Ano 3 • Número 131
R$ 2,00 São Paulo • De 1º a 7 de setembro de 2005
No dia 7, um Grito pelas ruas do país E
m meio à crise, movimentos sociais anunciam a manifestação do Grito dos Excluídos, em 7 de setembro, com uma novidade. Além dos tradicionais protestos contra a exclusão e pela mudança da política econômica, as organizações vão defender a criação de mecanismos de democracia direta para o povo participar na definição dos rumos do país. “Temos de reagir, mesmo que a política esteja irremediavelmente contaminada pela corrupção”, diz dom Demétrio Valentini. Os movimentos vão divulgar também o manifesto “Em defesa do povo brasileiro”, convocando a sociedade a se mobilizar. Elite – Enquanto isso, os conservadores aproveitam os deslizes do governo Lula e do PT para tripudiar. “A gente vai se ver livre desta raça por 30 anos”, disse o senador Jorge Bornhausen (PFL-SC). Quem respondeu foi Emir Sader: “Bornhausen é uma das pessoas mais repulsivas da burguesia brasileira, que revela agora todo o seu racismo e seu ódio ao povo brasileiro”. Págs. 2, 3 e 5
Anderson Barbosa
Diante da crise, movimentos sociais propõem a organização do povo e a criação de mecanismos de democracia direta
Desde 16 de agosto, 79 famílias sem-teto vivem acampadas nas ruas da capital paulista, após despejo violento feito pela Polícia Militar de São Paulo
Lula precisa mudar, diz Niemeyer
Empresas lucram mais e pagam menos impostos
dade de acabar seu mandato de modo digno. A avaliação é do arquiteto e militante comunista Oscar Niemeyer, de 97 anos. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, diz que não perdeu
a esperança. “Se eu fosse jovem, em vez de fazer arquitetura, gostaria de estar na rua protestando contra este mundo de merda em que vivemos”, afirma. Pág. 8
Jean Ayssi/ AFP/ Folha Imagem
Todos reclamam da alta carga tributária no país – chega a 36% do PIB. O assalariado tem razão, já que trabalha um terço do ano só para pagar impostos e, na hora de declarar imposto de renda, seus abatimentos são pífios. Outras são as regras do fisco para as empresas. No primeiro semestre, os lucros das empresas aumentaram a uma taxa quatro vezes maior do que os impostos e as contribuições que recolheram. Pág. 7
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva é ruim. Agora, com a crise que o assola, ele tem que cumprir as promessas que fez, como distribuição de renda. É sua última oportuni-
Venezuela propõe agenda social para o continente O governo venezuelano emplacou na pauta da Organização dos Estados Americanos (OEA) uma proposta diretamente relacionada com o interesse dos 100 milhões de miseráveis do continente. À revelia dos Estados Unidos, delegados de 34 países discutiram a proposta da Carta Social na Reunião Ministerial da OEA, em Caracas, que estabelece metas aos países membros, como a redução da desigualdade social e dos índices de pobreza. Pág. 9
A política colonizada pelo mercado
Primeira escola latino-americana de agroecologia
“A política econômica é técnica, e não política. Isso mostra um fortalecimento do Estado”, disse o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, durante entrevista coletiva em que respondia às acusações de corrupção. Para o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, essa visão do ministro evidencia um estelionato eleitoral: “Não foi isso que disseram aos eleitores em 2002”. Pág. 4
Camponeses de toda a América Latina vão poder trocar conhecimentos sobre sementes e técnicas agrícolas. A rede vai ser organizada pela Escola Latino-Americana de Agroecologia, inaugurada dia 27 de agosto, em Lapa (PR). Pioneira, a instituição é resultado de parceria entre os governos da Venezuela e do Estado do Paraná, Via Campesina Internacional e Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pág. 15
TELEFONIA – Os preços cobrados pelas operadoras comprometem 32% do orçamento familiar. Uma CPI pode investigar a privatização do setor. Pág. 6 EQUADOR – Na luta contra transnacionais do petróleo e pela defesa dos recursos naturais do país, comunidades obtêm vitória parcial. Pág. 10
Constituição do Tuberculose tem Iraque acirra cura, mas mata conflito étnico milhões na África Pág. 11
No Maranhão, comunidade luta contra a Vale Os moradores da Ilha dos Cachorros (MA) estão resistindo à implantação de um pólo siderúrgico gigantesco na Ilha de São Luís. Parceria entre Companhia Vale do Rio Doce, governo do Estado, prefeitura de São Luís e transnacionais, o projeto pretende transformar a região em zona industrial, desalojando cerca de 15 mil pessoas e causando danos ambientais. Pág. 13
Pág. 12
Super-Receita, uma rasteira na Previdência Pág. 14
Marcio Baraldi
E mais:
Na França, filhos de imigrantes prestam homenagem às vítimas de incêndio em albergue, em Paris
Conservatória atrai saudosos da serenata
Em Brasília, organizações sociais reivindicam a inclusão das creches no Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), em discussão no Congresso
A serenata, o canto sob o sereno, resiste bravamente ao tempo em Conservatória (RJ). Todo fim de semana, seresteiros e seresteiras caminham lentamente pelas ruas, cantando canções de amor. No dia 27 de agosto, milhares de visitantes lotaram os hotéis e pousadas do lugar para prestigiar o Encontro de Seresteiros, a união entre os músicos de fora e os locais. Pág. 16
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De 1º a 7 de setembro de 2005
NOSSA OPINIÃO
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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MANIFESTAÇÃO DO DIA 17 Quero manifestar meu repúdio a esse veículo de comunicação que se transformou no porta-voz oficial do “lulismo” em nosso país. A edição 129 desse jornal destaca protestos em Brasília, sendo que, apesar da edição ser datada de 18 a 24 de agosto de 2005, faz menção do ato do dia 17 de agosto, como ato futuro, dando enfase apenas à mobilização “chapa branca” do dia 16. A linha editorial desse jornal apesar de se propor plural, nestas últimas edições se colocou como porta-voz do “lulismo” pregado pela CUT, UNE e MST. Lamento que a proposta de construção de um jornal de massas e
O
Grito dos Excluídos deste ano, em função da grave crise em que o país se encontra, ganha uma importância singular para a luta do povo brasileiro. Essa importância não é apenas pela luta contra as conseqüências das políticas neoliberais implantadas a partir da década de 1990, com o desastroso governo de Fernando Collor de Mello, e que teve, de 1994 a 2002, continuidade com o não menos desastroso governo de Fernando Henrique Cardoso. O que aí está, agora, resulta de um articulado processo de privatização não apenas de setores cruciais para a soberania de um país, como energia e telecomunicações, mas do próprio Estado brasileiro (veja reportagem na página 4). E nesse processo, a corrupção é apenas uma das armas habituais do sistema capitalista. Vivemos uma grave crise, extremamente prejudicial aos interesses da maioria do povo brasileiro, tamanha é a sua dimensão – além de social, política e ideológica, do ponto de vista econômico a situação também é crítica porque não atende às demandas básicas da enorme legião de brasileiros pobres das cidades e do campo. Já as elites, representadas pela hegemonia do capital financeiro e internacional, em aliança com os setores capitalistas nacionais, seguem implementando e consolidando sua política econômica
neoliberal – o seu principal objetivo. Privatizado, o Estado brasileiro segue como instrumento de dominação das classes dirigentes, debilitado de funções fundamentais como garantir os serviços públicos essenciais à imensa maioria da população. Quanto ao governo Lula, que foi eleito para alterar todo este estado de coisas, e fazer as mudanças necessárias para dar outro rumo ao país, ficou refém da política e das elites. Como diz o manifesto do dia 7 de setembro, “Em defesa do povo brasileiro” (leia reportagem na página 5), 27 milhões de trabalhadores estão desempregados ou na economia informal, sem cobertura da seguridade social e de direitos trabalhistas, e cerca de 20 milhões de famílias, ou seja, 82 milhões de pessoas pobres, sobrevivem com menos de dois salários-mínimos mensais. Com a crise atual que atinge em cheio o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores, as elites, por meio da grande mídia – os verdadeiros partidos da burguesia –, pretendem acuar e controlar ainda mais o governo e desmoralizá-lo. Assim, procuram inviabilizar qualquer projeto de mudanças sociais e derrotar ideologicamente as esquerdas. Tudo isso, graças à paralisia e ambigüidade do governo, que não teve coragem nem disposição de implementar mudanças.
Diante desse quadro, resta aos povo brasileiro se organizar e se mobilizar. Não podemos aceitar passivamente essa situação. Vamos conversar com os amigos, com os colegas de trabalho, com os vizinhos. Vamos discutir com a militância para motivá-la a retomar a lutar. Sabemos que a estratégia de dar prioridade à via eleitoral e à institucionalidade adotada pelos partidos de esquerda foi a grande derrotada nessa conjuntura política. Mas devemos tirar as lições dessa crise, sobretudo em relação aos métodos de fazer política da esquerda, e devemos, criticar duramente e mudar. Sabemos que só o povo organizado será capaz e mudar definitivamente os destinos do país. Portanto, no 7 de Setembro, devemos ir às ruas. Vamos nos somar a essa campanha que se desenvolve há diversos anos, organizada pelo Grito dos Excluídos, à qual agora se somam à Rede Jubileu Sul, Campanha Brasileira contra a Alca, a Coordenação dos Movimentos Sociais, a Conferência dos Religiosos do Brasil, a Marcha Mundial das Mulheres, a Conferência de Religiosos do Brasil, entre outras, para exigir do governo que honre seus compromissos de mudar a política econômica e cumpra o programa de mudanças pelo qual foi eleito.
FALA ZÉ
OHI
CRÔNICA
CARTAS DOS LEITORES FLORESTAN FERNANDES A luta contra o racismo, particularmente no inconsciente, deve ser uma tarefa diuturna. Na edicão em que consta uma homenagem de Heloísa Fernandes a Florestan Fernandes e uma breve biografia do sociólogo anti-racista, chamou minha atenção a invisibilidade da questão do negro no Brasil. Nenhuma palavra foi mencionada sobre o papel fundamental de Florestan, ao lado de outros, como Roger Bastide e Luís Costa Pinto, que num estudo encomendado pela Unesco provaram a existência de desigualdades raciais. Foi ultrajante ouvir esse silêncio ensurdecedor! Marcelo H. R. Tragtenberg por correio eletrônico Departamento de Fisica da UFSC
É hora de gritar
de esquerda, que eu pessoalmente vislumbrei no Brasil de Fato, faleça diante da pequenez de seus editores que não conseguem enxergar a pluralidade das posições da esquerda brasileira, se prestando apenas a expor uma das visões atualmente existentes, e justamente aquela da esquerda que procura legitimar um governo corrupto e traidor como o de Lula. João Luiz Stefaniak por correio eletrônico RESPOSTA DOS EDITORES Esclarecemos que o fechamento das edições do Brasil de Fato ocorre às terça-feiras – na semana passada, dia 16 de agosto – e que o jornal começa a circular a partir das quintas-feiras. Reafirmamos o nosso compromisso de ser um jornal plural no campo das esquerdas. Mas, fundamentalmente, reafirmamos o nosso maior compromisso, que é com a luta e a causa do povo, por justiça, igualdade e solidariedade, e com as mudanças tão necessárias ao nosso país para dar vida digna à toda a população.
ERRAMOS A foto publicada na página 7 da edição 129 é de Anderson Barbosa, e não da Agência Brasil como haviamos publicado.
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
Mais além do nosso umbigo Luiz Ricardo Leitão Dom Inácio vai perorando aos quatro ventos que não será um novo Getúlio, nem Jânio ou Jango, enquanto a desfaçatez tupiniquim segue desfilando suas personagens nas CPMIs de Brasília. E se nos folhetins eletrônicos (espelhos platinados da burguesia tropical) os tios do andar de cima passeiam de helicóptero com suas ninfetas pelos céus de Miami, na epopéia nossa de cada dia os órfãos do andar de baixo seguem na dura – e criativa – vida severina. Em pleno Largo da Carioca, centro nevrálgico do Rio, longe da ópera bufa da corte, os artistas populares de Pindorama tratam de faturar seu “mensalinho” exercitando mil proezas artísticas. Lá estão os malabaristas da bola, fazendo piruetas com laranjas, ovos e quejandos; lá está a farmacopéia indígena, com as ervas que curam bronquite, frieira e unha encravada (mas nem com dose tripla estancariam as hemorragias do Planalto); e até vira-latas amestrados, mais alfabetizados que muitos humanos de Pindorama, ganham seus trocados reconhecendo as letras dos nomes enunciados pela platéia. Nada de novo no front, diria um cronista desavisado. Ledo engano, meu caro leitor. Um pouco mais além do nosso umbigo, nesta Pátria Grande de Bolívar e Martí, os povos se rebelam e lançam desafios incômodos ao império do tio Sam. Ao longo desse
último ano, não foram poucos os reveses do regime de Washington na América Latina. Desde a vitória de Chávez no referendo ao seu governo na Venezuela, até a recente rebelião popular na Bolívia, que destituiu o governo de Carlos Mesa em meio a uma vigorosa campanha pela nacionalização do gás e dos recursos naturais do país (e que, ironicamente, face à ostensiva presença da Petrobras na economia local, fez com que passássemos de mocinho a vilão), cresce a resistência aos efeitos mais que perversos da globalização neoliberal na América Latina. O exemplo boliviano e a ação de Chávez na área do Caribe inquietam os estrategistas do Norte. Não é à toa que, nos dez últimos meses, Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa dos EUA, realizou três “visitas” à região. O enviado de Bush tem motivos de sobra para estar preocupado: afinal de contas, em 2004, na reunião dos secretários latino-americanos, houve 14 votos contra a criação de uma força “multilateral” de intervenção na Colômbia, país no qual a presença militar ianque, sob o pretexto de combate ao narcotráfico, não logrou arrefecer o ânimo da luta antiimperialista travada pelo movimento popular e seus braços armados. E agora, quando a onda boliviana parece espraiar-se pelas nações vizinhas e o líder indígena Evo Morales, odiado pela Casa Branca, surge como gran-
de favorito às eleições na Bolívia, não por acaso se instalam novas bases militares ianques no Peru e no Paraguai, duas fronteiras estratégicas da “perigosa” nação andina. Contudo, não são apenas as trincheiras de pedra que atormentam a camarilha de Bush. No terreno decisivo das idéias, Chávez converteu-se num tormento irremediável para os EUA. Com a criação da Petrocaribe e os novos rumos que se anunciam para a integração regional (Cuba e Jamaica já possuem acordos preferenciais com a Venezuela, que em breve duplicará a cota de barris da República Dominicana), há algo de novo no ar, além dos aviões de carreira. Seria bom que dom Inácio deixasse os palanques de lado e, recriando Macunaíma, se agarrasse às asas de um tuiuiú para sobrevoar a América Latina, onde a vida segue seu curso espinhoso e dialético. Do contrário, perdido em seu umbigo, quando se abrir a Cúpula das Américas, em novembro, na Argentina, ele será apenas mais uma peça viva do grande museu de novidades – o tempo não pára, companheiro... Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura LatinoAmericana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)
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NACIONAL CRISE POLÍTICA
Mesmo favorecida, elite rejeita Lula Marcelo Netto Rodrigues da Redação
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uando de improviso o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse em um dos seus discursos em tom de desabafo: “Com ódio ou sem ódio, eles vão ter que me engolir”, muitos cobraram de Lula que ele identificasse quem seriam “eles”. Na semana passada, “eles” próprios responderam, e com ódio: “A gente vai se ver livre desta raça por pelo menos 30 anos”. A frase dita a empresários por Jorge Bornhausen – banqueiro, presidente do PFL e senador por Santa Catarina –, durante um seminário, no dia 26 de agosto, no Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) veio logo depois de ele se dizer “encantado” com a crise política. Bornhausen, que em 2003, foi chamado de “ladrão” até mesmo por Antônio Carlos Magalhães, seu colega de partido, mereceu resposta imediata em artigo do sociólogo Emir Sader.
Valter Campanato/ABR
Bornhausen, do PFL, reacende o preconceito contra o PT: “A gente vai se ver livre desta raça por 30 anos”
Executiva do PFL, presidida por Jorge Bornhausen (ao centro), se sente “encantada” com a crise atual do PT e do governo federal
BLINDAGEM SOCIAL
a direita – pefelista e tucana – que se lambuza com a crise atual, sob o apodo de ‘essa raça’”. O sentimento expresso por Bornhausen – acolhido por uma platéia que deveria estar contente com Lula, por estar enriquecendo como nunca – sinaliza que “a origem social de Lula é a grande blindagem que ele tem”, como declarou o presidente do Ibope, Carlos Montenegro, à revista Carta Capital, acrescentando mais elementos ao senso comum corrente de que o que segura Lula no poder seria a sua política econômica favorável ao grande capital. “Um sujeito de inclinação conservadora tem um sentimento de rejeição pelo que o Lula representa.
“O senador Jorge Bornhausen é das pessoas mais repulsivas da burguesia brasileira. Banqueiro, direitista, adepto das ditaduras militares, do governo Collor, do governo FHC, do governo Bush, revela agora todo o seu racismo e seu ódio ao povo brasileiro com essa frase, que saiu do fundo da sua alma – recheada de lucros bancários e ressentimentos. (...) Ele merece processo por discriminação, embora no seu meio – de fascistas e banqueiros – sabe-se que é usual referir-se ao povo dessa maneira – são “negros”, “pobres”, “sujos”, “brutos” –, em suma, desprezíveis para essa casa grande da política brasileira que é
Um sujeito sem diploma superior, mas que é inteligente, se comunica bem, veste o boné do MST, não veste só a camiseta da Fiesp. Em termos simbólicos, Lula quer dizer que o Estado brasileiro não é só de uma parte da sociedade porque Lula encarna simbolicamente o Estado brasileiro como presidente da República. O corpo do presidente está trajado de roupas e de símbolos que não são aqueles usuais de quem ocupa o centro decisório deste Estado. E isso causa um sentimento difuso de rejeição que pode se transformar em ódio”, já previa há um mês em entrevista ao Brasil de Fato o chefe de Departamento de Ciência Política, da Universidade de São Paulo (USP), Cícero Araújo.
Por mais que Lula se esforce para atender os desejos da elite – aprofundando até a política econômica que “eles” defendem –, sua figura, nordestina e operária, como presidente do Brasil sempre será de difícil digestão nos círculos que tinham o poder até então. “Há um sentimento de insegurança por parte dos grupos econômicos mais poderosos do país porque o Lula e o PT não fazem parte da intimidade desses grupos, de fato, ainda não conseguiram, mesmo que se esforcem, transformar-se em representantes mais orgânicos destes grupos”, diz Araújo. Haja vista o desfecho do artigo de Emir Sader em defesa da esquerda em respostas às declarações do
POVOS INDÍGENAS
VIOLÊNCIA
Maxakali retomam terras pela primeira vez Desde 18 de agosto, 43 famílias Maxakali mantêm a retomada de uma fazenda instalada dentro da terra que é de ocupação tradicional indígena, no município de Santa Helena de Minas, nordeste de Minas Gerais. O povo indígena reivindica da Fundação Nacional do Índio (Funai) a regularização da área. “Cansamos de esperar pela Funai. Já fizemos muitos documentos, mas nada aconteceu. Não vamos esperar mais, pois estão acabando com nossa mata”, afirma uma das lideranças do povo, referindo-se ao grave estado de degradação da vegetação local. A terra indígena foi transformada em pasto quando cupada por fazendas, após a expulsão dos indígenas de seu território, na década de 1950. A expulsão foi realizada com ajuda do Estado brasileiro, por funcionários do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Apesar da tensão gerada pela retomada das terras, a situação na região de Santa Helena de Minas parecia tranqüila e os indígenas haviam noticiado que os fazendeiros começavam a retirar seus pertences das fazendas. Porém, no dia 28 de agosto, fazendeiros e moradores de Santa Helena tentaram agredir missionários do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que atuavam na região. No dia seguinte, houve troca de tiros entre indígenas e fazendeiros. Uma pessoa foi levemente ferida.
MOTIVOS DA RETOMADA “Não queremos encontrar só capim de novo”, afirma a indígena Noemia Maxakali, referindo-se à situação que esse povo encontrou suas terras quando voltou a ocupá-
iniciados pelo órgão indigenista, outros 18 processos de revisão estão parados na Funai. A reivindicação dos Maxakali pela posse de seu território tradicional vem sendo acompanhada pelo Ministério Público Federal em Minhas Gerais. O órgão instaurou, em 2002, procedimento administrativo para acompanhar a tramitação do pedido de revisão dos limites das terras junto à Funai. No entanto, apesar dos constantes pedidos dos procuradores, não houve qualquer definição.
Arquivo CIMI-MG
Priscila Carvalho de Brasília (DF)
senador do PFL: “Saiba que o mesmo ódio que (Bornhausen) devota ao povo brasileiro e à esquerda, a esquerda e o povo brasileiro devotam à sua pessoa – mesquinha, desprezível, racista. Ele nos fortalece na luta contra sua classe e seus lucros escorchantes e especulativos, na luta por um mundo em que o que conta seja a dignidade e a humanidade das pessoas e não a “raça” e a conta bancária. Obrigado por realimentar no povo e na esquerda o ódio à burguesia”. Não é demais relembrar que a defesa da existência de uma “raça” superior à outra foi usada por Hitler como argumento racional para exterminar seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
TENTATIVA DE LINCHAMENTO
Povo Maxacali denunciou a exploração de madeira na área indígena
las, após sua homologação parcial, em 1999. Desde então, os indígenas reivindicam a porção excluída e seu território. No início deste ano, eles denunciaram ao Ministério Público Federal a exploração de madeira na área onde ainda resta Mata Atlântica, mas não houve uma resposta consistente dos órgãos federais. Quando a terra foi homologada, ficaram fora da área reconhecida como indígena trechos de Mata Atlântica que ainda existem na região e que são importantes para a vida desse povo. “A terra homologada é formada principalmente de
pasto. Nós começamos a desenvolver um trabalho de recuperação ambiental, tentando substituir o capim colonial por floresta, porque os Maxakali são um povo de caçadores e coletores, que precisa da mata para sua sobrevivência física e cultural”, relata Markus Breuss, missionário do Cimi integrante do projeto de recuperação ambiental. A direção da Funai em Brasília mantém uma política de não encaminhar processos de revisão de limites de terras. Em todo o Brasil, além das terras que nem tiveram o processo de revisão de limites
Na tarde do dia 28, fazendeiros da região de Santa Helena de Minas lideraram um grupo que acusava dois missionários do Cimi de terem incentivado os indígenas à ação de retomada das terras. Segundo a Polícia Militar, os fazendeiros lideravam um grupo de cerca da 400 pessoas. Eles agrediram verbalmente e ameaçaram de linchamento os missionários Gilse Freire e Markus Breuss. Houve intervenção da Polícia Militar. Durante mais de quatro horas, os missionários ficaram sob a proteção policial no quartel do município de Santa Helena, onde ainda conversaram com fazendeiros. A casa do missionário foi apedrejada e os dois saíram da cidade com proteção policial. “Não somos responsáveis pelas retomadas. Fomos pegos de surpresa com a ação dos Maxakali, que tomam suas próprias decisões. Mas temos certeza de que o que os levou a fazer isso foi a demora das instituições públicas em resolver sua demanda pela terra. A questão da terra já gerou mortes de lideranças e muitos conflitos internos”, afirma a missionária Gilse Freire.
Preso mandante de massacre de Felisburgo Beatriz Pasqualino de Brasília (DF) Foragido desde maio, o fazendeiro Adriano Chafik Luedy foi preso dia 28 de agosto. Ele confessou ter sido o mandante do assassinato de cinco integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Felisburgo (MG), em 20 de novembro do ano passado. Chafik foi encontrado em uma de suas fazendas no sul da Bahia, escondido debaixo da cama. Junto com ele, foi preso Erivaldo Pólvora de Oliveira Júnior, suspeito de ter participado do massacre. Desde então, as cerca de 200 famílias que ocupam a fazenda Nova Alegria, no Vale do Jequitinhonha, recebem ameaças de morte. Pedro Otoni, do Setor de Direitos Humanos do MST no Estado, conta que apesar da prisão de Chafik outros envolvidos nos crimes continuam soltos. “Agora estamos vigilantes porque mais quinze pessoas participaram do massacre e a maioria delas ainda está solta. Outras pessoas não foram nem presas, viajaram para a Bahia e sumiram da região. Então a gente está alerta e continua denunciando”, diz Otoni. Essa é a segunda vez que Chafik é preso. Em 30 de novembro de 2004, ele se entregou em São Paulo, mas em abril deste ano o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus determinando sua soltura. No mês seguinte, a Justiça de Jequitinhonha voltou a decretar a prisão preventiva do fazendeiro. (Agência Notícias do Planalto, www.noticiasdoplanalto.net)
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Espelho Mudança digital O governo federal acaba de perder dois importantes defensores da inclusão digital e do software livre, que saíram descontentes com o novo rumo do Ministério das Comunicações sob o comando do senador Hélio Costa (PMDB-MG). Como todo mundo sabe de longa data, o ministro é pau mandado da TV Globo e dos interesses mais atrasados do país. Só Lula não sabia. Notícia espetacular O jornal O Estado de S. Paulo tentou transformar em escândalo o preenchimento de cargos nos conselhos administrativos das empresas estatais, nas quais os conselheiros podem ganhar até R$ 20 mil por mês em cada conselho. Só porque a maior parte das nomeações é de militantes do PT e dirigentes sindicais da CUT ligados a José Dirceu e a Luís Gushiken. O que há de errado? Lucro concentrado De acordo com a jornalista Sandra Balbi, em reportagem na Folha de S. Paulo de 29 de agosto, o lucro das empresas de capital aberto, com ações negociadas na bolsa de valores, cresceu 71% no primeiro semestre de 2005, em relação ao primeiro semestre de 2003; em contrapartida, o rendimento médio dos trabalhadores cresceu apenas 1,1% em 2005 em relação ao mesmo período de 2003. Ufanismo puritano Repórter e apresentador gastaram entusiasmo outro dia, no jornal da TV Globo, para informar que o preço da cesta básica de alimentos caiu nos últimos meses. Após algumas entrevistas selecionadas de pessoas satisfeitas em adquirir produtos mais baratos, a explicação foi dada por um gerente de supermercado: o consumo diminuiu, as pessoas só compram o que está em promoção. Jogadinha tucana Além de dar espaço à vontade para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a mídia empresarial tem pautado sistematicamente outros tucanos presidenciáveis nos seus noticiários, ora José Serra, ora Geraldo Alckmin, ora Tasso Jereissati. A mais recente onda, comandada pelo jornal Valor Econômico, transforma o governador mineiro Aécio Neves no mais hábil político do diálogo e da articulação democrática. Moleza texana O jornal Financial Times, dos Estados Unidos, informou, na última semana, que o presidente George W. Bush é o que mais tirou férias e dias de descanso entre os últimos presidentes estadunidenses. Em cinco anos, ele teve 336 dias de descanso, quase um ano. Já um trabalhador, nos EUA, consegue, em média, 13 dias de folgas remuneradas por ano. Cardápio variado Na busca de escândalos, a imprensa empresarial está vasculhando os cartões de crédito corporativos utilizados pelos ocupantes de cargos de confiança do Palácio do Planalto. Alguns jornais exploraram as “notas frias”, outros mostraram despesas aparentemente supérfluas – como o gasto de R$ 347 do exministro Luís Gushiken, no bar executivo do Hotel Ca’d’Oro, em 9 de abril de 2004. O registro do gasto não diz muita coisa, mas é o suficiente para produzir uma matéria escandalosa. Devastação verde De acordo com a Revista do Idec, o Sistema de Proteção à Amazônia (Sipam) apontou aumento de 16% na área destruída entre 2003 e 2004, no sul do Amazonas, até então o Estado nortista com o menor índice de desmatamento. Entre as cidades que mais desmataram está Guajará, que teve 70% da área natural devastada. Onde está o Ministério do Meio Ambiente? Silêncio oportuno Todos os estudos mostram que o combate a doenças crônicas e epidêmicas, como o tratamento dos portadores de HIV, no Brasil, só terá bons resultados, com custos suportáveis, se houver quebra de patentes de muitos medicamentos controlados por empresas estrangeiras. A mídia silencia, o Ministério da Saúde finge que não tem nada a ver com isso – enquanto muita gente morre na fila do remédio.
Oligarquia não cai com eleições Palocci aplaude o fato de que a política econômica não mude pelo processo do voto popular Jorge Pereira Filho e Luís Brasilino da Redação
Antonio Cruz/ABr
da Redação
CRISE
A
o responder às acusações de corrupção, o ministro Antônio Palocci (Fazenda) protagonizou um grande deboche da democracia brasileira. “As políticas do Ministério da Fazenda são técnicas, e não políticas, são acúmulo do que foi feito em governos anteriores, como o de José Sarney e o de Fernando Henrique. Isso mostra o fortalecimento do Estado brasileiro”, disse o ex-prefeito de Ribeirão Preto na entrevista coletiva de 21 de agosto. Mesmo que a frase não tenha sido publicada pelos jornais da grande imprensa, as declarações de Palocci soaram como música para os setores conservadores da sociedade e para o mercado financeiro. Mas para o economista Márcio Pochmann, da Unicamp, os comentários do ministro da Fazenda questionam a própria capacidade do sistema político-institucional do Brasil de implementar um elemento de transformação social. Se votar em um candidato à Presidência com um discurso de mudança não é suficiente para modificar a condução da economia, de que valem as eleições? “Não é para menos que pesquisas começam a indicar que 40% da população aceita mudar de regime, se as condições de vida do cidadão comum se transformarem”, alerta Pochmann. Segundo o economista, nos 21 anos desde o fim da ditadura militar, os indicadores sociais – desemprego, violência, desigualdade de renda – regrediram; enquanto o país apresentou resultados medíocres na área econômica, deixando de ser a 8ª economia do mundo para ser, atualmente, a 14ª. Durante esse período, não só as estatais foram privatizadas. A política brasileira foi colonizada pelo interesse dos empresários e do mercado financeiro. O suposto argumento “técnico” foi se sobrepondo à discussão política na gestão do Estado que passou a ser encarada como a administração de uma empresa.
Mesmo com o agravamento da crise, Palocci afirma que “as políticas do Ministério da Fazenda são técnicas, e não políticas”
“Não tem o menor cabimento, as políticas macroeconômicas têm dimensão técnica, e uma outra política, pois repercutem sobre aspectos sociais do país. É uma empulhação dizer isso”, explica o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Além de inverdade, o economista considera o comentário de Palocci como “um estelionato eleitoral, pois não foi isso que disseram aos eleitores em 2002”. Paulo Nogueira avalia que Lula não “mudou a economia por incapacidade e medo”.
NA PRÁTICA A arquiteta Ermínia Maricato, que deixou a secretaria executiva do Ministério das Cidades, constatou, na prática, o domínio da visão neoliberal na esfera pública. “Há uma escola dentro do governo, um programa fortíssimo, não é só uma questão política. A máquina está configurada para uma ação de contenção dos gastos com políticas públicas”, afirma. Segundo Ermínia, essa estrutura vem sendo forjada desde o governo Fernando Collor (19901992). O orçamento no seu antigo ministério, por exemplo, só era
liberado pela metade. Apenas em dezembro, o resto chegava. “Então, fica-se, no ano seguinte, gastando orçamento do ano anterior. Ou seja, o superavit primário Superavit primário é muito maior – Dinheiro que o do que esse governo deixa de que está aí diinvestir em áreas sociais, por exemto”, avalia. plo, para pagar os Detalhe: do juros da dívida. início do ano até julho, oficialmente, o governo cortou R$ 69 bilhões de investimentos e gastos sociais para pagar os juros da dívida e, mesmo assim, a conta não fechou. Nesse período, a dívida brasileira cresceu R$ 100 bilhões. “As coisas são muito mais radicais do que a gente pensava. É uma política que desmonta a possibilidade de o Estado planejar e investir”, reitera Ermínia. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) é outro exemplo. O orçamento para 2005 só foi liberado em 20 de março. Quando chegou, o dinheiro foi rapidamente gasto no pagamento de Títulos da Dívida Agrária (TDAs) e se esgotou em meados de maio. Graças à Marcha Nacional pela Reforma Agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que chegou a Brasília
dia 17 de maio, foi liberada uma suplementação orçamentária. Só que os recursos não saíram imediatamente. A suplementação só ficou à disposição do MDA em meados de julho.
PLEBISCITO A opinião do professor Fábio Konder Comparato, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é curta e grossa: oligarquia não se derruba com eleições. Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei apresentado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que facilita a convocação de referendos e plebiscitos para questões essenciais para o país. O projeto, no entanto, foi vetado por seu relator na Comissão de Constituição e Justiça, o deputado Roberto Freire (PPS-PE), mas ainda pode ser recuperado. “Só com democracia direta poderemos derrubar a oligarquia. Isto é, plebiscito e referendo por iniciativa popular, revogação popular de mandatos eletivos, iniciativa popular de leis e emendas constitucionais, orçamentos participativos obrigatórios”, enfatiza Comparato.
Menos investimentos para crianças Bel Mercês da Redação Duas áreas vinculadas à Secretaria Geral da Presidência da República vão cortar investimentos em projetos para a criança e o adolescente em 2006. Os recursos do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente, de responsabilidade do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), e a Subsecretaria de Promoção da Criança e do Adolescente (SPDCA) tiveram uma redução de 52% em sua proposta orçamentária para o próximo ano. Isso quer dizer que, juntos, terão provavelmente um orçamento de R$ 12,3 milhões. Em 2005, o valor destinado às áreas foi R$ 25,8 milhões. O contínuo corte de verbas destinadas à políticas públicas para a criança e o adolescente fica evidente se a comparação for remetida aos últimos dez anos. Em 1995, esse orçamento era de R$ 256,1 milhões, cerca de dez vezes menor que o valor correspondente em 2005 e aproximadamente 20 vezes menor que previsão para 2006. Segundo José Fernando da Silva, presidente do Conanda, estão ficando sem apoio projetos importantes, como medidas sócioeducativas, serviços comunitários e programas de combate à violência e exploração sexual. “O artigo 227 da Constituição Federal fala em
Ricardo Stuckert/PR
da mídia
NACIONAL
Corte orçamentário prova que criança e adolescente não são prioridades no governo
absoluta prioridade para a criança e o adolescente. Se é prioridade, tem que estar de forma muito clara no Orçamento da União, o que não acontece”, afirma Silva.
SUBORDINAÇÃO O presidente do Conanda explica que, além da diminuição de recursos, os valores liberados pelo Ministério da Fazenda são sempre inferiores aos aprovados pelo Planejamento, por conta do contigenciamento de verbas . Silva recapitulou: “Em 2003, apenas 13,4% do que foi autorizado ficou disponível, ou seja, o valor para 2006 pode ser ainda menor”, prevê. Para o presidente do Conanda, essa redução de investimentos nas
áreas sociais tem apenas uma explicação: “O superavit primário está falando mais alto. Se não existem gastos sociais, sobra mais dinheiro para pagar a dívida externa. A política social fica subordinada ao interesse do capital.” Um relatório do Instituto Brasileiro de Análise Social (Ibase) reforça essa afirmação. Segundo o documento, o investimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na área social foi de apenas 2,2% de seu orçamento no período de janeiro a julho de 2005. Sinal de que a questão não é prioritária no uso do dinheiro público. O Conanda já solicitou uma
audiência para tratar do tema com o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulce, mas até agora o pedido não teve resposta. Pretendem fazer o mesmo com o presidente Lula. A senadora Patríca de Saboya, coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa da Criança e do Adolescente no Congresso Nacioonal, já manifestou seu apoio às ações necessárias para mudar a redução dos investimentos sociais nessas áreas. “ A idéia é mobilizar a Frente, temos representantes em todos os Estados. Queremos procurar o atual secretário de Direitos Humanos, Mário Mamede”, explica. Outro recurso que pode vir a ser usado é a proposição de emendas no orçamento, caso a proposta chegue no Congresso. Para ela, “as conseqüências são drásticas. São milhões de crianças que nunca têm prioridade. Como construir uma sociedade mais justa sem investir em quem vai construí-la?”, questiona. O total de investimentos da União em projetos para a criança e o adolescente, o chamado “Orçamento Criança”, é calculado anualmente pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), organização não-governamental com finalidade pública. Segundo Francisco Sadeck, assessor de política fiscal e orçamentária da entidade, esse cálculo deve sair até o final de setembro.
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De 1º a 7 de setembro de 2005
NACIONAL JUSTIÇA SOCIAL
Grito dos Excluídos mobiliza por mudanças Dia 7 de setembro milhares devem sair às ruas para pedir ética na política e vida digna
O
que fazer? Esse tem sido o dilema de militantes populares diante da decepção e desesperança, reflexo das denúncias de corrupção no governo. Uma tentativa de resposta a essa pergunta, a 11ª edição do Grito dos Excluídos, dia 7 de setembro, terá como lema: “Brasil, em nossas mãos a mudança”. Luiz Bassegio, secretário do Grito dos Excluídos Continental, explica: “Vamos continuar gritando as mesmas coisas de sempre, mas com enfoque maior no combate à corrupção, pela ética na política, pela punição dos culpados e pela devolução aos cofres públicos daquilo que foi roubado. Mas não gritaremos fora Lula”. Assim, o Grito continuará protestando contra a exclusão social e pela mudança da política econômica. “O Brasil ainda é refém dos juros altos e do endividamento externo. O governo tem se dobrado às exigências internacionais, encaminhando reformas neoliberais”, diz Bassegio. No entanto, segundo o ativista, a crise política pela qual o país passa demonstra que a democracia formal não responde mais às demandas da sociedade. Diante disso, o Grito deste ano vai apontar a necessidade de criação de mecanismos diretos de democracia, como conselhos, associações, organizações populares, em que o povo participe diretamente das decisões sobre o destino da nação. Além disso, os integrantes do Grito entendem que o papel dos movimentos sociais, diante da atual conjuntura, é fazer trabalho de base, que estava presente na pauta dos
ritório nacional, e já chegou a ter a participação de cerca de 1,5 milhão de pessoas – número que a organização espera superar, este ano. Durante o Dia da Indepedência, será divulgado o manifesto “Em defesa do povo brasileiro” (veja texto abaixo), por meio do qual a sociedade é conclamada a se mobilizar. Também será feito um chamado para a Assembléia Popular Nacional, que vai ocorrer de 25 a 29 de outubro, em Brasília (DF). Está prevista a realização de um grande acampamento, com dez mil pessoas, e o lançamento de uma plataforma com 20 pontos, entre os quais o pedido de mudança do modelo econômico.
Anderson Barbosa
Tatiana Merlino da Redação
POR MUDANÇAS
Antônia da Fonseca vai protestar “junto com milhares de pessoas que também querem conquistar casa, emprego e terra”
últimos anos, mas reaparece esse ano com mais força, como resultado da crise. Para dom Demétrio Valentini, bispo de Jales, a decepção diante do cenário político atual não pode desmobilizar a população: “Temos de reagir, e o lema do Grito deste ano demonstra que não podemos desistir, mesmo que a política esteja irremediavelmente contaminada pela corrupção”, diz. Segundo ele, o Grito é “uma convocação para assumirmos conscientemente a nossa parte”. Na avaliação do bispo, os partidos políticos “como instrumento de mediação com a sociedade ficaram esclerosados”, e sendo assim, cabe
aos movimentos populares retomar a esperança. Mas não uma esperança ingênua, e sim “uma mais realista, que não prescinda da atuação permanente da sociedade”.
11 ANOS SOLTANDO A VOZ O Grito nasceu em 1995, como continuidade do debate da Campanha da Fraternidade, que tratou dos excluídos naquele ano. O Dia da Independência foi escolhido como marco das manifestações por todo o país, de acordo com a interpretação de que o Brasil não era um país independente. Inicialmente organizado pelas pastorais sociais, o Grito foi aglutinando, ao longo dos anos, movimentos sociais, sindicatos e
outras entidades populares. A partir de 1999, o Grito difundiu-se por vários países da América Latina e do Caribe; em 2000, ganhou caráter continental, sendo chamado de Grito Continental. De acordo com Bassegio, nos últimos anos o Grito dos Excluídos vem assumindo uma carga simbólica muito diferenciada: “Os que não têm acesso a condições básicas de moradia, educação, saúde e transporte encontraram no Grito uma forma de expressar sua indignação”. O sucesso pode ser demonstrado em números. O Grito começou com 150 mil pessoas, em 170 localidades. Hoje acontece em cerca de duas mil localidades, em todo ter-
Antônia Santos da Fonseca sente na pele o que é ser excluída desde 1996, quando perdeu seu emprego de faxineira de uma agência do Banco Real. O quarto onde morava na Bela Vista, região central da capital paulista, foi substituído pela rua. “Foi quando as portas se fecharam, e nunca mais abriram”, diz a sem-teto de 58 anos. Separada e mãe de dois filhos, Antônia conheceu o Movimento de Moradia da Região do Centro (MMRC) e em 2003 foi morar numa ocupação do movimento na região central da cidade. Porém, dia 16 de agosto as famílias foram despejadas. Hoje Antônia mora na rua, com mais 79 famílias. “Cansada da luta, mas ainda com esperanças”, a semteto garante que dia 7 de setembro vai protestar “junto com milhares de pessoas que também querem conquistar casa, emprego e terra”. Para ela, “não é demais querer ter um cantinho para morar sossegada na velhice”.
Manifesto do dia 7 de setembro A nação brasileira vive uma grave e profunda crise, e está em perigo. O perigo que ameaça nossa nação é fruto da implantação da política neoliberal que favorece apenas o capital financeiro, nacional e internacional e as grandes corporações que se dedicam às exportações. Essa política aprofunda cada vez mais a pobreza, a desigualdade social e a miséria. Nada menos do que 27 milhões de trabalhadores (40% de toda população ativa) vivem desempregados ou na economia informal, sem cobertura da seguridade social e de direitos trabalhistas. Cerca de 20 milhões de famílias, ou seja, 82 milhões de pessoas pobres, vivem com menos de dois salários-mínimos mensais. Continuamos reféns da mais alta taxa de juros do mundo, de um superavit primário que só interessa aos banqueiros e de um endividamento externo, o que exige freqüentes ajustes para atender o capital financeiro internacional. O governo tem se dobrado a estas exigências dos banqueiros e das transnacionais, mantendo políticas neoliberais, o que o torna incapaz de implementar políticas públicas em favor do povo e de usar os recursos públicos para reforma agrária, saúde, educação, transporte, habitação, direitos humanos e meio ambiente. Esse modelo econômico não tem futuro para nosso povo! A sociedade brasileira está dilacerada pelo desemprego, pela pobreza, pela fome, pela violência e pela corrupção, o que nos deixa revoltados e por momentos desesperançosos. As recentes denúncias de corrupção e a revelação dos métodos de fazer política dos partidos, que enganam o povo, desencadearam uma grave crise política. O povo
Divulgação
Em defesa do povo brasileiro! Manifestações em todo o país As atividades do Grito vão acontecer em cerca de duas mil localidades. Em algumas cidades, uma passeata se juntará a atividades tradicionais de colégios e comunidades. Em outras, vai acontecer em seguida aos desfiles oficiais. Alagoas – Maceió: concentração na Praia da Pajuçara Amapá – Macapá: concentração na Capela São Cristóvão, rumo ao terminal rodoviário Amazonas – Manaus: saída do Sambódromo e caminhada até o Estádio Vivaldo Lima Bahia – O Grito vai acontecer nas cidades de Anagé, Catu, diocese de Itabuna Ceará – Fortaleza: concentração na Igreja Nossa Senhora Aparecida e encerramento no Pólo de Lazer da Barra do Ceará Goiás – Goiânia: concentração no Parque Oeste Industrial e marcha até o Jardim Grajaú em Aparecida de Goiânia Maranhão – São Luís: concentração no Viva Anjo da Guarda Minas Gerais – Januária: concentração na Praça do Mercado Paraná – Curitiba: concentração em frente à prefeitura Rio de Janeiro – Rio de Janeiro: manifestações em vários pontos da capital Roraima – Boa Vista: concentração em frente à Feira do Produtor Santa Catarina – O Grito vai acontecer nas cidades de Criciúma, Florianópolis, Joinville, Tubarão, Caçador, Concórdia, Chapecó, São Miguel do Oeste e Blumenau São Paulo – São Paulo: missa na Catedral da Sé, ato no Museu do Ipiranga; Aparecida do Norte: concentração na Basílica de Aparecida Cartaz da 11ª edição do Grito dos Excluídos
não acredita mais na maioria dos políticos e estes não têm legitimidade para representá-lo. O povo brasileiro vive um misto de tristeza e decepção diante da situação de nosso país. A nação brasileira não pode continuar neste impasse. É preciso exigir mudanças profundas na economia e na política. Para exigir estas mudanças, temos quatro grandes desafios: 1. Construir um novo modelo econômico: que crie empregos, distribua renda e que privilegie os
investimentos públicos nas áreas sociais. 2. Um Programa Emergencial: tendo em vista a superação da miséria, da pobreza e o combate da desigualdade social. 3. Uma reforma política profunda e radical: que devolva ao povo o direito de decidir sobre todas as questões estratégicas de nosso país. 4. Soberania Nacional: aplicação de políticas que garantam os interesses do povo brasileiro sobre nossa economia, território, riquezas,
Tocantis – Palmas: celebração na Vila Independência, Igreja Metodista
biodiversidade, empresas públicas, Banco Central, água, sementes, petróleo, gás e a política externa. Diante disto, conclamamos a todos e todas a se organizar e mobilizar, a partir deste dia 7 de setembro. Gritemos em favor da justiça, da ética, pela mudança da política econômica, pela superação da pobreza e da desigualdade social. Conclamamos ainda a que todos promovam atividades e manifestações múltiplas e plurais; a fortalecer espaços de criatividade e participação popular
e reativar nosso patriotismo por um Brasil sem corrupção, sem exclusões, livre e soberano. BRASIL, EM NOSSAS MÃOS A MUDANÇA Via Campesina-Brasil, Grito dos Excluídos/as, Rede Jubileu Sul/Campanha Brasileira Contra a Alca, Coordenadoria Ecumênica de Serviços Sociais, Coordenação dos Movimentos Sociais, Conferência dos Religiosos do Brasil, 4ª Semana Social Brasileira
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De 1º a 7 de setembro de 2005
NACIONAL TELEFONIA
Fatos em foco
Privatização ainda sob suspeita
Hamilton Octavio de Souza
CPI vai investigar possíveis irregularidades nos contratos de concessão das operadoras regionais
Interesse palaciano Procuradores da República e delegados da Polícia Federal que investigam os doleiros envolvidos no caso do Banestado, e que continuaram operando até recentemente, reclamam que o Banco Central não facilita em nada a identificação das movimentações financeiras suspeitas acima de R$ 100 mil. O presidente do BC, Henrique Meirelles, é um dos investigados. Jogada empresarial Peritos que trabalharam para a CPI do Banestado, prematuramente concluída pelo deputado federal José Mentor (PT-SP), estimam que as informações processadas representam apenas 20% da movimentação ocorrida. A grande maioria das contas descobertas no exterior é de empresários, fruto de caixa dois e sonegação fiscal. A quem interessa acobertar esses crimes? Relação promíscua A denúncia do ex-assessor de Palocci, o advogado Rogério Buratti, de que o esquema do bingo deu R$ 2 milhões à campanha de Lula, em 2002, explica por que o governo ameaçou fechar os bingos – com o apoio da Igreja – e depois fraquejou na liberação. Vale lembrar que as casas de bingo funcionam como lavanderias do dinheiro do jogo do bicho e do tráfico. Campanha otimista Cerca de 400 mil bancários de todo o Brasil reivindicam reajuste salarial de 11,7%, a partir da data-base de 1º de setembro. Muitos dirigentes sindicais acreditam que as entidades patronais tendem a fazer acordo acima do índice de inflação medido até 31 de agosto, de 5,69%, do Dieese, principalmente porque os bancos bateram recordes de lucro no último ano. É esperar para ver. Disputa indefinida O ministro do Planejamento, deputado Paulo Bernardo (PT-PR), tentou representar a chapa do Campo Majoritário em debate dia 28 de agosto, em Curitiba, mas foi vaiado até deixar o auditório lotado por cerca de 800 petistas. A corrente de Lula e Zé Dirceu perde apoio na disputa interna, na base da militância, mas mantém controle absoluto da máquina partidária nacional e nos Estados. Política imutável Considerado o mais cotado sucessor do ministro Antônio Palocci, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Murilo Portugal, deixou claro, em discurso, dia 28 de agosto, que não defende alterações na política econômica. Ao contrário, para ele a obtenção de superavit primário acima da meta do FMI, de 4,25%, deve durar “pelo menos por mais dez anos”. Quem sobreviver, verá. Sintoma positivo Aparentemente surpreendida pela dimensão da crise política, que atinge em cheio o Partido dos Trabalhadores, a comunidade acadêmica – intelectuais, pesquisadores e professores universitários – demorou um bom tempo para reagir, mas, agora, os debates, as palestras e as análises de conjuntura já movimentam os espaços universitários. Menos mal. Reconhecimento Há momentos na vida em que os pais, por mais sabedoria e experiência que tenham, precisam admitir que os filhos também costumam ter razão. Que o diga o ex-ministro e advogado Tarso Genro, presidente interino do PT até a escolha da nova direção partidária, dia 18 de setembro. Manifestação popular Os organizadores do Grito dos Excluídos estão contando, este ano, com aumento de participação popular nas manifestações previstas para o dia 7 de Setembro, especialmente porque o clima de descontentamento é muito grande.
H
á onze anos, a conta de telefone comprometia, em média, 16,3% da renda de uma família brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Hoje, esse gasto chega a 32%. Um levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos SócioEconômicos(Dieese) feito na cidade de Curitiba mostrou que, desde o plano real, em 1994, a assinatura básica do telefone fixo residencial sofreu uma verdadeira escalada: aumentou 5.155,74 %. A origem dos aumentos abusivos estariam em irregularidades que remontam aos contratos de concessão do serviço de telefonia fixa, assinados em 1998. Tais irregularidades, segundo Dulce Pontes, coordenadora jurídica do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (Idec), desrespeitam os códigos do consumidor e o tributário, assim como a Constituição. Desde então, um batalha judicial vem sendo travada entre as concessionárias, cujos contratos são defendidos pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o órgão regulador setorial, e entidades da sociedade civil, que tentam suspender a cobrança da assinatura básica. No dia 17 de agosto, foi feito requerimento para instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para investigar os contratos de concessão assinados na privatização do sistema público (da Telebrás, holding das concessionárias do serviço telefônico comutado fixo - STFC). O deputado federal Daniel Almeida (PC do B-BA), autor do pedido, acredita que a “discussão do aumento abusivo das tarifas e da assinatura básica deve estar relacionada com todo o processo de privatização, que foi malfeito, com muitas denúncias de irregularidades que precisam ser apuradas”.
audiências públicas no Congresso sobre problemas de qualidade, redução dramática de linhas em uso (teledensidade) nos domicílios das classes C, D e E e a quase extinção de investimentos em serviços básicos”, critica. Cuza argumenta que, nos últimos três anos, a teledensidade (número de telefones por grupo de 100 habitantes) tem caído vertiginosamente entre as classes de renda mais baixa, mostrando claramente que grande parte da população está sendo excluída do acesso ao serviço de telefonia fixa. “Hoje, o valor da assinatura básica do serviço fixo cobrado pelas concessionárias é cerca de R$ 36”, aponta.
Antônio Gaudério/ Folha Imagem
Dafne Melo da Redação
ABUSOS
Desde 1994, assinatura básica do telefone fixo aumentou 5.155,74%
pode impor um consumo mínimo. Só o consumidor pode determinar o que quer consumir, ou não”, alega. Essa prática também viola o artigo 77 do Código Tributário, uma vez que – no caso de um usuário que não utiliza os 100 pulsos – exige o pagamento de um serviço não prestado. O Idec questiona, ainda, a legitimidade das empresas de telefonia cobrarem tarifas. Dulce argumenta que, como a telefonia é um serviço público essencial, deve ser universalizado. Segundo a Constituição, a oferta de um serviço público somente pode ser cobrada por meio de taxa, que é um tributo. “Já a assinatura básica é uma tarifa, que tem regime jurídico diferente”.
FRAUDE Rogério Gonçalves, um estudioso de telecomunicações desde 1992, e que mantém uma página na Internet* sobre o assunto, tem outra linha de argumentação. Para ele, de acordo com a Portaria 216/91, mantida na Lei Geral de Telecomunicações (LGT), de 1997, “a tarifa básica de assinatura daria direito ao consumidor de realizar ligações locais sem tarifação, tal como nos moldes utilizados hoje nos Estados Unidos”. Ele diz que a cobrança da assi-
ARGUMENTOS Dulce, do Idec, explica que, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), não se pode estabelecer uma relação de imposição entre fornecedor e consumidor. Mas é exatamente o que acontece na telefonia fixa residencial porque no valor da assinatura básica estão embutidos 100 pulsos para os assinantes, que pagam pelo serviço mesmo se não o utilizam. “Não se
natura básica foi anexada ao contrato com as operadoras de forma fraudulenta. “Esse anexo entrou posteriormente, e sequer foi colocado em consulta pública”, afirma.
MUDANÇAS A reestruturação por que passa a Anatel oferece “uma oportunidade única de realizar mudanças essenciais, com objetivo de eliminar os danos ao consumidor e à competição provocados pela existência de monopólios regionais privados”. É o que escreve em artigo publicado em agosto no jornal Gazeta Mercantil, Luiz Cuza, presidente da Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (Telcomp), entidade empresarial que reúne as empresas autorizadas a prestar serviços de comunicação (ou seja, menos as três concessionárias regionais do STFC).
AUMENTOS Sem concorrência, argumenta, os preços dos serviços básicos podem aumentar anualmente pelo teto do índice de inflação previsto nos contratos. “Prova disso é a reação popular materializada em mais de 100 mil ações judiciais,
Além da cobrança da assinatura, os contratos de concessão permitem um nível de reajuste das tarifas telefônicas que não condiz com a realidade brasileira. A correção é feita com base no índice IGP-DI, que tem entre os seus componentes a variação do dólar, que não tem nada a ver com os custos da telefonia fixa. O contrato ainda dá o direito de as concessionárias aumentarem as tarifas em até 9% acima da inflação. Em uma ação movida pelo Idec, essa correção foi considerada ilegal, e não mais incide nas contas dos assinantes do Estado de São Paulo. A Anatel justifica o preço do serviço telefônico fixo jogando a bola para a carga tributária que pesa sobre o setor. Segundo a Agência, mais de 40% do valor da conta de cada usuário vai para os cofres dos Estados e da União.
OMISSÃO Definida como autarquia, a Anatel deveria regular as relações entre empresas e consumidores buscando um equilíbrio. O que se observa, entretanto, é que a agência é “uma representante das concessionárias”, critica a coordenadora jurídica do Idec. Rogério Gonçalves, avalia que, desde a criação da agência reguladora, em 1997, os sucessivos ministros das Comunicações têm repetido o discurso de que a Anatel tem autonomia. Entretanto, como uma autarquia, ela apenas é um órgão auxiliar do executivo. “A Anatel usurpa os poderes que seriam do Ministério das Comunicações o qual, convenientemente, deixa de cumprir o seu papel”. * ( h t t p : / / w w w. c l i p . m 6 . n e t / atualize/tele/jtele.asp)
EDUCAÇÃO
Universidades estaduais paulistas em greve As três universidades estaduais de São Paulo decidiram paralisar atividades na última semana, em protesto ao veto do governador Geraldo Alckmin (PSDB) ao aumento de recursos para educação. Na Universidade de São Paulo (USP) e na Estadual Paulista (Unesp), alunos e professores votaram a favor da greve a partir do dia 26 de agosto. Já a de Campinas (Unicamp), no mesmo dia, aprovou um indicativo de greve, com assembléia marcada para o dia 31 de agosto. De acordo com o orçamento aprovado pela Assembléia Legislativa, no primeiro semestre, e consolidado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), os recursos para todos os níveis de ensino deveriam subir de 30% para 31% de toda a arrecadação tributária. E as universidades estaduais teriam, ainda, pequeno aumento das verbas vinculadas ao ICMS (Impostos sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços), dos atuais 9,57% para 10%.
Luciney Martins/ Bl 45Imagens
Morosidade oficial O presidente da CPMI dos Correios, senador Delcídio Amaral (PT-MS), continua reclamando que o Banco do Brasil, o Banco Rural e o Banco de Minas Gerais estão fazendo de tudo para protelar a entrega de documentos importantes para a investigação dos casos de corrupção. O Banco Central não demonstra o menor interesse em acelerar o processo. Por que será?
Dia 26 de agosto, servidores públicos protestaram contra os cortes na educação
Mesmo assim, abaixo da reivindicação histórica de 11,6%.
AUTORITARISMO Outro ponto positivo da LDO vetada por Alckmin era a destinação, a partir de 2006, de 1% do ICMS para o Centro Paula Souza (faculdades e escolas técnicas estaduais), que
antes não contava com qualquer tipo de verba fixa vinculada. O veto foi dado em 4 de agosto e, de acordo com a Constituição do Estado, a Assembléia tem prazo de 30 dias para refazer a votação que pode derrubar ou referendar a medida do governador. César Minto, presidente da Asso-
ciação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) diz que o veto foi uma “atitude autoritária do governador”, e acredita que a pressão será essencial para tentar reverter a decisão, exigindo a votação. No dia 30 de agosto, houve uma sessão na Assembléia, para sensibilizar os parlamentares. Minto informa que o presidente da Casa, Rodrigo Garcia (PFL), foi convidado para a manifestação. O encaminhamento do pedido para votação deve ser feito por Garcia. Na avaliação do presidente da Adusp, a atitude do governo estadual está dentro da lógica neoliberal de “desregulamentação e desvinculação”. A seu ver, o discurso de Alckmin é contraditório, uma vez que, ao mesmo tempo, o governador afirma que está investindo muito na ampliação da oferta de vagas, mas diz que não quer “engessar” o orçamento do Estado. “Se ele de fato gasta esse dinheiro, então por que não formalizar?”, questiona César Minto. (DM)
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De 1º a 7 de setembro de 2005
NACIONAL POLÍTICA DE PRIVILÉGIOS
Receita para dar calote, dentro da lei Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
N
os últimos anos, a indignação contra os avanços seguidos do Leão do Imposto de Renda (IR) contra os bolsos do consumidor, seja ele um dono de empresa ou um mero assalariado, chegou a níveis recordes. Com razão até, especialmente no caso dos trabalhadores, obrigados a suportar o peso crescente do IR recolhido na fonte. Afinal, no ano passado, a carga tributária (ou seja, a soma de todos os impostos, taxas e contribuições federais, estaduais e municipais) atingiu o correspondente a 35,9% do Produto Interno Bruto (PIB), indicador que mede o total de riquezas geradas pelo país. Mais claramente, um pobre assalariado foi obrigado a trabalhar 131 dias, em 2004, apenas para pagar impostos. A choradeira, em alguns casos, nem sempre se justifica, já que o próprio governo tem aberto ou mantido brechas na legislação que permitem o tal “planejamento tributário”. Em bom português, autoriza-se, deliberadamente, que determinados setores na economia recolham menos impostos do que deveriam, criando castas de privilegiados em relação ao restante dos contribuintes, virtualmente esfolados pelo ritmo alucinante da política de arrocho fiscal.
Ricardo Silva/ Folha Imagem
Empresas têm altos lucros e pagam poucos impostos um recurso fora do alcance do assalariado comum descontadas das receitas todas as despesas e o pagamento de impostos, saltou de R$ 18 bilhões para R$ 27 bilhões, com aumento real de quase 50%. Para efeito de comparação, os valores dos lucros também foram corrigidos com base no IPCA e atualizados até junho de 2005.
LIMITAÇÕES
Enquanto assalariado trabalha 131 dias para pagar impostos, indústria têxtil paga menos tributos
O resultado corresponde a 82% da meta estabelecida para todo o ano (R$ 83,85 bilhões), que tende a ser ultrapassada em 2005, impondo sacrifícios desnecessários aos brasileiros. Faltam R$ 15 bilhões para cumprir aquela meta, numa média ligeiramente acima de R$ 3 bilhões por mês, ou menos de um terço dos R$ 9,8 bilhões economizados mensalmente, também em média, entre janeiro e julho.
SUPERAVIT Nos primeiros sete meses de 2005, apenas num exemplo, a poupança feita pelo setor público como um todo para pagar os juros da dívida somou R$ 68,7 bilhões, equivalentes a 6,3% do PIB, num avanço de 30% em relação a igual período do ano passado.
calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um levantamento realizado pela empresa de consultoria Economática e pelo jornal Valor Econômico, divulgado na terceira semana de agosto, mostra que o lucro líquido de 188 empresas de capital aberto (ou seja, que têm ações negociadas em bolsa), excluída a Petrobras, aumentou quase 50% no primeiro semestre deste ano. O resultado líquido, depois de
PARA POUCOS A sanha arrecadadora, no entanto, parece ser claramente seletiva e não atinge a todos os contribuintes com a mesma intensidade. Basta verificar o que aconteceu na primeira metade do ano. Entre janeiro e junho, os impostos e con-
LUCROS EM DISPARADA Ganho líquido das empresas, em R$ bilhões* Período
Resultado líquido**
1º sem/2003
15,2
1º sem/2004
18,1
1º sem/2005
27,1
(*) Balanços de 188 empresas de capital aberto, excluída a Petrobras (**) Em valores atualizados até junho de 2005, com base na variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Fontes: Economática e Valor Econômico
Novas vantagens. Para grandes grupos As empresas nem precisariam recorrer ao caixa dois e à sonegação de impostos, tantas são as brechas abertas na legislação. Além da isenção para o pagamento disfarçado de lucros aos acionistas, as pessoas jurídicas podem deduzir do imposto devido, a cada ano, o equivalente a 30% de seus lucros. Basta, para isso, que tenham registrado prejuízos, em qualquer momento do passado. O argumento das empresas para justificar essa nova vantagem, que funciona mais uma vez em favor de grandes grupos, não guarda qualquer relação com o mundo real de assalariados e contribuintes em geral. Elas dizem, por exemplo, que sofreram perdas patrimoniais com os prejuízos registrados no passado e que essas perdas devem ser repostas quando a fase de lucros retornar. Caso contrário, o governo estaria cobrando impostos sobre lucros irreais. Suponha, por exemplo, que uma empresa tenha patrimônio (prédios, terrenos e outros imóveis, máquinas e equipamentos, créditos a receber de terceiros e outros ativos) de R$ 1 mil e registre um prejuízo, em determinado ano, de
tribuições pagos pelas empresas não financeiras (quer dizer, exceto bancos e outras instituições da área) alcançaram um total de R$ 83,1 bilhões, segundo a Secretaria da Receita Federal. Houve um incremento de menos de 12% em relação aos R$ 74,2 bilhões recolhidos pelas mesmas empresas no primeiro semestre de 2004, em valores corrigidos com base na variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA),
Visto de uma outra forma, os lucros aumentaram a uma taxa quatro vezes maior do que os impostos e as contribuições recolhidos pelas empresas. Isso graças às brechas criadas propositadamente para aliviar a carga tributária das empresas, por meio de estratagemas que não se encontram ao alcance do contribuinte comum. Ou seja, o trabalhador/assalariado não pode recorrer às mesmas manobras para reduzir seu imposto, o que torna o sistema ainda mais injusto e concentrador da renda. No caso do contribuinte pessoa física, os abatimentos do Imposto de Renda (os gastos que podem ser deduzidos do imposto a pagar) são limitados a despesas com educação, saúde e dependentes. As empresas, ao contrário, descontam todos os seus gastos, incluindo despesas financeiras e as retiradas dos sócios (que são tributadas à parte, na declaração da pessoa física). Entre essas despesas, entra também uma forma disfarçada de distribuição de lucros aos acionistas, aos donos das empresas, que ganha a pomposa classificação de “juros sobre o capital próprio”, como se verá a seguir.
R$ 100. Seu patrimônio encolheria para R$ 900. No ano seguinte, ela volta a ter lucro, anotando um ganho de R$ 90, o que faria seu patrimônio, hipoteticamente, aumentar para R$ 990.
JOGADAS Neste caso, a empresa poderá abater 30% do lucro apurado (R$ 27) antes da tributação do IR e da CSLL. O imposto devido cairia proporcionalmente, baixando de cerca de R$ 31 para pouco mais de R$ 21 (menos 30%). Sob o ponto de vista da empresa, caso o governo taxasse todo o lucro registrado, estaria cobrando impostos sobre um patrimônio que evaporou, não existe mais e precisaria ser recomposto. Até aqui, tudo parece lógico e correto. Não fosse por um senão: ao contribuinte pessoa física, ao assalariado comum, não são permitidas jogadas assim. Ele não tem como abater prejuízos registrados no passado e nem mesmo poderá ser beneficiado pela suspensão de impostos quando suas despesas, no ano, foram superiores à sua renda, em geral limitada aos ganhos obtidos com o pagamento do salário. (LVF)
ARRECADAÇÃO EM MARCHA LENTA Impostos e contribuições federais pagos por empresas não-financeiras, em R$ bilhões* Tributo
1º sem/2004
1º sem/2005
Variação (%)
Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ)
16,835
21,839
29,7
Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins)
37,987
39,584
4,2
PIS/Pasep
10,106
10,184
0,8
9,310
11,529
23,8
74,238
83,136
11,9
Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) Total
(*) Em valores atualizados até junho de 2005, com base na variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Fonte: Secretaria da Receita Federal
Isenção sobre juros: mais de R$ 6 bilhões ao ano Desde dezembro de 1995, por meio da Lei 9.249, aprovada no governo FHC, as empresas estão autorizadas a distribuir uma parte de seus lucros aos sócios de forma disfarçada, sem a necessidade de pagamento do Imposto de Renda (IR) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Esta última é uma das fontes de recursos para o sistema público de seguridade social. Sua arrecadação, portanto, financia as despesas da Previdência Social e da saúde pública, além dos programas de assistência social aos mais pobres. Assim, o privilégio concedido às empresas corresponde a menos recursos para aposentados, pensionistas e miseráveis em todo o Brasil. Segundo estimativa do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco Sindical), ainda com base em dados de 2002, o governo deixava de receber, todos os anos, perto de R$ 3,6 bilhões por conta daquela isenção, levando-se em conta todas as empresas contribuintes. No ano passado, segundo um outro estudo, desenvolvido pelo ValorData, banco de dados do Valor Econômico, com base nos balanços de 217 empresas de capital aberto, o lucro antes dos impostos dessas companhias somou R$ 76 bilhões, dos quais R$ 20 bilhões (26%) foram reservados para o recolhimento do IR e da CSLL – pouco mais de R$ 6 bilhões abaixo do que deve-
riam ter pago, caso não houvesse a isenção para a distribuição de “juros sobre o capital próprio”.
PERDA MAIOR Isso mostra que os números do Unafisco Sindical estão claramente subestimados, a esta altura, e que a perda de receitas tem sido bem maior do que os valores projetados então. Na soma das alíquotas do IR e da CSLL, as empresas deveriam recolher o correspondente a 34% de seu lucro antes dos impostos. Em alguns casos, como no de uma grande siderúrgica, o imposto realmente pago, depois de deduzidos os juros sobre o capital próprio, representou apenas 6% dos lucros. A maior exportadora de minério de ferro do mundo conseguiu economizar, em 2004, a bagatela de R$ 1 bilhão com as isenções de impostos, enquanto a maior rede de supermercados do país recolheu apenas 17%, ou metade do que deveria ter sido pago ao Leão.
CASO ÚNICO Uma grande e tradicional indústria têxtil teve sua alíquota reduzida de 34% para 11%. O benefício atinge principalmente grandes grupos empresariais e conglomerados financeiros, que têm lucros a distribuir a seus respectivos donos – o que significa que a maioria das empresas, especialmente as de menor porte, também não tem acesso a esse tipo de privilégio fiscal.
Ao admitir a criação desse mecanismo de distribuição de lucros, disfarçados de juros, o governo passou a considerar que parte do dinheiro que os acionistas deixam aplicado em suas empresas deveria receber tratamento equivalente aos empréstimos contratados pelas pessoas jurídicas para financiar suas operações e seu crescimento futuro. Assim, como um empréstimo que rende juros a quem empresta (os bancos, no caso), aquela parte do dinheiro dos acionistas passou a render juros aos seus donos – um caso único no mundo.
ATALHOS Analisando pelo lado da empresa, o pagamento de juros (seja aos bancos ou aos acionistas) constitui uma despesa e, como tal, deve ser abatida de seu lucro. Desta forma, a empresa consegue reduzir os ganhos que serão submetidos à cobrança de tributos. O resultado é um imposto menor do que o devido realmente e uma distribuição mais generosa dos lucros reais. Para facilitar ainda mais a vida dos donos das empresas, desde 1996, lucros e dividendos (uma espécie de remuneração paga a quem detém ações de uma empresa) distribuídos pelas empresas a pessoas físicas deixaram de ser tributados, gerando uma renúncia fiscal estimada em mais de R$ 6 bilhões por ano pelo Unafisco Sindical. (LVF)
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De 1º a 7 de setembro de 2005
NACIONAL ENTREVISTA
Lula podia ter feito mais, diz Niemeyer João Alexandre Peschanski e Taís Peyneau do Rio de Janeiro (RJ)
S
entado, em seu escritório em Copacabana, no Rio de Janeiro, Oscar Niemeyer balança a cabeça. “Cansamos de esperar as reformas que Lula prometia”, diz, comentando a crise do governo e do Partido dos Trabalhadores (PT). Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o arquiteto revela que nunca teve ilusões em relação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, segundo ele, chegou ao poder “cheio de ânimo”, mas sem um projeto para mudar radicalmente o Brasil. Esboça um sorriso. Mantém-se otimista, pois “Lênin já dizia que sem sonhar as coisas não acontecem”. Segundo ele, Lula ainda pode “virar a mesa” e implementar ações efetivas contra a pobreza. Para tanto, sugere, deve tomar exemplo nos presidentes cubano e venezuelano, Fidel Castro e Hugo Chávez. Segundo Niemeyer, mais do que nunca é preciso voltar-se à luta por mudanças radicais. Diante da possibilidade de transformar o mundo, outras atividades – até mesmo a arquitetura – perdem importância. Diz isso e caminha para a sala. Nas paredes, frases que escreveu. “Revolução”, “Terra para todos”, “Por um mundo melhor”. Ao lado, nas mesmas paredes, rascunhos e desenhos de suas obras. Brasil de Fato – Apesar da queda do muro de Berlim, da dissolução da União Soviética e, agora, da crise do PT, o senhor continua a ser comunista. De onde encontra motivação? Oscar Niemeyer – Deste mundo de pobres que nos cerca e até hoje espera por uma vida melhor. BF – O comunismo é a solução? Niemeyer – O comunismo resolve o problema da vida. Faz com que a vida seja mais justa. E isso é fundamental. Mas o ser humano, este continua desprotegido, entregue à sorte que o destino lhe impõe.
Quem é
BF – No Brasil, a crise que afeta o PT e Lula enfraquece a luta pelo comunismo? Niemeyer – Não, ao contrário. A situação se faz tão difícil e degradada que um dia só a revolução resolverá os nossos problemas. Quando houve a eleição do Lula, declarei que meus candidatos seriam ou João Pedro Stedile, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ou Leonel Brizola, exgovernador do Rio de Janeiro. Esses homens são de luta. Lula é um ex-operário, cheio de ânimo, mas nunca foi comunista. Seu projeto era melhorar o capitalismo, o que é um objetivo impossível, a meu ver. Minha posição é que precisamos de um presidente que tenha a força de virar a mesa e realizar mudanças radicais, como Castro e Chávez.
Nascido em 1907, Oscar Niemeyer Soares Filho é arquiteto e militante comunista. Formou-se em 1934 na Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Onze anos depois, ingressou no Partido Comunista Brasileiro. Manteve a militância durante toda a vida. Entre seus principais projetos estão o desenho da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), o Parque do Ibirapuera em São Paulo (SP) e, principalmente, a construção de Brasília, onde foi responsável pelos projetos do Palácio da Alvorada, do Congresso Nacional e da Catedral Lula. No geral, rejeitam a hipótese. O que o senhor acha disso? Niemeyer – É péssimo. Os que são contra o Lula são muito piores.
BF – Qual o impacto da crise na esquerda? Niemeyer – Cansamos de esperar as reformas que Lula prometia. Para nós ele deveria se ligar à esquerda do PT e cumprir as promessas que fez ao povo. Seria a sua última oportunidade.
BF – Se o presidente realmente estivesse ameaçado de ser derrubado, o senhor acha que as pessoas sairiam às ruas para defendê-lo? Niemeyer – Depende dele. Depende dele.
(Lula) prometeu muita coisa e, para acabar seu governo como um homem digno, de pé, precisa cumprir as promessas
BF – O que isso quer dizer? Niemeyer – Que ele tem que agir, apelar para as bases. Ele prometeu muita coisa e, para acabar seu governo como um homem digno, de pé, precisa cumprir as promessas. que sem sonhar as coisas não acontecem. BF – O senhor concilia arquitetura e comunismo, que parecem distantes... Niemeyer – A vida é mais importante do que a arquitetura. A arquitetura não muda nada, mas a vida pode mudar a arquitetura.
BF – Lula tem força e, principalmente, vontade para uma mudança radical? Niemeyer – Tinha. Mas para mantê-la ele teria que se ligar ao povo, apoiar com maior vigor a reforma agrária, o MST, o movimento mais importante que existe em nosso país. Deveria ser menos gentil com os donos do dinheiro, inclusive com o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, um cretino que não devia existir. BF – O que deu errado no PT? Niemeyer – Um partido de esquerda que se enfraquece esquecendo as suas origens... Até o MST, um movimento que Stedile lidera tão bem, não teve do governo atual o apoio que deveria ter. Sobre tudo isso escrevi num artigo comentando como é difícil mudar este mundo coberto de miséria e discriminação. BF – Nesse artigo, o senhor disse que era preciso ser otimista. Continua com essa opinião? Niemeyer – Sim. Lênin já dizia Agência Brasil
BF – Como se constrói, no ideário popular, uma visão positiva do comunismo – termo que parece estar bastante desgastado desde a derrocada da União Soviética? Niemeyer – A Revolução Russa de 1917 fez Mujique – Nome de um país de dado aos campomujiques a seneses russos que viviam em regime gunda potênfeudal. O governo cia mundial. revolucionário, insFoi fantástico. taurado em 1917, Setenta anos após a Revolução de Outubro, implemende glória e a tou diversas políticas vitória defipara melhorar as nitiva contra condições dos trabalhadores, especialo nazismo. mente os rurais. Não podemos
esquecê-la. Sabemos que é o caminho a seguir.
Taís Peyneau
Para o arquiteto, presidente não fez mudanças radicais, mas tem condições de implementar ações contra a pobreza
BF – O que é uma arquitetura mais igualitária? Niemeyer – Aquela que a todos atende sem discriminação. Vou esclarecer a vocês meu ponto de vista. Quando o governo decide fazer uma escola perto das favelas, a idéia é sempre fazer algo mais pobre. Isto é errado. Recentemente, projetei uma biblioteca e um teatro em Caxias. Fiz como se fosse para Copacabana, o projeto mais audacioso possível. Não pode haCentros Integraver discrimidos de Educação nação. QuanPública (Cieps) do Brizola fez – Idealizados por Brizola, em 1983, e os Centros Inteprojetados por Niegrados de Edumeyer, são escolas cação Pública de período integral. (Cieps), vimos Atendem em média 1.000 crianças por que os menidia, oferecendo, nos entravam além de aulas, atinos prédios vidades culturais, esportivas e lazer. com orgulho, Há 500 unidades em imaginando, funcionamento, gena sua inocênralmente instaladas cia, que os temem áreas pobres do Estado. pos iam mudar e eles poderiam começar a usufruir o que antes só às crianças mais ricas era permitido. BF – A arquitetura está muito vinculada ao urbano. É possível pensá-la para os camponeses? Niemeyer – A arquitetura obedece sempre a um programa e, no caso, seria diferente, voltada para a vida dos homens do campo.
Na Brasília de Niemeyer, manifestação pela reforma política
BF – Se pudesse voltar no tempo, o senhor participaria, de novo, da construção de Brasília? Niemeyer – Não sei. Brasília foi uma aventura, parecia o fim do mundo. E não eram poucos os
problemas que ocorriam naquela época. Lembro que, logo nos inícios de Brasília, fui chamado à polícia política. Avisei ao presidente, que, homem de centro que era, me advertiu: “Você não pode ir. Tiram o seu retrato, e eu não poderei mais recebê-lo no Palácio.” Mas o meu amigo logo se recuperou, telefonando para o general Amaury Kruel: “O Niemeyer não pode ir. É meu elemento-chave em Brasília.” BF – O senhor foi à política política? Niemeyer – Mais duas vezes. Numa delas, só para ser “escrachado”, como se diz, isto é, ir de mesa em mesa, apresentando-se aos policiais de plantão. Na outra vez, quando voltei ao Brasil, lembro que fui levado para uma sala acolchoada, onde um policial me fazia as perguntas que um crioulinho batia à máquina. Recordo a última pergunta: “O que vocês comunistas pretendem?” “Mudar a sociedade”, respondi. E o policial disse ao rapaz: “Escreve aí: mudar a sociedade”. E o crioulinho riu, dizendo para mim: “Vai ser difícil”.
Se eu fosse jovem, em vez de fazer arquitetura, gostaria de estar na rua protestando contra este mundo de merda em que vivemos BF – Muitas vezes, o senhor foi criticado porque Brasília é muito vazia. No entanto, sempre que desenhou a cidade, enchia-a de gente. A cidade saiu como o senhor queria? Niemeyer – Ao contrário, hoje Brasília tem gente demais. Até o tráfego começa a ficar difícil. BF – Setores da direita e esquerda discutem o impeachment do
BF – O que aprendemos com a tomada do poder por Lula e com a crise que o assola? Niemeyer – Um aprendizado muito duro... É que infelizmente falta conhecimento político ao nosso povo para decidir coisas dessa natureza. Sempre reclamamos não serem levados à juventude os problemas da vida e do ser humano, cuja compreensão deve fazer parte de sua formação. Cada um sai da escola apenas interessado nos problemas de sua profissão. BF – O que quer a direita? Niemeyer – Manter este clima de poder, de injustiça social e de subserviência ao império norteamericano. BF – Dizem geralmente que quem controla o mundo é o Bush. Niemeyer – O Bush, no fundo, é um idiota que tem as armas na mão e delas se serve para levar o terror às áreas mais desprotegidas. Representa o capitalismo, que, decadente, tudo faz para subsistir. BF – Na arquitetura, o senhor está trabalhando em algum projeto que traduza sua visão atual do Brasil e do mundo? Niemeyer – Se eu fosse jovem, em vez de fazer arquitetura, gostaria de estar na rua protestando contra este mundo de merda em que vivemos. Mas, se isso não é possível, limito-me a reclamar o mundo mais justo que desejamos, com os homens iguais, de mãos dadas, vivendo dignamente esta vida curta e sem perspectivas que o destino lhes impõe. BF – A arquitetura não tem função social? Niemeyer – Deveria ter. Mas, quando ela é bonita e diferente, proporciona pelo menos aos pobres e ricos um momento de surpresa e admiração. Mas quanto lero-lero! Na verdade, o que nós queremos é a revolução.
Ano 3 • número 131 • De 1º a 7 de setembro de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO BOLIVARIANAS
Agenda social a favor da democracia A
tentativa dos Estados Unidos de isolar a Venezuela no continente se mostra cada vez mais frágil. Delegados da Organização de Estados Americanos (OEA) de 34 países se reuniram em Caracas, dias 28 e 29 de agosto, para discutir a proposta da Carta Social das Américas – um documento que Washington tentou, sem sucesso, deslegimitar afirmando ser “mais uma das bravatas” do presidente Hugo Chávez. A Venezuela está sugerindo a criação de estratégias e ações dos países da OEA com o objetivo de reduzir os índices de pobreza, desigualdade e exOEA – A Organiclusão social. zação de Estados Americanos, sob o Em outras pamanto de defensolavras, a idéia ra da soberania e é estender solidariedade entre os países, foi criapara o hemisda pelos EUA, em fério a lógica 1948, para controlar da revolução a escalada comunista, inspirada na bolivariana e União Soviética, no seu modelo continente. Desde de integração, a sua fundação, a candidatura de seu baseado na secretário geral cooperação sempre foi orientamútua entre da pelos EUA. os países e no desenvolvimento dos povos a partir do fortalecimento dos Estados.
CONSENSO Nas atuais condições em que vivem as populações latino-americanas, “a qualidade de vida é simplesmente inexistente. Por conseqüência, a democracia é precária e seu futuro incerto”, afirmou o ministro de Relações Exteriores, Ali Rodríguez, que em junho sustentou a posição venezuelana durante a 35ª Assembléia Geral da OEA. Na ocasião, a posição da Venezuela apoiada pela maioria dos países – incluindo Brasil – prevaleceu sobre a proposta estadunidense de criar um mecanismo de intervenção, caso fosse avaliado pelos
Proposta de agenda social do presidente venezuelano Hugo Chávez (à direita) recebe apoio do reverendo estadunidense Jesse Jackson países membros descumprimento às regras da organização. O tom consensual da Reunião Ministerial da OEA, realizada entre os dias 28 e 29, foi marcado pelo antagonismo entre os conceitos de democracia e pobreza. “Se a pobreza não for enfrentada com urgência e determinação poderá se converter e, já vem se convertendo, no principal fator de desestabilização política”, reiterou Rodríguez. O secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, em seu discurso na abertura do encontro, acompanhou o governo venezuelano ao apontar que os temas sociais viabilizam a manutenção da democracia. “É difícil falar de uma democracia plena em uma região onde persistem altos
Chávez vai processar apresentador de TV A mais nova crise diplomática entre os Estados Unidos e Venezuela pode seguir aos tribunais. O governo venezuelano dará início a um processo judicial contra Pat Robertson, apresentador de TV dos Estados Unidos, que afirmou em 22 de agosto que o governo de seu país deveria assassinar Hugo Chávez. Robertson, ligado à extrema direita evangélica dos Estados Unidos, disse: “Se Chávez pensa que estamos tentando assassiná-lo, penso que deveríamos ir adiante e fazê-lo”. Partidário de George W. Bush, o apresentador de TV foi précandidato presidencial do partido Republicano em 1992 e, no mesmo programa de televisão, afirmou que o assassinato de Chávez “seria muito mais barato do que começar uma guerra”, em alusão à possibilidade de repetir na Venezuela a estratégia da invasão ao Iraque. O republicano acrescentou: “Temos a capacidade de sacá-lo e chegou o momento de exercer esse potencial. É muito melhor que agentes secretos façam o trabalho.” Todas as declarações de Robertson foram feitas em sinal de TV aberto. Para o presidente venezuelano, a insinuação teve conotação terrorista. “Se o governo dos Estados Unidos não tomar as ações cabíveis, vamos recorrer à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA) para denunciar que estão amparando um terrorista”, advertiu Chávez a representantes de 34 países do continente que participaram da Reunião Minis-
terial sobre a Carta Social das Américas (leia reportagem acima). O chanceler venezuelano, Alí Rodríguez, anunciou em uma entrevista coletiva que a Venezuela “esgotará todas as vias políticas e legais” para que Robertson tenha sua conduta avaliada de acordo com as leis estadunidenses e internacionais. Rodríguez espera que o governo de George W. Bush “atue como diante de um criminoso” que utiliza um meio de comunicação “para incitar um magnicídio”. O governo estadunindense, no entanto, formalmente se limitou a dizer que as declarações do apresentador eram “inapropriadas”. A suavidade com que a Casa Branca tratou o caso gerou histeria no Senado e em setores da Igreja dos Estados Unidos que exigiram uma resposta mais contudente. O reverendo Jesse Jackson considerou as declarações do apresentador evangélico como “imorais” e “inaceitáveis”. A seu ver, Robertson atuou conforme os princípios estabelecidos pelo Departamento de Estado e da retórica do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, que afirmou em sua recente gira na América Latina (veja reportagem na página 10) que Chávez promove a desestabilização do continente. Jackson disputou a Presidência dos Estados Unidos contra Ronald Reagan e esteve na Venezuela, apesar da nova crise, para os atos de comemoração do 42º aniversário do discurso de Martín Luther King “Eu tenho um sonho”. (CJ com informações da Agência Bolivariana de Notícias)
artigos discutidos durante meses por organizações sociais de todo o continente. Elaborado durante assembléias populares sistemáticas, realizadas na Venezuela, a proposta da Carta Social foi dividida em cinco títulos: direitos sociais fundamentais, direitos comunitários, direitos econômicos, direitos culturais e direitos dos povos indígenas. Para o recém-eleito secretário geral da OEA, a carta é o “único instrumento que consagra o direito dos povos à democracia e a obrigação dos governos de promovê-la e defendê-la”. A proposta da Carta Social, apresentada pela Venezuela à OEA em 2001 e admitida somente em 2004, é vista por muitos especia-
índices de pobreza e desigualdade”, avaliou. Nesse sentido, Insulza disse que a organização deve reforçar sua agenda social e “encabeçar um esforço para promover a cooperação necessária”, com o objetivo de alcançar o objetivo de Desenvolvimento do Milênio da Organização das Organizações das Nações Unidas (ONU) para reduzir pela metade a pobreza mundial até 2015. Em todo o continente, cerca de 240 milhões de cidadãos vivem em estado de pobreza e 100 milhões sobrevivem na extrema pobreza.
CONSTRUÇÃO PELA BASE O documento, que deve ser submetido à aprovação final no próximo ano, contém 16 capítulos e 129
listas como uma contraposição à Carta Democrática Interamericana, até agora o referencial da organização para avaliar e “minimizar” as crises políticas da região. “A Carta Democrática responde ao conteúdo político. A governabilidade depende da capacidade dos governos de dar solução aos problemas sociais. Por isso, necessitamos de um instrumento social”, explica o ministro de Educação venezuelano Aristóbulo Isturiz. O governo estadunidense tentou mais de uma vez aplicar a Carta Democrática para destituir o presidente venezuelano acusando-o de antidemocrático. Em todas as ocasiões, não obteve número de votos suficientes para sustentar tal medida.
TERRORISMO
Carriles sob julgamento da Redação O destino de Luis Posada Carriles poderá ser definido nos próximos dias. Em 29 de agosto, começou um julgamento na cidade de El Paso (Texas) que decidirá se os Estados Unidos concedem asilo ao cubano-americano acusado por Cuba e Venezuela de patrocinar atos terroristas no continente. Antes do início do julgamento, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza, pronunciou-se sobre o caso. O chileno disse que os Estados Unidos devem extraditar Carriles para a Venezuela “se ficar provado alguma ligação com atos terroristas” e sustentou que, acima da situação migratória de Posada, deve ficar a petição de extradição formulada pela Venezuela e reiterada pelo presidente cubano, Fidel Castro. Nesse julgamento em El Paso, Carriles responde apenas pela acusação de ter entrado ilegalmente nos Estados Unidos. Não está previsto que será contemplada, nesse processo, acusações da participação de Carriles – ex-agente da Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês) – em diversas ações terroristas como, por exemplo, o atentado que deixou 73 mortos na queda de um avião das Linhas Aéreas Cubanas na Venezuela, em 1976. Posada Carriles entrou nos Estados Unidos de forma ilegal, como ele próprio já assumiu em uma
Tim Sloan/ France Presse/ Folha Imagem
Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
Marcelo Garcia
À revelia dos EUA, OEA discute proposta venezuelana de criar estratégias no hemisfério para reduzir a pobreza
Manifestantes pedem extradição de Carriles, em El Paso (EUA) entrevista coletiva, depois de ter recebido indulto da ex-presidente do Panamá, Mireya Moscoso em um dos seus últimos atos de governo. A panamenha mantém ligações com grupos anticastristas de Miami. A defesa de Posada Carriles sustenta que o ex-agente da CIA mantém residência legal nos Estados Unidos desde os anos 1960, além de já ter prestado serviços ao governo. Por isso, teria direito de receber asilo político e permanecer no país. Já a fiscal de imigração Jeana Jackson argumenta que Carriles deixou de viver no país na década de 1960 e, assim, perdeu seus direitos de residência legal. No dia 30 de agosto,
dezenas de pessoas protestaram em frente ao local do julgamento – que deve durar no mínimo três dias – exigindo a extradição de Carriles. A polêmica sobre Carriles é também um tema controverso na agenda da Venezuela com os Estados Unidos. Há pouco tempo, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, disse que poderia rever as relações diplomáticas com os estadunidenses se Posada Carriles não fosse deportado. Chávez e Fidel Castro acusam o presidente GeorgeW. Bush de assumir um discurso de oposição ao terrorismo, mas na verdade proteger os “seus terroristas”, como o exagente da CIA.
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AMÉRICA LATINA EQUADOR
Nos Andes, outro conflito pelo petróleo Eduardo Tamayo de Quito (Equador)
D
a mesma forma que ocorreu na Bolívia, os equatorianos estão questionando as transnacionais que obtêm elevados lucros e deixam nas áreas onde fazem a extração do petróleo um cenário de contaminação ambiental e populações condenadas ao atraso e à pobreza. A paralisação que terminou em 25 de agosto nas províncias amazônicas de Sucumbíos e Orellana, onde o petróleo é extraído há quase 35 anos, recoloca no Equador a luta pela defesa dos recursos naturais. “As transnacionais não têm beneficiado a Amazônia, mas têm espalhado doenças, câncer, destruição, contaminação. Não nos deixam nada, somos herdeiros da catástrofe, não temos água potável por causa da contaminação, não há luz elétrica, as estradas de acesso são de quinta categoria”, disse Rene Pilisita, integrante do Conselho do Emprego e Políticas Petroleiras da província de Orellana, uma entidade da sociedade civil que trabalha com o município.
Arquivo Brasil de Fato
Comunidades de duas regiões petrolíferas bloqueiam estradas e conseguem vitória parcial sobre transnacionais Uma maioria no Congresso pediu que afaste o ministro do Governo, Mauricio Gándara, acusado de gerar o caos no país, de reprimir brutalmente a população e de mostrar incapacidade para resolver problemas internos.
NOVAS CONDIÇÕES
Em protesto contra petroleiras, população da província amazônica de Sucumbíos fechou poços de petróleo
política causaram dezenas de feridos, detiveram violentamente dezenas de pessoas, inclusive o prefeito de Lago Agrio, Máximo Abad, e o prefeito de Sucumbíos, Guillhermo Muñoz, segundo denunciaram organismos de direitos humanos. Para fazer valer sua política de “mão dura”, Palacio pediu a renúncia de seu ministro de Defesa, o general Solón Espinosa, e o substituiu pelo general Osvaldo Jarrín, de linha autoritária, que em sua primeira entrevista à imprensa
PRESSÃO Para se fazer escutar, as populações dessas duas províncias da região Nordeste do Equador recorreram às mobilizações desde o dia 14 de agosto, bloqueando inclusive a produção de alguns poços de petróleo. O governo presidido por Alfredo Palacio mostrou uma grande incapacidade para resolver o problema por meio do diálogo e da negociação. As Forças Armadas e a
afirmou que os militares podem disparar quando são atacados. E apesar de o governo dizer que não iria negociar, teve que fazê-lo. Depois de quatro dias de conversas em Quito, os representantes do governo, das províncias de Orellana e Sucumbíos e das transnacionais chegaram a um acordo no que se atende algumas demandas das populações amazônicas. Entre as medidas aceitas, constam a contratação preferencial da mão-de-obra local, a criação de um fundo para
asfaltar 60 quilômetros de rodovias e a elevação do imposto de renda das petrolíferas de 16% para 25%. Um ponto em que não houve acordo foi o pedido dos dirigentes amazônicos de que não se abra ações legais contra os que participaram da paralisação. Os manifestantes também não foram atendidos no pedido para que o governo renegocie seus contratos com as petrolíferas. O manejo autoritário e inadequado desse conflito trouxe vários problemas ao regime de Alfredo Palácio.
URUGUAI
PARAGUAI
Congresso investiga visita de Donald Rumsfeld
Militar admite participar de vôo com desaparecidos
O Congresso paraguaio vai pedir explicações ao Poder Executivo sobre a agenda fechada e secreta desenvolvida no país nos dias 16 e 17 pelo secretário estadunidense de Defesa, Donald Rumsfeld. O vice-presidente paraguaio, Luis Castiglioni, recebeu duras críticas dos senadores em uma sessão em que foi apresentado o projeto de resolução que pede informações do governo sobre a visita do chefe do Pentágono ao país. O texto solicita ao titular do Congresso, Carlos Filizzola, que convoque Castiglioni para que esclareça aos legisladores sobre os resultados da estada de Rumsfeld. O senador liberal Domingo Laíno afirmou que o vice-presidente deve explicar também suas concessões ao país estadunidense, especial a abertura em Assunção de escritórios da CIA e do FBI. “Que venha a nós esclarecer qual é a sua estratégia ao trazer essas organizações ao Paraguai. Queremos saber o que se pretende com essas gestões, que são muito perigrosas para o país”, assinalou Laíno. A senadora Ana Maria Mendoza manifestou que não se pode “cair no conto” de que um secretário estadunidense de Defesa veio apenas para tratar de intercâmbio comercial, como asseguram as versões oficiais. “Se existem focos terroristas no Paraguai, o Congresso deve ser informado. Mas se o terrorismo é uma desculpa, somos conscientes das conseqüências de servir aos interesses militares de Estados Unidos? Se não sabemos, perguntemos aos espanhóis, britânicos e italianos”, expôs a parlamentar. O projeto de resolução do Congresso exige também a divulgação dos compromissos as-
Arquivo Brasil de Fato
da Redação Stella Callini de Buenos Aires (Argentina)
Com o preço do petróleo próximo dos 70 dólares por barril e com tendência de seguir subindo nos próximos anos, é necessário renegociar os contratos de participação com as transnacionais “já que nesses documentos está estipulada uma cláusula de manter a estabilidade econômica entre as partes, que hoje não existe. O desequilíbrio está contra o Estado, de tal maneira que a ação das companhias deve buscar que se estalize a economia”, assinala Henry Llánez, ex-dirigente sindical e analista do petróleo. Outros dirigentes sindicais vão além e reivindicam uma participação de 50% para os equatorianos ou, inclusive, a nacionalização do petróleo. Hoje, o Equador produz 550 mil barris diários, dos quais 350 mil correspondem a 14 empresas transnacionais e 200 mil à estatal Petroecuador. Paulatinamente, a produção dessa última está em declínio, pois a empresa tem sido debilitada por sucessivos governos que tem cortado os recursos necessários para fazer investimentos. Segundo o economista Alberto Acosta, “entre 1994 e 2004, não entregaram a Petroecuador 1.460 milhões de dólares para todos investimentos necessários no campo de produção do óleo cru, o que provocou perdas para o Equador de 4,580 milhões de dólares”. (Alai, www.alainet.org)
Enrique Bonelli, comandante chefe da Força Aérea do Uruguai, reconheceu, dia 24 de agosto, que foi co-piloto em um dos vôos que transportou presos políticos de Buenos Aires até Montevidéu, em 1976. Isso ocorreu durante a Operação Condor, que construiu as ditaduras do Cone Sul à época. A revelação foi feita por Bonelli ao semanário uruguaio Búsqueda. O então co-
piloto do vôo era primeiro-tenente e fez a operação sem saber quantos nem quem eram os prisioneiros uruguaios presentes. Em informe entregue, no início de agosto, a Tabaré Vázquez, presidente do Uruguai, a Força Aérea informara que, em 1976, houve dois vôos levando prisioneiros políticos da capital uruguaia à Argentina. Mas, no final de agosto, a Força Aérea já admitiu existir um terceiro vôo. (La Jornada, www.jornada.unam.mx)
EL SALVADOR
Economia dolarizada aumenta a pobreza da Redação
Visita de Rumsfeld ao Paraguai faz parte da estratégia militar dos EUA
sumidos pelo presidente Nicanor Duarte com os estadunidenses.
IMPERIALISMO A presença de Rumsfeld no Paraguai alimentou as especulações sobre o interesse dos Estados Unidos de construir uma estratégica base militar na Tríplice Fronteira (que também divide os territórios do Brasil e da Argentina). Os governos negam essa possibilidade, mas trata-se de um possível desdobramento para as cooperações militares entre os dois países. Rumsfeld se encontrou com o ministro
da Defesa local, Roberto González, e deixou em aberto a ampliação dos atuais exercícios militares conjuntos realizados pelos paraguaios e estadunidenses até o final de 2006. As manobras começaram em julho e prevêem treinamento de tropas em lutas antiterroristas e combate ao tráfico de drogas. Essas operações contaram também com apoio do Congresso, que aprovou a imunidade parlamentar para as tropas estadunidenses e cedeu assim soberania ao se negar a atuar em casos de violação de legislação de estrangeiros envolvidos.
A situação econômica e social em El Salvador está agravada hoje pela dolarização da economia, o aumento dos preços do petróleo e a existência de mais de 1,596 milhão de desempregados. O economista Rafael Salazar, representante do Centro em Defesa do Consumidor, avalia que para melhorar suas condições os salvadorenhos deveriam receber pelo menos quatro vezes mais o salário-mínimo atual. “A tão divulgada dolarização da economia, a qual se disse que traria enormes benefícios sociais, provocou uma situação na qual, hoje, neste país seu povo luta apenas para sobreviver”, afirmou Salazar. El Salvador é considerado um dos países mais pobres da América Central, com 43% de pobreza social e uma taxa de 12 homicícios diários. As hortaliças, os medicamentos e o transporte sofrem reajustes constantes de preços, apesar de os salários permanecerem nos mesmos patamares desde 1998, apontou o economista.
Já o representante do Conselho do Salário, Andrés Almíbar, reiterou que empregados públicos e privados pressionam empresários para elevar seus vencimentos, pois os seus salários bastam apenas para as necessidades básicas, como alimentação e o pagamento de serviços. Organizações sociais denunciaram que o setor agrícola recebe os salários mais baixos e que o Acordo de Livre Comércio da América Central com os Estados Unidos (Cafta, na sigla em inglês) levará à ruína milhares de produtores salvadorenhos em desvantagem competitiva com seus homólogos estadunidenses, subsidiados pelo Estado. O Cafta – um acordo nos mesmos moldes da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) – foi assinado pelos presidentes dos Estados Unidos, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Honduras, Costa Rica e República Dominicana. Para entrar em vigor nesses países, falta ainda a aprovação dos parlamentares costa-riquenses, nicaraguenses e dominicanos. (Prensa Latina, www.prensalatina.com)
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INTERNACIONAL IRAQUE
Constituição pró-EUA fomenta guerra civil João Alexandre Peschanski da Redação
A
Constituição do Iraque, cuja versão preliminar foi aprovada pelo governo de Jalal Talabani em 28 de agosto, acirra as tensões entre as três principais etnias iraquianas – curda, sunita e xiita. A primeira representa 15% da população do país, a segunda, 20%, e a terceira, 60%. A Carta é considerada ilegal e ilegítima por diversas organizações políticas. O prazo para sua aprovação expirou no dia 22 de agosto. Por conta disso, deputados dizem que a versão apresentada por Talabani não está de acordo com a lei do país. Pedem a dissolução do Parlamento, que anuiu à proposta do Executivo. Além disso, o documento marginaliza os sunitas. O partido Baath, de Sadam Hussein, é proibido, apesar de ser o principal instrumento de representação da etnia. Em discurso no Parlamento, como reportou o jornal francês L´Humanité, Saleh al Moutlaq, negociador sunita na elaboração da Carta, afirmou que os integrantes de sua etnia estão sofrendo “perseguição política” e que “os interesses do povo iraquiano não foram levados em conta”. No dia 28 de agosto, 3.500 pessoas fizeram um protesto contra o documento em Tikrit, cidade cuja população é majoritariamente sunita.
Karim Sahib-Pool/ AFP/Folha Imagem
Além de considerado ilegal e ilegítimo pela população, documento acentua racha entre etnias curda, sunita e xiita lamento, a Constituição vai passar por votação popular, prevista para 15 de outubro. Para ser aprovada, em 16 das 18 províncias, o resultado deve ser favorável ao documento. Grupos sunitas, que boicotaram a aprovação parlamentar da Carta, controlam três localidades. O governo pretende financiar a publicação de milhões de exemplares do documento. Chefes de província sunitas avisaram, por meio do porta-voz da etnia no Parlamento, que só deixarão as brochuras entrar em suas regiões se o governo dos EUA interromper a ocupação do Iraque. “Vários sunitas, como muitos grupos xiitas e curdos, acreditam que uma Constituição justa e democrática não pode ser realizada enquanto o país está sob ocupação. Eleições livres são fundamentais para que se estabeleça um governo legítimo e capaz de fazer um texto que represente o povo”, argumenta Hassan.
CRÍTICAS AO GOVERNO
CONFLITO IMINENTE Opositores da Constituição dizem que esta mantém o jugo do governo dos Estados Unidos sobre o país. Em entrevista ao Brasil de Fato, Ghali Hassan, responsável pelo acompanhamento da situação do Iraque para o Centro de Pesquisa sobre Globalização, sediado no Canadá, considera que o documento, mesmo afirmando que o petróleo é propriedade do povo iraquiano, mantém o controle dos soldados dos Estados Unidos, que ocupam o país desde 2003, sobre os poços do recurso natural. Isso porque, segundo o pesquisador, a Carta decreta os governos locais como responsáveis pela administração do petróleo, tirando a capacidade do Executivo
Parlamentares iraquianos aprovam texto da nova Constituição, que vai a referendo em outubro
de elaborar uma política econômica nacional e aumentando a possibilidade de corrupção, pois militares e representantes de corporações estadunidenses vão negociar diretamente com chefes de província. “A nova Constituição, que foi esboçada pelo governo estadunidense, aumenta a probabilidade de uma guerra civil no Iraque. Divide o país em pequenas províncias, destruindo a idéia de nação e criando novos mecanismos para atender aos interesses das grandes empresas dos Estados Unidos”, analisou
Hassan, para quem a Carta provoca um racha étnico, principalmente entre sunitas e xiitas.
VOTAÇÃO INCERTA No dia 29 de agosto, de acordo com o L´Humanité, o Partido Islâmico do Iraque acusou grupos xiitas de assassinar 36 sunitas. No mesmo dia, o Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque, ligado aos xiitas, afirmou que pistoleiros sunitas mataram sete camponeses de Sayafiyah, província controlada pelos xiitas.
Ainda nesse dia, o presidente estadunidense, George W. Bush, ligou para a sede do governo interino iraquiano para congratular Talabani pela aprovação da Constituição. À noite, fez um pronunciamento: “Nem todos estão de acordo (com a Carta), mas, agora, o povo iraquiano pode decidir. Representa uma vitória da democracia e da luta contra o terrorismo”. No discurso, soava otimista. No dia 30 de agosto, anunciou o envio de 1.500 novos soldados para o Iraque. Apesar de aprovada pelo Par-
A maioria dos habitantes de Bagdá, capital iraquiana, não confia no governo. A conclusão foi divulgada pelo instituto de pesquisa do Iraque, conhecido como Organização do Tammyz para o Desenvolvimento Social, que, em agosto, entrevistou 2.451 pessoas da cidade. Para 77% dos entrevistados, o governo não tem capacidades para resolver os problemas internos do país e, para 74% deles, a corrupção é a principal marca do Executivo. O descontentamento da população se manifesta também em relação à ocupação do país: 68% dos entrevistados esperam que os militares estadunidenses saiam do Iraque. No entanto, 67% acreditam que o governo de Talabani não tem condições de garantir a unidade e segurança do país. Para Hassan, os resultados da pesquisa mostram que a população não acredita que o governo interino tenha consentimento popular. “É fruto de eleições ilegítimas e fraudulentas. Não passa de uma versão renovada do governo de ocupação, montado por Bush, em 2003”, conclui.
TERRORISMO DE ESTADO
Alexandre Praça de Londres (Inglaterra) O governo Blair deu mais um passo em direção à criação de um estado de policiamento e restrição das liberdades civis no Reino Unido. Dia 24 de agosto, o ministro do Interior, Charles Clarke, anunciou uma lista de “comportamentos inaceitáveis” que será usada para expulsar estrangeiros que vivem no país ou impedir a entrada de pessoas indesejadas pelo governo. A medida faz parte de um pacote antiterror criado em reação aos recentes atentados em Londres. Depois de ter determinado o fechamento de livrarias e colocado na ilegalidade três grupos muçulmanos com sede no país, o governo britânico decidiu incorporar novas linhas ao seu código de conduta. Agora, será excluído do Reino Unido “qualquer estrangeiro escrevendo, produzindo, publicando ou distribuindo material, discursando publicamente ou usando uma posição de responsabilidade como a de professor ou de líder comunitário para expressar um ponto de vista que fomente, justifique ou glorifique a violência terrorista”. O artigo, perigosamente vago, abre precedente para o lançamento de uma verdadeira caça-às-bruxas e para a possível aniquilação de vozes contrárias à política belicista de Tony Blair. Um prospecto que
estarreceu entidades de defesa dos direitos humanos e personalidades contrárias à guerra no Iraque, como o prefeito de Londres Ken Livingstone: “Se essa lei tivesse existido vinte anos atrás, os partidários de Nelson Mandela teriam sido expulsos de nosso país por apoiar a campanha de atentados contra o apartheid na África do Sul”, disse, em entrevista à BBC Radio 4.
Alexandre Praça
Liberdades civis em risco no Reino Unido
DEPORTAÇÕES Entretanto, o principal medo vem do fato de o governo Blair ter firmes intenções de extraditar seus supostos inimigos a países que comprovadamente perseguem, torturam e matam adversários políticos. Apesar de ação semelhante estar sendo impunemente aplicada pelos Estados Unidos desde 2001, o governo britânico é proibido de implementá-la, de acordo com a Convenção de Direitos Humanos da União Européia. O ministro Clarke, contudo, comentou que já pensou em uma forma de contornar o acordo: as deportações serão feitas mediante uma garantia escrita de que esses cidadãos não serão tratados de forma desumana. A inocente idéia de que países como Síria, Uzbequistão e Egito podem se comprometer a respeitar os direitos humanos de um prisioneiro político gerou sorrisos incrédulos até mesmo por parte da Organização das Nações Unidas
Medidas do governo britânico vão contra a Convenção de Direitos Humanos
(ONU). Pouco depois do anúncio das novas medidas, o porta-voz da Comissão Superior para Refugiados da ONU, Peter Kessler, exigiu respeito às leis internacionais: “A aplicação dessas propostas poderia levar ao envio de pessoas a países onde eles seriam perseguidos. Isso seria contrário às obrigações do Reino Unido na Convenção de Genebra para Refugiados de 1951” Enfurecido pela crítica, Clarke deixou transparecer sua opinião pessoal sobre tratados internacionais como o de Genebra: “Os
direitos humanos das pessoas que morreram no metrô de Londres são, francamente, mais importantes que os direitos humanos dos que cometeram esses atos. Eu queria que a ONU olhasse para os direitos humanos do outro lado, em vez de todo o tempo simplesmente enfocar os direitos dos terroristas”.
BRASILEIRO O governo Blair também tropeçou para se esquivar das críticas envolvendo o assassinato do brasileiro Jean Charles de Menezes
no metrô de Londres. Na semana passada, foi revelado que, ao contrário do que havia sido afirmado, Menezes não usava uma jaqueta pesada no dia em que foi morto, além de não ter saltado as catracas da estação nem haver corrido pelas escadas rolantes. A denúncia manchou a imagem do chefe da polícia, Ian Blair, que, como foi comprovado, mentiu para defender a política “atire para matar”. Blair – que, apesar do sobrenome, não tem parentesco com o primeiro-ministro – se recusa a renunciar ao cargo. A grande mídia no Reino Unido, no entanto, não demorou para socorrer o governo. Para tentar amortecer o impacto das críticas dos que exigem justiça no chamado caso Jean, as maiores redes de televisão do pais, ITV e BBC, além de grande parte dos tablóides, lançaram uma campanha que buscou questionar a legitimidade dos grupos políticos que estão apoiando os familiares do brasileiro. Esses órgãos de imprensa afirmaram que os advogados da família, assim como os organizadores das manifestações que exigem a retirada de Ian Blair, são da Stop the War Coalition, principal grupo opositor à guerra no Iraque. Apesar de ter razão, os mesmos jornalistas não conseguiram encontrar nenhum artigo nas leis britânicas que proíba esse apoio.
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INTERNACIONAL ELEIÇÕES NO EGITO
Governo limita número de candidatos Adam Morrow do Cairo (Egito)
Agência Brasil
Exigências rigorosas eliminam vários concorrentes e oposição considera requisitos uma farsa
O
s egípcios se preparam para participar pela primeira vez, dia 7, de eleições com vários candidatos a presidente – embora o governo tenha impedido que alguns aspirantes formalizassem sua postulação. Assim, nas últimas semanas, a lista ficou reduzida a dez pretendentes, devido aos polêmicos e rigorosos requisitos para a apresentação de candidaturas. Além disso, dois importantes partidos políticos anunciaram que boicotarão as eleições, enquanto o poderoso bloco opositor Irmandade Muçulmana foi proibido de participar da disputa. Depois da emenda constitucional aprovada no começo deste ano, que permite optar entre vários candidatos à chefia do governo, a Comissão Eleitoral Presidencial anunciou, dia 11 de agosto, uma lista final de aspirantes ao cargo. Além do atual presidente, Hosni Mubarak, do Partido Democrático Nacional, a lista inclui Ayman Nour, do Partido Al Ghad, e Nomaan Gomaa, do histórico Partido Al Wafd. Há um punhado de candidatos pouco conhecidos, pertencentes a partidos com mínima representação parlamentar.
Se reeleito, presidente Mubarak pretende continuar com sua política de estreita aliança com os Estados Unidos
Arquivo Brasil de Fato
Durante a campanha, Mubarak prometeu manter a mesma política externa pragmática, marcada por sua estreita relação com os Estados Unidos, bem como a gradual liberação econômica. Nour anunciou uma cruzada contra a corrupção, prometeu fo-
mentar o emprego e garantiu que acabará com a inflação, enquanto Gomaa prometeu consolidar a democracia e a governabilidade. As propostas dos candidatos com menos chances não são tão variadas. Fawzy Ghazal, do Partido Egito 2000, quer distanciar o país de Washington, enquanto Ibrahim Tork, do Partido Democrático Unionista, prega uma reforma econômica e melhor exploração dos recursos naturais.
RIGOROSOS REQUISITOS
Dia 7, egípcios vão às urnas para escolher novo presidente
Os candidatos devem representar os partidos políticos avalizados pelo governo e contar com apoio de, pelo menos, 250 dos 454 integrantes da Assembléia do Povo (parlamento) e, ainda, do Conselho Assessor do governo, com 264 participantes. Esses requisitos deixaram de fora vários aspirantes. Dois foram eliminados porque as atividades de seus partidos estavam proscritas e outro porque seu
partido foi criado depois de a nova legislação entrar em vigor. As severas limitações levaram grandes grupos políticos consolidados, como o Partido Nasserista e o esquerdista Partido Tagammu, a ficar à margem das eleições por decisão própria. “As restrições ao processo eleitoral o convertem em um referendo para manter o atual mandatário, embora disfarçado nas eleições”, afirmou o secretáriogeral do Partido Tagammu, Hussein Abdel-Razeq. “Sob nenhuma circunstância nosso partido participará dessa farsa para enganar a população, atuando como se essas eleições fossem justas, honestas e democráticas”, acrescentou. As eleições sentirão, em especial, a ausência do maior bloco de oposição, a agora proscrita Irmandade Muçulmana. Vários integrantes desse grupo político foram detidos em março durante uma série de manifestações a favor da reforma eleitoral. Alguns de seus líderes
SAÚDE
da Redação A África está perdendo a batalha contra a tuberculose, uma doença que, apesar de ser fácil de ser combatida, mata anualmente meio milhão de pessoas no continente, sobretudo entre os mais pobres. Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS), que encerrou uma reunião regional de cinco dias, dia 26 de agosto, em Maputo (Moçambique). A entidade, pertencente à Organização das Nações Unidas (ONU), declarou estado de emergência na África, pelo trágico avanço desse mal. A decisão foi tomada no final do encontro, ao qual estiveram presentes também os ministros da Saúde dos países do continente africano, especialistas e organizações nãogovernamentais. Segundo o comunicado aprovado no final do evento, “o número de novos casos de tuberculose foi multiplicado por quatro em 18 países, desde 1990, e continua crescendo”. A tuberculose é uma das principais causas de morte entre as pessoas infectadas com o vírus da Aids. A África subsaariana é a região onde há o maior número de vítimas do HIV. No documento, a OMS convoca os países africanos para que dediquem mais recursos humanos e financeiros à luta contra a tuberculose. “Apesar dos elogiáveis esforços para controlar a tuberculose, o impacto em sua incidência não foi significativo e a epidemia alcançou proporções sem precedentes”,
France Presse
África perde batalha contra tuberculose OMS, Martinho Dgege. A tuberculose se intensificou no continente africano nos últimos 15 anos, devido fundamentalmente ao vírus da Aids, à pobreza e aos frágeis sistemas de saúde. “Apesar de alguns países terem se esforçado para tratar a crescente onda de doentes de tuberculose, estão sendo superados pela epidemia”, afirma a OMS.
APENAS 15 DÓLARES
África tem 25% dos tuberculosos do mundo, com 2,4 milhões de casos
afirmou o diretor da OMS para a África, o angolano Luís Sambo.
ABANDONO Para incentivar o combate à doença, a OMS recomenda o incremento dos fundos destinados à África contra a tuberculose com cerca de 2,2 bilhões de dólares adicionais, para o período 20062007. Além da falta de recursos para combater a doença, os 46 ministros da Saúde africanos reunidos em Maputo expressaram sua preocupação pelo crescente abandono do tratamento médico dos tuberculosos. Em toda a África, 15% das pessoas que recebem
assistência médica para esse mal abandonam o tratamento. A tuberculose é, depois da Aids, a segunda doença que mais mortes causa entre os adultos – no mundo todo, morrem anualmente dois milhões de pessoas. A África, apesar de ter apenas 11% da população mundial, tem a quarta parte dos tuberculosos de todo o planeta, com 2,4 milhões de casos, e 540 mil pessoas mortas por ano. Tais números, no entanto, podem ser ainda maiores: “Os números apresentados aqui não são absolutamente verdadeiros porque há muitos casos não notificados”, disse à agência EFE o porta-voz da
No comunicado final, foram reunidas palavras do arcebispo anglicano da África do Sul e Prêmio Nobel da Paz, Desmond Tutu, que sofreu essa doença, assim como o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, o primeiro governante negro desse país. “É trágico que essa doença não tenha sido controlada porque eu sou a prova viva de que a tuberculose pode ser curada”, ressalta Desmond Tutu. Um tratamento completo custa apenas 15 dólares, segundo o arcebispo. O Fundo Mundial para a luta contra a Aids, a malária e a tuberculose vem financiando, desde sua criação, há três anos e meio, mais de 300 programas para combater essas três doenças. Durante o período, a organização destinou mais de 3,1 bilhões de dólares à causa. O órgão internacional da ONU informou que o dinheiro permitiu o tratamento de mais de 220 mil pessoas com Aids, cerca de 600 mil com tuberculose e mais 1,1 milhão de infectados com malária. (Com agências internacionais)
permaneceram presos por meses, acusados de associação ilegal e levantes populares. Uma lei de emergência, também objeto de discussões durante essa campanha, permite ao Estado manter suspeitos detidos por tempo indefinido sem necessidade de julgamento. “Não parece que vão boicotar as eleições. De fato, estão chamando a população a votar. Mas não creio que apóiem algum candidato em particular”, afirmou o analista Simon Kitchen, da consultoria de risco político Eurásia Group, com sede em Nova York. Kitchen suspeita de desacordos dentro desse grupo opositor sobre a direção a seguir em relação às eleições. “Os líderes históricos querem certo entendimento com o governo, mas os mais jovens querem ir mais longe. Querem que o governo preste contas, sobretudo pelas detenções de seus correligionários. Sem dúvida, nunca apoiarão o partido do governo”, acrescentou. O certo é que se a Irmandade Muçulmana decidir apoiar algum candidato em particular, este terá grandes chances de vencer as eleições. O grupo conta com dois milhões de integrantes ativos e outros três milhões de simpatizantes. O Egito tem 78 milhões de habitantes. A campanha eleitoral começou oficialmente no dia 17 de gosto e vai até 4 de setembro. Se nenhum candidato conseguir 50% dos votos, haverá segundo turno, dia 17, entre os dois candidatos mais votados. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
SOMÁLIA
Remédios falsos matam centenas de crianças da Redação Remédios falsos vendidos na Somália já mataram centenas de crianças e colocam em risco a vida de muitos habitantes. “Quando a lei e a ordem desapareceram, gente impiedosa começou a importar produtos perigosos”, diz o diretor da Associação do Bem-Estar para a Infância da Somália, Hassan Moalim Yusuf. Ele promete divulgar, no final do ano, um relatório detalhado sobre o problema. Mas adiantou alguns dados da tragédia: no ano passado morreram 2.130 crianças por receber remédios falsos; este ano, já são 1.721. Yusuf acrescentou que uma das drogas é o etambutol, usado no tratamento da tuberculose, doença que atinge severamente o país. O diretor do hospital de Hayat, Abdusamad Abikar, disse que, para controlar o fluxo de medicamentos de baixa qualidade ou com prazo de validade vencido que chegam ao país, só receita remédios importados diretamente de países asiáticos e europeus. “Os doutores nos forçam a comprar apenas os medicamentos importados, de baixa qualidade. Estamos sempre no mesmo dilema: a morte ou os efeitos colaterais dessas substâncias”, sustenta Yusuf. Em entrevista à agência EFE, um vendedor de remédios disse que os comerciantes viajam à Europa para comprar de empresas confiáveis: “Depois vão à Ásia e encomendam produtos fraudados, com rótulos que dizem Made in UK ou Made in Germany. Provavelmente, a falsificação acontece sem conhecimento da fábrica que originalmente produziu o remédio. A Somália vive sem governo central desde 1991, quando foi derrubado o regime de Mohammed Siad Barre. O país do Chifre da África está mergulhado em lutas entre os diferentes clãs que disputam o poder. (Com agências internacionais)
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NACIONAL AMBIENTE
Rio dos Cachorros resiste a usinas Projeto do governo do Maranhão em parceria com transnacionais causará prejuízos sociais e ambientais Adriana Zehbrauskas/ Folha Imagem
O
toque das caixeiras convida os moradores de Rio dos Cachorros para o ritual de carregamento do mastro que vai enfeitar a festa em homenagem a Santana, tradição religiosa do lugar. Celebrações como essa fazem parte do calendário cultural da comunidade rural da Ilha de São Luís, área pretendida para a instalação de um pólo siderúrgico. Na rodovia que leva a Rio dos Cachorros, outro som chama a atenção: os comboios de carretas de soja que vêm do sul do Maranhão descarregar no Porto do Itaqui, para onde convergem também os grandes projetos de minério e aço do Maranhão. Rio dos Cachorros abriga cerca de 500 famílias. Mas, na área do suposto pólo siderúrgico, existem mais nove comunidades – Taim, Limoeiro, Porto Grande, Vila Maranhão, Cajueiro, Camboa dos Frades, São Benedito, Coliê e Vila Conceição – no centro da disputa que pretende transformar a zona rural e residencial em zona industrial, para viabilizar a implantação de três gigantescas usinas de aço, cada uma com capacidade de 7,5 milhões de toneladas anuais. Resistentes à implantação do pólo siderúrgico na Ilha de São Luís, os moradores participam das audiências públicas sobre a implantação do pólo, realizam oficinas para discutir o impacto do empreendimento e integram o fórum Reage São Luís, que congrega várias organizações contrárias ao projeto. Maria Máxima Pires, de 46 anos, uma das lideranças de Rio dos Cachorros, questiona a relação autoritária dos gestores do empreendimento com a comunidade. Em meados de 2004, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a empresa Diagonal e o governo do Estado do Maranhão começaram a fazer o cadastro das famílias e o levantamento de bens, numerando as casas. “Invadiram as comunidades, informando que tinham até dezembro para limpar a área. Os idosos e as crianças ficaram apavorados”, relata Maria Máxima. Para amenizar o impacto, os técnicos lançavam a promessa de que os moradores teriam prioridade na inscrição para obter emprego no pólo.
ENTRAVES
Companhia Vale do Rio Doce, empresa Diagonal e governo do Maranhão promovem campanha para aterrorizar população
José Raimundo da Cruz Pires. De junho a dezembro, a cada 18 dias ele colhe, em sete colméias, uma média de 40 litros de mel. Ao redor das colméias plantou 200 pés de murici. “A flor do murici alimenta as abelhas e dá o mel amarelo. Na época da juçara o mel é escuro, porque o alimento é rico em ferro”, detalha.
A FAVOR Logo na entrada de Rio dos Cachorros, uma família de japoneses cultiva mamão, maracujá, pimen-
tão e pepino, em uma área de 26 hectares. “A produção é pequena e abastece algumas feiras livres, mercados e sacolões. A maior parte nós trazemos de fora, do Ceará e de Pernambuco”, explica o empresário Roberto Kunihiko Tasaka. O “japonês”, como é conhecido, é favorável ao pólo, afirmando que não sobrevive da produção de Rio dos Cachorros. Sua principal fonte de renda é a comercialização de produtos agrícolas na Coortifrut, antiga Ceasa.
A disseminação da idéia do pólo siderúrgico está ativando tensões entre os moradores, proporcionando a atuação de especuladores de outros bairros, que vêem possibilidade de lucro com a venda de terras. Além disso, os defensores do empreendimento operam a cooptação e o aliciamento nas comunidades, com promessas de indenização e emprego. Manoel Alves de Oliveira, 62 anos, há dez em Rio dos Cachorros, confessa que está interessado em pegar o dinheiro e desocupar a área.
Mobilizados contra a implantação do pólo siderúrgico, moradores organizam encontros para discutir impacto ambiental
O pólo siderúrgico é uma parceria entre CVRD, governo do Estado, prefeitura de São Luís e as multinacionais Baoosteel (chinesa), Posco (sulcoreana) e Arcelor (européia) visando instalar (em uma área de 2.472 hectares) três usinas e duas gusarias com capacidade de produção de 72% do aço nacional. Os impactos ambientais e sociais são gravíssimos. Além disso, é necessário alterar a Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, transformando a Zona Rural Rio dos Cachorros em Zona Industrial, desalojando 11 comunidades onde vivem cerca de 15 mil pessoas. Nas audiências públicas realizadas para debater o tema, dicutese a necessidade de, para implantar o pólo, fazer a revisão do Plano Diretor de São Luís, conforme determina o Estatuto das Cidades. Os argumentos contrários ao pólo na ilha, sustentados nos impactos à qualidade de vida de todos os moradores de São Luís, começam a ampliar a corrente de opinião que defende a instalação das siderúrgicas além do Estreito dos Mosquitos. Na Câmara Municipal e na Assembléia, respectivamente, Adbon Murad (PMDB) e Helena Heluy (PT), contrariando a subserviência da maioria do legislativo aos megaprojetos internacionais, defendem o empreendimento fora de São Luís. Até o PV, comandado pelo deputado federal Sarney Filho, publicou nota contra o pólo na ilha. Em Rio dos Cachorros, um pescador que saboreia um milho assado recém-colhido no quintal, desconfia: “Sô, eu vi a mesma guerra na época da Alumar. É tudo só uma questão política”, filosofou, referindo-se à disputa entre os grupos alinhados ao senador José Sarney e ao governador José Reinaldo. Ambos são favoráveis ao aço na ilha, pressionados pelo capital internacional e pela CVRD, mas aguardam com cautela o desenrolar dos acontecimentos, operando nos bastidores.
PARANÁ
Agronegócio profana símbolo religioso
MEMÓRIAS
Rogério Nunes de Curitiba (PR) Foi com profunda indignação que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e milhares de romeiros receberam a notícia de que a Cruz de Cedro, plantada em um trevo da cidade de São Pedro do Ivaí (PR), durante a celebração da 20ª Romaria da Terra do Paraná, realizada dia 21 de agosto, foi profanada por duas vezes. Horas depois de encerrada a Romaria, a cruz foi arrancada e jogada no meio de um canavial nas proximidades. Novamente plantada no local, na noite de 23 para 24 de agosto, a cruz foi depredada. A 20ª Romaria, organizada pela CPT do Paraná, reuniu cerca de 25
mil pessoas, sob o lema “Ai dos que profanam a terra. Felizes os que cultivam a vida”, com a proposta de denunciar as conseqüências negativas do modelo de agricultura adotado no Brasil – alicerçado, sobretudo, no agronegócio de exportação, que destrói a terra com o uso indiscriminado de agrotóxicos e com a exploração da mão-de-obra. A Romaria também mostrava a riqueza e os empregos que a agricultura camponesa gera. Às vésperas da Romaria, os cortadores e cortadoras de cana da usina do município foram ameaçados de ficar sem seus empregos. Porém, como é de costume, romeiros e romeiras participaram da celebração que teve como ponto alto a entrada de uma cruz de cedro de quatro
metros de altura, trazida por vinte trabalhadores assalariados rurais – os crucificados da cana, segundo a mensagem da Romaria deste ano. A cruz, símbolo da Romaria de todos os anos, remete ao projeto de vida (a haste vertical é feita de cedro, que brota após o plantio, numa tradição que remonta à figura popular do monge João Maria, do início do século passado, na Região Sul do Brasil) e ao projeto de morte que impede o crescimento (uma peça do trator pregada no centro). A mensagem é clara: a cruz brotará e se tornará uma árvore forte, sinal de que a vida vence a morte. Para dom Ladislau Biernarcki, bispo acompanhante da CPT-PR, os atos contra a cruz explicitam o ca-
Rogério Nunes
“Passaram de meio-dia até cinco horas da tarde conferindo pé de planta, mediram e anotaram tudo”, lembra o quitandeiro Inácio de Moraes, de 78 anos. Moraes nasceu em Taim e há quase 60 anos mora em Rio dos Cachorros, onde criou 16 filhos. “Eu acho aqui uma beleza, é tranqüilo. Eu sou contra eles botarem a gente lá pro lado de um lixeiro (na Ribeira). Me choca quando dizem que vamos sair”, lamenta. O sentimento do comerciante é compartilhado por quase todos os moradores de Rio dos Cachorros. É difícil encontrar alguém que queira sair do lugar onde já viveram avós e bisavós. Aos 64 anos, Rosilda Vera Gomes explica a origem do nome do lugar: uma família que morava na beira do porto mudou-se, ficando só os cachorros. Quando os pescadores iam embarcar, os cães latiam e avançavam. “Então ficou assim, sair para pescar no rio dos cachorros”, diz Rosilda, registrando que foi mordida por um deles quando criança. “A terra é nossa, de fato e de direito. Não vamos abrir mão. Não tem dinheiro que pague a nossa qualidade de vida aqui”, adverte Maria Máxima, referindo-se à reduzida taxa de violência do lugar e às múltiplas alternativas de sobrevivência da população: mineração, pesca, economia doméstica, pequena agricultura, extrativismo e empreendimentos como a produção de mel de
“Essa região aqui é deles, mesmo. Há muito tempo o governo vendeu para a Vale”, justifica.
Ed Wilson Araújo
Ed Wilson Araújo de São Luís (MA)
Símbolo da luta contra o agronegócio e o latifúndio, a cruz da Romaria da Terra foi arrancada e jogada no meio do canavial
ráter violento do agronegócio, que, “além de profanar a terra, as águas e todos os seres vivos, também conspurca os símbolos religiosos e peca contra a sacralidade dos bens divinos. Como sempre, na história da salvação, certamente de novo, o Deus dos crucificados da cana fará justiça contra aqueles que desonram o seu nome”. Segundo Isabel Cristina Diniz, da coordenação nacional da CPT, “a profanação da Cruz é uma demonstração clara dos métodos que o agronegócio utiliza. Além de não respeitar o meio ambiente e de ser um grande predador dos recursos naturais, agride o trabalhador do campo, explorando seu trabalho físico e atinge profundamente o seu universo simbólico-religioso”.
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DEBATE FISCOS
Fusão prejudica a sociedade Maria Lucia Fattorelli Carneiro m cenário político marcado por uma crise ética e política grave e complicadíssima, o governo federal edita a Medida Provisória 258/2005, que centraliza, em um único órgão, toda a administração tributária do país por meio da fusão da Secretaria da Receita Federal (SRF) com a Secretaria da Receita Previdenciária (SRP). É papel nosso denunciar à sociedade que a MP altera substancialmente a arrecadação, a fiscalização, a administração dos créditos relativos às contribuições previdenciárias, bem como a execução dos créditos inscritos em Dívida Ativa. Em processo açodado e sem o devido e responsável debate, o governo utiliza-se do instrumento antidemocrático da medida provisória impedindo a responsável avaliação dos impactos da fusão para o Estado, a Previdência, os direitos dos trabalhadores e a vida do contribuinte. O governo também não demonstrou à sociedade o custo da fusão e quais, exatamente, seriam os ganhos de racionalização, economia e eficiência. Ao revés, uma fusão sem esses estudos prévios pode levar ao caos administrativo e à paralisia das atividades.
Riscos para o financiamento da Previdência Toda a sociedade está correndo sérios riscos, como denunciou o ex-ministro Jair Soares (jornal Zero Hora, em 18 de agosto): “A concepção da Hiper-Receita não é nova: quando titulei o MPAS no governo Figueiredo (1979 a 1982), houve pelo menos duas tentativas, rechaçadas sob o poderoso argumento de que os recursos detraídos da população brasileira, via contribuições previdenciárias, tinham inelutável destinação histórica, constitucional e legal na garantia do pagamento dos benefícios e de serviços assistenciais aos segurados.” Esse risco está consubstanciado no parágrafo 2º do artigo 3º da MP 258, que garante a destinação ao pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social apenas das contribuições previstas nas alíne-
Kipper
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as “a”, “b” e “c” do parágrafo único do artigo 11 da Lei 8.212, deixando de fora as demais contribuições sociais que incidem sobre o lucro, o faturamento e sobre as movimentações financeiras. Ao considerar apenas as contribuições que incidem sobre a folha de salários, o governo tenta “legalizar” o rapto de parcela fundamental das receitas previdenciárias garantidas e vinculadas pela Constituição Federal. A aprovação desta MP, da forma como se encontra, é altamente temerária para o conjunto dos trabalhadores brasileiros e para aqueles que dependem dos benefícios pagos pela Previdência. Outro aspecto da fusão dos fiscos que pode representar incalculável prejuízo para a sociedade é a abertura de brecha para compensação de dívidas para com a Previdência com créditos podres, como recentemente denunciado pela imprensa, relativamente às compensações realizadas pelo sistema “perdcomp” da SRF, envolvendo fraudes milionárias. Assim, empresas que devem à Previdência poderão não pagar suas dívidas causando grandes danos ao financiamento da Previdência Social.
É importante também ressaltar a coincidência entre a edição da MP 258 – que concentra toda a arrecadação tributária e previdenciária sob o domínio do Ministério da Fazenda – e o surgimento das propostas de aumento de superavit primário para 5% do PIB, ou de déficit nominal zero. Parece evidente o risco de utilização dos recursos da Previdência para o cumprimento dessas políticas econômicas suicidas!
Proposta é do FMI e do Banco Mundial Para avaliarmos os reais objetivos de qualquer proposta de reforma econômica, o primeiro passo é verificarmos sua origem. Assim como outras medidas neoliberais já implementadas (altíssimos superavits primários, reforma previdenciária, trabalhista, Lei de Falências etc.), a proposta de fusão dos fiscos também tem sua origem em instituições financeiras multilaterais, como o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Estas instituições têm financiado a fusão em alguns países e publicado documentos que defendem a adoção desta medida na perspectiva de aumentar a arrecadação e o controle sobre os recursos. Dia 2 de junho de 2005 o Banco Mundial aprovou empréstimo de 658,3 milhões de dólares ao Brasil, para apoiar as reformas previdenciárias em implementação pelo governo e o documento-programa deste empréstimo (disponível no site do Banco Mundial) afirma expressamente: “Este esforço está sendo feito a partir do reconhecimento de que as reformas do Regime Geral de Previdência Social e do Regime Próprio de Previdência dos Servidores envolverão reduções nos benefícios, e que os trabalhadores devem ter o acesso a sólidos esquemas de aposentadoria complementar.” No mesmo documento, o Banco Mundial afirma que a implementação do projeto de fusão dos fiscos disporá de recursos do Banco Mundial, sendo que o governo brasileiro, em Carta de Intenções ao Banco, afirma que está empenhado em realizar tal medida. Por sua vez, o FMI, em dezembro de 2004, divulgou estudo que defende a fusão, a partir da análise do processo de unificação das distintas arrecadações tributárias em países da Europa Central e do Leste (Albânia, Bulgária, Romênia e Suécia). Segundo o Fundo, pode-se conseguir maior eficiência com a unificação das estruturas arrecadadoras, através, principalmente, do uso mais eficiente dos recursos financeiros, humanos e de informática. Até mesmo a redução de pessoal chega a ser sugerida, como um possível resultado positivo da fusão. A MP 258 traz também o risco de “trem da alegria”, ou seja, para reduzir a resistência das entidades de servidores dos dois ministérios, o governo está promovendo “transformação” de cargos, compartilhamento de atribuições e outras ilegalidades que ferem frontalmente a Constituição Federal e desrespeitam a exigência de concursos públicos para ingresso em cargos públicos. Isso é altamente temerário para toda a sociedade, pois, ao distanciar-se dos estritos limites da lei, podemos perder completamente o rumo, abrindo temerários precedentes. O Supremo Tribunal Federal já
se manifestou, em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-1677/ 2003-DF) julgada procedente, declarando inválida lei distrital que criava cargo por transformação e determinava o seu provimento com o aproveitamento de cargos extintos sem prévia aprovação em concurso público de provas, como exige, para a investidura, o inciso II do artigo 37 da Constituição Federal. É tão grave o descumprimento do referido inciso II do artigo 37 da Constituição Federal que o parágrafo 2º do mesmo artigo 37 da CF prevê punição à autoridade responsável pelo seu nãocumprimento, além de determinar a nulidade do ato. Diante de todo o exposto, considerando-se o risco jurídico a que ficam submetidos os ocupantes dos cargos extintos; os graves riscos para o financiamento da previdência pública; e considerando ainda a ausência dos requisitos de urgência e relevância, deve ser retirada a MP 258 e providenciada a abertura de amplo processo de discussão sobre a matéria, de forma responsável e cautelosa, eis que envolve áreas da maior importância para o Estado e para a sociedade. O verdadeiro fortalecimento da administração tributária terá que cuidar não apenas da estrutura formal do órgão, como faz a MP 258. É urgente providenciar uma ampla revisão do modelo tributário vigente – altamente regressivo e injusto – e alterar a legislação que enfraquece a atuação do Estado, na medida em que incentiva a sonegação fiscal, merecendo destaque especial as normas do Refis, da extinção da punibilidade do crime contra a ordem tributária pelo simples pagamento, e do retardamento da comunicação ao Ministério Público. É fundamental que toda a sociedade saiba dos diversos riscos embutidos na MP 258 e exija a garantia de finaciamento para a Seguridade Social, o fortalecimento democrático das instituições públicas permanentes e o cumprimento dos princípios norteadores da administração pública, conquistados na Constituição Federal. Maria Lucia Fattorelli Carneiro é 2ª vice-presidente do Unafisco Sindical e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida pela Campanha Jubileu Sul Brasil
MÍDIA
Sem direito de resposta João Antonio Felício screvo pelo compromisso com a verdade e o amor ao Brasil, em nome das dezenas de milhares de companheiros e companheiras que nos acompanharam a Brasília no 16 de agosto e dos milhões que comungam conosco, identificados com o projeto político que levou Lula à Presidência e desbancou os neoliberais, privatistas e entreguistas. Em repúdio ao golpismo, promovido e alimentado por setores da mídia, do PSDB e do PFL que tentam desestabilizar o governo; em defesa de uma Reforma Política democrática como instrumento contra a corrupção e por mudanças na política econômica, que reduzam a absurda taxa de juros e o superavit primário; trabalhadores, estudantes, mães com crianças no colo, aposentados e pensionistas, marcharam pela Esplanada dos Ministérios. A manifestação da Coordenação dos Movimentos Sociais
E
(CMS), desde o primeiro momento da sua convocação, enfrentou o preconceito e a infecta campanha monocórdica dos meios de “comunicação”, que se apressaram em carimbar de “oficialistas” algumas das mais representativas e históricas entidades populares brasileiras. Como se desconhecessem que CUT, CMP, UNE, Ubes, MST e Conam, ao lado de outras não menos importantes organizações, vêm conformando um amplo leque de alianças – e compromissos – há muito tempo. Fomos a Brasília precisamente para cobrar uma guinada nos rumos da economia e a “reconstrução de uma nova maioria política e social em torno de uma plataforma antineoliberal”, como expressamos na Carta ao Povo Brasileiro. Desrespeitando as mais elementares regras do jornalismo, a chamada “grande” imprensa brasileira colocou os seus principais articulistas para opinarem sem qualquer escrúpulo contra a nossa manifestação, num vale-tudo edito-
rial. Desde a invenção de supostas palavras de ordem, à invenção de formidáveis patrocínios, passando pela edição de fotos parciais que não refletiam a real dimensão da passeata, até o cúmulo de citar números desconexos da Polícia Militar – subordinada à Secretaria de Segurança Pública do governo que agiu nos bastidores em favor do ato do dia posterior contra Lula – de tudo foi utilizado na ânsia de confirmar sua tese de que o presidente está isolado e que já não conta com o apoio da sociedade brasileira. Conforme citou a mídia, a PM informou de 10 a 16 mil, depois seis mil e, no final, apenas dois mil manifestantes em frente ao Congresso Nacional. Infelizmente para esses senhores, que crêem sermos a plebe, a quem deva ser negado o acesso à Casa Grande, senhores que ainda não admitiram a idéia de ter um operário na Presidência da República, contamos com uma força infinitamente mais poderosa do que a soma dos seus holofotes, suas ondas de desinformação e
seus rios de tinta de manipulação. Contamos com a verdade. Por estarmos de lados distintos, por sermos partidários da democratização dos meios de comunicação, do fortalecimento das redes públicas e comunitárias, e condenarmos o uso privado da informação, prostituída como mercadoria, é que os grandes monopólios da desinformação vêm nos atacando. Some-se a isso, é claro, nossa aversão à submissão, nossa defesa da classe trabalhadora, da soberania e da independência, da integração latino-americana. Mais do que palavras, manifestações de apoio ao governo em medidas concretas, contrárias aos desígnios dos senhores do Norte, via de regra patrocinadores materiais ou mentores intelectuais de determinadas publicações. Sem essa consciência, sem a compreensão real do inimigo, muitos companheiros poderiam perguntar o porquê de tamanha parcialidade dessa gente, de tamanha aversão aos fatos e do apego aos boatos, práticas que vêm contami-
nando muitas redações e levandoas ao descrédito. É o velho preconceito de classe mostrando-se em carne e osso. O mesmo viés oligarca que, na Venezuela, tentou descaracterizar os movimentos sociais quando se levantaram contra o golpe de direita e em apoio ao mandato do presidente Hugo Chávez. O espaço desmedido entregue no dia 17 a uma passeata na mesma Esplanada, do esquerdismo infantil, tão caro à direita degenerada, demonstra apenas ser fraqueza e oportunismo a tentativa desesperada de transformar o virtual em real, dar ares de sobriedade à farsa golpista. Para nós, sequer direito de resposta. Como as manifestações populares que se seguirão vão comprovar, estão enganados os que tentam apoiar suas bandeiras no fétido, lodoso e estéril terreno da mídia chapa branca... vermelha e azul. João Antonio Felício é presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT )
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA NACIONAL VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, A SAÚDE E OS DIREITOS HUMANOS Lançado pela Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), com autoria de Lilia Blima Schraiber, Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, Márcia Thereza Couto Falcão e Wagner dos Santos Figueiredo, a publicação destaca as construções sócio-culturais das identidades modernas e os papéis socialmente diferenciados do homem e da mulher, considerando a família em seu atual contexto de crise de relações de gênero. Também aborda os limites dos serviços da saúde, sendo a violência sofrida encoberta pelos sintomas ou sinais do adoecimento; e discute as mudanças culturais necessárias para alterar este quadro, o impacto da violência na saúde da mulher, os aspectos éticos e jurídicos e a rede de assistência à mulher vítima de violência. O livro custa R$ 22 e pode ser adquirido pela internet no endereço www.editoraunesp.com.br
Robson Oliveira
LIVRO CAMPANHA - PROTEJA COMO SE FOSSE SUA FILHA Começou, dia 15 de agosto, uma mobilização nacional contra a exploração sexual de crianças e adolescentes, com a distribuição de panfletos e cartazes nos 60 mil quilômetros de rodovias federais. Com o slogan “Proteja como se fosse sua filha”, a campanha incentiva, principalmente, caminhoneiros e outros profissionais do transporte a denunciar a prática desse crime pelo DisqueDenúncia. O serviço é gratuito, atende todo o país e garante o sigilo do denunciante. Além da distribuição de panfletos, haverá palestras em alguns postos da Polícia Rodoviária Federal, com a participação de pais de jovens que passaram por esse problema. O número é 0800-99-0500.
Kadiwéu, que aborda as formas geométricas das pinturas corporal e facial da tribo; Transfiguração dos remos, série originária da forma dos remos feitos de madeira pelos índios Ipurinã. Local: Casa França Brasil, R. Visconde de Itaboraí, 78, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2253-5366
RIO DE JANEIRO EXPOSIÇÃO - ÍCONES TRIBAIS Ate dia 4 A artista Denize Torbes apresenta 30 peças inspiradas em elementos da cultura indígena brasileira, entre cerâmica, colagem, pintura sobre papel, têmpera e óleo sobre tela. A exposição está dividida em sete séries: Face Tribal, que destaca a forma usada na pintura facial dos Xicrin, índios Kaiapó que vivem no Pará; Signos transfigurados, que explora as formas dos desenhos das cerâmicas marajoaras; Signos transfigurados Kadiwéu, inspiradas nas pinturas corporais da tribo do Mato Grosso do Sul; Mantos, cores e formas do ritual das índias Tikuna; Escudos, que tem como idéia as formas dos escudos dos guerreiros africanos da tribo Massai; Ícones tribais e grafismos
a veterinária nos marcos neoliberais”, “Modelo agrário brasileiro e os movimentos sociais populares”, “Movimento estudantil”. Local: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), BR 465, km 7, Seropédica Mais informações: enevet24@ufrrj.br
SÃO PAULO 24º ENCONTRO NACIONAL DOS ESTUDANTES DE MEDICINA VETERINÁRIA De 18 a 25 O evento, que tem como tema “A veterinária por um projeto coletivo com compromisso social”, será um fórum de análises e discussões sobre a conjuntura nacional e internacional, sobre os projetos da executiva nacional de estudantes de veterinária e sobre o ensino e a atuação profissional do veterinário como agente transformador na sociedade. Haverá palestras com os temas: “O ser estudante”, “Reforma sanitária, SUS e o médico veterinário”, “Sociedade e universidade”, “Ensino superior e
PROJETO - PARADA DAS MARAVILHAS A partir de 2 O evento, promovido pelo Teatro de Arena Eugênio Kusnet, apresenta um panorama da dramaturgia latino-americana, com leitura de textos de doze países, cursos e debates, além de apresentações de peças. O projeto inicia dia 2, com a leitura da peça À Direita de Deus Pai, do colombiano Henrique Buenaventura, com direção de Ednaldo Freire. Até dezembro, todas as sextas-feiras, serão realizadas leituras de textos de dramaturgos de países como Peru, Bolívia, Colômbia, Cuba, Argentina, Chile, Venezuela,
Porto Rico, México, Costa Rica e Uruguai. A programação conta também com a reestréia dos espetáculos Noite dos Assassinos, de José Triana, de Cuba, direção de Hugo Villavicenzio: e Ubu Presidente, de Juan Larco, do Peru, direção de Alexandre Mate, que ficam em temporada até dezembro. Haverá ainda os cursos de História do Teatro Latino Americano, ministrado por Hugo Villavicenzio e Tem Criança na Roda, ministrado por Simone Carleto, que irá trabalhar com crianças propondo atividades envolvendo o texto Joaquincita, do México. Além de encontros com a música latina tradicional e popular. Local: R. Teodoro Baima, 94, São Paulo Mais informações: (11) 3159-1822 RIO, 40 GRAUS De 6 a 18 O projeto “Diretores Brasileiros” homenageia Nelson Pereira dos Santos, reunindo diversos olhares sobre sua obra e promovendo o contato do público com o mundo
de um dos mais influentes diretores do cinema brasileiro. A homenagem inclui mostra retrospectiva de longas e curtas-metragens, documentários e programas de TV; encontro com o cineasta; debate com críticos; além de uma exposição inédita com fotos e documentos do acervo pessoal de Nelson Pereira. O evento acontece no mês de aniversário do cinqüentenário de seu primeiro filme: Rio, 40 graus, importante obra do Cinema Novo. Local: R. Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3113-3651 MOSTRA - FENDAS E FRESTAS Até 2 de outubro A artista plástica baiana Maristela Ribeiro visitou, durantes três anos, asilos, prisões e hospitais psiquiátricos da Bahia e conviveu com as mulheres ali confinadas. O resultado dessa convivência é a mostra, constituída de três instalações que representam os três diferentes tipos de ambiente visitados pela artista. Local: Edifício Sé, Praça da Sé, 111, Galeria Neuter Michelon, 1° andar, São Paulo Mais informações: (11) 3107-0498 2ª EDIÇÃO DO FÓRUM UNIVERSO DO CONHECIMENTO Até novembro, às 20h A idéia do fórum, que terá como tema “Planeta Terra: um olhar transdisciplinar”, é reunir grandes especialistas para discutir as principais questões que mexem com o presente e o futuro da humanidade, tendo sempre como eixo de reflexão o Planeta Terra e sua diversidade. Em setembro, o fórum da Universidade São Marcos contará com as presenças do ambientalista estadunidense Thomas Lovejoy; do filósofo francês Edgar Morin; e de Pierre Lévy, especialista em cybercultura. O psicanalista Carlos Byngton encerra o ciclo em novembro. Local: R. Padre Marchetti, 235, São Paulo Mais informações: www.universo doconhecimento.com
EDUCAÇÃO
Inaugurada escola latino-americana de agroecologia Solange Engelmann de Curitiba (PR)
MST/PR
O objetivo é formar pedagogos e pedagogas em agroecologia, para construir uma nova matriz tecnológica do curso, afirma que, pelo fato da escola ser dentro de um assentamento, haverá um intercâmbio permanente entre educandos, educadores e assentados, desafiando os camponeses a avançar na transição para agroecologia. Os assentados também comemoram a implantação da escola. “Vai ser um espaço muito útil porque as famílias poderão participar do processo de discussão do conhecimento”, diz Paulo Brizola, morador do assentamento Contestado. Dom Ladislau Biernaski, bispo auxiliar de Curitiba, acredita que esse novo modelo de agricultura pode resolver vários problemas do campo brasileiro: “Onde existe agricultura familiar e agroecológica não existe trabalho escravo e concentração da terra”.
C
om a proposta de defender a soberania alimentar, as sementes e criar uma rede de intercâmbio entre os camponeses de toda a América Latina, foi inaugurada, dia 27 de agosto, a primeira Escola Latino-Americana de Agroecologia, na Lapa, Estado do Paraná (a 70 km de Curitiba). O objetivo da instituição – uma parceria entre o governo da Venezuela, o Estado do Paraná, a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Via Campesina Internacional e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – é formar pedagogos em agroecologia para atuar de forma permanente junto aos camponeses, construindo uma nova matriz tecnológica, baseada na agroecologia. “Para enfrentar a matriz conservadora do agronegócio, sustentada pelos grandes complexos da agroindústria e controlados pelas grandes empresas multinacionais”, esclarece Roberto Baggio, coordenador estadual do MST. Segundo Baggio, essa nova matriz será voltada para a pequena produção e o mercado interno, respeitando o ambiente e contribuindo para uma agricultura soberana. Cerca de 1.500 pessoas participaram da inauguração da escola, que contou com a presença de Judith Valencia, representante do governo da Venezuela e professora da Universidade Central da Venezuela, que atua nas negociações internacionais da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e da Organização Mundial do Comércio (OMC); Miguel Rossetto, ministro do Desenvolvimento Agrário; Roberto Requião,
CURSO DE BIOSSEGURANÇA Como contraponto ao agronegócio, nova matriz será voltada para a pequena produção e o mercado interno
governor do Paraná; João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, entre outras autoridades. Para a venezuelana Judith, a escola vai promover mais do que a integração entre os povos latinoamericanos: “Vai resgatar, multiplicar e difundir a agricultura dos nossos ancestrais. Devemos nos fazer presentes nas negociações multilaterais internacionais e mostrar que devem respeitar nosso terrítório e nossa cultura”. O ministro Rossetto afirmou que a escola se soma a um plano de melhoria da qualidade produtiva em assentamentos, de diminuição da dependência de insumos e de estímulo à produção de bancos de sementes. “A iniciativa é uma forma de resistir ao padrão tecnológico concentrador de renda, excludente e destruidor dos
recursos naturais do nosso país”, salientou. Durante a inauguração da escola, o governador Requião anunciou a utilização de terras públicas, usadas até o momento para a produção de pinos, para viabilizar assentamentos de reforma agrária.
FORMAÇÃO DE TECNÓLOGOS O curso superior, que formará tecnólogos em Agroecologia, será ministrado em três anos e certificado pela UFPR. Vai funcionar em regime de alternância: o aluno passa um tempo na escola e um tempo na sua comunidade. As aulas começaram dia 24 de agosto, com cem estudantes ligados as organizações camponesas de toda a América Latina. “Queremos que os estudantes entendam a agroecologia não apenas na área agrária,
mas na dimensão humana, social e ambiental”, explica Adriano Lima dos Santos, integrante da equipe pedagógica do curso. A educanda Adriana Antunes Almeida, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), espera ampliar o acúmulo das técnicas e do conhecimento na área da agroecologia. Izabela Castro, integrante da Coordenação de Mulheres Rurais e Indígenas do Paraguai, quer aprender e difundir essas informações com os povos do seu país. A escola está localizada dentro de um projeto de reforma agrária do MST, o assentamento Contestado. Nesse local existem108 famílias, assentadas há seis anos, das quais 40% já trabalharam em sistema agroecológico. José Maria Tardim, integrante da equipe pedagógica
Igualmente com a proposta de levar os trabalhadores rurais a se organizarem e a refletir em bases agroecológicas como contraponto ao modelo agrícola hegemônico baseado nas grandes propriedades monocultoras começou, no Distrito Federal, dia 23 de agosto, o 1º Curso de Agroecologia e Biossegurança, para aproximadamente 130 técnicos e dirigentes da reforma agrária. A dinâmica do curso foi construída pelo setor de produção, cooperação e meio ambiente do MST e contou com as colaborações da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (ASPTA), da Diretoria de Conservação da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável, além da Fundação Oswaldo Cruz. (Colaborou Maria Góes de Melo, de Brasília)
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CULTURA
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MÚSICA POPULAR
Em Conservatória, ainda se canta ao luar Igor Ojeda de Conservatória (RJ)
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em sempre se pode confiar nos dicionários. Uma rápida consulta ao Aurélio e ao Houaiss, considerados os melhores do país, constata: serenata e seresta têm o mesmo significado. São sinônimos. Pois não poderiam estar mais errados. Uma visita a Conservatória, distrito da cidade de Valença, no sul do Rio de Janeiro, comprova o equívoco. São 11 horas da noite, sexta-feira. A seresteira Marluce Magno explica ao público que espera o início da serenata: “Seresta é o canto em recinto fechado, aquele que se realiza em todo o Brasil, em casas, salões, bares. Serenata é o canto nas ruas, sob o sereno, ao luar, que infelizmente quase acabou, por conta do progresso. Mas aqui ela ainda resiste”. E resiste semanalmente. Todas sextas e sábados, com raríssimas exceções, as canções ao ar livre dão o tom nas ruas de pedra de Conservatória. Independentemente da época do ano, turistas nostálgicos, a grande maioria na terceira idade, chegam em grande número com o único intuito de presenciar essa forte tradição local. Tradição exclusiva, até onde se tem notícia.
ENCONTRO DE SERESTEIROS Mas o sábado 27 de agosto não foi como todos os outros. Por ser o último do mês, abrigou o Encontro de Seresteiros, evento dos mais disputados de Conservatória, pois promove a união entre os músicos de fora e os locais. Como acontece em todos os últimos sábados de agosto, este ano se esgotaram, com dias de antecedência, as vagas em pousadas e hotéis da cidade. Dezenas de ônibus de excursão lotados chegaram ao distrito. Bares e res-
Fotos: Igor Ojeda
Valença (RJ) atrai apreciadores de serestas e serenatas em eventos que preservam uma tradição secular
Pelas ruas de Conservatória, a multidão segue os passos dos seresteiros e canta em coro as canções românticas. Uma tradição de mais de cem anos
taurantes ficaram cheios. Como diz Marluce, “o encontro, na sua simplicidade, mostra que um público significativo vem a Conservatória sem a necessidade da sofisticação que querem alguns”. Ela tem razão. À noite, num palco montado ao lado da estação rodoviária, seresteiros de fora se revezam a cantar músicas de amor, sempre acompanhados em coro por milhares de pessoas. No Museu da Serenata, os seresteiros locais fazem o mesmo, no espaço onde tradicionalmente se encontram e esquentam suas vozes antes de partir para as serenatas. Por volta das dez e meia, saem em direção à rodovi-
ária, em silêncio. Param na entrada do palco. Seresteiras de Juiz de Fora (MG), que estavam se apresentando, cantam a última música. Chegou o momento do encontro. Entram os músicos locais, continuam os de fora. Todos cantam juntos Noite Cheia de Estrelas, de Cândido das Neves. O público aplaude bastante. Duas músicas mais tarde, chega a hora mais aguardada.
A PROCISSÃO DO AMOR Os seresteiros deixam o palco e começa a serenata pelas ruas de Conservatória. Mal têm espaço para caminhar, tamanha a quantidade de gente em volta. Os visitantes
acompanham em passos lentos, lembrando uma procissão. “Meu irmão definia nossa serenata como a procissão do amor”, explica Joubert Cortines de Freitas, de 84 anos, referindo-se a José Borges de Freitas Netto, falecido em 2002. Juntos, são considerados, de forma unânime, os principais responsáveis pela manutenção da tradição no distrito. Por isso mesmo, é Joubert quem puxa a serenata. Anda devagar, ajudado por sua bengala, de um lado, e pela seresteira Elenice Lessa, de outro. De tempos em tempos, antes de certas músicas, conta histórias, causos, explicando-as. O público, em silêncio, ouve com atenção.
Aplaude. Canta junto. Os seresteiros seguem caminhando, cantando. Em algumas janelas debruçam-se mulheres, de todas as idades. Os músicos param, viram-se para elas, e realizam a serenata à moda antiga. Elas agradecem. “Fazemos questão de só cantar música popular brasileira. E romântica. Os clássicos da serenata. Última Estrofe, Malandrinha, Lua Branca e outras mais novas mas já inseridas no contexto, como Cavalgada, do Roberto Carlos e do Erasmo Carlos”, conta Joubert. “Canções com jeito de luar”, diz. “A harmonia entre os passos do cantor, os acordes do violão e os versos do compositor”.
Em cada casa uma canção... A tradição das serenatas de Conservatória é secular. Conta uma história do final do século 19, época de grande prosperidade devido ao ciclo do café, que ela teve início quando um professor de música alemão começou a atrair a população do distrito ao tocar violino na praça principal. Com o tempo, músicos de outras localidades próximas passaram a acompanhá-lo. Desde então, tornou-se marca registrada do lugar. Tanto que, quando os irmãos José Borges de Freitas Netto e Joubert Cortines de Freitas chegaram, em 1938, as serenatas já faziam parte dos costumes. “Mas eram diferentes das de hoje. Naquela época, aqui não havia carros, não havia bares. Nós cantávamos debaixo das janelas das namoradas, que não podiam abri-las, pois o preconceito era muito forte. Elas sinalizavam, apagando e acendendo a luz. Mas com a evolução...
Meu irmão sempre dizia: primeiro, a mulher ficava atrás da janela, depois debruçava na janela. Agora, pulou a janela e veio para a rua”, lembra Joubert. Uma boa mostra de como a serenata se incorporou à vida de Conservatória é o projeto “Em toda casa uma canção”, do início da década de 1960 ao final de 2004. Andando pelas ruas do centro, percebe-se em cada residência, pregada na parede, uma placa de pequenas proporções com o nome de uma música e de seu compositor. Idealizado por José Borges, o projeto tinha regras básicas. Os moradores só podiam escolher canções populares antigas e, claro, românticas. Uma vez elegida e aprovada a música, marcavase a data da cerimônia de afixação da placa. “Era uma minisserenata”, conta Joubert. No total, 403 casas foram contempladas. E, se depender da dedicação de duas de suas seresteiras, a tradição
das serenatas de Conservatória tem tudo para durar muitos anos. Elenice Lessa e Marluce Magno, única mulher do grupo de seresteiros a tocar violão, têm histórias parecidas. Ambas moravam em Niterói (RJ) quando visitaram, se apaixonaram e se mudaram para o distrito. Marluce deixou para trás inclusive o alto salário como executiva de uma seguradora estadunidense: “Eu viajava muito e não gostava de repetir os lugares. Mas Conservatória provocou uma mudança nisso, porque, não só voltei, como passei a vir com uma certa freqüência, até me mudar definitivamente”. Em 2001, Marluce e Elenice iniciaram o projeto “Conservatória, meu amor”, dividido em duas atividades voltadas a estudantes: um concurso de canto, trova e declamação; e aulas de serenata. Elenice conta que a receptividade das crianças é muito grande: “A semente foi plantada. A serenata certamente vai continuar”. (IO)
... em cada canção uma saudade
Acima estátua de José Borges. Segundo Joubert, a serenata ainda resiste
A serenata de Conservatória não seria o que é hoje se não fosse a atuação de dois irmãos: José Borges de Freitas Netto e Joubert Cortines de Freitas. Com os pais, começaram a freqüentar o distrito em 1938, quando já era forte a tradição de se cantar pelas ruas. Aos poucos, os dois foram assumindo, de forma natural, a condição de líderes dos seresteiros. Em 1960, surgiu, na casa de José Borges, falecido em 2002, o Museu da Seresta e da Serenata, atualmente Museu da Serenata. “Esse é um museu diferenciado, pois foi acontecendo”, explica Joubert. Não houve planejamento. Lembranças de compositores antigos, fotos, poemas foram sendo afixados nas paredes. “Morávamos aqui, mas tivemos
que sair, pois o museu foi crescendo. Hoje há muito material que fica de fora porque não tem lugar”. No espaço, encontra-se tudo que se refere à música popular (romântica) brasileira e às serenatas do distrito. Fotos, quadros, discos, livros, reportagens... até poemas enviados por quem visitou e se apaixonou por Conservatória. Mas mais do que apenas um local de preservação da memória musical brasileira e local, o Museu da Serenata ajuda a manter a tradição da serenata. “Sempre houve um ponto de encontro dos seresteiros antes da saída para a rua. Depois de um tempo, passou a ser aqui”, conta Joubert. Desde então, todas as sextas e sábados, por volta das oito da noite, os tocadores e cantores reú-
nem-se no museu para uma seresta de aquecimento antes da serenata. O seresteiro de 84 anos garante: “A casa é aberta para todos que quiserem soltar sua voz”. Não à toa, o Museu da Serenata e os irmãos Freitas são considerados os responsáveis por não haver desemprego em Conservatória, uma vez que sua serenata, reconhecida nacional e até mundialmente, possibilita que o distrito viva de turismo. Mas Joubert é modesto: “Nossa serenata não pertence ao museu, a ninguém, e sim às ruas de Conservatória, que são nosso palco. Eu, por exemplo, canto mal, toco mal... não me põe fora daqui que não tenho jeito. Não tenho jeito nem para pegar no microfone. Aqui eu me empolgo muito”. (IO)