Ano 3 • Número 120
R$ 2,00 São Paulo • De 16 a 22 de junho de 2005
Esquadrão da moralidade entra em cena Aproveitando a fragilidade do governo Lula, elite se rearticula e provoca crise política com denúncias sem provas Sérgio Lima/Folha Imagem
Luciana Whitaker/Folha Imagem
Wilson Dias/ABR
PFL 25
Lula Marques/Folha Imagem
Eduardo Knapp/Folha Imagem
PSDB 45
PTB 14
PSDB 45
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Retrato de um país repleto de desigualdades
A
direita brasileira mostra as garras. Grande imprensa, o tucanato (PSDB) e o Partido da Frente Liberal (PFL) se juntam em campanha denuncista sem comprovação, sob a batuta do “ex-collorido” Roberto Jefferson (PTB), para causar furor e desestabilizar o governo Luiz Inácio Lula da Silva. Paralelamente ao recrudescimento das políticas imperialistas na América Latina e ao ascenso de mobilizações populares na região, os EUA articulam com seus representantes diretos, como o ex-presidente Fernando Henrique, formas para inviabilizar um segundo mandato de Lula. Apesar de ter feito tudo para agradar a direita, ela quer derrubá-lo: tucano por tucano, prefere o original. Outra possibilidade é refazer o pacto com a cúpula do Partido dos Trabalhadores, aumentar ainda mais a dose de neoliberalismo na política econômica e radicalizar de vez nas privatizações. Os Correios são a bola da vez. Isolado do povo pelas alianças que fez, o governo Lula ainda não encontrou forças para reagir. Neste panorama, os movimentos sociais se deparam com um enigma: não podem ser coniventes com os atos de corrupção, nem se somar às iniciativas da direita para isolar o governo. Págs. 2, 4 e 5
O capitalismo brasileiro é cruel, excludente e concentrador. É o que mostra o Ipea. O desemprego nas áreas metropolitanas do país é de 14%, porque a economia não cresce o suficiente. A concentração é muito perversa: 1% dos mais ricos (1,7 milhão de pessoas) fica com 13% da renda, a mesma porção dos 50% mais pobres (87 milhões). Pág. 7
Governo do Pará Empréstimos do Na África, trabalho escravo manda despejar BNDES favorecem 20 mil sem-terra os Estados ricos na Firestone Pág. 3
Pág. 8
Pág. 10
Manan Vatsyayana/AFP/Folha Imagem
Um trabalhador do campo de extração de borracha da Firestone Rubber Plantation, na Libéria, chega a lidar com 850 árvores por dia - jornada que lhe dá direito a 3 dólares diários. Descontados os impostos, ele recebe 1,5 dólar por uma jornada de 12 horas. São os operários que pagam mais impostos do país. Mas a ação perversa da transnacional não acaba aí. A indústria também emite grande quantidade de fumaça e os resíduos do processamento da borracha poluem o rio Farmington. Pág. 12
EUA adiam decisão sobre terrorista
Na melhor das hipóteses, um índígena do povo Guajajara do Araribóia, no Oeste do Maranhão, recebe R$ 25 por um carregamento de toras de ipê, retiradas de seu território por madeireiros da região. Esse mesmo carregamento é vendido, no Sudeste do país, a R$ 200 mil. Na pior das hipóteses, os madeireiros podem pagar menos e, muitas vezes, pagam em espécie, e ainda ameaçam os índios de morte. Para completar, a exploração da madeira causa devastação e leva doenças fatais à comunidade. Pág. 13
E mais:
Prêmio Nobel diz que Bush pode usar bomba A médica australiana Helen Caldicott, criadora da entidade Médicos pela Prevenção da Guerra Nuclear (que em 1985 recebeu o Prêmio Nobel da Paz), alerta, em entrevista ao Brasil de Fato, que o perigo de o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, vir a usar bombas atômicas contra países que considerar inimigos não está descartado. Se isso ocorrer, afirma, uma guerra nuclear deve eclodir, o que, no fim, levará à destruição da Terra. Pág. 11
Madeireiros exploram os Guajajara
COMUNICAÇÃO – Grupo Interministerial responsável pela elaboração de uma Lei Geral de Comunicação de Massa não discutirá temas como monopólio e concessões. Pág. 6 CULTURA – O professor Wolfgang Leo Maar analisa a maneira pela qual o capitalismo se apropria do direito ao ócio das pessoas. Pág. 16
Exploração – Garoto indiano participa de mobilização mundial contra o trabalho infantil, dia 12. No Brasil, de 1995 a 2003, o número de crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos que trabalhavam caiu 47,5%, segundo dados do IBGE
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CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, 5555 Paulo Pereira Lima, Renato Pompeu • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Jorge Pereira Filho, Luís Brasilino, Marcelo 5555 Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo M. de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Secretária de redação: Thais Pinhata 55 Assistente de redação: Fernanda Campagnucci e Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Paulo Ylles 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
NOSSA OPINIÃO
É hora de romper com o império Nas últimas semanas, os mais importantes líderes da oposição – incluindo Antônio Carlos Magalhães, Arthur Virgílio, Tasso Jereissati e outros – concentraram um poderoso ataque ao governo Lula e ao Partido dos Trabalhadores. Vestindo a máscara de puras sacerdotisas da transparência e da democracia, eles ocupam as tribunas do Congresso Nacional para arrastar a reputação do governo Lula e do PT ao esgoto das práticas ilícitas que marcam a história do Brasil. Com grande estardalhaço, a mídia burguesa reproduz e amplia os discursos, criando no país uma sensação de pânico e caos. O país vive um momento grave e sombrio. O que pretende a burguesia, ao promover tais ataques? Certamente, não é mudar a política econômica. Ao contrário. Não por acaso, a figura do ministro Antonio Palocci vem sendo cuidadosamente preservada e poupada. Comentaristas e jornalistas “especializados” em finanças multiplicam apelos, no sentido de não permitir que a crise acabe afetando a condução da política econômica do país. A burguesia quer promover a “despetização” total do governo Lula. Quer retirar o pouquíssimo que ainda resta de compromisso com a trajetória de um partido que, em 2002, eletrizou o país, galvanizou as esperanças de mudança. E quer fazer isso para completar o processo de privatização das estatais (Petrobras, Furnas, Correios e Banco do Brasil, entre outras), promover a ruptura com Cuba e com o governo venezuelano de Hugo Chávez, e oferecer ao cortejo triunfal do imperialismo um tapete ainda mais confortável para penetrar de vez no Brasil.
Essas intenções foram publicamente expressas, em várias ocasiões, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que atualmente integra um “grupo de monitoramento” da situação política da América Latina, com Carla Hills, mulher de confiança da família Bush e uma das principais articuladoras da Associação de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta). Uma das primeiras providências do tal grupo, com sede em Washington, foi encaminhar um relatório à Casa Branca para pedir uma “presença maior” dos Estados Unidos no hemisfério. O relatório cita, especificamente, o governo Chávez como exemplo “preocupante” de “desrespeito à democracia”. Em uma palavra, trata-se, para a burguesia, de tornar o governo Lula incapaz de governar até as eleições de 2006, quando pretendem tomar o Planalto de assalto. Ou então que Lula imprima ao seu governo todas as orientações que eles próprios dariam se estivessem ocupando o poder. É claro que o próprio governo Lula e o PT têm as suas responsabilidades por tudo isso. Eles abriram todos os flancos ao inimigo, por exemplo, ao premiar práticas ilegais impulsionadas por transnacionais (o caso do contrabando das sementes de soja transgênica da Monsanto), ao impedir a investigação de casos obscuros de corrupção (Waldomiro Diniz), ao criar blindagem em torno de funcionários do governo sob suspeita de sonegação e evasão fiscal (Henrique Meirelles). E a confusão dentro do PT e seus parlamentares é tão grande que o senador Tião Vianna (PT
-AC), da mesma corrente politica do presidente do partido, José Genoino, propôs na tribuna que o PT entregue todos os cargos de ministros e outros cargos de confiança. Ou seja, que o PT renuncie ao governo. Mas, sobretudo, o governo Lula cometeu o gravíssimo erro, o erro fatal, ao divorciar-se do povo e permitir a remessa de dezenas de bilhões de dólares paras os grandes bancos internacionais, às custas do imenso sacrifício da nação oprimida. O governo negou recursos para os serviços públicos de saúde, educação e aposentadoria, mas cumpriu religiosamente os seus compromissos com os banqueiros de Wall Street. Nada, nenhum escândalo de corrupção é sequer remotamente equiparável a isso. Lula agora tem de fazer uma escolha definitiva. E essa escolha não é apenas retórica. Leia, na página 4, as propostas dos movimentos sociais: fazer a reforma ministerial, afastando todos os acusados de corrupção; mudar a política econômica; fazer a reforma político-partidária e iniciar um novo ciclo, para construir outro modelo de desenvolvilmento. Ou bem o governo enfrenta as pressões e chantagens da burguesia, ou a ela se renderá definitivamente, colocando-se em seus braços como um triste e melancólico refém. No primeiro caso, terá de mobilizar o povo; para isso, romperá com os bancos, punirá os corruptos, apelará à nação oprimida. No segundo, só lhe restará tapar todos os espelhos. Contra os abutres do império, a nação oprimida aguarda o grande gesto do Planalto.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES ÉTICA NO PT Parece-me equivocado o título e o conteúdo do artigo “CPI testa limite ético do PT” do sr. Hamilton Souza, publicado na edição 118. Se houvesse de fato algum limite ético no PT de Lula-Dirceu-Palocci-Genoíno, a vergonhosa capitulação sem resistência alguma ao poder de fato dos donos do Brasil (capitalistas, banqueiros, FMI), a chamada “Carta aos Brasileiros” não teria sido sequer escrita. Uma vez iniciada a derrocada, em nome de uma denominada “correlação de forças” que, ao privilegiar uma visão superficial e mesquinha do presente, só fez contribuir para aumentar a força do inimigo de classe (o nosso, não o do Lulismo-Petismo, cujo inimigo é hoje qualquer um que queira contestar o status quo neoliberal). O artigo do sr. Hamilton de Souza me parece ter sido escrito para os petistas na ilusão de que é necessário desfazer os equívocos conceituais do petismo atual. Eu creio que, ao contrário das boas intenções do articulista, não é uma questão de “idéias”, mas de ações. E nesse sentido o Lulismo-Petismo não é tão ingênuo assim. O Palocci, o Dirceu, o Genoíno e o Lula sabem muito bem o que fazem. Apenas não são tão espertos como se consideram e já resvalaram para a vala comum. Fazem seu domicílio hoje na miséria política e
moral do país. E vão ser sepultados por ela. Marcelo Lima por correio eletrônico XEROX NAS UNIVERSIDADES Antes de mais nada, gostaria de parabenizar pela matéria publicada na edição 119, intitulada “Nas universidades, repressão contra os xerox”, de Dafne Melo. Parece-me importante não dar as costas para os “pequenos” problemas. Nem tudo é FMI e política palaciana, nossa vida depende muito desses empreendimentos contra pequenas tiranias que agem soltas e não cansam de nos surpreender por sua estupidez. Sou professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e nunca recebi direitos autorais de minhas publicações. Sabemos que a prática dessas editoras é “doar” alguns exemplares para o autor. Contudo, nem isso chegam a cumprir. Tenho colocado uma questão a meus colegas, aliás, pouco sensíveis ao problema: certo ou errado, me parece uma questão secundária, pois, do jeito que encontramos a educação hoje, seria a universidade possível sem as fotocópias? Quando a educação será realmente uma prioridade neste país? Mais uma vez, parabéns pelo trabalho. Fico contente em saber que PUC-SP está se mobilizando. Luiz C. Martino por correio eletrônico
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CRÔNICA
A nossa cota no cuidado com a Terra Marcelo Barros Na primeira semana deste mês, consagrada pela ONU à sustentabilidade da Terra, as notícias pareciam pouco animadoras. A organização World Resources Institute (WRI) reuniu 1.360 cientistas para avaliar a situação da Terra. Eles publicaram um estudo no qual afirmam que a humanidade explorou tanto a natureza que não há garantias de que ela possa dar sustento às novas gerações. Para nós, brasileiros, a notícia mais triste é que, entre 2003 e 2004, foram devastados 26.130 km2 da Amazônia. As causas são sempre as mesmas: soja, pecuária, exploração madeireira, grilagem de terras e falta de controle ambiental, além da opção do governo federal de ganhar as próximas eleições, costurando alianças com qualquer tipo de partido e pessoa que se apresente disposto a barganhar alguma fatia de poder. Graças a Deus, na contramão desta corrente, pequenos lavradores e grupos indígenas começam a atuar em um novo modelo de relação entre o ser humano e a Terra. A luta dos índios bolivianos contra a exploração
internacional do gás da Bolívia não é apenas um movimento nacionalista. A partir da espiritualidade andina, os índios exigem outra forma de tratar a Terra e suas riquezas. No Brasil, o cuidado com a ecologia une índios e lavradores. Nestes dias, no Sul, ocorre o 4º Encontro de Agroecologia. Na cidade de Goiás, a Festa da Colheita com “sementes crioulas” será no domingo 19, confirmando os lavradores neste caminho de amor e cuidado com a vida. A maioria das pessoas é favorável à ecologia, mas contanto que seja na casa e na terra dos outros. É urgente mudarmos esta forma de pensar. Cada um tem uma cota a garantir no cuidado com a Terra e toda a vida que nos envolve. Ninguém pode ser dispensado desta luta cotidiana. Todos temos hábitos de consumo que precisamos rever, principalmente a forma de produzir alimentos, usar a água, explorar o petróleo e seus derivados. Nas cidades, o lixo acumulado por este modelo de sociedade é um desafio imenso. A ecologia, ciência que revela a íntima conexão que existe entre
todos os seres como uma única teia da vida, é um programa de educação para a alteridade. Reconhecer este direito do outro e incorporá-lo como essencial para minha própria felicidade é como um método para que eu mesmo me torne, cada dia mais, uma pessoa verdadeiramente humana. Numi, um xamã do Equador, adverte: “Vocês que dominam o mundo têm organizado a vida de acordo com o que desejam. Sonharam fábricas gigantescas, palácios enormes, máquinas sofisticadas. Construíram tantos automóveis quantas são as gotas d’água deste rio (Amazonas). Agora, começam a perceber que, na realidade, o sonho de vocês é um pesadelo. Para que a vida possa continuar e vocês continuem a ser humanos, ensinem a seus filhos e netos a sonhar um sonho novo e diferente”. Marcelo Barros é monge beneditino. É autor de 27 livros, entre os quais está no prelo A Vida se torna Aliança, (Como orar ecumenicamente os Salmos), Ed. CEBI-Rede da Paz, 2005
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NACIONAL PARÁ
Violência sem trégua contra camponeses Rogério Almeida de Belém (PA)
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az dez anos que o PSDB governa o Estado do Pará. A repressão aos movimentos sociais do campo tem sido a palavra de ordem no palácio do governo, que tem no latifúndio um dos seus pares. O massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, desponta como o capítulo mais marcante da política do partido nessa década. Era então governador o médico Almir Gabriel – em tese, um profissional em defesa da vida. O episódio mais recente é protagonizado por Simão Jatene, atual governador, que mantém a repressão aos camponeses. Numa só canetada, o Judiciário paraense ordenou, no início do mês, a reintegração de posse de 40 áreas, envolvendo 20 mil trabalhadores sem-terra. No município de Parauapebas, Sudeste paraense, casas foram queimadas, lavouras destruídas e famílias despejadas. A operação de guerra mobiliza 280 polícias militares, ao custo de R$ 2 milhões. No mutirão de despejos há áreas com até dez anos de ocupação. Trata-se de terras da União, muitas delas já consideradas improdutivas e em vias de desapropriação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), superpotência de Marabá, cidade pólo da região.
Edinaldo Sousa
Casas foram queimadas, lavouras destruídas e 20 mil sem-terra correm risco de despejo em reintegração de posse mão-de-obra escrava, pesou a favor da desapropriação da fazenda a exploração ilegal de madeira. Ainda assim, o Judiciário expediu liminar de reintegração de posse. Além do ouvidor agrário nacional, Gercino da Silva Filho, estiveram presentes representantes da Secretaria Especial de Defesa dos Direitos Humanos, Bernadete Ten Caten, superintendente do Incra, e militantes dos movimentos sociais e a CPT. No caso da fazenda Peruano, duas vezes inclusa no “livro sujo” do trabalho escravo do Ministério Público Federal, emerge um impasse. A área é de responsabilidade do Estado. Por isso não é permitida ao Incra a avaliação da área. Ocorre que o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), órgão fundiário estadual, alega não ter verbas para a fiscalização, estimada em R$ 30 mil. Os sem-terra ocupam a sede da fazenda.
SINDICALISTA ASSASSINADO Famílias de trabalhadores sem-terra ocupam margens de estrada após terem suas casas queimadas, em Parauapebas (PA)
Sávio Sousa Silva, José Adriano Silva, Robson da Cruz e Edmilson José de Oliveira foram agredidos com chutes pelos policias e ameaçados de morte, caso retornem à fazenda. As famílias não tiveram tempo de tirar seus pertences das casas, bem como os alimentos colhidos na ultima safra. Segundo denúncias feitas por representantes dos movimentos sociais de Parauapebas, a casa do trabalhador Raimundo Castro foi queimada pela polícia com dez sacas de arroz dentro. A trabalhadora rural Maria dos Reis estava sozinha quando os policias chegaram, deram poucas horas de prazo para ela tirar tudo de dentro de casa e
POLÍCIA E CAPANGAS Nota divulgada pelo movimento camponês do sudeste do Pará narra que na fazenda Boa Sorte, terras da União, município de Parauapebas, ocupada há sete anos, a polícia agiu junto com capangas da fazenda. Os trabalhadores rurais
carregar para a estrada. Como ela não conseguiu, atearam fogo. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Federação de Trabalhadores Rurais na Agricultura do Pará (Fetagri, regional sudeste do Pará), com apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) informam que os despejados já somam 2 mil famílias. Como forma de protesto, os trabalhadores rurais bloqueiam a PA-150 e BR-222, Transamazônica. O clima na região é tenso. Os fazendeiros ameaçam queimar carros dos movimentos sociais que fazem a logística aos sem-terra que bloqueiam as rodovias. O arrastão da PM do Pará sob
DIREITOS HUMANOS
MINAS GERAIS
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou, dia 8, o pedido de federalização das investigações e do julgamento do crime contra a missionária Dorothy Stang, ocorrido dia 12 de fevereiro, em Anapu, no Pará. Por unanimidade, os oito ministros do STJ responsáveis pelo julgamento do pedido de federalização decidiram manter a competência de inquéritos e processos sobre o caso na esfera estadual. O resultado frustrou as organizações de direitos humanos e movimentos sociais, que consideram a justiça estadual do Pará tendenciosa. Em nota, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) afirmou que “esta lamentável decisão tem seus significados e conseqüências. Foi, sem dúvida, um reforço ao corporativismo do Judiciário e do Ministério Público, que vinham fazendo forte pressão contra a federalização”. Os juízes que negaram o pedido de federalização do caso argumentaram que as estatísticas sobre a Justiça do Pará são baseadas em fatos passados e que, neste caso, a atuação da Justiça Estadual foi eficiente, com a prisão dos suspeitos em tempo recorde. O advogado da organização não governamental Terra de Direitos, Darci Frigo, afirmou que “a Justiça do Pará se apressou na condução das investigações justamente porque o pedido de federalização, feito pelo procurador-geral da República Claudio Fonteles, já havia sido feito. Foi isso que motivou sua atuação, mas na
Valter Campanato/ABR
Dorothy: justiça nega federalização de julgamento Tatiana Merlino da Redação
Manifestação para lembrar a luta da missionária Dorothy Stang
grande maioria dos casos a Justiça do Pará é lenta e omissa”. De acordo com Frigo, sem a intervenção da Polícia Federal, e se dependesse do delegado local, o ex-prefeito de Anapu, Francisco de Assis de Souza Santos, o Chiquinho do PT, teria sido considerado o mandante do crime. O advogado afirma que, com a decisão do STJ, os criminosos do Pará saíram vitoriosos e estão dando continuidade ao processo de perseguição dos trabalhadores da região de Anapu. “Depois da morte da
ordem do Judiciário nos latifúndios do sudeste do Estado estava suspenso até dia 15, quando estava prevista nova rodada de negociação. A decisão foi tomada na segunda reunião de negociação ocorrida no do Fórum do município de Marabá, dia 10. A Superintendência do Incra de Marabá apresentou um plano de trabalho em que constam áreas de interesse para fins de reforma agrária. São pelo menos treze. Entre elas, a fazenda Cabaceiras, multada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) por uso de mãode-obra escrava. O decreto de desapropriação do latifúndio foi realizado em outubro do ano passado. Além do uso de
A Amazônia enterrou mais um sindicalista empenhado na realização da reforma agrária justa. Antônio do Alho, que tinha 46 anos, na certidão de nascimento atendia por Antônio Matos Filho. É o segundo dirigente executado no município, em 2005. O primeiro foi executado em fevereiro – Soares da Costa Filho, 43, assassinado no mesmo período da execução da missionária estadunidense Dorothy Stang. Antônio do Alho pertencia à Associação de Agricultores Familiares do Projeto de Assentamento Cachoeira Preta, na região do Itacaiúnas, divisa entre Marabá e Parauapebas. Além da Associação, fazia parte da Secretaria de Agricultura do Governo do Povo de Parauapebas.
missionária, aumentaram as ações violentas contra essas pessoas, que estão sofrendo retaliações. Eu temo pela vida das lideranças de Anapu”, alerta Frigo. Segundo o advogado da Terra de Direitos, agora os movimentos e entidades vão analisar os casos de crimes de violação de direitos humanos no Pará e levar à Procuradoria Geral da República, para pedir a federalização: “Há uma série de casos parados há meses, anos. No Pará, a lei é aplicada de forma exemplar, mas sempre contra os trabalhadores”.
Aécio Neves quer derrubar lei que protege Bernardo Alencar de Belo Horizonte (MG) O governador do Estado de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), está empenhado em facilitar despejos de áreas rurais e urbanas com o uso de força. Prova disso é o projeto de lei (PL) do governo que prevê a revogação das leis 13.053 e 13.604, segundo as quais quando uma desocupação é determinada pelo Poder Judiciário, a Polícia Militar, antes de cumprir a ordem judicial, deve encaminhar o pedido ao gabinete do governador, de modo que a desocupação seja analisada politicamente e para que se encontre soluções sociais sem o uso da repressão estatal. Essas leis, criadas durante o mandato do ex-governador Itamar Franco (1998-2002), foram aprovadas pela maioria dos deputados estaduais. O PL de Aécio Neves já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e está em tramitação na Comissão de Direitos Humanos. Depois, será encaminhado a plenário, onde o governador conta com apoio de 60 dos 72 deputados. O deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos, Durval Ângelo (PT-MG), diz que, se aprovado o projeto, “acontecerá um grande atraso que irá acirrar o conflito no campo”. Para ele, o governo mineiro está se rendendo às pressões dos latifundiários. Pressões comprovadas. Um panfleto do Movimento Paz no Campo – organização de latifundiários com milícias armadas e investigada por isso – pede, entre outras coisas,
“que a Assembléia Legislativa revogue as leis 13.053 e 13.604, que de forma inconstitucional impõem obstáculos à garantia do direito de propriedade assegurado pela Constituição Federal”. Afinado com os latifundiários, o governo do Estado alega que as leis ferem o artigo 6º da Constituição Estadual, que diz que os Poderes do Estado são independentes e harmônicos entre si”. Para o autor das leis, o ex-deputado estadual e presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra-MG), Marcos Helênio, “se o projeto de lei for aprovado será um risco muito grande à paz no campo, um retrocesso no que se refere à questão da reforma agrária”. A advogada da Rede Nacional de Advogados Públicos (Renap), Maria Ilka, aumenta o coro contra a aprovação do projeto, que considera “um retrocesso no avanço nas conquistas referentes à questão agrária e às desocupações”. O integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), frei Rodrigo Peret, afirma que “o projeto incentiva a violência no campo e promove a presença de milícias”. “Estaremos voltando no tempo, no tempo em que havia despejos em finais de semana, de madrugada. O governo devia pensar que não se trata de reforma agrária como crime”, completa o padre. Receosa e consciente da ameaça e do risco da violência que pode haver em desocupações, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) enviou documento ao governo do Estado pedindo que não seja dado prosseguimento ao projeto de lei.
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Espelho
NACIONAL
da mídia
ANÁLISE
Escândalo midiático Em seu depoimento na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), confirmou a denúncia da existência de “mensalão” no Congresso Nacional, feita em entrevista para o jornal Folha de S. Paulo. Jefferson chamou o jornal O Globo de “diário oficial do governo” e a revista Veja, da Editora Abril, de “revistinha”. Deixou claro que a mídia joga papel preponderante no escândalo e na crise atual.
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presentamos a seguir uma síntese do debate realizado na última reunião do Conselho Editorial do Brasil de Fato, com a participação de dirigentes de diversos movimentos sociais brasileiros. Pela importância do momento que vive o país, o jornal quer compartilhar com todos seus leitores esta análise sobre a conjuntura do Brasil e da América Latina, sempre presente, aliás, nas páginas do BF.
Projeto conservador Os principais veículos da imprensa empresarial continuam fustigando duramente o PT e o governo Lula, em grande parte com material sensacionalista e sem consistência. A mídia faz o jogo dos setores neoliberais, que querem inviabilizar a candidatura Lula para 2006 ou obrigar o PT a uma nova guinada para a direita. O sonho do empresariado é ter Antonio Palocci na presidência.
Cenário Internacional e a América Latina A atual crise brasileira tem um pano de fundo: o recrudescimento da política dos Estados Unidos para a América Latina. Alertado por seus aliados na região (as burguesias locais e seus representantes, como Fernando Henrique Cardoso), o governo de George W. Bush, agora em seu segundo mandato, está preocupado com a efervescência política e a resistência popular no continente. Os movimentos de massa, em diversos países, já adquirem caráter de ofensiva e levam à instabilidade institucional. Um exemplo disso é a posição que os EUA estão tomando ao proteger o agente da CIA Luis Posada Carriles, condenado à prisão por terrorismo contra Cuba, Chile e Venezuela. Ligado à máfia anticastrista de Miami, Carriles é considerado um dos principais terroristas do continente. Esteve envolvido em atentados como o assassinato do chanceler chileno Orlando Letelier, em Washington (1973), e a derrubada de uma aeronave da Cubana Aviação (1976), que deixou 73 mortos. Outro indicativo desse endurecimento é a postura agressiva da secretária de Estado, Condoleezza Rice, contra Cuba e Venezuela. Ela acusou o presidente Hugo Chávez de estar por trás da crise na Bolívia, uma hipótese em que nem a própria direita boliviana acredita.
Julgamento realizado O conservador jornal O Estado de S. Paulo, não satisfeito com CPI e outros processos investigativos, simplesmente já julgou e condenou o PT e o governo Lula, sem se importar com o que for apurado. Em editorial de 14 de junho, o jornal afirma: “... a opinião pública se convencerá de que, apesar dos protestos de inocência do PT e dos homens do presidente, eles têm culpa no cartório”. Só falta entregar a guilhotina para a família Mesquita. Exemplo estadunidense Pesquisa da Universidade de Harvard, dos Estados Unidos, publicada na revista Archives of General Psychiatry, concluiu que em cada quatro cidadãos estadunidenses adultos, pelo menos um sofre de transtornos mentais variados, entre distúrbios de humor, ansiedade e falta de controle emocional. O estudo indicou que esses problemas começaram na infância e na adolescência, mas não foram identificados e tratados pelos serviços públicos de saúde. Democratização A PUC-Campinas e o Centro de Memória da Unicamp lançaram, esta semana, o livro Comunicação Alternativa – Cenários e Perspectivas, uma coletânea de artigos – organizada pelo professor Bruno Fuser – que relata e analisa várias experiências inovadoras de comunicação voltadas para a arte, a cultura e a transformação social.
Verba pública Entre os vários órgãos da administração direta e indireta do governo federal, apenas o Banco do Brasil, a Petrobrás e a Caixa Econômica Federal gastaram em publicidade, em 2004, mais de R$ 420 milhões – a grande maioria na mídia empresarial, que defende o modelo neoliberal, visa o lucro, não está nem aí com desenvolvimento do povo brasileiro e ataca os setores de esquerda – inclusive os que integram o governo do PT.
O deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) depõe no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados
tema capitalista. O resultado é uma grave crise de modelo econômico. Há estudos que mostram que, nesse período, o continente latino-americano enviou 1 trilhão de dólares em remessas para os Estados Unidos e a Europa.
FÁBRICA DE CRISES Essa crise de modelo se transforma em crise política permanente. Hoje, estão se esgotando as formas tradicionais de dominação e manipulação institucional (eleitoral) do povo. A burguesia não tem tido o mesmo sucesso para apaziguar ânimos internos por meio das manobras dos partidos e das eleições. As sucessivas quedas de presidentes, sob forte pressão popular, em países como Equador e Bolívia, demonstram que a simples troca de nomes não se constitui mais em saídas alternativas. Já as tradicionais “opções militares”, de golpes e repressão, utilizadas pelas burguesias e pelo império no passado, agora, não conseguem se apresentar como alternativas possíveis. Isso porque a verdadeira saída estaria na mudança de modelo econômico.
FALÊNCIA DO MODELO O capital estadunidense está interessado em manter a estabilidade política para seguir controlando o petróleo, o gás, os recursos naturais da biodiversidade, as sementes transgênicas. E tentar também impor o livre-comércio por meio de tratados bilaterais ou regionais – como o negociado com a América Central (Cafta) – e assegurar a liberdade total de circulação do capital financeiro no continente. Para isso precisa de estabilidade, de governos aliados. Submissos. Os 15 anos de neoliberalismo e de espoliação total das riquezas do continente latino-americano produziram uma dominação total do capital internacional, que bloqueou alternativas de modelos econômicos, mesmo dentro do sis-
CERCO APERTA Certamente, no Brasil, o capital internacional de origem estadunidense e o governo Bush aumentaram sua interlocução com aliados (como tucanos, PFL, sócios nas empresas, gerentes de transnacionais etc.). Seu objetivo é colocar limites claros na política do governo Lula, em especial no tocante à política externa e em relação à Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). É só lembrar das cobranças públicas que Condoleezza Rice fez ao governo brasileiro para assinar esse acordo. Sabe-se também dos vínculos permanentes que há entre os serviços de inteligência estadunidenses que operam no Brasil (CIA, FBI) e setores ou ex-agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin, ex-SNI), Polícia Federal. E,
Lindomar Cruz/ABR
Estranha omissão Sedenta por assuntos escandalosos, a maioria da imprensa empresarial não tem demonstrado grande interesse pelas denúncias da Corregedoria da Receita Federal, que está investigado uma série de medidas adotadas durante o governo FHC para reduzir impostos de setores privados e grupos empresariais. Já se sabe que a rede McDonald’s e a Souza Cruz deixaram de recolher bilhões de reais graças a expedientes sorrateiros da Receita. Só a Folha de S. Paulo tem abordado o assunto. Jogo publicitário De acordo com o ranking publicado no jornal Meio & Mensagem, entre os dez maiores anunciantes do país, em 2004, três são redes de varejo (Casas Bahia, Grupo Pão de Açúcar e Lojas Marabrás), dois são empresas de telefonia (Vivo e Tim), dois são montadoras de veículos (General Motors e Ford), um é indústria de bebidas (Ambev), um é indústria de higiene (Unilever) e um é empresa financeira (Liderança).
Marcello Casal Jr./ABR
Uma crise a serviço da elite
da Redação
Servidores públicos em protesto lavam a Estátua da Justiça, em Brasília:
como sempre, atuam em operações extra-Estado, extra-governos.
A situação política do Brasil O povo votou em Lula para mudar a política econômica. No entanto, as alianças eleitorais e os compromissos da “Carta ao Povo Brasileiro”, de 22 de julho de 2002, fizeram com que tivéssemos um ministério de composição com os interesses do capital e a manutenção de uma política econômica claramente neoliberal. Política essa baseada em três pilares: altas taxas de juros, garantia do superavit primário e estímulo permanente às exportações (realizadas, em sua maioria, pelas corporações transnacionais). O governo priorizou suas articulações, para buscar a governabilidade e estabilidade, no apoio da imprensa burguesa e nas alianças com os partidos da direita. Esqueceu-se de construir uma sólida base de apoio popular, a partir de medidas concretas de mudanças sociais. Ao privilegiar as negociações de cúpula se afastou dos movimentos sociais e de suas decisões. Tentou agradar o mercado financeiro, a mídia, mas esses têm seus interesses de classe: tucano por tucano, preferem o original.
METAS DA DIREITA Refém desse tipo de prática política, o governo acabou perdendo cada vez mais apoio das forças progressistas e dos setores populares organizados. Internamente, foi perdendo coesão e unidade. Como o governo não tem um projeto de desenvolvimento nacional, isso impede que os ministros tenham uma política unitária, rumo a um mesmo objetivo. O que quer a classe dominante brasileira ao “criar” uma crise política, em torno do tema da corrupção? Primeiro, inviabilizar um segundo mandato de Lula. Pretende derrotá-lo agora, antes que consolide sua base política. (E aqui entram as sugestões do império para que seus aliados locais recuperem o controle absoluto do poder político). Não por acaso, a direita mais afoita e insensata chegou a propor impeachment de Lula ou defender em jornais José Alencar como presidente. Outro objetivo é fazer um novo pacto com Lula. As classes dominantes somente aceitariam sua reeleição com um novo acordo: mais políticas para a direita e sem alterações na política econômica. A idéia é garantir que o governo Lula complete o ciclo de implementação de todas as mudanças neoliberais, mantendo o povo sob controle, e fazendo novas privatizações (não por acaso, são ventiladas propostas de privatizar os Correios, como forma de evitar a corrupção). Além disso, a crise serve para a elite impor uma derrota política e ideológica a toda esquerda brasileira. Quer criar condições para a criminalização dos movimentos sociais, evitando um processo de reascenso do movimento de massas, como vem ocorrendo em países vizinhos.
REFLEXÕES PARA A ESQUERDA Diante desse quadro, as forças sociais se vêm diante da necessidade de ter uma tática que decifre um enigma: nem ser coniventes com atos de corrupção, nem se somar às iniciativas da direita para isolar o governo. E a dificuldade em resolver esse enigma, hoje, é que as forças sociais não conseguem mobilizar o povo, pois estamos vivendo um contexto de descenso do movimento de massas, de apatia das massas. Diante desse quadro é importante que as forças sociais se aglutinem sobre uma mesma base política, como: 1 – Exigir apuração total, até as últimas conseqüências, de todas as denúncias de corrupção. Exigir investigação policial, quando for o caso, e parlamentar, quando envolver congressistas. Mas exigir que essas investigações cheguem também ao período do governo Fernando Henrique Cardoso, em que não se investigaram de as compras de voto para a emenda da reeleição, as privatizações, a instalação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) etc.. 2 – Denunciar que a corrupção é o método clássico das elites governarem. Elas sempre recorrem à corrupção para dividir o butim do Estado, mesmo para se eleger. As doações fantásticas de empresas (os “caixas dois” de campanha) são uma forma muito pior de corrupção. Garantir que o Estado repasse elevadas somas ao sistema financeiro é uma forma de apropriação legal, mas ilegítima, de recursos públicos. 3 – Denunciar que os verdadeiros problemas do povo estão relacionados com a atual política econômica neoliberal. E, portanto, é hora de aproveitar essa crise de alianças do governo para que o governo crie coragem e mude a política econômica, encaminhando mudanças no modelo neoliberal; e consiga, então, recursos necessários para implementar soluções para os problemas do povo, de terra, trabalho, educação, moradia. 4 – Exigir que, no bojo dessa crise, a sociedade discuta a necessidade da reforma política. O sistema atual de representação partidária, eleitoral e parlamentar está falido. Precisamos de novas formas de democracia direta, de representação popular, de financiamento público e único de campanhas. E aprovação do direito do povo de convocar plebiscitos sobre temas relevantes da sociedade, conforme projeto já em andamento de iniciativa da OABCNBB, e apoiado pelos movimentos sociais da CMS. 5 – Debater com a sociedade a necessidade de um novo projeto de desenvolvimento nacional, que reoriente a economia para resolver os problemas do povo, de trabalho, terra, educação, saúde e moradia. 6 – Levar esse debate para a população, utilizando todos os meios possíveis: programas de rádio, televisão, jornais e organizar atos políticos para discutir essas questões; e exigir as mudanças necessárias.
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De 16 a 22 de junho de 2005
NACIONAL POLÍTICA
Um dilúvio de denúncias sem provas Isolado, governo Lula sofre para se defender de acusações de corrupção feitas por político sem credibilidade
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esmo sem apresentar uma única prova, o deputado federal carioca Roberto Jefferson, presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e histórico aliado de Fernando Collor, fez denúncias que desestabilizaram o mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele acusa Delúbio Soares, tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), de pagar uma mesada de R$ 30 mil para deputados votarem com a situação. Mas Jefferson nega ter provas, pois condena a gravação escondida de conversas. “O governo está num beco sem saída”, avalia Francisco de Oliveira, professor de sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos fundadores do PT. Ele aponta como uma das razões do imbróglio atual o fato de a política ter sido colonizada pela economia. Um exemplo é o fato de o senador Tião Viana (PT-AC), pedir a renúncia de todos os petistas dos cargos que ocupam no governo, exceto Antonio Palocci, ministro da Fazenda. Com isso, antes de os ataques representarem um ataque da direita, para o professor da USP, a situação na qual o PT se encontra é conseqüência das alianças que fez. “A direita está dentro do governo”, diz Oliveira, acrescentando que este é um governo que “vive de crise em crise”.
de orgulho. Afinal, entre 2003 e 2004, a Polícia Federal realizou 45 operações de combate à corrupção nas quais 819 políticos, juízes, empresários, policiais federais e rodoviários e servidores públicos foram presos.
Marcelo Casal Jr./ABR
Luís Brasilino da Redação
VALA COMUM As denúncias de Jefferson causaram furor na imprensa e na sociedade brasileira. A fumaça é tanta e tão bem orquestrada que dá impressão de que não há diferença entre o PT e os outros partidos. O imenso patrimônio construído pelo hoje partido governista vai se perdendo, reforçando a opinião de que política não presta. “É uma atitude preconceituosa, que veio dos positivistas no século 19. Eles eram inimigos da democracia e a favor da ditadura dos intelectuais”, conta Romano. Segundo Chico de Oliveira, todos perdem com essa situação: “Nós, que elegemos o Lula, a república... Nem a oposição ganha com isso. Em longo prazo, a possibilidade de transformar a sociedade se enfraquece porque o único jeito de fazer isso é por meio da política”. Oliveira salienta também que, embora banalize a política, a situação não ameaça as instituições no sentido de uma ruptura. “Gostaria que se refletisse numa revolta popular, mas isso não acontece. Tudo se resume numa apatia, numa violência privada”, lamenta.
Em depoimento à Comissão de Ética da Câmara, Roberto Jefferson voltou a denunciar esquema de corrupção
E A BASE? De acordo com o filósofo Roberto Romano, professor da Universidade Estadual de Campinas, a fragilidade da gestão petista começou no início do mandato. Sem maioria no Parlamento, quadros para suprir todas as necessidades e numa conjuntura econômica conturbada, o governo teve de ceder. “Pouco a pouco, no entanto, a cúpula do PT assumiu uma postura de administrar o governo sem con-
tar com a base do partido”, analisa. Isolar-se, diz, foi um erro fundamental da direção, especialmente num partido sustentado, inclusive financeiramente, pelo militante. “Eles acusam a Previdência de ser antieconômica, tiram direitos dos servidores e usam o dinheiro para fazer superavit e pagar dívidas com banqueiros. Assim, desarma-se a base para defender a cúpula. É o que se está vendo hoje: José Genoíno (presidente do PT) e Aloízio
Mercadante (senador PT-SP) saindo em defesa do governo. Mas onde está a base?”, raciocina Romano. Na avaliação de Romano, o autoritarismo e a ausência das bases facilitaram o surgimento das denúncias de corrupção contra o governo. Com isso, o PT e o presidente Lula foram incapazes de realizar a gigantesca tarefa de alterar, ou atenuar, a estrutura historicamente corrupta do Estado brasileiro, mesmo mostrando número dignos
Por trás da CPI, mais privatização Marcelo Netto Rodrigues da Redação Nada mais adequado do que associar aos Correios um esquema de corrupção para atingir a credibilidade do governo Lula e das empresas estatais. Para os brasileiros, os Correios são uma instituição mais confiável do que a família (que vem em segundo lugar), o Corpo de Bombeiros (em terceiro) e a Igreja, de acordo com pesquisa feita pela Universidade de São Paulo, em 2004. Nada mais intrigante do que o Supremo Tribunal Federal (STF) ter marcado para o dia 15 de junho um julgamento que vai decidir se o monopólio dos Correios na distribuição de correspondências vai ser quebrado ou não e que, justamente
nos Correios, fosse pedida a instalação de uma CPI. Para o secretário de Administração e Finanças da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios (Fentect), Roberto Prado, não se trata de coincidência. “Nós achamos que os fatos têm plena ligação. Achamos que é uma investida, principalmente da iniciativa privada, daqueles que defendem a quebra do monopólio postal, para que a imagem dos Correios seja jogada para baixo perante a opinião pública e, assim, facilitar o julgamento.” Pelos cálculos de Prado, se a iniciativa privada passar a atuar no setor, cerca de 70% dos municípios brasileiros deixarão de ter acesso ao serviço postal porque as empresas privadas vão atender basicamente as capitais e as regiões metropolitanas.
a revista Exame: “O escândalo de corrupção nos Correios mexeu com o cenário político, provocou a abertura de uma CPI, mas ainda não sensibilizou o governo para uma questão fundamental: a necessidade de se retomar o processo de privatizações no país”. Escândalo – no valor de R$ 3.000,00 – que a Exame (da mesma Editora Abril, que publica o semanário Veja, também chegado a denúncias sem prova) chama de “caso grotesco”, exemplo da “demonstração mais transparente da falência do gigantismo estatal brasileiro”. Nada mais direto de como a revista continua seu raciocínio. “A lista de ativos potencialmente privatizáveis da União é, de fato, extensa. Vai de empresas do setor elétrico (como a Eletronorte, também en-
Nada mais suspeito do que um ex-funcionário de Fernando Collor de Mello (no Ministério de Educação e Cultura), advogado com registro cassado na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Paraná, ser o responsável por oferecer R$ 3.000,00 a um funcionário dos Correios para gravar tudo. Mais: que atrelassem justo o deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ), presidente nacional da sigla e um dos líderes “da tropa de choque” de defesa “collorida”, como o chefe do esquema de corrupção num flagrante que, segundo Jefferson, foi armado por agentes da Agência Brasileira de Informação (Abin).
PRIVATARIA Se ainda restam dúvidas, nada mais esclarecedor do que publicou
volvida na crise política atual) aos bancos federais, de aeroportos a estradas, da Petrobrás a empresas de seguro, como o Instituto Resseguros Brasil (IRB) – outra estatal envolvida em denúncias de corrupção.” A mensagem é clara: a estratégia mais eficaz para diminuir a corrupção pública é a privatização, como prega na mídia, atualmente, Luiz Carlos Mendonça de Barros, exministro das Comunicações de FHC e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que diz que se “estivesse no próximo governo, trabalharia forte na privatização da Petrobrás”. Não por acaso, empresa na qual já estão “descobrindo” elos de corrupção entre funcionários indicados por José Dirceu. Mais uma estranha coincidência...
CIDADÃOS ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA Luciana Whitaker/Folha Imagem
Sérgio Lima/Folha Imagem
Wilson Dias/ABR
Eduardo Knapp/Folha Imagem
Lula Marques/Folha Imagem
Breve biografia de políticos que recentemente se tornaram novos paladinos da ética
Antônio Carlos Magalhães (PFL)
Geraldo Alckmin (PSDB)
Roberto Jefferson (PTB)
Fernando Henrique Cardoso (PSDB)
Cesar Maia (PFL)
Apoiador da ditadura militar (1964-1985), Antônio Carlos Magalhães (ACM) foi nomeado pelo regime prefeito de Salvador em 1967 e duas vezes governador da Bahia, em 1971 e 1979. Além disso, foi designado por Ernesto Geisel presidente da Eletrobrás e membro do conselho de administração da Itaipu Binacional. Entre os escândalos mais recentes, destaque para a acusação de grampear desafetos políticos do seu Estado-natal, em 2003, e para a violação do painel do Senado, quando obteve a lista de votação da cassação do senador Luiz Estevão.
Seguindo o exemplo de FHC, Alckmin já abafou 55 pedidos de CPI na Assembléia Legislativa. Entre eles, a do Rodoanel, com o aumento de 70% do valor inicial dos contratos das asas Norte e Oeste, a da CDHU, com suspeitas de superfaturamento e compra de terrenos sem licitação, a das obras do Tietê, que já está 148% mais cara, e a da Febem, cujas denúncias de tortura até agora não foram apuradas. Este último mostra o desrespeito aos direitos humanos no governo tucano: além da Febem, superlotação nos presídios e a execução de 12 membros do PCC na rodovia “Castelinho”, em 2002.
Acusado de liderar um esquema de propinas em estatais como os Correios e o Instituto de Resseguros do Brasil, Jefferson se tornou nacionalmente conhecido no início dos anos 90, quando foi um dos mais ardorosos defendores do então presidente Fernando Collor de Mello. Em 1993, seu nome foi citado na CPI do Orçamento como um dos envolvidos em esquema de propina na Comissão de Orçamento. Apesar de relatório ter considerado seu patrimônio compatível com seus rendimentos, foram contestados bens não declarados à Receita.
Enquanto ocupou a presidência da República, FHC foi um exímio abafador de escândalos e CPI’s. E contou com a ajuda do procurador-geral da República, ou “engavetador-geral”, Geraldo Brindeiro. Dos 626 inquéritos instalados até maio de 2001, foram 242 engavetados e 217 arquivados. Entre estes, quatro envolvendo ele próprio. Os principais escândalos: Sivam, pasta rosa, precatórios, compra de votos para a reeleição, tráfico de influência na privatização da Telebrás e favorecimento aos bancos Marka e Fonte Cidam durante a desvalorização do real, em 1999.
Prefeito do Rio de Janeiro, César Maia tem um obscuro passado, tendo trocado de partido por diversas ocasiões, migrando do PDT de Brizola ao atual PFL. Entre outras denúncias, o cacique carioca responde a processo por supostamente ter superfaturado a compra de um terreno em Nova Iguaçu, ainda em 1985, quando era secretário da Fazenda de Brizola. Uma ação popular reivindica que Maia devolva R$ 40 milhões aos cofres públicos. Recentemente, uma auditoria do Ministério da Saúde revelou que Maia desviou R$ 30 milhões do orçamento da Saúde para investir no mercado financeiro.
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NACIONAL DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO
Ao gosto dos monopólios
Hamilton Octavio de Souza
Lei Geral de Comunicação de Massa não vai regulamentar artigos contrários aos empresários
Fantasia Quem conhece o funcionamento do Diretório Nacional do PT e as pessoas que compõem a Comissão Executiva, sabe muito bem que o tesoureiro Delúbio Soares seria incapaz de fazer qualquer pagamento a parlamentares sem o aval de seus companheiros de partido e do Palácio do Planalto. Ou a grande imprensa empresarial ignora o que acontece ou age de má-fé. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Comemoração à vista O Palácio do Planalto gastou tanto cartucho para proteger o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, mesmo nos momentos em que a vida pregressa dele foi escancarada pela imprensa (sonegação fiscal, evasão de divisas, empresas fantasmas, transações com doleiros etc.), que fica estranho que só se fale na demissão dele agora, no meio de tanta confusão. O que fez o presidente mudar de opinião? Vizinho explosivo Depois de vários dias de manifestações e protestos, camponeses, indígenas, mineiros, operários e estudantes derrubaram mais um presidente na Bolívia. Carlos Mesa já era. Assumiu o presidente da Suprema Corte, Eduardo Rodriguez, já com a missão de convocar eleições gerais até o final do ano. Pode-se falar o que quiser da Bolívia, mas lá governo pusilânime não dura mesmo. Negócio armado O Instituto Internacional de Investigação para a Paz (Sipri), sediado em Estocolmo, na Suécia, estima que os gastos militares de todos os países superaram um trilhão de dólares, em 2004, e que, coincidentemente, entre os maiores vendedores de armas do mundo estão os países mais ricos e poderosos, como Estados Unidos, França, Alemanha, Grã-Bretanha e Canadá. Não é mera coincidência. Ilusão futebolística Levantamento encomendado pelo ex-jogador de futebol Silas, que foi atleta do São Paulo F.C. e da seleção brasileira, mostrou que 65% de 500 entrevistados (jogadores aposentados) não têm qualquer diploma escolar. Além disso, 25% deled ficaram arruinados financeiramente depois de um ano de inatividade, 50% ficaram arruinados no segundo ano; e, após dois anos de aposentadoria da antiga profissão, 78% estão divorciados e desempregados. Passo atrás Em encontro de biossegurança realizado no início de junho em Montreal, no Canadá, causou estranheza a posição solitária e atrasada do Brasil contra a rotulação de alimentos transgênicos, especialmente de produtos importados, de maneira a se proteger o meio ambiente e a saúde pública. Mais estranho ainda é que a delegação brasileira no encontro estava sendo orientada pela Casa Civil da Presidência da República, e não pelo Ministério do Meio Ambiente. Escola policial Em discurso na Assembléia Geral da OEA, na semana passada, a secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, anunciou que está negociando a instalação, em El Salvador, de uma escola internacional para oficiais de polícia de todo o continente. Vale lembrar que a antiga academia dos Estados Unidos no Panamá foi responsável pela difusão da chamada “doutrina de segurança nacional”, que disseminou ditaduras e torturas por toda a América Latina nos anos 60 e 70. Ação comunista Em nota divulgada dia 10, a comissão política do PCdoB de São Paulo pede a apuração rigorosa das denúncias de corrupção, denuncia as manobras do PSDB e PFL, apóia a reforma política, defende o governo democrático de Lula e reafirma as necessidades das mudanças econômicas e sociais. É o que quer o povo brasileiro, especialmente as mudanças.
Bel Mercês da Redação
O
s grandes grupos empresariais de comunicação podem ficar tranqüilos: ao contrário do que prevê a Constituição, o governo não pretende tratar da questão dos monopólios na Lei Geral de Comunicação de Massa, que começará a ser elaborada por um grupo interministerial. O interesse do Planalto é outro: regular os negócios de convergência digital, esse sim um tema que interessa aos empresários. Dia 27 de abril, o Diário Oficial publicou o decreto que prevê o início dos trabalhos da Lei Geral. O texto trouxe uma surpresa aos que esperavam uma regulamentação abrangente: apenas dois (221 e 222) dos cinco artigos do capítulo de Comunicação Social da Constituição Federal estarão no escopo de atuação do Grupo de Trabalho (GT) Interministerial (veja quadro). Não serão tratados pela lei os artigos 220, 223 e 224. O último desses já foi regulamentado, em 1991, com a criação do Conselho de Comunicação Social (CCS) como órgão auxiliar do Congresso Nacional – com pouco poder de atuação em relação a todo o setor. Os outros dois são mais perigosos para os empresários. O 220, por exemplo, impede a existência de monopólios e oligopólios. Como o artigo ainda não foi regulamentado, falta a definição do que legalmente se constitui um “monopólio”, o que anula seu efeito prático. Do artigo 223, ficarão sem regulamentação os mecanismos que prevêem a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de comunicação. A conseqüência é a manutenção do quadro atual: as mesmas empresas privadas controlam a grande maioria dos meios há mais de 40 anos, há um pequeno
Carol Feichas/Folha Imagem
Fatos em foco
Empresas agradecem ao governo por tirar do projeto sobre as comunicações artigos que tratam do monopólio
número de emissoras estatais e um sistema público inexistente.
LEI GERAL? A decisão de não contemplar os outros dois artigos – que estando na Constituição deveriam, por princípio, ser regulamentados – gerou polêmica no segmento. Para Venício Lima, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília (UnB), “não se pode chamar o resultado disso de lei geral, na medida em que exclui pontos tão importantes e decisivos para o setor”. João Brant, da Articulação Nacional pelo Direito à Comunicação CRIS Brasil, que reúne mais de 20 organizações da sociedade civil, acrescenta: “quando se colocam dois artigos e excluem os outros fica claro que não se quer mexer com os empresários”. James Görgen, secretário executivo do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC), é mais otimista. “Decidiram fazer o que é possível no momento. Isso não quer dizer que
O que a lei não vai regulamentar Artigo 220 - Os direitos de livre manifestação e expressão (já garantidos na Lei de Imprensa) - Regulação de espetáculos públicos e a possibilidade de controle e interferência social nas programações - Advertências para propagandas de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias. - A definição a respeito da proibição de monopólios e oligopólios Artigo 223 - Outorga a renovação de concessões, permissões e autorizações tendo em vista a complementariedade dos sistemas privado, público e estatal - Aprovações e cancelamentos de renovações e concessões - Prazos das concessões e permissões
estamos amarrados a esses dois artigos, as coisas podem mudar durante o processo”. O assessor especial da Casa Civil e articulador do GT, André Barbosa, garante que “concessões, renovações, monopólio e propriedade cruzada” serão tratados na Lei. “Não há razão para que haja temor de nenhuma parte, seja dos empresários, dos operadores e também dos movimentos populares e de comunicação alternativa”, diz. Ele acredita que o espaço pode ser usado para se iniciar o debate sobre a criação de um sistema público de comunicação no país. E por que esses temas não estão oficialmente no escopo de atuação
do GT? “É uma questão de forma. Tudo pode ser trabalhado por meio de portarias. As questões sociais não são discutidas junto com a questão da convergência, porque são independentes disso. Muda a tecnologia, mas as regras baseadas no contrato social não mudam”, rebate Barbosa (veja quadro abaixo). Para o professor Venício Lima, no entanto, o governo deu um argumento para os grandes grupos de comunicação, pois “se alguém puxar esses assuntos (monopólio), o representante dos empresários pode levantar a mão e se manifestar dizendo que o GT não foi criado para discutir isso”.
O objetivo é regular os negócios A Lei Geral de Comunicação de Massa está sendo preparada em um contexto de disputas empresariais. O processo de implementação de um sistema brasileiro de televisão digital está a todo vapor, o embate entre as produtoras de conteúdo e as empresas de telefonia continua existindo e campo de atuação entre os dois segmentos precisa ser delimitado. Esse é o principal objetivo da Lei Geral. O assessor especial da Casa Civil e articulador do GT, André Barbosa, explica que o governo está preocupado com os novos modelos de negócios que provêm da convergência tecnológica: “o caminho que estamos traçando é para que essa lei também possa favorecer a possibilidade de crescimento na área indústrial e na área de serviços”.
O pesquisador da Univer sidade de Brasília (UnB) Venício Lima avalia: “eles estão com uma preocupação tecnológica. Regular a disputa entre as teles e as empresas de radiodifusão é coisa que interessa aos principais empresários, em especial à Globo”. Com isso, em segundo plano, ficam temas que dizem respeito não apenas ao mercado, mas também a toda a população. “Um dia ainda teremos as políticas públicas de comunicações percebidas pela maioria da população como as políticas públicas de setores como saúde, habitação e educação. Até lá, os interesses dos grandes grupos privados de mídia continuarão a prevalecer na regulação das comunicações”, prevê o pesquisador. (BM)
DIREITO À TECNOLOGIA
Conferência debate informação mais justa Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ) Software livre e governança da Internet foram os dois temas mais debatidos na Conferência Regional Ministerial da América Latina e Caribe, realizada no Rio de Janeiro, de 8 a 10. O encontro reuniu 37 delegações dos países da região, além de convidados da África do Sul, Índia, China, Egito, Gana, Senegal e Nigéria. O objetivo foi tirar posições comuns para as negociações com os países desenvolvidos que serão travadas na Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, marcada para 16 a 21 de novembro, na Tunísia. Saíram dois documentos finais. A declaração “Compromisso do Rio” enfatiza a inclusão social e a solidariedade na América Latina e Caribe, além de ressaltar a importância de um sistema multilateral de governança da internet baseado na trans-
parência e na democracia – uma crítica ao atual modelo de gestão, centralizado nos Estados Unidos. Os participantes do encontro também elaboraram o “eLAC 2007”, um plano de ação com iniciativas e metas que devem ser implementadas nos países nos próximos dois anos com vistas à construção de uma sociedade da informação mais justa e igualitária. Entre as metas acordadas, estão a ampliação do acesso às tecnologias de informação e comunicação (TICs) em pelo menos 2,5% da população a cada ano; levar internet a pelo menos um terço das escolas públicas e bibliotecas e dobrar o número de telecentros – ou garantir um centro de acesso comunitário para cada 20 mil pessoas – até 2007. Paulo Lima, diretor executivo de Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits), organização não governamental que atua no campo das políticas públicas de inclusão
digital, disse que a opção por soluções tecnológicas com software livre não é ideológica: “Trata-se de não se pagar royalties, visando o fortalecimento da indústria nacional de programas para computador”. No encontro, Brasil, Venezuela e Cuba – países que adotaram o software livre – divulgaram essa opção, mas delegações de países que firmaram tratados comerciais com os Estados Unidos, como o México, defenderam a Microsoft. O tema da governança, ou a administração global da internet, também mereceu destaque. Para o diretor da Rits, a internet é um bem público e não pode ser encarada como “uma estrada informacional, uma infovia, que pode ser regulamentada a partir da legislação de um governo só”. Atualmente, a internet é regulamentada a partir de um contrato do Departamento de Comércio dos EUA com uma instituição, a Icann (sigla em inglês
para Corporação Internacional para o Acesso a Números e Nomes, que opera os servidores-raiz), com sede na Califórnia. “Somos radicalmente contra essa situação. Na guerra do Iraque, por exemplo, o portal da internet da Al Jazheera (canal de notícias árabe) foi tirado do ar. Hoje, os Estados Unidos têm esse poder”, denuncia Lima. Para Nestor Busso, da Associação Latino-americana de Educação Radiofônica (Aler), que integrou a delegação oficial da Argentina, um dos perigos em todo o processo da Cúpula é falar somente de tecnologias: “Falta avançar muito para democratizar os meios, mas a conferência tocou em temas políticos para mudar esta situação estrutural. Reconheceu, por exemplo, que a brecha digital não é uma questão tecnológica, e sim causa e conseqüência das brechas estruturais e sociais”. (Com Bia Barbosa, Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br)
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De 16 a 22 de junho de 2005
NACIONAL BRASIL REAL
Desemprego, preconceito, desigualdade Este é um país de excluídos, discriminação contra negros e mulheres, campeão de concentração de renda
R
ecentemente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), do Ministério do Planejamento, divulgou o “Radar Social”, um retrato em branco e preto do Brasil real, tratando informações de pesquisas do IBGE e outras fontes. Um retrato que vale mais do que qualquer discurso e que prescinde de retoques. O país não vai bem, tal é a dimensão do exército de brasileiros excluídos, aos quais são negados direitos mínimos como trabalho e renda dignos. Mulheres e negros estão em situação ainda pior por qualquer ângulo que se observe, além do preconceito puro e simples. Nesta edição, o Brasil de Fato resume as informações do “Radar” sobre demografia, trabalho e renda. Na próxima, abordará questões pertinentes à situação da educação, saúde e moradia. Em 2003, a população brasileira era de mais de 170 milhões de pessoas, 81% das quais em áreas urbanas. Os menores de 15 anos representavam 28% do total, os maiores de 60, 9%. A expectativa de vida do brasileiro é de menos de 70 anos, condição pior do que
A taxa de desemprego passou de pouco mais de 6%, em 1995, para 10%, em 2003. Nas áreas metropolitanas, o desemprego avançou de 7 para 14%. Fora dessas áreas, passou de 5 para 8%. Sistematicamente, tem ingressado mais gente no mercado de trabalho do que a oferta de emprego é capaz de absorver.
Tuca Vieira/Folha Imagem
Anamárcia Vainsencher da Redação
POLÍTICAS INÍQUAS
Vista do bairro do Morumbi, em São Paulo (SP), mostra prédio de luxo que faz divisa com a favela
a de países como Argentina, Chile, Cuba, Colômbia e México, com 2,5 a oito anos a mais. As mudanças demográficas têm conseqüências: o envelhecimento da população implica em elevação dos gastos com saúde e previdência
A RENDA • Em 2003, 1% dos brasileiros mais ricos (somente 1,7 milhão de pessoas) se apropriava de uma soma das rendas domiciliares semelhante aquela detida pelos 50% mais pobres (86,9 milhões de pessoas). Fonte: IBGE/Radar Social
para os idosos. No Brasil, a participação do Estado na atenção à saúde é insuficiente e os gastos com saúde comprometem parcelas crescentes dos orçamentos familiares. Sendo que a despesa dos idosos com saúde chega a ser seis vezes maior do que entre os mais jovens.
INJUSTIÇA O IPEA mostra como é possível e a importância de medir o potencial produtivo da população, indicador que se obtém da relação entre o grupo predominantemente não ativo (crianças até 14 anos, pessoas de 65 anos ou mais) e o potencialmente ativo (15 a 64 anos). Quando há menos inativos do que ativos, a relação de dependência diminui; quando se dá o contrário, aumenta. Essa variação é importante, pois significa que há mais ou menos adultos produzindo bens e serviços, sustentando mais ou menos crian-
ças e idosos. Em 1980, a razão de dependência era de 73,2 pessoas inativas por 100 ativas; em 2000, caiu para 54,4; e, segundo o IBGE, diminuirá para 48,6 em 2023. Em tese, essa relação indicaria uma boa oportunidade produtiva para o país, já que mais adultos estariam produzindo bens e serviços. Porém, para ser aproveitada, esta oportunidade depende do crescimento sustentado da economia, portanto, da incorporação dos adultos à produção.
SEM TRABALHO Uma das principais formas de integração social, e maior fonte de geração de riqueza, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade, no país, é uma área problemática. Da década de 90 em diante, tem sido claro o descompasso entre a oferta de mão-de-obra e a de ocupação. Resultado: desemprego, informalidade, queda da renda média real.
Naturalmente, o principal motivo da elevação do desemprego tem sido o fraco desempenho da economia nos últimos 20 anos. Contribuíram para isso o fracasso dos planos de estabilização implantados nos anos 80 e início dos 90, além da restrição de crédito associada à alta taxa de juros, que inibiram novos investimentos, uma vez que as aplicações financeiras rendem mais do que os investimentos nas atividades produtivas. Além disso, houve a destruição de postos de trabalho em função da reestruturação produtiva das empresas, sobretudo industriais, em boa parte em reação à desregulamentação e abertura da economia, à privatização e desnacionalização de empresas.
INFORMALIDADE O grau de informalidade no mercado de trabalho, desde os anos 90, nunca foi menor do que 44,7%. A proporção dos trabalhadores sem carteira vem aumentando desde 1993, isto é, cada vez mais empregados deixaram de ter acesso a direitos trabalhistas como 13º salário, adicional de férias, seguro-desemprego, FGTS e diversos benefícios previdenciários. Em 2003, esse contingente representava 24% dos ocupados (17,2 milhões de brasileiros), mais do que os 22% de 1995. Os trabalhadores por conta própria representavam 21% dos ocupados em 2003 – 15 milhões de pessoas. Nesse universo, 82% não contribui para a Previdência.
Em oito anos, a renda do brasileiro cai 15% Entre 1996 e 2003, a renda média real dos trabalhadores diminuiu 15%. No período, também se reduziu a diferença entre trabalhadores informais e formais – este grupo ganhava mais. Entre outros fatores, pode ter contribuído para isso a perda de poder de barganha dos trabalhadores do setor formal (mais sindicalizados), principalmente na indústria, devido à desregulamentação e à abertura da economia. Jovens, negros e mulheres sofrem mais com desemprego e queda na renda. No grupo de 15 a 19 anos, o desemprego passou de 13 para 23%; no de 20 a 24 anos, de 10 para 16%. Quanto aos dois outros grupos, são claramente discriminados, tanto em relação à contratação quanto à remuneração, mesmo quando possuem escolaridade e idade semelhantes às dos homens e brancos.
DISCRIMINAÇÃO Em 2003, a taxa de desemprego entre as mulheres era de quase 13%, diante dos 8% no universo masculino. Entre os negros, 11%, entre os brancos, 9%. Quando se trata de remuneração, o quadro é ainda pior: pelos dados de 2003, os homens ganham, em média, 60% a mais do que as mulheres; e os brancos, 100% acima dos negros. De acordo com os números de 2003, há 1,7 milhão de crianças entre 10 e 14 anos trabalhando e outras 184 mil procurando ocupação. Mesmo com a ressalva de que a aferição do desemprego varia de país para país, a taxa de desemprego no país está em patamares elevados para os padrões internacionais. Em 2003, foi de 10% no Brasil, em relação à média mundial de 6 %, e
latino-americana, de 8%, segundo a Organização Internacional do Trabalho.
O TRABALHO • A taxa de desemprego cresceu entre 1995 e 2003. Ela passou de 6,2% para 10%.
POBRES & INDIGENTES Numa economia de mercado, a qualidade de vida de um povo está diretamente relacionada com a renda, porque é ela que define a capacidade de compra de produtos e serviços das famílias. Assim, é importante que a população tenha renda suficiente para consumir, aquecendo as atividades e criando um círculo econômico virtuoso. É isso, por sua vez, que possibilita a arrecadação de impostos, que podem ser revertidos em investimentos públicos e na prestação de serviços pelo Estado. No Brasil, é alta a incidência de pobreza (insuficiência de renda) e elevada a desigualdade na distribuição de renda. Pelos dados de 2003, 54 milhões de brasileiros (32% dos que informam sua renda) são pobres, vivendo com uma renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo. São 22 milhões de indigentes, com renda domiciliar per capita de até um quarto do salário mínimo.
CONCENTRAÇÃO Entre 1993 e 1996, diminuiu o número de pobres. Entre outros motivos pelos efeitos iniciais do Plano Real; aumento real do salário mínimo; ampliação das políticas sociais. Em relação a essas últimas, tratou-se da implementação das políticas previstas pela Constituição de 1988, com destaque para a expansão das transferências monetárias de renda como a Previdência Rural e o Benefício de Prestação Continuada.
• A informalidade se manteve em alta até 2002 (quando atingiu 47,2%), diminuindo em 2003 (para 45,5%). • A renda média real dos trabalhadores caiu, entre 1996 e 2002, de R$ 754,00 para R$ 589,90. Recuperou-se parcialmente em 2003, quando chegou a R$ 639,30 (em valores reais). Fonte: IBGE/Radar Social
Mas o país continua campeão em alta desigualdade e extrema concentração de renda. Assim, 1% dos brasileiros mais ricos – somente 1,7 milhão de pessoas – apropriase de 13% de toda a renda gerada, mesmo percentual detido pelos 50% mais pobres – 87 milhões de pessoas. Ou, mudando ligeiramente a conta, 10% dos mais ricos se apoderam de 47% da renda.
NEGROS E BRANCOS Aqui, novamente, os negros levam a pior: 44% deles vivem em domicílios com renda per capita inferior a meio mínimo, proporção que é de 20,5% entre os brancos. Ou seja, a probabilidade de um negro estar no estrato mais pobre da população é cerca de duas vezes maior que a de um branco. Com um detalhe: 47% dos brasileiros são negros, 52% brancos. Mas os
primeiros respondem por 66% dos pobres. As maiores desigualdades raciais estão nas regiões Sul e Sudeste (as mais ricas do país), onde há uma proporção duas vezes maior de negros pobres do que de brancos pobres.
CIDADE E CAMPO Também são grandes as diferenças entre as zonas rural e urbana: a proporção de pobres na área rural é mais do que o dobro do que a existente na urbana – respectivamente, 57% e 27%. Em termos absolutos, porém, são 39 milhões os pobres nas cidades, 15 milhões no meio rural. Em termos relativos, contudo, embora menos populosa, a área rural é majoritariamente composta por pessoas pobres. No Nordeste, mais de 55% da população (27 milhões de pessoas)
é pobre, em relação aos 15 milhões do Sudeste (20% da população) e 5 milhões do Sul (18%). Não é novidade que a distribuição de renda no Brasil é uma das piores do mundo. Num grupo de 130 países, é o penúltimo colocado, perdendo apenas para Serra Leoa. A situação no país é pior, até, que a do México. O que distingue o caso do Brasil em termos internacionais é que os elevados níveis de pobreza não estão relacionados a uma insuficiência generalizada de recursos, mas à extrema desigualdade de sua distribuição.
DESNUTRIÇÃO Por isso, são muitos os brasileiros com dificuldade de comer. De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, 47% das famílias têm restrições para comprar alimentos; entre estas, 14% não dispõem de alimento suficiente. A dimensão da desnutrição infantil retrata essa situação: uma em cada dez crianças menores de 5 anos apresenta deficit de altura para a idade. Esse distúrbio nutricional, na medida em que reflete uma das faces mais severas da insuficiência alimentar, mostra que a fome subsiste no Brasil. E não é por falta de alimentos, já que o país produz mais do que o necessário para atender às demandas alimentares de sua população. Ainda em 2001, segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), a disponibilidade interna de alimentos era de cerca de 3 mil calorias por habitante, por dia, valor que ultrapassa, com folga, o mínimo recomendado, da ordem de 1.900 calorias por pessoa, por dia. (AMV)
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NACIONAL POLÍTICA ECONÔMICA
BNDES volta a estimular a concentração Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
O
s empréstimos liberados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) nos primeiros quatro meses de 2005 diminuíram em quase todas as regiões, com uma única exceção. Os Estados do Sudeste, os mais ricos do Brasil, receberam mais recursos da instituição. Só que o Banco, originalmente, foi criado para promover a descentralização do crescimento e a redistribuição da renda entre as regiões brasileiras, privilegiando as menos desenvolvidas. Os financiamentos destinados ao Sudeste cresceram 13% no quadrimestre, e representaram 62% das liberações totais, retomando os níveis de 2002, último ano do governo Fernando Henrique Cardoso. Nos primeiros dois anos da administração petista, o BNDES buscou reverter esse quadro, reduzindo ligeiramente os índices de concentração dos desembolsos em favor do Sudeste. No ano passado, a participação da região no total de empréstimos do BNDES recuou para 53,5%. Juntos, Norte, Nordeste e CentroOeste receberam quase 25% do total, participação que encolheu para 16,4% até abril de 2005, coincidindo com a mudança na administração do banco (saiu Carlos Lessa, entrou Guido Mantega).
REDUÇÕES No primeiro quadrimestre deste ano, a instituição liberou R$ 12 bilhões em empréstimos, 2% a menos do que em igual período de 2004. As quedas mais pronunciadas atingiram as regiões Norte (menos 37%) e Centro-Oeste (menos 32%). O total de desembolsos diminuiu de R$ 1,23 bilhão para R$ 833 milhões no Centro-Oeste
e de R$ 492 milhões para R$ 309 milhões no Norte. Na região Sul, houve baixa de 15,5% (os desembolsos recuaram de R$ 3,1 bilhões para R$ 2,6 bilhões). Nesse caso, em conseqüência da seca, que afetou toda a agricultura da região e vem causando estragos no restante da economia local. A quebra da safra trouxe prejuízos reais para os produtores que trataram de reduzir o consumo não só de tratores, colheitadeiras, plantadeiras e outras máquinas e insumos, mas também de televisores, geladeiras, carros e outros bens duráveis. O esfriamento da economia na região, assim, desencorajou os planos de investimento das empresas, afetando o desempenho do BNDES. As empresas nordestinas também tomaram menos recursos ao BNDES até abril: R$ 829 milhões, cerca de 4% menos do que em igual período de 2004.
Eduardo Knapp/ Folha Imagem
Mais de 60% dos recursos emprestados pelo banco até abril foram para os Estados da região Sudeste
AVANÇOS Diversamente, os empréstimos para o Sudeste cresceram 13%, de R$ 6,64 bilhões para R$ 7,48 bilhões. Somados, os recursos liberados para os Estados mais desenvolvidos do Sul e Sudeste até abril representaram quase 84% dos empréstimos totais do Banco – a taxa de concentração mais elevada dos últimos seis anos. O BNDES é a única instituição que financia investimentos de prazos mais longos, a taxas de juros mais baixas do que a média do mercado financeiro. Os recursos que empresta são utilizados pelas empresas para ampliar ou modernizar a capacidade de produção e para a construção de novas fábricas – o que tende a estimular a geração de mais empregos e renda, impulsionando o consumo e reforçando as possibilidades de crescimento futuro da economia.
Pátio de montadora em São Paulo: empréstimos para o Sudeste cresceram 13%, de R$ 6,64 bilhões para R$ 7,48 bilhões
Ao concentrar a aplicação de recursos nas áreas mais desenvolvidas, o banco cria e agrava distorções no processo de desenvolvimento, concentrando as chances de crescimento naquelas regiões. O resultado será uma concentração ainda maior da renda e da riqueza
entre as regiões mais desenvolvidas, em prejuízo das demais. No primeiro quadrimestre, pouco mais de 40% dos empréstimos do BNDES foram destinados a dois setores intimamente interligados: a indústria de material de transporte (que inclui fabricantes de automóveis,
embarcações, locomotivas e vagões ferroviários e aviões) e o segmento de transporte terrestre (construção de estradas e ferrovias). Um quarto dos recursos foi para montadoras de veículos, que têm destinado parcelas cada vez maiores de sua produção para o mercado externo.
ENTREVISTA
Juros altos, uma camisa-de-força “No momento, o Brasil é o país mais chantageado do mundo pelo capital financeiro internacional. Nós somos objeto de uma chantagem colossal, e dela são sócios os bancos brasileiros”, afirma o economista Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Segundo Lessa, os juros vigentes no país são indecentes. “São os mais elevados juros reais do mundo.” E mesmo que isso encareça o pagamento do serviço da dívida pública, o Banco Central mantém a taxa nas alturas. O governo teme que uma queda na taxa de juros possa contrariá-los, levando-os a retirar seus capitais do país e derrubando as reservas internacionais brasileiras. “É isso que intimida o Lula, que fica serventuário do Henrique Meirelles, que é deles, e do Palocci, que não é de ninguém. Na verdade, eu, pessoalmente, acho que é um bobo”, diz o economista. Leia a seguir trechos da entrevista com Carlos Lessa.
POLÍTICA ECONÔMICA “A chave desse jogo é a taxa de juros, que gera um desembolso extremamente elevado para o serviço da dívida pública, priorizado na visão do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Conselho Monetário Nacional (CMN). É priorizado sobre os gastos sociais, administrativos e investimentos públicos. É pior ainda: as estatais, mesmo quando bem geridas e lucrativas, não podem se endividar porque isso é contabilizado como gasto, travan-
do por inteiro seu investimento. Quando uma empresa privada investe, normalmente se endivida. Só que a empresa pública é proibida de fazer isso.”
TAXA BÁSICA DE JUROS (SELIC) “Os juros que o Brasil pratica são indecentes. São os mais elevados juros primários reais do mundo. A taxa de juros extremamente elevada tem como primeira conseqüência bloquear os gastos públicos. Por que o serviço da dívida é priorizado? Porque um pedaço dessa dívida não é de propriedade de brasileiros, mas de empresas estrangeiras que estão no país, ou de fundos do exterior. Calcula-se que existam 15 bilhões de dólares em fundos de curto prazo no Brasil. O medo deles é que, se baixarem os juros, esse dinheiro vá embora e leve as reservas internacionais junto. É uma chantagem que é feita permanentemente sobre o Brasil. E, obviamente, os bancos brasileiros são parceiros, ganham em cima disso.”
recuperou a liberdade e pôde fixar corretamente os juros lá embaixo. Além disso, usou a sua situação para renegociar o passivo. Ou os credores internacionais aceitavam sua proposta ou não teriam nada, porque a Argentina não tinha como pagar. O Brasil ainda tem muita coisa, por isso vão nos pressionar e estão nos chantageando.”
CHANTAGEM FINANCEIRA “Tem de baixar os juros de qualquer jeito, senão o governo fica preso a uma camisa-de-força e não tem como se mexer. Do jeito que está, o presidente Lula não tem como se mexer, é prisioneiro das escolhas que ele fez. (...). O Brasil é o país mais chantageado do mundo pelo capital financeiro internacional no momento. Nós somos objeto de uma chantagem colossal, em que os bancos brasileiros são sócios. É isso que intimida o Lula, que fica serventuário do Henrique Meirelles, que é deles, e do Palocci, que não é de ninguém; na verdade, eu pessoalmente, acho que é um bobo.”
DÍVIDA PÚBLICA
SUPERAVIT PRIMÁRIO
“O que está nos sufocando, em primeiro lugar, é essa parcela de dívida pública que é de propriedade de gente do exterior. Porque gente do Brasil não tem outro jeito, vai ter que aceitar os juros que o governo quiser pagar, mas os do exterior podem sair, e isso produziria um crack financeiro no Brasil. Para poder baixar o juro tem de controlar o câmbio, senão eles pulam fora com a queda dos juros e, ao fazer isso, colocariam a corner a economia brasileira. A Argentina foi levada a corner, foi destruída. Depois,
“É uma fraude lingüística. Não temos superavit primário nenhum. Temos deficit nominal. Apesar do superavit primário, todos os anos, pagamos mais do que o valor economizado para o serviço da dívida. Todos os anos, cresce o estoque da dívida, não diminui. Nós somos sangrados e o tumor cresce, em vez de diminuir. Chamar isso de superavit é uma picaretagem. Só que acumulamos deficit não para investir em políticas sociais ou infra-estrutura, mas para pagar juros. Os impostos estão elevadíssimos
para pagar juros. O país está sendo sangrado para isso. É evidente que o país deveria ter deficit, mas com políticas sociais e programas de investimento que gerem emprego.”
DESEMPREGO “Ampliar a política de educação, saneamento, construção de casas populares gera empregos. Qual o problema do país, hoje? O desemprego. O Brasil tem 80 milhões de pessoas na população economicamente ativa. Mais de 10 milhões são desempregados oficiais. Só entra nesse número quem procurou emprego na última semana. Quem procurou há um mês e desistiu, não é mais desempregado. Pela técnica do questionário, é considerado um ‘optante pelo desemprego’. Aí temos mais 12 milhões em situação de desemprego disfarçado, contingente formado por quem desistiu de procurar e quem sobrevive trabalhando mais de 40 ou menos de 14 horas por semana, ganhando menos de meio salário mínimo. Há 22 milhões de desempregados no total. Um em cada quatro brasileiros está em situação precária. O mais grave é que 40% deles têm 25 anos ou menos. Este é o drama: vivemos numa sociedade que não dá esperança de futuro para a juventude. Reduzir o superavit para programas que gerem emprego é prioridade total.”
BANCO CENTRAL E CMN “Eu sou inteiramente favorável a que o Conselho Monetário Nacional tenha representações sociais. Claro que todos presos à obrigatoriedade do sigilo e com o voto registrado em ata. A autonomia do Banco Central
é um absurdo completo. Não há motivo para abrir mão da soberania sobre o dinheiro e crédito, nem para o Estado diminuir, se atrofiar. Se o Estado é democrático e controlado democraticamente não há nenhuma razão para cair nas mãos de cinco ou seis cavalheiros, que não são eleitos, que ninguém sabe o nome. É ultraautoritário. É subordinar o país aos interesses do sistema financeiro internacional, o que também interessa a todos os banqueiros brasileiros.”
Agência Brasil
Igor Felippe Santos de Sao Paulo (SP)
Quem é Carlos Lessa é doutor em economia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi presidente do BNDES (2003-2004), reitor da UFRJ (2002), assessor e coordenador da campanha à presidência de Ulysses Guimarães (1988-1989). Atualmente, prepara para o PMDB um programa com propostas de governo para a campanha presidencial do partido em 2006.
Ano 3 • número 120 • De 16 a 22 de junho de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO BOLÍVIA
Novo presidente, crise antiga E
m um clima de instabilidade política, o Congresso boliviano nomeou, dia 9, Eduardo Rodríguez, presidente da Suprema Corte, como o novo chefe do Executivo no país. No mesmo dia, os parlamentares aceitaram também a renúncia de Carlos Mesa. A decisão, no entanto, está longe de ser a solução para a crise na Bolívia. As reivindicações dos protestos sociais que balançaram a Bolívia nessas últimas três semanas continuam sem ser atendidas. Recémempossado, o advogado Rodríguez sabe disso e não quer ser o quinto presidente boliviano a cair em quatro anos. Em seu primeiro discurso, já se comprometeu a convocar uma eleição presidencial. Pela Constituição local, o pleito deve ser realizado dentro de seis meses. Mas nada indica que o país viverá um clima de tranqüilidade. Indiferente à convulsão social que tomou conta do país, a oligarquia boliviana anunciou que seguirá com a decisão de realizar um referendo sobre a autonomia da província do Departamento de Santa Cruz de la Sierra em 12 de agosto. A região responde por 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do país e quer controlar esses recursos sem se submeter às leis federais (veja quadro abaixo). Já os setores sociais mais ativos durante a mobilização social vão manter seus principais pleitos a convocação de uma Assembléia Constituinte e a nacionalização dos hidrocarburetos. A avaliação é que tem se avançado em direção a esses objetivos. Os movimentos populares conseguiram derrubar Carlos Mesa e, de quebra, impediram que Hormando Vaca Díez (presidente do Senado) e Mario Cossío (da Câmara) assumissem a presidência, já que eram os sucessores naturais do cargo. Ambos representam interesses da elite boliviana e estavam ligados ao ex-presidente Gonzalo Sanchéz de Lozada, deposto em outubro de 2003.
FORÇA Apesar da morte do trabalhador mineiro Carlos Coro Mayta durante os protestos, os movimen-
Movimentos sociais fazem acordo com novo presidente, mas continuam defendendo a convocação de uma Assembléia Constituinte e a nacionalização dos hidrocarburetos
tos sociais demonstraram que têm força para impor suas plataformas. Para o escritor Alex Contreras, da Agência Latino Americana de Informações (Alai), os partidos neoliberais e a embaixada estadunidense registraram três derrotas em um curto período. Primeiro, perderam Lozada; depois, foi a vez de Mesa , e agora, Vaca Diez e
O novo presidente boliviano procurou também estabelecer diálogo com os oposicionistas mais radicais: os moradores de El Alto, cidade da periferia de La Paz. Dia 12, Rodríguez se encontrou com dirigentes de organizações camponesas e mineiras do município. Em entrevista coletiva depois da reunião, o presidente disse que “o sistema democrático renova-
Direita segue com divisionismo Apesar de o presidente boliviano, Eduardo Rodríguez, ter conseguido uma trégua com os moradores de El Alto, na periferia de La Paz, o Departamento de Santa Cruz, onde estão os maiores empresários do país, confirmou que vai convocar um referendo para conseguir sua autonomia em 12 de agosto. A afirmação foi feita pelo presidente do Comitê Pró-Santa Cruz, German Antelo. Outros departamentos, como os de Tarija, Beni
e Pando, podem seguir o exemplo da região de Santa Cruz e lançarem consultas internas para obterem autonomia. Essa decisão pode se converter em um grave conflito porque, no fundo, está a discussão do destino dos hidrocarburetos. A forte convulsão social de mineiros e camponeses na empobrecida região ocidental e andina do país teve como demanda central a nacionalização dos hidrocarburetos, mas a oligarquia de Santa Cruz é contra a iniciativa. Mas os grupos empresariais da
região tiveram recentemente um revés porque seu candidato para a sucessão presidencial, Hormando Vaca Díez, presidente do Congresso, foi obrigado a renunciar ao seu direito de suceder o chefe do Executivo, Carlos Mesa. A situação em Santa Cruz continua tranqüila, mas a direitista União Juvenil Cruceñista tem dado sinal de querer atuar como força de choque ao atacar violentamente as manifestantes indígenas. (La Jornada, www.jornada.unam.mx)
do tem de atender à agenda” social, que coloca como ponto central a nacionalização dos hidrocarburetos, o principal recurso da Bolívia, país mais pobre da América do Sul, como informa o diário mexicano La Jornada. O dirigente da ativa Federação das Juntas dos Moradores de El Alto (Fejuve), Abel Mamani, disse que serão criadas comissões para discutir a implementação dessa agenda social. A aproximação do presidente com a população de El Alto permitiu que fossem suspensos os bloqueios nas estradas que passam por La Paz. No entanto, a trégua é momentânea, porque durante a semana devem ser realizados novos protestos em frente ao Congresso cobrando a convocação de uma Assembléia Constituinte. Os manifestantes querem também que o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozado seja julgado por crime de responsabilidade a respeito da morte de 80 cidadãos durante os protestos de outubro de 2003. (Com agências internacionais)
EUA
DITADURAS
Cai lei que protegia militares argentinos A Corte Suprema de Justiça (CSJ) da Argentina declarou inconstitucionais as leis Ponto Final e Obediência Devida, que eximiam de responsabilidade os repressores da ditadura militar (1976-1983). Com o voto favorável de seus nove membros, o tribunal fechou assim um dos capítulos mais tenebrosos da história recente argentina, que permitiu a impunidade de centenas de militares autores de delitos contra a humanidade. O principal efeito da decisão foi que a CSJ garante, agora, a continuidade de numerosos processos abertos por violação dos direitos humanos nos últimos dois anos, depois que o Congresso anulou as conhecidas leis de perdão. A resolução do CSJ foi considerada como algo inédito pelos organismos de direitos humanos por colocar perto do cárcere entre 500 e mil militares. “Ambas as normas de impunidade privaram as vítimas de seu direito de obter uma investigação judicial com sede criminal, destinada a individualizar e sancionar os responsáveis das graves
Cossío não puderam assumir. O movimento social boliviano segue, no entanto, com divergências. O grupo mais ameno, ligado ao deputado Evo Morales, do Movimento Ao Socialismo (MAS), já sinalizou que Rodríguez terá um período de trégua para avançar na convocação das eleições e da Assembléia Constituinte.
violações aos direitos humanos cometidas durante o último governo militar”, afirmou o procurador-geral da Nação, Estaban Righ. Para ele, a Obediência Devida e o Ponto Final quebraram pactos internacionais vigentes na época em que foram sancionadas (1986 e 1987, respectivamente). Esse foi um dos principais argumentos utilizados para defender a inconstitucionalidade das duas leis. A sentença atendeu também a uma antiga reivindicação do presidente Néstor Kirchner, que prometeu essa medida desde que chegou ao poder, há dois anos. Atualmente, há cerca de 100 oficiais ou ex-militares detidos em função dos processos na Justiça, muitos dos quais cumprem prisão domiciliar por razões de idade avançada. Nessa situação, estão os ex-ditadores Jorge Rafael Videla e Emilio Massera, símbolos do terrorismo de Estado que torturou e matou mais de 30 mil argentinos, segundo estimativas dos organismos de direitos humanos. (Prensa Latina, www.prensa-latina.com)
Presidente perde apoio Da Redação Duas notícias negativas para o presidente George W. Bush ganharam as páginas dos jornais nos Estados Unidos recentemente. A primeira é que os estadunidenses registram, agora, o maior pessimismo em relação à guerra do Iraque, desde seu início. E a segunda informa que o Exército fracassou mais uma vez na tentativa de alcançar suas metas de recrutamento. Uma pesquisa do jornal Washington Post e da TV ABC News mostra que 75% dos estadunidenses julgam “inaceitáveis” os números de baixas no Iraque; dois terços acredita que as Forças Armadas dos EUA estão “atoladas” naquele país e cerca de 60% opina que essa guerra não vale a pena. Esses números, assinala o jornal, revelam que o pessimismo chegou ao grau mais alto e indicam que mais de 40% crê que o Iraque está se convertendo em um novo Vietnã para os Estados Unidos. A pesquisa revela que, pela primeira vez, a maioria (52%) não concorda com a justificativa oficial da guerra: de que os Estados Unidos estão mais seguros. Agora, só
Ahmad Al-Rubaye/AFP/ Folha Imagem
Jorge Pereira Filho da redação
Ali Burafi/AFP/ Folha Imagem
Eduardo Rodríguez assume o Executivo, mas movimentos sociais prometem manter suas principais reivindicações
Protesto de iraquianos contra a ocupação dos Estados Unidos, em Bagdá
47% opina que se sente mais seguro por causa da guerra, número que despencou, quando se considera que era de 62% em fins de 2003. Não é de surpreender, então, que cada vez menos jovens queiram juntar-se à luta “pela liberdade”. Mesmo tendo reduzido suas metas de recrutamento de novos soldados, o Exército mais uma vez recebeu menos recrutas do que esperava para maio – exatamente 25% a menos, segundo o jornal The New York Times. Foi o quarto
mês consecutivo em que o Exército não alcançou suas metas de recrutamento. A guerra e os escândalos de abuso e violação dos direitos humanos, entre outras coisas, levaram a uma piora da confiança popular no presidente Bush, comandante das Forças Armadas. Dia 7 de junho, até o ex-presidente Jimmy Carter pediu o fechamento da prisão militar estadunidense em Guantánamo (Cuba). (La Jornada, www.jornada.unam.mx)
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AMÉRICA LATINA VENEZUELA
EUA adiam julgamento de terrorista Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
E
m meio a manifestações ocorridas nas principais cidades dos Estados Unidos e da Venezuela, um tribunal de imigração estadunidense postergou para 24 de junho a audiência que decidirá se o terrorista Luis Posada Carriles poderá aguardar em liberdade o seu julgamento, previsto para 29 de agosto. O advogado de defesa Eduardo Soto solicita a transferência do acusado para ser julgado por um júri em Miami, centro de concentração da direita cubano-estadunidense. O cubano anticastrista, acusado de ser o responsável pela explosão de um avião cubano que causou a morte de 73 pessoas, em 1976, será julgado pelos tribunais estadunidenses por violar as leis de imigração e não por terrorismo, como exigem os governos de Cuba e da Venezuela. Se o tribunal o considerar culpado pelo ingresso ilegal nos EUA por meio da fronteira do México, Carriles poderá ser deportado. A dúvida é se o governo estadunidense considerará o pedido de extradição à Venezuela, solicitado pelo presidente Hugo Chávez. O governo George W. Bush qualificou como “mal fundamentada” a solicitação de Caracas para a extradição de Carriles e já negou um primeiro pedido. Outro argumento uti-
Marcelo Garcia
Enquanto manifestantes saem às ruas para pedir extradição de Posada Carrilles, defesa tenta transferir réu para Miami
Em Caracas, venezuelanos pedem a extradição do terrorista Luis Posada Carriles, acusado de matar 73 pessoas
lizado pelo governo estadunidense é de que a Venezuela poderia entregar Carriles aos tribunais cubanos depois da sua extradição. Para garantir imparcialidade e justiça no julgamento, o governo de Cuba já afirmou que se nega a receber o terrorista. Enquanto isso, em várias cidades estadunidenses, centenas de
manifestantes convocados pelo Comitê Contra a Guerra e o Racismo saíram às ruas em várias cidades do país exigindo do governo dos EUA: “Extraditem Posada Carriles para a Venezuela”, “Para um assassino em massa, asilo não” e “Parem com a guerra de 45 anos contra Cuba”. Na Venezuela, centenas de mani-
festantes se reuniram em frente do Ministério de Relações Exteriores para entregar mais de 50 mil assinaturas recolhidas em todo o país em um campanha pela extradição de Carriles. Um grupo de deputados venezuelanos viaja esta semana a Washington para entregar às autorida-
des uma resolução da Assembléia Nacional exigindo a extradição de Carriles. Os parlamentares entregarão um documento à Organização dos Estados Americanos (OEA), no Congresso e no Departamento de Estado, exigindo o cumprimento de um acordo de extradição firmado em 1922, entre os dois países. Para proteger o anticastrista, o governo de Bush opta por não aplicar a Lei Patriótica, criada após os atentados de 11 de setembro, a qual proíbe a entrada nos EUA de pessoas vinculadas ao terrorismo. Criticada pelos cidadãos estadunidenses como uma ferramenta de cerceamento da liberdade, a lei é apenas um dos instrumentos utilizados interna e externamente para justificar as invasões e ingerências dos EUA nos demais países, em nome do combate ao terrorismo. A história de Carrilles traz à tona as práticas promovidas pelos EUA para controlar a América Latina e derrocar governos populares na região. Um dos temores do governo estadunidense para não extraditar o anticastrista é de que Carriles poderia fazer importantes revelações sobre a atuação da CIA e a ligação dos Estados Unidos com o período das ditaduras latino-americanas e das operações anticuba. (Com informações da Prensa Latina, www.prensa-latina.org, e da Agência Bolivariana de Notícias, www.abn.info.ve )
CUBA
Gilberto Maringoni de Havana (Cuba) Sentado atrás de uma das mesas do palco do imenso auditório do salão de convenções de Havana, uma construção modernosa dos anos 70, Fidel Castro leva o indicador esquerdo em direção à sua testa, enquanto estica o longo braço direito para o escritor argentino Miguel Bonasso, que tinha a palavra. Aparentando cansaço, pedira um aparte que se estenderia por mais de quinze minutos. Carregando na pronúncia das consoantes, o líder cubano parecia ditar o que falava. “Ele saiu do Panamá em 16 de março. Em menos de dois meses desatamos uma batalha que está revolvendo os crimes políticos cometidos em mais de meio século, na América Latina, desde a invasão da Guatemala pelos Estados Unidos, em 1954.” O pronome na terceira pessoa tem uma referência: Luis Posada Carriles. Em torno dele, montou-se uma ousada operação política. “Creio na possibilidade de atuar não apenas por nós, mas por toda a América Latina”, diz Fidel, quase soletrando, enquanto Bonasso aguarda o fim da interrupção. Na platéia, nessa tarde chuvosa de 3 de junho, estão 680 participantes de 67 países, convidados cinco dias antes. Entre eles estão o cineasta Walter Salles Jr., a cantora Beth Carvalho, o poeta Thiago de Mello, Hebe de Bonafini, das Mães da Praça de Maio, José Vicente Rangel, vice-presidente da Venezuela, Chafic Handal, dirigente da Frente Farabundo Martí, de El Salvador, o belga François Houtart e muitos outros. O evento chamase “Encontro internacional contra o terrorismo, pela verdade e a justiça” e fora preparado a toque de caixa. Livros, filmes e documentários foram editados literalmente de um dia para outro, numa urgência típica de grandes confrontos.
PONTO FRACO Fidel encontrou o ponto fraco do discurso antiterrorismo do governo estadunidense, brandido a quatro ventos desde 11 de setembro de 2001.
Marcelo Garcia
Fidel encontra o ponto fraco de Bush como parte da Operação Condor, a coalizão entre os serviços de repressão das ditaduras chilena, argentina, uruguaia, brasileira e paraguaia, estabelecida em novembro de 1975. Como graduado agente da CIA, seu envolvimento na Condor evidencia que a extradição de Carriles interessa não apenas a Cuba e a Venezuela, mas também aos demais países do continente que vivenciaram ditaduras patrocinadas pela Casa Branca.
SOBREVIVENTES
Em encontro, Fidel Castro denunciou as tentativas dos EUA de desestabilizar governos democráticos
Trata-se do discurso da guerra preventiva, a justificar ataques ao Afeganistão e Iraque e ameaças a Cuba, Venezuela, Coréia do Norte, Síria e Irã, da materialização do Plano Colômbia e da manutenção dos cárceres em Guantánamo, além de restrições de toda ordem na Organização dos Estados Americanos (OEA), na atividade de imprensa e nos direitos civis nos próprios Estados Unidos.
O elo débil é o abrigo dado até agora à permanência impune do ex-agente da CIA e terrorista Luís Posada Carriles nos EUA. Nas últimas semanas, toda a energia da diplomacia cubana voltou-se para essa luta, “uma batalha de idéias, antes de mais nada”, sublinha Fidel. Uma gigantesca marcha de 2 milhões de pessoas tomou a avenida costeira, o Malecón, há poucos dias.
Manifestação igual aconteceu em Caracas. E agora a administração cubana vale-se de uma prova mais profunda na tentativa de reunir uma frente continental pela extradição de Carriles. Trata-se da descoberta de seu envolvimento no assassinato do chanceler chileno Orlando Letelier, em Washington, em 21 de setembro de 1976. A operação fora tramada
Terrorista de carteirinha Nascido em Cuba e naturalizado venezuelano, Carriles, de 77 anos, exibe uma invejável folha corrida, que inclui pelo menos duas tentativas comprovadas de tentar assassinar Fidel Castro, além do planejamento e execução da explosão em pleno ar de um DC-8 da Cubana de Aviación, procedente de Caracas, em 6 de outubro de 1976. Morreram na ocasião 73 pessoas, entre elas, toda a equipe juvenil de esgrima de Cuba, sagrada pouco antes campeã centro-americana, na capital venezuelana. A carreira de Carriles vem de longe. Já em 1961, pouco depois da ma-
lograda invasão da baía dos Porcos, ele recebia treinamento militar nos EUA para futuras ações em território cubano. “A CIA nos ensinou tudo, como usar explosivos, como matar, fazer bombas e nos treinaram em atos de sabotagem”, relatou ao The New York Times, em 12 de julho de 1998. Preso na Venezuela, no início dos anos 1980, Carriles fugiu da cadeia em 1985, graças à ajuda de Jorge Canosa, então presidente da Fundação Cubano-Americana, uma organização anticastrista com sede em Miami, criada durante a administração do presidente estadunidense Ronald Reagan. Em 2000, foi preso
e condenado no Panamá pela tentativa de homicídio ao presidente cubano, Fidel Castro, na reunião de Cúpula Ibero-Americana. No entanto, a ex-presidente Mireya Moscovo, tradicional aliada dos Estados Unidos, concedeu indulto a Carriles e a outros terroristas anticastristas em seu último ato de governo. Carrilles reapareceu ilegalmente nos EUA há alguns meses, vindo do Panamá, passando pelo México. Detido como imigrante ilegal, em 17 de maio, aguarda agora a decisão de seu pedido de asilo por parte de um juiz federal, em El Paso, Texas.
O encontro internacional se estendeu por três dias. Sucessivas vítimas de ditaduras tomaram o microfone para relatar o horror a que estiveram submetidos nos anos de chumbo na América Latina. Posada Carriles, entre outros agentes da CIA, assessoraram as máquinas de tortura em diversos países, que literalmente arrebentaram milhares de militantes e ativistas populares. Sobreviventes e filhos, irmãos, mães, pais, avós de desaparecidos tocavam num ponto comum: não se falava ali de dramas e dores individuais, mas de uma máquina de terror a serviço de um tipo de dominação. Quando Fidel termina seu longo aparte, relatado no início, Miguel Bonasso passa a mão em seus ralos cabelos e lembra ao Comandante: “A repressão não acabou em nossos países. Ela foi substituída pelas democracias controladas e o genocídio agora é social, cometido pelos planos de ajuste”. Virando-se para a platéia, completa: “O desaparecimento físico de militantes é agora substituído pelo desemprego, uma espécie de desaparecimento social”. Para ele, essa é uma espécie de continuação da Operação Condor. “Margareth Tatcher dizia preferir um trabalhador desempregado a um empregado. E explicava. O primeiro, se trata com políticas compensatórias, mas o segundo reivindica e se organiza.” Mas a frente continental que se forma – e que envolverá tribunais sobre o terror em diversos países – não está comprando uma briga genérica. Aposta num alvo concreto e determinado que pode desarmar toda a pregação belicista do governo Bush.
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INTERNACIONAL ENTREVISTA
Bush, o anjo do apocalipse nuclear O
mundo caminha para um apocalipse nuclear. O temor, que marcou o período da Guerra Fria, quando Estados Unidos (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), detentores dos maiores arsenais atômicos do mundo, lutavam por influência global, não desapareceu. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, a médica Helen Caldicott, cuja entidade foi laureada em 1985 com o Prêmio Nobel da Paz por seu histórico de campanhas contra a energia nuclear, faz um alerta sobre o presidente estadunidense, George W. Bush: ele pode vir a usar bombas atômicas contra países que considerar inimigos. Se isso ocorrer, afirma, uma guerra nuclear deve eclodir que, no fim, levará à destruição da Terra. Não só as bombas são um risco para a humanidade, pois a produção mesmo de energia nuclear põe em risco os seres humanos. “A indústria nuclear é a indústria do câncer, porque cria dejetos tóxicos que não podem ser eliminados. A contaminação, quando existem tais dejetos, não pode ser freada. É a causa da doença de milhões de crianças”, afirma. Brasil de Fato – Em recente declaração, o ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos Robert McNamara (1961-1968) condenou a estratégia militar de Bush. Disse que, ao investir milhões de dólares no desenvolvimento de bombas atômicas, o presidente estadunidense faz o mundo correr o risco de um colapso nuclear. McNamara está certo? Helen Caldicott – Com certeza. Rússia e Estados Unidos ainda têm milhares de bombas atômicas, prontas para disparar em caso de qualquer tipo de ameaça. No caso russo, o sistema de controle das armas nucleares está totalmente sucateado, os satélites não funcionam e os militares desse país se sentem vulneráveis. Ficam atentos a qualquer atividade estadunidense, com um dedo pronto para disparar mísseis de destruição em massa. Nesse sentido, pouco mudou desde o fim da Guerra Fria, em 1991. Continuamos no limite do aniquilamento total. O governo estadunidense é uma ameaça. BF – Em sua opinião, Bush pode vir a usar uma bomba nuclear em uma de suas investidas militares? Helen – A política militar de Bush não deixa dúvida: bombas atômicas podem ser usadas contra países que representarem ameaças aos EUA. Ou seja, armas nucleares podem ser usadas contra quem Bush quiser. Essa é a política oficial do governo estadunidense. BF – Na hipótese de Bush disparar uma bomba atômica, isto pode gerar uma guerra nuclear, considerando uma eventual resposta militar da Rússia, China e outros países que têm esse tipo de armamento? Helen – Os EUA têm 5 mil bombas atômicas prontas para disparar, e a Rússia, 2.500. Usadas simultaneamente, à medida que cidades fossem consumidas por fogo, enormes nuvens de poeira tóxica tomariam conta da estratosfera e impediriam os raios do sol de atingir a superfície terrestre. O fenômeno, conhecido como inverno nuclear, levaria a uma era glacial, com a morte de todas as formas de vida no planeta. BF – Quais são os investimentos que Bush fez em tecnologia militar nuclear?
Arquivo pessoal
João Alexandre Peschanski da Redação
Rodrigo Baleia/ Greenpeace
O arsenal nuclear dos EUA é um perigo para a humanidade, alerta a médica australiana Helen Caldicott
Quem é Médica de formação, a australiana Helen Caldicott se tornou uma das principais ativistas antinuclear do mundo. Em 1985, a entidade, que criou Médicos pela Prevenção da Guerra Nuclear, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. É também diretora do Instituto de Pesquisa em Política Nuclear, que acompanha as estratégias de corporações e governos em relação ao uso dessa energia. É autora de diversos livros, entre eles O novo perigo nuclear, sobre a política bélica de Bush, e A loucura nuclear, que detalha os problemas médicos que causa a exposição a esse tipo de energia. Em frente da sede das Indústrias Nucleares Brasileiras, no Rio, manifestantes exigem fim da aventura nuclear
Helen – Ele financia a pesquisa e produção de 400 novas armas de destruição em massa por ano, incluindo bombas atômicas. Para isso, gasta 6,5 bilhões de dólares por ano, mais do que foi gasto em toda a Guerra Fria para a questão nuclear. BF – Cabe ao presidente dos EUA, sozinho, a decisão de disparar uma bomba atômica ou ele tem que consultar o Congresso? Helen – É ele que decide. A justificativa que o governo propaga é que não há tempo para consultar o Congresso, pois uma guerra nuclear se decide em três minutos. A responsabilidade da decisão recai toda sobre ele. No caso de Bush, como ficou claro em diversas oportunidades, haveria ainda menos negociação com o Congresso. Assim, o controle sobre as armas de destruição em massa dos EUA está inteiramente nas mãos de Bush. Melhor dizendo, não acredito que esse presidente tome realmente as decisões militares. Essas são tomadas por seus conselheiros, o primeiro escalão do governo, e ele só as sanciona. Nessas questões, quem decide é o vice-presidente Dick Cheney e o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld. Bush só segue as ordens. BF – O governo dos EUA investe bilhões em armamento nuclear, mas critica todos os países que destinam verbas para desenvolver tais armas. Isso não é contraditório? Helen – Essa contradição é perversa. Os EUA são um modelo para muitos países do mundo e, enquanto seu governo desenvolver armas de destruição em massa, outros governos também vão querer imitá-lo. A mensagem de muitos países é clara: se os estadunidenses desenvolvem bombas atômicas, nós também queremos fazê-lo. BF – Os tratados contra a proliferação de armas nucleares foram globalmente abandonados? Helen – O governo de Bush não segue os acordos que foram ratificados durante todo o século 20 e se nega a assinar qualquer
um mais recente. Destruiu o Tratado de Míssil Antibalístico, que os EUA firmaram com a URSS em 1972. Não segue o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, redigido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1968. Esse último, cuja atualização é discutida por centenas de países, é permanentemente sabotado pelo governo estadunidense.
dades inteiras. De um ponto de vista clínico, posso dizer que as pessoas que estão estimulando isso são completamente loucas. Precisam de atendimento psiquiátrico para mudar seu comportamento. E são essas as pessoas que controlam o maior arsenal nuclear do mundo, os EUA. Não deve ter existido um período mais arriscado do que o atual em toda a história.
BF – A posição de Bush pode levar a uma corrida generalizada por armas nucleares? É caso do Irã, por exemplo? Helen – O governo iraniano não é tanto estimulado pelos EUA, mas mais pela política de Israel, que, de qualquer forma, se alinha com Bush. O governo israelense controla 400 bombas e o Irã é um vizinho próximo e se sente ameaçado. Por outro lado, há uma proliferação chamada vertical. A partir do momento em que os EUA investem e constroem novas armas, Rússia e China são estimuladas a desenvolver a mesma tecnologia. É uma luta por soberania, que agora atinge a militarização do espaço. Tudo isso ocorre à revelia da ONU, que afirma que não pode haver armas nucleares no espaço. Também há a proliferação dita lateral, de pequenos países que se sentem ameaçados pelos EUA e que consideram, destacando o belicismo do atual governo, que bombas nucleares devem ser o fundamento de sua soberania.
BF – Em declarações oficiais, em maio, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, afirmou que pretende desenvolver tecnologia nuclear, voltada para a produção de energia. Foi alvo de duras críticas do governo estadunidense. A decisão de Chávez é acertada? Helen – Admiro Chávez, que transformou a situação de seu país e é um grande líder, mas ele não precisa disso. Ele é maior do que o grupo de crianças perigosas que querem controlar uma tecnologia que pode levar à destruição do mundo. Mesmo quando não usado em armas, a energia nuclear é muito perigosa, pois gera epidemias de câncer, como leucemia em crianças. Apesar de minha admiração por Chávez, se ele mantiver essa decisão, vou ter de criticá-lo e espero encontrá-lo para fazê-lo mudar de idéia.
BF – Por que militarizar o espaço? Helen – São crianças perigosas brincando com seus brinquedos de destruição em massa e desperdiçando o dinheiro dos impostos do povo. O governo dos EUA decidiu que quer conquistar o espaço e age de modo intransigente em relação a isso. Esquece que, no mundo, vivem bilhões de pessoas, que não lhe deram legitimidade para fazer isso. É uma estratégia perversa para controlar as comunicações dos países, que dependem de satélites, que estão no espaço. Além disso, Bush desenvolve armas nucleares, disparadas por satélites, que podem destruir ci-
BF – Em seu livro, O novo perigo nuclear, há denúncias contra a ação de corporações que tentam reabilitar a imagem da energia nuclear. Em propagandas, dizem que esse tipo de energia é o mais limpo. É verdade? Helen – Em qualquer uma das etapas do ciclo de produção de energia nuclear, como, por exemplo, o enriquecimento do urânio, ou a construção de reatores, é gerada uma quantidade imensa de lixo tóxico. Diz-se muitas vezes que as indústrias termelétricas são responsáveis pelo aquecimento global, mas, na verdade, as nucleares são as que mais causam danos à camada de ozônio. As usinas que usam materiais atômicos liberam milhões de litros de gases radioativos todos os anos, que
são cancerígenos. Na verdade, a produção de energia nuclear é o contrário da limpeza: é ruim para o ambiente e para a saúde humana. BF – Há algum aspecto positivo que possa justificar a produção e o uso da energia nuclear? Helen – Não. A indústria nuclear é a indústria do câncer, porque cria dejetos tóxicos que não podem ser eliminados. A contaminação, quando existem tais dejetos, não pode ser freada. É a causa da doença de milhões de crianças. Não dá para aceitar uma indústria que aja assim. Não dá para dizer: “Vamos produzir energia, mas, desculpemnos, também vamos produzir uma epidemia de câncer de pele e câncer nos testículos”. Gases como o criptônio e o xenônio, liberados por reatores nucleares, causam mutações genéticas. Quando uma família está perto de uma usina, não há como prevenir que seja afetada por esses produtos. BF – Os EUA gastam bilhões de dólares na produção de energia nuclear. Novamente, esse país surge como uma ameaça à sobrevivência de todos os habitantes do mundo. Como especialista no assunto, não seria o caso de marcar um encontro com o presidente estadunidense para discutir esses problemas? Helen – Em 1983, encontrei-me com o então presidente Ronald Reagan. Tivemos uma discussão, reservada, e, mesmo não sendo um homem muito inteligente, ele tinha um bom coração. Conversamos bastante e o convenci a destruir diversas armas nucleares, dizendo que eram um risco para a humanidade. No caso de Bush, não acredito que seja tão inteligente quanto Reagan, nem acredito que ele tenha um coração. No entanto, se fosse convidada a me reunir com ele, eu certamente iria, mas só se fosse para encontrá-lo só, sem seu círculo de conselheiros. Assim, poderia estabelecer uma relação de médico e paciente com ele, pois só assim poderia descobrir quem ele realmente é e conversar com ele e tocar sua alma.
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INTERNACIONAL LIBÉRIA
Exploração sustenta indústria de pneus Carmine Curci de Harbel City (Libéria)
Carmine Curci
Trabalho semi-escravo, inclusive de crianças, é rotina nos campos de extração de látex da Firestone
U
REPÚBLICA DA LIBÉRIA Localização: Oeste da África. Nacionalidade: liberiana Cidades principais: Monróvia (capital), Harper, Gbarnga, Buchanan, Yekepa. Línguas: inglês (oficial), bassa, kpellé, kru. Divisão administrativa: 14 condados. População: 3,2 milhões (2000), sendo grupos étnicos autóctones 72% (principais: capeles 19%, bassas 15%), árabes libaneses 25%, américo-liberianos 3% (1996). Moeda: Dólar liberiano (LRD) Religiões: 70% crenças indígenas; 20% muçulmana; 10% cristã
Transnacional estadunidense desrespeita direitos trabalhistas e provoca danos ambientais na Libéria
do que outros, que perderam a visão. Não recebem nenhuma compensação, nem da companhia, nem do Estado, embora tenham dado muitas contribuições”. As moradias reservadas aos trabalhadores e suas famílias são precárias: um só cômodo, em condições deploráveis. “E aqui moramos quatro pessoas, até oito”, diz Hoff, mostrando a mulher e os filhos. Em Harbei Hills – há uma barreira para atravessar – as residências destinadas aos dirigentes da Firestone são luxuosíssimas: eletricidade, água corrente, parabólicas. Há até um campo de golfe e várias quadras de tênis. Henry Nyanti, eletricista, está trabalhando num transformador: “Graças à central hidrelétrica, a companhia produz cerca de 1,5 milhão de quilowatt por mês”. Nenhum quilowatt para os operários, mas mesmo assim as crianças vigiam os postes. Nas 45 partes em que está subdividida a plantação, há dez escolas elementares e quatro escolas médias. Jennifer Taweh, mãe de quatro meninos, diz: “Os nossos filhos têm de caminhar 7 quilômetros para chegar à escola. Mas o que mais me dá raiva é que sempre falta material didático. As classes estão superlotadas. E, assim, nós, os pais, somos obrigados a construir cabanas de palha para acomodar os alunos. Anna, sua vizinha, acrescenta: “Obviamente, isso vale
só para os filhos dos operários. Para os dos dirigentes, as classes são bonitas e bem construídas. Antes da guerra civil, para eles havia inclusive ônibus escolares”. Não há nenhuma escola superior na plantação. Terminada a escola média, 90% dos filhos dos operários permanecem na plantação.
DEGRADAÇÃO AMBIENTAL Há um forte cheiro acre dentro da plantação. O estabelecimento emite grande quantidade de fumaça e a concentração de dióxido de carbono no ar é, com certeza, elevada. Os resíduos do processamento da borracha são lançados no rio Farmington. Em Monróvia, os responsáveis pela organização não-governamental (ONG) ambientalista Save my Future asseguram: “A Firestone polui o Farmington com os resíduos de seu grande maquinário de centrifugação e outros. Demonstramos que no rio são lançados ácido sulfúrico, amoníaco, formaldeído e outras substâncias tóxicas. É impossível beber a água. É grande a mortandade dos peixes”. A companhia nega as acusações. O dirigente Edwin Padmore declara: “Temos sistemas sofisticados para purificar a água usada no processamento da borracha. Testes feitos nos nossos laboratórios certificam a pureza da água e a nãotoxidez das fumaças”. Depois, no entanto, deixa escapar: “A situação
Carmine Curci
m grande cartaz, com o logotipo da transnacional, dá boas-vindas a quem chega às porteiras da plantação. A poucos metros de distância, num posto da Organização das Nações Unidas com pessoal nigeriano, um militar com metralhadora pesada controla o movimento de pessoas. Do outro lado da estrada, um carro blindado branco está pronto para qualquer eventualidade. Um segundo cartaz obriga os carros a parar e os passageiros a prosseguir a pé. Passa-se pela vigilância da polícia liberiana, depois pela da nigeriana. Ultrapassada a cancela, percorre-se uma estrada arborizada até Harbel City, bem no meio da plantação, e eis a empresa Firestone. Está aqui desde 1926, isto é, desde quando Harvey S. Firestone, fundador da fábrica de pneus, decidiu tornar os Estados Unidos independentes da produção britânica e holandesa de borracha e assinou com o governo liberiano um acordo para a concessão de um milhão de acres de terreno, durante 99 anos (prorrogáveis), a um custo irrisório. As árvores – da espécie Hevea brasiliensis – foram importadas do Brasil. Desde então, a companhia, absorvida pela Bridgestone em 1988, exportou da Libéria milhões de toneladas de Caucho – substância semelhante ao caucho, mas jalátex mais implantou no país um estabelecimento para produção de borracha e derivados. A Libéria é hoje o terceiro produtor mundial de caucho, depois da Tailândia e da Malaísia – mas não produz um único objeto de borracha. São 20 mil os trabalhadores na Firestone Rubber Plantation, 14 mil fixos, 6 mil sazonais. Um deles, Joseph Wolo, conta a jornada típica de quem extrai o látex: “Começamos às 4 horas e vamos até as 16 horas. Fazemos incisões nas árvores, aplicamos os baldes e, quando estão cheios, os esvaziamos e limpamos. Depois, aplicamos estimulantes e fungicidas nas incisões, para forçar as plantas a produzir outro látex, fazemos outras incisões e assim por diante”. Um trabalhador chega a lidar com 850 árvores por dia. O contrato é de 3 dólares por dia. Mas, tirados os impostos e outros descontos, ficam com 1,5 dólar. São os operários que pagam mais impostos no país. Para aumentar a produção, a companhia introduziu uma espécie de “prêmio por produção”. Que vai, sobretudo, para os superintendentes – autores de estratégias que se traduzem em maior exploração dos operários. Querem o dobro do trabalho: até 1,5 mil árvores por dia. “Somos obrigados a pedir a ajuda da família, inclusive dos filhos menores. É um verdadeiro sistema de escravidão, que nos torna servos dos campos. Se você diz não, é mandado embora da plantação. E sempre há outro desesperado como você, disposto a aceitar essas condições. Até mesmo a receber somente meia jornada, se você não consegue completar o número estabelecido de árvores”, revela Wolo.
MORADIAS PRECÁRIAS Moises Hoff, há 30 anos na Firestone, está às vésperas da aposentadoria: “Vou receber miseráveis 20 dólares por mês. Se pelo menos recebesse logo! Mas não, devo esperar muito tempo. O mesmo vale para a indenização por demissão. Alguns colegas estão esperando há mais de um ano”. Sentado à porta da casa, ele tem o rosto voltado para o chão. Os olhos semicerrados estão como que inflamados: “Trabalhei com substâncias químicas e os meus olhos sofreram graves danos. Mas tive mais sorte
Libéria é o terceiro produtor mundial de caucho
ambiental na plantação está dentro de níveis aceitáveis”. James Makor, diretor-executivo da Save my Future, insiste: “A companhia não está fazendo nada para melhorar a situação ambiental e as condições de trabalho de seus funcionários. Os salários não pagam o trabalho exigido. Os líderes sindicais lá dentro são marionetes nas mãos dos dirigentes. Os trabalhadores não têm a quem recorrer para defender os seus direitos. Podemos documentar numerosas formas de exploração de menores”. Dia 5 de abril, apesar da indignação de muitos cidadãos e de ONGs, a Assembléia Nacional Le-
gislativa de Transição (ANLT) da Libéria ratificou um acordo com a Firestone para estender a concessão das plantações por mais 36 anos, até 2061. Makor afirma: “É um ato ilegal. A ANLT, como é interina, não tem nenhuma base para fazer isso. Nossa esperança é de que, depois das eleições de outubro, o novo Parlamento rejeite essa nova concessão”. Mas o Parlamento vai fazer isso? “Vistos quem são os candidatos, tenho sérias dúvidas”, completa Makor. Uma pergunta fica no ar: a Ferrari não usa os pneus Bridgestone/ Firestone na Fórmula 1? Será que seus patrocinadores souberam de onde vem a matéria-prima? Carmine Curci é diretor da revista Nigrizia, publicação parceira do Brasil de Fato
ÁFRICA
Perdão da dívida não resolve situação dos países pobres da Redação O cancelamento da dívida multilateral de 18 países pobres, decidido dia 11 pelos ministros de Economia do G8 (grupo dos sete países mais ricos do mundo, mais a Rússia), em Londres, “não resolve o problema”, disse em Dacar, capital do Senegal, o economista francês nascido no Egito Samir Amin, 74 anos, presidente do Fórum Mundial das Alternativas. “O perdão da dívida ao FMI, ao Banco Mundial e ao Banco Africano do Desenvolvimento (BAD) foi decidido porque a dívida cumpriu suas funções e não é mais útil”, declarou à agência France Presse. Para o economista, “a submissão ao neoliberalismo funciona agora como um meio de drenagem dos recursos dos países em desenvolvimento”. O total das dívidas canceladas seria de 40 bilhões de dólares para aqueles 18 países. Em um ano, entram no grupo dos “perdoados” mais nove nações, com dívidas de 11 bilhões de dólares. Mais adiante, outros quatro países, que devem 4 bilhões de dólares. Os primeiros beneficiados são: Benin, Bolívia, Burkina Faso, Etiópia, Gana, Guiana, Honduras, Madagascar, Mali, Mauritânia, Moçambique, Nicarágua, Níger, Ruanda, Senegal, Tanzânia, Uganda e Zâmbia. O presidente do Banco Mundial, Philip Wolfovitz, já pediu que o perdão seja imediatamente estendido à Nigéria. O anúncio foi feito um mês antes da reunião de cúpula dos
chefes de governo do G8 em Gleneagles, na Escócia, pelo ministro das Finanças da Grã-Bretanha, Gordon Brown, que presidiu a reunião em Londres. Do total geral de 55 bilhões de dólares, 6 bilhões são devidos ao FMI, 44 bilhões ao Banco Mundial e 5 bilhões ao BAD. O acordo ocorreu quatro dias depois de uma visita do primeiro-ministro britânico Tony Blair a Washington, para levar a proposta ao presidente estadunidense George W. Bush. A França e a Alemanha exigiram que o Banco Mundial e o BAD recebam, dos países ricos, cada dólar perdido com o perdão aos países pobres.
NA MESMA O FMI, entretanto, deverá se recuperar com seus próprios recursos. Nos próximos três anos, o FMI, o Banco Mundial e o BAD deveriam receber, pelo serviço da dívida perdoada, 3,6 bilhões de dólares, o que dá idéia de quanto os países ricos deverão gastar. No entanto, esses países ricos não assumiram qualquer compromisso sobre a alardeada duplicação da ajuda internacional aos países pobres, de 50 bilhões de dólares por ano para 100 bilhões anuais, prevista pelo plano britânico para a África. Também praticamente não foi discutida uma proposta da França e da Alemanha para reservar, aos países pobres, a renda de uma taxa sobre as passagens de avião. (Com agências internacionais)
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NACIONAL POVOS INDÍGENAS
Madeireiros devastam terra Guajajara E
nquanto a professora Maria da Conceição Ribeiro Guajajara vê, através da janela da classe, um caminhão lotado dos troncos de ipê atravessar sua aldeia rumo à cidade, seus 28 alunos assistem a aula sentados sobre tijolos de barro. Na escola Kari, que recebe o mesmo nome da aldeia, não existem cadeiras, mesas ou armários. O caminhão que Conceição vê partir da aldeia carrega 8 toras de 10 metros de ipê – pelas quais um Guajajara recebe do madeireiro, em média, R$ 25. O madeireiro vende a “carrada” (nome dado ao caminhão cheio de madeira) para o serralheiro por R$ 1 mil o metro cúbico. O serralheiro repassa o ipê para fábricas de móveis e construção, principalmente dos Estados da região Sul e de São Paulo, por R$ 2.500, em média, o metro cúbico. Considerando que em cada carrada é possível se aproveitar 80 metros cúbicos de ipê, podese concluir que, da floresta até a indústria de móveis, o ágio sobre a carrada de ipê é de 80.000 % sobre o valor pago ao Guajajara. O preço da carrada para os indígenas pode ser ainda menor, dependendo da necessidade da comunidade indígena. Não são raras as vezes em que os Guajajara são pagos com açúcar, óleo de soja e café. Mas há casos também em que os madeireiros simplesmente não pagam e ameaçam de morte os Guajajara. Ipê, camaru, jatobá, massaranduba, sapucaia, maracatiara, amarelão. São muitos os tipos de madeiras consideradas “nobres”, encontradas nessa terra indígena. Localizado no Oeste do Maranhão, o território dos Guajajara do Araribóia, de 547 mil hectares, é uma área muito cobiçada por madeireiros que atuam de maneira ilegal na floresta Amazônica. Em um levantamento feito pela Fun-
Itamar Guajajara acusa madeireiro de levar para a aldeia doenças, bandidos, devastação e morte
dação Nacional do Índio (Funai) de Imperatriz, nos últimos vinte anos, constata-se que aproximadamente 70% de toda a terra indígena da região foi devastada pela ação dos madeireiros. Estima-se que existam 87 caminhões e 27 tratores derrubando árvores, diariamente.
COMÉRCIO MALDITO “A venda da madeira não trouxe benefício para nenhum Guajajara. Ninguém ganhou dinheiro ou ficou rico. Muito ao contrário, o madeireiro trouxe para a aldeia doença, bandidos, devastação, morte, prostituição, cachaça, ganância e inveja”, lamenta o cacique da aldeia Iporangatu, Itamar de Souza Guajajara. Depois da área devastada, muitos dos que trabalham no corte das árvores,
como tratoristas, motoristas, serralheiros, catraqueiros, cozinheiros, passam a viver na terra indígena. Entre esses trabalhadores encontram-se muitos foragidos da polícia, com mandado de prisão por crimes como assassinato e assalto à mão armada. No rastro do corte ilegal de madeira vêm as carvorias, que se instalam dentro da terra indígena e em seu entorno. Para fazer o carvão, retira-se quase todo tipo de árvore. Sobre a madeira, de menor valor, retirada e queimada nos fornos, as comunidades não recebem nada. Todo carvão produzido nessa região vai para as indústrias do município de Açailândia, importante pólo siderúrgico onde estão instaladas empresas como Vale do Rio Doce e Ferroguza. O Centro de Defesa da Vida e
dos Direitos Humanos de Açailândia (CDVDH), que há dez anos atua no combate ao trabalho escravo na região Sul do Maranhão, denuncia
que, tanto no trabalho do corte de madeira quanto nas carvorias, existem trabalhadores em situação de escravidão. A ação dos carvoeiros e dos madeireiros sustenta o ciclo econômico do trabalho escravo e desestrutura completamente a dinâmica da sociedade dos Guajajara, confirma o Conselho Indigensista Missionário (Cimi) Maranhão, que trabalha há 27 anos com os Guajajara. Durante os dois dias em que a reportagem esteve na terra Araribóia, correu a notícia de que uma grande operação, envolvendo o Exército, a Polícia Federal, a Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), seria realizada para prender não-índios foragidos da polícia e coibir a extração ilegal de madeira. Nesse período, o movimento de extração esteve totalmente paralisado. Nenhum caminhão, arrrastão, tratores ou homens com moto-serra foi visto na área de maior fluxo. No entanto, foram encontradas toras cortadas de ipê e jatobá abandonadas. “Quando tem operação, as autoridades só encontram os índios, parece até que os madeireiros já sabem. No fim, sobra para nós passar pela humilhação de ser tratado feito bandido”, afirma o cacique da aldeia Angelim, Dico Rodrigues Guajajara.
Cristiano Navarro
Cristiano Navarro de Amarante (MA)
Cristiano Navarro
Além de destruir a floresta, exploradores escravizam os índios e levam doenças às aldeias
Uma das carvoarias ilegais instaladas em terra indígena guajajara
Priscila Carvalho da Baía da Traição (PB) “Aumento da pistolagem, perseguição, criminalização e assassinato de nossas lideranças, aumento da mortalidade infantil, de doenças infecto-contagiosas e endêmicas, continuidade das invasões dos nossos territórios, morosidade nas demarcações de terras, degradação do ambiente por madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e até mesmo pelo governo federal, desrespeito às nossas organizações, às nossas tradições... enfim, a falta de uma política indigenista clara e precisa tem trazido, aos nossos povos, todo esse quadro de desrespeito e de violência generalizada.” Essa foi a conclusão tirada por mais de 250 indígenas, na 6ª Assembléia da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), realizada entre os dias 6 e 9, na terra indígena Potiguara, município da Baia da Traição, na Paraíba. Pela primeira vez, indígenas do Rio Grande do Norte participaram da Assembléia. Além de definir as prioridades para a atuação das lideranças indígenas do Nordeste, os participantes da Assembléia decidiram focar seu trabalho na formação das lideranças, no fortalecimento do trabalho nas aldeias e na continuidade das articulações nacionais. A assembléia posicionou-se contra a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável pelo atendimento à saúde dos indígenas, que
Mirna Nóbrega
Comunidades do Nordeste Sem a mata, sem realizam sua maior assembléia assistência, sem futuro
Falta de política indigenista causa violência generalizada contra povos indígenas
se recusa a atender povos que não têm a situação fundiária regularizada ou não têm o “reconhecimento étnico” da Fundação Nacional do Índio (Funai). Para os indígenas, isso fere a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que preconiza a auto-identificação das populações tradicionais. Durante o encontro, foram fortes as críticas à atuação da Funai: “A Funai se aproveita dos atrasos dos relatórios, não dá atendimento, dizendo que não tem relatório, que não tem recurso nesse ou naquele setor. E somos nós que estamos nas bases, enfrentando pistoleiro, fazendeiro, garimpeiro e madeireiro”, afirmou a liderança Luiz Titiah, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. O texto subscrito pela Apoinme questiona a decisão do presidente da Funai em não constituir o Conselho
de Política Indigenista Nacional, com o qual ele se comprometeu, durante o Abril Indígena. Esse conselho, para os indígenas, representa um instrumento para participar das políticas que os atingem. “A Funai está baseada na tutela, em conceitos herdados da ditadura militar e que caíram por terra com a Constituição de 1988”, afirmou o antropólogo Estêvão Palitot, da Universidade Federal da Paraíba. Os povos indígenas também solicitam a suspensão do projeto de transposição do Rio São Francisco e a transferência dos recursos do projeto para a revitalização do rio. “O São Francisco, hoje, é a vida de 25 povos indígenas, além de todos os povos ribeirinhos das suas margens. Nós que vivemos no rio sabemos que ele está morrendo. Por isso, somos a favor da revitalização”, afirmou Neguinho Truká.
Há pouco mais de um mês, os Guajajara do Araribóia fizeram contato visual com um grupo de aproximadamente 60 pessoas do povo Awá, que vive isolado e de maneira nômade, perambulando pelo que restou da floresta. Havia vestígios da presença dos Awá nessa região, mas acredita-se que eles evitam o contato a todo custo com a sociedade ou mesmo com os Guajajara. “Nesse contexto de violência, os Awá são os mais vulneráveis à violência e às doenças transmitidas pelos ‘brancos’”, diz José Pedro Luís, da Funai de Imperatriz. Segundo Pedro Luís, dentro do Estado mais pobre da federação, os Guajajara do Araribóia são o povo indígena com maior índice de tuberculose e o fator principal é a desnutrição. “Com a chegada do madeireiro, muita gente deixou de fazer roça e ficou dependente da derrubada. Agora que a mata vai se acabando, o povo vai passando necessidade. Antes não era assim, cada família vivia da sua roça e aqui tinha muita caça”, comenta o cacique Itamar. Não só a tuberculose; doenças sexualmente transmissíveis também chamam atenção. Na terra indígena, três pessoas morreram infectadas pelo vírus da Aids e ainda há outro doente infectado com o vírus. “As doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids, são um grande perigo. A falta de informação e atendimento pode levar a uma tragédia”, afirma Pedro Luís.
A dificuldade no transporte dos doentes da floresta até a cidade e o fato de existir apenas uma equipe de saúde para cobrir as 49 aldeias da terra indígena coloca os Guajajara do Araribóia em total abandono, no que se refere à saúde.
UM FUTURO DIFERENTE? Além da falta de estrutura, a escola Kari não recebeu alimentos para merenda, material didático. O salário de sua única professora, Conceição, que leciona para alunos de 1ª a 4ª séries, está atrasado há 5 meses. A partir da quinta série, todos os alunos Guajajara precisam ir para cidade estudar, o que na época de chuva é impossível. “Que futuro nós vamos dar para essas crianças, nas condições em que vivemos?”, questiona Conceição. Sem projetos ou financiamento do governo para agricultura ou exploração sustentável dos recursos naturais da floresta, neste momento não existem alternativas econômicas imediatas no horizonte dos Guajajara da Aribóia. “Ninguém fica feliz vendo a mata ir embora, sem nenhuma assistência de remédio, de educação e sem nenhum projeto do governo para plantar a nossa roça. O que é que a gente vai fazer para sobreviver? E esses homens do Ibama que criticam a gente, queria ver viver aqui abandonado na floresta como a gente vive”, desafia a liderança da aldeia Iporangatu, Vírgulino de Souza Guajajara. (CN)
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DEBATE OS RATOS DA MONSANTO
Os ratos da Monsanto Silvia Ribeiro da Cidade do México (México) o dia 22 de maio, o jornal inglês The Independent revelou um estudo secreto da Monsanto que mostrava que um grupo de ratos alimentados com milho transgênico dessa multinacional sofreu mudanças em órgãos internos e no sangue. No México, a Secretaria da Saúde, equivalente a Ministério, aprovou esse milho para consumo humano em 2003. O estudo revelado dá conta de uma experiência que compara os efeitos em dois grupos de ratos: um grupo alimentado durante treze semanas com uma dieta rica em milho Mon 863 (um tipo Bt) e outro grupo com milho convencional. O informe, de 1.139 páginas, mostra que os roedores que comeram o produto transgênico sofreram anormalidades nos rins e na composição sangüínea, o que não aconteceu com os que comeram milho convencional. Devido às repercussões em jornais importantes da Europa e muitos outros no mundo (a notícia, saiu, por exemplo, na primeira página da Folha de S. Paulo, um dos principais jornais do Brasil), a Monsanto disse que tornaria público o estudo. Porém, só circularam press-releases e um resumo de onze páginas do documento. O restante, segundo a empresa, “contém informação empresarial confidencial que poderia ser usada pela concorrência”. No México, talvez por não ser um tema relevante – o país é apenas o centro da origem do milho e a população o consome de forma massiva – ou talvez porque haja ratos em demasia ou amigos da Monsanto em demasia, a notícia foi ignorada pelas autoridades e praticamente não difundida pela mídia.
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No entanto, vários especialistas consultados pelo jornal britânico opinam que os dados são alarmantes, já que as mudanças no sangue poderiam indicar que houve danos ao sistema imunológico, ou outros distúrbios, como tumores. Michael Antoniu, especialista em genética molecular da Guy’s Hospital Medical School, declarou que as descobertas descritas no resumo são “altamente preocupantes do ponto de vista médico” e afirmou estar “impressionado pela quantidade de diferenças significativas que se encontraram” na experiência. Para a Monsanto, de outro lado, as mudanças registradas são “insignificantes” e devem ser atribuídas a “variações normais entre ratos”. Além disso, alega a empresa, o milho Mon 863 foi aprovado em vários países, e acrescenta cinicamente que, “se qualquer crítico da biotecnologia tivesse dúvidas sobre a credibilidade dos estudos, deve-
ria tê-las expressado junto aos órgãos regulamentadores”. PROBLEMA DOS ROEDORES
O México é um dos países a que a Monsanto se refere. A Comissão Federal para a Proteção contra Riscos Sanitários (Cofepris), da Secretaria da Saúde, aprovou a liberação da Monsanto em 7 de outubro de 2003. No ano seguinte, a organização não governamental Greenpeace denunciou que a Cofepris não faz as suas próprias avaliações cien-
tíficas, mas se baseia nas avaliações entregues pelas empresas produtoras de transgênicos. Se a Cofepris teve acesso ao estudo da empresa, quais foram suas conclusões e em que as baseou? Ou simplesmente lhe bastou a interpretação da transnacional, de que as anormalidades relatadas são problema dos próprios ratos? A Monsanto argumenta que o Mon 863 foi analisado pela Agência de Segurança Alimentar Européia (EFSA, na sigla em inglês), que essa agência conhece a totalidade do estudo e recomendou o milho à Comissão Européia
(que não aprovou o Mon 863). O que a empresa não conta é que essa agência contratou primeiro o doutor Arpad Pusztai, conceituado especialista em genética molecular e nesse tipo de experiências, obrigando-o a assinar uma declaração de confidencialidade, que ele assinou pensando que o texto logo seria publicado pela EFSA. Pusztai encontrou “uma lista imensa de diferenças significativas” entre os dois grupos de roedores, além de ter feito críticas severas à metodologia e às conclusões do estudo da empresa. A agência não gostou do chamado “Informe Pusztai”, que coincidia com as conclusões de outros especialistas europeus, que tinham obtido antes uma versão censurada do texto, como GillesÉric Seralini, da Universidade de Caen, na França. Para Seralini e outros colegas, o Mon 863 poderia ter efeitos nocivos e não deveria nunca chegar à cadeia alimentar. A EFSA, no entanto, descartou esse alerta e procurou outros “cientistas” que tivessem a mesma opinião da Monsanto. Logo a agência publicou uma recomendação favorável. Ao que parece, cientistas independentes das multinacionais, populações preocupadas com sua saúde, camponeses que não querem que seu milho se contamine com elementos tóxicos e milhões de outros cidadãos que dizem não aos transgênicos, por essas e por muitas outras razões, não são elementos que devam ser levados em conta pela EFSA, pela Secretaria da Saúde ou pelos legisladores que votaram a mal chamada Lei de Biossegurança. Com a Monsanto, tudo bem. Silvia Ribeiro é pesquisadora do Grupo Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC)
20ª SEMANA DO MIGRANTE
Migração, Solidariedade e Paz Luiz Bassegio Há vinte anos, o Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), vinculado à Confederação Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), realiza a Semana do Migrante em todo o Brasil. São produzidos diversos materiais como cartazes, textobase, círculos bíblicos, camisetas etc. Partindo das sugestões das equipes de base da pastoral, define-se um tema e um lema. Estes sempre procuram aprofundar o tema da Campanha da Fraternidade da CNBB, porém, sob o enfoque da migração. Já foram tratados temas como terra, moradia, água, negros, mulheres, violência. Neste ano o tema é “Migração, Solidariedade e Paz”; e o lema é “Mensageiros da Justiça e da Paz”. Nos dias da Semana do Migrante, além de celebrações, são realizados debates, programas nas rádios e nas TVs, teatros, festas com manifestações folclóricas, danças e comidas típicas. Tudo isso em vista de criar um ambiente de acolhida aos migrantes, valorizar sua religiosidade e identidade e favorecer a integração. A Semana do Migrante será de 12 a 19 de junho. Num mundo marcado por guerra, violência, exclusão e xenofobia, se faz urgente buscar a paz de forma propositiva e ousada. A migração no Brasil segue a tendência mundial de aumento das migrações. De país de imigração, o Brasil tornou-se um país de emigração. São cerca de 2 milhões os brasileiros que estão no exterior, sendo que 1 milhão se encontra nos Estados Unidos, 300 mil no Paraguai, seguindo-se
Japão e países da Europa, como Portugal, França, Inglaterra, Itália e Espanha. FORMAS DE VIOLÊNCIA
Há diversas formas de violência: a violência visível que diariamente as tevês mostram em nossos lares, ligada a tráfico, guerras, assaltos, chacinas, terrorismo, crime organizado; há também a violência oculta que atinge os pobres, as mulheres, as crianças; e a violência contra os migrantes que, para sobreviver, são obrigados a se submeter a
trabalhos sujos, perigosos, indesejados e geralmente mal remunerados. Não podemos, todavia, esquecer a violência estrutural que normalmente se disfarça de várias maneiras. É causada por uma ordem mundial injusta do ponto de vista econômico, bem como político e social. De um lado concentram-se o poder, a terra, a renda e as riquezas em determinadas regiões e países. De outro, aumenta a exclusão social, o desemprego e as migrações em massa, tanto internamente em nosso país, entre os países limítrofes, quanto dos países pobres para os países ricos.
Mas, para o capital financeiro, não há fronteiras nem limites; para o trabalhador migrante erguem-se muros, legislações e políticas restritivas. Ao tratar o tema da paz, é preciso identificar a violência cotidiana contra os migrantes: injustiça social, expulsão da terra, desemprego, preconceito, racismo, exploração, desvalorização da mão-de-obra, violência moral e física, maus-tratos nos serviços públicos, violência contra a mulher, violência familiar, tráfico e contrabando de pessoas, violação e não reconhecimento de seus direitos, falta de moradia, desvalorização da cultura, falta de informação de seus direitos, violência da polícia e do tráfico de drogas, falta de documentação, falta de oportunidades para capacitação, aliciamento e trabalho escravo, péssimas condições no trabalho e nos alojamentos. Por outro lado, as dívidas externa e interna do país impõem perdas dos direitos e cortes no gasto público, representando mais uma forma de violência ao povo, talvez a raiz de todas elas. MIGRAÇÕES E MUDANÇAS
Diante desse gigantesco desafio que atinge a maioria despossuída, o SPM acredita que a construção da paz não se dará sem a participação dos migrantes. Em suas culturas, os migrantes são portadores da solidariedade, criando laços de amizade e paz. Sejam migrantes internos ou imigrantes, eles provocam mudança no lugar onde chegam, recriando elos entre culturas, mostrando que é possível a convivência solidária e enriquecedora entre os diferentes.
Neste ano, porém, ganha ênfase a Semana do Migrante após a realização do Fórum Social das Migrações com o lema “Travessias na De$ordem Global”, realizado em Porto Alegre, no mês de janeiro. Organizado às vésperas do 5o. Fórum Social Mundial, o FS das Migrações colocou na pauta a problemática das migrações, que hoje, num mundo globalizado, são ao mesmo tempo um sintoma, conseqüência e denúncia da realidade que enfrentam os trabalhadores pobres no mundo inteiro. São, sim, conseqüência de uma economia mundial que cada vez mais concentra renda, riqueza, poder. Ao mesmo tempo, denunciam o sistema neoliberal. São sinais de mudanças que já estão em curso, mas que num futuro próximo tenderão a se aprofundar. Impõem-se não só pelo seu volume, mas principalmente pelo seu significado político. É preciso entender as migrações para poder compreender o mundo. O fenômeno migratório aponta para a necessidade de repensar o mundo não mais baseado na competitividade, mas na solidariedade; não na concentração, mas na repartição; não no fechamento das fronteiras, mas na cidadania universal; um mundo não de violência, mas de paz; enfim, num mundo baseado não no consumo desenfreado, mas numa sociedade sustentável, onde haja lugar e vida digna para todos.
Luiz Bassegio é secretário nacional do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM)
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De 16 a 22 de junho de 2005
agenda@brasildefato.com.br
AGENDA CEARÁ
Local: UERJ, R. São Francisco Xavier, 524, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2232-1004
DISTRITO FEDERAL SEMINÁRIO - PROTAGONISMO JUVENIL E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 17 Promovido pelo Fórum Cearense de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, por meio do Eixo de Protagonismo Juvenil, o seminário pretende reunir pessoas de 14 municípios da região do Maciço do Baturité. Durante o dia haverá uma discussão sobre o tema “Violência sexual x protagonismo”, debates, oficinas e apresentações culturais. Local: Teatro Municipal Raquel de Queiroz, R. Joaquim Alves Nogueira s/n, Fortaleza Mais informações: (85) 3263-2172, lidiace@hotmail.com
MINAS GERAIS
1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL De 30 de junho a 2 de julho Durante a conferência, que tem como tema central “Estado e sociedade promovendo a igualdade racial”, serão discutidas políticas que dêem conta das desigualdades relacionadas às questões étnicas que envolvem negros, indígenas, ciganos, árabes, palestinos, judeus e todos os grupos que, de alguma forma, sofrem discriminação e preconceito na sociedade brasileira. O encontro reunirá mil delegados, eleitos em todos os Estados e nas consultas indígena e quilombola. A Conferência é um dos marcos do Ano Nacional de Promoção da Igualdade Racial e tem por objetivo construir o Plano Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Local: Centro de Convenções Ulysses Guimarães, Setor de Divulgação Cultural, Eixo Monumental Oeste, Brasília Mais informações: www.presidencia.gov.br/seppir
FESTIVAL INTERNACIONAL DE BONECOS 2005 De 17 a 21 A sexta edição do festival vai apresentar 15 espetáculos de companhias da Alemanha, Bélgica, Brasil, Chile e Peru. A seleção de espetáculos priorizou a variedade de técnicas e temas, indo do experimentalismo europeu à tradição popular dos bonecos mineiros. O desfile que sai todos os anos às ruas anunciando o Festival de Bonecos terá, este ano, a participação de blocos carnavalescos de Mariana, Oliveira, Ouro Preto, Vespasiano e Pedro Leopoldo. Local: Centro Cultural Usiminas, Ipatinga Mais informações: (31) 3335-1721
tuto Feminista para a Democracia, R. Real da Torre, 593, Madalena, Recife Mais informações: (81) 3445-2086
PERNAMBUCO
RIO DE JANEIRO
2ª JORNADA DO OBSERVATÓRIO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES 20 e 21 Promovida pela organização não governamental SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia. Durante a jornada será realizada a oficina “Debatendo a violência e construindo direitos”, além de debates sobre os seguintes temas: “Encontro com a imprensa” e “Fórum de diálogo sobre violência contra a mulher”. Local: Sede da SOS Corpo Insti-
6º ENCONTRO NACIONAL DO MOVIMENTO DE CIDADANIA PELAS ÁGUAS De 16 a 19 Durante o encontro haverá apresentação de painéis, oficinas, atos culturais e organização de grupos de trabalho. Dia 19 haverá a Plenária Final, com a aprovação da Carta de Cabo Frio. O evento é gratuito e as inscrições podem ser feitas dia 16 de junho no local de realização do encontro. Local: Praia do Forte, Cabo Frio Mais informações: (21) 2711-9138,
(21) 3603-1753, www.mcpabrasil.org SEMINÁRIO - REDUZIR A JORNADA PARA PROLONGAR A VIDA 24 e 25 Promovido pelo Sindicato dos Servidores das Justiças Federais no Estado do Rio de Janeiro (Sisejufe-RJ), o seminário pretende dar início a uma campanha nacional em defesa da jornada de trabalho de 6 horas. Serão discutidos temas como alienação e automatização do ser humano. Participarão do seminário a juíza federal Maria Salete Maccalóz, os professores Lúcia Freire, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e Eduardo Serra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre outros.
FÓRUM INTERNACIONAL DE TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA De 26 a 30 de julho Os objetivos do encontro são: incentivar e enriquecer o diálogo e o discurso teológicos em nível internacional com a ênfase para a perspectiva latino-americana, avaliar os paradigmas teológicos tradicionais e buscar novos caminhos à luz da função social da teologia, facilitar o diálogo, a reflexão e a formação de uma nova geração de teólogos e teólogas. Entre os debatedores estarão dom Pedro Casaldáliga, Rubem Alves, Leonardo Boff, Elza Tamez (Costa Rica), Harvey Cox (EUA), Xavier Pikaza (Espanha), Júlio de Santa Ana (Suíça). Durante o fórum haverá noites culturais, como apresentações musicais e lançamento de livro. Local: Paineiras Hotel e Parque Ecológico, Rodovia 127, Km 32, Mendes Mais informações: (21) 2504-4711
SÃO PAULO ESPETÁCULO TEATRAL: “OS SERTÕES - A LUTA: PRIMEIRA PARTE” Até dia 19 Continuação de Os Sertões, de Euclides da Cunha e Teatro Oficina Uzyna Uzona, de Zé Celso Martinez Corrêa, a montagem tem algumas mudanças estruturais no espaço do teatro e a participação do músico pernambucano Lirinha, responsável pela trilha sonora. A peça é dedicada a Oswald de Andrade e a Silvio Santos. Local: Teatro Oficina, R. Jaceguai, 520, Bela Vista, São Paulo Mais informações: (11) 3106-2818, www.teatroficina.com.br. SEMINÁRIO - A MULHER E A MÍDIA 18 e 19 Promovido pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, o seminário vai debater o papel da mulher na mídia, na publicidade e na dramaturgia. O evento, que também vai discutir o tratamento editorial dos meios de comunica-
ção à diversidade e à pluralidade de gênero, reunirá jornalistas e profissionais de comunicação do Brasil e da América Latina em torno de quatro painéis de debate: As questões de gênero na dramaturgia - mitos, verdades e mentiras; A mulher na publicidade - muito além da imaginação; A mulher ao vivo e em cores - os programas e publicações voltados para o universo feminino; e Movimentos da mulher na mídia - conquistas de espaços e avanços na abordagem da temática da mulher. Local: R. Teixeira Silva, 647, São Paulo Mais informações: (61) 2104-9358 PARADA GAY DE RIBEIRÃO PRETO 19 O evento, que faz parte da 1ª Semana de Orgulho GLBT, pretende reunir cerca de 3 mil pessoas. Durante a semana, promovida pelo Grupo de Apoio à Prevenção à Aids de Ribeirão Preto, haverá diversas atividades artísticas, palestras com discussão de temas específicos, como turismo, direito, mídia, publicidade e religião, além de atividades de prevenção às DST/Aids. Local: Concentração na Pça. Sete de Setembro, passando pelas avenidas Nove de Julho e Presidente Vargas, com encerramento na Pça. João Marchesi, na Av. Antonio Diederichsen, Ribeirão Preto. Mais informações: (16) 3931-4606. eventos@gaparp.org.br SEMINÁRIO DE DANÇAS ISRAELENSES 24 a 26 O Centro de Estudos Universais (CEU), em parceria com a Universidade Anhembi Morumbi, promove o encontro de músicas e danças étnicas, que terá grandes nomes da dança no Brasil, como Alberto B. Worcman (Gingi), Adriana Gordon, Alon Ildeman, Beto Wakrat, Danilo Waissman, David Bergman (Duda), Gaby Almog, Ieda Bogdansky, Liza Mandeltraub entre outros. Todos trabalham, há muitos anos, com danças populares israelenses. Local: R. Dr. Almeida Lima, 1134, São Paulo Mais informações: (11) 3847-3118, dancandopelapaz@anhembi.br
REVOLUÇÃO DOS CRAVOS
da Redação O general Vasco dos Santos Gonçalves, que foi primeiro-ministro português em quatro dos governos provisórios que se seguiram à Revolução dos Cravos, e uma de suas figuras mais destacadas, morreu dia 11 aos 83 anos de idade. No dia 13, morreu, em Lisboa, aos 91 anos, Álvaro Cunhal, um dos mais destacados dirigentes comunistas da Europa. Gonçalves era um coronel de 52 anos quando, em dezembro de 1973, meses antes do 25 de abril, entrou em contato com o denominado Movimento dos Capitães, que preparava o ataque ao regime fascista. Ele participou, na Costa de Caparica, no Sul de Lisboa, da reunião do comitê coordenador do qual nasceria o Movimento das Forças Armadas (MFA). Foi um dos redatores do programa do MFA e a mais alta patente militar do Movimento. Marxista, declarando, em um livro autobiográfico, que sua maior emoção na Revolução dos Cravos foi “levar à prática idéias que tinha guardado toda a vida”. “Quando me uni ao Movimento de Oficiais, achava que podia ter um papel destacado”, escreveu. Numa entrevista recente, Gonçalves reafirmou os ideais socialistas com que governou Portugal. “O meu governo não era de maneira nenhuma um conjunto de pessoas com tendências totalitárias, como
France Press
Morrem, em Portugal, o general Vasco Gonçalves e o dirigente comunista Álvaro Cunhal
Pelas ruas de Lisboa revolucionários comemoram o fim da ditadura Salazar
éramos acusados. O socialismo para o qual estávamos caminhando tinha características nitidamente nossas. Surgiu espontaneamente ao longo do processo”, disse ele. Na entrevista, que assinalou os 30 anos das eleições para a Assembléia Constituinte, ele afirmou que Portugal vive atualmente sob “uma ditadura da burguesia de fachada democrática”. Segundo ele, o mundo está entre a barbárie e o socialismo. “Isto é uma
sociedade de barbárie”, afirmou em outra entrevista. “Penso que existe uma alternativa para o homem, mas a maioria das pessoas não compreendeu ainda que essa alternativa é entre a barbárie e o socialismo”.
CUNHAL Cunhal atuou no Partido Comunista Português ao longo de mais de 74 anos, dos quais 12 na prisão, sofrendo bárbaras torturas. Nasceu em Coimbra em 1913 e iniciou sua
atividade revolucionária quando estudante na Faculdade de Direito de Lisboa. Participou do movimento estudantil e foi eleito em 1934 como representante dos estudantes no Senado Universitário. Foi militante da Federação da Juventude Comunista Portuguesa (FJCP), sendo eleito seu secretário-geral em 1935, ano em que passou à clandestinidade e participou, em Moscou, do 4o. Congresso da Internacional Juvenil Comunista.
Era membro do Partido Comunista Português (PCP) desde 1931. Preso em 1937 e 1940 e submetido a torturas, voltou imediatamente à luta logo que libertado depois de alguns meses de prisão. Participou da reorganização do PCP, em 1940/41. Vivendo de novo na clandestinidade, integrou o Secretariado, de 1942 a 1949. Preso de novo, fez no tribunal fascista uma severa acusação à ditadura e uma defesa da política do Partido. Condenado, permaneceu onze anos nas cadeias fascistas, quase oito dos quais em completo isolamento. Em 3 de janeiro de 1960, escapou da prisão-fortaleza de Peniche junto com um grupo de destacados militantes comunistas. De novo chamado ao Secretariado do Comitê Central, foi eleito secretário-geral do PCP, em 1961. Depois da derrubada da ditadura fascista, em 25 de abril de 1974, foi ministro sem pasta do primeiro ao quarto governos provisórios e eleito deputado à Assembléia Constituinte em 1975 e à Assembléia da República em 1976, 1979, 1980, 1983, 1985, 1987. Foi membro do Conselho de Estado. Em 1992, na reestruturação do PCP, foi eleito presidente do Conselho Nacional do Partido. Em 1996, 2000 e 2004 foi eleito membro do Comitê Central. Foi autor de obras políticas e literárias e sobre artes plásticas, principalmente com o pseudônimo de Manuel Tiago.
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CULTURA
De 16 a 22 de junho de 2005
ENTREVISTA
O lazer em tempos de trabalho O professor Wolfgang Leo Maar fala sobre como o capitalismo se apodera inclusive do tempo livre das pessoas reconstrução do mundo como um mundo de tempo de trabalho. E isso é feito pela “indústria cultural”.
Agência Brasil
Valquíria Padilha de São Carlos (SP)
A
Brasil de Fato – O que é lazer? Wolfgang Leo Maar – A palavra lazer tem origem no latim (licere) e significa “o que é permitido, o que é lícito”; o que é permitido fazer fora do mundo que nos é prescrito. Eu acho que primeiro a gente tem que pensar no mundo que nos é prescrito, para depois pensar no lazer. O mundo que nos é prescrito é o mundo do trabalho, que ocupa praticamente a totalidade da nossa vida hoje em dia. E a tendência é que esta totalização até se amplie. Então, a questão do lazer, para mim, é uma das questões mais importantes, hoje, porque diz respeito ao quanto da nossa vida é inteiramente determinada pela nossa inserção no mundo da produção.
Arquivo pessoal
BF – E quando há exclusão, ou seja, quando a pessoa está fora do mundo do trabalho, o que acontece cada vez mais, com o desemprego que não pára de crescer? Maar – Essa situação é o grande paradoxo da nossa sociedade, porque mesmo quem é excluído do mundo do trabalho está imerso nele. Existe um texto interessantíssimo de Marx sobre isso, em que ele diz que o capital é a contradição em processo. Por um lado, quer diminuir o peso do tra-
Quem é Wolfgang Leo Maar é professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisador do CNPq, autor e tradutor de obras sobre o pensamento da Escola de Frankfurt.
“Idéia de lazer, apenas de recuperação de forças de trabalho, nasce com a sociedade de consumo”, diz Wolfgang Leo Maar
balho na produção, mediante as forças de produção técnica e, por outro, insiste em medir tudo pelo tempo do trabalho. Então, mesmo o desempregado vive num mundo que é medido em tempo de trabalho, não consegue fugir dessa medida, do peso da economia. Essa é uma questão dramática para nós, principalmente no Brasil. O Roberto Schwartz tem uma expressão magistral sobre isso. Para ele, no país, hoje, a maior parte da população é “sujeito monetário desprovido de dinheiro”. Mesmo sem dinheiro para gastar, temos sujeitos monetários, ou seja, pessoas completamente imersas num mundo de consumo, de produção, de interesses econômicos, de padrões fiscais e contábeis. BF – Então, como o senhor discutiria a questão da liberdade de consumo? Maar – Na sua última entrevista, Celso Furtado tocou nessa questão: é preciso criar uma nova civilização, que saia da que é centrada no consumo. E ele tem toda razão. Agora, a questão central é: como é que o tempo livre pode se transformar em uma prática efetiva de liberdade? Para que isso possa ocorrer, em primeiro lugar, é preciso tomar consciência de como o tempo livre, na verdade, não é livre dos critérios, dos padrões da sociedade de consumo, da sociedade regida pelo tempo de trabalho, regida pelo tempo fiscal. Então, o primeiro passo para que o tempo livre possa se converter em liberdade prática, por assim dizer, é a noção da sujeição desse tempo livre aos critérios da sociedade de consumo. Não só ter conhecimento disso, mas também condições de julgar isso, ou seja, ter uma avaliação crítica. A partir daí, poder utilizar esse tempo livre disponível em atividades que digam respeito à fruição da vida, à formação, à criação livre. Enfim, aquilo que normalmente a gente designa como vida mesmo, vida fora da atividade produtiva. BF – E qual é o caminho? Maar – Não é fácil. É terrível porque o capital é um monstro para o qual todo o tempo disponível, todo o dia das pessoas é visto como uma jornada de trabalho. E por mais que se saiba que os homens não podem trabalhar 24 horas por dia porque precisam ter um tempo para descansar, o tempo para o capital, mesmo o tempo do descanso, continua sendo avaliado como um tempo de trabalho. Então, é um tempo livre só para a recuperação das forças de trabalho. Não é tempo livre efetivo. Essa é a situação clássica que é descrita por Marx no oitavo
capítulo d’O Capital que se chama “A jornada de trabalho”, em que ele mostra muito bem esta questão: como a alteração mais profunda provocada pela sociedade capitalista nos homens é a conversão da sua consciência de tempo.
que um venha da outra, mas são ambos produtos dessa sociedade que avançou o tempo. A tragédia do nosso tempo é que o capitalismo avançou sobre o que restou da vida, que é o tempo. BF – O senhor acha que a conscientização e a educação das pessoas mudaria o conteúdo da programação televisiva? Maar – Acho que sim, mudaria sim. A questão é que a “indústria cultural” sacraliza a si mesma. Digamos que a televisão está, assim como o restante da arte – esta é a principal contribuição de Walter Benjamin – em processo de dessacralização, ou seja, de vinculação a um mundo cotidiano dos homens. E a “indústria cultural” mitifica, ressacraliza, criando um mundo artificial, um mundo ideologicamente construído em que os homens são retirados do cotidiano. Então, tenho a impressão que, na medida em que houver consciência desses dois mundos, dessa sacralização, a televisão pode cumprir uma espécie de função artística, que a arte em termos de valorização da vida possa apresentar. Certamente ela mudaria sim. Ela seria reduzida ao verdadeiro papel da arte, no âmbito das atividades humanas. Uma arte que, além de expressar uma determinada situação, ofereceria instrumentos para julgá-la; não só conhecê-la, mas julgá-la e ter critérios para se portar de maneira mais ou menos crítica em relação à realidade e, com isso, desenvolver esforços no sentido de transformar a realidade.
BF – Em que medida o lazer é importante para as pessoas? Maar – É lógico que o lazer é importante se nós soubermos avaliá-lo nestes termos: o lazer, quando é pautado por um tempo de trabalho, acaba sendo apenas recuperação das forças de trabalho. Nesse sentido, ele é importante para a reprodução da sociedade capitalista. Mas, como a gente viu antes, o lazer significa a possibilidade de que o tempo disponível possa ser convertido em uma prática livre das pessoas. Então, o lazer, enquanto tempo de não-trabalho efetivamente realizado, oferece a oportunidade para que os homens dediquem suas atividades à fruição da vida fora do trabalho. Mas isso não ocorre espontaneamente e não quer dizer que o lazer, tal como ele é, tal como ele ocorre na sociedade de consumo, por si só, signifique essa possibilidade de fruição da vida. BF – O senhor acha que o lazer é igual para todo mundo? Maar – O lazer, quando tem a ver com a reprodução de uma sociedade pautada no tempo de trabalho, procura, evidentemente, se pautar por uma certa uniformidade: são as férias, os descansos, feitos para haver uma quebra de tensões, uma recuperação das forças de trabalho. Para examinar isso, temos recursos conceituais disponíveis excelentes. Basta pensar no Adorno e seu conceito de “indústria cultural”. Nesse sentido, então, o lazer seria uma uniformização artificialmente produzida das pessoas que não escapariam das amarras de uma sociedade pautada no tempo de trabalho. A “indústria cultural” se encarrega de manter os homens e as mulheres no contexto do tempo de trabalho. Mas, se pensarmos no lazer como uma possibilidade de escapar do tempo de trabalho efetivamente realizado em que se possa praticar liberdade, um sentido de fruição da vida, aí evidentemente essa uniformização não se coloca. Seria diferente. BF – A sociedade de consumo é, então, o “grande vilão” para o tempo livre e para o lazer? Maar – O capital nos cerca mesmo quando não estamos trabalhando. Então, eu diria que essa idéia de lazer, no sentido de ser apenas de recuperação das forças de trabalho, nasce com a sociedade de consumo. Não
BF – Não deve ser fácil... Maar – A televisão poderia perfeitamente cumprir esta função, que é a função por excelência da arte. Mas, para isso ocorrer, é preciso haver aquela dessacralização. Acontece que a “indústria cultural” promove uma ressacralização da arte em uma época em que a arte está em processo de dessacralização no movimento de contra-corrente, um movimento que é motivado apenas pela acumulação econômica, que precisa dessa
BF – Numa sociedade dividida em classes sociais distintas, o senhor acha que o efeito da sociedade de consumo – e o lazer pensado, nesta lógica, como mercadoria – é igual para todas as classes? Maar – É uma questão interessante. Num certo sentido, a função é a mesma porque significa uniformizar o mundo em que as pessoas vivem. Evidentemente, o mundo é o mundo das classes dominantes, mas acaba sendo um só porque as classes dominadas vivem no mundo das classes dominantes. Não tenho a menor dúvida de que a sociedade de consumo é uma forma social desse tipo de sociedade. Mas temos uma situação paradoxal. Marx disse, originalmente, que na medida em que as coisas não dessem certo na economia, surgiriam contradições, e isso seria bom. Eu acho que hoje é possível pensar no contrário: na medida em que as coisas dão certo, é que as coisas vão mal. BF – Vamos trocar isso em miúdos? Maar – Na medida em que as classes mais pobres têm acesso a bens de consumo, essa sociedade acaba se consolidando mais ainda e, por isso, eu diria que as coisas vão mal, porque a própria possibilidade de ver as contradições desaparece. Nesse sentido, os efeitos de um lazer meramente tributário da sociedade de consumo sobre as classes mais populares seria até mais danoso, porque amarraria mais ainda as pontas de uma sociedade cujas contradições são aparentes. Temos hoje, no mundo inteiro, um modelo de crescimento que é desastroso, que produz o desemprego estrutural e não consegue enfrentar a injustiça social, a iniqüidade... Em grande parte, isso é que é uma contradição aparente, se esconde por trás do acesso das camadas mais favorecidas a certos benefícios, inclusive do lazer popular. A televisão é um lazer popular, eu vou para casa descansar, assistir a um programa, eu não preciso pensar em nada porque pensam por mim. Então, é um lenitivo. Nesse sentido, o efeito é até mais perverso, talvez. Valquíria Padilha é Bolsista Recém-Doutora do CNPq junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais na UFSCar (20032005). Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp (2003). Doutorado Sanduíche realizado na Université de Bourgogne, em Dijon, na França (2001). Mestre em Sociologia pela Unicamp (1995). Especialista em Lazer pela Unicamp (1992). Autora dos livros Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito, Campinas: Alínea (2000) e Shopping Center: a catedral das mercadorias e do lazer reificado, São Paulo: Hucitec (no prelo)
Agência Brasil
monstruosidade dos efeitos do capital sobre os homens tem facetas paradoxais. Da sua perversidade sequer escapa algo absolutamente necessário às pessoas, o lazer, o direito ao ócio. Nas palavras do professor Wolfgang Leo Maar, “o capital é um monstro para o qual todo o tempo disponível, todo o dia das pessoas é visto como uma jornada de trabalho. E por mais que se saiba que os homens não podem trabalhar 24 horas por dia porque precisam ter um tempo para descansar, o tempo, para o capital, mesmo o tempo do descanso, continua sendo avaliado como um tempo de trabalho”. A entrevista com o professor Wolfgang Leo Maar foi feita em dezembro de 2004, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em São Carlos (SP). A idéia de fazê-la surgiu no processo de construção do vídeo-documentário “Ócios do Ofício”, que foi produto da disciplina Lazer em Debate, oferecida por Valquíria Padilha aos alunos de graduação da Universidade, no segundo semestre de 2004. Trechos desta entrevista – que foi filmada – aparecem no vídeo documentário. Brasil de Fato publica, a seguir, partes da entrevista com Maar, que aborda questões muito interessantes e que enriquecem o debate crítico em torno do lazer, tema de reflexão ainda incipiente no país.
A questão central é como o tempo livre pode se transformar em prática de liberdade