDF, afirmou que a oposição

Marco Longari/ AFP/ Folha Imagem

Observadores internacionais europeus desmentem fraudes denunciadas por oposicionistas

ETIÓPIA Localização: acima da linha do Equador, leste da África, oeste da Somália Nacionalidade: etíope Cidades principais: Adis-Abeba (capital), Dire Dawa, Harrar, Nazret, Gonder Línguas: amárico (oficial), línguas regionais. Também são falados o árabe e o inglês Divisão administrativa: nove Estados e uma área metropolitana (Adis-Abeba) População: 60,1 milhões; composição: oromos 40%, amarás e tigrinas 32%, sidamos 9%, chanquelas 6%, somalis 6%, outros 7% (1996) Grupos tribais principais: Oromo, Amhara, Tigre e Sidamo. Moeda: Birr, anteriormente, Guerche Religiões: cristianismo 57% (ortodoxos etíopes 52,5%, outros cristãos 4,5%), islamismo 31,4%, religiões tradicionais 11,4%, outras 0,2% (1993) Oposição acusa governo etíope de prender simpatizantes durante eleições realizadas dia 15

vai contestar os resultados, especialmente nas zonas rurais, o que foi confirmado por Hailu Shawel, presidente da CUD. Zenaui, que tomou o poder pela força há 14 anos e se candidatou a um terceiro mandato de cinco anos, apresenta a eleição como um progresso da democracia na Etiópia. Para muitos, essas eleições representam uma esperança de mudança no país, marcado pela pobreza e pela subalimentação. Na atual Câmara dos Deputados, a coalizão de Zenaui tem 481

Dinheiro para aliviar crises esquecidas Niko Kyriakou de Nova York (EUA) “Muitas das piores crises do mundo estão na África e podem ser solucionadas com atenção política, pressão diplomática e recursos”, disse ao Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) o subsecretário-geral para assuntos humanitários, Jan Egeland. Em nome do Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, Egeland solicitou ao Conselho 3 bilhões de dólares para a África. A região sudanesa de Darfur, assolada por conflitos étnicos, serve como exemplo pois o investimento humanitário da comunidade internacional “salva centenas de milhares de vidas” ali desde o ano passado, assegurou. O funcionário da ONU apresentou ao Conselho de Segurança um informe sobre a situação em vários Estados africanos que não figuram na agenda oficial da organização. Dos 14 pedidos de ajuda para crises africanas, oito receberam menos de 20% do valor necessário e, com exceção de Angola, nenhum recebeu mais de 40%. “Muita gente morre por causa do financiamento escasso ou porque chega muito tarde”, disse Egeland. “Vamos nos pôr de acordo sobre uma questão fundamental”, disse. “Uma vida humana tem o mesmo valor, independentemente de onde nasceu. O norte de Uganda deveria ter a mesma atenção que o norte do

Iraque. O Congo deveria ter a mesma atenção que foi dada a Kosovo, e não é isso o que acontece.” Egeland deu particular ênfase ao norte de Uganda, onde este ano foi rompido o cessar-fogo e as negociações para pôr fim a uma guerra civil de 19 anos entre o Exército de Resistência do Senhor (LRA) e o Exército. O funcionário informou que a crescente violência – por exemplo, a mutilação de civis por rebeldes – causava temor e desespero entre os 1,4 milhão de ugandenses que tiveram de abandonar suas casas, muitos deles indo para acampamentos lotados. A ONU recebeu apenas 34% dos 54 milhões de dólares que solicitou para suas operações humanitárias em Uganda, calculou Egeland. A presidente de turno do Conselho de Segurança, Ellen Margrethe Loj, disse que o órgão pretende “pedir urgência aos partidos, e especialmente ao LRA, para voltarem à mesa de negociações”. Em seu relatório ao Conselho, Egeland afirmou que a África está assolada pela “tríplice ameaça” da seca, das doenças e da debilidade dos governos. Na África Austral, cerca de 250 mil pessoas morreram vítimas da Aids desde janeiro, explicou. Por outro lado, as colheitas fracassam em Malawi, Zâmbia, Zimbábue, Suazilândia e Moçambique. A crise alimentar se agrava pela escassez de chuvas, quando ainda nem começou a estação seca. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

das 547 cadeiras, e a oposição, 12. O restante é preenchido por partidos ligados ao poder. Entretanto, antes das eleições, dia 10, a organização não-governamental (ONG) estadunidense Human Rights Watch (HRW) havia dito que os resultados seriam distorcidos, pois estaria ocorrendo repressão na região central de Oromia, habitada pelos oromos, etnia que compõe um terço da população etíope. A repressão envolveria “tortura, prisão sem mandado, perseguição a críticos

do governo”, apontados como ligados à guerrilha da Frente de Libertação Oromo, que prossegue desde 1992. A HRW considera que grupos de oromos estão sendo obrigados pelo governo a cavar latrinas e reparar estradas, entre outras tarefas. O mais grave é que esses grupos, de 30 famílias cada, são usados para facilitar a espionagem governamental. O documento da ONG foi divulgado em Nairóbi, no Quênia, e diz ainda que os grupos eram obrigados a participar de

comícios do partido governamental; os ausentes eram multados ou tinham a água cortada durante um dia inteiro. Os professores também seriam pressionados a vigiar alunos e informar sobre indícios de apoio à guerrilha. O subchefe da missão diplomática no Quênia, Ajebe Ligaba, desmentiu as denúncias da HRW. O primeiro-ministro Zenaui acusa a oposição de explorar as divisões étnicas, “o que pode ser catastrófico”. Ele mesmo é da etnia tigrai, minoritária. (Com agências internacionais)

Nigéria repudia a dívida externa da Redação Se os credores não chegarem rapidamente a um acordo para aliviar a carga da dívida externa, a Nigéria pode se ver obrigada a não pagar os 36 bilhões de dólares que deve. “A Nigéria clama: repudiamos a dívida”, foi o nome da reunião, em Roma, dia 10, a que compareceram quatro importantes autoridades nigerianas, que antes estiveram na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Os representantes do governo nigeriano advertiram que, depois de seis anos de negociações, está crescendo em seu país a insatisfação geral causada pela falta de acordo sobre a dívida – e advertiram também que chegou a hora de encontrar uma solução. O presidente da Comissão de

Finanças da Câmara dos Deputados enviou, em março, uma moção em que pede ao presidente Olusegun Obasanjo para suspender os pagamentos. O parlamentar considerou “inconcebível que nos últimos dois anos a Nigéria tenha pagado 3,5 bilhões de dólares e que a dívida tenha aumentado em 3,9 bilhões, sem o país ter pedido novos empréstimos”. Sadiq Sanusi, chefe da Comissão para os Auxílios, Empréstimos e Gestão da Dívida da Câmara dos Deputados, afirmou que a continuidade da democracia na Nigéria pode depender do cancelamento da dívida: “A comunidade internacional deve entender – e rapidamente – que a dívida da Nigéria é a única ameaça à democracia do meu país. As belas palavras não são suficientes”. O presidente do Senado, Udo

Udoma, declarou: “A dívida nos está sufocando. Os credores pretendem que o governo nigeriano destine ao pagamento da dívida três ou quatro vezes o total que reserva para a Educação e quinze vezes o total destinado à Saúde. Estamos no limite do que podemos suportar e o nível de frustração é muito alto”. Os dirigentes nigerianos chamaram a atenção para as condições dos 134 milhões de nigerianos, que vivem num nível de pobreza dos mais baixos do planeta. A cada mês morrem 79.500 crianças antes dos cinco anos de idade, por falta de água potável, de cuidados de saúde, de alimentos e abrigo. A Nigéria recebe em ajuda ocidental só 2 dólares por ano per capita e paga 12 dólares de juros da dívida. (Com agências internacionais)

Burundi: o acordo de paz em questão Augustin Fogang de Yaundé (Camarões) Enquanto aguarda as eleições de junho, o Burundi discute sua história, que tem duas versões – a dos hutus e a dos tutsis. O artigo 8, seção C, do acordo de paz, assinado a 28 de agosto de 2000 em Arusha, na Tanzânia, dispõe “a reescrita da história do Burundi, a fim de garantir que todos os cidadãos tenham a mesma leitura”. Afinal, hutus e tutsis se enfrentaram em massacres sangrentos ao longo dos anos 80 e 90. Agora, porém, o país, apesar da divergência sobre quem foi culpado de iniciar os massacres, parece pacificado.

Uma grande maioria dos burundenses aprovou em referendo a nova Constituição, decorrente do acordo de paz. Apesar dos vários adiamentos durante o período de transição, um calendário eleitoral definitivo está sendo respeitado e uma vigorosa democratização está em curso. Segundo esse calendário, adotado pela Assembléia Nacional, haverá eleições municipais a 3 de junho, eleições legislativas a 4 de julho, para o Senado a 29 de julho, presidente da República a 19 de agosto – e mais uma eleição característica do Burundi, dos representantes de grupos de aldeias, a 23 de setembro. O presidente deverá tomar posse a 26 de outubro.

Num país em que quase todos os presidentes eleitos foram assassinados, a comunidade internacional vê o processo eleitoral com cauteloso otimismo. A força multinacional de paz da Organização das Nações Unidas, de mais de seis mil soldados, surge como uma garantia para a segurança nas eleições. O ministro da Comunicação, porta-voz do governo, Onésime Nouwimana, exalta o novo Burundi: “Todos os cidadãos enfrentam os mesmos problemas de sobrevivência econômica, de ausência de condições aceitáveis de vida. A divisão hutututsi é uma ficção. Não tem mais lugar na nova situação”. (Africa Global Media, www.allafrica.com)


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INTERNACIONAL IRAQUE

Na prática, a guerra ainda não acabou Instituto de pesquisa alternativo mostra que, só em 2005, morreram 2 mil iraquianos e 187 soldados estadunidenses

A

guerra no Iraque não acabou. O governo de Sadam Hussein caiu no primeiro semestre de 2003, mas a luta armada em momento algum cessou. A avaliação é do sindicalista Omar Qasri, da Federação de Trabalhadores Iraquianos, que contradiz a versão, difundida pelo secretário de Defesa estadunidense, Donald Rumsfeld, de que a guerra teria acabado com a derrocada de Hussein. Dados do Instituto Brookings, centro de pesquisa alternativo sediado em Washington, Estados Unidos, comprovam a opinião de Qasri. De 28 de abril, quando os deputados iraquianos anunciaram a formação do novo governo do país, encabeçado pelo primeiro-ministro Ibrahim Yafari, até dia 13, 532 pessoas morreram em decorrência de atentados a bomba, realizados por organizações terroristas, e confrontos diretos entre grupos insurgentes e soldados estadunidenses e policiais iraquianos, treinados pelos militares que ocupam o país.

CAUSAS As vítimas dos ataques, em sua maioria, são civis. De acordo com o levantamento do Instituto,

co, as pessoas que participam dos grupos terroristas e dos insurgentes sofreram alguma violência de soldados estadunidenses. Ele cita, como exemplo, o assassinato de familiares, torturas, a destruição de casas e pilhagens.

France Presse

João Alexandre Peschanski da Redação

DEVASTAÇÃO

Nas cidades iraquianas, a presença de soldados estadunidenses é sinônimo de devastação e desespero

cerca de dois mil iraquianos foram assassinados em 2005. No mesmo período, 187 soldados estadunidenses morreram. Nota do levantamento destaca que os dados são estimativas e devem estar abaixo do número real de vítimas. “Alguém que não entende o que

está acontecendo no Iraque, ou que só recebe informações sobre o país da CNN, pode achar que as mortes de civis iraquianos são o resultado do terror implementado por pequenos grupos organizados. Na verdade, os ataques – condenáveis, pois vão contra civis – são o reflexo do deses-

pero da população”, afirma Qasri. A CNN é o principal canal de notícias dos Estados Unidos, muito vinculado institucional e politicamente ao presidente George W. Bush. Segundo o sindicalista iraquiano, que concedeu ao Brasil de Fato uma entrevista por correio eletrôni-

A cidade onde mora Qasri, Faluja, na região central do Iraque, é a mais devastada do país. E onde mais ocorrem conflitos armados e atentados terroristas. “Não é por acaso. As pessoas, antes da ocupação de Bush, estavam acostumadas à paz. Hoje, a cidade é uma grande ruína”, diz o sindicalista. De acordo com um relatório da entidade Human Rights Watch, que acompanha a situação dos direitos humanos no Iraque, a situação em Faluja está calamitosa. O índice de desnutrição das crianças de até cinco anos dobrou desde o final de 2002, quando o governo estadunidense iniciou os bombardeios à cidade. No geral, quatro dos 15 milhões de crianças que há no Iraque não recebem comida suficiente. O desemprego em Faluja atinge 70% da população. Em 2004, foram registrados mais de 3 mil casos de abusos por parte de soldados estadunidenses e policiais iraquianos sobre os habitantes da cidade.

CRIMES DA COCA-COLA

Colômbia e Índia, apenas dois exemplos Igor Ojeda da Redação

sindicalizados. Como as que ocorreram dia 5 de dezembro de 1996, quando paramilitares entraram na fábrica da Coca-Cola, em Carepa, exigindo que os trabalhadores assinassem cartas de desfiliação sindical, ou seriam mortos. As ameaças continuam. Suarez conta que em 17 de novembro do ano passado, na sede da Central Unitaria de Trabajadores (CUT) da cidade de Bucaramanga, uma mensagem escrita jurava de morte os sindicalistas que fizessem oposição ao governador, a prefeitos, ao presidente Álvaro Uribe e a empresas privadas. A ameaça era assinada pela Autodefensas Unidas de Colômbia, associação paramilitar criada em 1997.

ALIANÇA A Coca-Cola diversas vezes processou dirigentes sindicais por terrorismo, rebelião e formação de quadrilha. Todos foram declarados inocentes depois de demonstrar Divulgação

Considerado mês de ação contra a Coca-Cola, abril abrigou ações de conscientização sobre os crimes cometidos pela empresa na Colômbia e na Índia. Integrantes da campanha mundial contra a Coca-Cola realizaram, nos Estados Unidos, palestras em universidades da costa leste do país como preparação ao Encontro Anual dos Acionistas da Coca-Cola, dia 19, em Wilmington, no Estado de Delaware No encontro, muitos manifestaram preocupação com as graves violações dos direitos humanos e a dilapidação das fontes de água nos dois países. De acordo com participantes da campanha, depois que cerca de 20 acionistas discursaram contra a atuação da transnacional naqueles dois países, ainda faltavam outras 15 pessoas para falar, mas, mesmo assim, o executivo-

chefe da Coca-Cola encerrou o encontro. Na Colômbia, a engarrafadora da Coca-Cola Panamco está sendo acusada – inclusive em um processo nos EUA – de contratar grupos paramilitares para assassinar e intimidar líderes sindicais colombianos. Desde 1989, foram oito mortes. “A empresa tem no país 8.700 trabalhadores, dos quais 96% são terceirizados ou temporários, com salários de 200 dólares ao mês, jornadas diárias de 16 horas e sem cobertura dos direitos mínimos trabalhistas. Nos últimos dez anos, foram demitidos mais de 10 mil trabalhadores”, relata Luis Javier Correa Suarez, presidente do Sindicato Nacional de Trabajadores de la Industria de Alimentos (Sinaltrainal). Entre as práticas criminosas contra dirigentes sindicais estão assassinatos, ameaças, seqüestros e torturas, inclusive contra familiares, além de intimidações dos

a falsidade das acusações. “Isso tem o propósito de gerar terror nos trabalhadores. Fazer com que renunciem ao sindicato e evitar que outros se afiliem”, protesta Suarez. Agora, a Coca-Cola tenta acabar legalmente com a Sinaltrainal. Dia 3 de março, o Ministério da Proteção Social ratificou resolução de 2004 que revogava os estatutos do sindicato, contrariando decisão tomada pela Justiça, em fevereiro, de manter os direitos de associação e foro sindical. “Uma mostra da perseguição contra a Sinaltrainal por parte do governo”, indigna-se o presidente do sindicato, ele próprio vítima dos paramilitares. “Sofri três atentados, tentaram seqüestrar dois filhos meus e minha companheira, e fui levado à Justiça muitas vezes pela Coca-Cola, acusado de terrorismo, rebelião, formação de quadrilha, injúria e calúnia”, afirma o sindicalista.

Amit Srivastava, diretor do India Resource Center (IRC), um grupo da campanha binacional (EUA/ Índia) que coordena a campanha internacional para fazer a CocaCola responder por seus crimes na Índia e na Colômbia, diz que, “em pelo menos quatro comunidades – Mehdiganj, Kaladera, Plachimada e Wada –, um grande número de pessoas enfrentam severas dificuldades como resultado das práticas da Coca-Cola”. Entre elas, a escassez repentina de água, devido à extração do líquido em fontes subterrâneas públicas; e a poluição dessas fontes e das terras, pois a empresa descarrega seu lixo industrial nos campos em volta das fábricas. “São questões muito sérias. Na Índia, mais de 70% da população ainda vive da agricultura. Se você tira dela sua água, e envenena a terra e a água, isso significa destruir o sustento de um grande número de pessoas”, alerta Srivastava.

PAÍSES MUÇULMANOS

Repulsa generalizada à profanação do Alcorão da Redação

Cartaz de campanha européia contra os crimes da Coca-Cola

No Afeganistão, pelo menos nove mortos e 27 feridos foi o saldo dos protestos contra a profanação do Alcorão na base estadunidense de Guantánamo (Cuba), no bojo de uma onda de indignação que varreu o mundo árabe. Entre os dias 11 e 12, os protestos causaram 16 mortes e uma centena de feridos. Em 15 dos 34 Estados do país, houve manifestações depois que se soube de reportagem da revista estadunidense Newsweek, segundo a qual policiais que interrogavam os presos jogaram exemplares do Alcorão nos banheiros, para irritar prisioneiros muçulmanos. No dia 13, inúmeras pessoas, insufladas por mullahs, protestaram na cidade de Barak, atacando várias organizações não-governamentais, entre elas a Aga Khan Foundation e Mission East, cujos edifícios incendiaram, de acordo com relato do governador de Badakshán, Abdul Majid. “Nos enfrentamentos com a polícia, três

pessoas morreram, 19 manifestantes e três policiais ficaram feridos”, acrescentou. Um dia antes, os Estados Unidos tentaram acalmar a situação. A secretária de Estado, Condoleezza Rice, afirmou que “um desrespeito ao Alcorão é, para nós, um fato odioso”, e o Péntagono assegurou que os primeiros resultados de uma investigação não confirmaram as acusações feitas. E ato contínuo, a Newsweek admitiu em sua edição desta semana, em circulação no dia 16, que pode ter veiculado uma informação errada. No entanto, mais de 300 clérigos muçulmanos afegãos, reunidos em Badakhshán, ameaçaram declarar “guerra santa” aos Estados Unidos se, em três dias, não houvesse uma “reação” do presidente George W. Bush, segundo fontes ouvidas pelo jornal inglês The Guardian. O jornal ressaltou, porém, que outras fontes, entre elas policiais locais, negaram a utilização da expressão “guerra”. O presidente afegão Hamid Kar-

zai prometeu corrigir os “erros” das forças estadunidenses, pediu o retorno dos afegãos confinados em Guantánamo, mas reafirmou a aliança com Washington pois, sem seu apoio, o Afeganistão poderia “cair imediatamente no caos”. Também a Arábia Saudita exigiu dos EUA uma rápida investigação na base: “Confirmadas as acusações, o governo saudita considera que serão necessárias medidas cabíveis contra os responsáveis para evitar que se repitam, e respeitar os sentimentos dos muçulmanos”. No Paquistão, a indignação levou milhares de pessoas às ruas das principais cidades. Houve protestos no Iraque, Faixa de Gaza, Cisjordania e Egito. Na Líbia, a profanação foi denunciada como “uma ação irresponsável e imoral”, e que são fatos como estes que estimulam e alimentam o terrorismo. Na Síria, os Irmãos Muçulmanos divulgaram comunicado condenando “as forças do mal que querem impor ao mundo a lei da força”. (Com agências internacionais)


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DEBATE LUZ PARA TODOS

Israel Fernando de Carvalho Bayma m 11 de novembro de 2003, foi lançado o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica – Luz para Todos, que pretende levar, até 2008, energia elétrica a 12,5 milhões de pessoas nas zonas rurais. O projeto se destina a municípios com Índice de Atendimento inferior a 85% e com Índice de Desenvolvimento Humano inferior à média estadual; comunidades atingidas por obras do setor elétrico; escolas públicas, postos de saúde e poços de abastecimento d’água; assentamentos rurais; quilombos, pequenos e médios agricultores e comunidades extrativistas. Até este momento, foram assinados 54 contratos, totalizando R$ 2,1 bilhões, dos quais R$ 1,8 bilhão em recursos do governo e R$ 1,3 bilhão provenientes de subvenções da Conta de Desenvolvimento Energético, mais R$ 471 milhões de financiamentos da Reserva Global de Reversão. Foram liberados R$ 232 milhões, com 90 mil novas ligações em 2004, e 130 mil atendimentos em andamento. A meta para 2005 prevê 616.543 novos atendimentos. Fui coordenador regional para a Região Amazônica até o dia 1º de março deste ano, como diretor de Planejamento e Engenharia da Centrais Elétricas do Norte do Brasil S. A., a Eletronorte. Em dois anos, vi e vivi as enormes dificuldades que o programa tem e terá para levar energia, por exemplo, a mais de 10 mil escolas e 250 mil famílias, só no Maranhão, ou mais de 230 mil famílias no Pará, dentre as quais, pasmem, estão mais de 20 mil domicílios sem energia ao lado da maior usina hidrelétrica genuinamente nacional, Tucuruí. A Lei 10.438/2002 introduziu as metas de universalização ainda no governo anterior, determinando o ano de 2015 como prazo final, considerado excessivo pelo governo Lula. Para acelerar as metas, foi criado o Programa Luz para Todos, a fundo perdido, que projeta para 2008 a iluminação de mais de 2,5 milhões de domicílios. Mas nem todas as concessionárias puderam contratar os recursos. Na Amazônia, a CEA, concessionária do Amapá, e a CER, em Roraima, até agora não conseguiram. Outras concessionárias privadas puderam firmar contratos com a Eletrobrás, mas estão no Cadin (cadastro de inadimplentes) e, portanto, não podem receber recursos públicos. A rede Celpa, concessionária privada do Pará, há mais de um ano resiste em atender prioritariamente

E

aos atingidos pela construção da Usina de Tucuruí, mais de 25 mil pessoas sem energia elétrica em suas casas. Vivenciamos situações em que a concessionária argumentava que, do ponto de vista empresarial, esta ou aquela extensão da rede não seria economicamente atrativa, e, portanto, prioritária para ela. Também tentam utilizar os recursos da universalização para cobrir investimentos em obras que nada têm a ver com o Programa e sim com interesses estritamente comerciais para expandir seus mercados, ou para garantir maior confiabilidade ao seu sistema. Para fiscalizar o uso dos recursos, há uma estrutura no Ministério de Minas e Energia, que dirige o Programa; um comitê gestor em cada Estado, que define suas prioridades; a fiscalização da Eletrobrás e suas subsidiárias e as ações da Aneel, a agência reguladora do setor. O país ainda não tem plena consciência do significado épico desta empreitada. Quando se fala em reforma agrária, no Brasil, tem-se idéia de uma dívida social colossal, com enormes implicações. Atrevo-me a dizer que a universalização do acesso à energia elétrica tem o mesmo nível de importância emancipatória. Há 4,5 milhões de famílias esperando pela terra. Aproximadamente 22 milhões de pessoas excluídas, da mesma forma que os sem-luz. Na realidade, o universo de exclusão é maior, se juntamos os sem-teto, os sem-emprego, os sem-nada, vivam eles nas áreas rurais ou urbanas. E não se pode dizer que as populações faveladas das grandes cidades, por terem acesso à luz elétrica, devam ser consideradas “incluídas” ou beneficiárias de cidadania plena. Fui empregado da Companhia Energética do Maranhão, Cemar, como engenheiro eletricista, por mais de 20 anos, até ela ser privatizada. Conheço a situação da empresa e as complexidades para universalização da energia elétrica no Maranhão, um Estado marcado pelos piores indicadores sociais do país. Marcado pela exclusão social e, historicamente, controlado por oligarquias. Em estudo realizado pelo Luz para Todos, observei que no Maranhão os partidos dos prefeitos das localidades onde são realizadas obras, na sua maioria esmagadora, se opõem ao Partido dos Trabalhadores. E, nas cidades do interior, fazem oposição ao governo federal. São essas mesmas forças políticas tradicionais que são denunciadas pela sociedade organizada e pelos movimentos sociais como detentoras do controle político do Estado há mais de 40 anos e compõem aquilo que a

Kipper

Universalização: muito além da energia

ciência política chama de oligarquia, ou coronelismo. Essas forças políticas têm feito forte oposição ao Luz para Todos que, este ano, se propõe a levar energia elétrica a mais 45 mil novos domicílios no Estado. De todos os domicílios aprovados pelo comitê estadual para serem energizados em 2004, 29% foram em municípios administrados pelo PFL, 28% pelo PTB, 17% PMDB, 7% PSDB, 2% PV, 2% PDT e 1% pelo PT. (Há que se ressaltar, porém, que dos 217 municípios maranhenses, somente sete passaram a ser administrados pelo PT em 2005). Observei que a Federação das Associações de Municípios - Famem, que representa os prefeitos maranhenses, tem assento no comitê estadual e, portanto, participa das definições de prioridades. Apesar de privatizada, há forte influência de grupos políticos na gestão da distribuidora estadual de energia elétrica. Nos nove Estados da região Amazônica, à exceção do Acre, a realidade não é distinta do que ocorre no Maranhão. Há uma questão de fundo que precisa ser encarada: a do desinteresse das elites pelos processos de inclusão social. O investimento social é visto como despesa, custo, prejuízo enfim. Não se percebe que a emancipação das comunidades carentes e sua inclusão cidadã, principalmente em moldes que prevejam novas oportunidades de desenvolvimento econômico, pode significar novas formas de geração de riquezas, elevação dos padrões de consumo dessas comunidades e, portanto, sua inclusão na ciranda do mercado. Na sua origem, o Programa previa mecanismos de ação integrada, para conseguir que da luz elétrica nascesse algo mais que sua simples utilização para iluminação ou para acionar um eletrodoméstico qualquer, por mais que este fato seja relevante para os excluídos.

A Comissão Nacional de Universalização, com representação de praticamente todos os ministérios, acompanharia, além da implantação da energia, o acesso à saúde, educação, inclusão digital, capacitação técnica, fontes de trabalho. Aos comitês gestores estaduais caberia identificar as reais necessidades das comunidades e, a partir daí, definir prioridades e metas. Houve quem observasse que, a partir da luz elétrica, muitos cidadãos dos lugares mais distantes começariam a ter acesso, pela televisão, ao desejo proibido dos padrões de consumo dos grandes centros urbanos. Em sã consciência não podemos nos regozijar por manter 12 milhões de pessoas literalmente no escuro, acreditando preservá-las dos males da sociedade de consumo. Mas é bem verdade que inclusão elétrica sem informação, cultura, capacitação técnica, acesso aos serviços públicos, fontes de trabalho, meios de subsistência, pouco agrega à condição cidadã. Passa a ser um bem de consumo como outro. A tentação por deixar este processo nas mãos de um certo laissez-faire é muito grande. Infelizmente, os dados da exclusão social no país, apesar de todos os esforços do governo Lula, indicam que a intervenção do Estado deve continuar forte e será decisiva para que este processo se complete, seja duradouro e auto-sustentável. Em outubro de 2004, como coordenador do Luz para Todos, participei de um programa na Rádio Senado sobre eletrificação rural. Dois dias depois, estive na cidade de Paulino Neves, no interior do Maranhão, a mais de 300 km da capital, São Luís. Fui levar energia para a escola de uma comunidade de 300 pessoas distante alguns quilômetros da sede do município. A Eletronorte estava instalando um sistema de geração fotovoltaica (energia captada do

sol através de placas de semicondutores). Depois da solenidade de entrega, um trabalhador pediu para falar e disse que estava sentado na porta da sua casa, escutando seu radinho de pilha, ouviu a minha entrevista e pensou: como seria bom se o Programa Luz para Todos pudesse chegar à comunidade. E declarou que estava feliz por receber o coordenador do programa, dois dias depois, na única escola da comunidade. Estava feliz porque as crianças, que às vezes trabalham para complementar a renda de suas famílias, poderiam passar finalmente a ver televisão e usar o computador da escola. A emoção foi geral. Não há dúvida de que a energia elétrica é um dos fatores que mais contribuem para o desenvolvimento de um município. A sua disponibilidade é essencial para o cidadão comum, para o comércio local, para a construção de cadeias produtivas, para o setor industrial, além de se constituir um benefício direto para a população, proporcionando-lhe conforto e melhoria da qualidade de vida. No entanto, como se trata de um serviço que requer investimentos elevados, a sua geração e distribuição geralmente foge à capacidade do município. A marcha do MST e dos movimentos sociais que chegou a Brasília, reunindo mais de doze mil pessoas, chama a atenção da sociedade para a grave situação da pobreza e desigualdade no campo, onde 430 mil famílias aguardam para ser assentadas durante o governo Lula e, até agora, menos de 60 mil receberam a posse da terra. Deveria ser feita também uma grande marcha no Maranhão para chamar a atenção para a pobreza do nosso povo que vive, ainda, na profunda escuridão e continua há mais de 40 anos desprezado pelas elites do Estado que, hoje, divididas, buscam se manter no poder, atacar o caráter abrangente do Luz para Todos e impedir os sofridos maranhenses de entrar no século 21. Dito isto, não se pode renunciar à universalização. Pelo contrário: cada um deve fazer a sua parte, com seriedade e sentido de urgência. Implementem-se então os instrumentos, aloquem-se os recursos, constituam-se os grupos de trabalho, sem mais tardar, e seremos capazes de transformar rapidamente essa realidade e incluir todos aqueles que hoje estão excluídos. A atuação do governo federal na região de Anapu, no Pará, pode ser um exemplo e um embrião. Fundamental é assegurar a continuidade e a integração das ações das instituições públicas, não aceitando os condicionantes das retrógradas oligarquias regionais que, ou tiram proveito destes processos (manipulando e usurpando recursos orçamentários) ou, simplesmente, apostam na sua não-realização, criando todo tipo de obstáculos e dificuldades. Tanto em Tucuruí, onde elaboramos o plano de desenvolvimento sustentável dos municípios à jusante da usina, juntamente com os movimentos sociais e as comunidades locais, quanto em Altamira, onde conhecemos o plano do Baixo Xingu, em 2004, somos testemunha de que, apesar da oposição de muitas lideranças políticas locais, a população quer desenvolvimento integrado e não somente a eletrificação rural. Israel Fernando de Carvalho Bayma é maranhense de São Luis, engenheiro eletricista, mestrando em Ciência Política, pesquisador da Universidade de Brasília, ex-diretor de Planejamento e Engenharia da Eletronorte e ex-coordenador do Programa Luz para Todos na Região Amazônica


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA OUVINDO CONSELHOS — DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E DE DIREITOS DA INFÂNCIA NA PAUTA DAS REDAÇÕES BRASILEIRAS Lançado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), o livro discute o papel democrático dos Conselhos Tutelares e de Direitos da Criança e mostra como esses órgãos contribuem para o fortalecimento da democracia participativa nas políticas da infância e da adolescência. Em estrutura de livroreportagem, esclarece o que são, como funcionam os conselhos e como se dá a participação popular nessas instâncias. Levando em consideração a necessidade da população conhecer de perto os conselhos, para que estes possam ser estimulados a desempenhar com efetividade seu papel, o livro também aborda a contribuição da mídia brasileira para essa agenda. Um destaque da obra é uma análise de como os jornalistas retratam esses órgãos em matérias sobre infância e adolescência, com base em pesquisa inédita. Lançado pela Editora Cortez, o livro tem 200 páginas e custa R$ 27 Mais informações: (61) 2102-6553 REVISTA MARGEM ESQUERDA Nº 5 Leandro Konder, que fala de suas vivências tanto no meio acadêmico quanto no PCB e no PT, além de apontar suas expectativas para a reorganização da esquerda brasileira. Outro destaque dessa edição é o dossiê que trata do imperialismo, pelas análises de David Harvey, Paulo Arantes, Domenico Losurdo, Giovanni Arrighi e Aldo Romero. Os autores jogam novas luzes e recuperam conceitos válidos quase cem anos depois de Lênin ter definido o imperialismo como a etapa superior do capitalismo. Mais do que denunciar as atrocidades cometidas pela gestão de George W. Bush, essa seleção de textos procura detectar as mudanças ocorridas nas práticas de dominação internacional. A revista traz também, entre outros artigos, Ricardo Antunes, autor de Os sentidos do trabalho, destrinchando o projeto e os objetivos da reforma sindical proposta pelo governo Lula. Carlos Nelson Coutinho, especialista em Gramsci, analisa a relação da obra do pensador italiano com o Sul do mundo. E em lembrança aos anos da Revolução de 1905, um texto clássico do Trotsky sobre o soviete de Petrogrado. A revista tem 224 páginas e custa R$ 25. Mais informações: www.boitempo.com

CEARÁ 7ª CAPACITAÇÃO EM MASSA EM PLANEJAMENTO URBANO 2 a 11 de junho O curso, promovido pela Escola de Planejamento Urbano e Pesquisa Popular da organização não-governamental Cearah Periferia, pretende capacitar a população na aplicação dos principais instrumentos de garantia do direito à cidade e de acesso à moradia, previstos no Estatuto da Cidade. Usucapião coletivo, IPTU progressivo, Zonas Especiais de Interesse Social e outros temas que podem auxiliar as comunidades a exigir a aplicação da lei e a participação no desenvolvimento da cidade. Local: R. Carlos Vasconcelos, 1339, Fortaleza Mais informações: (85) 3261-2607,

DISTRITO FEDERAL SEMINÁRIO — TRANSPARÊNCIA E CONTROLE SOCIAL 23 e 24 Durante o seminário, promovido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), organizações da sociedade civil vão reunir-se com representantes de tribunais de contas e do Ministério Público para a construção de estratégias de aproximação entre o controle oficial e o controle social. Local: Auditório Nereu Ramos, Câmara dos Deputados, Congresso Nacional, Brasília Mais informações: (61) 212-0200, CURSO – DIREITOS INDÍGENAS PARA JORNALISTAS 19 e 21 de maio, 2 e 4 de junho Com o intuito de contribuir para a cobertura jornalística de temas ligados aos povos indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) está promovendo um curso para jornalistas interessados em aprofundar conhecimentos sobre a questão indígena. O curso abordará os conceitos antropológicos e jurídicos, além de abordar a legislação indigenista brasileira. Haverá também um momento sobre o histórico do movimento indígena no Brasil. As palestras serão ministradas pela professora do Departamento de Antropologia da PUC-SP, Lúcia Helena Rangel, pelos advogados e assessores jurídicos do Cimi, Paulo Machado Guimarães e Cláudio Luiz Beirão, e pelo vicepresidente do Cimi, Saulo Feitosa. O curso contará com a presença da subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que atua com povos indígenas e minorias étnicas. Local: Departamento de Comunicação da Universidade de Brasília, Campus Universitário, Darcy Ribeiro, Gleba A, Brasília Mais informações: (61) 322-7582, imprensa@cimi.org.br

MINAS GERAIS SEMINÁRIO – CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA 2e 3 de junho Promovido pelo Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos (NAVCV), o seminário vai discutir os desdobramentos dos atendimentos às vítimas de violência. A conferência será ministrada pelo professor Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. Local: Auditório da Escola Superior Dom Helder Câmara, R. Álvares Maciel, 628, Belo Horizonte Mais informações: (31) 3214-1898, crimesviolentos@yahoo.com.br

PERNAMBUCO MOSTRA – CINEMA DO BRASIL 25 de maio e 1º de junho, 19h O cinema nacional entra em cartaz no Sesc Arcoverde, por meio da Mostra Cinema do Brasil. Serão exibidos os filmes Narradores de Javé (25/5) e Domésticas (1º/6). Entrada franca. Local: R. Capitão Arlindo Pacheco, 364, Centro de Arcoverde, Recife Mais informações: (87) 3822-2901

SÃO PAULO 18 ANOS SOS MATA ATLÂNTICA 20 a 22 Os 18 anos da Fundação SOS Mata Atlântica serão comemorados em um evento aberto ao público, com entrada gratuita no Parque do Ibirapuera. Durante os três dias, a Exposição Viva Mata Atlântica reunirá na Marquise do Ibirapuera, das 10h às 18h, cerca de 50 projetos de iniciativas em prol da Mata Atlântica. Vindos dos 17 Estados que compõem a área de Mata Atlântica no Brasil, os projetos serão apresentados sob grupos temáticos como Biodiversidade, Restauração Florestal, Recuperação da Mata Atlântica, Reservas Privadas e Recursos Hídricos. No sábado, serão realizados, no Auditório do MAM, painéis temáticos com especialistas que debaterão a atual situação do bioma e as perspectivas futuras de conservação. Local: Marquise do Parque do Ibirapuera, São Paulo Mais informações: (11) 3055-7888 www.sosma.org.br CURSO ESTADUAL DE FORMAÇÃO DA CAMPANHA CONTRA A ALCA 20, 21 e 22 O curso destina-se aos que lutam para multiplicar a Campanha contra a Alca em suas regiões e municípios. Um dos objeti-

vos desse encontro é preparar mais pessoas para a realização de assembléias populares que discutam a questão da Alca com diversos formadores de opinião do Brasil. O transporte é por conta de cada participante, já a alimentação e a hospedagem serão gratuitas, mas é preciso levar colchonete e roupa de cama e banho. Local: Sindicato dos Engenheiros - R. Genebra, 25, São Paulo Mais informações: (11) 3105-2516 ou plebiscitoalcasp@yahoo.com.br DEMOCRACIA PARTICIPATIVA 21, 10h O Comitê Pró-Conselhos de Representantes, junto às subprefeituras da cidade de São Paulo, está convocando a população a participar de ações coletivas em defesa da retomada do processo eleitoral para a escolha dos membros dos conselhos de representantes junto às subprefeituras. Será realizada uma tribuna do povo para defender a Lei 13.881/2004 e a Constituição dos Municípios. Local: Vão livre, do lado de fora da Câmara dos Vereadores, Viaduto Jacareí, 100, São Paulo Mais informações: (11) 3111-2000 EXPOSIÇÃO – NINGUÉM NASCE BANDIDO Até 10 de junho O artista Wilson Tafner nasceu em 1967, na cidade de São Paulo.

Em 1990, concluiu o curso de Direito pela Universidade de São Paulo. O ano de 2000 marcou a decisão de dedicar-se à produção artística e cultural. A partir de então, começou a construir sua linguagem plástica, na qual confluem as questões da pintura e as várias dimensões temáticas de seu trabalho como promotor de Justiça da Infância e da Juventude. Entrada franca. Local: Av. Dr. Cardoso de Mello, 758, São Paulo Mais informações: (11) 3841-9620

EXPOSIÇÃO – ICONOGRAFIA DO MOVIMENTO OPERÁRIO: A GREVE DE 1917 Até 19 de junho Promovida pela Prefeitura Municipal de Campinas, a mostra resgata a história do Movimento Operário, com imagens do cotidiano operário da República Velha, peças e documentos que resgatam a formação da classe operária no Brasil. A exposição marca o mês do trabalhador e revive em vinte e cinco painéis, que trazem um pouco da história das primeiras fábricas brasileiras, a greve de 1917 em São Paulo, as condições precárias de trabalho e a exploração do trabalho feminino e infantil. Entrada franca. Local: Museu da Cidade, Av. Andrade Neves, 33, Campinas Mais informações: (19) 3231-3387

Agência Estado

LIVROS

SEMINÁRIO — ESTRUTURA SINDICAL NO BRASIL: MEMÓRIA, ATUALIZAÇÃO E PERSPECTIVA 23, das 14h às 18h Realizado pela CUT, o seminário tem o objetivo de mostrar que os trabalhadores foram os principais protagonistas na origem e na evolução da estrutura sindical e de uma legislação social no Brasil. O evento contará com as presenças do secretário Nacional de Organização, Artur Henrique da Silva Santos; do doutor em História, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Michael Hall; do doutor em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, João Tristan Vargas; do diretor do Arquivo Nacional, professor de arquivística da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Jaime Antunes da Silva; da historiadora, diretora geral do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro, Beatriz Kushnir. Local: sede nacional da CUT, R. Caetano Pinto, 575, São Paulo Mais informações: (11) 2108-9200

MEMÓRIA

Perdemos um companheiro, ganhamos um desafio Frei Sérgio Görgen

A

notícia chegou-nos como um petardo. “O senhor Ênio Guterres sofreu um acidente de carro e está em estado grave no Hospital de Pronto Socorro”. Corremos feito doidos e quando conseguimos chegar no setor de traumatologia o que ouvimos desmontou-nos por completo. “O acidente foi grave e o senhor Ênio já chegou aqui com parada cardíaca. Não pudemos fazer mais nada”. Uma carreta Volvo, numa ultrapassagem perigosa e proibida, colheu de frente o Gol que Ênio dirigia, tirando-lhe a vida. Perdíamos ali uma pessoa singular. Os filhos perdiam um pai exemplar. A esposa perdia não só o amor de sua vida, mas o marido dedicado e atencioso. Os parentes perdiam um irmão, primo, cunhado, genro amigo e estimado. A mãe perdia o filho dileto. Todos nós perdemos um amigo, uma pessoa séria – e ao mesmo

tempo alegre –, alguém de fácil convivência e incapaz de uma palavra dura ou ofensiva. E todos perdemos um técnico competente, estudioso, preparado, disciplinado e dedicado à causa do povo. Ênio fizera uma opção de classe muito clara ainda no tempo de estudante de agronomia na Universidade Federal de Santa Maria. Depois de formado passou em concurso público e foi trabalhar na Emater, no Rio Grande do Sul. Dela foi demitido pelo governador Antônio Britto, quando manifestou publicamente sua opção pelo Partido dos Trabalhadores. Trabalhou nas lavouras da família em Coronel Bicaco (RS) – pois não conseguiu emprego após ser demitido pela Emater –, até que foi convidado a assessorar tecnicamente o recém-fundado Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Ênio ajudara a fundar o MPA em seu município e chamara a atenção como técnico e como pedagogo popular. A partir de 1997, Ênio integrou-

se na construção do MPA como assessor técnico, trabalhando em Cruzeiro do Sul e percorrendo todo o Estado. Em 1998 é escolhido para fazer parte da assessoria técnica do PT na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, mas não se desvincula de seu trabalho junto aos pequenos agricultores. Com a vitória de Olívio Dutra nas eleições para governador, Ênio passa a fazer parte da equipe que vai implantar o Programa de Reforma Agrária do governo popular, aí permanecendo pelos quatro anos e conquistando respeito entre os assentados e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pela sua capacidade técnica e de diálogo. Nesse período estuda e escreve sobre uma nova modalidade de assentamentos então experimentado, o assentamento Rururbano. Em 2003, retorna como assessor técnico da Via Campesina, compondo a equipe do Gabinete Parlamentar conquistado pela Via Campesina na Assembléia Legislativa do Rio

Grande do Sul. Nesse período aprofunda seus estudos teóricos e práticos sobre agroecologia, sementes crioulas, transição agroecológica, transgênicos, agricultura camponesa, assistência técnica e energia de biomassa. Estava preparando tese de mestrado para a Universidade de Córdoba, Espanha, com o professor e pesquisador Eduardo Sevilla Gusmán, desenvolvendo a temática do Método para a Transição Agroecológica. Por designação da Via Campesina, estava também na coordenação de três importantes projetos em estudo nos movimentos camponeses: a mecanização camponesa, a implantação de projetos de biodiesel e a elaboração de um Plano Camponês coordenado pelo MPA e pela Via Campesina nacional. Participou também de encontros internacionais, representando a Via Campesina do Brasil em atividades sobre soberania alimentar, transgênicos e comércio internacional. Seus 44 anos de vida intensa

foram interrompidos brutalmente quando voltava de um assentamento do MST em Guaíba (RS), onde regular e disciplinadamente ia todas as quartas-feiras colher dados para sua tese de mestrado e debater com os assentados como estavam fazendo a transição de modelo tecnológico. Unir teoria e prática era um traço marcante em sua maneira de ser militante e intelectual. No dia seguinte, no dia em que o sepultamos, estaria coordenando o lançamento de um trator popular de tecnologia chinesa adequado à agricultura de pequeno porte. Perdemos um amigo, um companheiro, um militante, um técnico competente mas ganhamos um desafio novo. Continuar a luta pela qual ele tanto se doou e fazer viver neste país a reforma agrária, a agricultura camponesa e o respeito aos que trabalham na terra. Frei Sérgio Görgen é militante da Via Campesina do Brasil e deputado estadual pelo PT-RS


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CULTURA

De 19 a 25 de maio de 2005

CINEMA

Argentina inspira documentário antiliberal da Redação

O

s franceses já puderam conferir o documentário The Take, realizado por Naomi Klein, autora de No Logo, juntamente com Avi Lewis, seu marido. A produção documenta a recuperação de empresas falidas na Argentina, após a crise econômica de 2001, devido aos esforços de seus trabalhadores, em um modelo de autogestão. O casal morou por seis meses na capital argentina, onde produziu mais de 200 horas de filme. Ovacionado no Festival de Veneza no ano passado, o filme ainda não tem estréia prevista no Brasil. Veja, abaixo, o artigo sobre o filme, publicado em abril, no diário francês L’Humanité, escrito por Michèle Levieux. “Quem disse que tudo está perdido?”, canta Mercedes Sosa nesta Argentina que, depois da crise de dezembro de 2001, tornou-se um verdadeiro laboratório antiliberal. O cineasta argentino Fernando Solanas, autor do filme Memória do saque, descreve assim a situação: “A Argentina é um caso concreto de aplicação do modelo liberal. Afonsín e Menem privatizaram à força os meios de comunicação antes de arruinar as empresas públicas para que a população acabasse por reivindicar a sua privatização, sob as bênçãos de Washington, de grupos industriais argentinos e de bancos estrangeiros, em um sistema de corrupção que chamo de mafiacracia”. E continua: “As empresas então foram vendidas, livres de dívidas que o Estado pagou com a ajuda de créditos internacionais cujas taxas de juros chegavam a 400%. Ou seja, especulação financeira com um mercado de câmbio livre. Eis como os bancos quebraram com a aprovação do FMI, de Washington e do Parlamento argentino. Uma catástrofe de tamanho tal que levou às ruas uma população não-militante para derrubar De la Rúa. Uma primeira vitória sobre a globalização, um outro mundo é possível. Uma verdadeira lição para o mundo”.

SAN MARTIN É por esse momento de plena utopia, “intrínseca às nossas sociedades do Sul”, como diz Walter Salles, que se apaixonaram os jovens jornalistas canadenses Avi Lewis e Naomi Klein. Lembrando os primeiros movimentos de desempregados, os piqueteiros, em 1996, a impotência de De la Rúa desde 1999, e a explosão da população (55% dela vivendo na miséria) em 2001, Lewis e Naomi Klein mostram em seu filme três ocupações exemplares de fábricas, após seu abandono pelos proprietários. A Forja San Martin é uma fábrica de automóveis na periferia de Buenos Aires. Falida em 2001, seus donos a venderam aos pedaços. Em março de 2003, os cineastas filmam três dias e três noites de ocupação das instalações por “velhos” operários sem meios de subsistência desde o fechamento da indústria, e seguem as negociações do jovem Freddy Espinosa, noviço no assunto, para obter o direito legal de “recuperação” do seu local de trabalho. Em setembro de 2003, a fábrica volta a funcionar com 35 empregados assalariados, todos pagos igual e corretamente.

BURKMAN O exemplo da indústria têxtil Burkman, localizada em pleno Centro de Buenos Aires, é incrível. Abandonados no dia 18 de dezembro de 2001 pelos três irmãos Burkman, 58 empregados de um total de 115 decidiram retomar a produção. Na madrugada de 18 de abril de 2003, em plena campanha eleitoral, 300 policiais expulsaram os trabalhadores. No dia 21, 7 mil pessoas foram apoiá-los, em protesto contra a violenta intervenção policial. No dia

Fotos: Divulgação

The Take, filme de canadenses engajados, relata experiências de autogestão em um país mergulhado em crise

The Take Take:: produção de Naomi Klein e Avi Lewis documenta a recuperação de empresas falidas na Argentina, após a crise econômica de 2001

27, Menem vence o primeiro turno das eleições, com 24% dos votos, enquanto Kirchner obtém 21%. No dia 24, uma encenação e tanto! Menem desiste da candidatura e Kirchner é eleito. Em outubro, a indústria é devolvida aos empregados pela Câmara Municipal de Buenos Aires. Os trabalhadores criam a Cooperativa 18 de Dezembro, data do dia do abandono da fábrica pelos proprietários, véspera da “explosão” popular de 2001. “É verdade”, disse Naomi Klein, “que durante as eleições, quando a sorte daqueles trabalhadores estava em jogo, aconteceu algo como um milagre”, e Avi Lewis, cujo primeiro longa-metragem é The Take, acha que “viveu alguma coisa de surreal”.

ZANON A terceira empresa é a fábrica de cerâmica Zanon, em Neuquèn, na Patagônia. Fechada em outubro de 2001 por Luis Zanon, amigo de Menem, a indústria passou para a autogestão de 300 a 450 empregados, e absorveu 130 desempregados. Os salários são mais baixos do que os da época de Luis Zanon, que ainda espera recuperar seu “patrimônio”. A entrevista de Zanon é antológica... A decisão judicial pode sair a qualquer momento mas, por ocasião das manifestações em Neuquèn, mais de 5 mil pessoas saíram em apoio aos trabalhadores. Em 10 de setembro de 2004, a lei de expropriação definitiva relativa às “recuperações” foi solicitada oficialmente ao Congresso Nacional.

ALTERNATIVA Por que o chamado Movimento Nacional de Fábricas Recuperadas assumiu a postura da legalidade. Seus resultados são irretorquíveis: 15 mil empregos recuperados em cerca de 200 fábricas. Esse movimento criou uma alternativa que Naomi Klein chama “as forças do turbo-capitalismo”. No filme, basta

ouvir Maty, um jovem operário da Zanon, integrante do movimento piqueteiro, cuja mãe, Ana, é peronista, pró-Kirchner, dizer: “Nossos sonhos não têm lugar nos seus boletins eleitorais”. Compreende-se, então, até que ponto a prática eleitoral está divorciada da idéia de liberdade. O que inspira o profundo desejo de tomar: a tomada. “Nosso filme”, dizem Lewis e Naomi Klein, “pode ser uma espécie de No Logo do bem para aqueles que assumem o risco de tomar, uma fonte de inspiração para aqueles que querem refletir sobre a solidariedade e sobre o desafio lançado pela pobreza à corrupção”.

O canadense Avi Lewis mostra cenas do filme a filhas de trabalhadores

Um museu para refletir sobre a dívida Jorge Pereira Filho da Redação Cada argentino nasce, hoje, já devendo 4 mil dólares. Tradicionalmente ocultada pelos meios de comunicação hegemônicos, a história dessa triste sina comum a todos países latino-americanos (e subdesenvolvidos) virou um museu na Argentina. No final de abril, a Faculdade das Ciências Econômicas na Universidade de Buenos Aires, uma instituição pública, inaugurou o Museu da Dívida, para que os argentinos conheçam e reflitam sobre o impacto do endividamento externo na situação socioeconômica de um país. O momento não poderia ser mais pertinente. Recentemente, o presidente Néstor Kirchner concluiu, com sucesso, uma renegociação que resultou na diminuição em 65% de todo o endividamento externo privado (cerca de 82 bilhões de dólares) da Argentina. A medida só não foi concretizada porque ainda está correndo uma ação judicial nos Estados Unidos aberta por dois fundos de investimento contra a operação. Mas, como cerca de 75% dos credores

aderiram ao plano do governo argentino, a reestruturação está sendo dada como certa. Os detentores dos títulos da dívida argentina aceitaram as condições do governo porque temiam que, caso a operação não tivesse sucesso, perderiam tudo. No final de 2001, o país parou de pagar os credores privados, no auge de uma crise socioeconômica que resultou na queda de dois presidentes, depostos pelos protestos populares. Foi nessa época que surgiu a idéia de criar o museu. Enquanto os organismos financeiros internacionais criticavam a decisão, acadêmicos da Universidade de Buenos Aires começaram a planejar a inciativa para educar os cidadãos e pôr fim a esse ciclo de endividamento. “A dívida externa é um dos fatores que contribuiu para nossa crise, com graves repercussões sociais, como a fome e a pobreza”, afirmou ao jornal Página 12 um dos autores do projeto, Simón Pristupín. O museu parece ter agradado. Na primeira semana, recebeu cerca de mil visitantes. As intervenções tentam traduzir em uma linguagem

compreensível os complexos problemas da engenharia financeira e a evolução da dívida externa que passou de 8 bilhões de dólares em 1875 (início da ditadura) para 191 milhões de dólares em 2004 – depois de oito anos de regime militar e mais oito anos do neoliberal Carlos Menem. O tema, árduo, é tratado de forma criativa. Uma coleção de estatuetas de São Caetano, o patrono do trabalho, mostra como o crescimento do desemprego evoluiu na mesma medida em que a Argentina mais se endividava. Nas paredes, rostos de ex-presidentes e ex-ministros estão afixados para eternizar os responsáveis pela multiplicação da dependência argentina. Há, ainda, guias pedagógicos que fazem a supervisão de visitas de grupos de estudantes e trabalhadores. De acordo com o coordenador do projeto, o museu ainda reserva espaço para apresentações de filmes e peças teatrais que possam ajudar a compreender melhor o fenômeno da dívida externa. Para mais informações, visite o site: www.econ.uba.ar/noticias/ museodeuda/Index.htm


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