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Ano 3 • Número 119

R$ 2,00 São Paulo • De 9 a 15 de junho de 2005

Terror contra indígenas no Maranhão A

omissão do Estado e a certeza da impunidade fizeram novas vítimas da violência no Maranhão. Dia 21 de maio, o cacique João Araújo Guajajara, de 70 anos, foi assassinado com dois tiros no peito. Sua filha foi estuprada e seu filho, ferido com um tiro na cabeça. Mais dez lideranças indígenas e missionários que atuam no município de Grajaú estão numa lista de jurados de morte do mesmo grupo de pistoleiros. O crime foi anunciado: o cacique havia registrado ocorrência das

ameaças na polícia. O chefe do posto indígena, Alderico Lopes Guajajara, pediu à Fundação Nacional do Índio (Funai) agilidade na demarcação da terra Bacurizinho e solicitou proteção à Polícia Federal. Mas não teve resposta aos pedidos. Depois do ataque dos pistoleiros, que queimaram casas na aldeia Kamihaw, as famílias estão vivendo em malocas à beira de uma rodovia. Segundo os Guajajara, os pistoleiros passam de carro e dizem que vão matá-los se voltarem para a terra. Pág. 3

Aizar Raldes/ AFP/ Folha Press

Milícias do latifúndio matam e estupram os Guajajara; polícia já sabia das ameaças, mas não agiu

O governo conseguiu: a economia não cresce República. O coquetel PalocciMeirelles – queda de salários, desemprego elevado, arrocho nos gastos públicos, juros e impostos sem precedentes – nocauteou a economia. Pág. 7

Chávez amplia alcance da reforma agrária

Justiça dá posse de terra a quilombolas

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, está cumprindo com sua promessa de fazer a reforma agrária. Dia 3, entrou em vigor uma lei que altera o conceito de latifúndio improdutivo. Agora, qualquer propriedade, independentemente de seu tamanho, poderá ser desapropriada se não tiver produção satisfatória. Antes, apenas áreas superiores a 5 mil hectares corriam perigo. Pág. 10

A Justiça acatou uma ação do Instituto de Terras de São Paulo (Itesp) e cancelou liminar de reintegração de posse concedida a uma imobiliária de luxo, garantindo, assim, a permanência de 44 famílias descendentes de escravos num território quilombola. O terreno da comunidade Caçandoca é muito valorizado, pois fica à beira de uma praia em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. Pág. 13

Mutirões de SP sofrem por falta de verbas

Pelo comércio, Brasil defende transgênicos

Os mutirões de habitação de São Paulo não recebem um centavo desde que José Serra assumiu a prefeitura da cidade. Dia 30 de maio, a Secretaria de Habitação anunciou a liberação, ainda em junho, de R$ 3,8 milhões para o programa. Os recursos estarão disponíveis apenas para 15 obras. Segundo os mutirantes, o valor é insuficiente e, além dos outros 27 mutirões não receberem nada até ser definida a próxima liberação de verbas, novas obras estão descartadas. Pág. 5

O Brasil e a Nova Zelândia foram os dois únicos países a se oporem à definição de regras mais claras para a rotulagem de produtos transgênicos comercializados internacionalmente. A tomada de posição ocorreu durante a segunda Conferência da Convenção sobre Diversidade Biológica, realizada entre os dias 30 de maio e 3 de junho, em Montreal (Canadá). Segundo o Ministério das Relações Exteriores, a delegação brasileira atuou sob orientação da Casa Civil. Pág. 3

Indígenas, agricultores e mineiros bolivianos realizam passeata por La Paz e pedem novas eleições e fim a uma crise política

Em SC, povo Na OEA, América nas ruas contra Latina rejeita preço do ônibus tutela dos EUA Pág. 8

Presidente cai; crise continua na Bolívia

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Olivier Boëls/ Greenpeace

Nem crescimento, muito menos sustentado ou virtuoso, adjetivos muito usados pelo ministro da Fazenda e pelo presidente do Banco Central, comandantesem-chefe da política econômica, com respaldo do presidente da

Contra a impunidade – Dia 7, irmã Dorothy Stang completaria 74 anos. Entidades de direitos humanos e o Fórum de Reforma Agrária e Justiça no Campo realizaram ato, em Brasília, para pedir a federalização do crime contra a religiosa

Na Bósnia, o massacre segue impune

Reforma mantém privilégios do ensino privado

Dez anos após os massacres em Srebrenica, em Sarajevo, os bósnios ainda não esqueceram a tragédia. Exigem a captura e o julgamento dos criminosos de guerra diante do Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda. Para um parlamentar, falta vontade política do governo bósnio e da comunidade internacional. Na cidade, o cerco dos sérvios sobre os muçulmanos – pelo menos 8 mil civis mortos – ainda é lembrado pelas marcas nos edifícios. Pág. 11

São poucas as reivindicações de entidades docentes e estudantis contempladas na segunda versão da reforma universitária, divulgada dia 30 de maio pelo Ministério da Educação. Criticada pela falta de debate com os setores envolvidos, a proposta do governo “é ainda pior do que a primeira, que tinha avanços tímidos, periféricos em relação à totalidade, que é conservadora”, na opinião de Rodrigo Pereira, um dos diretores da União Nacional dos Estudantes (UNE). Pág. 6

E mais: DEBATE – O sociólogo Emir Sader analisa, em artigo exclusivo, o papel dos movimentos sociais na luta contra o neoliberalismo. Pág. 14 CINEMA – Em entrevista, o cineasta Sergio Bianchi, autor de Cronicamente Inviável, fala de seu novo filme Quanto Vale ou É por Quilo? e das críticas ao Terceiro Setor. Pág. 16


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De 9 a 15 de junho de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Marcelo 5555 Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretária de redação: Thais Pinhata 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

CARTAS DOS LEITORES FANTOCHES DO CAPITAL Fico imaginando a reeleição do presidente Lula com mais quatro anos de ministério da senhora Marina Silva, ministra do Meio Ambiente. Será que agüentaremos, ou melhor, será que sobrará algum meio ambiente para ser defendido da ganância dos financiadores de campanhas e de seus fantoches? Fernando Magno por correio eletrônico

MANIFESTAÇÕES EM SANTA MARIA Estou revoltado com a repercussão negativa patrocinada por segmentos da mídia do grande Ato Público por Transporte, Moradia e Trabalho, realizado em Santa Maria (RS), dia 1º de junho. Enquanto testemunha e participante desse ato, não consegui conter minha indignação ao ver o tratamento que alguns jornais deram ao fato, por isso gostaria de dar meu relato. Dia 1º, eu e vários colegas de universidade levantamos às três e meia da manhã, em meio à neblina e ao frio da madrugada, movidos pelo ideal de melhoria do transporte coletivo de Santa Maria, retomada da política habitacional e regularização fundiária pelo governo do RS, e reposição das perdas salariais pelos servidores. Nos

reunimos ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia e a Coordenação dos Movimentos Sociais para realizar pressão aos empresários e governantes para que demandas de interesse da comunidade fossem ouvidas e, na medida do possível, atendidas. Com vista ao cumprimento de nossas reivindicações, que são demandas de toda a comunidade estudantil santa-mariense e de milhares de desabrigados e subabrigados na cidade e em todo o Estado do Rio Grande do Sul, trancamos a saída da maior empresa de ônibus de Santa Maria até conseguirmos uma audiência com a prefeitura. Em seguida, ocupamos um prédio público abandonado há quatro anos, para alertar a comunidade da injustiça que se configura no fato de um prédio público estar inativo por tanto tempo enquanto milhares de pessoas não têm onde morar. Nossas reivindicações são claras e traduzem o anseio de milhares de trabalhadores, estudantes e desabrigados. Não somos desordeiros, baderneiros ou vândalos. Somos cidadãos cansados de sofrer tantas injustiças e unidos em busca de melhorias para toda a sociedade. Igor Corrêa Pereira por correio eletrônico

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

NOSSA OPINIÃO

Quem não deve, não teme

A

sociedade brasileira assiste, atônita, os sucessivos escândalos de corrupção envolvendo políticos do Partido dos Trabalhadores (PT) e da base aliada do governo. O mais recente deles, após ser denunciado por um funcionário dos Correios, o presidente do PTB, deputado Roberto Jefferson (RJ), acusou o PT de pagar uma “mesada” aos deputados do Partido Progressista (PP) e do Partido Liberal (PL), para que apoiassem o governo no Congresso. Não há necessidade de muitas palavras para determinar o que o PT e o governo devem fazer diante dessa acusação. Para as pessoas comuns do povo, “quem não deve, não teme”. Logo, ninguém deve se opor a ser investigado. Menos ainda militantes do PT, cuja marca registrada tem sido sempre a correção. Instaurar imediatamente uma CPI para apurar a denúncia é a única solução que o povo vê para o caso. Será fatal para a imagem do governo e do PT se a direção partidária der a impressão de que está tentando abafar a criação da CPI. Não que alguém seja tão ingênuo a ponto de crer que a oposição esteja realmente interessada em investigar irregularidades. Logo esses mesmos políticos do PSDB e do PFL que, quando no governo, engavetaram escândalos como os do Sivam, dos precatórios, do vazamento de informações do Banco Central, das

interferências indevidas do governo na privatização da Telebrás e tantos outros. O propósito da oposição é, evidentemente, o de tumultuar a investigação com jogadas de efeito a fim de desgastar o governo e derrotar Lula em 2006. O objetivo de tucanos e pefelistas é incutir na opinião pública a idéia de que todos os partidos são iguais, a fim de justificar os engavetamentos que fizeram nos oito anos em que estiveram à frente do Estado. Mas a hipocrisia dos oposicionistas não pode servir de escusa para evitar a CPI. O juiz do contencioso levantado pelo deputado Roberto Jefferson não é o setor político, mas a opinião pública. Esta não entende de sutilezas legais, mas não lhe escapa a menor vacilação em assuntos de moralidade pública. E do seu julgamento não cabe recurso. Infelizmente, o governo Lula tem sido marcado pelo um desgaste e pela estagnação. A manutenção da política econômica que só beneficia os banqueiros e as transnacionais tem provocado profundos estragos na maioria da população. Os indicadores econômicos e sociais seguem repetindo um quadro que não se altera há décadas, ou apenas muda para pior. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) reiteram levantamentos anteriores da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de que mais de 50 milhões de brasileiros vivem abaixo

da linha da pobreza. No ranking de 130 países pesquisados, o Brasil é o penúltimo em desigualdade, perdendo apenas para Serra Leoa. O país não enfrenta para valer os seus verdadeiros problemas: não consegue libertar-se da escandalosa evasão de recursos (pagamento de juros e da dívida, remessa de lucros e de royalties, contas bancárias no exterior etc.); não consegue fazer a reforma agrária; não consegue criar um modelo de desenvolvimento baseado na geração de empregos e melhor distribuição da renda; não consegue democratizar as comunicações, o ensino superior, as relações de trabalho, o espaço público e nem mesmo a riqueza cultural dos diferentes grupos humanos. Até o momento, a ausência de um projeto que responda às necessidades populares apenas colaborou para que a nau orientada pelos tucanos continuasse, nas mãos do PT, a navegar pelas ondas do neoliberalismo. O grande desafio do momento é romper esse círculo vicioso. É preciso construir um projeto de nação que, efetivamente, garanta vida digna para todos. Isso só é possível através de processos revolucionários, do rompimento de todas as amarras que impedem a realização transformadora. Ou se quebra a hegemonia neoliberal e oligárquica dominante, ou o Brasil sucumbirá na inanição.

FALA ZÉ

OHI

CRÔNICA

Guerra das Estrelas Luiz Ricardo Leitão Não são poucas as mazelas de que nós, brasileiros, padecemos, por força do processo de “modernização sem ruptura” que caracteriza a evolução capitalista de Pindorama. Nossa história, aliás, tem sido habitualmente marcada por tortuosos acordos entre as diversas frações das classes dominantes, sempre inspiradas na velha máxima de que “é preciso mudar para deixar tudo como está”. Assim, enquanto os vizinhos hispano-americanos, comandados por Bolívar, Martí e tantos outros, empreendiam gestas heróicas para libertar-se do jugo colonial, nossa Independência era proclamada por um príncipe português “às margens plácidas do Ipiranga”. Ainda mais bisonha seria a “proclamação” da República, para a qual, na célebre expressão de Caio Prado Jr., “uma simples passeata militar foi suficiente para lhe arrancar o último suspiro...” E o que dizer da farsa de 1º de abril de 1964, que nos legou uma ditadura carrancuda e trapalhona? Vinte anos depois, na memorável campanha das Diretas Já!, milhões de brasileiros saíram às ruas em defesa da democracia, sem ao menos suspeitar que, por uma dessas ironias tão comuns na picaresca vida nacional, um ano mais tarde a

“Nova República” seria presidida pelo José do “Sir” Ney, esse ilustre coronel-poeta autor de Marimbondos de Fogo e descendente direto da nobre estirpe dos cantadores de política do latifúndio maranhense. Face às trapalhadas mais recentes do governo federal, o mandato do presidente-retirante também se arrisca a ocupar um lugar de honra na vasta galeria das frustrações nacionais. O tema é delicado, reconheço, mas não convém omitir-se sobre mote tão crucial. Afinal de contas, todos nós demos nosso voto ao PT na esperança de que este país pudesse mudar – e para melhor. Ninguém, por certo, esperava por um milagre após uma década de ferrenho neoliberalismo econômico e mais de cinco séculos de dependência e solidão. Mas já era tempo de radicalizar a experiência democrática em Pindorama e efetivar as reformas de que precisamos para nos converter em nação livre e soberana dos trópicos. Muito mais teria a dizer, mas julgo bem mais eloqüente uma cena a que assisti no alucinado Casseta & Planeta, o programa de Bussunda, Hélio de la Peña & cia. (que, como toda metralhadora giratória ideológica, mesmo sob a égide global às vezes também acerta na mosca). Pois

lá estavam, em renhido combate, os cavaleiros Jedi Lulinha e FHC, sob o olhar atento de Severino Ioda, numa saborosa paródia de Guerra das Estrelas, a milionária série dirigida por George Lucas. O combate já beirava as raias da monotonia, quando, cansado de tanta esgrima estelar, o cavaleiro Lula interpela o seu par (outrora ímpar): – Mas, FHC, afinal, por que nós estamos lutando? Ao que o outro lhe responde: – Ora, Lula, é porque agora você está na situação e eu sou oposição... Eis o temor maior de todos nós, que já estamos fartos de tanta superprodução. Será que o velho e o novo, uma vez mais, irão conciliar-se em detrimento das aspirações maiores do povo brasileiro? Não ousaria dizer qual será o desfecho da trama, mas sei que não basta aguardar os próximos episódios. É hora da platéia entrar em cena, meu caro leitor. Ou acaso você acha que Severino Ioda será a salvação desta República? Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura LatinoAmericana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)

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NACIONAL POVOS INDÍGENAS

Guajajara são vítimas de terror e morte Cristiano Navarro de Grajaú (MA)

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índios naquela região”, declarou a um jornal local o delegado da Polícia Civil, Michel Sampaio.

HISTÓRICO

Imprensa local transforma as vítimas em criminosos, tachando os Guajajara de “vândalos” e “selvagens”

fato isolado. Em 2003, o cacique Zequinha Mendes Guajajara foi morto por atropelamento. Em 2004, um grupo armado invadiu a aldeia Bacurizinho e incendiou sete casas, fazendo ameaças e levando pânico à comunidade.

JURADOS DE MORTE Depois do assassinato do cacique João Araújo, outras dez lideranças Guajajara fazem parte de uma lista de jurados de morte Cristiano Navarro

m 18 de maio, três dias antes de morrer, o cacique da aldeia Kamihaw (uma das aldeias que ficou fora do limite da demarcação da terra Bacurizinho, no Maranhão), João Araújo Guajajara, de 70 anos, registrou ocorrência na delegacia de polícia civil de Grajaú denunciando constantes ameaças de morte feitas pelo pistoleiro Milton Alves, conhecido como Milton “Careca”. O pistoleiro dava um prazo até o final de maio para que os moradores de Kamihaw deixassem a aldeia, ou seriam mortos. Nos dois dias seguintes, o cacique e seu povo insistiram na denúncia, porém nenhuma providência foi tomada. Em 21 de maio, dez dias antes de terminar o prazo, um grupo de oito homens fortemente armados, comandados por “Careca”, invadiu a aldeia e assassinou o cacique João Araújo Guajajara com dois tiros no peito, à queima roupa. Não satisfeito, o grupo queimou uma casa, estuprou a jovem indígena D. S. e deu um tiro na cabeça de Wilson Araújo Guajajara – ambos filhos de Araújo. Outro Guajajara, ao fugir dos pistoleiros, foi alvejado com um tiro na perna. Os filhos de Milton “Careca”, Gilson Silva Rocha e Wilton Rocha, são apontados pelas vítimas como os executores do crime de estupro. Mas só “Careca” foi preso. A violência de maio não foi um

Cristiano Navarro

No Maranhão, a violência é antiga e contínua, enquanto o poder público e as autoridades policiais são omissos

pelo mesmo grupo de pistoleiros que assassinou o cacique, segundo moradores de Grajaú. Além das lideranças, missionárias do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também foram ameaçadas. “Um dos criminosos identificados pelos índios nos perseguiu de carro”, diz a missionária Maria de Jesus Fernandes. Hoje, os mais expostos à ação dos pistoleiros são os familiares de João Araújo. Quinze dias depois do seu assassinato, as famílias da aldeia Kamihaw estavam vivendo em malocas improvisadas a 200 metros da rodovia que liga o município de Grajaú ao de Balsas. “Os pistoleiros passam de carro por aqui e dizem que se a gente voltar para nossa terra vão matar todos”, relata o genro do cacique Araújo, Antônio Guajajara, um dos que estariam na lista dos jurados de morte.

REAÇÃO A situação das famílias à beira da estrada é precária. “Na aldeia ficou tudo que a gente tem. Nossa mandioca, nossa roça, nosso trabalho. Aqui não tem o que comer”, lamenta Damião Araújo Guajajara, pai do cacique e ancião mais idoso do povo do Bacurizinho, também ameaçado. Dia 29 de maio, um grupo de 66 Guajajara voltou à aldeia

Dez indígenas ainda estão sendo ameaçados

Kamihaw pela primeira vez desde a invasão. No local onde o cacique foi assassinado havia marcas de sangue. Revoltado, o líder Maruzan Camoraí, um dos principais nomes na lista de ameaçados, exclamou: “Este é o sangue que nosso parente derramou lutando pela terra. Se esses que querem nossa terra acham que nós vamos morrer feito cachorros, estão muito enganados”. Em protesto contra a violência dos pistoleiros, os Guajajara destruíram a ponte de acesso à aldeia Kamihaw, destruíram alguns fornos das carvoarias ilegais que operam em suas terras e retiveram um trator, exigindo a prisão dos responsáveis e a presença de autoridades. Ninguém ficou ferido. Isso foi o suficiente para a imprensa local transformar as vítimas em criminosos, tachando os Guajajara de “vândalos” e “selvagens”, dando sempre a versão do “produtor rural”, Milton Alves. Em nenhum dos veículos de comunicação do Maranhão foi publicada a versão dos Guajajara. A parcialidade não foi apenas da imprensa empresarial. “Realizamos uma varredura geral na região e confirmamos que não havia mais nenhum foco de conflito envolvendo pessoas armadas. Contudo, foram encontradas marcas recentes e cruéis da passagem de

Em 1979, durante a conclusão dos estudos para demarcação da terra Bacurizinho, do povo Guajajara, políticos e fazendeiros do município de Grajaú, interior do Maranhão, usaram de todos os meios para impedir que o Estado reconhecesse o direito dos índios. Inúmeras vezes aldeias inteiras foram incendiadas a mando dos fazendeiros, que tentavam forçar a expulsão dos Guajajara. No mesmo ano em que o trabalho foi concluído, a face mais cruel da oligarquia ficou clara nos assassinatos dos caciques Antônio Leão Guajajara, esquartejado e atirado no rio, e Valdomiro Guajajara, carbonizado para dificultar a identificação de seu corpo. Até hoje, ambos os crimes permanecem sem solução. Depois de muita luta, os Guajajara obtiveram sua primeira vitória: em 1984, a terra indígena foi homologada. No entanto, as pressões da elite local deram resultado. Dos 145 mil hectares da terra Bacurizinho, foram reconhecidos 82,4 mil. A exclusão de mais de 62,5 mil hectares abriu espaço para a ação de invasores, principalmente para o corte ilegal de madeira, carvoeiros, plantio irregular de soja, eucalipto e arroz, que devastam uma das últimas áreas preservadas do cerrado maranhense. Em 2001, a partir do início dos trabalhos de revisão de limites, a oligarquia maranhense retomou suas práticas de violência para intimidar a luta dos Guajajara por sua terra.

LENTIDÃO O estudo técnico para revisão da identificação e delimitação da área foi concluído em 2004. Atualmente, os Guajajara aguardam sua publicação no Diário Oficial, que depende da assinatura do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Gomes. Depois disso, o processo segue para o Ministério da Justiça. O chefe do posto indígena da terra Bacurizinho, Alderico Lopes Guajajara, afirma que já pediu urgência à Funai para agilizar a demarcação da terra. E solicitou à Polícia Federal proteção das famílias e prisão dos criminosos. No entanto, nem a Funai, nem a PF responderam aos pedidos.

SOBERANIA ALIMENTAR

Luís Brasilino da Redação Depois de aprovar a Lei de Biossegurança, o governo brasileiro assumiu, também no âmbito internacional, uma postura pró-transgênicos e de descaso com a precaução. Na segunda Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, realizada entre 30 de maio e 3 de junho, em Montreal (Canadá), o Brasil e Nova Zelândia foram os únicos países, entre 119, a rejeitar a adoção de regras claras no comércio exterior de organismos geneticamente modificados (OGMs). Com a falta de consenso, as negociações em torno do artigo 18, parágrafo 2(a), do Protocolo de Cartagena, não avançaram. A regulação mínima foi mantida, ou seja, o máximo de informação que um país importador pode receber continua sendo a informação genérica de que a carga “pode” conter transgênico. Dos 24 delegados brasileiros, apenas três (dois do Ministério do Meio Ambiente e um da Agência Nacional de Vigilância Sanitária) eram a favor de regras claras para a rotulagem. Segundo o Ministério das Relações Exteriores (MRE), que

liderava o grupo, a falta de posição unificada do Brasil levou a uma consulta à Casa Civil, que os instruiu a impedir o progresso do artigo 18, parágrafo 2(a).

Divulgação

O mundo já sabe: governo do Brasil é pró-transgênicos COERÊNCIA “A posição brasileira, politicamente, é coerente com a Lei de Biossegurança, com a idéia de liberar os produtos transgênicos”, avalia David Hathaway, consultor da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA). Sancionada em março pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a nova legislação permite à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovar o plantio e a comercialização de OGMs sem estudos de impacto ambiental e à saúde. Para Hathaway, a delegação brasileira em Montreal parecia preocupada apenas com questões comerciais. Os ministérios da Agricultura, da Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior celebraram o desfecho da Convenção como uma vitória. Mas o consultor da AS-PTA acha que a indefinição na rotulagem só será boa para o Brasil se o país tiver uma postura similar à dos Esta-

Vergonha: só Brasil e Nova Zelândia se posicionaram contra precaução

dos Unidos: “Enchendo o mundo de transgênicos, como fizeram conosco”, arremata. “A estratégia é contaminar o mundo com OGMs para deixar os países importadores sem alternativas. Então, como esperar alguma coisa em favor do ambiente ou da saúde?”, pondera.

O MODELO BRASILEIRO A intenção do Protocolo de Cartagena é proteger os países importadores do ingresso inesperado de transgênicos em seus territórios.

Em carta aberta enviada dia 2 ao ministro José Dirceu, da Casa Civil, Marijane Lisboa, representante do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) em Montreal, revela que o acordo é importante para os países importadores tomarem medidas como evitar dispersão de grãos que germinem e causem danos ao ambiente; rotular alimentos de acordo com suas legislações; ou atribuir responsabilidades por dano ambiental. Na seqüência da carta, ainda sem

resposta do Ministério, Marijane indaga: “Por que a palavra ambiente sequer aparece no discurso da delegação brasileira? Por que a posição do Brasil em uma negociação sobre o ambiente é definida pela Casa Civil e não pela ministra (Marina Silva) do Meio Ambiente? Por que essa delegação é composta majoritamente por gente da área de comércio, indústria, tecnologia e agricultura e por que aqueles encarregados do ambiente e da saúde parecem ser nunca ouvidos? Por que o Brasil quer esconder aos seus possíveis compradores que ele está vendendo gato por lebre, ou seja, transgênico como não transgênico?”. A resposta parece estar na proposta do governo Lula de se alinhar com os grandes potências mundiais de transgênicos (Argentina, Austrália, Canadá e Estados Unidos – todos fora do Protocolo). “O establishment do Brasil acredita tão piamente nessa tecnologia que assegura: podemos ficar para trás se não investir nela”, descreve Hathaway. O discurso é o de que ficar trabalhando para pobres, para agricultura familiar, tem sua importância mas não colabora na geração do superavit.


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Espelho TERRA DE NINGUÉM

Monsanto ataca nas escolas

da Redação

Entrevista explosiva A entrevista do presidente do PTB, deputado Roberto Jefferson, para a jornalista Renata Lo Prete, publicada na Folha de 6 de junho, na qual ele denuncia a existência de pagamentos do PT para parlamentares da chamada “base aliada”, ganhou espaço em toda a mídia empresarial e continua repercutindo intensamente na sociedade. Até o “incendiário” FHC resolveu alertar para que não se toque “fogo no paiol”. Em resumo, quem se mete com os esquemas neoliberais acaba se queimando mesmo. Papel televisivo Em longo artigo veiculado pelo site Carta Maior, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães afirma o seguinte: “As classes pobres foram atendidas pelo neo-assistencialismo da distribuição de alimentos e por outros esquemas semelhantes de solidariedade, anestesiadas pela liberdade irrestrita conferida à televisão hipnótica e alienante que invadiu o vazio cultural, iludidas por estratégias paliativas de luta pelos direitos humanos que, em realidade, não enfrentam as causas reais das violações nem da criminalidade de que são os pobres as principais vítimas.” Lição ambiental Um dos mais influentes jornais dos Estados Unidos, o The New York Times publicou editorial na semana passada responsabilizando o governo brasileiro pelo alarmante desmatamento da Amazônia. Segundo o jornal, “o carismático presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, deve convencer a si mesmo e a oligarquia agrícola de seu país que a floresta tropical não é uma commodity a ser explorada para ganho particular”. Fonte revelada Depois de 30 anos do famoso caso Watergate, que provocou a renúncia do ex-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, acabou sendo revelada, há poucos dias, a misteriosa fonte de informações que passava segredos do governo para repórteres do jornal Washington Post, conhecido na época como “Garganta Profunda”: era Mark Felt, que ocupava o 2º cargo mais importante do FBI. Hoje, Felt está com 91 anos de idade.

Ministério barra marketing da transnacional na rede de ensino Bel Mercês da Redação

A

pretensão da Monsanto de entrar nas escolas para ensinar agricultura através da revista Horizonte Geográfico foi ameaçada. No dia 26 de abril, uma nota publicada pelo Ministério da Cultura (MinC) determinou a suspensão da distribuição do número 96 da publicação, cartazes e materiais didáticos direcionados para professores, que integram um kit de seis edições (91 a 96) e faz parte do projeto “Janela Sudeste”, patrocinado pela transnacional de biotecnologia. Tal medida foi tomada, segundo a nota do MinC, porque algumas reportagens e materiais sobre o tema, que não estavam previstos no projeto original, foram inseridos no produto final. Com o apoio da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Rouanet), o kit tinha começado a ser distribuído em bibliotecas de escolas brasileiras do ensino fundamental e médio de cidades do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Bahia, Goiânia e Distrito Federal. A Editora Horizonte Geográfico, responsável pela publicação, recorreu da determinação e propôs uma negociação ao Ministério (veja box). O documento da Editora é confidencial, segundo a assessoria de imprensa do MinC. O Ministério ainda não respondeu, mas a sua determinação é que os kits ainda não enviados devem ficar retidos.

Kit para as escolas (abaixo) defende que, “na agricultura, é possível gerar plantas transgênicas mais produtivas”

material, garante a mesma fonte. Mas Ventura Barbeiro, engenheiro ambiental da ONG, informa que a organização enviou correspondência à editora apontando todos as incoerências do projeto. “Esse material, especificamente, é grosseiro. Não tem nenhuma citação isenta”, diz Barbeiro que, até então, considerava muito bom o trabalho da Horizonte Geográfico. Entretanto, observa que “aliar-se a uma empresa com o histórico da Monsanto gera uma imagem negativa”.

PRECIPITAÇÃO?

POLÊMICA

Uma fonte da direção da Horizonte Geográfico, que pediu para não ser identificada, afirmou que a suspensão da revista e dos cartazes foi uma atitude precipitada. A seu ver, o episódio foi usado “para atacar o patrocinador, por causa de denúncias do pessoal radical, que amplificou um único detalhe do projeto. Não podem fazer isso, não importa de onde vem o dinheiro”, protestou. Nem mesmo o Greenpeace tinha encontrado problemas no

Entidades ambientalistas e ativistas também se manifestaram contrários ao conteúdo considerado impróprio pelo MinC. A polêmica gira em torno da reportagem “Afagar a Terra” que, em sua chamada, aborda “novas técnicas que associam a agricultura à conservação ambiental, intensificam a produção e aumentam a rentabilidade no campo”. Mais: trata o advento dos transgênicos como parte de uma “ busca de práticas agrícolas mais racionais (que) coincidiu com a revolução na

Rádio comunitária Finalmente a Câmara Municipal de São Paulo aprovou o projeto de lei dos vereadores Carlos Neder, do PT (que agora é deputado estadual), e Ricardo Montoro, do PSDB, que transfere a outorga das rádios comunitárias do governo federal para o âmbito municipal. Apesar do debate sobre a constitucionalidade da lei, ela representa um avanço para democratizar a comunicação social. O prefeito tem até dia 15 para sancionar a nova lei. Imprensa violenta O Núcleo de Jornalismo e Cidadania da ECA-USP realizou, dia 7, a apresentação da pesquisa de doutorado sobre a violência em São Paulo registrada pelo jornal Notícias Populares e arquivos do Tribunal do Júri, de autoria de Maurício Maia. A pesquisa mostra as mudanças no tratamento jornalístico da morte violenta e a escalada da violência policial entre 1965 e 1975, durante a ditadura militar. Rede popular De acordo com o Núcleo Piratininga de Comunicação, foi criada, no Rio de Janeiro, a Rede Nacional de Jornalistas Populares (Renajorp), que tem como objetivo apoiar os movimentos populares e a luta contra a violência sobre as classes populares. Maiores informações podem ser obtidas no seguinte endereço eletrônico: renajorp@gmail.com

biotecnologia e a possibilidade de manipular e interferir no material genético de plantas e animais para corrigir ‘defeitos’ (...)” Além disso, um cartaz com o título “Culturas da Terra no Brasil”explica, por meio de imagens, como “na agricultura, é possível gerar plantas transgênicas mais produtivas, enriquecidas com nutrientes (...)”. E um Guia de Atividades orienta os professores para o uso de todo o material em sala de aula, “cuja finalidade é lançar idéias e propostas de trabalho por meio de planos de aula apoiados nos textos e imagens da revista”. A direção da Editora Horizonte Geográfico garante que os cartazes e o Guia de Atividades não foram produzidos com dinheiro da Lei Rouanet, mas financiados pela Monsanto. No entanto, o logotipo do Ministério da Cultura está impresso em todo o material. Quanto à reportagem “Afagar a Terra”, a prevalecer a visão do MinC, a editora pretende anexar às revistas um informativo explicando que não foram feitas com dinheiro público.

MAIS CRÍTICAS Divulgação

Difícil controlar Pesquisa de opinião divulgada pela Folha de S. Paulo, no último domingo, mostra que 65% dos entrevistados consideram que existe corrupção no governo Lula, contra 32% em março de 2004. Os principais veículos impressos – jornais diários e revistas semanais – continuam gastando bom espaço nos casos que envolvem os aliados do Palácio do Planalto. A mídia empresarial está queimando os últimos cartuchos do neoliberalismo. O que virá depois ninguém sabe.

Jonas Oliveira/ Folha Imagem

da mídia

NACIONAL

A história não é nova A revista Horizonte Geográfico existe há 17 anos e é vendida em todo Brasil por meio de assinaturas e em banca de jornais. Anualmente, o projeto é financiado por empresas diferentes e, a cada ano, são produzidas seis edições. Parte dos números é enviada a bibliotecas de escolas de ensino fundamental e médio e, por isso, conta com um apoio de 30% do financiamento pela Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet). O Ministério da Cultura também encontrou problemas na

edição número 89 da revista, distribuída em 2004, que é parte do projeto “Janelas para o Mundo”, cujos patrocinadores foram as empresas Coinbra e BrasilPrev. No exemplar em questão, há uma reportagem e um cartaz sobre agricultura, ambos com o título “Soja: o grão que conquistou o Brasil”. Em relação a essa edição, o Ministério da Cultura determinou à Editora depositar os valores captados na conta do Fundo Nacional de Cultura. Aqui, a Horizonte Geográfico também quer negociar com o MinC. (BM)

Instado pela mobilização das redes brasileira, estaduais e temáticas de Educação Ambiental, o órgão gestor da Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) também se manifestou. Analisou o conteúdo das revistas e cartazes e divulgou uma nota, no mesmo dia 26 de abril, tomando posição em relação à parceria entre a Monsanto e a Editora Horizonte Geográfico. O documento, assinado por Marcos Sorrentino, da diretoria de educação ambiental (DEA) do Ministério do Meio Ambiente (MMA), e por Raquel Trajber, da coordenação de educação ambiental (CEA) do Ministério da Educação(MEC), explica que foram identificadas no material algumas contradições, e que a polêmica reportagem e o cartaz “contém um peso diferenciado para a produção de organismos transgênicos, configurando-se como propaganda, o que põe em dúvida a imparcialidade da empresa patrocinadora”. Sorrentino não hesita em afirmar que “o dinheiro público foi usado para fazer propaganda da Monsanto.” Ele informou que o órgão gestor da Política Nacional de Educação Ambiental fez uma recomendação às comissões interinstitucionais de educação (CIEAs) para tomar uma atitude em relação a projetos de educação ambientais propostos por empresas.

MISTÉRIO Os pacotes do material do “Janela Sudeste” chegaram a algumas escolas com adesivos que os identificam como parte de um outro projeto, o “Janelas para o Mundo” (veja quadro ao lado), porque foi elaborado e

inscrito na Lei Rouanet para atingir Estados da Região Sudeste. Mas, como apurou Brasil de Fato em reportagem publicada na edição 113, os novos Estados foram escolhidos pela própria empresa patrocinadora, e, provavelmente não por coincidência, eles são os maiores produtores de soja transgênica do Brasil. O que acontecerá com o material que já circula pelo país? É um mistério. A assessoria de imprensa da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul informou que não recebeu do Ministério da Cultura qualquer orientação sobre a suspensão do projeto.

SEM CONTROLE Elizabeth Foschiera , professora que participou de uma oficina ministrada pela Editora Horizonte Geográfico no começo de março, em Passo Fundo (RS), alertou para o fato de que a maioria dos professores não recebeu qualquer informação. “Certamente muitos estão utilizando esse material em sala de aula. Eu fiquei sabendo pelas entidades e informei meus colegas”, comenta. As assessorias de outras secretarias estaduais de Educação também afirmam que algumas escolas receberam o kit. O problema é que, aparentemente, não há como saber quais são, e nem existem meios de fiscalizar e controlar o que entra em cada estabelecimento de ensino.

PUBLICIDADE Raquel Trajber destaca que este tipo de material nem deveria ir para as escolas. Já o informante ligado à direção da Editora Horizonte Geográfico afirma que “não se trata de um projeto educacional, mas de acervo para bibliotecas, conforme especificado na Lei. Se elas são escolares ou não, isso não importa.” Quanto ao fato de não haver qualquer controle sobre o que é usado como material didático em sala de aula, Raquel confirma: “Não existe qualquer lei que proíba marketing nas escolas. E o professor tem autonomia para usar o que quiser.” Ela acredita que a própria sociedade deve se mobilizar, e deve ser feito um trabalho de educação crítica com os professores. Mas parece que as empresas perceberam isso primeiro. No caso da revista Horizonte Geográfico, apesar de haver envolvimento de verba do Fundo Nacional de Cultura, quem se encarrega de levar o conteúdo para a sala de aula e ministrar as oficinas para os professores é a própria editora, com a verba da Monsanto. O que quer dizer que, com ou sem dinheiro público, qualquer projeto que carregue marketing empresarial disfarçado de boas intenções pode entrar nas escolas.


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NACIONAL MORADIA

No governo Serra, mutirão não é prioridade Igor Ojeda da Redação

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avínia Favorino Ribeiro é solteira, está aposentada e mora com a mãe no bairro da Cachoeirinha, em São Paulo. Rosana da Silva, casada, é dona-de-casa e vive com o marido e os três filhos de favor na casa do pai, no Jaraguá. Jucimara de Oliveira Moreira é auxiliar administrativa, está separada e paga R$ 150 mensais para morar com os dois filhos em um imóvel alugado no Jardim Vista Alegre. As três estão prestes a concretizar sonho da casa própria. As obras de suas casas estão 90% realizadas. Mas faltam 10% que dependem do prefeito José Serra, do PSDB. Elas estão cadastradas no mutirão Residencial Bela Vitória, no bairro da Freguesia do Ó (zona norte), obra quase terminada que não recebe verba da prefeitura desde dezembro do ano passado, ainda no governo petista de Marta Suplicy. O Bela Vitória não é o único. Segundo a União dos Movimentos de Moradia (UMM), todos os mutirões municipais sob o modelo de autogestão (geridos pelos próprios mutirantes) estão parados e até agora não receberam um centavo do governo Serra. Dia 30 de maio, o presidente da Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab), Edsom Ortega, recebeu em reunião representantes dos mutirões e anunciou a liberação de uma parte dos recursos. De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), a Secretaria de Finanças descongelou R$ 18 milhões para o programa. Destes, 3.799.799,78 estarão disponíveis, ainda este mês, para 15 obras. “É pouco”, alerta José de Abraão, da UMM. “Fora que os outros não

Ormuzd Alves/Folha Imagem

Obras quase concluídas estão paralisadas e muitos mutirões estão sem previsão de receber recursos foi em dezembro de 2004 e mesmo assim somente cerca de 50% do previsto. “Com o dinheiro do ano passado a gente comprou o material para fazer o acabamento. Mas agora acabou o material”, preocupa-se Lavínia, assim como os 80 mutirantes cadastrados, a maioria mulheres separadas com filhos, com renda familiar de dois a três salários mínimos. “Muita gente entra no desespero. Tem muita mulher que está sozinha, com a família, e depende muito disso. Gente que às vezes não aparece porque não tem dinheiro para condução”, relata Rosana. Com a nova liberação de verbas, caberá ao Bela Vitória R$ 168 mil. Dinheiro com o qual, avalia Rosana, não é possível fazer muita coisa. “Não dá para realizar nem 3% do que falta”.

JOGANDO CONTRA Sobrados construídos no sistema de mutirão, em São Paulo: prefeito José Serra ameaça projetos

vão receber nada”, completa. De fato, os demais mutirões deverão aguardar uma nova liberação. Segundo a assessoria da Sehab, há 42 obras nesse modelo na cidade – assim, 27 mutirões continuarão parados. Além disso, alguns dos que receberem não conseguirão aplicar a verba diretamente na obra, pois terão só o suficiente (e às vezes nem isso) para pagar a assessoria técnica necessária para realizar os projetos.

SEM PREVISÃO DE RETOMADA “Não se pode dar continuidade ao programa a passo de tartaruga. Se for nesse ritmo, não se resolve o problema. Além disso, não ouvimos do presidente da Cohab nada sobre o início de novos mutirões. Eu perguntei e ele não respondeu”, afirma Abraão. Segundo a assessoria da

Sehab, a prefeitura paulistana descartou essa hipótese. O mutirão Parque da Conquista, localizado em Perus, na zona oeste, com 180 famílias cadastradas, é um dos que ficaram de fora. De acordo com Leonor Galdino da Silva, que ajuda na organização, a única parcela recebida até hoje, em agosto do ano passado, foi de R$ 86 mil, de um total previsto de R$ 3,5 milhões. Com esse dinheiro, não foi possível fazer, por exemplo, as canaletas de escoamento da água. “A chuva está levando toda a terraplanagem”. Para piorar, a Associação dos Trabalhadores do Conjunto Residencial Parque da Conquista Oeste, gestora do mutirão, está devendo R$ 126 mil para a empresa que realizou o serviço, que por sua vez entrou com protesto contra a associação.

Segundo Abraão, esse é um problema generalizado em São Paulo. Como no modelo de autogestão são as associações que gerenciam o dinheiro dos mutirões, e estas não estão conseguindo pagar as dívidas das obras, quase todas estão protestadas. O que pode inviabilizar futuros empreendimentos. “Por exemplo, se a prefeitura ou a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU, ligada ao governo estadual) abrirem uma licitação, elas não podem participar”, alerta. Para concluir o Residencial Bela Vitória faltam cerca de R$ 550 mil. De acordo com as três participantes e também coordenadoras do mutirão, com esse valor, em no máximo dois ou três meses, a obra estaria finalizada. A última parcela recebida

Para Donizete Fernandes de Oliveira, também da UMM, a atual prefeitura é contra o modelo de autogestão, pois este “contempla a participação popular na produção da moradia. Eu acredito que o governo Serra vai querer fazer discussão habitacional com as empreiteiras, que financiaram a campanha dele. Ou seja, com modelo de empreitada global”. Rosana concorda. “Nós estamos governando, fazendo. A gente tem o privilégio de escolher o material, mudar o projeto. Faz com amor. Como eles não governam para pobre, eles não entendem, são contra mesmo”. De acordo com a assessoria de imprensa da Sehab, o programa de mutirões é apenas um dos programas da pasta e no momento está havendo uma redistribuição das verbas para os diversos projetos de habitação da prefeitura.

MENORES

Enquanto a Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) paulista totaliza 28 rebeliões só em 2005, a Fundação de Atendimento Sócio Educativo do Rio Grande do Sul (Fase, antiga Febem), há 13 meses não tem registro de situações de motins em em todo o Estado. Desde que foi criada, em 2002, a Fase vem sendo apontada como a fundação mais eficiente do país na recuperação e re-inserção social de jovens infratores. Em entrevista ao Brasil de Fato, a ex-presidente da fundação, Ana Paula Mota Costa, conta que assumiu a instituição num “momento caótico” e afirma que seu trabalho de dois anos na Fase não foi só para “resolver a crise de um momento”. Segundo ela, foram feitas mudanças na arquitetura, na proposta pedagógica, no número de jovens por unidade, entre outras coisas. “Colocamos o Estatuto da Criança e do Adolescente em prática”. Brasil de Fato – Quando e como a senhora assumiu a Febem? Ana Paula Mota Costa – Eu assumi a fundação num momento de forte crise, em junho de 2000, logo depois que a outra presidente tinha sido afastada judicialmente. Como eu vinha da Fasc, que executa as políticas de assistência social, tinha uma relação muito próxima com todos os órgãos de defesa da criança e do adolescente, e um respaldo muito forte da sociedade civil. Eu entrei num momento difícil, mas havia um entendimento que minha ida para lá era uma solução. BF – Qual foi a situação que a senhora encontrou?

só uma lei. Foi feito um regimento interno, o estatuto da instituição, chamado de Programa de Execução de Medidas Sócio-Educativas de Internação e Semiliberdade – que define o que cada um tem de fazer. A idéia é de que todos são educadores, cada um com sua parcela de responsabilidade. É muito trabalho, não é uma coisa de um dia para outro.

Divulgação

Tatiana Merlino da Redação

Na Fase do Rio Grande do Sul, não há registro de nenhum motim há 13 meses

Ana Paula – Eu entrei no meio do governo Olívio Dutra, que já tinha definido que deveria ser feita uma mudança profunda. Havia um projeto sobre o que seria de responsabilidade da instituição que iria surgir a partir da Febem. Fizemos um diagnóstico institucional profundo, descobrimos quais eram os principais problemas. A partir deles foram desenvolvidos planos de mudança na instituição. O trabalho de dois anos e pouco não foi só para resolver a crise de um momento. Foram feitas mudanças em todas as áreas da fundação, desde a proposta pedagógica, de estrutura arquitetônica, até a lei, a questão financeiro-administrativa, a recuperação de prédios. Eu encontrei uma instituição com problemas de falta de definição de rumo do trabalho pedagógico. Havia um vazio de concepção. BF – Quando a Febem foi transformada em Fase? Ana Paula – Foi um processo, mas a lei é de maio de 2002, quando

já tínhamos definições da forma de trabalhar. O projeto de lei do Rio Grande do Sul foi construído por todas as instituições que trabalham na área da criança e do adolescente. Mas não são todos os problemas que estão solucionados. Trabalhar com privação de liberdade não é fácil, embora tenham sido dados passos importantes. A gente nunca trabalhou com uma idéia de transformação mágica. BF – Quais mudanças foram feitas na prática? Ana Paula – Número de jovens por unidade, regionalização, proposta de atendimento muito clara, trabalho com as pessoas da instituição sobre essa proposta, estrutura arquitetônica diferenciada, regramento interno para o funcionamento da instituição. Colocamos o Estatuto da Criança e do Adolescente em prática. Investimos muito para a fundação ter autoridade, desde a direção geral até o monitor. Não foi feita

BF – As rebeliões e motins acabaram? Ana Paula – Eu costumo dizer que rebelião, motim, é possível, existe. Faz parte do risco cotidiano. Mas muitas coisas podem ser feitas para evitá-los, como justiça institucional. Nós trabalhávamos sempre com uma idéia de instituição continente, na qual todo mundo tem que falar a mesma linguagem. O diretor deve reforçar a autoridade dos monitores, dos plantonistas, dos técnicos. Essas regras têm que ser conhecidas pelos adolescentes. Isso não significa ter um aparato de segurança prisional, militarizado. Os jovens precisam saber que estão lá privados de liberdade, o que não significa que a contenção deva ser feita com violência, ou fora da lei. Os adolescentes não começam de uma hora para outra a ter problemas de violência. Há todo um contexto na instituição que propicia isso. BF – Recentemente, a senhora esteve em São Paulo, onde discutiu a situação da Febem paulista. Qual seria a solução para essa instituição? Ana Paula – Acho que não tem fórmula. A minha experiência no Rio Grande do Sul foi há três anos. Em São Paulo está

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RS comprova: uma outra Febem é possível

Quem é Professora de direito da Universidade Metodista do Rio Grande do Sul, Ana Paula Mota Costa presidiu a Fundação do Bem Estar do Menor do Rio Grande do Sul de 2000 a 2002, quando o nome da instituição mudou para Fundação de Atendimento Sócio Educativo do Rio Grande do Sul (Fase). Atualmente trabalha na Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da prefeitura de Porto Alegre (RS) faltando uma definição clara de onde se quer chegar. Sem isso e sem métodos, está se apagando incêndio. Também não vi proposta de mudança da sociedade civil. Todas as pessoas com quem conversei apostaram todas as fichas no presidente que estava à frente da instituição e abriu a possibilidade de parcerias. No final, se decepcionaram muito. Há pessoas muito boas na sociedade civil, mas parece que estão tão decepcionadas, que não estão mais enxergando por onde as coisas poderiam melhorar.


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NACIONAL REFORMA UNIVERSITÁRIA

Mais concessões ao setor privado

Hamilton Octavio de Souza

O anteprojeto contempla poucas reivindicações de entidades de estudantes e docentes

Previsão irreal Contrariando todas as previsões otimistas do governo, o crescimento do PIB no primeiro trimestre do ano ficou em apenas 0,3% – bem menos do que os 3,5% registrados nos documentos oficiais. E o governo resiste bravamente em aceitar a relação do juro alto – controlado pelo Banco Central – com a estagnação econômica, com queda na produção, aumento do desemprego, achatamento salarial e redução no consumo. Até criança já sabe disso tudo. Contaminação ambiental Estudo da Embrapa – em convênio com universidades públicas – comprova a acelerada contaminação dos rios nas regiões das novas fronteiras agrícolas da Amazônia oriental, devido especialmente ao uso excessivo de defensivos agrícolas na lavoura da soja. Muitos igarapés ao longo da Belém-Brasília, no Pará, já estão sem peixes, e a água é imprópria para o consumo. A expansão do agronegócio também é nociva ao meio ambiente. Sonolência ministerial Descoberta pela Polícia Federal, a quadrilha que fazia desmatamento ilegal e operava no Ibama, envolvia até mesmo diretores do órgão, pessoas que, em princípio, deveriam ser de total confiança da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Está certo que a quadrilha existia há muito tempo, mas demorou mais de dois anos para o governo do PT mandar seus integrantes para a cadeia. Alguém dormiu no cargo. Sufoco médico A Agência Nacional de Saúde Suplementar autorizou novo reajuste dos planos privados de saúde de até 11,69%, mais uma vez acima da inflação e da média de correção anual dos salários. Aos poucos, a medicina privada vai consumindo mais o orçamento das famílias de classe média, que há muito deixaram de procurar os serviços públicos de saúde. A privatização de serviços essenciais funciona como um grande caça-níquel na sociedade. Alerta ignorado Pouco antes de assinar o requerimento da CPI dos Correios, o senador Eduardo Suplicy, do PT-SP, enviou carta pessoal ao presidente Lula em que declara, entre outras coisas, o seguinte: “Jamais a direção do PT esteve tão distante da vontade popular desde 1980”. Em troca, o parlamentar paulista foi “premiado” com a sua exclusão da chapa da corrente Campo Majoritário para o Diretório Nacional do partido. Disputa interna O ex-deputado Plinio Arruda Sampaio confirmou sua candidatura à presidência do PT com o apoio de três correntes de esquerda. A nova direção partidária será escolhida pelo voto direto de mais de 700 mil filiados, em setembro, depois de campanha bastante acirrada pela disputa entre o Campo Majoritário, governista, e os candidatos que defendem maior independência e combatividade do PT. Democracia tucana Duas leis estaduais de Minas Gerais, a 13.053 e a 13.604, ambas sancionadas pelo ex-governador Itamar Franco, estão ameaçadas de revogação pelo atual governador Aécio Neves, do PSDB. Essas leis impedem o uso indiscriminado da repressão da Polícia Militar no despejo de ocupações urbanas e rurais sem passar pelo gabinete do governador. A revogação representa maior violência contra o povo. Coisa da democracia defendida pelo PSDB.

Dafne Melo da Redação

D

esde o início do debate sobre a reforma universitária, é clara a polarização entre aqueles que defendem o setor público, e os que são favoráveis à iniciativa privada. A divulgação do segundo anteprojeto da reforma, em 30 de maio, foi apenas mais um capítulo de uma batalha que os empresários da educação parecem estar ganhando desde o começo. O Ministério da Educação (MEC), entretanto, insiste no discurso de que a educação superior no país irá “expandir com qualidade e promovendo inclusão social”, conforme as palavras de Ronaldo Motta, secretário de Educação à Distância do MEC. E que promoveu um debate democrático do projeto, no qual “todos os setores foram ouvidos”. Roberto Leher, da diretoria do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior (Andes-SN), discorda. “Se houve debate, ficou restrito a setores privatistas”, diz. Rodrigo Pereira, diretor de políticas universitárias da União Nacional dos Estudante (UNE), concorda. “O governo apenas dialogou com entidades que abriram mão de suas bandeiras históricas devido à sua relação com o governo. O Andes, por exemplo, nunca foi chamado para debater”, explica o estudante, membro do Contraponto, um dos campos de disputa da UNE, que se opõe à direção majoritária da entidade. A posição do MEC ficou clara desde a divulgação do primeiro texto . O próprio ministro Tarso Genro, em debate, afirmou que não discutiria o projeto com quem o considera “um lixo”. Para Motta, do MEC, “o produto final não pretende ser completamente o desejo de ninguém, ou de alguma representação de segmento em particular. O produto final tem a visão de Brasil”.

Críticos da reforma universitária temem que texto apresentado pelo MEC seja modificado para favorecer empresários da educação

equipe econômica e pelo Congresso. “De maneira geral”, diz o estudante “o atual anteprojeto cria marcos regulatórios para uma política educacional que começou na gestão Fernando Henrique Cardoso, com o claro objetivo de expandir o ensino superior pelo setor privado”. Das reivindicações da UNE para a reforma, foram atendidas a vinculação de 5% do orçamento das universidades federais para assistência estudantil, e que pelo menos um terço de suas vagas seja no período noturno. Entretanto, a solicitação inicial da entidade foi de 9%. Quanto aos cursos noturnos, Leher avalia que faltou determinar a distribuição por cursos, já que essa medida não altera a alta concentração dos cursos noturnos, que teoricamente atendem estudantes com renda mais baixa, em áreas como licenciaturas e ciências humanas. Em relação à regulamentação das universidades privadas, o novo anteprojeto excluiu a criação dos conselhos administrativos, organismos que seriam responsáveis pelas áreas administrativa e acadêmica, e que somente admitiriam 20% de representantes de mantenedoras em sua composição. O MEC alegou que tal medida seria inconstitucional. Questionado pelo Brasil de Fato, Roberto Motta

MUDANÇAS “A segunda versão é ainda pior do que a primeira, que tinha avanços tímidos, periféricos em relação a totalidade, que é conservadora”, alerta Pereira, da UNE. A seu ver, o texto pode ser ainda mais modificado para favorecer os empresários da educação, quando passar pelo crivo da

não especificou os problemas detectados. A eleição direta para dirigentes de universidades e centros universitários também foi suprimida.

ORÇAMENTO Outro ponto polêmico foi a forma de financiamento das universidades federais. No anteprojeto anterior, havia um mecanismo que garantia que o orçamento anual de cada universidade não poderia diminuir de um ano para outro, mas aumentar progressivamente. Esse item foi retirado do novo texto. Roberto Leher explica que a Constituição determina que sobre o montante de 18% do orçamento da União, 75% devem se destinar às federais. Obedecendo a essa determinação, se já valesse o texto, as federais teriam, em 2005, recursos de R$ 4,2 bilhões. Menos do que os R$ 7,3 bilhões que receberam em 2004. Para piorar a situação das federais, explica Leher, o governo consegue burlar a Constituição, pois como os 18% só recaem sobre os impostos, ele tem arrecadado cada vez mais por meio de taxas e contribuições, dinheiro que não entra no montante geral a ser dividido e acaba diminuindo o orçamento das federais. Além disso, a atual legislação tributária permite que o governo contigencie (retenha) 20%

do orçamento anual para pagar a dívida externa. “A conseqüência é que universidade pública federal vai precisar captar recursos na iniciativa privada, nas fundações. Vai ter que vender serviços, apostar na educação à distância e, assim, vai se descaracterizando”, resume o diretor do Andes. No projeto, fica também estabelecido que, até 2011, 40% das vagas terão que ser ofertadas no ensino público. Sem recursos para efetivar essa expansão, Pereira acredita que o aumento da oferta se dará por meio do ensino à distância, que nessa nova versão garante até a realização de mestrado e doutorado.

ARTICULAÇÃO Embora a conjuntura seja adversa, Pereira, da UNE, considera que “é dever dos movimentos sociais se articularem nesse momento”. Assim, o tempo que o texto levará para chegar ao Congresso será valioso para a reorganização de entidades que não concordam com o conteúdo do anteprojeto. Para o estudante, o congresso da UNE, em julho, será um importante espaço de disputa, reflexão e articulação. Um projeto alternativo, construído em seminários estaduais e que reflita os anseios de alunos e professores, feito de “baixo para cima”, será uma das prioridades, diz.

Nas universidades, repressão contra os xerox A usual prática de copiar trechos de livros nas universidades brasileiras pode ser considerado crime. Pelo menos é o que pretende a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), que vêm incentivando ações policiais nos estabelecimentos de ensino desde o ano passado. Em sua página na internet, a Associação, que se apresenta como entidade representativa de editoras em todo o país, há uma lista onde estão relatadas ações policiais em todo o país, em universidades públicas e privadas. Na relação, misturam-se iniciativas contra pirataria e contra as copiadoras de faculdades. “O problema do xerox nas universidades não pode ser colocado no rol da pirataria”, argumenta o professor Guilherme Gomes, chefe de gabinete da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), que recebeu a visita da polícia e tenta negociar com a ABDR, por enquanto em vão.

LEGISLAÇÃO A Universidade de São Paulo (USP), por meio do Conselho Universitário, aprovou, dia 7, resolução que libera “as cópias de pequenos trechos de livros para uso privado do copista, sem visar o lucro”. A ABDR, classificou a medida de “ilegal”. No dia 24 de maio, alunos de Direito da PUC-SP entraram com

Gabriela Azevedo Marques/Folha Imagem

Mutreta indigesta O Ministério Público denunciou pequena negociata da empresa multinacional McDonald’s com a Receita Federal, em 2002, ainda no governo FHC, na qual foram sonegados aos cofres públicos pelo menos R$ 78 milhões. Em compensação, empresas de consultoria ligadas a auditores da Receita, ganharam brindes da rede McDonald’s no valor de R$ 4,45 milhões. As multas que a empresa tinha para pagar deixaram de existir. Tudo muito simples, como um Big Mac.

Bruno Stuckert/Folha Imagem

Fatos em foco

Prática da fotocópia vem sendo tratada como crime nas universidades

um pedido de salvo conduto para a reitora da universidade, Maura Véras. Partindo do entendimento de que a ABDR está praticando constrangimento ilegal, por meio de suas ameaças, a ação pretende conceder à reitora a decisão de agir de acordo com os interesses da comunidade acadêmica, sem pressões externas. Caso a ação seja aceita, pode abrir precedentes para que outros estabelecimentos de ensino no país decidam a questão das cópias. Bruno Hiche, um dos oito estudantes de Direito que participaram da elaboração do salvo conduto, considera que ilegal mesmo é a atitude da ABDR. A seu ver, a interpretação que a entidade faz da lei de direitos autorais é parcial e equivocada. “Eles usam apenas a parte que lhes

interessa. Queremos continuar a tirar xerox, dentro da lei”, explica. Hiche argumenta que a lei é clara, e permite a cópia de trechos, ou até mesmo de um livro inteiro, desde que isso seja usado para fins pessoais e sem finalidade lucrativa. “Os 10% que dizem que a lei permite, na verdade não existe, não há especificação desse número. A palavra usada é trecho”, observa.

DÚVIDAS Cicero Araújo, chefe de Departamento de Ciências Políticas da USP, vê como “duvidosa” as ações da ABDR. “O fato de ser uma associação que representa um setor da sociedade civil, não lhe dá autoridade política, ou poder de fiscalização. Ela pode apenas fazer pressão”, afirma.

Araújo acredita que este caso exemplifica a necessidade de conciliação de dois direitos: o autoral e o direito à informação. “A ação tem que ser mediadora, mas está sendo unilateral”. Guilherme Gomes, partilha o mesmo ponto de vista. “O direito autoral é legítimo, mas não pode passar por cima do direito à informação e à educação”, analisa. Gomes conta que a PUC-SP ofereceu uma alternativa, que consiste na criação de um serviço de rede interna da universidade, onde os textos seriam colocados. Os alunos, acessariam esse sistema, imprimindo os textos e pagando uma quantia, que contemplaria o pagamento do direito autoral. A proposta foi recusada. Em contrapartida, a Associação sugeriu fazer apostilas com os textos utilizados, que seriam vendidas aos alunos. Gomes avalia que, segundo cálculo não oficial, a proposta não atende nem 10% das necessidades da universidade, que também utilizam, obviamente, autores e livros que não são do catálogo das editoras que a ABDR representa. “Isso sem contar edições esgotadas ou importadas, de uso muito comum. Com essa proposta, o problema do xerox continua, mas é um excelente negócio para as editoras associadas à ABDR”, rebate o professor. (DM)


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De 9 a 15 de junho de 2005

NACIONAL SEM PÃO, NEM CIRCO

Por que a economia parou de crescer Coquetel mortal: juros altos, salários arrochados, cortes de gastos, prejuízos na agricultura, alta de impostos Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

O

ciclo de “crescimento sustentado e virtuoso” durou pouco. Muito menos do que alardeavam porta-vozes do otimismo oficial. Os últimos dados disponíveis parecem confirmar que a economia literalmente parou de crescer e sinalizam, ainda, que, sem mudanças radicais na política econômica, as chances de uma retomada ficam cada vez mais distantes. O coquetel preparado pela equipe econômica – uma mistura de queda de salários, desemprego elevado, arrocho nos gastos e investimentos públicos, juros e impostos recordes – nocauteou a economia. Na prática, não há crescimento digno de nota desde o último trimestre de 2004, quando o Produto Interno Bruto (PIB), que mede o total de riquezas que o país produz, experimentou uma variação de apenas 0,4% em relação aos três meses anteriores. De janeiro a março de 2005, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Produto avançou meros 0,3%. Na comparação com igual trimestre do ano anterior, a taxa de crescimento murchou para 2,9%, praticamente metade dos índices alcançados até o terceiro trimestre do ano passado.

EM NÚMEROS Mais grave, os investimentos – que poderiam ajudar a manter o crescimento, ao criar mais fábricas, mais empregos e mais renda – caem há seis meses. Sofreram um tombo de 3,9% no último trimestre de 2004 e voltaram a cair 3%, nos primeiros três meses deste ano. A redução dos investimentos privados sinaliza que as empresas já não acreditam que a economia poderá voltar a crescer, no médio prazo, o

Participação do consumo das famílias e do governo no total de riquezas criadas decresce, em % sobre o Produto Interno Bruto (* trimestre)

62,67

65 60

57,81

55

59,64

Consumo das famílias

36,74

57,63

45 40 35 30

Consumo do governo

25 15

20,13

19,60

20

18,81

17,06

16,45 16,12

1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2004* 2005* Fonte dos dados brutos: IBGE

que tende a agravar o desaquecimento, daqui para a frente. O arrocho provocado intencionalmente pelo governo pode ser traduzido em números concretos. Numa estimativa ligeiramente otimista, perto de R$ 110 bilhões (algo como 6% do PIB) deixaram de circular na economia nos primeiros quatro meses de 2005 por conta da política vigente. Toda essa montanha de dinheiro foi esterilizada, deixando de criar mais produção e empregos, ajudando a esfriar a atividade econômica. Quase metade daquele valor, ou R$ 51,2 bilhões, foi desviada pelo governo para o pagamento dos juros de sua dívida, vencidos no período. Ou seja, engrossaram a especulação financeira, sem produzir qualquer reflexo sobre o lado real da economia.

JUROS&IMPOSTOS Outro pedaço, equivalente a R$ 37,8 bilhões, correspondeu ao aumento das despesas com juros

O AVANÇO DOS IMPOSTOS

38,38

55,20

50

Valor total dos impostos pagos em relação ao total de riquezas produzidas, em % sobre o Produto Interno Bruto

38,02

Efeitos em cascata das perdas na agricultura

SEM FÔLEGO PARA CONTINUAR CRESCENDO

38,95

40,01

41,60

1º tri/2000 1º tri/2001 1º tri/2002 1º tri/2003 1º tri/2004 1º tri/2005

suportados por empresas e consumidores em conseqüência da mesma política econômica. De acordo com dados do Banco Central (BC), considerando as taxas de juros médias cobradas pelos bancos em seus empréstimos, aquelas despesas saltaram de R$ 107,2 bilhões para R$ 145 bilhões em abril, num aumento de 35,3%. A terceira maior fatia, algo como R$ 21,2 bilhões, foi consumida pelo aumento dos impostos pagos pelos contribuintes apenas nos primeiros três meses deste ano. Nos cálculos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), os brasileiros pagaram R$ 181,7 bilhões em impostos, contribuições e taxas aos governos federal e estaduais e às prefeituras no primeiro trimestre deste ano, representando 41,6% de todas as riquezas geradas em igual período pela economia – um recorde absoluto. Se a carga total de impostos fosse mantida nos mesmos 36,7% observados no primeiro trimestre de 2000, um percentual ainda “salgado” para os padrões da economia brasileira, os contribuintes teriam pago R$ 21,2 bilhões a menos.

ENXUGAMENTO Este dinheiro arrecadado a mais até poderia ter sido direcionado para investimentos em saúde pública ou educação, por exemplo, redistribuindo a renda, ou para a recuperação de estradas e portos, construção de ferrovias, gerando empregos e mais renda, criando melhores condições de funcionamento para

a economia. O aumento da receita, no entanto, foi integralmente destinado ao pagamento de juros, mantendo-se uma política de arrocho aos investimentos públicos. Até o dia 20 de maio, conforme dados divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo, com base em informações do próprio governo, a União investiu meros R$ 271 milhões, representando 1,25% do investimento total incluído no orçamento de 2005 (R$ 21,6 bilhões). É menos do que os R$ 296 milhões gastos por dia, em média, pelo governo para fazer frente às despesas com juros.

ÁGUA FRIA Os ministérios dos Transportes, Saúde e Cidades, por exemplo, aplicaram, respectivamente, 0,4%, 0,9% e 0,8% de todo o investimento autorizado pelo orçamento. Dos R$ 2,7 bilhões prometidos ao Ministério das Cidades para investimentos em saneamento básico, nenhum centavo foi liberado até maio. No ano passado, os gastos do governo federal com ações e serviços de saúde, no Sistema Único de Saúde (SUS), estacionaram em R$ 189,50 por habitante, o que significou uma diminuição de 11% desde 1995. Em resumo, a política econômica se baseia única e exclusivamente no aumento dos juros, que sobem desde setembro do ano passado, elevação de impostos e no enxugamento de despesas públicas (especialmente investimentos), a pretexto de segurar os preços e derrubar a inflação.

Como se não bastasse, outro fator tende a complicar as possibilidades de recuperação. Com a seca nas regiões mais ao sul, a agricultura deixará de colher, neste ano, cerca de 18 milhões de toneladas de soja, milho, algodão, arroz – um prejuízo estimado em R$ 10 bilhões. Com preços mais baixos do que no ano passado e uma colheita menor do que a esperada, o valor bruto de venda dos produtos agrícolas, carnes, ovos e leite tende a recuar de R$ 196,6 bilhões, valor registrado em 2004, para menos de R$ 170 bilhões neste ano, de acordo com a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA). Resultado: perto de R$ 26,74 bilhões não vão circular pelo interior do país, deixando de irrigar a economia e os negócios em geral na região. Por isso, já se observa redução das vendas e da produção das indústrias de máquinas e equipamentos (tratores, colheitadeiras, arados, plantadeiras), adubos, fertilizantes e defensivos agrícolas em geral. O desaquecimento, da mesma forma, tende a atingir as redes de lojas, supermercados e magazines que têm sede ou filiais nas principais regiões agrícolas, gerando efeitos negativos em cadeia sobre o restante da economia. (LVF)

Os cortes de gastos, que contribuem para esfriar ainda mais a atividade econômica, cumprem um segundo objetivo dessa política: criar sobras de recursos para pagar os juros da dívida do setor público. Uma larga parcela do dinheiro que os contribuintes entregam ao governo, todos os meses, para o pagamento de impostos, taxas e contribuições, é desviada para o mercado financeiro, para os donos do capital, no país. Ou seja, não retornam à economia para favorecer o grosso da sociedade sob a forma de mais e melhores serviços nas áreas de saúde, saneamento básico, educação, reforma agrária etc.

Fonte: Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT)

Mais desemprego, menos renda, menos consumo... A tendência de redução da taxa de desemprego, esboçada em 2004, sofreu nítida reversão neste ano, estacionando, entre março e abril, em 10,8%, nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE. Trata-se da taxa mais elevada em sete meses, e bem acima da média registrada historicamente no país, em torno de 5% a 6%. O rendimento médio das pessoas ocupadas, o que inclui desde empregados regulares, com carteira assinada, até autônomos e trabalhadores por conta própria, caiu 1,8% em abril, na comparação com março, retornando aos níveis de novembro do ano passado. Essa queda consumiu os ganhos obtidos nos últimos quatro meses.

ACHATAMENTO Segundo trabalho do economista Márcio Pochmann, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), citado pelo jornal O Globo, a rotatividade no mercado formal de trabalho (empregados com carteira assinada) cresceu 7,2% entre janeiro e abril deste ano, em relação aos primeiros quatro meses de 2004. Nesse ritmo, diz, a taxa de rotatividade poderá crescer para

RENDIMENTO ENCOLHE

Rendimento real médio da população ocupada, em reais 965,04

955,44 938,70

931,00

Abr/2003

Abr/2004

Mar/2005

Abr/2005

Fonte: IBGE

43% neste ano, atingindo o maior percentual desde 2001. Traduzindo: uma elevada taxa de rotatividade significa que as empresas estão demitindo empregados com rendimentos mais altos e contratando com salários mais baixos, o que é facilitado pelo grande número de desempregados. Para provar sua afirmação, Pochmann mostra que os empregados demitidos entre janeiro e abril de 2005 ganhavam R$ 2,38 mil, em média, enquanto os novos contratados no mesmo período passaram a receber R$ 392,70. Isso significa um brutal processo de achatamento da renda, mesmo diante do aumento do número de contratações com carteira assinada.

Como é natural, o declínio da renda tem se refletido na diminuição do consumo total das famílias, o que tem influência decisiva na formação de riquezas no país, com poder para ditar o ritmo de crescimento (ou queda) de toda a economia. Segundo dados do IBGE, em 1997, o consumo das famílias chegou a representar 62,7% do PIB. Caiu para 55,2% no ano passado. Em valores, se fosse considerada a participação observada há sete anos, o consumidor brasileiro teria seu poder de consumo reforçado em R$ 131,9 bilhões, o que representaria 7,5% do total de riquezas geradas no país em um ano. (LVF)

As contas da política de arrocho Uma conta resumida, e ainda conservadora, ajuda a entender por que as chances de crescimento vão diminuindo à medida em que o governo não abre mão de sua política de arrocho. Como visto, apenas o achatamento do poder de consumo das famílias retirou da economia, nos últimos sete anos, quase R$ 132 bilhões. Já o aperto nos gastos do setor público representou um enxugamento de R$ 23,3 bilhões entre 2002, quando representava 20,1% do PIB, e 2004 – ano em que a fatia de bens, produtos e serviços consumidos pelo governo encolheu para 18,8% do total de riquezas. Neste ano, numa estimativa que toma como base as taxas médias cobradas pelos bancos até abril, empresas e pessoas físicas devem gastar perto de R$ 113,4 bilhões a mais do que em 2004, apenas para pagar juros sobre suas dívidas. No setor público, prevê-se que as despesas com juros saltarão para R$ 154,9 bilhões, com um aumento de praticamente 21% em relação a 2004.

A elevação dos impostos retirou da economia, apenas no ano passado, R$ 70,2 bilhões, desviados para cobrir a conta de juros do setor público. Explica-se. Em 2004, o país produziu riquezas totais no valor de R$ 1,766 trilhão. Se a participação do total de impostos pagos pelos contribuintes tivesse se mantido em 32,8% (percentual registrado em 2000), os tributos teriam consumido R$ 580 bilhões. Mas os contribuintes recolheram ao setor público R$ 650 bilhões ou 36,8% do PIB. Isso representou R$ 70 bilhões a mais. Na soma total, incluindo as perdas de R$ 26,7 bilhões estimadas para a agricultura, deixarão de circular pela economia, ao longo do ano, pelo menos R$ 520 bilhões, equivalentes a 29,5% do PIB de 2004. Esse valor pode ser ainda maior se os juros continuarem subindo, ou mantiverem os níveis atuais até dezembro, se a renda continuar em queda e os impostos em alta. (LVF)


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De 9 a 15 de junho de 2005

NACIONAL SANTA CATARINA

Povo na rua contra aumento de ônibus Daniel Guimarães de Florianópolis (SC)

D

esde o dia 30 de maio Florianópolis (SC) vive dias intensos. Milhares de estudantes, professores, sindicalistas e demais cidadãos estão se manifestando contra o aumento de 8,8% nas passagens de ônibus municipais. O índice é o que restava para completar o aumento de 15,6% determinado pela prefeitura em julho do ano passado. Na ocasião, a população de Florianópolis ocupou terminais de ônibus, ruas e pontes, impedindo o aumento das passagens – evento que ficou conhecido como A Revolta da Catraca. Só em dezembro, durante o Natal e as férias escolares, a prefeitura conseguiu uma parte do reajuste, de 6,81%. Com esse reajuste, a tarifa de ônibus em Florianópolis, que teve um aumento de 228% desde 1997, se tornou a mais cara do país – a média de R$ 2,08 supera a tarifa de São Paulo, R$ 2; e de Curitiba, R$ 1,90. Agora, a passagem social passa a custar R$ 1,15 e, a mais cara, R$ 3. A primeira manifestação, na manhã do dia 30 de maio, contou com cerca de cem pessoas e, assim como em julho do ano passado, no mesmo dia a adesão popular explodiu. Durante todos os dias foram bloqueados os terminais da Trindade, de Canasvieiras, as avenidas Paulo Fontes, em frente ao terminal do Centro (Ticen),

Felipe Christ/Fotonotícias/AE

A tarifa em Florianópolis é a mais cara do Brasil. De 1997 para cá, sofreu uma elevação de cerca de 228%

Pelas ruas de Florianópolis, população protesta contra o aumento de 8,8% nas passagens de ônibus municipais

Mauro Ramos e Beira-Mar. O prefeito Dário Berger (PSDB) justificou o aumento como fruto de uma decisão judicial baseada em um decreto da gestão municipal anterior. Foi desmentido quando a Associação dos Magistrados Catarinenses soltou uma nota explicando o erro grosseiro da prefeitura – a decisão do juiz apenas autorizava o aumento, não obrigava a prefeitura acatá-lo. Além do mais, o decreto número 2545,

Central, este ano a repressão policial se tornou um fator determinante. Em 2004, o governador de Santa Catarina, Luiz Henrique da Silveira (PMDB), em clara oposição à então prefeita Ângela Amin (PP), discursava sobre os direitos de manifestação, dizendo que sua polícia não serviria para reprimir estudantes. A Revolta da Catraca exerceu um papel fundamental para derrubar o candidato às eleições municipais pelo PP, Chico

de 22 de junho de 2004, no qual se baseou o juiz da 2ª Vara da Fazenda de Florianópolis, Domingos Paludo, foi assinado pelo Poder Executivo. Não importa qual gestão. Se o Poder Executivo atual retira esse decreto, a Justiça perde objeto.

VIÚVA DA DITADURA Se no ano passado o movimento pela redução das passagens conseguiu ocupar as pontes e o Terminal

Assis, assegurando a vitória do tucano Dário Berger, ligado ao governador do Estado. Agora, tanto o governo do Estado quanto a prefeitura estão tratando as manifestações como caso de polícia. No intuito de frear o movimento, a Polícia Militar (PM) prendeu, na noite de 30 de maio, os militantes do Movimento pelo Passe-Livre (MPL), André Filipe de Moura Ferro, Marcelo Pomar e a militante Flora Muller. Além dos três, o militante e advogado do MPL, Matheus Felipe de Castro, também foi detido, mas liberado logo em seguida. Os três responderão processo baseado nas acusações de obstrução ao serviço público, incitação ao crime e formação de quadrilha e só foram soltos após pagar a fiança no valor de R$ 1.500 cada. Dia 2 de junho, mais 16 pessoas foram presas e só foram soltas após pagar fiança do mesmo valor. O presidente da seccional catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil, Adriano Zanotto, achou inaceitável a acusação e o tratamento criminoso a um movimento político. Mesmo depois da prisão de militantes que a polícia considerava como líderes, o movimento não se desmobilizou. Demonstrações de protestos continuam pela cidade, com focos nas escolas da periferia, marchas pelo centro, bancos depredados, fogo ateado à Câmara dos Vereadores.

Daniel Cassol

ATINGIDOS POR BARRAGENS

Movimentos denunciam Alcoa e Votorantim à OCDE Alexania Rossato e Aline Gonçalves de Brasília (DF) e de Curitiba (PR) O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Terra de Direitos farão uma denúncia, junto ao Ponto de Contato Nacional da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na Secretaria de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, contra as empresas Alcoa Alumínios e Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), que integra o Grupo Votorantim. “É o primeiro caso a ser levado à OCDE por um movimento social e pela sociedade civil no Brasil”, afirma Guilherme Eidt Almeida, assessor jurídico da Terra de Direitos. As empresas – acionistas transnacionais majoritárias do consórcio Baesa – Energética Barra Grande – violaram direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais no processo de construção da Usina Hidroelétrica de Barra Grande, na fronteira entre os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A Usina, que está pronta desde 2 de abril, não tem licença para começar a operar porque o laudo emitido antes da construção, em 1999, pela empresa Engevix Engenharia, omitia a existência de 5,6 mil hectares de vegetação de Mata Atlântica com florestas de araucária primária ou em estado de avançada regeneração no local onde será formado o lago da hidroelétrica. A fraude só foi reconhecida pelo Instituto

Auditoria na Copalma - Cerca de 200 integrantes do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) realizaram, dia 6, uma marcha em Palmeira das Missões (RS) para exigir que a Copalma pague as dívidas com os associados. Em reunião entre pequenos agricultores e a direção da cooperativa, ficou acordado que será realizada uma auditoria na empresa para avaliar o tamanho da crise e a origem do endividamento. Após o resultado da auditoria, uma nova reunião entre agricultores e direção deve discutir o futuro da cooperativa. A dívida da Copalma pode chegar a R$ 83 milhões. O ex-presidente da cooperativa, Ari Hünning, se afastou da direção na semana passada.

SÃO PAULO

Henrique Rodrigues e Rafael Santos de Cubatão (SP) Insatisfeitos com a posição da prefeitura, que não abre mão da instalação de dois pátios de contêineres no bairro Jardim Casqueiro, em Cubatão, no litoral de São Paulo, populares da região pedem uma ação do Ministério Público (MP). A Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou uma representação junto ao MP para que o órgão impeça a instalação dos depósitos. Segundo os opositores da idéia, a autorização dada pelo executivo municipal para que as empresas Rocha Top-Terminais e Meridional implantem os pátios não levou em consideração dispositivos previstos em lei, como a consulta popular aos moradores de regiões próximas às áreas onde se pretenda instalar qualquer tipo de empreendimento que acarrete ônus ao meio ambiente. A principal alegação dos mora-

dores e especialistas contrários aos pátios é de que, com a pavimentação dos terrenos onde as firmas serão estabelecidas, mais de 60 mil metros quadrados de vegetação nativa serão destruídas, além, evidentemente, dos incômodos que seriam gerados pelo tráfego constante de veículos pesados. Além disso, uma lei municipal proíbe a circulação de caminhões na região do Jardim Casqueiro. A direção da empresa Rocha Top-Terminais, que investe no pátio do Parque São Luiz, entre a interligação Anchieta-Imigrantes e o Sesi, afirma que recebeu autorização do Departamento Estadual de Proteção aos Recursos Naturais, ligado à Secretaria Estadual do Meio Ambiente, e que apenas com esse aval pode tocar as obras – uma vez que a Lei Municipal de Zoneamento permite empreendimento desse tipo naquela região. Para o motorista aposentado Odair Ferreira de Souza, morador do Parque São Luiz, além do proble-

ma ambiental, é preciso considerar a desvalorização dos imóveis do bairro. “Temos aqui um bairro novo, com o loteamento caro. Com o pátio de contêineres tudo vai se desvalorizar. Um terreno aqui custa em média R$ 50 mil, mas com o pátio esse valor vai abaixar, e muito” prevê. O medo de Souza, também, é que o bairro perca sua característica. “Os caminhões vão estragar as ruas, sem contar que não sabemos que tipos de produtos estarão dentro dos contêineres, nem qual o tamanho do pátio. O bairro não será mais conhecido pelo nome, e sim pelo bairro que abriga o pátio de contêineres”, explica. Mesmo sendo caminhoneiro, Edvaldo Leal, que vive no Casqueiro, acredita que a instalação da empresa naquele bairro deve dificultar as coisas. “A marginal vai ficar inviável. É preciso fazer um acesso exclusivo só para os caminhões. E além do trânsito, tem o problema da entrada de produtos perigosos”, alega.

PREJUÍZOS SOCIAIS Barra Grande está instalada no Rio Pelotas, atingindo os municípios de Serra, Esmeralda, Vacaria e Bom Jesus, no Rio Grande do Sul, e Anita Garibaldi, Cerro Negro, Campo Belo e Lages, em Santa Catarina. Além do dano ambiental, o deslocamento forçado desarranja as estruturas socioeconômicas e culturais das comunidades locais. Segundo o coordenador do MBA na região, André Sartori, o que as construtoras de Barra Grande fizeram foi uma vergonha: “Elas se instalam nas nossas comunidades, fraudam estudos de impactos ambiental, não reconhecem ou enganam os atingidos e os despejam de suas terras”. O Brasil, como signatário das Diretrizes da OCDE, está comprometido em evitar que leis ambientais e direitos humanos sejam burlados, como aconteceu nesse caso. Uma simples observação do entorno permite dizer que os o Baesa tinha conhecimento do impacto socioambiental dos empreendimentos. “Esperamos que a OCDE denuncie o que foi feito conosco e que em nenhum outro lugar do Brasil seja permitido coisa semelhante”, finaliza Sartori.

MAB Comunicação

Moradores querem impedir pátios de contêineres

Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em setembro de 2004, quando empresas pediram autorização para suprimir a vegetação com as obras praticamente concluídas. O Ibama multou em R$ 10 milhões a Engevix e caçou sua licença.

Atingidos por barragens denunciam crimes ambientais cometidos em Barra Grande


Ano 3 • número 119 • De 9 a 15 de junho de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO DOUTRINA BUSH

América Latina impõe derrota aos EUA da Redação

A

América Latina se rebelou contra a iniciativa dos Estados Unidos de converter a Organização dos Estados Americanos (OEA) em um organismo que vigie e possa até intervir nas democracias da região. Para se contrapor ao projeto, um grupo de 11 países – entre eles, Brasil, Canadá, Colômbia e Chile – e a Comunidade do Caribe (Caricom) elaboraram propostas alternativas. Dia 6, o presidente George W. Bush participou da reunião anual do organismo, mas não mencionou no seu discurso a polêmica sobre a proposta estadunidense. Bush também ignorou o tema da migração, pauta prioritária dos países latino-americanos com os Estados Unidos. No entanto, o presidente estadunidense pediu ao Congresso de seu país que ratificasse o Tratado de Livre Comércio com a América Central (Cafta, na sigla em inglês). “Uma América unida pelo comércio é menos propensa a estar dividida pelo ressentimento e pelas falsas ideologias”, sustentou Bush. Cuba, expulsa em 1962 do organismo, recebeu uma breve menção: “Só um país desse hemisfério está fora dessa sociedade de nações livres

Marcello Casal Jr/ ABR

Fracassa proposta de Bush de dar à Organização dos Estados Americanos (OEA) poder de intervir em países da região

OEA: instrumento dos EUA

O ministro das Relações Exteriores e representante do Brasil na OEA, Celso Amorim, defende retorno de Cuba à organização

e um dia a onda de liberdade chegará às costas de Cuba também”.

Unidos. A Venezuela foi um dos maiores opositores da proposta. Analistas advertem que a proposta estadunidense tinha como objetivo controlar o presidente venezuelano, Hugo Chávez, e intervir no país sul-americano. O chanceler venezuleano, Alí Rodríguez, recordou que a “OEA é um organismo que deve promover a democracia,

SEM APOIO A rejeição à iniciativa dos Estados Unidos de “monitorar” as democracias da região foi ganhando força desde o dia 5, quando começou a 35ª Assembléia Geral da OEA, em Fort Lauderdale, Estados

Em encontro, Celso Amorim defende Cuba da Redação Responsável pelo discurso de abertura da 35ª Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), a secretária de Estado estadunidense, Condoleezza Rice, atacou o governo cubano. “Trinta e quatro países ganharam direito de estar nesta grande organização democrática. Mas há ainda um espaço vazio na mesa. Um assento que um dia vai ser ocupado por representantes de uma Cuba livre e democrática”, disse.

O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, rebateu a fala de Condollezza Rice, afirmando que os países das Américas têm o direito de orientar sua política de modo autônomo, desde que respeitem a democracia e os direitos humanos. O ministro destacou que o momento é para diálogo, não agressões, referindo-se ao discurso da secretária de Estado. Um dia antes do início da reunião da OEA, o presidente cubano, Fidel Castro, denunciou a sistemática política de agressão do governo estadunidense contra Cuba. Ele foi responsá-

vel pelo discurso de encerramento do Encontro Internacional contra o Terrorismo, pela Verdade e pela Justiça, que ocorreu em Havana, Cuba, dos dias 2 a 4. No evento, que reuniu centenas de representantes de movimentos sociais latino-americanos e do governo venezuelano, foi reforçada a campanha pela extradição do terrorista Luis Posada Carriles, a quem o governo estadunidense dá asilo. Carriles realizou diversos atentados na América Latina, incluindo um ataque a um avião em 1976, que deixou 73 mortos.

e não um órgão interventor”. Já o chanceler brasileiro, Celso Amorim, respondeu à secretária de Estado estadunidense, Condoleezza Rice, presidente da assembléia da OEA: “Senhora presidente, a democracia não pode se impor, ela nasce do diálogo”. Foi uma referência ao pedido de Condollezza Rice para dotar a OEA de poderes para apoiar as “frágeis” democracias da América Latina. No dia 6, Condollezza Rice teve um encontro – à margem da assembléia da OEA – com a venezuelana María Corina Machando, da organização opositora Sumate, que também já se reuniu recentemente com o presidente Bush. Como resolução alternativa à proposta dos Estados Unidos, um grupo de países – entre eles, o Brasil – apresentou uma sugestão de resolução em que os próprios países possam pedir “assistência” à OEA quando enfrentam uma crise de governabilidade. De acordo com fontes diplomáticas, Venezuela e México também rejeitavam essa hipótese. Já os 14 países do Caricom formularam um texto que eliminava a menção ao papel preventivo da

A Organização dos Estados Americanos, criada em 1948, reúne representantes de todos os países das Américas, menos Cuba. A ilha caribenha foi excluída em 1962 por não se alinhar ao principal mentor da instituição: o governo estadunidense. Nos documentos fundadores da organização, aparece que esta deve promover a democracia no continente. Nos anos 70 e 80, entretanto, a OEA foi um instrumento da Agência Central de Inteligência (CIA, sigla em inglês) dos Estados Unidos para apoiar ditadores, principalmente na repressão ao comunismo. Desde os anos 90, a instituição mudou seu perfil e se tornou intervencionista. Em 1999, sob o comando dos Estados Unidos, foram realizados exercícios militares multilaterais na costa da Argentina. Segundo registros oficiais, o objetivo da ação foi melhorar a coordenação do Comitê Interamericano contra o Terrorismo (CICTE), departamento da OEA. Movimentos sociais latino-americanos denunciam a orientação da instituição, pois a consideram um instrumento de repressão à luta popular. De fato, a organização tem o direito de intervir em países cujos governos consideram que há um risco de ruptura democrática. Os detalhes do que é uma ruptura democrática não são especificados. Em 2004, o argumento foi a justificativa para a ocupação do Haiti, em uma operação conjunta com a Organização das Nações Unidas (ONU).

OEA em crises de governabilidade. Até o fechamento desta edição, os países não tinham votado a resolução da assembléia da OEA. Os países emitiram também uma curta resolução sobre a Bolívia, pedindo que os atores políticos resolvam a crise “de maneira pacífica” e se oferecendo a atuar como intermediário. (La Jornada, www.jornada.unam.mx, veículo parceiro do Brasil de Fato)

BOLÍVIA

Alex Contreras Baspineiro de La Paz (Bolívia) Encurralado pelas demandas dos movimentos sociais, acossado pela pressão de um pequeno grupo de oligarcas e pelas transnacionais, mas também obrigado pela incapacidade de governar ao longo de 20 meses, Carlos Mesa renunciou à Presidência da República, dia 6. A renúncia não soluciona o impasse que envolve o país. Ao contrário, radicaliza essa situação porque a maioria do Congresso, de tendência neoliberal, apóia-se no mandato constitucional e não pretende assumir uma postura que responda às exigências da maioria nacional: a Assembléia Constituinte e a nacionalização dos hidrocarbonetos. Diante da renúncia de Mesa, quem deveria assumir como chefe de Estado na Bolívia é o senador Hormando Vaca Diez, presidente do Senado Nacional, ou, na sua ausência, Mario Cossio, presidente da Câmara dos Deputados. Ocorre que os dois políticos foram fiéis aliados do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada (El Goni), destituído na “guerra do gás” em outubro de 2003. É por isso que, começa a se notar nos quatro cantos do país, o clamor popular: “Que se vayan todos!”. Para representantes dos setores sociais – que há três semanas

fazem bloqueios de estradas, mobilizações e greves pelo interior da Bolívia –, se Hormando Vaca Diez ou Mario Cossio assumir o país pode ocorrer uma guerra civil, com conseqüências imprevisíveis. As organizações querem que os títulares da sucessão constitucional renunciem um após o outro até que chegue a vez de o presidente da Corte Suprema de Justiça, Eduardo Rodríguez, assumir a Presidência e convocar novas eleições gerais.

Nama

Andes urgente: “Qué se vayan todos!”

LEVANTE “Minha responsabilidade é dizer que até aqui posso chegar; é por isso que minha decisão é apresentar minha renúncia. Quero pedir a quem está em posições pouco flexíveis para que não bloqueie a possibilidade de o Congresso se reunir rapidamente para discutir este tema e dar viabilidade ao futuro do país”, disse Mesa, em sua mensagem presidencial. Horas antes da renúncia presidencial, as estruturas de La Paz foram estremecidas pela maior e mais combativa mobilização da história democrática do país. Encabeçados pelo povo de El Alto (cidade da periferia da capital boliviana), milhares de homens e mulheres se concentraram na Praça São Francisco para exigir a Nacionalização dos Hidrocarbonetos, a Assembléia Constituinte e o processo por crimes de responsabilidade contra o ex-presidente Lozada e seus ministros.

Cocaleros em marcha pelas ruas de La Paz exigem a Constituinte

Orgulhosos, os manifestantes brilhavam com seus trajes de mil colares, com os ponchos, faziam flamejar suas bandeiras de libertação e gritavam com folhas de coca na boca, marchando pelas principais ruas da capital para reclamar mudanças estruturais, não mais paliativas. Diferentemente da renúncia que Carlos Mesa apresentou em março deste ano, desta vez não houve

manifestação popular de apoio ao presidente. Naquela oportunidade, a renúncia – qualificada de chantagem – serviu para que, mediante uma campanha de mídia sem precedentes, os movimentos sociais e seus representantes fossem criminalizados. Mas, agora, Mesa se sentiu órfão. Já os movimentos protagonistas da “guerra do gás” notaram que, juntamente com a expulsão de Goni, fal-

tou uma reivindicação: fechar o Congresso Nacional para que se “vayan todos” os cúmplices do assassino de 67 bolivianos e bolivianas. Mas a renúncia de Mesa não resolve os conflitos; talvez os tenha aumentado. Continuam intactos mais de 90 pontos de bloqueio no território nacional, vários setores mantêm suas medidas de pressão e grande quantidade de manifestantes permanece em La Paz. O confronto não é entre a região oriental e a região ocidental, e sim a luta entre um pequeno grupo de oligarcas – latifundiários, proprietários de terras e empresários, que têm o apoio das transnacionais e da embaixada estadunidense – contra a maioria da população boliviana. Os grupos de poder exigem a realização de um referendo sobre as autonomias dos Departamentos (províncias); os movimentos sociais exigem a Assembléia Constituinte e a Nacionalização dos Hidrocarbonetos. Mas a solução estrutural na democracia gira em torno da Assembléia Constituinte. Mesmo porque, a Constituição não reconhece o referendo como procedimento nem para reformar a própria Carta. E nenhum dos setores sociais mobilizados se opõe a discutir a reivindicação autonomista, desde que isso ocorra no marco da Assembléia. (Agência Latino-Americana de Informações – www.alainet.org)


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AMÉRICA LATINA VENEZUELA

Chávez altera conceito de latifúndio Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)

Nama

Para avançar com reforma agrária, governo agora pode desapropriar áreas improdutivas de qualquer tamanho importações de alimentos, “não podemos interromper uma produção agropecuária, ainda que concentre grandes quantidades de terras. Primeiro, temos que garantir o nosso abastecimento interno”, explica. A Venezuela é o quarto maior exportador de petróleo do mundo, mas importa 70% dos alimentos que consome.

N

a próxima safra, a camponesa venezuelana Leida Lugo poderá colher muito mais do que os poucos quilos de milho que extrai da sua pequena produção de subsistência. Leida e mais 709 famílias de sem-terra serão assentadas e beneficiadas com o resgate de 30 mil hectares de terras improdutivas, no Estado Cojedes. A desapropriação da fazenda Paraima é um dos casos mais emblemáticos de resgate de terras desde que o presidente, Hugo Chávez, firmou o decreto de “guerra contra o latifúndio”, em janeiro deste ano. A propriedade é supostamente reivindicada por uma tradicional família venezuelana que, no entanto, não conseguiu comprovar a aquisição da área. Nestes casos, o Instituto Nacional de Terras (INTI) resgata as terras e passa a considerá-las propriedade do Estado. O governo pretende desenvolver nessas áreas os chamados Núcleos de Desenvolvimento Endógeno, que têm como uma de suas metas estimular o cooperativismo agrícola. Reocupar o campo e substituir o modelo de produção tradicional é um dos caminhos que está sendo trilhado para reestruturar a economia monoprodutiva do país. Desde 1922, quando se iniciou a extração do petróleo, a agricultura foi praticamente abandonada. Outra meta da reordenação econômicoprodutiva é alcançar a soberania alimentar. Os números da concentração de terra na Venezuela se assemelham à realidade brasileira: mais de 30 milhões de hectares estão sem produ-

UNIDADE

Agricultor beneficiado com a reforma agrária: Venezuela possui mais de 30 milhões de hectares improdutivos

ção e 80% da área cultivável está em poder de 5% dos produtores. Não por acaso, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, determinou que o presidente do INTI, Eliézer Otaiza, “apressasse o passo” no processo de mapeamento das terras improdutivas e de propriedade da nação. “Não deve ficar nenhum latifúndio na Venezuela, nem sequer como relíquia”, expressou Chávez.

ESTOQUE DE TERRAS Nessa missão, o INTI tem como principal instrumento a Lei de Terras, reformada há um mês pela Assembléia Nacional, mas que entrou em vigor apenas dia 3. Por ampla maioria, os parlamentares altera-

ram 18 artigos da lei que reforçam a necessidade de apoiar e manter o desenvolvimento sustentável no campo e o direito de permanência na terra a quem produz. A alteração mais importante trata da definição do conceito de latifúndio improdutivo – antes utilizado apenas para as propriedades com mais de 5 mil hectares. Esta definição era um dos principais pontos criticados pelas organizações camponesas por não permitir mudanças consideráveis na estrutura fundiária, deixando de fora as propriedades com quantidades inferiores de terra, ainda que improdutivas. Agora, as terras para fins de reforma agrária serão determinadas apenas pelo

nível de produtividade do terreno, e não por sua extensão. No entanto, ficou aberto um precendente que pode impedir a eliminação completa de latifúndios no país. Apesar de não ser regra, e sim exceção nos casos inspecionados pelo INTI, se um latifundiário colocar em produção 10 mil hectares, ainda que “socialmente improdutivo” – como define os movimentos camponeses do Brasil –, as terras não serão desapropriadas. Uma das parlamentares que votou a favor das alterações na lei, Marelis Marcano, do Movimento Quinta República (MVR), explica que “por enquanto”, devido ao elevado nível de dependência das

Na avaliação da deputada, a reforma da lei deve fazer a “revolução agrária” avançar. No entanto, a efetivação da lei dependerá essencialmente “da pressão e da organização dos movimentos sociais camponeses”, afirma Marelis. A falta de unidade entre as distintas organizações do campo, aliada à burocracia histórica no interior do INTI, tem prejudicado o avanço da reforma agrária. A autocrítica é feita pelos próprios dirigentes das organizações que, pela primeira vez, se reuniram para a construção de um movimento agrário bolivariano. Realizado dia 5, em Caracas, o encontro tratou também do avanço da violência no campo. Desde 2001, quando foi promulgada a Lei de Terras, 139 camponeses já foram assassinados. A resposta dos latifundiários à guerra contra a concentração da terra tem sido a reorganização do sicariato (a exemplo dos jagunços, no Brasil). Em média, a cada semana um trabalhador rural é assassinado. Até agora o Estado não tomou medidas para garantir a segurança no campo. “Recebemos a Carta Agrária e mais nada. Em um escritório, o papel garante nossos direitos, mas no campo, não”, afirma Antonio Ramirez, um dos muitos camponeses ameaçados de morte no país.

PANAMÁ

Jorge Pereira Filho da Redação A aprovação da Lei de Seguridade Social , que reformula o sistema de aposentadorias, detonou uma nova crise política o Panamá. Por todo o território do país, ecoam protestos contra o presidente Martín Torrijos, eleito em 2004. Os manifestantes estão sendo reprimidos com violência. Até o dia 7, centenas de pessoas haviam sido presas pela polícia, segundo o diário local Panamá América, com dezenas de feridos. A exemplo do que ocorreu em outros países da América Latina, como o Brasil e o México, o governo panamenho reduziu os direitos sociais dos cidadãos por meio de uma reforma no sistema de aposentadorias. A lei, sancionada em 1º de junho, aumenta a idade mínima das aposentadorias de 57 a 60 anos para as mulheres e de 62 a 65 anos para os homens. Além disso, subirão também o valor dos pagamentos feitos ao Seguro Social e o tempo de contribuição mínima, que será de 27 anos.

GREVE GERAL Trabalhadores, estudantes, professores e diversas organizações sociais se aliaram para barrar a lei. Reunidos na Frente Nacional pela Defesa da Seguridade Social (Frenadesso), os opositores da reforma desencadearam greves e protestos em todo o país para pressionar Torrijos a recuar. Vestidos de negro, milhares de manifestantes marcharam pela capital Cidade do Panamá, dia 1º. As paralisações atingem o sistema de saúde e cerca de 20 mil pessoas estão sem atendimento hospitalar em todo o país, segundo a agência Prensa Latina. Já os professores das instituições públicas estão de braços cruzados há uma semana.

CMI

Reforma da Previdência provoca nova crise

Oposição acusa: governo reduz direitos sociais para ampliar Canal do Panamá

A greve também foi abraçada pelos trabalhadores do setor de construção civil, um dos mais ativos nos protestos, que interromperam a construção de pelo menos cem importantes projetos, de acordo com estimativas da Câmara do Comércio, Indústria e Agricultura. Dia 6, as cerca de 50 organizações da Frenadesso decidiram engrossar os protestos, depois do fracasso da tentativa de diálogo com representantes do governo.

PRIVATIZAÇÃO O argumento de Torrijos para reformar o sistema de aposentadorias é o suposto déficit da Caixa de Seguridade Social (equivalente à Previdência), que chegaria a 4,5 bilhões de dólares. O presidente disse que as mudanças são necessárias para evitar o colapso do sistema. Já o dirigente da Frenadesso Genaro López diz que a reforma abre brechas para a privatização do sistema previdenciário e vai reduzir a autonomia da Seguridade Social. Além da questão das aposentadorias, a esquerda panamenha tenta se articular para barrar outros projetos do atual governo: a ampliação

do Canal do Panamá (projeto apoiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento), a assinatura de um Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e a participação no Plano Puebla-Panamá. Destaque para a ampliação do Canal, que promete acirrar os ânimos internos. Segundo a oposição, o governo está reduzindo direitos dos trabalhadores para ter mais verba para empregar no projeto que, por sinal, vai desalojar dezenas de comunidades camponesas. As organizações nacionais rurais denunciam que, enquanto os próprios panamenhos não conhecem os detalhes desse projeto de ampliação, os Estados Unidos e as empresas do comércio marítimo já discutem seu caráter. Recentemente, o chanceler panamenho Samuel Lewis foi aos Estados Unidos discutir justamente a ampliação do Canal com a secretária de Estado local, Condoleezza Rice. O presidente Torrijos foi eleito em 2004, ancorado na imagem de seu pai (Omar Torrijos), general nacionalista que ganhou popularidade ao assinar um acordo em que os Estados Unidos concor-

davam em devolver ao Panamá a administração do Canal. Torrijos viveu boa parte de sua vida nos Estados Unidos, onde fez curso secundário e universitário e trabalhou como gerente administrativo da McDonald’s Corporation em Chicago. O Panamá é um país estratégico para os Estados Unidos, entre outros fatores, por ser a principal rota marítima com a Ásia por meio do Canal que une os oceanos Atlântico e Pacífico. Não por acaso foi uma das nações que mais registrou intervenções militares estadunidenses (veja quadro abaixo). A importância do Canal tem ganhado dimensão ainda com o crescimento econômico da Ásia e, em especial, o da China, a ponto de o país ser, hoje, o segundo maior usuário de sua estrutura, depois dos Estados Unidos. Apesar disso, o Panamá arrecada cerca de 900 milhões de dólares anuais com o Canal – valor insuficiente para honrar os cerca de 1,4 bilhão de dólares pagos em serviços anuais da dívida externa, segundo a Caritas Panamá.

PANAMÁ Localização: sul da América Central. O Panamá está situado no ponto mais estreito da América Central, num istmo que a liga à América do Sul. Nacionalidade: panamenha (panameña). Cidades principais: Cidade do Panamá, San Miguelito, David, Colón. Línguas: espanhol (oficial). Divisão administrativa: 9 províncias e 3 reservas indígenas autônomas. População: 2,8 milhões (1997) Moeda: balboa. Religiões: cristianismo 90% (católicos 80%, protestantes 10%), islamismo 5%, bahaísmo 1%, judaísmo 0,3%, outras 3,7% (1992).

EUA-Panamá: história de intervenções 1895 – Tropas estadunidenses desembarcaram no porto de Corinto, quando o país ainda era uma província da Colômbia; 1901-14 – Estados Unidos insuflam movimento pela independência do país, obtida, em 1903; tropas se instalaram e começa a construção do Canal; 1908 – Fuzileiros invadem país durante uma eleição; 1918 – Exército dos EUA ocupam a província de Chiriquí; 1946 – Estados Unidos inauguram, no Panamá, a Escola das Américas, destinada a formar quadros militares de outros países da América Latina; 1958 – Tropas desembarcam após demonstrações dos panamenhos ameaçando a Zona do Canal; 1964 – Tropas enviadas para conter protestos contra a presença estadunidense na Zona do Canal; 1981 – O ditador panamenho Omar Torrijos morre em um acidente aéreo, suspeita-se que a CIA (agência de inteligência dos Estados Unidos) tenha participação no episódio; 1989-90 – Cerca de 25 mil soldados estadunidenses desembarcam no país, a mando de George Bush, para destituir o presidente Noriega, deixando mais de 2 mil panamenhos mortos. Fonte: Visiones Alternativas


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INTERNACIONAL BÓSNIA

Acerto de contas com o passado Gianluca Iazzolino

Dez anos depois do massacre de Srebrenica, onde morreram 8 mil civis, ainda não foram capturados todos os criminosos Gianluca Iazzolino de Sarajevo (Bósnia – Herzegóvina)

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BÓSNIA-HERZEGÓVINA Localização: centro-sul da Europa Nacionalidade: bósnia Cidades principais: Banja Luka, Zenica, Tuzla, Mostar Línguas: servo-croata Divisão administrativa: 100 distritos População: servo-croatas 92,3%, outros 7,7% (1996) Moeda: dinar iugoslavo novo. Religiões: islamismo 40%, cristianismo 50% (ortodoxos sérvios 31%, católicos 15%, protestantes 4%) e outras 10% (1992)

ropa (veja a reportagem abaixo), símbolo da tolerância, cheia de mesquitas, sinagogas, igrejas ortodoxas e católicas-romanas. As ruas da maravilhosa cidade velha, em torno do mercado de Barcasja, estão cheia de mulheres com o véu islâmico ou de rosto descoberto, filhos de turcos e eslavos e quem sabe que etnias mais. Mas os sinais do cerco estão em todas as partes, nos edifícios, nas lápides em campos verdes, na consciência das pessoas.

Cemitério de Sarajevo: dez anos depois do massacre de Srebrenica, a Bósnia ainda acerta as contas com seu passado

da Bósnia, onde mora sua família. Pronunciar o nome de Pale faz ferver o sangue dos muçulmanos da Bósnia. Durante a guerra, era o ponto da partilha dos saques de Ratko Mladic (general sérvio criminoso de guerra) e quartelgeneral das tropas que cercavam Sarajevo. Há um ano a Sfor esteve perto de capturar Karadzic, refugiado na sacristia de uma igreja ortodoxa. No confronto ficaram feridos o padre e seu filho – lenha para a fogueira dos sérvios e da própria Igreja Ortodoxa, desde sempre crítica em relação à Sfor. Além dos 17 quilômetros de estrada montanhosa, um muro de ódio separa Sarajevo de Pale. “Não haverá reconciliação se os criminosos de guerras não forem entregue a Haia”, diz Spahic. “A fúria nacionalista é ainda forte e a Constituição Provisória não favorece a normalidade”, acrescenta. Da mesma opinião é Joze Pirjevec, professor de História dos Países Eslavos na Universidade

FALTA VONTADE POLÍTICA Há o desemprego, a crise econômica e a falta de perspectivas, mas os bósnios não perdem o seu bom humor – “talvez achem petróleo aqui”, dizem. Os veteranos não recebem pensão, muitos mendigam na rua, enquanto os jovens enchem os cafés, falam inglês onde chegam os turistas, já precedidos dos negócios de mau gosto. Nas barracas do mercado de Barcasja se encontram chaveiros feitos com projéteis. Turistas especiais são os soldados do corpo internacional da Sfor (Forças de Estabilização), empenhados na reconciliação e na caça aos criminosos de guerra, mas vistos com ceticismo pelas pessoas. Muitos se perguntam como é possível que, em nove anos, 12 mil soldados de 27 países não conseguiram encontrar os criminosos sérvios bósnios. “A Sfor é só um instrumento”, diz Ibrahim Spahic, membro do Parlamento bósnio e presidente do International Institute for Peace. “O problema é a vontade política.” O garoto Sunny, que consegue alguns trocados como guia, convida os turistas a ficar de olhos abertos: “Se virem um homem de cabelos desalinhados, não o deixem escapar: vale 5 milhões de dólares.” O homem de cabelos desalinhados é Radovan Karadzic, ex-psiquiatra, líder nacionalista sérvio, procurado pelo TPI por crimes de guerra. Estaria escondido na República Sérvia, talvez em Pale, ex-capital dos sérvios

Bósnios sofrem com o desemprego e a crise econômica

de Trieste. “Não acho que a sentença de genocídio pelo massacre de Srebrenica possa dar um novo impulso à caça aos criminosos de guerra. Dificilmente Karadzic e Mladic serão capturados. Por questões internas, mas também externas.” O próprio primeiro-ministro sérvio Kustunica, saudado por muitos como o restaurador da democracia no pós-Milosevic, sempre foi frio em relação ao TPI. Quando Pirjevec fala de pressões externas, pensa sobretudo na França e lembra um episódio ocorrida em 1995, quando um avião francês Mirage tinha sido abatido pela artilharia antiaérea sérvia e os pilotos capturados e em seguida libertados pelas tropas de Mladic. “Falou-se muito de acordos estabelecidos em 1995 pela libertação dos dois militares, oferecendo-se em troca a imunidade aos criminosos. O governo Chirac sempre negou ter feito esses acordos, mas muitos parlamentares, sobretudo da oposi-

ção de esquerda, afirmaram que os acordos realmente foram feitos”. A Bósnia aceita assim a comunidade internacional: torcendo o nariz. Mesmo porque o desenvolvimento futuro está ligado às garantias de estabilidade. Muitas vezes, o representante da comunidade internacional na Bósnia, Paddy Ashdown, tem exaltado os resultados alcançados, “impensáveis há poucos anos”. Mas a Bósnia está longe de ser um país estável. “A estrutura política imposta em Dayton faz da Bósnia nada mais do que uma democracia étnica”, diz Spahic, aludindo à atual rotação semestral na presidência de eminentes croatas, muçulmanos e sérvios e à rígida divisão dos Exércitos e estruturas do governo para cada comunidade. “Desejamos uma solução para 2010, um feliz êxito do processo de reconciliação. E esperamos que a Europa não nos abandone e reconheça na Bósnia um pedaço dela própria”.

Assim chamada há séculos, Sarajevo representou, até a dissolução da Iugoslávia em 1992, um modelo de convivência interreligiosa. Em poucos quilômetros quadrados conviviam lado a lado muçulmanos, católicos-romanos, ortodoxos e inclusive os judeus, que haviam encontrado na tolerante Bósnia um refúgio das repressões na Espanha católica romana dos anos 1500. Os otomanos haviam conquistado essas terras no seu avanço rumo ao coração da Europa, no século 15, e não se preocupavam em impor uma única fé. A Península Balcânica, assim chamada por causa da palavra balkan, que em turco quer dizer montanha, ficou sendo desde então o tabuleiro em que se jogava a partida entre o Império Austro-Húngaro, uma das maiores potências européias continentais, e o Império Otomano, que tratavam os povos que viviam naquelas montanhas, com sua cultura, língua e tradições, simplesmente como súditos a serem submetidos. No final dos anos 1800, a Sérvia-Bósnia, considerada um único território (embora a Bósnia fosse de maioria muçulmana e a Sérvia, ortodoxa) passou para a administração dos Habsburgos. Exatamente em Sarajevo, a 28 de junho de 1914, ocorreu a morte dos dois impérios, e também da velha Europa: naquele dia, o nacionalista sérvio Gavrilo Princip matou o

Gianluca Iazzolino

A Jerusalém da Europa

Gianluca Iazzolino

on’t forget Srebrenica lê-se num muro da Sniper Alley, a alameda do franco-atirador, sob um grande mural. Se há alguma coisa impossível em Sarajevo é esquecer. Pode-se camuflar a lembrança com a ironia – como os bósnios se vangloriam de saber fazer – ou com o silêncio, ou desviando o olhar dos muros crivados de buracos de bala. Mas não se pode esquecer Sarajevo e seu cerco, Srebrenica e seu massacre. Sobretudo nessa alamenda, o lugar-símbolo do martírio de Sarajevo. Na sua longa noite, que durou mil dias, de 1992 a 1995, por sobre essa rua, na parte nova da cidade, rumo ao aeroporto, os sérvios, postados sobre as montanhas em volta, seguiam na mira de seus fuzis os bósnios muçulmanos empenhados nas atividades de todos os dias – crianças que andavam de bicicleta, homens e mulheres que se agarravam a uma aparência de normalidade numa cidade em guerra. Os sérvios atiravam e matavam. Difícil dizer quantos morreram, sobre esse asfalto, mas ainda hoje se vêem flores deixadas por mãos desconhecidas nos locais em que alguém foi morto. Dez anos depois, a Bósnia ainda acerta as contas com o seu passado. A guerra não pode ser considerada terminada enquanto todos os criminosos não forem capturados, opinam cidadãos e políticos. Diante do Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia (Holanda), continuam se apresentando os criminosos. O último foi Vujadin Popovic, ex-coronel do Exército sérvio da Bósnia, acusado dos massacres em Srebrenica, em 1995, na qual foram trucidados pelo menos 8 mil civis muçulmanos. O ex-coronel é o 13° réu a se apresentar voluntariamente aos juízes, dentro de uma campanha lançada pelo governo do primeiro-ministro sérvio Vojislav Kostunica para o comparecimento espontâneo dos acusados. Desse modo, a Sérvia pós-Milosevic trafica o seu passado de conivência com os sérvios da Bósnia por um futuro de boas relações com a União Européia. Mas o problema, nos Bálcãs, é que não existe um único passado. A República Sérvia, o pedaço da Bósnia entregue pelos acordos de Dayton aos sérvios, não reconhece suas responsabilidades pelo genocídio de Srebrenica. E basta uma fronteira para chamar de heróis os que, na Bósnia, são chamados de criminosos de guerra. Os bósnios, sobretudo os jovens, gostariam de não falar mais sobre esse assunto. No ano passado houve o vigésimo aniversário das Olimpíadas de Inverno, que em 1984 levaram a cidade ao centro do mundo, e essa data é lembrada como uma idade de ouro, lembrada em camisetas para tornar novamente Sarajevo a Jerusalém da Eu-

Durante séculos, em Sarajevo prevaleceu a tolerância entre as várias religiões

arquiduque da Áustria Francisco Ferdinando, como gesto de revolta contra o domínio sobre a Sérvia. A Áustria declarou guerra à Sérvia e uma por uma as potências européias foram envolvidas no conflito. Começava a Segunda Guerra Mundial. Depois da formação da Iugoslávia, no curso dos anos 1900, as diversas etnias foram mantidas juntas, graças a políticas inteligentes, mas também ao punho de ferro que o marechal Tito não se poupou de usar. As transferências de populações de uma parte a outra do país, planificadas para exterminar as veleidades separatistas, tiveram o efeito oposto de reforçar os nacionalistas. No início dos anos 90,

quando o colapso da União Soviética privou a Iugoslávia de seu principal aliado, a Península Balcância foi despedaçada por forças centrífugas que buscaram sair do controle de Belgrado, a capital em território sérvio. E os ódios deram origem a um dos mais ferozes conflitos em solo europeu, no qual os países europeus e as instituições internacionais deram uma péssima prova de diplomacia. Tanto que, na época, foram muitos a afirmar, ecoando um livro popular do jornalista italiano Gigi Riva e de Zlatko Dizdarevic, que “a Organização das Nações Unidas morreu em Sarajevo e foi enterrada em Srebrenica”. (GI)


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INTERNACIONAL SUDÃO

Genocídio sob investigação internacional da Redação

O

procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Luis Moreno Ocampo, anunciou, dia 6, a abertura de um inquérito sobre as atrocidades cometidas na região sudanesa de Darfur depois de julho de 2002. No dia anterior, Ocampo havia recebido em Nova York, das mãos do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, uma lista sigilosa de pessoas acusadas por uma comissão internacional de inquérito de terem cometido crimes de guerra em Darfur. Segundo a imprensa independente sudanesa, esta lista conteria 51 nomes, entre eles dirigentes do governo sudanês. No mesmo TPI – Tribunal criado para julgar os respon- dia, o TPI, em sáveis por genocídio, Haia, Holanda, crimes de guerra e havia recebido contra a humanidade. oficialmente nove caixas contendo o relatório da comissão internacional de inquérito sobre as violações dos direitos humanos em Darfur, que já causaram a morte de, pelo menos, 400 mil pessoas e o deslocamento forçado de 2,5 milhões. Ocampo ressaltou que “esta investigação será imparcial e independente e se concentrará nos indivíduos que têm a maior responsabilidade nos crimes cometidos em Darfur. Disse também que a investigação exige a cooperação das autoridades nacionais e internacionais. O governo sudanês se negou até agora a colaborar com o TPI porque considera que a Justiça nacional é a que deve se encarregar de perseguir e julgar os suspeitos de ter cometido tais delitos. Ocampo falou sobre a necessidade de colocar fim à violência

Salah Omar/ AFP/ Folha Imagem

Tribunal Penal abre inquérito sobre as atrocidades cometidas na região de Darfur; governo se nega a colaborar

REPÚBLICA DO SUDÃO Localização: centro-leste da África Nacionalidade: sudanesa Cidades principais: Cartum (capital), Omdurman, Cartum do Norte, Port Sudan, Kassala Línguas: árabe (oficial), inglês e línguas locais Divisão administrativa: 26 Estados População: 32,4 milhões Moeda: dinar sudanês Religiões: islamismo 74,7% (sunitas), crenças tradicionais 17,1%, cristianismo 8,2%. Muçulmanos ao norte e as outras religiões se concentram no sul do país

População de Darfur comemora decisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) de investigar os crimes de guerra

em Darfur e promover a justiça na região. Para isso, afirmou que “os mecanismos tradicionais africanos podem ser um instrumento importante para complementar os esforços de paz e conseguir a reconciliação local”. O TPI tem competência para julgar crimes de guerra e contra a humanidade cometidos no ter-

Bush se mantém distante de tragédia Jim Jobe de Washington (EUA) O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, quebrou um silêncio de seis meses sobre a crise em Darfur, ao reiterar sua crença de que ali está ocorrendo um genocídio. Porém, nas declarações que fez no final de maio, não deu nenhum sinal de que seu governo irá realizar ações mais contundentes para deter o massacre. “Esta é uma situação séria”, disse o presidente, durante uma sessão de fotos para a imprensa, junto com seu colega sul-africano Thabo Mbeki, dia 2. “Como vocês sabem, o ex-secretário de Estado, Colin Powell, com minha autorização, declarou a situação como genocídio”, afirmou Bush. O presidente estadunidense informou que realiza consultas com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e outros aliados ocidentais, tentando aumentar o apoio logístico aos 2.300 integrantes da missão militar e policial da União Africana (UA) em Darfur. Numerosos ativistas de direitos humanos e pelo desenvolvimento da África, cada vez mais preocupados com a aproximação de Washington ao regime da Frente Islâmica Nacional (FIN), partido governamental no Sudão, não se deixaram impressionar pelas declarações de Bush. “Essas afirmações são desesperadamente oportunistas”, disse Eric Reeves, professor do centro universitário Smith College, que desempenhou um importante papel na campanha internacional para chamar a atenção sobre a tragédia de Darfur. “Parece que Bush tenta se esconder por trás de Colin Powell”, disse Ann-Louise Colgan, subdiretora da organização estadunidense Africa Action. “É uma resposta completamente insuficiente para um

genocídio dizer que está enviando um avião de carga”, completou. “A prioridade é proteger a população. Neste momento, nada menos do que uma intervenção internacional poderia conseguir tal objetivo”, ressaltou Ann-Louise.

PROTESTO As declarações de Bush foram feitas em meio a uma crescente pressão sobre o governo estadunidense para que adote ações após dois anos e meio de campanha contra os insurgentes em Darfur, atacados por forças governamentais e pelos Janjaweed, a milícia ligada ao governo sudanês. Cerca de 80 organizações religiosas e de direitos humanos se queixaram da Casa Branca, por meio de uma carta aberta. Elas propõem que o Conselho de Segurança da ONU autorize a força da UA a utilizar armas para proteger a população civil. Com o argumento de que o genocídio é uma preocupação mundial, as organizações, entre elas a Africa Action, o Conselho Nacional das Igrejas dos Estados Unidos e a Médicos pelos Direitos Humanos, também pediram a Bush uma “forte mobilização internacional” para ajudar no trabalho da UA. O secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, havia viajado a Darfur para expressar sua solidariedade. Mas, após Annan ter deixado o Sudão, as autoridades detiveram seu intérprete sudanês e os dois principais ativistas em Darfur da filial holandesa da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras. Por sua vez, o subsecretário de Estado estadunidense, Robert Zoellick, que visitará Darfur dia 11, disse que o regime de Cartum “trabalha duro para encontrar uma solução política” para a crise humanitária. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

ritório de seus países-membros a partir de 2002. Além disso, a jurisdição também permite ao tribunal julgar esses crimes em qualquer Estado se a situação tiver sido comunicada à corte pelo Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU), como ocorreu no caso de Darfur.

O CS decidiu no dia 31 de março, mediante a resolução 1.593, transmitir ao TPI a situação em Darfur para que investigasse se foram cometidos crimes de guerra nessa região sudanesa desde julho de 2002, data a partir da qual a corte poderia julgar estes crimes. É a primeira vez que o CS leva um caso ao TPI, que foi criado para julgar os

responsáveis por genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. “É uma decisão histórica”, comentou Richard Dicker, diretor para assuntos de justiça internacional da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW). “A decisão do procurador de investigar os crimes em massa e as violações em Darfur começa a fazer girar a roda da justiça para as vítimas”, acrescentou. Apesar de contrário ao TPI, os Estados Unidos aceitaram pela primeira vez que se aborde o tema no Conselho de Segurança da ONU por esses crimes cometidos em Darfur. (Com agências internacionais)

REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO

Transnacionais têm lucros com a guerra pelo ouro Moyiga Nduru de Johannesburgo (África do Sul) A disputa por ouro entre milícias da República Democrática do Congo que contaram com apoio de Uganda e Ruanda levou a graves abusos, advertiu, dia 2, a organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW). As milícias apoiadas por esses dois países lutam pelo controle das grandes jazidas de ouro no nordeste do país, criando obstáculos às gestões para acabar definitivamente com a guerra civil, diz o relatório A maldição do ouro. Entre 2002 e 2004, cerca de 2 mil civis foram assassinados e dezenas de milhares tiveram de deixar suas casas na batalha pro Mongbwalou, uma das principais áreas de mineração. Os combatentes procuravam enriquecer e financiar seus esforços de guerra com o ouro.

RECEITAS ILEGAIS Essa luta foi o contexto no qual foram cometidos numerosos assassinatos, torturas e violações, segundo os autores do documento da HRW. As milícias Frente Nacionalista e Integracionista (FNI), próxima à Uganda, e a União de Patriotas Congolenses, apoiada pelo Ruanda) ocuparam a República Democrática do Congo durante a guerra civil que imperou no país entre 1998 e 2003. Investigações conduzidas pela Organização das Nações Unidas imputam a Ruanda e Uganda a exploração ilegal de recursos da RDC durante o conflito. Os soldados ugandenses, que “assumiram o controle direto de áreas ricas em ouro para extrair o mineral em seu benefício, costumavam surrar e prender arbitra-

riamente quem desobedecia suas ordens”, diz o relatório. De acordo com a HRW, passaram para mãos ugandenses mais de 9 milhões de dólares em ouro. No período de pós-guerra, a companhia mineira AngloGold Ashanti se instalou perto de Mongbwalu, depois de dar “apoio financeiro e logístico” à FNI, apesar dos maus antecedentes desse movimento em matéria de direitos humanos e de se manter à margem das negociações de paz. Esta filial do grupo mineiro Anglo American pagou, supostamente, 8 mil dólares à FNI para poder se estabelecer nesse local.

FORÇA INTERNACIONAL O ouro extraído com ajuda de grupos armados continua sendo exportado para Uganda, onde é colocado no mercado internacional. Isso converteu esse minério na terceira exportação do país, apesar de em seu território não possuir quantidades compatíveis. “As estatísticas oficiais demonstram que a produção de ouro de Uganda representa menos de um por cento das exportações do país”, disse Anneke Van Woudenberg, da HRW. “O ouro é tirado da República Democrática do Congo e quando chega a Uganda é ‘legalizado’ com a emissão de um certificado que permite sua exportação para a Europa e outras regiões”, acrescentou. As tropas ugandenses cruzaram a fronteira pela primeira vez para contribuir para a queda do ditador Mobutu Sese Seko, nos anos 90, e depois voltaram-se contra Laurent Kabila, o guerrilheiro que assumiu o poder. Quando Uganda e Ruanda começaram a apoiar milícias rivais

REP. DEMOCRÁTICA DO CONGO Localização: centro-sul da África Nacionalidade: congolesa Cidades principais: Kinshasa (capital), Lubumbashi, Mbuji-Mayi, Kisangani, Kananga. Línguas: francês (oficial), lingala, quissuaíle, quiluba, quicongo Divisão administrativa: 11 províncias. População: 51,7 milhões Moeda: Novo zaire Religiões: cristianismo 87,2% (católicos 41%, protestantes 32%, seitas cristãs africanas 13,4%, outros cristãos 0,8%); crenças tradicionais e outras 11,6%; islamismo 1,2%

de Kabila, o líder congolense e seu sucessor e filho, Joseph Kabila, pediu ajuda a Angola, Namíbia e Zimbábue. Hoje, uma força internacional de 17 mil soldados está espalhada pelo vasto território da RDC para garantir a lei e a ordem. O governo interino de unidade nacional instaurado pelos acordos de paz é encabeçado por Joseph Kabila. As versões mais aceitas indicam que a guerra civil deixou 4 milhões de mortos, tanto em razão dos combates quanto pela fome e pelas doenças. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)


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AMBIENTE DIREITO À TERRA

Os quilombolas vencem uma batalha Marcelo Netto Rodrigues da Redação

Úrsula Tavares

Pressão de outras comunidades e agilidade do secretário estadual de Justiça ajudam os negros de Caçandoca A pressão para a suspensão do despejo e para a rápida titulação que beneficie os quilombolas veio de todos os lados. Mas o empenho do recém-empossado secretário da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Hédio Silva Júnior, advogado ativista do movimento negro, parece ter sido determinante na análise favorável do desembargador. Com apenas quatro dias no cargo, o secretário foi ao quilombo, e pediu ao Itesp que entrasse com medida cautelar no Tribunal de Justiça.

D

escendentes de escravos remanescentes de um quilombo de 124 anos, em Ubatuba (litoral norte do Estado de São Paulo), quase foram despejados por uma imobiliária de condomínios de luxo, na semana passada. Apesar de a Constituição lhes assegurar o direito à posse da terra. O prazo para a expulsão das 44 famílias da comunidade de Caçandoca (reconhecidas como quilombolas, em laudo antropológico do ano 2000) já havia expirado quando o Tribunal de Justiça de São Paulo acatou ação cautelar proposta pelo Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), cancelando a liminar de reintegração de posse emitida por um juiz local, em favor da Urbanizadora Continental – uma imobiliária que alega ter comprado 210 dos 890 hectares da área em 1974, e que já cercou, por conta própria, 410 hectares. A suspeita Quilombo – Palavra de origem africana, sobre a falsida língua banto dade do título (kilombo), que signide propriedade fica acampamento, fortaleza de difícil apresentado acesso, onde nepela imobiliágros que resistiam ria e a localizaà escravidão convição valorizada viam com brancos pobres e indígenas. do quilombo O banto encontra são as razões suas origens em mais aparentes países africanos como Angola, Conda disputa. Um go, Gabão, Zaire e dos trechos Moçambique. da área fica à beira de uma praia paradisíaca, rodeada pela Mata Atlântica, justamente ao lado de um condomínio de casas de veraneio de alto padrão construído pela própria Continental nos anos 70.

SOLIDARIEDADE

Comunidade de Caçandoca, no litoral norte de São Paulo, contou com o apoio de quilombolas de outras regiões

HERDEIROS De seu lado, os quilombolas apresentaram um inventário de 1881, escrito pelo dono da fazenda, o português José Antunes de Sá que, às portas da morte os incluiu entre os seus herdeiros. Sá, que

No dia 2, no bairro Três Figueiras, na capital gaúcha, cinco famílias de uma comunidade quilombola acordaram sem ter para onde ir. A família Silva ocupa 4.600 m2 dentro de um dos bairros mais nobres da cidade de Porto Alegre. A área, ocupada há mais de meio século por ex-escravos, é reconhecida como único quilombo urbano do Brasil e, há anos, tem sido motivo de disputa judicial. Procurando saber quem reivindica a posse da área, a reportagem do Brasil de Fato chegou aos nomes de Emílio Rothfuchs Neto e José Antonio Mazza Leite, que teriam comprado a propriedade de uma empresa responsável pelo loteamento do local. Essa, por sua vez, alega ter adquirido o lote de alguém, que comprou de outro alguém, lá em 1950. José Antonio Mazza Leite, Emílio Rothfuchs Neto e Marília Coelho de Souza Rothfuchs reivindicaram a posse dos lotes na Justiça em abril de 1998. Em 1999, o Tribunal de Justiça expediu decisão favorável aos requerentes, sem possibilidade de recursos.

ARTICULAÇÃO Diante disso, em maio, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/RS (Incra) pediu o encaminhamento do processo para a Justiça Federal, mas o juiz Luiz Gustavo Pedroso Lacerda determinou que fossem atendidos os autores da ação, e marcou para o dia 2 a retomada de posse. Na manhã do dia marcado, o

O primeiro quilombo urbano

Felipe Rech

Especulação imobiliária expulsa comunidade Felipe Rech e Laura Dalla Zen de Porto Alegre (RS)

tivera um romance com a escrava Tomázia, parteira da fazenda, alforriou os negros e dividiu a terra entre os descendentes delas – que também eram seus. Antônio dos Santos, 58, hoje líder da comunidade, é um deles. “Não sabemos nem a quem devemos agradecer, já que os órgãos públicos e a comunidade trabalharam juntos. Espero que o desfecho de nossa situação seja uma abertura para os demais quilombos no Brasil, e que terra quilombola não seja mais tratada como terra comum”. Das 2.228 comunidades remanescentes de quilombos no país, apenas 70 estão com a situação fundiária regularizada.

considere o título válido, a imobiliária não terá direito à área”, garante Carlos Henrique Gomes, assessor especial do Itesp, citando o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de 1988, que reconhece a propriedade definitiva “aos remanescentes dos quilombos que estejam ocupando suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Felipe Rech

Enquanto a ação discriminatória movida pelo governo do Estado (que vai dizer se o título de propriedade da Continental é autêntico ou não, e se a imobiliária tem direito à indenização) não é concluída, o Incra, paralelamente iniciou, dia 2, o processo de desapropriação da área, ao publicar portaria que a reconhece como território quilombola. A decisão do Incra se baseia no decreto 4887/03, que prevê ações conjuntas entre o órgão, a Fundação Cultural Palmares e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). “Mesmo que, ao final, o juiz

A atitude de Silva Júnior deu visibilidade maior à campanha que vinha sendo encabeçada pela Frente Parlamentar Pró-Quilombola, composta entre outros, pelos deputados estaduais petistas Simão Pedro, Hamilton Pereira, Tiãozinho e Carlinhos Almeida, pelo coordenador dos Agentes de Pastoral Negros, Edgar Amaral e pelo representante do Movimento Negro, Vicente Ferreira Santos. Além disso, também surtiu efeito a mobilização de outras comunidades quilombolas, entre elas a de Ivaporonduva, do Vale do Ribeira (litoral sul de São Paulo) cujos representantes permaneceram em Caçandoca durante vários dias até que o risco de despejo passasse. Caçandoca Caçandoca – Apeacabou sendo sar de a palavra ser confundida com algo escolhido corelacionado a casa, mo local do devido ao sufixo próximo en“oca” (casa em tupi-guarani), concontro naciocluiu-se que o termo nal de comunisignifica “gabão de dades remanesmato” numa referência ao país do centes de quicentro-oeste africano lombos, de 22 Gabão. a 24 de julho.

A família Silva ocupa há mais de meio século o único quilombo urbano do Brasil

Daniel Cassol de Porto Alegre (RS)

Das 2.228 comunidades, apenas 70 estão com a situação fundiária regularizada

oficial de Justiça Vitor Petrucci chegou ao local com um mandado de despejo de três famílias da comunidade, que vivem na área de 1.500 m2 reivindicada no processo. No entanto, segundo os moradores, os réus indicados não moram nas casas citadas, o que fez com que a ordem, além de extrapolar a ação, afetasse cinco famílias, não três. Enquanto o oficial providenciava a medição do terreno, a comunidade iniciou uma articulação envolvendo políticos, antropólogos, advogados e representantes do movimento negro. E ergueu barreiras de pneus e galhos secos nas duas entradas principais do terreno, para impedir a execução da ação. Por volta do meio-dia, os moradores atearam fogo às barricadas.

IDAS E VINDAS O advogado José Euclésio dos Santos, representando os autores do processo avisa que seus clientes não querem acordo, e tampouco abrem

mão do terreno. Os integrantes da comunidade não escondiam sua indignação: “Tudo por causa dessa história de dinheiro. Vêm aqui para nos tirar das nossas terras! O que é a terra? Capaz de alguém morrer por isso! Terra não se leva para o caixão!” Durante a tarde, três mandados de segurança foram expedidos: um em nome do Incra, outro do Movimento Negro Unificado, e o terceiro em nome do Ministério Público Federal. Até o início da noite do dia 2, apenas o mandado do Incra tinha sido apreciado, e indeferido. A retirada das famílias quilombolas, suspensa no final da tarde na expectativa de decisão sobre o mandado de segurança, deveria ocorrer na manhã do dia 3. Nesse dia, o Incra emitiu um título provisório de posse, mas sem efeito legal para sustar a decisão de despejo. Ficou acordado que nenhum integrante da comunidade poderia ser despejado até o dia 6.

Na década de 60, Lori da Silva estudava em uma vaga para estudantes carentes no Colégio Anchieta, um dos mais tradicionais e caros de Porto Alegre, que fica próximo à sua casa. Muitos anos mais tarde, quando foi buscar um histórico escolar, foi barrado na porta e teve de convencer os seguranças de que, sim, tinha estudado lá. “Hoje, negro só entra no colégio se for para trabalhar”, diz Silva. Ele é um dos netos de Naura da Silva e Alípio dos Santos, casal de escravos que, no início do século passado, iniciou o Quilombo Silva, hoje uma comunidade de 12 famílias que está sendo esmagada por condomínios de luxo do bairro Três Figueiras. “Já perdemos muitas terras. Não vamos sair daqui”, garante Lígia Maria da Silva, 48 anos, irmã de Lori e uma das líderes da comunidade. Esta comunidade foi o primeiro quilombo urbano a ser reconhecido, em 2003, pela Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura. Agora, é o primeiro do gênero a receber o termo de reconhecimento de posse pelo Incra. O documento é um título provisório, que assegura

que o órgão federal está trabalhando para conseguir o reconhecimento da terra como de remanescentes de quilombos, o que se constitui em mais um instrumento a favor da comunidade. “Na prática, significa a consolidação da situação de posse pelos quilombolas da área. Agora, qualquer matéria envolvendo questionamento sobre a validade do título é de competência da Justiça Federal”, explica Onir de Araújo, advogado do Movimento Negro Unificado. Segundo ele, só em Porto Alegre existem oito comunidades remanescentes de quilombos na área urbana, situação que se repete em todas as capitais do Brasil. No Rio Grande do Sul, existem, atualmente, 120 quilombos. A área onde se localiza o Quilombo Silva é uma das mais nobres da capital gaúcha. Uma casa em um condomínio em construção na região, invadindo parte do quilombo, não sai por menos de R$ 1,2 milhão. Para Araújo, há diferenças na luta dos quilombos urbanos em relação às áreas rurais, mas o desafio é o mesmo. “Em termos de relação de classe, enfrentamos um mesmo grupo. Os proprietário de mansões e condomínios fazem parte de uma mesma elite”, afirma.


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DEBATE LUTA ANTINEOLIBERAL

Força e debilidade dos movimentos sociais s movimentos sociais têm sido os principais protagonistas na luta de resistência contra o neoliberalismo em toda a América Latina. Isso tem acontecido também no Brasil. Duas são as principais razões: em primeiro lugar, a descaracterização ideológica e política de grande parte dos partidos tradicionais da esquerda, que foram se envolvendo cada vez mais na luta institucional e perdendo contato com as lutas sociais, ao mesmo tempo que foram induzindo temas da chamada “governabilidade”. Por outro lado, o neoliberalismo termina sendo, essencialmente, uma máquina de expropriar direitos. Dessa maneira, os movimentos sociais se tornaram os principais bastiões da luta de resistência, por representar diretamente os setores sociais mais atingidos por essas políticas.

O

o movimento dos trabalhadores rurais, tendo no MST seu eixo fundamental, tem sido o responsável pelas mobilizações populares contra as políticas neoliberais No Brasil, dos dois principais ramos do movimento social – o sindical e o rural –, tem sido este o fator de maior resistência. O movimento sindical foi mais diretamente atingido pelas políticas econômicas que geraram desemprego e precarização das relações de trabalho, ao mesmo tempo que a divisão interna com correntes de direita ajudou a enfraquecer a capacidade de ação dos sindicatos. Enquanto isso, o movimento dos trabalhadores rurais, tendo no MST seu eixo fundamental, tem sido o responsável pelas mobilizações populares contra as políticas neoliberais, valendo-se da particularidade da luta pela terra – que permite as ocupações e a posta em funcionamento dos assentimentos –, assim como pela força ideológica que o movimento foi assumindo ao longo do tempo. Essa força dos movimentos sociais apresenta elementos de força e de debilidade para a luta contra o neoliberalismo. A força vem da representatividade e da capacidade de mobilização de organizações diretamente vinculadas aos trabalhadores. A debilidade, do fato de que, sendo movimentos sociais, não podem se constituir em alternativas políticas de governo e de poder. O neoliberalismo não é apenas uma política econômica, mas um projeto hegemônico, que contêm

valores essenciais do capitalismo liberal – o consumismo, o egoísmo, o individualismo, o mercantilismo – e que reorganiza não apenas as relações sociais, mas também as relações de poder. O neoliberalismo é a cara assumida pelo capitalismo na sua fase de hegemonia econômica do capital financeiro. Ele se articula internacionalmente com a hegemonia estadunidense, tendo os organismos financeiros e comerciais internacionais como seus braços de poder – o FMI, o Banco Mundial, a OMC, entre eles. Conta com a ideologia do “livre-comércio” no plano econômico e com a “luta contra o terrorismo” nos planos político e militar. Se constitui assim em um sistema de poder, que vai da economia à política, passando pela ideologia e pelos planos tecnológico e militar. O instrumento essencial de implementação do neoliberalismo é a desregulamentação, isto é, a eliminação das travas à livre circulação do capital. Assim, a privatização significa desregulamentação, porque tira do Estado a propriedade de empresas, para jogá-la no mercado, para quem tiver mais recursos se apropriar delas. A abertura para o mercado internacional também representa desregulamentação, porque elimina as travas para a entrada e saída de capitais e de mercadorias, acelerando o “livre-comércio”. As políticas chamadas de “flezibilização laboral” significam, na verdade, políticas de promoção da precarização das relações de trabalho, tirando direitos essenciais aos trabalhadores e submetendo-os à sanha voraz do capital.

A luta contra o neoliberalismo é uma luta pela ruptura do modelo econômico neoliberal, eixo do modelo neoliberal, tornando os ministérios econômicos a chave do poder e do tesouro dos governos que se submetem à lógica neoliberal A luta contra o neoliberalismo tem que ser uma luta global, tanto no sentido de ter que abranger todas as esferas em que ele se articular, como no sentido de ser uma luta internacional, uma luta global. A luta contra o neoliberalismo é uma luta pela ruptura do modelo econômico neoliberal, eixo do modelo neoliberal, tornando os ministérios econômicos a chave do poder e do tesouro dos governos que se submetem

possível constituir esse bloco de forças antineoliberal, que se ancora em grande parte na ideologia liberal predominante atualmente nas nossas sociedades.

Esta é uma tarefa para uma direção política, seja ela de caráter partidário ou alguma forma similar que possa atuar no campo político

ilustrações: Kipper

Emir Sader

à lógica neoliberal. Essa ruptura tem que enfrentar as armadilhas colocadas pelas políticas neoliberais nos planos nacional e internacional – das quais a mais clara é a fuga de capitais, a partir do momento em que esses capitais sentem seus interesses contrariados –, elaborar uma estratégia de saída do modelo e ir, paralelamente, colocando em prática uma outra política. Esta alternativa tem necessariamente que dispor de políticas de regulação econômica, que travem a livre circulação do capital especulativo, valendo-se de modalidades com as propostas pela Taxa Tobin, que prevê um imposto sobre toda movimentação de capital financeiro. Esta política requer, para ser mais forte, de uma integração regional, que leve a cabo conjuntamente essas medidas. O governo da Venezuela tomou medidas similares a essa, incluindo a centralização do câmbio, para combater as fugas de capitais e os movimentos especulativos do capital, com grande sucesso, demonstrando sua possibilidade e sua efetividade. O combate a essas políticas, a criação de uma força social, política e ideológica que lhe dê sustentação e se oponha ao bloco constituído por ela. É necessário unir ao conjunto dos trabalhadores da cidade e do campo, como

O liberalismo avançou enormemente no Brasil ao longo da década passada, desde o governo Collor, passando pelos dois mandatos de FHC e pela política econômica mantida pelo governo atual

A grande mídia privada é seu instrumento essencial de divulgação, deixando o movimento popular e a esquerda com poucos espaços de difusão de suas opiniões, suas idéias e suas propostas forças motrizes dessa luta e buscar os aliados para que o bloco possa ter capacidade hegemônica e ao mesmo tempo subtrair bases populares de apoio ao bloco neoliberal, assim como neutralizar outras forças. Precisa obter o apoio de amplos setores das camadas médias, dilaceradas diante da imensa crise social que afeta a toda a sociedade, assim como procurar alianças táticas com setores do capital produtivo – antes de tudo pequenas e médias empresas, mas também as outras empresas interessadas na distribuição de renda porque comprometidas com o consumo interno de massas. Essa aliança não será possível, assim como a ruptura do modelo neoliberal, sem romper o monopólio privado que fabrica a opinião pública de maneira quase que totalitária. O liberalismo avançou enormemente no Brasil ao longo da década passada, desde o governo Collor, passando pelos dois mandatos de FHC e pela política econômica mantida pelo governo atual. A grande mídia privada é seu instrumento essencial de divulgação, deixando o movimento popular e a esquerda com poucos espaços de difusão de suas opiniões, suas idéias e suas propostas. Sem mudanças radicais na opinião pública, nos consenso hegemônicos estabelecidos, dificilmente será

Por esse conjunto de tarefas indispensáveis para a superação do neoliberalismo, os movimentos sociais não conseguem sozinhos dar conta desse imenso projeto de construção de um projeto alternativo. Eles têm o papel essencial de mobilização social, de divulgação das criticas às políticas neoliberais, de plataformas alternativas, mas não se pode pedir a esses movimentos que desempenhem o papel de direção política, de construção teórica das bases das alternativas, de luta ideológica, de construção das alianças sociais, de construção da força política de um projeto hegemônico alternativo. Esta é uma tarefa para uma direção política, seja ela de caráter partidário ou alguma forma similar que possa atuar no campo político, ao mesmo tempo que articular o conjunto da força acumulada nos planos econômico, social e ideológico. Experiências como aquelas dos movimentos indígena e camponês equatoriano que, com sua extraordinária capacidade de mobilização e de luta, conseguiram derrubar os três últimos presidentes daquele país, demonstram como à falta de uma alternativa política própria, terminam delegando o exercício do governo a personalidades de outras forças políticas, que acabam seguindo uma lógica diferente e até mesmo contraditória com as desses movimentos. No caso do último desses presidentes, Lucio Gutiérrez, tinha sido eleito com o apoio essencial dos movimentos sociais, porém ele rapidamente se entendeu com o governo dos EUA e com o FMI, opondo-se diretamente às orientações que tinha pregado durante a campanha eleitoral. Os movimentos chegaram a se dividir, com alguns de seus membros permanecendo no governo até sua derrubada. Essas lições demonstram como o social não pode substituir a ação política, mesmo se esta tem que estar estreitamente articulada com as lutas e os movimentos sociais. Se queremos de fato substituir o projeto neoliberal por uma projeto democrático e popular e não apenas limitar aquele, temos que nos enfrentar a problemas como a democratização do Estado, a implementação de políticas de orçamento participativo, a construção de uma força parlamentar que dê apoio a um governo pós-neoliberal. Não podemos ficar – como querem as ONGs – no que eles chamam de “sociedade civil”, um conceito liberal, que abandona a possibilidade de luta pelo poder, de democratização radical do Estado, de construção de força política e ideológica fundada nas classes trabalhadoras. Emir Sader é professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de A vingança da História


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA OFICINAS - SAÚDE, DIREITOS REPRODUTIVOS E ABORTO 9 a 11 Promovidas pelo Fórum de Mulheres Cearenses e pela ONG Católicas pelo Direito de Decidir, serão realizadas seis oficinas sob o tema “Saúde, Direitos Reprodutivos e Aborto: abrindo o debate”. A proposta é discutir o tema aborto, deslocando-o da esfera moral (ser contra ou a favor) e tratando-o como um dado da realidade social; contribuir para a qualificação e sensibilização do discurso sobre o aborto e para a reflexão de uma opinião pública bem informada sobre os argumentos éticos e religiosos em defesa dos direitos das mulheres. Local: Auditório da CUT, R. Solón Pinheiro, 915, Fortaleza Mais informações: forummulheres@ig.com.br FESTIVAL DE CINEMA DE PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA Até dia 12 O Cineport acontecerá a cada dois anos no Brasil, revezando sua sede, nos outros anos, com Portugal e uma das nações de língua oficial portuguesa do continente africano. Instituído pela Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, o Festival tem como objetivo integrar o mercado cinematográfico e promover os filmes realizados em português e em dialetos falados nessas nações. Local: Cataguases. Mais informações: www.festivalcineport.com 1º SEMINÁRIO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA JORNALISTAS 14, das 8h30 às 12h30 Promovido pela Procuradoria da República no Ceará e pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), o seminário é voltado para jornalistas do Estado e estudantes de comunicação. Entre os temas que serão discutido estão a relação do Ministério Público Federal (MPF) com o Poder Judiciário, terminologias e normas processuais, além das atribuições do MPF. A procuradora-chefe da PR-CE, Nilce Rodrigues, fará a abertura. Haverá ainda painéis com os procuradores da República

A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL O debate tradicional – 1500-1960 Primeiro volume da coleção A questão agrária no Brasil, este livro traz uma coletânea de autores considerados “clássicos”, que se debruçam na pesquisa, nos anos de 1960, para entender a questão agrária brasileira no período colonial. João Pedro Stedile (org.) 304 páginas – R$13,00 ISBN: 85-87394-68-1

GOIÂNIA

Divulgação

CEARÁ

2º CONGRESSO NACIONAL DA COMISSÃO PASTORAL DA TERRA 14 a 18 Reforma agrária, trabalho escravo, agroecologia e água serão alguns dos temas a serem tratados durante o congresso. O encontro vai reunir mil pessoas de todo o país, entre trabalhadores rurais, agentes da CPT, convidados, intelectuais e pesquisadores. O lema deste congresso será: “Fidelidade ao Deus dos Pobres, a serviço dos povos da Terra”. A cada dia serão apresentadas 20 experiências de diferentes regiões do país. A pauta do dia 15 de junho destaca a temática da terra, abordando as questões fundiária e agrícola. No dia seguinte, as experiências serão sobre a água; no dia 17, sobre direitos. Entre os debatedores estão Emir Sader, sociólogo; Marcelo Barros, monge beneditino; Ariovaldo Umbelino de Oliveira, geógrafo e professor da Universidade de São Paulo (USP); Elder Andrade de Paula, do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Acre; João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Cristiane Letícia Nadaletti, da direção do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB); Elmano Freitas, advogado; Jean Pierre Leroy, coordenador do Programa Brasil Sustentável e Democrático da Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e ex-relator nacional para o meioambiente da Plataforma DhESCs. Local: Cidade de Goiás Mais informações: (62) 4008-6466 www.cptnacional.org.br

Alessander Sales, Antônio Negreiros, Márcio Torres, Oscar Costa Filho (também procurador Regional Eleitoral) e Lino Menezes (procurador Regional da República). Local: Auditório do Ministério Público Federal, R. João Brígido, 1260, Fortaleza Mais informações: (85) 3266-7313

RIO DE JANEIRO TELECONFERÊNCIA SOBRE INCLUSÃO DIGITAL 10, das 15h às 17h Promovida pela Rede Sesc-Senac. Participarão do debate Gilson Schwartz, diretor acadêmico da Cidade do Conhecimento, da Universidade de São Paulo (USP); Bernardo Sorj, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ). Mediação de André Trigueiro. Os interessados devem comparecer à unidade do Senac mais próxima. Mais informações: (21) 2719-8636, CURSO - CRIMINOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL O debate na esquerda – 1960-1980 Este livro, segundo volume da coleção A questão agrária no Brasil, complementa as análises sobre a natureza da questão agrária desde o período colonial até a década de 1960. São textos que podem ser considerados as reflexões de pensadores do campo da esquerda. João Pedro Stedile (org.) 320 páginas - R$13,00 ISBN: 85-87394-72-X

11 e 15 A organização não-governamental Projeto Legal realiza o curso com o objetivo de proporcionar contato teórico e prático com o tema criminologia e direitos humanos, sua aplicação na produção de conhecimento científico e no desenvolvimento de programas e projetos sociais governamentais e não-governamentais. Serão duas turmas, com aulas aos sábados ou às quartas e sextas-feiras. Local: Av. Mem de Sá, 118, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2507-6464, CINE TELA BRASIL 17 Começa, pela cidade de Nova Iguaçu (RJ), o percurso de 10 meses do Cine Tela Brasil pela Via Dutra. Uma sala de cinema ambulante, com capacidade para 225 espectadores, fará escalas em 34 cidades da área de influência da rodovia, exibindo gratuitamente filmes nacionais, em sessões diferenciadas para adultos e crianças. Promovido, com base na Lei Rouanet, pelo Sistema Compa-

A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL Programas de reforma agrária: 19462003 O terceiro volume da coleção A questão agrária no Brasil é uma coletânea dos diversos projetos e programas políticos que setores sociais, classes e partidos políticos oferecem à sociedade brasileira, como interpretação e solução do problema agrário. João Pedro Stedile (org.) 240 páginas - R$13,00 ISBN: 85-87394-71-1

nhia de Concessões Rodoviárias (CCR), o Cine Tela Brasil está inserido em um conjunto de eventos culturais patrocinados pelo projeto CCR Cultura nas Estradas, em cidades que margeiam estradas administradas pelo grupo. O Cine Tela Brasil quer promover sessões em áreas periféricas de cidades, buscando públicos que têm poucas oportunidades de ir ao cinema. Criado e desenvolvido pelos cineastas Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi (produtores do filme Bicho de Sete Cabeças), o projeto tem origem no Cine Mambembe, que no final da década de 90 promovia exibições em escolas, centros comunitários e praças públicas. Mais informações: (12) 3646-9547

SÃO PAULO SEMINÁRIO - O FUTURO DA REFORMA SINDICAL 10 e 11 Durante o seminário serão debatidos os seguintes temas: as pendências da reforma, a tramitação no Congresso Nacional, efeitos

EZLN - Passos de uma rebeldia Este livro não quer apenas comunicar a história do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), quer colocar o leitor dentro da rebelião e caminhar ao lado dos insurgentes. Nas palavras do próprio autor, o objetivo do seu livro é: “Fazer com que mais gente conheça os passos pelos quais a luta dos oprimidos vai abrindo caminhos na noite de seus sofrimentos e nela traça as trilhas da esperança”. Emilio Gennari 128 páginas – R$ 8,00 ISBN: 85-87394-60-8

jurídicos da reforma, a posição do sindicalismo. Local: Auditório Franco Montoro da Assembléia Legislativa de São Paulo, Av. Pedro Álvares Cabral, 201, São Paulo Mais informações: (11) 5575-9865 1º SALÃO DA CASA DA XICLET Até dia 15 Como definem seus idealizadores, o salão é “sem curadoria, sem júri,sem jabá, sem juros, sem entrada e sem patrocinador”. Terá trabalhos dos artistas Amanda Mei, Anaísa Franco, Anja Telepatik, Dácio Bicudo, Erik Thurn, Fernado Dias, Gabriela Piernikarz, Gisela Gari, Igor Stevanovic, Juliana Abbud, Letícia Tonon, Marcela Tiboni, Ricardo Guidara, Pedro Leão, Thais Albuquerque, Vitor Mizael e Fã-Clube do Nelson Leirner (FcNL). Trará também o Atelier de Stêncil Satisfação. Local: Casa da Xiclet, R. Fradique Coutinho, 1855, São Paulo Mais informações: xiclet_assessoria@yahoo.com.br 14ª FESTIVAL O FEMININO NA DANÇA Até dia 19 As dançarinas e coreógrafas encarnam no próprio corpo a pesquisa de uma trajetória de pensamentos de dança. Desta vez, a abertura do festival contou com três bailarinas coreógrafas mineiras. Todas as coreografias são inéditas. De 8 a 19 de junho: Casa, com Ma Jivan Pujarin; A Troco, com Tatiana Melitello Washiya; Sexo, Amor e Outros Acidentes, com Morena Nascimento. Indicação: 12 anos Local: Centro Cultural São Paulo, R. Vergueiro, 1000, São Paulo Mais informações: (11) 3277-3611 UMA VIAGEM PELA ZONA LESTE Até dia 30 Exposição apresenta imagens dos 120 dias nos quais o jornalista Eduardo Fenianos passou pela zona leste de São Paulo. Entrada franca. Local: Sesc Itaquera, Av. Fernando do Espírito Santo Alves de Mattos, 1000, São Paulo Mais informações: (11) 6523-9200

A ESQUERDA MILITAR NO BRASIL É comum identificarmos os militares com a repressão aos movimentos sociais e o exército ditatorial ao poder político. Neste livro, o autor encontra indícios da origem de um pensamento progressista entre os militares em vetores morais e políticos ainda no Império. Registra as diversas e importantes participações progressistas militares em capítulos importantes da história do país no século 20. João Quartim de Moraes 240 páginas – R$13,00 ISBN: 85-87394-57-6

Peça estes e outros títulos: Fone (0xx11) 3105-9500 ou Fax (0xx11) 3112-0941


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CULTURA

De 9 a 15 de junho de 2005

CINEMA

Festival premia denúncia contra o amianto Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

Eraldo Peres

Filme vencedor aponta efeitos danosos do material que deve afetar a saúde de cerca de cem mil pessoas, até 2015

N

uma atitude inédita em sete anos, desta vez, os vencedores do 7o. Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental de Goiás (Fica) não foram recepcionados pessoalmente pelo governador Marconi Perillo (PSDB-GO), embora o evento seja considerado pelos próprios assessores de Perillo uma espécie de “menina dos olhos” do atual governo. Tudo porque a grande premiada pelo júri da mostra foi a diretora francesa Sylvie Deleule, com seu Asbestos – a slow death (Amianto – uma morte lenta). O filme contraria interesses poderosos na indústria e no governo, ao denunciar os efeitos danosos para a saúde das pessoas e sobre o meio ambiente da exploração, do processamento e do uso do amianto em telhas, revestimentos e outras aplicações industriais e na construção civil. Encerrado dia 4, o Fica é realizado desde 1999, sempre no início de junho, na Cidade de Goiás, a 132 quilômetros da capital do Estado, numa promoção do governo do Estado e de empresas privadas. Na edição deste ano, foram inscritos 835 vídeos e filmes de curta, média e longa metragem, dos quais 31 foram selecionados para a mostra e dez foram premiados. Sylvie foi contemplada com o Troféu Cora Coralina

Amianto – uma morte lenta denuncia os efeitos danosos do material para a saúde dos trabalhadores e sobre o meio ambiente

de Melhor Filme e mais R$ 50 mil. No total, foram distribuídos R$ 250 mil em prêmios. A versão oficial distribuída pela assessoria do governo dá conta de que Perillo já teria agendado sua participação na inauguração de obras em Luziânia (GO), na região do Entorno do Distrito Federal, e por isso não participou do encerramento da mostra. Nos bastidores, os comen-

tários indicavam que a ausência do governador fora mesmo intencional, e passou a ser encarada como uma crítica indireta à decisão dos jurados – embora, até onde se saiba, não tenha sido registrada qualquer tentativa de interferência direta do governo estadual nas decisões do júri. A polêmica em torno do filme movimentou o festival e mobilizou, de qualquer forma, algumas das

principais lideranças políticas do Estado, que lutaram no Congresso para derrubar o projeto que proibia a exploração e uso no país do mineral – banido dos países europeus desde janeiro deste ano, França entre eles, pátria dos grupos multinacionais que dominavam o mercado de amianto no Brasil até recentemente. Pelos menos dois deputados federais – Carlos Alberto Leréia

(PSDB-GO) e Ronaldo Caiado (PFL-GO) – teriam entrado em contato com a organização do festival para criticar o filme e o material de divulgação distribuído à imprensa. Caiado surge no filme como um dos políticos, entre outros representantes de Goiás, financiados nas últimas eleições pela Sama – Mineração de Amianto Ltda., que explora a maior mina do país, em Minaçu, no norte de Goiás, com reservas equivalentes a mais de 60 anos de consumo e vendas anuais na casa dos R$ 257,5 milhões. A empresa produziu, no ano passado, 252,1 mil toneladas de fibra de amianto e exportou o correspondente a 40,1 milhões de dólares (12% mais do que em 2003). Além de contribuições para campanhas políticas, a Sama recolhe anualmente perto de R$ 40 milhões em impostos e contribuições estaduais e federais – o que ajuda a explicar o interesse do governo estadual e de seus políticos pelo tema. Segundo Sylvie, projeções de institutos franceses de pesquisa médica indicam que perto de cem mil pessoas terão sua saúde comprometida pelo amianto até 2025. No Brasil, a Rede Virtual-Cidadã para o Banimento do Amianto na América Latina, criada pela auditora fiscal do Ministério do Trabalho Fernanda Giannasi, estima em mais de 2 mil o número de pessoas com problemas de contaminação por amianto.

Os alvos do novo filme do cineasta Sérgio Bianchi são o terceiro setor e a indústria da boa ação, por meio da qual, além de se lavar a alma, gera-se empregos e movimenta-se a economia. Em Quanto Vale ou É por Quilo?, o cineasta paranaense utiliza o recurso de história intercaladas, comparando o terceiro setor com o período escravagista do país. Livre adaptação do conto de Machado de Assis, Pai contra Mãe, o filme começa no século 18 quando senhores atrelavam ao custo da liberdade de seus escravos um juro crescente ao ano. O que parecia boa vontade virava um negócio muito lucrativo – coisa que Bianchi mostra acontecer hoje em dia, quando uma ONG fictícia superfatura a doa ção de computadores estragados a uma escola de favela. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cineasta fala do uso do destituído como um produto, como uma forma de gerar mercado, existente durante o período colonial, e ainda presente na sociedade. “Quanto vale o pobre hoje para este terceiro setor que fatura em cima das boas intenções?, questiona. Brasil de Fato – Como surgiu a idéia de fazer um filme sobre a indústria da boa ação? Sérgio Bianchi – Observando a quantidade de pessoas de classe média que se dedicam a ganhar dinheiro com isso, observando a turma que faz o bem, das colunas sociais do César Giobbi, (colunista social do jornal O Estado de São Paulo) a campanha do governo contra a fome. É impressionante a movimentação financeira em cima disso, o uso dos pobres como mercado, como um negócio. Então resolvi fazer um filme assim. Li contos do Machado de Assis, também, e juntei tudo. BF – Como as entidades do terceiro setor reproduzem a mentalidade escravocrata? Bianchi – No sentido mercantil do uso do ser humano, coisa que o Machado abordava. O uso do ser humano como produto, como

BF – Como foi o processo de pesquisa para o filme? Bianchi – Não foi acadêmico, profundo. Foi mais de observação da realidade e de conferir dados. Aquela ONG naturista, por exemplo, existe. E tem coisas piores que aquilo. Aquela briga por ponto de mendigo também existe. Tem até aqueles mendigos que colocam uma tabuleta: não me acorde, eu já comi. Eu andei por aí e tive colaboradores também.

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Tatiana Merlino da Redação

Quanto Vale ou É por Quilo? questiona o uso dos empobrecidos como produto

mercado, existiu de uma forma mais explícita na época da escravatura, e de uma forma um pouco mais amena nos tempos atuais. Eu não gosto disso, acho que o ser humano não é mercadoria. O conto do Machado Pai contra Mãe fala das brigas da escravatura do final de 1800. Brigas e pendengas mercadológicas por causa de um escravo. Quanto vale o pobre, hoje, para esse terceiro setor que fatura em cima das boas intenções? Eu não analiso boa vontade ou não, mas sim o uso do destituído como um produto, como uma forma de gerar mercado, como geração de empregos, de captação de recursos. O que ocorre hoje pode ser um legado cultural da escravidão. Eu quis explicitar isso, mas eu não sou um acadêmico. Eu sou um cineasta, um artista. BF – Como a miséria virou mercado para a classe média? Ela é conseqüência da ausência do Estado? Bianchi – Essa é a pergunta do filme, eu não sei a resposta. Eu fiz esse filme com todas as contradições possíveis para que as pessoas começassem a pensar sobre isso. Carnaval, futebol, frutas, verão são alavancas de mercado internacional. A miséria também? Como fica isso? É para o expectador pensar, eu não cheguei a conclusão nenhuma. Mas eu acho que o Estado tem a obrigatoriedade de fazer isso, de cuidar da miséria. Uma vez fui

numa reunião de umas senhoras que fazem trabalhos com os moradores de rua. Eu perguntei se elas estavam cientes da existência de um departamento na prefeitura que tem um orçamento para resolver o problema. E elas não sabiam. Ali havia boas intenções, ou lavação da culpa, mas tem gente que até lava dinheiro. BF – No filme você mostra o negro que virou capitão do mato na época da escravidão. Nos dias de hoje, também há o caso do negro contra negro, com o matador de aluguel. Bianchi – Ele passa a fazer o jogo da elite. Existe essa forma de ganhar dinheiro e ele opta por isso. BF – O cinema que você faz é diferente do que se faz no resto do Brasil. Você não conta pequenas histórias, faz um recorte de classe. Bianchi – Eu conto pequenas histórias, com corte de classe. Eu acho que as pessoas se definem pela classe a que pertencem. Você pode optar por uma forma padronizada de trabalhar. Em revistas semanais, por exemplo, você tem a Veja. Se você ler a revista do começo ao fim, fica com a sensação de que foi a mesma pessoa que escreveu a revista inteira. O cinema comercial é assim. Eu não sei se por não conseguir, não acreditar, por uma postura ética ou revolucionária, eu não faço esse tipo de trabalho.

BF – A personagem principal acredita no que faz, tem ética... mas no final ela muda. Bianchi – Como sobrevivência, ou como desistência. Ela muda, ou por necessidade porque está com o revólver, ou porque está começando a achar que tem que cobrar no plano pessoal. Ela continua radical. Ela é radical em termos de ética, vai contra o cara que deu o computador estragado. Mas ela tem um primo que é um seqüestrador com inteligência, que justifica economicamente o ato da vingança do seqüestro. Ele cobra as diferenças sociais num outro nível. De repente, na hora que ela está com um revólver na mão, opta por isso. Eu achei que ela só morrer era um pouco de sacanagem. BF – E o personagem que define o seqüestro como mecanismo de distribuição de renda? Bianchi – O personagem fala isso. Ele é um cara mais inteligente, com mais acesso à cultura. Ele é um bandido e teoriza a bandidagem dele com essa justificativa. Mas eu não vou tomar partido, nem vem, não adianta. O personagem defende o seqüestro porque ele movimenta a economia, ele reparte na marra. É um alerta: cuidado que de repente começa a aparecer mundos assim. A minha intenção é provocar, não estou muito preocupado em achar soluções. Eu acredito que o Estado tem obrigações, e na hora que ele não assume, o capital privado assume e tem essas distorções todas. O que mais me preocupa é a permanência da situação, de que só o erro dá dinheiro. Existe muita gente que vive em cima de

Divulgação

Filme mostra como lucrar em cima dos pobres

Quem é O cineasta paranaense Sérgio Bianchi tem 59 anos e mora em São Paulo desde a década de 70, onde estudou na Escola de Comunicação e Artes da USP, trabalhou com fotografia, publicidade e teatro. Dirigiu três curtas e cinco longas entre eles Maldita Coincidência, seu primeiro filme, lançado em 1970, Romance (1987), A Causa Secreta (1994) e Cronicamente Inviável (2000) um tipo de negócio, esse sistema permanece. Isso me preocupa. Isso eu assumo ser contra. BF – O filme termina num impasse. Bianchi – Mas quem sou eu para dar a resposta? A idéia é levar a pensar. Tinha um terceiro final, feliz, mas eu não consegui filmar. Era muito megalomaníaco, eu precisava de muito dinheiro. Sempre reclamam de mim, que eu não tenho otimismo. No terceiro final, esse sistema de uso da miséria no terceiro mundo passa a ser um mecanismo globalizado. Os personagens da ONG se tornam ministros de bem-estar social, participam de grandes conferências, com muito samba. Quanto Vale ou É por Quilo? (Br/2005, 110 min.). Drama. Dir. Sergio Bianchi. 14 anos. Espaço Unibanco 1 - 15h, 17h10, 19h20, 21h30. HSBC Belas Artes O. Niemeyer - 14h50, 17h, 19h10. Lumière 1, Sala UOL - 14h, 16h30, 19h, 21h30


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