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Ano 3 • Número 135

R$ 2,00 São Paulo • De 29 de setembro a 5 de outubro de 2005

MST perde a paciência com Lula A

ofensiva nacional deflagrada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) começou dia 27 de setembro, com ações em todo o país. Cerca de 20 mil sem-terra ocuparam 21 sedes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), nove fazendas improdutivas e nove agências do Banco do Brasil. No Paraná, sete pedágios foram fechados. Os integrantes do MST pretendem permanecer mobilizados até que o governo atenda às reivindicações acordadas na divulgação do Plano Nacional de Reforma Agrária, em novembro de 2003, e na Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em maio. A jornada do MST visa também estimular outras mobilizações populares para combater as forças de direita e a política econômica. Violência no campo – De janeiro a agosto, as ocupações de terra caíram quase pela metade em relação ao mesmo período de 2004. Mesmo assim, mais gente foi assassinada no campo, segundo o último relatório da Comissão Pastoral da Terra. Págs. 2 e 3

Rafael Bavaresco

Cansados das promessas e diante da apatia do governo, sem-terra fazem jornada de mobilização por reforma agrária

Parte da mobilização nacional, trabalhadores rurais sem-terra maranhenses ocupam sede do Incra em São Luís e reivindicam a reforma agrária do governo Lula

Pagar a dívida aumenta pobreza

EUA avançam sobre recursos sul-americanos

ra, reduzir o déficit habitacional urbano em um terço e construir 173 universidades. Mas, em vez disso, a opção foi por banqueiros e rentistas, deixando o povo brasileiro ainda mais pobre.

Detalhe: uma auditoria informal dos contratos de endividamento brasileiro mostrou que 91% dos documentos contêm cláusulas ilegais. Pág. 5

Renata Carvalho/ Agência A Tarde/ AE

O objetivo da presença das tropas dos Estados Unidos no Paraguai é, sobretudo, controlar os recursos energéticos da região, avaliam analistas políticos ouvidos pelo Brasil de Fato. Eles não descartam uma possível ação militar no futuro. Segundo estudo da organização argentina CEES, pelo menos desde 1999 os EUA mantêm uma base militar semiclandestina no oeste do Paraguai. Pág. 9

Com os R$ 105 bilhões destinados ao pagamento dos juros da dívida, de janeiro a agosto de 2005, o governo Lula poderia construir 426 hospitais, assentar 4,2 milhões de famílias sem-ter-

Militantes de esquerda deixam o PT Com a ida de Raul Pont para o segundo turno das eleições internas do PT enfrentando Ricardo Berzoini, parlamentares e centenas de militantes de esquerda anunciaram sua desfiliação e migração para o P-Sol. Entre os dissidentes, Plinio Arruda Sampaio, um dos fundadores da legenda, acredita que, independentemente do resultado final, a hegemonia do Campo Majoritário permanece. Pág. 6

Na ditadura financeira, o povo se dá mal

O Brasil sem Apolônio de Carvalho

O capitalismo está no estágio perverso da financeirização, isto é, da hegemonia do capital financeiro, como explica, em entrevista ao Brasil de Fato, o economista François Chesnais. Diz que a financeirização descola a economia do mundo real da produção e do trabalho, visto que é um sistema meramente especulativo que produz crises sucessivas, que atingem sobretudo os pobres. Pág. 10

No dia 23 de setembro, faleceu o guerreiro Apolônio de Carvalho. E a esquerda brasileira perdeu um de seus pilares. Da militância na Aliança Libertadora Nacional, na década de 30, à fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, Carvalho deu a linha da luta social, principalmente na democratização do país. Para mudar as coisas, dizia, um só jeito: construir o socialismo. Pág. 8

CMI

No sul da Bahia, Pataxó retomam terras invadidas pela Veracel, que inaugura fábrica de celulose em meio a protestos

Usaid dá carta branca para a Coca-Cola agir Pág. 11

E mais: SOBERANIA – Submissão do governo Lula a empresas que produzem alimentos transgênicos preocupa entidades estrangeiras. Pág. 13 DEMOCRACIA – Portal na internet compartilha obras intelectuais e resiste à mercantilização da cultura. Pág. 16

Em Washington (Estados Unidos), cem mil pedem a retirada das tropas do Iraque


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De 29 de setembro a 5 de outubro de 2005

NOSSA OPINIÃO

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, 5555 Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

Acho que realmente nos encontramos em uma conjuntura muito difícil, mas não acho que nós devemos só refletir a sociedade brasileira e mundial a partir das eleições internas do Partido dos Trabalhadores (PT). A revolução brasileira é bem maior que o PT e a esquerda. Sinto que as editorias deveriam se concentrar em avaliar a opressão do Estado capitalista brasileiro, que exerce todos os dias sua política, sua mídia, sua educação para o povo continuar vivendo na ignorância. Não vai ser a eleição do PT, PSTU, PSOL, que vai mudar as estruturas do capitalismo em nosso país. A esquerda tem que dar um rumo para o Brasil. Saudações de Luta. Jeomark Roberto por correio eletrônico DESARMAMENTO Companheiros e companheiras, sei do compromisso de vocês com a sociedade brasileira e mundial na veiculação das informações. Sou universitário no Paraná e estou realmente preocupado com esse assunto do desarmamento. Grande abraço a todos e continuem assim... lutando sempre pela transformação da sociedade. Florentino Camargo por correio eletrônico O TRAIDOR TRAÍDO O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como é soberbamente sabido, não cumpriu as promessas de campanha, co-

O

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) iniciou esta semana, com muita força, uma nova jornada de lutas, com grande mobilizações em boa parte do território nacional e ocupações de sedes dos escritórios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), fazendas improdutivas e agências do Banco do Brasil – principalmente para cobrar do governo federal o cumprimento das promessas feitas em maio deste ano, quando a marcha de 12 mil militantes do MST percorreu as avenidas de Brasília. Naquela ocasião, coordenadores do Movimento e ministros do governo Lula firmaram um acordo fundamental para o avanço da reforma agrária, o atendimento das famílias acampadas e assentadas e para o fortalecimento da agricultura familiar e das cooperativas de pequenos agricultores. O acordo previa a agilização dos processos de desapropriação, o assentamento das 140 mil famílias acampadas, o estabelecimento de novos índices de produtividade para servir de referência na desapropriação das propriedades improdutivas, linhas de créditos para assentados, apoio às cooperativas, reestruturação do Incra e garantia de cestas básicas nos acampamentos de sem-terra. Nada disso tem sido cumprido. O governo Lula continua passivo diante da enorme dívida social do país.

Continua negligente em relação ao seu próprio Programa Nacional de Reforma Agrária, que estabeleceu o assentamento de 400 mil famílias até 2006. No entanto, até agora somente 24 mil famílias do MST foram assentadas, de 2003 até agosto deste ano. Essa atuação pífia do Ministério do Desenvolvimento Agrário atesta que o governo Lula não tem compromisso com a reforma agrária e, muito menos, com os interesses do povo brasileiro. Assim como o malfadado governo de FHC, continua priorizando o agronegócio, o capital especulativo, os interesses do capital internacional. Ao mesmo tempo, em 2005, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, ocorreram 28 assassinatos no campo, o que já supera o número de mortes do ano passado. No mesmo período, de janeiro a agosto deste ano, 1.664 famílias foram expulsas da terra pelo poder privado; outras 10.990 famílias foram despejadas com mandado judicial, e 8.412 famílias sofreram intimidação de pistoleiros. Ou seja, o campo brasileiro continua sendo um território dominado pela violência e pela força do latifúndio. A nova jornada de luta do MST acontece num momento em que o governo Lula, atolado em denúncias e com a sua base parlamentar desarticulada, tem a sua capacidade de

iniciativa bastante reduzida, perde força para tocar seus próprios programas, cuida quase exclusivamente da rotina operacional da máquina administrativa; mas é um momento em que os setores conservadores, de direita, se aproveitam da apatia petista para avançar nos projetos que interessam para o capital. Por isso mesmo, a nova jornada do MST é importante não apenas para exigir o cumprimento das promessas aos sem-terra, mas fundamentalmente para sinalizar para a sociedade, para os trabalhadores, para os lutadores do povo, para todos aqueles que querem um país mais justo, que é também o momento de se fazer a grande cobrança do governo Lula – das reformas e das mudanças sociais ainda não realizadas. No momento em que o governo Lula aumenta o superavit primário e já ultrapassa a marca dos R$ 100 bilhões de pagamento de juros aos credores internacionais, somente este ano, a mobilização do MST representa a esperança de que nem tudo está perdido. O caminho é o da luta, hoje, agora e sempre. Que a jornada do MST seja vitoriosa, na esperança que outras mobilizações populares se sigam a esta. Somente assim derrotaremos as forças de esquerda que imitaram o modo burguês de fazer política e a ofensiva da direita.

FALA ZÉ

OHI

CRÔNICA

Essas mulheres fatais

CARTAS DOS LEITORES PT

Uma jornada de luta

mo a geração de emprego e renda, em especial. Na área rural, prometeu assentar um milhão de famílias, número esse reduzido posteriormente para 400 mil famílias. Nem assim conseguiu cumprir a meta. Até agora só assentou 50%. Ou seja, fez menos pela reforma agrária do que o governo anterior, segundo dizem. Enfim, o homem mudou de lado, dando continuidade e até ampliando o que de errado fez FHC. Lula não soube escolher seus parceiros (apesar de comprados a peso de ouro). Inclusive, entre aqueles amigos mais íntimos, donos do PT, partido esse praticamente apodrecido pela mesma corrupção predominante nos demais partidos. Traiu o povo e foi traído pelos falsos amigos e aliados. Provou do seu próprio veneno. Assim, a não ser que dê uma forte guinada (volto a repetir) no timão do barco Brasil, estará politicamente desmoralizado, sem quaisquer chances de vir a ser reeleito. Mas o pior é que para o povo quaisquer melhorias em termos de desenvolvimento econômico e social foram por água abaixo. João C. da L. Gomes Porto Alegre (RS) ERRAMOS Na edição 134 do Brasil de Fato, faltou mencionar que a tradução da reportagem África do Sul, reforma agrária: dificuldades e lentidão é de Carlos Gutierrez

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Luiz Ricardo Leitão O mais recente estudo do Banco Mundial sobre o tema de “Eqüidade e Desenvolvimento” não poupou críticas ao extremo abismo social da terra brasilis. O texto do Bird não hesitou sequer em cunhar uma expressão para designar esse traço indelével da vida nacional: “Armadilha da desigualdade”. Em meio a constatações que qualquer brasileiro já conhece na própria carne há séculos, os economistas da onipotente instituição tratam de apontar alguns ingredientes básicos da arapuca, dentre eles a permanente ocupação do poder pelas elites política e econômica do país e a inexistência de um “capitalismo mais avançado” no Brasil – “Se uma pessoa pobre tiver uma grande idéia, jamais conseguirá um financiamento bancário em condições idênticas às dos ricos”, sentencia, em tom de pretensa indignação, o relatório do Bird. Os bravos cavaleiros do (neo) liberalismo globalizado nos consideram um “Estado de bem-estar social truncado”, ou seja: a máquina estatal arrecada muito e distribui apenas para alguns. Ninguém se preocupou em advertir que essa arrecadação colossal destina-se de fato a transferir renda para o exterior (juros da dívida) e para a elite “nacional”. E, de quebra, não se esquecem de lançar farpas contra o ensino superior público (setor cobiçadíssimo pela OMC): “Subsidiamos na universi-

dade pessoas ricas que freqüentaram boas escolas privadas em vez de subsidiar mais pessoas pobres em escolas públicas”, protestam os Robin Hood pós-modernos do Atlântico Norte. A nossa pátria-mãe gentil reconhece sua iniqüidade aguda, mas o povo de Pindorama agradece a “preocupação” de Tio Patinhas e sua turma, até porque, pelo que se viu nas últimas semanas, na casa do poderoso ferreiro do Norte os espetos são todos de pau... Que o digam as vítimas do furacão Katrina, em Nova Orleans, quase todos negros excluídos do “american dream”, para quem o regime dos EUA não tem sido outra coisa que um Estado do “mal-estar social”. Assustados pela fúria dos ventos, alguns “cientistas” se empenham em discutir se a intensa temporada de tormentas tropicais seria tão-somente um fenômeno natural (o “ciclo dos oceanos” elevou a temperatura do mar a partir dos anos 1970 e aumentou a força dos furacões) ou, talvez, um efeito perverso das agressões que a civilização industrial promove contra o meio ambiente Um pesquisador do INPE, porém, fez questão de frisar que as causas da destruição não se devem apenas a Katrina, Rita e outras mulheres fatais. Os fatores geográfico-econômicos, como a ocupação desordenada da costa leste e a exclusão social cada vez mais gritante nos EUA,

também explicam em larga escala a tragédia de Nova Orleans. Até a evacuação da cidade obedeceu à cruel lógica neoliberal: quem dispunha de recursos, fugiu de carro ou até de avião; já os excluídos permaneceram ilhados em suas casas e barracos, à espera de um Estado nazista que, incapaz de dissimular o fracasso social da sua política genocida, ainda possui a desfaçatez de recomendar às pessoas que gravem o nº do CPF nos braços, para facilitar a identificação dos mortos no “day after”. As realezas estão nuas – e as verdades, como um dia cantou Bob Dylan, estão soprando com os ventos. Aliás, aqui em Pindorama, o furacão “Mensalão” também arrastou muita gente: já se foi Severino e seu jegue, Bob Jefferson e sua ópera-bufa, até Duda Mendonça foi visto agarrado às asas de um galo de rinha. É verdade que José Dirceu e alguns outros se esconderam em um abrigo subterrâneo. Doces e ilusórios momentos de bonança. A tormenta ainda promete fazer novas vítimas – e será que Dom Inácio escapará ileso no olho do furacão? Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba).

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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA

Mobilização do MST cobra o governo Dafne Melo da Redação

“O

Paulo César Lima

Sem-terra pressionam governo promovendo a maior jornada de mobilizações já realizada em todo o país

governo Lula tem uma dívida social com o MST, mas está em dia com as grandes empresas e com os bancos, a quem paga religiosamente bilhões de juros, todos os meses. A reforma agrária está em paralisia crônica”. Assim o Movimento dos Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) explica, em comunicado à sociedade, as mobilizações realizadas desde o dia 26 de setembro, em todo o país. As ações, que compõem a Jornada Nacional de Lutas, incluem ocupações de 21 sedes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), além de nove fazendas improdutivas e nove agências do Banco do Brasil (oito em São Paulo e uma em Pernambuco). No Estado do Paraná, sete pedágios foram fechados. João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do Movimento, avaliou: “Conseguimos mobilizar mais de 20 mil pessoas em uma das maiores jornadas que o MST já realizou”. As reivindicações do Movimento se concentram nos sete pontos acordados com o governo federal

necessários para cumprir a meta. Em audiências com o MST, o Incra e o MDA alegam que o Ministério da Fazenda está retendo os recursos.

NEGOCIAÇÕES

Trabalhadores sem-terra ocupam sede do Incra em São Paulo e outras capitais, para cobrar do governo a reforma agrária

em duas ocasiões: na divulgação do Plano Nacional de Reforma Agrária, em novembro de 2003, e na Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em maio deste ano. Segundo Rodrigues, os dois pontos principais são o cumprimento das metas de assentamento e a atualização do índice de produtividade. Quando assumiu o governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu assentar 400 mil

famílias em quatro anos. Até agora, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), foram assentadas apenas 38,3 mil famílias. Este ano, a meta é de 115 mil, mas, das famílias do MST, apenas 4 mil foram assentadas. Já a revisão dos índices de produtividade, que permanecem os mesmos desde a década de 1970, aumentaria o número de terras destinadas à reforma agrária. O Ministério do Desenvol-

vimento Agrário (MDA) encaminhou os novos índices ao Palácio do Planalto, em abril. Entretanto, a portaria que oficializaria os novos números ainda não foi publicada. Entre as outras reivindicações, estão a garantia das cestas básicas mensais para acampados, a reestruturação do Incra, a criação de um programa especial de crédito para assentados e a liberação da suplementação orçamentária com os recursos

CARAJÁS

INDÍGENAS

STF liberta coronel condenado por massacre do Setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Pará, a decisão é reflexo de uma estratégia do Poder Judiciário para inocentar o verdadeiro mandante do massacre: o governo do Pará. “Tentou-se colocar Pantoja como único culpado. Mas agora, como se viu, foi uma grande estratégia para que ninguém levasse a culpa, nem mesmo o Pantoja, que foi o coronel que deu ordem direta para que os policias atirassem”, diz o advogado. O massacre aconteceu dia 17 de abril, quando os sem-terra bloqueavam uma rodovia no sul do Pará para pedir cestas básicas às famílias acampadas. Eles foram cercados por policias militares que atiraram à

Depois de ser condenado a 228 anos de prisão pela morte de 19 sem-terra, o coronel Mário Colares Pantoja está em liberdade. Dia 24 de setembro ele deixou o quartel da Polícia Militar, em Belém (PA), amparado por um habeas corpus concedido pelo ministro Cezar Peluzo, do Supremo Tribunal Federal. Com isso, Pantoja aguarda, confortavelmente, em sua casa, o julgamento de seus recursos ao processo. O coronel comandou a tropa envolvida na morte dos trabalhadores rurais, em 1996, no episódio conhecido como “Massacre de Eldorado dos Carajás”. Para o advogado João Paulo Santos,

queima-0roupa, deixando 19 mortos e quase 70 feridos. Nove anos depois da chacina, o MST relembra, todos os meses de abril, os mártires e luta pelo fim da impunidade do caso, como conta João Paulo Santos. “No próximo ano nós vamos ter mais mobilizações por causa dos dez anos de Eldorado dos Carajás. Enquanto o Pará não fizer reforma agrária, e como não fez, os massacres vão continuar existindo. O latifúdio e a elite paraense continuam atacando e matando muita gente”, analisa Santos. Dos envolvidos no caso, o único que está preso é o major José Maria Pereira de Oliveira, com sentença de 154 anos. Os 142 policiais que participaram da ação foram inocentados.

VIOLÊNCIA NO CAMPO

De janeiro a agosto deste ano, as ocupações de terra caíram quase pela metade em relação ao mesmo período de 2004. Ainda assim, mais pessoas foram assassinadas. Dados divulgados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que houve 257 ocupações (envolvendo 31.509 famílias) contra 429 (66.250 famílias) no mesmo período do ano passado e que o número de novos acampamentos diminuiu de 132 (18.590 famílias) para 43 (7.897 famílias). Apesar disso, o número de pessoas assassinadas em conflitos no campo subiu de 27 para 28. Só no Pará, foram 14 mortes. Em seguida, vem o Mato Grosso, com três. Os Estados da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Maranhão aparecem na lista com duas mortes cada. O levantamento da CPT registra ainda, neste primeiro semestre, 27 tentativas de assassinato, 114 ameaças de morte, 2 pessoas torturadas, 52 agredidas fisicamente, 144 presas e 80 feridas. No total, contabilizaram-se 794 conflitos envolvendo 615.260 pessoas – o que representa, em relação ao primeiro semestre de 2004, uma redução de 44% nos con-

Arquivo Brasil de Fato

Ocupações caem, mortes aumentam

De acordo com a CPT, de janeiro a agosto deste ano, houve 794 conflitos no campo

flitos e de 26% no número de pessoas envolvidas. Em contrapartida, chama atenção o aumento de 31% do número de pessoas envolvidas por conflito – 774 pessoas, em média.

IRMÃO DE DOROTHY Em Brasília, David Stang, irmão da missionária estadunidense Dorothy Stang, assassinada em fevereiro, em Anapu, no Pará, encontrou-se com o ministro do Desenvolvimento Agrário Miguel Rossetto e com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, para pedir que as investigações da Polícia Federal não

parem até que outros mandantes do crime sejam encontrados. No mesmo Estado, a 148 quilômetros de Marabá, 80 famílias foram despejadas ilegalmente pelas polícias militar e civil, no dia 23 de setembro. De acordo com a CPT, não havia respaldo legal para a desocupação. O despejo aconteceu, segundo a CPT, contra a decisão do juiz Líbio Moura que, no dia 5 de maio, havia negado a ação de reintegração de posse pedida pelo fazendeiro. A fazenda Ponta da Serra está na lista do Ministério do Trabalho por ter sido flagrada na prática de trabalho escravo, em 2003.

Pataxó retomam área invadida pela Veracel Renata Carvalho/ Agência A tarde/AE

Beatriz Pasqualino de Brasília (DF)

da Redação

Representantes da direção nacional do MST fizeram, no dia 27 de setembro, uma reunião com representantes do governo. Estavam presentes a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Luiz Dulci, o presidente do Incra, Rolf Hackbart, e o secretário executivo do Ministério do Planejamento, João Bernardo de Azevedo Bringel. Rodrigues contou que, apesar de ter ouvido as preocupações dos sem-terra, “o governo apresentou propostas muito genéricas”. Ele alerta que, enquanto as negociações não avançarem, as sedes do Incra permanecem ocupadas e as mobilizações continuam. Em nota oficial divulgada no dia 27 de setembro, o Ministério do Desenvolvimento Agrário declarou que as ocupações “prejudicam o fluxo do trabalho para cumprir a meta” e que “a procuradoria do Incra já encaminhou o pedido de reitegração de posse dos prédios ocupados”.

Pataxó retomam terras invadidas pela Veracel Celulose, no sul da Bahia

Cristiano Navarro e Priscila Carvalho de Boa Vista (RR) Na madrugada do dia 27 de setembro, 40 famílias do povo indígena Pataxó retomaram parte do seu território tradicional, que estava sob o domínio da empresa Veracel Celulose, e iniciaram a derrubada das árvores de eucalipto. A área está localizada no entorno do Monte Pascoal, no sul da Bahia. A ação do índios, que também representa uma manifestação contra a monocultura de eucalipto – que destrói plantas nativas, coqueirais e atinge fontes de água – aconteceu no momento em que a Veracel Celulose inaugurava a sua fabrica na região, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva marcada para o dia 28 de setembro. Em Roraima, os cinco povos que vivem na terra indígena Raposa Serra do Sol, no extremo norte do Estado, estão em festa. Macuxi, Wapichana, Patamona, Ingarikó e Taurepang celebram, desde o dia 21 de setembro, a homologação da terra, em área continua, realizada em 14 de abril. Na madrugada de 17 de setembro, cientes dos preparativos da comemoração, fazendeiros reagiram queimando o Centro de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol. Um grupo de 150 homens armados in-

vadiu o local destruindo uma igreja, um hospital e uma escola, deixando feridos um professor e um homem que estava sendo removido por uma ambulância. No local, onde se localizava a antiga Missão Surumu, foram realizadas as primeiras assembléias indígenas da região, que marcaram o fortalecimento da organização do movimento. “O trabalho de todos estes anos é conseqüência da opção feita em favor dos pobres pela Diocese Roraima”, explica o padre Lírio Girardi, que, militando junto aos povos indígenas desde 1975, escapou de inúmeras tentativas de agressão e morte. Durante a madrugada do segundo dia de festas, uma das pontes da principal estrada que dava acesso à festa foi incendiada pelo mesmo grupo que destruiu Surumu. Nenhuma providência foi tomada pelo governo do Estado ou federal para que a ponte fosse restaurada e os convidados tiveram dificuldades para retornar. Duas semanas antes dos dois atentados, a Polícia Federal do Estado de Roraima já havia emitido um relatório antecipando os acontecimentos. Assim mesmo, nenhuma providência preventiva foi tomada. Ainda segundo informações da Polícia Federal, esse grupo é responsável pelo incêndio de três comunidades em novembro de 2004 e pelo seqüestro de três missionários católicos em janeiro de 2004.


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Espelho

DANTAS NO BANCO DOS RÉUS

Privatizações voltam à cena

da Redação Ligações perigosas Há algumas semanas, vários jornais e revistas simpatizantes do PT – alguns inclusive com maior independência política e editorial – ofereceram ao ex-ministro e deputado federal José Dirceu espaço para se defender das acusações contra ele. A resposta foi negativa, com a justificativa de que estava negociando entrevistas exclusivas com veículos da grande imprensa burguesa. Dia 25 de setembro, a Folha de S. Paulo publicou uma dessas entrevistas. Dirceu segue a mesma política de comunicação do governo Lula. Pura ingenuidade Em carta enviada aos seus alunos, a professora Marilena Chauí, filósofa da Universidade de São Paulo e intelectual orgânica do PT, teceu muitas críticas ao comportamento da imprensa empresarial e aos jornalistas desses veículos. Assim como ela, dirigentes petistas e integrantes do governo Lula estão demonstrando indignação diante dos ataques da mídia burguesa. Porém, muitos deles continuam bajulando esses veículos na ilusão de que eles pudessem abandonar seus compromissos de classe. Danos programados A Revista do IDEC, edição de setembro, publica reportagem sobre “novas drogas, velhos problemas”, que mostra a insistência da indústria farmacêutica em manter no mercado vários remédios suspeitos de causar reações alérgicas, doenças letais (como a Síndrome Stevens-Johnson) e aumentar o risco de ataques cardíacos. Prevalece, nesses, o interesse do lucro. A quem compete fiscalizar essas empresas e cuidar da saúde pública? Estafeta global Especialista em tecnologias da informação, o jornalista Ethevaldo Siqueira, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, criticou o ministro das Comunicações, Hélio Costa, dizendo, entre outras coisas, o seguinte: “Acho, sinceramente, que ele é um retrocesso para o Brasil e para as Comunicações”. Tudo indica que a disputa entre emissoras de TV e empresas de telefonia – para a transmissão de conteúdos via celular – está bastante acirrada. Uma briga da pesada com muita grana em jogo. Serviço imperial A imprensa burguesa brasileira descobriu, na última semana, que a influência dos Estados Unidos no Paraguai, inclusive com a concentração de forças militares, pode provocar instabilidade na América do Sul e prejudicar as relações dos países do Mercosul. No entanto, toda a mídia empresarial deu espaço para o governo Bush bombardear a opinião pública com a fantasiosa história de que a “rede terrorista” estava baseada na tríplice fronteira BrasilParaguai-Argentina. Tudo muito bem engendrado. Retrocesso legal Em artigo veiculado pela Agência Adital, Luiz Basségio, do Serviço Pastoral dos Migrantes, alerta para as restrições existentes no anteprojeto da nova lei dos estrangeiros, elaborado pelo Ministério da Justiça, e pede mais tempo – pelo menos 120 dias – para que seja debatido pela população. O texto do anteprojeto não trata do respeito aos direitos humanos, não faz referência ao trabalho escravo e não menciona o estatuto da anistia. Ou seja, a proposta é mais autoritária do que a lei atual.

Para horror da oposição e aplauso da situação, dono do Opportunity apóia CPI da privataria César Fonseca de Brasília (DF)

O

banqueiro Daniel Dantas, na quarta, 21 de setembro, nas CPIs dos Correios e do Mensalão, despertou a ira dos governistas e a defesa dos oposicionistas ao responder sobre o processo de privatização no governo FHC, depois de provocado pela senadora Heloisa Helena (PSol-AL) e verbalmente agredido pela senadora Ideli Salvatti (PT-SC). Em torno dele, reacenderam fogueiras entre tucanos e petistas que arderam durante o processo de privatização na Era FHC. E que podem voltar a incendiar as relações entre situação e oposição, na Era Lula, como desdobramento da crise política em curso, para desembocar no processo sucessório do próximo ano. Os oposicionistas, com a bandeira de combate à corrupção do mensalão, e os governistas, com a de ataque, tardio, à maracutaia das privatizações. A reação quase esquizofrênica do deputado Eduardo Paes (PSDBRJ), à peroração de Ideli Salvatti contra Dantas, demonstrou o potencial de fogo que o assunto comporta, para servir aos governistas como contraponto aos ataques dos oposicionistas. Restaria saber se o presidente Lula estaria disposto a apoiar a criação da CPI da Privatização, defendida pelo próprio Dantas, para surpresa desagradável dos tucanos e pefelistas, e agradável dos petistas e aliados.

ACORDO ESPÚRIO Lula, ao assumir, em vez de colocar o assunto privatização em pratos limpos, como exigia quando na oposição, mudou de tática. Predominaram os termos do acordo contido na “Carta aos Brasileiros”. O passado da privataria, o governo agindo no limite da irresponsabilidade, tinha que ser esquecido. Era o preço negociado pelos petistas com os tucanos, a fim de serem aceitos pela comunidade financeira internacional. As privatizações não prosseguiram no governo petista, mas sua gênese não foi explicada. Dantas cuidou de fazê-lo, mesmo à prestação, no seu depoimento.

AOS FATOS O banqueiro baiano foi claro. Tudo, disse, começou quando o Citibank o convidou, ainda nos primórdios do processo privatista, para articular pessoas interessadas em formar grupos de investimentos. Nascia o Banco Opportunity. Com base nas avaliações do mercado internacional sobre a economia brasileira, destroçada pela crise da dívida externa em 1982, Dantas sabia que as privatizações seriam inevitáveis. Os credores forçariam essa via, porque as estatais foram levadas a se endividar pesadamente, na fase pós-1982, tomando empréstimos externos para fechar o déficit em conta corrente, e salvar a economia da bancarrota. Chegaria, portanto,

Valter Campanato/ABR

da mídia

NACIONAL

Dantas, presidente do Grupo Opportunity, se valeu da isenção de impostos para formar consórcios em vista da privatização

PREMEDITAÇÃO Como liquidar a dívida? Calote ou privatização. A primeira alternativa viria tênue no governo Sarney. A fraqueza política do expresidente, refém do PMDB de Ulisses Guimarães, que desencadeou a mágica do Plano Cruzado, o condenou. Os credores derrubaram o ministro da Fazenda, Dílson Funaro, e sua equipe. A inflação, diante da resistência dos credores em continuar emprestando para fechar o déficit, explodiu, chegando a 80% ao mês. Fechada a via do calote, e em meio a um cenário de hiperinflação, prevaleceu o preço cobrado pelo capital para continuar emprestando ao país: privatizações. Elas expressariam o aval do governo aos credores, de olho na receita delas, para amortização de dívidas e pagamento de juros. Collor tentou acelerar o processo, mas deu no que deu. Com Itamar Franco, a ação privatizadora detonada pelos credores seguiu adiante, e com ele começaram as negociações com os títulos podres da dívida externa.

ESPERTEZA TUCANA Isenção de impostos foi o instrumento fundamental ao qual Daniel Dantas lançou mão para formar consórcios empresariais destinados a participar da privatização. Diversos compradores, agrupados em fundos de participações, formavam, junto com a empresa vendedora, a estatal a ser privatizada, uma associação na qual o comprador, o fundo de investimento, fazia aporte de capital sobre o qual não se cobrava imposto. Essa foi a esperta jogada da elisão fiscal, aprovada no Congresso pela maioria governista tucana. A empresa vendedora entrava com seu ativo e a compradora com capital. Feita a operação (casamento), seguia-se o descasamento. A empresa vendedora abocanhava o dinheiro, e a compradora os ativos. Casamento feito, casamento desfeito. Passada a farra da privataria, o processo continuou, durante a sobrevalorização cambial artificial da Era FHC, que barateou o preço dos ativos nacionais, privados e estatais. Na fase da fusão, continuaram os casamentos e as separações empresariais, cujo resultado desembocou em violenta sobre-acumulação de capital na economia, com ajuda do BNDES.

BENESSES FISCAIS O governo dos Estados Unidos, depois de quebrar os países endividados, ao elevar a taxa de juros de 5% para 17% em 1981, lançou o Plano Brady. Com ele, a dívida velha seria trocada por dívida nova, com prazos de vencimentos mais largos e juros pós-fixados. Os títulos velhos apodreceram, mas não foram destruídos. Seus detentores puderam transformá-los em moeda de privatização, estratégia que foi violentamente criticada pela então oposição petista. No poder, FHC permitiu a utili-

ÍNTIMOS DO PODER

Roosewelt Pinheiro/ABR

Experiências populares A TVE do Rio de Janeiro, a TV Cultura de São Paulo e demais emissoras da associação das TVs educativas e culturais, iniciam dia 1º de outubro, às 8 horas, a transmissão de um novo programa baseado em experiências populares, no campo da educação, do trabalho e da melhoria da qualidade de vida. A série prevê 52 programas de meia hora gravados em várias regiões do país. O financiamento é da Fundação Banco do Brasil. Trabalho jornalístico Em tempos de muita confusão política e de valores é sempre bom recuperar – para reflexão – a seguinte frase do jornalista Cláudio Abramo: “O jornalismo é o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter”.

zação da elisão fiscal para estimular associações de empresas vendedoras e compradoras por meio de terceiras empresas, joint-ventures através das quais novos aportes de capital foram considerados livres do pagamento do imposto de renda.

o momento de queimar patrimônio público, para liquidar dívidas asseguradas em avais do Tesouro Nacional. Começaria o vale-tudo das privatizações.

Marcos Valério ajudou a aproximar o Grupo Opportunity do governo Lula

As ligações de Daniel Dantas com o governo FHC, no auge das privatizações, ocorreram em decorrência da dinâmica do próprio negócio. Pérsio Arida, presidente do Banco Central de 1994 a 1998, tornou-se consultor do Banco Opportunity. Helena Landau, que circulou no BNDES no governo FHC, e pontificou no Conselho Nacional de Desestatização, igualmente, foi parar na folha de pagamento de Dantas, como consultora do Opportunity. André Lara Resende, que, com Arida e Edmar Bacha, articularam o Plano Real, também jogou ao lado de Dantas, conforme evidenciaram declarações dele gravadas em telefonemas grampeados para o expresidente do BNDES, Luis Carlos Mendonça de Barros, operador-mór da privatização. Argumentavam ambos em favor dos interesses articulados por Dantas para participar dos leilões de privatização. Diante de tantas evidências, o banqueiro, afinal, não teve outra

alternativa senão dizer que concordaria com a realização de uma CPI da Privatização.

FUNDOS DE PENSÃO Depois de aceitar jogar o jogo privatista, o dono do Opportunity armou uma intrincada teia de associações de cotistas de investimentos. No fundo Opportunity, só poderiam participar não-residentes no Brasil. Assim, como residente, o Citibank ficou proibido de gerir fundo de investimento em seu próprio nome. E Dantas, com a âncora do Citi, atraiu os poderosos fundos de pensão para participar das privatizações, sob a gestão do Opportunity. Assim, o banqueiro foi obrigado a se relacionar com o governo Lula, para dar seqüência à gestão dos negócios fechados na fase FHC – as operadoras Brasil Telecom, Amazônia Celular e Telemig Celular. Afinal, os maiores acionistas do Opportunity, ao lado do Citibank, são os fundos de pensão, administrados tradicionalmente por petistas.

VALE-TUDO Lula, como prometeu, não mexeu no vespeiro das privatizações. Não demonizou abertamente Dantas, mas, nos bastidores, sua equipe procurou detoná-lo. Porque alguém como o dono do Opportunity à frente dos fundos era algo impensável. Por isso, Dantas buscou a melhor forma de se aproximar do novo poder. A ponte escolhida foi Marcos Valério, cujo passe fora comprado dos tucanos, em Minas Gerais, pelos petistas vencedores em 2002. Por meio dele, chegaria à cúpula petista. No governo, conseguiu a simpatia do ex-ministro José Dirceu, da Casa Civil, mas não a de Luiz Gushiken, todo-poderoso titular da Secretaria de Comunicação, influente junto à direção dos fundos de pensão. Os tucanos, como tem deixado claro o prefeito José Serra, querem voltar para completar o processo de privatização, que teria ficado inacabado. Já Lula, se não moveu uma palha para investigar o assunto, pelo menos interrompeu o processo. O depoimento de Dantas, nas CPIs, assim, teve o mérito de desatar um nó. Resta saber se o presidente Lula estaria disposto a marchar com os petistas que vêem na CPI da Privatização o contraponto dos estragos que provocam na nação petista o desenrolar das CPIs dos Correios e do Mensalão, responsáveis por tomarem 50% dos 53 milhões de votos que Lula conquistou em 2002.


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NACIONAL A VERDADEIRA CRISE

A produção da desigualdade brasileira Governo Lula gasta R$ 105 bilhões com juros da dívida e corta ainda mais investimento na área social

I

magine-se um governo que, em apenas oito meses de gestão, conseguisse: Acabar com a falta de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) no Sistema Público de Saúde (SUS) (R$ 78 milhões anuais); Construir 426 hospitais como o da Cidade Tiradentes, na cidade de São Paulo (R$ 26 bilhões), em uma área de 27 mil metros quadrados, 280 leitos, capacidade para atender 25 mil pessoas por mês; Construir e manter mais 173 universidades como a Federal do ABC, na região metropolitana de São Paulo (R$ 26 bilhões), que será inaugurada em 2006, beneficiando 3 milhões de estudantes universitários e empregando 11 mil professores; Assentar 4,2 milhões de famílias sem-terra, de acordo com o Plano Nacional de Reforma Agrária (R$ 26 bilhões); Construir 1,3 milhão de moradias populares, eliminando 30% do déficit habitacional urbano (R$ 26 bilhões). Essas seriam algumas das realizações que poderiam constar, por exemplo, da biografia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se, em vez de pagar os juros da dívida pública, seu governo tivesse decidido investir aqueles recursos em áreas sociais. Entre janeiro e agosto de 2005, porém, o governo gastou R$ 105 bilhões com estes compromissos. Eis por que o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Snow, disse que o ministro Palocci “é a voz da razão da economia mundial”. E também por que, em

105 bilhões fossem usados para pagar mais aposentadorias, por exemplo, a situação seria outra, porque os beneficiados consumiriam mais, movimentando a economia e gerando mais empregos”, explica o economista.

Antonio Milena/ ABR

Jorge Pereira Filho da Redação

MAIS CORTES?

O secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Snow, e Palocci, da Fazenda: política econômica para mercado financeiro

meio à crise, o ministro continua protegido pela imprensa comercial, pelo mercado financeiro e pelos partidos mais à direita no espectro político. Afinal, com a política de Palocci, os R$ 105 bilhões foram transferidos para banqueiros e investidores que compram os títulos da dívida brasileira, atraídos pelas elevadas taxas de juros. (Veja entrevista à página 10) Enquanto isso, a crise que, de fato, afeta diretamente o povo brasileiro continua sem ser enfrentada. Com a falta de leitos de UTI no SUS, pacientes à morte ainda são atendidos nos corredores dos hospitais, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste. Estudo do Ministério da Saúde, de 2004, apontava a necessidade imediata de criar mais 1,5 mil leitos no país.

Brasil é o segundo país mais desigual da América Latina, e o oitavo do mundo. Os brasileiros 10% mais ricos abocanham 68 vezes mais do que os 10% mais pobres. Quando os juros sobem, os 10% privilegiados ficam ainda mais ricos, pois são eles que investem no mercado financeiro. Já os 10% empobrecem ainda mais porque continuam pagando impostos, mas sem qualquer retorno do Estado. Além disso, a maior parte dos R$ 105 bilhões destinados à quitação da dívida prejudicam o funcionamento da economia. “Banqueiros e rentistas não vão gastar esse dinheiro todo, vão comprar novos títulos da dívida. E, assim, travar a economia”, explica Gonçalves. A situação seria diferente se, por exemplo, o governo aplicasse os recursos na área social. “Se os R$

Nas universidades federais, por sua vez, professores fazem greve por melhores salários (veja reportagem abaixo). O déficit habitacional cresce e prefeituras reacionárias (como a do tucano José Serra, em São Paulo) erguem barreiras antimendigos para expulsar os sem-teto das áreas nobres da cidade. O desemprego permanece elevado (veja página 7).

DESIGUALDADE “Estamos cada vez mais subdesenvolvidos com o governo Lula. Transferindo dinheiro para banqueiros e rentistas, você aumenta a desigualdade”, argumenta Reinaldo Gonçalves, economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que o

Para a educação, nada

Argentina mostra que alternativas existem

Luís Brasilino da Redação O leitor fique à vontade para escolher seu próprio adjetivo para a proposta de reajuste que o governo fez, em 2005, aos servidores públicos federais: 0,1%. Mais nada. Por isso, funcionários e professores de diversas universidades federais estão em greve – 27 dentre os associados do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN). A reivindicação da Coordenação Nacional dos Servidores Públicos Federais (Cnesf) é de 18% de aumento, o equivalente às perdas com a inflação durante o governo Lula. “Sabemos que é impossível um único mandato recuperar as perdas de mais de 100% que tivemos nos últimos dez anos”, pondera Céres Maria Ramires Torres, diretora do Andes. Segundo ela, graças à política econômica iniciada por Fernando Henrique, 20% dos recursos da saúde e da educação são destinados ao pagamento da dívida externa, via Desvinculação das Receitas

CMI

Argentina rompeu com as orientações do Fundo Monetário Internacional (FMI)

ram por conta própria a investigar os documentos da dívida. A análise não terminou, mas os resultados preliminares são alarmantes: por exemplo, cerca de 91% dos contratos são corrigidos por juros flutuantes e 49% estabelecem um foro estrangeiro para a solução de conflitos – cláusulas inconstitucionais. Em tese, a auditoria poderia iniciar um processo judicial que reduziria consideravelmente a dívida brasileira em função da ilegalidade dos contratos.

CONTROLE DE CAPITAIS As propostas de cobrar impostos sobre movimentações financeiras internacionais, ou impedir, por prazo pré-determinado, a saída de recursos especulativos de determinado país, conhecidas como controle do fluxo de capitais, também têm que ser consideradas. Entre 1997 e 1998, a Malásia

passou a adotar, dentre outras medidas, a taxação da saída de capitais em razão inversamente proporcional ao seu tempo de permanência no país – tanto maior quanto menor o tempo de permanência. “Os resultados dos controles foram extremamente positivos”, escrevem os economistas Fernando Cardim de Carvalho e João Sicsú, no texto Teorias e Experiências de Controles do Fluxo de Capitais: Focando o caso da Malásia. Dentre os principais, anote-se que não houve fugas significativas de capital por canais legais ou ilegais; o fluxo comercial com o exterior não foi afetado; a pressão especulativa foi dissolvida e o câmbio se manteve fixo; foram criadas condições favoráveis para manter as políticas monetária e fiscal expansionistas; em 1999, o PIB cresceu 5,4%, em 2000, 7,8%, em 2001, 7,0%. (JPF e LB)

da União (DRU). Além disso, boa parte da verba dos orçamentos fica contingenciada. “Não temos contratação de pessoal há cerca de dez anos, o que resulta em precarização da força de trabalho. Além disso, as bibliotecas e os laboratórios estão totalmente sucateados e a situação dos estudantes é cada vez pior. Restaurantes, antes gratuitos, ficaram dispendiosos”. Isso, acrescenta, para não falar em custos de transporte, entre outros. Assim, conclui, eles são levados a aceitar bolsas de trabalho – que deveriam ser dadas para funcionários públicos – e ficam presos a uma função que não os qualifica para exercer sua profissão. E a tendência é a situação piorar. Sem dinheiro, as instituições de ensino precisam buscar outras formas de se manter. Leia-se, privatização. A mais nova iniciativa do governo federal nesse sentido é a educação a distância. “Eles querem oferecer, já em 2006, cursos de graduação, mestrado e doutorado financiados pela iniciativa privada”, denuncia Céres.

Agência Brasil

A imprensa empresarial divulgou, sem muito destaque, os resultados das contas públicas do país entre janeiro e agosto de 2005. No entanto, apesar de mostrar que a política econômica do governo Lula não conseguiu reduzir a dívida, como de hábito, não mencionou possíveis alternativas para superar as restrições impostas pelo pagamento da dívida. Mas divulgou a promessa do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, de que, em 2006, a dívida vai cair. A mídia não achou conveniente lembrar, por exemplo, que a vizinha Argentina teve sucesso ao romper com as orientações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e impor uma redução de 75% do valor da sua dívida externa aos credores. Essa foi, simplesmente, a maior negociação da história de diminuição do endividamento de um país com investidores privados. “Isso mostra que é possível a ruptura com esse padrão de política macroeconômica e de inserção internacional nociva ao país”, avalia o economista da UFRJ, Reinaldo Gonçalves. Detalhe: a economia argentina cresceu 8,9% nos oito primeiros meses do ano. Outra opção para enfrentar o problema da dívida defendida por movimentos sociais, intelectuais e alguns partidos políticos é fazer uma auditoria da dívida. Em 2000, em um plebiscito organizado pelas forças populares, 6 milhões de pessoas votaram a favor de uma análise dos contratos do endividamento do Brasil. Como o governo ignorou o pedido, organizações sociais e sindicatos iniciaram uma Auditoria Cidadã da dívida, ou seja, começa-

Para piorar a situação, o governo cortou R$ 79 bilhões do orçamento público para fazer um superavit primário de 6,26% do PIB. Diversos programas sociais, como o da reforma agrária (veja reportagem à página 3), e investimentos produtivos foram paralisados. Mesmo assim, o dinheiro foi insuficiente e o governo contraiu mais empréstimos para quitar os R$ 105 bilhões de compromissos. Mais: mesmo pagando os juros, o valor da dívida pública não diminuiu: em agosto, continuou sendo o equivalente a 51,7% do Produto Interno Bruto (PIB), mesmo índice de janeiro. Contudo, o governo vê o que comemorar. Em Washington, o ministro da Fazenda bradou, após a assembléia do Fundo Monetário Internacional, que os indicadores da economia brasileira nunca estiveram tão sólidos. Para Gonçalves, essa cantilena esconde o desempenho medíocre da economia. “O governo Lula vai crescer, em média, 3% ao ano, enquanto a economia mundial crescerá 4,3%”, argumenta. Para ele, com esse desempenho, o governo consegue gerar emprego para 1,4 milhão de pessoas, por ano. Só que, também por ano, cerca de 1,7 milhão de jovens entram no mercado de trabalho. “O fato é que Lula, ao final de seu mandato, será responsável por colocar no desemprego 1 milhão de pessoas”, contabiliza o economista.

Estudantes sofrem com o sucateamento das bibliotecas e dos laboratórios


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NACIONAL ESQUERDA

Em crise, PT perde força

Hamilton Octavio de Souza

Após resultado das eleições internas, deputados e militantes se desfiliam e se juntam ao P-Sol

Nenhuma cobrança Em debate na PUC-SP, semana passada, o economista e professor Carlos Eduardo Carvalho, que já fez parte da coordenação do programa econômico do PT, afirmou que as maiores surpresas da trajetória petista dos últimos anos foram a adesão integral ao neoliberalismo, sem negociar nada em troca, e a apatia da base partidária em aceitar essa entrega sem maiores resistências e contestações. Qual o mistério? Rearticulação geral Conforme cantado em prosa e verso, a debandada do PT aumentou após o resultado da eleição interna, na qual a corrente Campo Majoritário recebeu o apoio de mais de 40% dos filiados e continuará dominando a máquina partidária. Alguns grupos de ex-petistas foram para o P-SOL, outros caminham para o PDT, PSB, PSTU, e muita gente vai esperar novas propostas de esquerda e a re-acomodação de forças que deve ocorrer nos próximos dois anos. O novo nascerá do caos. Frentão eleitoral Considerado um partido-ônibus, que abriga diferentes grupos e caciques regionais, o PMDB ensaia projeto mais ambicioso do que a limitada candidatura de Anthony Garotinho para presidente da República, em 2006. O aumento da bancada no Congresso Nacional, a adesão de governadores e a filiação do vicepresidente José Alencar, revela que a articulação pretende surpreender os “favoritos” PT e PSDB. Só resta conciliarem as ambições nos mesmos objetivos. Domínio colonial O líder do Exército Popular Porto-riquenho, Filiberto Ojeda Rios, verdadeiro mito da luta de independência de seu país, foi assassinado dia 24 de setembro pelo FBI, durante ação policial para capturá-lo. Participaram da operação mais de cem policiais, na cidade de Hormigueiro, a 150 quilômetros da capital San Juan. Filiberto Ojeda Rios, chefe do grupo Los Macheteros, tinha 72 anos de idade e vivia na clandestinidade desde 1990. Estafeta imperial O secretário do Tesouro dos Estados Unidos, John Snow, fez vários elogios ao ministro brasileiro da Fazenda, Antônio Palocci, durante encontro com empresários e banqueiros no dia 26 de setembro, em Washington. Já em Brasília, o Banco Central anunciou que o pagamento de juros aos credores estrangeiros, este ano, ultrapassou a cifra dos R$ 100 bilhões. É tudo mera coincidência. Processo civilizatório O Sindicato dos Professores de São Paulo lançou ampla campanha em defesa do desarmamento, pela paz e contra a violência, voltada especialmente para a conquista de eleitores contra o comércio de armas de fogo no referendo do dia 23 de outubro. A campanha tem vídeo e cartilha com informações e dados que comprovam a relação entre desarmamento e a redução de homicídios nos grandes centros urbanos. Contra o comércio de armas, vote SIM. Diáspora socialista “Estou convencido de não ter outra alternativa para dar conseqüência a uma opção socialista feita no longínquo ano de 1961 e que mantive até hoje”. A afirmação consta de artigo escrito por Plinio Arruda Sampaio para explicar sua saída do PT. Segundo ele, “troco de instrumento para não abandonar a tarefa, pretendo continuá-la com a mesma fé e a mesma garra”.

Dafne Melo e Tatiana Merlino da Redação

mão, mas eu avisei que se houvesse fraudes, não ficaria”, lembra o exdeputado.

A

manutenção da hegemonia do Campo Majoritário no Diretório Nacional e o resultado do Processo de Eleições Diretas (PED), confirmando o afastamento do Partido dos Trabalhadores dos princípios socialistas. Esses foram os principais fatores listados pelos dissidentes do partido para a desfiliação em massa ocorrida no início da semana. Dia 26 de setembro, nomes de destaque como Plinio Arruda Sampaio (ex-deputado federal pelo PT e quarto colocado na eleição para a presidência do partido, com cerca de 40 mil votos), os deputados federais Ivan Valente (SP), Orlando Fantazzini (SP), Maria José Maninha (DF) e Chico Alencar (RJ) – além do exvice prefeito de São Paulo, o jurista Helio Bicudo, ainda sem partido –, anunciaram sua migração para o Partido Socialismo e Liberdade (P-Sol), que também recebeu cerca de 500 militantes do PT ligados a movimentos sociais e sindicatos. “Saí do PT porque ele deixou de ser PT e se tornou um partido da ordem”, afirma Sampaio, um dos fundadores do partido. Raul Pont, candidato da esquerda petista vinculado à tendência Democracia Socialista (DS), que irá para o segundo turno das eleições enfrentando o atual secretário-geral do PT, Ricardo Berzoini, não tem chances de derrotar o Campo Majoritário, na opinião de Sampaio. “Ele não representa uma possível mudança do partido. Exemplo disso é a tendência dele, que tem o Ministério

MIGRAÇÃO

do Desenvolvimento Agrário, mas não faz reforma agrária”, diz o ex-deputado, referindo-se a Miguel Rossetto, ligado à DS. Na opinião do deputado Fantazzini, a ida de Pont para o segundo turno do PED também não abre espaço para alteração nos rumos do PT. Ele lembra que, no PT, a direção é colegiada, e que o Campo Majoritário já tem a maioria: “O Raul apenas vai fazer papel de porta-voz dessa direção, vai ser uma rainha da Inglaterra”. Opinião de consenso entre os dissidentes, que afirmam ter travaRoosewelt Pineiro/ABR

Abuso multinacional O Instituto Nacional de Propriedade Industrial entrou na Justiça para interromper o pagamento de royalties à empresa estadunidense Monsanto, relativo às sementes da soja transgênica do tipo Roundup Ready, uma vez que o registro dessa soja completou 20 anos no dia 7 de agosto e agora ela é, segundo a lei de patentes, de domínio público. No entanto, a Monsanto continua tirando uma fortuna dos agricultores brasileiros que embarcaram no golpe da multinacional.

Márcio Baraldi

Fatos em foco

Os deputados federais da esquerda do PT saem do partido e se filiam ao P-Sol

do uma luta interna pela retomada do rumo do partido, os esforços foram em vão. “Eu e o deputado Ivan Valente, que pertencíamos à Ação Popular Socialista (APS), sempre tivemos divergências com o governo Lula. Fomos punidos por não votar a favor da reforma da Previdência, contra a proposta do salário-mínimo e contra a expulsão da senadora Heloísa Helena”, lembra a deputada Maninha. A manutenção da política econômica praticada durante o governo Fernando Henrique Cardoso foi outro fator que levou à desfiliação dos parlamentares, entre eles o deputado João Alfredo (PT-CE), que anunciou sua ida para o P-Sol, dia 21 de setembro. “Ficamos apostando na idéia de um governo em disputa, que era uma ilusão. O que existe hoje é a caricatura de um partido que se rendeu à burocracia”, afirma o deputado cearense, que lamenta ter demorado tanto para pedir a desfiliação. Um dos motivos da saída em massa da tendência à qual Sampaio pertencia foi a prática de irregularidades durante o processo de eleições internas do partido, como pagamento de dívidas e transporte de eleitores no primeiro turno. “Estão dizendo que eu deixei o Raul na

Os dissidentes afirmam ter migrado para o P-Sol porque o partido ainda está em formação e ofereceu uma “filiação democrática” aos militantes. Além disso, o partido formado por expulsos do PT seria um defensor das bandeiras históricas do partido e do socialismo. A mudança também levou em conta o prazo de filiação partidária fixado pela Justiça Eleitoral, que se encerra dia 30 de setembro. “Mudamos agora porque temos que respeitar o prazo para mudar de partido antes das eleições do ano que vem. Nossa permanência no PT significaria nossa inviabilidade eleitoral”, lembra a deputada Maninha. Como o partido foi recém-registrado junto ao Supremo Tribunal Eleitoral, ainda discute sua carta de princípios e seu estatuto. “Não exigiram nenhum compromisso definitivo e tudo será rediscutido no ano que vem”, garante Sampaio. Com a chegada desses integrantes, o P-Sol pode assumir novos contornos, que devem ser definidos durante o congresso do partido, originalmente marcado para fins de 2005, mas adiado para início de 2006 em função das filiações. “O estatuto e o programa do partido eram provisórios. Com a legalização, vamos ter nosso primeiro congresso, onde serão definidos o estatuto e o programa oficial”, afirma João Machado, integrante da executiva provisória do P-Sol. A candidatura de Raul Pont no segundo turno deve ser afetada pela saída de Sampaio. No início do processo, as candidaturas de esquerda – Plínio, Pont e Valter Pomar – haviam acordado um apoio mútuo no segundo turno. Pont acredita que a saída de Sampaio pode prejudicar sua candidatura, mas confia na permanência dos eleitores da corrente de Sampaio no partido votando contra o Campo Majoritário. Para ele, a opção pela saída do PT foi um erro político: “É lamentável que eles tenham tomado essa atitude, pois ela representa o caminho da pulverização e da atomização da esquerda no país. Não ajuda em nada a dar um novo rumo à experiência mais importante que a esquerda brasileira construiu”.

DIREITOS HUMANOS

Febem limita acesso de juízes e entidades A partir de agora, caso juízes, parlamentares, promotores ou entidades de direitos humanos queiram entrar nas unidades da Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (Febem), terão que obter autorização dos diretores de cada unidade da fundação. Segundo portaria publicada dia 20 de setembro no Diário Oficial do Estado de São Paulo, os diretores podem decidir ainda a quais setores essas pessoas poderão ter acesso dentro das unidades. Após pressão do Ministério Público de São Paulo, a Fundação modificou o texto da portaria duas vezes na mesma semana, mas manteve a determinação de que os advogados só poderão entrar com procuração para defender os internos, e de que as entidades da sociedade civil só terão acesso às unidades se tiverem contratos ou convênio com a Febem para realizar atividades sócio-educativas dentro das unidades. O documento demonstra uma mudança de postura do governo estadual, que anunciou, em janeiro deste ano, um projeto para resolver a crise da instituição. Na época, o secretário da Justiça e presidente

da Febem, Alexandre de Moraes, iniciou uma campanha para expulsar os supostos torturadores e anunciou a abertura da Fundação para entidades da sociedade. Com a saída de Moraes, entrou Berenice Gianella, ex-secretária-adjunta da Secretaria da Administração Penitenciária. Para as organizações de direitos humanos, a medida da nova gestão é “surpreendente, extremamente autoritária e viola o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”. Além disso, a portaria revoga o artigo 46 do Regimento Interno da Febem, que dava livre acesso à presidente da Associação de Mães de Adolescentes em Situação de Risco (Amar) e do presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência ao Menor e à Família do Estado de São Paulo. Esse artigo obrigava os diretores a auxiliar as autoridades em inspeções e fiscalizações. De acordo com o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador estadual e conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), a medida também viola os direitos dos advogados. Para ele, se a

instituição está barrando a entrada das entidades de direitos humanos é “porque pretende violar direitos humanos e impedir o trabalho de fiscalização das organizações”. A assessoria da Febem disse que a portaria sobre o acesso às unidades tinha apenas “caráter preventivo” para momentos de insegurança. A instituição negou que o objetivo seja restringir o trabalho de fiscalização. Pouco dias antes da publicação da portaria, integrantes de entidades de direitos humanos foram impedidos de entrar nos quartos dos internos da unidade Tietê do complexo Vila Maria, na zona norte de São Paulo. A comissão tinha uma ordem judicial garantindo o acesso total aos quatro módulos e aos dormitórios da unidade. A visita pretendia verificar denúncias de espancamentos e tortura recebidas pela presidente da Amar, Conceição Paganele. De acordo com Alves, mesmo após conseguirem uma ordem judicial para entrar na unidade, a Febem impediu a entrada das entidades. A medida contribuiu para o afastamento da diretora da unidade Tietê da Febem, Tânia Regina

Passadore, determinado, dia 15 de setembro, pela juíza Mônica Ribeiro de Souza Paukoski, do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude. A decisão da juíza veio depois que três inspeções judiciais realizadas nos dias 18 de julho, 9 e 25 de agosto constataram uma série de irregularidades na unidade. Segundo o despacho, os adolescentes vêm sendo mantidos trancados nos quartos todo o dia. A juíza também alega que as regras impostas aos adolescentes na unidade são típicas de presídios, sendo chamadas pelos adolescentes de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Para protestar contra a publicação da portaria, entidades como Amar e Conectas Direitos Humanos estão preparando uma manifestação para dia 5 de outubro, chamada de “Campanha SOS tortura na Febem”. Marcada para as 14h, na Praça da República, Centro da capital, os manifestantes irão caminhar até o prédio da Febem, na Rua Florêncio de Abreu. “Vamos entregar um manifesto em repúdio à portaria e pedir uma audiência com a presidente da fundação”, diz Ariel de Castro Alves. (TM)


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De 29 de setembro a 5 de outubro de 2005

NACIONAL MERCADO DE TRABALHO

Há três meses, quadro é de estagnação Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

Agência Brasil

Emprego de baixa qualidade volta a crescer em agosto; queda da inflação ajuda a recuperar rendimento de ocupados EMPREGO PÁRA DE AUMENTAR...

O

mercado de trabalho entrou em fase de hibernação nos últimos três meses, refletindo uma relativa desaceleração da atividade econômica desde o final do primeiro semestre deste ano. O total de pessoas com algum tipo de ocupação nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) permanece estagnado ao redor de 19,8 milhões desde maio, com ligeira variação (0,4%) desde então – o que significou a criação de apenas 74 mil empregos em três meses, numa média mensal, portanto, inferior a 25 mil vagas. Em agosto, a taxa de desemprego média naquelas regiões manteve-se pouco acima de 9%, repetindo o resultado de junho e julho. Os números mostram, claramente, que a recuperação esboçada na primeira metade do ano perdeu fôlego nos primeiros meses do segundo semestre, ainda que a taxa de desemprego continue no nível mais baixo desde o início desta nova série da pesquisa do IBGE, em março de 2002. A versão atual do levantamento investiga a população em idade ativa com 10 anos e mais de idade, diante de um piso de 15 anos fixado na pesquisa anterior. Quando foi encerrada, a pesquisa “velha” indicava um desemprego entre 6% a 7% nas seis regiões analisadas. A novidade nos dados de agosto deste ano, conforme indica a pes-

DESEMPREGO POR SEXO

Total de pessoas ocupadas, em seis regiões metropolitanas*, em mil* Período

Ocupados

Homens

Mulheres

Ago/04

9,1

14,2

Jul/05

7,4

11,9

Ago/05

7,65

11,5

Fonte: IBGE

Taxa cresce entre homens e cai para mulheres Analisada por gênero, a taxa de desemprego aumentou de 7,4% em julho deste ano para 7,65% no mês seguinte entre os homens, recuando de 11,9% para 11,5% entre as mulheres. Em números absolutos, havia 926 mil homens desempregados em agosto, representando 4,3% mais diante dos 888 mil desempregados em julho. Para as mulheres, a tendência inverteu-se, resultado de uma queda de 3% no número de desempregadas, que saíram de 1,173 milhão para 1,139 milhão. Na comparação com agosto do ano passado, as mulheres também levam ligeira vantagem. O total de desempregadas encolheu 18,5%, com a incorporação de 288 mil trabalhadoras ao universo das pessoas com algum tipo de ocupação. No caso dos homens, o número de desempregados caiu 15,4%, refletindo a contratação de 182 mil além dos 10,990 milhões de pessoas ocupadas do sexo masculino registradas em agosto de 2004. No mês, houve crescimento do desemprego entre jovens com 15 a 17 anos (mais 9,2% em relação a julho) e entre pessoas sem instrução e com menos de oito anos de estudo (mais 1,6%). (LVF)

Ocupados

Ago/2004

19.427

Mar/2005

19.560

Set/2004

19.625

Abr/2005

19.581

Out/2004

19.666

Mai/2005

19.823

Nov/2004

19.741

Jun/2005

19.834

Dez/2004

19.765

Jul/2005

19.816

Jan/2005

19.497

Ago/2005

19.897

Fev/2005

19.430

... E DESEMPREGO PÁRA DE DIMINUIR Total de pessoas com 10 anos ou mais desocupadas, em seis regiões metropolitanas*, em mil* Período

Desocupados

Período

Desocupados

Ago/2004

2.491

Mar/2005

2.375

Set/2004

2.400

Abr/2005

2.364

Out/2004

2.302

Mai/2005

2.243

Nov/2004

2.351

Jun/2005

2.050

Dez/2004

2.098

Jul/2005

2.061

Jan/2005

2.203

Ago/2005

2.065

Fev/2005

2.313

(*) Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Pesquisa do IBGE indica tendência à deteriorização da qualidade do trabalho Fonte: IBGE

quisa mensal de emprego do IBGE, está numa aparente recaída do mercado de trabalho, com tendência a uma nova deterioração da qualidade das ocupações criadas. Entre julho e agosto, o total de ocupados saiu de 19,8 milhões para 19,9 milhões, 0,4% mais do que no mês anterior, o que é considerado como “estabilidade” pelo IBGE. Ou seja, na análise dos técnicos do Instituto, o mercado de trabalho “andou de lado”, ou praticamente não se moveu em agosto.

Taxa mensal em % Período

Período

PRECARIEDADE O problema é que, das 81 mil novas vagas abertas, nada menos do que 53 mil (65% do total de novas colocações) foram ocupadas por ambulantes, camelôs e outros “bicos” – correspondendo a pessoas que decidiram trabalhar “por conta própria”, sem carteira assinada, sem férias, 13º, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), Previdência e outros direitos trabalhistas. A participação dessa categoria no total de pessoas ocupadas passou de 19,2% em julho, para 19,4% em março. Uma variação desprezível, estatisticamente, mas que pode antecipar uma nova virada no mercado de trabalho, com o retorno

de uma tendência de geração de empregos cada vez mais precários.

a mais naquele tipo de subocupação, correspondendo a 74% das 81 mil novas ocupações criadas no mês.

SUBOCUPAÇÃO Uma outra indicação no mesmo sentido surge de um outro dado, igualmente revelado pela edição de agosto da pesquisa. O total de pessoas subocupadas, ou seja, que trabalharam menos do que as oito horas regularmente registradas pelos empregados formais (e que por isso teriam sido forçadas a buscar um segundo ou terceiro emprego), avançou de 728 mil para 788 mil, num salto de mais de 8%. A participação da categoria no total de ocupados saiu de 3,7% em julho para 4% no mês seguinte. A variação equivale a 60 mil pessoas

MELHORIA RELATIVA Pode-se dizer, portanto, que a economia, além de criar muito menos empregos no segundo semestre, pode ter iniciado, por isso mesmo, uma nova fase de deterioração. No setor privado, em mais um exemplo, o total de ocupados chegou a pouco mais de 11 milhões em agosto, correspondendo à abertura de 14 mil vagas frente a julho. Dessas, nada menos do que 71,4% (ou cerca de 10 mil pessoas) foram contratadas sem carteira assinada. Houve evidente melhoria em relação ao ano passado. Na com-

NOVO PERFIL DOS OCUPADOS Participação, por segmento, no total de pessoas ocupadas Especificação

Ago/04(%)

Jul/05 (%)

Ago/05 (%)

Empregados sem carteira

22,6

22,5

22,4

Empregados com carteira

43,4

45,0

45,0

Conta própria

20,3

19,2

19,4

Rendimento/hora inferior a um salário-mínimo

14,9

15,4

15,0

Subocupação por insuficiência de horas trabalhadas

4,5

3,7

4,0

paração entre agosto de 2005 e de 2004, o total de novas colocações aumentou em mais 455 mil, integralmente preenchidas por empregados com carteira assinada (462 mil a mais), enquanto o número de empregados sem carteira recuou (7 mil a menos). No geral, incluindo o setor público e pessoas sem remuneração, o contingente de pessoas ocupadas no trabalho principal cresceu de 14,3 milhões em agosto de 2004 para 14,8 milhões no mesmo mês deste ano – ou seja, foram criados 562 mil empregos, dos quais mais de 91% com carteira assinada. Isso explica a queda da taxa de desemprego de 11,4% para os atuais 9,4%. Esse movimento de recuperação parece ter se esgotado a partir de maio, como mostram os dados mais atuais, já que o desemprego estacionou naquela marca desde junho passado. Numa coincidência favorável, no caso, as taxas de inflação entraram em baixa exatamente a partir daquele mês, favorecendo quem recebe salários, e preservando algum alento para a economia, juntamente com a maior oferta de crédito para pessoas físicas e com o avanço das exportações.

Fonte dos dados brutos: IBGE

Inflação cai, massa de rendimentos sobe A partir de abril, a inflação oficial, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, iniciou uma tendência de queda sustentada, influenciada especialmente pelo declínio nos preços dos alimentos. Depois de alcançar 0,87% em abril, o índice recuou para 0,49% em maio, ficou negativo em 0,02% em julho e variou entre 0,25% e 0,17% nos dois meses seguintes. A menor variação dos preços em geral favoreceu trabalhadores e assalariados, porque significou aumentos menores, ou mesmo queda, para itens importantes no orçamento doméstico. A esse movimento, aponta o Instituto para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), pode ser “atribuído um fator que vem ajudando a economia brasileira a sustentar um certo crescimento” neste ano. Como resultado concreto, o rendimento real médio pago aos trabalhadores, depois de descontada a inflação do período, cresceu 0,7% em agosto, na comparação com julho, chegando a R$ 973,20 – o que representou um incremen-

to de 3,7% frente a agosto do ano passado. Em 2005, aponta análise do Iedi, com base em dados do IBGE, aquela foi a maior variação observada para o rendimento médio, “ficando bem acima da variação média mensal observada para os oito meses iniciais deste ano (1,6%)”.

COMPENSAÇÃO Ao longo do ano, houve queda em abril e maio, agora na comparação com os meses imediatamente anteriores, com retomada a partir de junho. O desempenho positivo repetiu-se nos dois meses seguintes (2,5% em julho e 0,7% em agosto). A variação dos rendimentos compensou a virtual estagnação do mercado de trabalho, empurrando a massa de salários para cima. O total de rendimentos pagos a trabalhadores e assalariados vem crescendo desde junho, depois de acumular perdas de quase 2% entre abril e maio. Em agosto, houve variação de 1,1% em relação a julho e salto de 6% na comparação com igual período do ano passado.

Há um bom caminho a percorrer antes que o poder de compra dos trabalhadores retome os mesmos níveis de agosto de 2002, quando as seis regiões metropolitanas investigadas pelo IBGE empregavam 18 milhões de pessoas e pagavam um rendimento médio de R$ 1.098,34 em valores atualizados. Na ponta do lápis, o rendimento ainda estava 11,4% mais baixo em agosto deste ano, com queda de 2,2% para o total de rendimentos pagos e elevação de 10,3% para o total de ocupações preenchidas.

CRÉDITO Um segundo fator tem ajudado a empurrar o consumo doméstico, que ainda expressa taxas de crescimento consideradas modestas pelos economistas do Iedi. Em agosto, o saldo dos créditos emprestados pelos bancos a pessoas físicas cresceu 3,4% em relação a julho, atingindo quase R$ 145 bilhões. Diante de igual mês de 2004, a variação foi de quase 40%, com destaque para o crédito pessoal, que saltou 53%. Nesta conta, está incluído o

crédito com desconto em folha (ou consignado), com juros mais baixos e que tem sido utilizado pelo consumidor, principalmente pelos aposentados, para quitar dívidas e financiar a compra de bens como televisores, DVDs, aparelhos de som, móveis e outros. Esse tipo de operação ajuda a esquentar as vendas e a economia como um todo, mas durante períodos relativamente curtos. Para que seus efeitos sejam mais duradouros, seria necessário que o emprego e a renda dos trabalhadores passasse a crescer em maior velocidade. Por enquanto, não é o que se tem observado e teme-se que o impacto positivo criado pelo aumento do crédito para pessoas físicas esteja próximo de um esgotamento. Até agosto do ano passado, as despesas com juros desses empréstimos representavam 30% da massa total de rendimentos nas seis maiores regiões metropolitanas. A relação cresceu para pouco mais de 40% em agosto deste ano, sugerindo que o consumidor tem pouco espaço para continuar tomando empréstimos aos bancos. (LVF)


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NACIONAL MEMÓRIA

Lições do jovem Apolônio de Carvalho Militante por natureza, lutou pela liberdade na Espanha e na França e, no Brasil, foi um dos fundadores do PT

M

ilitante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) na década de 1930 e integrante do Partido Comunista do Brasil (ainda sob a sigla PCB), até os anos 1960. Combatente antifranquista na Guerra Civil Espanhola (1936-39) e da Resistência Francesa contra a ocupação nazista (1942-44). Fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), em 1968, para levar a cabo a luta armada contra o regime militar; e signatário da primeira ficha de filiação do Partido dos Trabalhadores (PT), em fevereiro de 1980. Tudo isso é pouco para dar uma idéia do militante completo que foi Apolônio de Carvalho, um grande brasileiro que o país acaba de perder, dia 23 de setembro. Foram 93 anos de idade e mais de 60 de militância comunista do tenente-general Apolônio Pinto de Carvalho, nascido a 9 de fevereiro de 1912, em Corumbá, MS . Sua trajetória se confunde com a história da luta pela democracia e, particularmente, da esquerda no Brasil. Para a entrevista à revista Sem Terra, 30 minutos. Foi o que sua companheira, Reneé de Carvalho, concedeu à reportagem, feita no dia 19 de agosto. Mesmo esses minutos foram o tempo suficiente para ele reafirmar que o socialismo é a forma superior de democracia. E explicar por quê. Que lições os movimentos de esquerda podem tirar do século 20? Apolônio de Carvalho – Sou um velho militante, não de cultura tão ampla assim, nem dotado de capacidade de resumir ou fazer uma espécie de balanço desse quase um século que estou vivendo. Continuam as realidades de desigualdade e injustiças sociais, que vêm dos séculos anteriores. Convido vocês a fazer um passeio muito longo, desde a minha adolescência. Já nos anos 1920 do século passado, sentíamos o protesto do povo contra as arbitrariedades dos governantes, o desprezo pelas reivindicações e os desejos do povo. E sobretudo contra o contraste e as injustiças sociais. Iniciei a minha prática social antes da prática política, através dos movimentos sociais que pregavam a luta pela democracia, pelas liberdades e pela soberania nacional. Nós fomos sempre dominados pela pressão dos monopólios externos e internos. Deve ter sido difícil em outras épocas. Mas particularmente na nossa é difícil quando as contradições sociais se avolumam e se aguçam profundamente. Por exemplo, estamos saindo do século 20, que foi o mais cruel e contraditório de todos os séculos recentes. Todos os contrastes aguçados, uma sociedade marcada por duas guerras, terríveis extremos de pressão, genocídios racistas. Marcada por uma série de rebeliões e uma série de ditaduras militares e civis. No Brasil, 43 anos foram marcados por ditaduras militares ou civis. Mesmo assim, nosso povo foi abrindo caminho para a democracia. E os jovens, e depois os menos jovens (os que sendo velhos acreditam que a velhice é apenas a juventude amadurecida), continuamos na luta, que está cheia de promessas. Quais as principais conquistas da sociedade contemporânea? Carvalho – Passamos por conquistas sociais muito bonitas através da democracia, dos governos de frentes populares na Europa, experiências mais próximas do povo, em nosso país,

em certos momentos. Passamos também pelas experiências socialistas iniciais. Nos ensinam a compreender que só com o povo a gente pode fazer a luta, e a compreender também que as classes dominantes condenaram o nosso povo através da falta de educação, da miséria e das injustiças. É preciso um cuidado especial com o debate político com a população, com a formação política da grande massa do povo. As mudanças só podem ser feitas com o povo. No entanto, o povo não participa das grandes mudanças se não está convencido delas. Para se convencer, é preciso conhecer a realidade, ter idéia das forças que são favoráveis às mudanças e das que são terrivelmente contra; quem são aliados solidários na luta por justiça e por direitos humanos e, ao mesmo tempo, o conhecimento de quais são as forças renitentes. E nós devemos fazer o que vocês, do MST, fazem. Vocês são um exemplo. O empenho de debate político e de formação, de educação política. O que os movimentos sociais não podem esquecer? Carvalho – A grande experiência é essa: compreender que não se pode fazer nada fechando os olhos para a realidade. Temos companheiros que têm os mesmos horizontes que nós temos. Queremos a juventude do mundo através do socialismo. Mas há companheiros apressados, que querem o socialismo da noite para o dia. No mais tardar, amanhã depois do almoço. Ou, no mais tardar dos tardares, amanhã ao cair da tarde. Isso não pode acontecer. As pessoas mais conscientes podem lutar e encaminhar as coisas em um sentido de mudança, mas o povo não compreende de repente como fazer e como participar do processo. Esse é um dos maiores ensinamentos da trajetória recente.

Deveríamos pensar que democracia e socialismo não são coisas nem tão aparentemente distantes, nem tão contraditórias

Como colocar esses ensinamentos na prática cotidiana? Carvalho – É preciso, sobretudo, sentir que a realidade tem tantas contradições e contrastes que precisa ser modificada. Aí entram as leis gerais do caminho fundamental para compreender a necessidade das mudanças: as leis gerais da dialética. Primeiro, não se deixar levar nem pela mídia, nem pelas belas palavras dos demagogos. É a luta dos contrários. Em segundo lugar, a compreensão de que para chegarmos a horizontes novos, temos que passar por escalas,

vitais, como a terra. Além de ter a terra, é preciso ter condições para usá-la, para transformá-la por meio do trabalho produtivo e de formas novas de relação do campo-cidade. Esse é um trabalho magnífico que o MST já faz. No entanto, o MST é ainda uma força isolada na sociedade. Olhem os partidos de esquerda: todos têm muito pouco esforço de debate político interno entre seus filiados e militantes.

Fotos Ana Maria Straube

Igor Felippe Santos e Maíra Kubík Mano de São Paulo (SP)

Os partidos deixaram de lado a formação? Carvalho – Há muito pouco espaço para um cuidado especial com a formação política de seus filiados. Um exemplo é o PT. O partido conta hoje com 870 mil filiados. Participaram nos debates das primeiras prévias, em 2002, em cada Estado, apenas 270 mil filiados. Isso significa, que um filiado em três participou das discussões. Apenas esses militantes entraram na cidadania interna do partido. O restante se manteve alheio. Eram simples filiados. Isso significa que há uma distância muito grande entre as direções e as bases dos partidos de esquerda, de centro-esquerda e nos demais partidos também.

Carvalho: testemunho de luta pela democracia e defesa radical do socialismo

etapas sucessivas, formas novas de democracia, cada vez mais apoiadas no povo. Armando o povo com a formação, não só de cultura, mas de debate político. Formação e prática para abrir caminho para horizontes diferentes. São as passagens, as conquistas parciais sucessivas para chegarmos aos horizontes mais altos. É necessário ter um ideal de transformação da sociedade e ser fiel, desde que ele seja amplamente apoiado na grande massa da população. Os movimentos sociais e os partidos políticos têm programas de transformação. Precisamos saber ganhar o nosso povo, fazê-lo compreender que essa realidade é muito injusta e cruel, mas que é possível transformá-la. Como o senhor vê a democracia? Carvalho – A trajetória da sociedade e dos povos em geral, do nosso país e do nosso continente, tem momentos diferenciados. Há momentos de liberdades públicas. Momentos de formas de democracia com a presença do povo na arena social – como sempre esteve – mas também na arena política. A conquista de regimes de democracia é uma espécie de fio condutor da presença do povo nas transformações, com direitos vistos de uma maneira mais ampla. Não apenas o direito de pensar, ter religião, se locomover ou se expressar. Mas de ter condições de viver, pensar, pesquisar e debater. A população não consegue se apropriar ou compreender melhor os direitos de cidadania se está condenada a regimes de miséria, fome, desemprego e abandono por parte das forças dominantes. Democracia e socialismo são conciliáveis? Carvalho – Deveríamos pensar que democracia e socialismo não são coisas nem tão aparentemente distantes, nem tão contraditórias. As conquistas democráticas, populares, trouxeram a presença constante do povo à arena política, a visão clara por faixas cada vez mais amplas do povo das necessidades da nossa sociedade, dos seus flancos

mais atrasados com seu desejo de ganhar o direito de sonhar e de viver. Tudo isso representa os avanços constantes dos regimes de democracia. Através de suas etapas, nós nos aproximamos da forma mais humana e ampla de democracia que é o socialismo, que vai abranger com maior vigor e maior amplitude as faixas abandonadas e desprezadas da população, colocadas fora da ordem das preocupações das classes dominantes. No caminho da construção do socialismo, qual o papel do governo Lula? Carvalho – Hoje, há uma série de problemas a debater, de maneira fraterna e solidária. Sem a arrogância dos que se consideram donos da verdade absoluta e não admitem a troca de idéias. Lula não abandonou e não abandonará o caminho do socialismo por sua trajetória, história e origem. Também por sua identificação com o papel dos movimentos sociais e dos partidos políticos de esquerda que querem mudar a realidade existente. O socialismo é cada vez mais claro como uma necessidade, mas exige o avanço no nível de consciência dos trabalhadores e da sociedade em geral.

Para mim, o socialismo é a forma superior de democracia. A igualdade será produto de uma longa luta entre as classes que querem um mundo melhor, e as classes que têm receio de um mundo melhor Como avalia o papel dos movimentos sociais? Carvalho – Os movimentos sociais não podem ficar apenas na visão das mudanças ligadas exclusivamente a certos temas

Quando falo e sinto os jovens, eu tenho vontade de levantar os braços deles e agradecer a sua presença ativa como se gritasse aleluia Neste momento de crise e frustração, como fica a esperança do povo brasileiro? Carvalho – Quero ligar a esperança a algumas questões. Primeiro, à visão da pluralidade da realidade e, portanto, da necessidade de se transformar a sociedade. Segundo, à busca de explicações para os responsáveis pela realidade tão dura, e também das forças interessadas em mudar no campo das alianças políticas. Em terceiro lugar, aos caminhos de transformação. Muita gente quer, como todos nós queremos, o socialismo amanhã. Mas alguns querem um amanhã muito próximo de hoje. Um pensamento que parece mágico, que eu aprendi com um professor de universidade argentino: não vale apenas a gente olhar para a realidade e protestar contra ela, mas é preciso olhar para a realidade, armados da visão de um outro mundo melhor e da busca de condições para avançar. O que é o socialismo para o senhor? Carvalho – Para mim, o socialismo é a forma superior de democracia. Democracia não apenas no sentido das bandeiras da Revolução Francesa, como liberdade, fraternidade e igualdade. A igualdade será produto de uma longa luta entre as classes que querem um mundo melhor, e as classes que têm receio de um mundo melhor, e querem guardar sua ligação com um presente muito próximo do passado. O entendimento da longa luta deve estar casado, cada vez mais – aí eu falo particularmente para os jovens – com o sentido da responsabilidade. A presença dos jovens e das mulheres representa um contigente ativo, particularmente novo nos últimos 40 anos. Quando falo e sinto os jovens, eu tenho vontade de levantar os braços deles e agradecer a sua presença ativa como se gritasse aleluia.


Ano 3 • número 135 • De 29 de setembro a 5 de outubro de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO BOLIVARIANAS

O fim do latifúndio ou a morte Claudia Jardim de Barinas (Venezuela)

Nama

Presidente Hugo Chávez reafirma compromisso com a reforma agrária e faz acordo com MST Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas)”, ratificou. Para Stedile, o governo venezuelano impulsiona o modelo de reforma agrária reivindicado pelos movimentos camponeses, que vai além do acesso à terra. Segundo o coordenador do MST, a reforma agrária deve incluir a construção de agroindústrias, a garantia de produção e venda dos alimentos, educação e infra-estrutura capaz de proporcionar uma vida digna no campo. “Mas não adianta esperar que o governo faça tudo sozinho. Os camponeses venezuelanos têm que avançar e ocupar os latifúndios. Um povo que não produz seu próprio alimento é um povo escravo”, afirmou Stedile, parafraseando José Martí

“E

screvam. Na Venezuela, ou acaba o latifúndio ou morro no caminho”, afirmou o presidente venezuelano, Hugo Chávez, dia 25 de setembro, diante de centenas de camponeses sem-terra em uma fazenda de 8.490 hectares resgatada pelo governo. A forte declaração do presidente foi mais um sinal de que pretende avançar o processo revolucionário no país em resposta à oposição que tenta criar uma nova onda de “desestabilização” em defesa da propriedade privada. O objetivo é evitar a desapropriação da fazenda La Marquesena. “Não existe propriedade ilimitada, nem sagrada. Aqui, existe uma Constituição e um governo legítimo. Estamos dispostos a fazer com que se cumpra a lei”, reiterou o presidente, em referência ao artigo 115 da Carta Magna que garante o direito da propriedade privada desde que a mesma cumpra com sua função social. Cerca de 80% das terras da Marquesena foram consideradas improdutivas. Os supostos proprietários não apresentaram os documentos exigidos pela legislação para estabelecer se uma propriedade é ou não privada. As terras, então, foram consideradas públicas, o que permite ao Instituto Nacional de Terras resgatálas para fins de reforma agrária. Além da Marquesenha, outras quatro fazendas foram recuperadas na última semana. Desde a promulgação da Lei de Terras, em 2001, cerca de 2.700 milhões de hectares de terras foram resgatados pelo Estado, dos quais 700 mil correspondem à nova guerra contra o latifúndio, iniciada em janeiro deste ano. Os números são tímidos comparados à dimensão dos planos do governo venezuelano. Para o presidente Hugo Chávez,

REAÇÃO ATRAPALHADA

João Pedro Stedile, do MST, e o presidente venezuelano, Hugo Chávez, firmam acordo de parceria para realizar reforma agrária

é preciso reestruturar as bases produtivas do país, a partir da democratização do acesso à terra, para impedir que a revolução bolivariana fracasse. “Enquanto tivermos latifúndio será impossível avançar. A terra é a base para implementar o projeto de desenvolvimento”, afirma o presidente venezuelano. O governo define como prioridade, neste momento, a conquista da soberania alimentar do país, também exigida pela Constituição. Para abastecer a população, a Venezuela importa 6 milhões de toneladas de carne e leite, mensalmente.

novo modelo de produção agrícola para os novos núcleos de desenvolvimento endógeno que serão criados na terra natal do presidente, Sabaneta (Barinas). O presidente entendeu que, sem o trabalho efetivo dos camponeses, não haverá reforma agrária. “A reforma agrária para o MST está como a medicina para Cuba. São exemplares e Chávez entendeu perfeitamente”, comentou o jornalista argentino Carlos Aznárez. A tarefa do MST será a de implementar, junto com o movimento camponês venezuelano, o modelo praticado nos assentamentos. Ou seja, o trabalho em cooperativas, agricultura ecológica, educação nos assentamentos, reprodução de sementes crioulas e o principal: a organização.

APOIO DO MST Não foi à toa que Chávez convocou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para ajudar à organizar e construir um

Além disso, foi firmado um acordo de cooperação entre o governo e o movimento. Serão enviados sementes e apoio técnico para que os venezuelanos possam constituir seu próprio banco genético. Mais de 90% das sementes cultivadas no país são importadas. General Abreu de Lima – Homenagem Um dos projetos ao general pernamcontemplados bucano que lutou com o acordo junto com Bolívar pela libertação da foi batizado de Gran Colombia do Pólo de Desendomínio espanhol. volvimento Endógeno “General Abreu de Lima”. “João Pedro, necessitamos da ajuda de vocês, do MST, e dos cubanos para implementar esse novo eixo de desenvolvimento” assinalou o presidente Chávez, ao coordenador nacional do MST João Pedro Stedile, durante o Alô Presidente. “Isso é a

Enquanto isso, em Caracas, na Praça Altamira, cerca de 300 pessoas se manifestavam em defesa da propriedade privada. Durante a semana, uma pesquisa encomendada pelo jornal El Universal sobre o que a população pensa sobre socialismo e propriedade privada diz que 48% dos apoiadores do governo desaprovariam o governo se a proposta de um carro e uma casa por núcleo familiar estivesse nos planos do socialismo do governo. Ocorre que proposta desse tipo nunca havia sido cogitada. A revolução bolivariana tenta, sim, diminuir o abismo social que marca a sociedade venezuelana. O escândalo organizado pela oposição com o apoio dos meios de comunicação foi tão grande que, mais uma vez, teve o efeito contrário e estimulou a mobilização, no campo. Ezequiel Ramos, trabalhador rural, enfrentou seis horas de estrada para apoiar a ação do governo na fazenda Marquesenha. “Trata-se de consciência de classe. Somos camponeses e por isso temos que apoiar e garantir a entrega dessas terras aos nossos irmãos que durante anos foram massacrados pelo latifúndio”.

MILITARIZAÇÃO

Do Paraguai, EUA miram recursos energéticos A presença de cerca de 400 militares estadunidenses em solo paraguaio já é um fato. A grande questão, contudo, é o que eles pretendem fazer – e o que farão – por lá. Em maio desse ano, o governo do Paraguai firmou acordo (aprovado posteriormente pelo parlamento) com os EUA que previa exercícios e intercâmbios militares em seu território até dezembro de 2006. No entanto, certamente, a atuação militar dos EUA no Paraguai não é de hoje. É o que afirma Alberto Buela, vice-presidente da Fundação Centro de Estudos Estratégicos Sul-Americanos (CEES), com sede na Argentina: “De acordo com nossas próprias fontes e com dados recolhidos pessoalmente por nós na capital, Assunção, os EUA já estavam estabelecidos clandestinamente desde 1999 na região do chaco paraguaio”. Trata-se da base de Mariscal Estigarribia, localizada na província de Boqueronen, no oeste do país. Com apenas 3 mil habitantes, a localidade está situada a 250 quilômetros da Bolívia e seu gás natural e conta com pista de aterrissagem de 3800 metros de extensão, o que permite o pouso de aviões de grande porte. De acordo com o CEES, o desembarque dos 400 militares estadunidenses teria como objetivo a ampliação desta base (que poderia abrigar 16 mil homens) e sua transformação em instalação militar permanente dos EUA na região – o que permitiria, segundo

Buela, uma “intervencão rápida em metade dos países sul-americanos: Paraguai, Brasil, Bolívia, Argentina e Uruguai”.

IMUNIDADE Outra grande preocupação é o status que as tropas estadunidenses gozam com a assinatura do acordo. Desde que chegaram ao Paraguai, os militares dos EUA são considerados funcionários diplomáticos administrativos, o que lhes confere uma séries de benefícios. Entre eles, a possibilidade de entrar e sair do país quando quiserem, transportar armas e equipamentos sem que as autoridades locais possam confiscá-los e a imunidade em relação a danos que venham a causar à saúde da população e ao meio ambiente. Após conversa com a chanceler do Paraguai, Leila Rachid, durante a 60ª Assembléia da Organização das Nações Unidas, o ministro Celso Amorim (das Relações Exteriores) declarou à imprensa ter ficado tranqüilizado com as explicações da colega que, segundo ele, “garantiu que não há base alguma. São ações de treinamento, ações humanitárias no campo da saúde”. Anteriormente, Amorim havia pedido maior transparência dos paraguaios. As explicações, no entanto, não convenceram os analistas ouvidos pelo Brasil de Fato. Segundo eles, o objetivo dos EUA com a presença no Paraguai é desde aumentar sua influência em um continente cada vez mais rebelde até cercar áreas de grande

buição estratégica de suas bases pelo mundo”, diz.

Grito dos Excluídos Continental

Igor Ojeda da Redação

CERCO AO BRASIL

Mapa mostra a presença militar dos Estados Unidos na América Latina

potencial energético (gás, petróleo e água), com uma possível intervenção militar no futuro. Para Carlos Pereyra Mele, secretário de interior do CEES, desde o fim da União Soviética, as nações centrais impuseram novas formas de beneficiar seus interesses e o de

suas transnacionais. “Neste novo jogo, volta a surgir a geopolítica pura, em detrimento da que estava estabelecida pelos conflitos ideológicos. Neste contexto, os EUA põem em ação um novo sistema de controle de alcance mundial, baseado principalmente na distri-

No caso das bases instaladas na América do Sul, o alvo principal do governo estadunidense seria o Brasil. Para Mele, levando-se em conta suas bases militares no Equador, Peru, Venezuela, Colômbia e Guiana, observa-se que “se estabelece um cerco em torno do Brasil e próximo às suas fontes de recursos renováveis e não renováveis”. O brigadeiro Sérgio Ferolla, ex-ministro do Superior Tribunal Militar, concorda: “Veladamente ou não, é uma coação. Eles sabem que, por mais que nosso governo seja entreguista na economia, na política externa o Itamaraty está desempenhando um papel muito importante. E eles não aceitam. Já que não se consegue pela diplomacia, consegue-se pela força”. O cientista político Theotônio dos Santos acredita que a estratégia militar estadunidense é independente do aspecto geopolítico, que poderia ser contemplado através de outros meios. Para ele, o objetivo principal dos EUA é criar as condições para uma futura operação militar na região. O alvo? Uma das maiores reservas de água doce do mundo – o ouro azul –, o Aqüífero Guarani, reservatório subterrâneo gigante compartilhado por Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai. “Não é uma estratégia de ação militar, e sim de ir garantindo posições para uso mais ativo no futuro. Militarmente, trabalha-se com antecedência de 30, 40 anos. Às vezes até mais”, diz.


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NACIONAL ENTREVISTA

A ditadura da financeirização Os países perderam a capacidade de regular sua economia, reféns da especulação internacional, diz Chesnais

Brasil de Fato – A crise política do governo Lula, diz o próprio presidente, não afetou a economia. Como isso é possível? François Chesnais – A economia brasileira não tem um desempenho extraordinário. O crescimento em 2005 vai ficar entre 3% e 4%. No ano passado, ficou entre 4% e 5%, e foi considerado um grande sucesso. Essas taxas de crescimento são extremamente baixas, e falar de economia blindada não é mais do que retórica. Construiu-se no Brasil, a partir de um desenvolvimento histórico em que a oligarquia rural e financeira sempre foram fortes, um espaço de poder político e econômico central: o mercado financeiro, concentrado em São Paulo. Estão aí as grandes fortunas, os fundos de investimento, todos os bancos, que construíram uma fortaleza, baseada em interconexões com os capitais financeiros internacionais. O capital financeiro pressiona e faz chantagem quando quer que a taxa de juros mude. Isso só é possível com a aceitação e participação dos governos brasileiros desde muito tempo. O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, garantem o poder do mercado financeiro. A política econômica real é decidida para favorecer interesses que não são os da maioria dos brasileiros. Isso só confirma que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um fantoche nas mãos dos controladores do mercado financeiro. BF – Quem controla o mercado financeiro? Chesnais – A elite nunca se altera muito. Bancos, como o Itaú, Bradesco e Real, têm uma longa história de alianças com grandes proprietários rurais e industriais. O que mudou é a financeirização da economia e a interconexão internacional dos mercados financeiros. Isso mudou as relações de poder, mas há uma grande continuidade. E Lula aceitou governar nos termos indicados pela oligarquia brasileira, vinculada à dos Estados

As bolsas, assim como Wall Street, são símbolos emblemáticos do estágio de financeirização do capitalismo

Unidos. É a campanha “paz e amor”. Quem aceita fazer uma campanha pacifista em um país onde a oligarquia mantém uma guerra civil constante contra o povo, é alguém que aceita a ditadura dos credores. Em troca, recebeu fundos, muitas vezes ilegais, como o de lavagem de dinheiro e do tráfico. Lula não deveria ter aceitado governar nessas condições, pois não tem como cumprir suas promessas e evitar a corrupção.

crédito bancário, principalmente se a taxa de juros for controlada pelo Estado. Além disso, não é necessário existir mercado financeiro para haver investimento. Durante décadas, nos países europeus, o crédito era garantido por bancos estatais ou pelo sistema bancário privado, em condições em que a taxa de juros era cuidadosamente controlada. Os mercados financeiros não dão retorno para a economia. Suas instituições só atendem aos interesses dos acionistas em maximizar os dividendos.

O dinheiro, que saiu do sistema produtivo e que se acumulou fora dele, cria e mantém mecanismos de captação de mais dinheiro, proveniente do sistema produtivo

BF – Qual o impacto da financeirização nas relações entre capital e trabalho? Chesnais – A financeirização promove a liquidez dos títulos, permitindo o surgimento de um mercado que controla as empresas, que se tornam ativos negociáveis, como qualquer produto. É uma visão absolutamente financeira da empresa, vista como um conjunto de ativos divisíveis e líquidos, passíveis de ser interrompidos de acordo com as oportunidades de lucro. Esse sistema carrega uma nova ideologia, a da primazia da doutrina acionária. A empresa se define como uma co-propriedade de acionistas, como um objeto a serviço da maximização do valor da ação. Os interesses dos acionistas se colocam acima dos demais, principalmente dos assalariados. Nesse contexto, a valorização do capital humano não é uma preocupação dos investidores institucionais. O setor de recursos humanos é percebido como um risco, uma zona de conflito em potencial e um custo que deve ser reduzido. Para o acionista, o mundo do trabalho é uma ameaça permanente de crise. Deve ser controlado e disciplinado.

BF – O poder econômico se descolou do sistema produtivo. Como isso ocorreu? Chesnais – Houve um processo de acumulação de capital e poder fora do sistema produtivo, desde os anos 1970 e 1980. Deu-se pela acumulação por meio de títulos, que é o resultado da esterilização do sistema produtivo. Uma parte dos lucros deixa de se destinar à produção, e é redirecionada para a especulação financeira, onde é remunerada pelos juros. O mecanismo acaba sendo institucionalizado, tamanha é a massa de poupança. O capital é gerado no sistema produtivo, mas se acumula efetivamente em instituições como fundos mútuos ou de pensão. Os detentores de títulos exigem juros elevados, como no caso dos títulos de dívidas, ou dividendos, se possuem ações. Por meio de um conjunto de mecanismos, o dinheiro, que saiu do sistema produtivo e que se acumulou fora dele, cria e mantém mecanismos de captação de mais dinheiro, proveniente do sistema produtivo. BF – Qual a função do capital acumulado que não irriga o sistema produtivo? Chesnais – Os efeitos dessa acumulação são todos negativos. Para financiar a produção, há sistemas mais simples, como o

BF – Qual a diferença entre capital financeiro e capital produtivo? Chesnais – O capital financeiro é um capital que se materializa na forma de títulos. Até os anos 1930, quem investia, recebia títulos em papel e os colocava em seu cofre. Hoje, sua velocidade de giro é tal, que está nos computadores. O capital financeiro não tem outro objetivo senão se reproduzir. Por exemplo, os títulos das dívidas externas dos países ditos em desenvolvimento são disputados, pois são considerados mais seguros, e seus rendimentos são altos. O capital financeiro é um modo popular de

definir o que o Karl Marx chama de capital portador de juros, que compra títulos que dão direito a extrair riqueza da economia sem participar desta.

Para o acionista, o mundo do trabalho é uma ameaça permanente de crise. Deve ser controlado e disciplinado BF – A hegemonia dos Estados Unidos e a financeirização parecem caminhar juntas. Como se construiu a relação? Chesnais – A financeirização é o que deu aos Estados Unidos a oportunidade de impor, do ponto vista econômico, uma hegemonia, que parecia perder. Nos anos 1980, falava-se do crescimento do capital industrial japonês e da perda de competitividade dos EUA. Muitos economistas escreveram sobre o declínio estadunidense. Isso não ocorreu, por dois motivos, intimamente ligados: uma nova onda de programas militares, conhecida como Star Wars (Guerra nas Estrelas), no governo Ronald Reagan, e o financiamento do programa por empréstimos estrangeiros massivos, que não foram negociados com bancos, mas obtidos pela liberalização do mercado estadunidense, destruindo o sistema de controle de fluxos de capitais que os Estados Unidos haviam herdado do New Deal, nos anos 1930. Foi atraída para o país toda a liquidez ociosa disponível no mundo, tanto o dinheiro das grandes fortunas, quanto dos fundos de pensão. Os EUA tinham um mercado de ações – Wall Street – mas aumentaram a importância de outros mercados financeiros, como o de títulos do Tesouro e o de negociação das ações de empresas de tecnologia de ponta – a Nasdaq. Os fluxos massivos de capital permitiram aos Estados Unidos financiar seu déficit orçamentário e recuperar uma hegemonia tecnológica absoluta, principalmente no campo militar. Na economia estadunidense, as relações decisivas passam pelo mercado de ações e são mantidas por fluxos de capital de todo o mundo.

BF – A financeirização parece extremamente perversa. Pode conviver com um regime de bemestar social? Chesnais – O regime econômico baseado na acumulação de ativos financeiros é um sistema antagônico com o bem-estar social e com a reprodução ampliada do capital produtivo. No sistema mundial, há poucos países que conseguem manter alguma autonomia em relação à financeirização. É o caso da China, que construiu uma economia centralizada, com uma forte base industrial. Também temos a Índia, que se protegeu durante muito tempo e desenvolveu sua indústria de base e de programas de computador (software). É um capitalismo protegido da excessiva especulação. A economia mundial, no geral, tem um grau limitado de dinamismo. Nos Estados Unidos, a nova economia, com muitos investimentos, rejuvenesceu o estoque de capitais, mas não houve expansão da capacidade de produção. Boa parte dessa foi transferida para a China. Estamos em uma economia que é antagônica ao bem-estar social e que não gera, de modo endógeno, a reprodução ampliada do capital produtivo. Não é um regime sustentável. Não é um regime viável. No Brasil, ter 3% a 4% de crescimento, com exportação massiva de minerais e produtos agrícolas, caracteriza um país onde a economia está, de fato, estagnada. João Alexandre Peschanski

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economia mundial perdeu qualquer ligação com o mundo real. É o estágio capitalista da dominação do capital financeiro, cujo giro e volatilidade perdeu conexão com o sistema produtivo, e não tem outro objetivo senão sua própria reprodução. Seus agentes são investidores institucionais, como os fundos mútuos e os fundos de pensão, que seqüestram o capital produtivo. O resultado: um sistema econômico em permanente desequilíbrio, ou seja, em crise. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o economista François Chesnais denuncia o aspecto perverso de uma economia que se tornou refém da financeirização. “Uma parte dos lucros deixa de se destinar à produção, e é redirecionada para a especulação financeira, onde é remunerada pelos juros”, diz. Segundo Chesnais, esse capital de mão única – do sistema produtivo ao financeiro – só tem efeitos negativos, tanto para a produção, quanto para os trabalhadores. Mesmo assim, tornou-se o modelo dominante, devido à posição hegemônica dos Estados Unidos, que regem a orquestra do sistema financeiro internacional. O economista esteve no Brasil em agosto para o lançamento do seu livro A Finança Mundializada (Boitempo, 2005), quando concedeu a entrevista.

BF – A hegemonia dos Estados Unidos desequilibra o mercado de outros países? Chesnais – As crises são o resultado da distância que existe entre a acumulação de títulos nas mãos de poucos e as possibilidades reais da economia. É o que ocorreu nos países emergentes, como Argentina e Indonésia: uma distância insuperável entre as pretensões dos credores e a possibilidade real de atendê-los. A balança comercial fica desequilibrada, há inflação, piora nas contas públicas, e os investidores financeiros consideram que o país não pode mais pagar e saem. Há outro tipo de crise, que ocorre nos países no centro do sistema. Os títulos desses mercados são altamente atrativos, todos querem comprá-los, sua valorização aumenta e se cria uma bolha financeira, onde o preço das ações não tem mais ligação real com o que as empresas podem pagar. Ocorre a mesma evasão, e o caráter fictício dos valores dos títulos fica claro.

Arquivo Brasil de Fato

João Alexandre Peschanski da Redação

Quem é Professor emérito da Universidade Paris XIII, na França, François Chesnais é economista, e integra o conselho científico da Associação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac). É autor de A Mundialização do Capital (1996) e A Mundialização Financeira (1998), ambos pela editora Xamã.


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INTERNACIONAL ÁGUA

A raposa está solta no galinheiro A

No Brasil, a Coca-Cola sofreu uma importante derrota. O juiz da 31ª Vara Cível de São Paulo determinou que seja feito o exame do extrato vegetal (mercadoria nº 5) que compõe o refrigerante de cola da empresa. Suspeita-se que o produto contenha substâncias derivadas da folha de coca, o que é terminantemente proibido pela legislação brasileira de entorpecentes. A decisão baseia-se em processo movido pela Coca-Cola contra a Dolly, que levantava tal suspeita em painéis públicos (outdoors). A própria Dolly deverá arcar com as despesas da análise que, segundo a empresa brasileira de refrigerantes, já está sendo providenciada. (IO) A atuação da Coca-Cola em países como Índia, México e Panamá torna crítica a imagem da empresa

Ela refere-se à atuação da transnacional em diversos países (entre eles, Índia, México e Panamá), principalmente quando o assunto é a água, uma de suas principais matérias-prima. O caso da Índia é particularmente emblemático. No dia 13 de setembro, um dia antes do anúncio da parceria Usaid Coca-Cola, o governo do Estado de Kerala, no sul do país, contestou na Suprema Corte da Índia o direito da empresa

de usar a água de fontes subterrâneas da comunidade de Plachimada sob a alegação de que “vilarejos pobres estão sendo privados de água potável devido ao uso excessivo da fonte subterrânea pela engarrafadora da Coca-Cola”. Por isso mesmo, é quase impossível acreditar nas boas intenções da parceria. “Temos que julgar à luz do histórico da empresa. É um histórico de trabalho contra o ambiente, os direitos dos trabalhadores, os sindiArquivo Brasil de Fato

Agência Estadunidense para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) anunciou, no dia 14 de setembro, em conjunto com a Coca-Cola Company, o Programa Comunidade Global – Parcerias em Vertentes de Água. Segundo o comunicado, o objetivo da parceria é “apoiar uma grande variedade de programas relacionados à água em países em desenvolvimento”. Ainda de acordo com o texto, tal “aliança” entre o público e o privado irá “trabalhar para alcançar inúmeras metas, entre elas o aumento do acesso ao fornecimento seguro de água, promovendo a higiene; e a proteção e conservação dos recursos locais”. Só no primeiro ano, serão gastos 3,5 milhões de dólares. Tudo muito bonito, se não fossem o histórico de atuação da agência (veja matéria abaixo) e, principalmente, o parceiro escolhido pela Usaid para a empreitada. “Está muito óbvio que a Usaid escolheu se fazer de ingênua em relação à realidade das operações da Coca-Cola em países em desenvolvimento. Esse acordo nada mais é que uma tentativa de limpar a imagem de uma empresa que está sendo contestada internacionalmente por suas práticas nos negócios, deixando-a mais ‘ecológica’ e ‘social’”, opina Anuradha Mittal, coordenadora do Oakland Institute.

Justiça manda analisar Coca-Cola

Uma agência a serviço dos interesses estadunidenses Não é de hoje que a Agência Estadunidense para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), por trás do rótulo da ajuda humanitária a países em desenvolvimento, esconde sua atuação em defesa dos interesses do governo estadunidense e de suas empresas. Anuradha Mittal, coordenadora do Oakland Institute, sustenta que não apenas a Usaid, como qualquer ajuda internacional levada a cabo pelos EUA, prevê retorno financeiro ou contrapartida das nações beneficiadas. “Pegue o exemplo da ajuda com alimentos: em 2002, o governo decretou abertamente que um país que quiser se candidatar a receber tal tipo de auxílio ‘deve demonstrar seu potencial para se tornar um mercado comercial para os produtos agrícolas estadunidenses’. Ou seja, em vez de focar as necessidades da fome, o objetivo real da lei é a expansão de mercados para agricultura dos EUA”, diz. A Usaid, por exemplo, proclama publicamente que, para cada dólar enviado ao exterior por meio de seus programas, 84 centavos de dólar voltam à economia estaduni-

dense por meio da compra de suas mercadorias e serviços. Segundo Anuradha, em 2000, 71,6% da ajuda concedida pelos EUA estava condicionada à compra de seus produtos. A coordenadora do Oakland Institute conta também que, em novembro de 2004, a Usaid doou 700 mil dólares para a criação da Aliança para a Ação no Acordo de Livre Comércio com a América Central e a República Dominicana (Cafta-DR), cujo objetivo era organizar apoiadores do Cafta e promover seus benefícios para os trabalhadores. Posteriormente, um exame formal da doação descobriu que esse tipo de utilização de fundos de ajuda internacional violou as restrições do governo dos EUA e da própria Usaid. No Brasil, a ação da Usaid teve destaque em 1965 com os acordos MEC/Usaid, uma série de convênios entre o Ministério da Educação e a agência cujo objetivo era o de implementar o modelo estadunidense nas universidades brasileiras. Em 1966, a revolta dos estudantes fizeram os militares rever pontos do acordo. (IO)

A coordenadora do Oakland Institute vai além: “Uma democracia de verdade convocaria um debate público para determinar a relação entre empresas privadas e agências de governo, principalmente quando ela diminui o poder deste de agir em prol do povo. Uma democracia de verdade requereria independência de nosso governo em relação à influência das corporações. Isso é uma obrigação, não uma opção política”.

INVASÃO DO IRAQUE

Cem mil contra Bush, nos EUA da Redação

Agência estadunidense defende interesses das transnacionais

catos, a saúde pública. Fica difícil imaginar de que forma as comunidades vão participar dos programas da parceria”, alerta Anuradha. O tratamento de um bem público por meio de uma parceria publico-privada também é fortemente criticado. De acordo com Marcus Faro, secretário-executivo da Rede Brasil, “esse tipo de acordo revela que existe uma orientação clara por parte do governo dos EUA de tratar a água como mercadoria”.

Na maior marcha desde a invasão do Iraque, em 2003, cerca de cem mil pessoas protestaram, dia 24 de setembro, em Washington, contra o presidente George W. Bush, aproveitando a realização da Assembléia Anual do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM). Entre os manifestantes na capital estadunidense estava Cindy Sheehan, mãe de um soldado morto no Iraque, que iniciou os protestos antiguerra diante do rancho de Bush no Texas, em agosto, num movimento que vem se ampliando nas últimas semanas e ganhou espaço em outras cidades dos Estados Unidos e da Europa. A manifestação pedia a volta para casa das tropas que ocupam o Iraque. Frases como “Bush mente, milhares morrem”, “Fim à ocupação” ou “Qual é a causa nobre?” eram ouvidas ou lidas nos milhares de cartazes. O protesto se realizou em um momento em que a maioria da opinião pública (59%) considera que a guerra no Iraque foi um erro. Uma pesquisa do Instituto Gallup, feita esta semana, mostra que, além disso, 63% dos estadunidenses esperam o retorno dos cerca de 140 mil militares mobilizados no Iraque. Também houve protestos em Los Angeles, San Francisco e Seattle; na Europa, em Londres, em Florença, Roma, Paris e Madri; e no Oriente Médio, em Damasco (Síria). Em Londres, manifestantes carregando bandeiras, cantando e tocando cornetas saíram de várias partes da cidade para passar em frente ao Parlamento. Eles carregavam cartazes com frases como “Blair Mentiroso”, “Bush, terrorista número 1 do mundo”, entre outros. A Grã-Bretanha mantém 8.500 soldados no Iraque, e Blair afirma que eles só serão retirados quando a “estabilidade” for restabelecida. Nesse mesmo dia, a organização Human Rights Watch (HRW) divulgou mais um relatório sobre as atrocidades cometidas pelas

CMI

Igor Ojeda da Redação

Arquivo Brasil de Fato

Coca-Cola e agência do governo estadunidense se unem para atuar em países em desenvolvimento

Em Washington, cerca de cem mil manifestantes pedem o fim da ocupação do Iraque

tropas de Bush no Iraque. O documento revela que os soldados estadunidenses praticaram atos de tortura de forma regular, por um longo período de tempo, e com a autorização de seus comandantes. O documento desmente a versão oficial do governo dos EUA, que reafirma que os casos de tortura em território iraquiano foram “esporádicos” e produzidos sem permissão de superiores.

TORTURA ROTINEIRA A HRW entrevistou um capitão e dois sargentos que estiveram, entre 2003 e 2004, em uma base próxima a Faluja, reduto da resistência situado a oeste de Bagdá. Os militares, da 82ª divisão aerotransportada, denunciam que a tortura dos presos iraquianos era “rotineira” no local. Eles classificam como “freqüentes” práticas como “obrigar os presos a ficar uns por cima dos outros para formarem pirâmides humanas”. Aplicação de produtos químicos em seus olhos e na pele e privações de sono, água e comida também foram relatadas. Eles relatam ainda que, em uma ocasião, um soldado quebrou a perna de um prisioneiro com “um bastão de beisebol”. Um dos mi-

litares citados no relatório afirma que “na base” todos sabiam que quando o objetivo era “desafogar” as frustrações o que era preciso fazer era ir ao departamento dos “People Under Control” (Pessoas Sob Controle, em português). Ele acrescentou que alguns soldados do acampamento tinham cometido o mesmo tipo de crime durante a Guerra do Afeganistão. Outro militar citado pela HRW afirma que algumas das torturas eram especificamente ordenadas antes dos interrogatórios por oficiais da Inteligência Militar. “A administração pedia aos soldados que obtivessem informação dos detidos, sem dizer-lhes o que podiam ou não fazer”, denunciou Tom Malinowski, diretor da Human Rights Watch. “E depois, quando eram cometidos os abusos, o comando culpava os soldados e pedia a eles que assumissem a responsabilidade”, disse. “O fato mais grave revelado pelo relatório é a regularidade com que a tortura foi praticada no Iraque”, disse o assessor jurídico da organização, Reed Brody. “Pela primeira vez, ficou claro que alguns soldados tentaram denunciar a situação e seus chefes não lhes deram ouvidos”, completou. (Com agências internacionais)


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INTERNACIONAL NIGÉRIA

Rebeldes ocupam plataforma da Chevron D

esde dia 22 de setembro, cerca de 100 integrantes da Força de Voluntários do Povo do Delta do Níger ocupam a plataforma petrolera Idama, que pertence à transnacional Chevron, no sul da Nigéria. Eles protestam contra a prisão de seu líder, Mujahid Dokubo Asari, ocorrida no mesmo dia, e exigem uma distribuição mais justa dos recursos do petróleo. O grupo ameaça fazer voar as plataformas, se seu dirigente não for liberado imediatamente, diz um dos comunicados. Antes da ocupação os trabalhadores estrangeiros da petroleira foram avisados para que abandonassem a área. Asari e a Força Voluntária do Povo do Delta do Niger, que reúne mais de mil combatentes, exigem a soberania da etnia ijaw, a principal na região do Delta do Níger. O delta nigeriano produz 2,5 milhões de barris de petróleo por dia e faz da Nigéria o maior produtor de petróleo da África e o quinto maior dos países que integram a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). O país é também o quinto fornecedor dos Estados Unidos, mas a zona do Delta do Níger continua sendo uma das mais pobres e menos desenvolvidas do país. Segundo dados da Força Voluntária do Povo, “cerca de 80% da eletricidade gerada na Nigéria provem de turbinas de gás do Delta do Níger. Parte da eletricidade abastece o país vizinho, o Níger, no deserto do Saara. Mais de 70% das 3 mil comunidades e assentamentos na região não têm eletricidade”.

EXPLORAÇÃO E MISÉRIA “A tensão na região é devido a alguns grupos da população que realmente têm consciência do que está acontecendo: uma incrível quantidade de petróleo é explorada e exportada pelas multinacionais sem qualquer benefício para a po-

Riqueza produzida pela petróleo fica com as transnacionais, enquanto a população local vive na miséria

pulação local”, disse à agência de notícias Misna, o bispo nigeriano Festus Okafoa, da diocese de Port Harcourt. “Embora não partilhando as ações dos rebeldes, compreendemos os motivos das reivindicações. O que está acontecendo no Delta do Níger é uma tremenda injustiça social, pois a população vive na mais absoluta miséria. Não há estradas de acesso, não há hospitais ou infraestrutura e, sobretudo, trabalho”, conta o bispo Okafoa. Quando, por algum motivo, os jovens vão a Abuja – a “nova” capital construída a partir do nada, em 1976, pelo arquiteto japonês Kenzo, “têm a sensação de que os recursos do petróleo extraído na sua região são utilizados especialmente naquela cidade, bem iluminada, com estradas amplas e grandes prédios. Quando eles retornam, a

frustração é ainda maior.” Além da pobreza, a região do Delta do Níger sofre com os danos ambientais provocados pela exploração das transnacionais do petróleo. A poluição do terreno e dos lençóis freáticos afeta diretamente a saúde da população. Para calar os protestos, algumas corporações constroem escolas ou postos de saúde, poucas migalhas como investimento se comparadas com os

Joyce Mulama de Nairóbi (Quênia)

Arquivo Brasil de Fato

las e de pastoreio. Além das vítimas humanas, já devoraram cerca de 750 animais. Aproximadamente mil famílias tiveram de abandonar a área pelo temor de serem atacadas pelos felinos, enquanto as autoridades buscam soluções para resolver o problema ou matar os leões. Mas a caça para abater o maior número de felinos não é a solução do problema. Segundo os habitantes da zona, a ameaça tem sua origem no desmatamento que o Vale do Gibe sofreu nos últimos anos, o que obriga os leões a buscar novas zonas de caça. A Etiópia perdeu pelo menos 80% de suas florestas nos últimos trinta anos por causa de conflitos bélicos, da necessidade de destinar terras para cultivo e da poda de árvores para usar a lenha como combustível. (Com agências internacionais)

Em uma tentativa de mostrar seu compromisso com a luta contra a corrupção, o governo do Quênia anunciou que 65 parlamentares e ministros serão julgados por não terem declarado seus bens, como estabelece a lei. A declaração de bens é um método que o governo de Mwai Kibak, acusado de vários atos de corrupção desde que assumiu a Presidência em 2002, está aplicando para promover a transparência e a responsabilidade. Em 2003, o governo estabeleceu a declaração de bens como requisito na Lei de Ética do Funcionário Público. Segundo esta norma, todos os empregados públicos, desde o presidente do país até os porteiros, devem declarar sua renda, bens e dívidas, incluindo as dos cônjuges e dos filhos. A declaração jurada de bens de funcionários é um mecanismo habitualmente utilizado para detectar enriquecimento ilícito. Entretanto, ativistas pelos direitos humanos e contra a corrupção disseram que a lei é insuficiente, porque estabelece que a informação declarada é confidencial. “Como a população pode saber se seus líderes prestam contas quando a informação sobre seus bens é secreta? Se a lei torna ilegal revelar esse tipo de informação, para que serve?”, disse Jeff Birundi, coordenador da campanha Nomear e Envergonhar a Corrupção, uma rede de organizações anticorrupção com sede em Nairóbi, capital do país. Vários países africanos têm leis semelhantes sobre declaração de bens, mas que incluem divulgar a informação nos diários oficiais ou em registros abertos à consulta pública. Outros oferecem a informação sob pedido, gratuitamente ou a um custo mínimo.

ESCÂNDALO NO GOVERNO Destruição das matas faz leões invadirem povoados

O fato é que o “ouro negro nigeriano” está ganhando um significativo “peso político” para os Estados Unidos por causa das dificuldades de acesso às jazidas do Oriente Médio e o falimento de suas operações no Iraque. Dia 23 de setembro, a Chevron

Governo intensifica combate à corrupção no país

A fúria dos leões pela causa do desmatamento Na Etiópia, como nos demais países do continente africano, o leão é ainda o rei da floresta. Nos últimos 30 dias, pelo menos vinte pessoas foram devoradas por um grupo de felinos que invadiu terras do município de Soro, a 370 quilômetros ao sul de Adis Abeba, a capital do país, e próximo à fronteira com Quênia. O representante do governo em Soro, Tadesse Gishore, disse à agência de notícias etíope Walta que os leões começaram a tomar posições ao longo do Vale de Gibe em agosto e ficaram muito perto dos assentamentos humanos. Contra seus costumes, acrescentou Gishore, os leões estão se movimentando à luz do dia e atacando as pessoas que fazem trabalhos agríco-

TRANSNACIONAIS EM ALERTA

QUÊNIA

ETIÓPIA

da Redação

milhões de dólares gerados com a exploração do petróleo.

fechou outra plataforma, a de Robertkiri, que “estava sob ameaça iminente”, disse em Lagos a portavoz da transnacional estadunidense, Edith Azinge. Essa plataforma produz 19.000 barris de petróleo por dia. Ambas plataformas da Chevron são responsáveis por menos de 1% da produção nigeriana. Segundo a emissora britânica BBC, fontes policiais teriam dito que Asari estava detido por causa de uma entrevista que deu a um jornal, na qual teria dito que “continuaria a luta até obter a dissolvição da Nigéria”. Asari foi levado da localidade de Port Harcourt até Abuja. Desde esse momento, permanece incomunicável. Aparentemente as ações dos rebeldes contribuíram para o aumento dos preços mundiais do petróleo quando ameaçaram fazer guerra às companhias petroleiras. A agência de notícias Reuters informou que a Shell está enviando seu pessoal dos escritórios em Port Harcourt de volta para casa, por causa da “insegurança geral”. Mesmo assim, a multinacional mantém o resto de suas operações na zona do Delta, que se tornou mais importante do que já era, há três semanas, depois da inauguração do Gasoduto da África Ocidental, pertencente a Shell e Chevron, e financiado pelo Banco Mundial. Especula-se que este gasoduto facilitará a extração de petróleo na zona, ainda que as organizações da sociedade civil prevêem impactos ambientais negativos e socioeconômicos. (Com agências internacionais)

Aumenta a pressão sobre o governo para que reformule a lei, e

Arquivo Brasil de Fato

da Redação

France Presse

Força de Voluntários do Povo do Delta do Níger protesta contra a prisão de seu líder e a exploração injusta do petróleo

Esquema de corrupção também envolve presidente Mwai Kibak e ministros

assim torne pública a informação. As emendas à lei estão prontas desde o final de 2004 e incluem, entre outras, o acesso dos meios de comunicação aos dados a fim de estimular seu papel de vigilante, segundo o ministro da Justiça e Assuntos Constitucionais, Kiraitu Murungi. No ano passado, o clima ficou mais hostil para o acesso jornalístico a esses assuntos, depois da revelação de uma fraude no governo. O escândalo da empresa Anglo-Leasing, descoberto pela imprensa em abril de 2004, levou o governo a proibir os jornalistas a terem acesso a informações. Quem desobedecesse esta determinação enfrentaria graves conseqüências. Considerada a maior fraude cometida neste país do leste africano, o escândalo envolveu a concessão ilegal de projetos e pagamentos para a elaboração, entre outros fins, de passaportes “à prova de terroristas”. O dinheiro, 88,7 milhões de dólares, foi entregue à companhia estrangeira. Apesar de os ministros das Finanças e dos Transportes estarem implicados no escândalo, conseguiram se salvar até o momento.

Os ativistas consideram que a vontade do governo de combater a corrupção será medida pelo manejo do escândalo da Anglo-Leasing. “Não é questão de demitir quatro funcionários. A lógica da corrupção no Quênia, como no resto da África, indica que nenhum delito por uma soma tão grande pode acontecer sem um firme apoio político. Queremos saber quem esteve por trás disto e o que lhes acontecerá”, disse Maina Kiai, presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos no Quênia. Nairóbi afirma que não renegou seu compromisso contra a corrupção, citando sua recente decisão de contratar uma companhia britânica para rastrear 945 milhões de dólares tirados ilegalmente do país durante anos e depositados em contas bancárias estrangeiras. A empresa, Kroll & Associates, apresentou seu relatório em agosto. O governo de Kibaki deve revelar seu conteúdo. “Ainda estamos estudando o documento, antes de desenvolver um plano de ação”, disse Dorothy Angote, do Ministério da Justiça e Assuntos Constitucionais. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)


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NACIONAL SOBERANIA ALIMENTAR

Governo brasileiro dá mau exemplo Luís Brasilino da Redação

Greenpeace

Lembrando situação argentina, entidades internacionais criticam “submissão” de Lula à Monsanto OGMs por conta de uma atividade ilegal, o contrabando da soja RR da Argentina para o Rio Grande do Sul. “Estamos preocupados com a grande influência exercida pelas corporações de biotecnologia sobre o governo brasileiro quando comparada com o peso dos agricultores e da sua grande população”, alerta Helena.

A

PROBLEMAS À VISTA

Espanhóis se unem a outros ambientalistas europeus e protestam contra a exportação de produtos transgênicos do Brasil

nas a 140 funcionários do governo federal da Indonésia com vistas a liberar plantio e comercialização do algodão transgênico Bt sem a realização dos necessários estudos. No entanto, o ingresso das sementes no país foi um desastre. 70% dos camponeses que o cultivaram não conseguiram cobrir suas despesas e o produto teve que ser retirado da Indonésia. De acordo com Matthews, com a soja Roundup Ready o processo pode ser o mesmo. “Apesar das

Bombaim, em inglês), considera a postura de cooperação do governo brasileiro com as transnacionais completamente antipopular: “Um governo não pode permitir que seu campo seja entregue a interesses estrangeiros em troca do aumento nas exportações, principalmente se fizer isso sem consultar os agricultores”. Helena Paul, da EcoNexus (entidade de pesquisa e fiscalização científica do Reino Unido), lamenta o fato de Lula ter deixado o Brasil tornar-se um produtor de

conveniências em termos de gastos com herbicidas, o que é atraente para muitos agricultores, com o tempo essas sementes tendem a render menos que as variedades convencionais”, explica o diretor da GM Watch.

GOVERNO ANTIPOVO Nesse sentido, o indiano Kisan Mehta, presidente da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) Save Bombay Committee (Comitê para Salvar

Greenpeace

complacência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o lobby pró-transgênico tem chamado a atenção de entidades internacionais, que já escreveram a Lula (veja quadro abaixo) para alertá-lo sobre os riscos que o país corre com suas medidas. Primeiro foram as duas medidas provisórias, uma em 2003, outra em 2004, liberando a comercialização e o plantio de soja geneticamente modificada da Monsanto. Depois, a sanção da lei de biossegurança conferindo à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) o poder de aprovar produtos sem estudo de impacto ambiental ou à saúde. O golpe final pode vir na regulamentação da lei, prevista para as próximas semanas, fortalecendo ainda mais a CTNBio e recheandoa de representantes das corporações de sementes. O Brasil sempre foi tido como o principal fornecedor de insumos livres de transgênicos para o mercado internacional, principalmente a Europa, onde os organismos geneticamente modificados (OGMs) encontram forte resistência nos consumidores. O temor é que aconteça no país o mesmo processo da Argentina. Esse país nunca teve nenhuma legislação nem debate público amplo sobre transgênicos e, em 1991, a Secretaria da Agricultura criou a Comissão Nacional de Assessoria em Biotecnologia Agropecuária (Conabia) para estabelecer regras para a liberação de OGMs. “Com essas ferramentas totalmente antidemocráticas foram aprovados todos os transgênicos que, após alguns anos, invadiram a Argentina. A Conabia não realiza estudos próprios e baseia suas decisões em informações prestadas pelas corporações intenacionais”, revela Carlos Vicente, da organização não-governamental (ONG) argentina Acción por la Biodiversidad. O lobby pró-transgênico defende uma CTNBio nos moldes da Conabia. Para os argentinos, essa situação provocou a monocultura da soja transgênica Roundup Ready (RR) da Monsanto (a mesma que foi contraGlifosato – Poderoso herbicida bandeada para comercializado pela o Brasil, contaMonsanto, ao qual minando o Rio a soja transgênica é resistente. O glifosa- Grande do Sul) to mata tudo, menos e a fumigação a plantação. Porém, de 15 milhões começam a ser desde hectares com cobertos problemas para a saúde e para o herbicida glio ambiente decorfosato. Para se rentes de seu uso. ter uma idéia, essa área equivale a quase quatro vezes o território do Estado do Rio de Janeiro.

SÃO FRANCISCO

Bispo faz greve de fome para conter transposição da Redação Decidido a “entregar a própria vida pela vida do Rio São Francisco”, dom Luiz Flávio Cappio, bispo diocesano de Barra, na Bahia, iniciou uma greve de fome dia 26 de setembro. Para protestar contra o projeto de transposição do Rio São Francisco e defender uma política de convivência com o semi-árido, o religioso, de 58 anos, se instalou em uma pequena capela próxima do rio, na cidade de Cabrobó, Pernambuco – região na qual o governo pretende construir uma das tomadas de água para a transposição. Dom Luiz registrou em cartório um documento onde afirma que a greve de fome só será suspensa mediante documento, “assinado pelo presidente da República, revogando e arquivando o Projeto de Transposição”. A Lula, enviou uma carta em que declara ter sido sempre seu admirador e militante ativo do PT. Porém, confessou sua expectativa de que, “diante de tantos e consistentes questionamentos de ordem política, ambiental, econômica e jurídica, o governo revisse sua disposição de levar a cabo esse projeto que carece de verdade e de transparência”.

Em carta ao presidente Lula, ONGs estrangeiras pedem CTNBio transparente

ESTADO MÍNIMO

“Lula, estamos preocupados” O Sindicato dos Agricultores do País de Gales endereçou a Lula uma carta alertando que “ os cidadãos europeus continuam profundamente céticos com relação a modificações genéticas e existe um grande movimento de consumidores resistentes a sementes transgênicas”. O texto diz ainda que “encontrar fontes de proteína livres de modificação genética é um dos nossos maiores problemas e o Brasil sempre foi um fornecedor confiável desse material. Entretanto, os passos que o senhor tem, aparentemente, dado para permitir o plantio de soja transgênica são preocupantes”. O Consórcio Britânico de Mercados Varejistas pediu precaução e informou que “os varejistas britânicos estão determinados a manter seus produtos livres de transgênicos enquanto for possível”. A carta enviada a Lula pelo Consórcio informa que “será tremendamente difícil manter a confiança na produção de alimentos caso o Brasil deixe de oferecer soja não-transgênica”. Além dessas, outras oito entidades estrangeiras (da América Latina, da Ásia e da Europa) subscreveram abaixo-assinado entregue ao líder petista, dia 7 de setembro, reivindicando a construção de uma CTNBio transparente e imparcial. Dia 15 de agosto, as entidades britânicas GM Free Cymru, Genetic Food Alert, Small Farms Association, Save Our World Charity, The Institute of Science in Society e EcoNexus também pediram a Lula prudência e defesa da biossegurança.

Dom Luiz Cappio vive há 40 anos na região do médio São Francisco. Em 1993, realizou uma peregrinação de um ano, desde a nascente até a foz do rio, com objetivo de conscientizar o povo ribeirinho sobre a importância do São Francisco para a vida de todos e a necessidade de preservá-lo. Nessa ocasião foi apresentado a Lula por seu professor de teologia, Leonardo Boff. A Comissão Pastoral da Terra manifestou sua solidariedade a dom Luiz: “Entendemos a radicalidade, o profetismo e a magnanimidade de seu gesto. Quando em nível nacional assistimos à exibição da mediocridade, da mesquinharia, das atitudes mercenárias, o gesto de dom Luiz ganha um significado maior”. A greve de fome se iniciou no mesmo dia em que a Agência Nacional de Águas (ANA) concedeu outorga ao Ministério de Integração Nacional para o uso das águas do rio. Agora, o ministro Ciro Gomes espera autorização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para dar andamento à transposição.

João Zinclar

“É uma loucura total. A solução agora apresentada pela Secretaria da Agricultura é o rodízio da soja transgênica com o milho RR”, protesta Carlos Vicente. Para o argentino, o Brasil segue a mesma trilha, na medida em que o governo demonstra total subserviência à Monsanto e a suas políticas. Carlos Vicente avalia que em ambos os países as políticas agrícolas deixaram de ser decididas pelo poder público e pelos camponeses e são agora ditadas por corporações, com a cumplicidade dos latifundiários em busca de lucros imediatos. Jonathan Matthews, diretor da britânica GM Watch (Observatório de Geneticamente Modificados, na sigla em inglês), garante que a influência das transnacionais sobre governos vem de longa data. Em particular, ele lembra um caso revelado pelo jornal londrino Financial Times. Segundo o diário, entre 1997 e 2002, a Monsanto desembolsou 700 mil dólares para pagar propi-

Segundo a britânica, o governo não considerou os impactos de longo prazo dessa posição. “Acreditamos que o Brasil deveria se focar na produção de alimentos de alta qualidade para sua própria população e depois considerar a exportação dos excedentes. Não é correto continuar cultivando ração para porcos, galinhas e gado europeus”, denuncia Helena. Por isso, a neozelandesa Claire Bleakley, da GE Free Northland in Food & Envirioment (Terras do Norte Livres de Alimentos e Meio Ambiente Geneticamente Modificados), considera uma grande vergonha o Brasil ter permitido a entrada de sementes transgênicas. “Não há nenhum teste confiável para verificar a segurança dos alimentos transgênicos, que podem causar doenças desconhecidas e até a morte”, alerta Claire. Além disso, a ativista da Nova Zelândia assegura que, com apenas quatro temporadas de cultivo de OGMs, todas as sementes podem ser contaminadas por transgênicos, tornando a produção de produtos orgânicos impossível.

Dom Luiz reivindica arquivamento do projeto de transposição do Velho Chico


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DEBATE ELEIÇÕES NA ALEMANHA

Conseqüências para a esquerda Ana Saggioro Garcia Alemanha votou, só não se sabe em quem”. Essa é a frase mais repetida na mídia alemã após os resultados confusos das eleições antecipadas. No geral, o resultado foi bom para a esquerda: apesar de os partidos abertamente conservadores e neoliberais (CDU, CSU e FDP) terem maioria no congresso, se fossem somadas as bancadas dos partidos que tradicionalmente foram mais progressistas, o SPD e os Verdes, com a nova bancada do novo Partido de Esquerda, teríamos um quadro anticonservador. Além disso, o SPD perdeu 4% e os Verdes, 0,5%, em relação às últimas eleições em 2002, demonstrando o descrédito de suas políticas liberais de desmantelamento dos direitos sociais e trabalhistas. O SPD foi obrigado, no fim da campanha, a apelar ao seu tradicional papel como “representante da classe trabalhadora, desempregada, ou precária”, argumentando que os partidos conservadores aprofundariam ainda mais a flexibilização das leis trabalhistas e sociais. E mesmo o partido liberal, o FDP, tendo ganhado mais votos que antes (9,8%), isso se deve ao fato de que eleitores que tradicionalmente votavam no CDU/CSU mudaram para o FDP por não se identificarem com, ou mesmo serem contra a candidata Angela Merkel. Enfim, não se pôde verificar, após essas eleições, uma maioria liberal-conservadora na Alemanha; pelo contrário, os votos foram por mudanças. Contudo, nada mudou. Independentemente de qual coalizão for formada, o conteúdo das políticas neoliberais até agora levadas não mudará. Elas deve-

rão até se aprofundar. Mas uma voz parlamentar poderá fazer oposição a elas, canalizando as demandas vindas das ruas, das bases: a coligação PDS/WASG, formando o novo Partido de Esquerda, é a grande novidade no novo parlamento. Quem foram os eleitores desse novo partido, que conseguiu 8,7% dos votos? De acordo com a pesquisa Infratest-dimap e a ARD, mais de 25% desses votos vieram dos votos do Leste, da antiga Alemanha socialista, e somente 4,9% dos votos do Oeste. Na sua maioria, os eleitores dessa coligação têm entre 35 e 59 anos, são em grande parte desempregados (23%) e trabalhadores (12%). Ela foi eleita principalmente pelos temas “justiça social” e “mercado de trabalho”, e em regiões onde a taxa de desemprego é alta (20% dos eleitores nessas regiões). Os eleitores têm, em sua maioria, pouco poder de consumo, e estão divididos entre lugares com pouca e muita densidade demográfica. Em toda a Alemanha, um grande número de votantes (970 mil) mudou seus votos do SPD para o Partido de Esquerda, bem como 430 mil eleitores que não votavam passaram a votar nesse partido. Portanto, temos um quadro de eleitores de classes média

Kipper

“A

e baixa, desempregados, de faixa etária alta, e provindos de uma tradição socialista. (Para dados mais detalhados sobre todos os partidos e regiões, consulte http:/ /stat.tagesschau.de/wahlarchiv/ wid246/index.shtml) CETICISMO

Existe dentro da esquerda social organizada na Alemanha, entretanto, certo ceticismo em relação à concentração de forças em torno de um novo partido político, que, a seu ver, entrará no mesmo jogo que os outros, apelando ao pragmatismo para se manter no poder, abandonando os ideais e as demandas das bases, e não alterando a correlação social de forças. Ao mesmo tempo, existe um descrédito e uma crítica ao parlamento e à democracia excessivamente representativa, como uma demo-

cracia de especialistas e técnicos, onde os partidos acomodam seu aparato burocrático, dando pouco espaço a um real poder popular. Mesmo fundamentada, essas críticas não devem levar a uma total desestruturação da esquerda nos âmbitos institucionais e estatais. Muitas vezes, as vozes de parlamentares do PDS, e agora do Partido de Esquerda, são os únicos tons mais progressistas dentro das comissões parlamentares onde são debatidas e decididas questões da maior importância, como o planejamento orçamentário, a participação em guerras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), direitos humanos, ajuda e cooperação internacional, medidas e políticas da União Européia, entre muitos outros. De acordo com o Elmar Altvater em seu artigo para o semanário

Freitag (“Das ewige Haar in der Suppe”, 16/9/2005), os parlamentos perderam sua força na ditadura do mercado financeiro, e têm tido um importante papel na luta contra a globalização. Eles têm fóruns globais paralelos aos fóruns sociais, e, na Europa, levaram em frente a luta contra o Tratado Constitucional Europeu em conjunto com as forças sociais. Sem uma representação parlamentar, sindicatos e movimentos sociais não conseguiram barrar o total desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social feito pelo governo Schröder no último período legislativo. Talvez, com uma bancada de esquerda, essas medidas não passariam tão despercebidas. Enfim, não devemos nos exceder nas expectativas de uma mudança na correlação de forças que leve a uma transformação social profunda. Esse partido não tem forças para isso, essa é mais uma questão de organizar e formar a militância e a população “de baixo”, uma massa de homens, mulheres e crianças sem formação, sem emprego e em situação de vida precária, deixando às claras a decadência de uma sociedade que brilhou como potência econômica européia no período pós-guerra (e do lado oriental como país-chave da União Soviética) e, após a reunificação, mergulhou de cabeça no sistema capitalista neoliberal. Mas a re-fundação da esquerda institucional pode reforçar as articulações da esquerda social, introduzindo seus temas na opinião pública e canalizando suas demandas para dentro das instâncias estatais federais. Ana Saggioro Garcia é cientista política pela Universidade Livre de Berlim

PETRÓLEO

Se a Petrobras tivesse sido privatizada Paulo Metri preço da gasolina no Brasil precisa acompanhar o aumento de preço internacional? Não! Não precisa acompanhar o preço internacional! Para explicar essa resposta e informar o que está por trás da questão, há a necessidade de se contar alguns fatos recentes que aconteceram no nosso país. Em 1995, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso, seguindo determinação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, quis terminar o monopólio estatal do petróleo, esbarrou em um problema sério, pois não podia dizer claramente o que pretendia fazer, senão seu índice de popularidade despencaria. A população começava a identificar o seu baixo comprometimento com as causas nacionais. Então, ele chamou especialistas em criação de dubiedades para despistar as intenções escusas e encomendou uma emenda constitucional para terminar o monopólio, alterando o Artigo 177 da Constituição, sem parecer que era isso. Por incrível que possa parecer, como em um passe de mágica, eles conseguiram produzir a Emenda 9. É dessa época a criação do conceito de “monopólio flexibilizado”, ou seja, existe o monopólio do petróleo, mas várias empresas o produzem, possuem e vendem. Como dizia o Garrincha, eles só esqueceram de combinar com os autores de livros de economia para modificarem o conceito de monopólio que eles haviam mudado. Outros espertalhões argumentaram que o monopólio

CMI

O

patrimônio da Petrobras para as empresas petrolíferas estrangeiras – o que foi conseguido em parte, à medida em que a nossa empresa passou a realizar parcerias para minimizar a perda projetada. Quanto a argumentar que deve-se trazer a concorrência do setor externo de petróleo para o mercado interno de forma a baratear o preço dos derivados junto à população, é uma afirmação de extremo “mau caratismo”, pois sabe-se que o preço do barril do petróleo no mercado externo não é formado por competição, pois existe um cartel nesse setor. Ao retirarem o monopólio estatal do setor do petróleo do Brasil, colocaram as empresas do cartel internacional para competir com a Petrobras dentro do nosso país. OLIGOPÓLIO

do petróleo continuava existindo, mas o monopólio da Petrobras tinha sido extinto. INTERESSE CAMUFLADO

A Lei 9.478, aprovada em 1997, com o objetivo de regulamentar o novo Artigo 177 da Constituição, deixa bem claro o interesse camuflado na Emenda 9, pois ela extingue o monopólio. A Agência Nacional do Petróleo (ANP), que foi criada por determinação dessa lei, sendo, portanto, filhote do neoliberalismo, tem como finalidade extraída de sua própria página de internet “iniciar um novo processo para a efetiva flexibilização do monopólio anteriormente exercido pela Petrobras”. As razões oferecidas, à época, para a necessidade do término do monopólio eram, basicamente, a carência de recursos da Petrobras

para investimento e a necessidade de existir competição no país de forma a baratear o preço dos derivados para os consumidores. Não são argumentos que permitam concluir pela necessidade do término do monopólio, mas como não existia liberdade de expressão nessa época, a população ficou sem conhecer outro ponto de vista. Lembrem-se que, no início do governo FHC, os petroleiros entraram em greve e receberam a mais violenta resposta governamental dada a um sindicato por um governo eleito do país. A Petrobras gerava recursos suficientes para pagamento de empréstimos e possuia patrimônio que permitiria a ela ter crédito. Existia a proibição do FMI para que as estatais tomassem empréstimos. Obviamente, o Fundo queria forçar a transferência de

Até o momento, a Petrobras, por sua capacidade e competência, está conseguindo manter os derivados em preços baseados no petróleo nacional, mas corre o risco de perder espaço para o cartel, no futuro, e os derivados subirem muito no mercado interno. Assim, com o término do monopólio, trocou-se a atuação solitária da Petrobras no país pela atuação, a longo prazo, do oligopólio privado estrangeiro. Esse oligopólio não irá baratear nunca, nem em um centavo, o preço interno do barril de petróleo. Em contrapartida, irá querer sempre arrecadar pela venda de petróleo no país, o preço internacional. A Petrobras produz, hoje, cerca de 95% do petróleo de que o país precisa, podendo, portanto, não calcular o preço dos derivados para o abastecimento interno a partir

do preço do petróleo importado. O país, por meio dela, será também auto-suficiente em petróleo pelos próximos 17 anos – o que nos tranqüiliza, pois, se for decidida uma política de não transferência do preço internacional para dentro do país, ela terá fôlego para bancar essa política pelo período. O custo médio do barril produzido pela Petrobras no Brasil, no ano de 2003, foi da ordem de 13 dólares, sem incluir impostos e o lucro necessário para o reinvestimento. Com o valor de 30 dólares o barril, podemos produzir derivados bem abaixo do preço internacional e, com isso, impulsionar a economia nacional, graças à oferta um insumo básico barato, além de permitir a satisfação da população pelo consumo de GLP e gasolina mais baratos. Ter petróleo no nosso subsolo é um prêmio dado pela natureza que precisa ser usufruido pela sociedade e, não, ser remetido para o exterior para abastecer outros países, deixando aqui parcela mínima de imposto, comprando e empregando pouco no país. Mas algumas precauções precisam ser tomadas, se quiserem cobrar derivados mais baratos no país, como não permitir que o petróleo nacional seja exportado e o preço dos derivados para o mercado interno não inclua a parcela correspondente à percepção da escassez mundial futura. Com isso, o cartel sairia, espontaneamente, do país, não precisando nem reivindicar o retorno do monopólio estatal. Paulo Metri é conselheiro do Clube de Engenharia


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA NACIONAL

CEARÁ

DIA NACIONAL CONTRA A BAIXARIA NA TV 9 de outubro Promovido pela Campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania”, o Dia Nacional Contra a Baixaria na TV terá como slogan “Sintonize a Ética na TV”. Na data, haverá diversos eventos, entre eles um programa especial que será gerado pela TV Câmara e distribuído para diversas emissoras. A proposta é preparar uma programação especial e transmitir em rede, entre 12h e 13h, um programa com três blocos de debates a respeito das principais questões relacionadas à ética na TV. Movimentos sociais e organizações não-governamentais organizarão atos públicos para mobilizar as pessoas em várias cidades. Em Brasília, o ato será na Torre de TV; em Recife, na Praia da Boa Viagem; em Goiânia, na Feira da Lua. A página da campanha na internet é: www.eticanatv.org.br

SEMINÁRIO DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES 29 e 30 A intenção do seminário é fortalecer as ações de combate à violência sexual infantil por meio de compromissos e parcerias. Além de debater o tema, o evento vai analisar a situação específica do município e aprovar o Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes de Fortaleza. Local: Auditório da Procuradoria Geral de Justiça do Estado do Ceará, R. Assunção, 1100, Fortaleza Mais informações: (85) 3433-3504

DISTRITO FEDERAL 2ª FEIRA NACIONAL DA AGRICULTURA FAMILIAR E REFORMA AGRÁRIA 29 de setembro a 2 de outubro Promovida pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, a Feira foi concebida para divulgar e comercializar os resultados de experiências de assentados, pescadores artesanais, quilombolas, indígenas e agricultores familiares, além de empreendimentos agroindustriais, de turismo rural e artesanato. O evento terá uma ampla programação cultural, com shows noturnos, mostra de cinema rural – filmes de ficção e documentários nacionais sobre o mundo do campo, sua cultura, valores e luta, além de desfile de moda com produtos da agricultura familiar. Como novidade, a Feira deste ano terá uma Rádio Rural, cuja programação incluirá informações, serviços de utilidade pública, música e entrevistas com os expositores, especialistas e escritores que estejam lançando livros. Local: Pavilhão da Expo-Brasília, Parque da Cidade, Brasília Mais informações: www.mda.gov.br

9º PRÊMIO CIDADANIA MUNDIAL Inscrições até 10 de outubro Neste ano, o prêmio enfoca instituições e indivíduos que promovam a existência de uma mídia cidadã – sensível às populações vulneráveis, a preocupações, anseios e desafios que confrontam a sociedade civil, como a luta contra o racismo e o sexismo, o drama dos meninos e meninas de rua, a erradicação do trabalho infantil, os direitos dos idosos, a extinção do trabalho escravo, a inclusão das pessoas portadoras de deficiência nas políticas públicas – bem como a mídia que demonstra apreço pela diversidade humana objetivando a elevação da qualidade de vida de povos discriminados. Mais informações: www.bahai.org.br/premio VALE A PENA SONHAR A história de luta do militante Apolônio de Carvalho, 93 anos, está no DVD Vale a pena sonhar, de Stela Grisitti e Rudi Bohm. Apolônio combateu junto com os republicanos na Guerra Civil Espanhola e participou da Resistência Francesa contra o nazismo. No Brasil, entre outras atividades, lutou contra a ditadura militar e foi o primeiro filiado ao PT, em 1980. Para obter o documentário, envie uma mensagem por correio eletrônico para assinaturas@mst.org.br. Preço: R$ 30.

RIO DE JANEIRO ATO PELA DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO 20 de outubro, a partir das 16h Ato público em repúdio à política do ministro das Comunicações, Hélio Costa (PMDB-MG). A manifestação, batizada como “De Costas para Hélio Costa”, foi incorporada à programação da 3ª Semana Nacional pela Democratização da

Comunicação, uma iniciativa da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (Enecos). No Rio, a Semana acontece entre os dias 17 e 20 de outubro, com oficinas e debates, em locais a serem definidos. A data foi escolhida em função do Dia Mundial pela Democratização da Mídia, 18 de outubro. Local: Praça XV, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: paula_ almada@yahoo.com.br

SÃO PAULO

RIO GRANDE DO SUL 2º SEMINÁRIO INTERNACIONAL “O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI - MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS EM MEIO ABERTO E DE INTERNAÇÃO” 17 a 20 de outubro Durante o Seminário, também será realizada a capacitação “Atendimento jurídico ao adolescente em conflito com a lei”, de 19 a 21 de outubro Local: Universidade Regional Integral do Alto Uruguai e das Missões, R. Universidade das Missões, 464, Santo Ângelo Mais informações: urisan@urisan.tche.br

SÃO PAULO 5º COLÓQUIO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS 8 a 15 de outubro Organizado pela Conectas Direitos Humanos e pela Sur Rede Universitária de Direitos Humanos, o Colóquio é um evento anual de capacitação, troca de experiências e ação conjunta em direitos humanos voltado a ativistas do hemisfério sul. O tema do Colóquio, “Diálogo Sul-Sul para fortalecer os direitos humanos”, será abordado em cinco diferentes eixos: Estado de direito: um enfoque de direitos humanos, estratégias de ação coletiva para enfrentar a violência, transparência e indicadores: como medir o impacto de nossas ações, sustentabilidade financeira do movimento de direitos humanos, transparência de indicadores: como medir o impacto de nossas ações. Local: PUC-SP, R. Monte Alegre, 984, São Paulo Mais informações: www.conectas.org/coloquio 10º ENCONTRO FEMINISTA LATINO-AMERICANO E DO

ENCONTRO INTERNACIONAL ÁFRICA-BRASIL 12 a 14 de outubro Sob o tema “Igualdade racial: um desafio para a mídia”, o Encontro tem como objetivo promover um programa internacional de estudos entre jornalistas, comunicadores, pesquisadores, educadores, lideranças políticas e agentes culturais sobre os desafios que as questões relacionadas à etnia e à raça apresentam para a mídia e os processos de comunicação, na África e no Brasil. Além de disseminar experiências e análises de natureza antropológica, política e cultural, o Encontro destina-se à celebração de compromissos para a implementação de ações coletivas e de políticas públicas voltadas à igualdade racial. Durante o evento, a Agência Nacional pelos Direitos da Infância (Andi), de Brasília, apresentará um estudo sobre o comportamento da mídia impressa no que diz respeito ao tema da etnia e da raça, no Brasil. O Encontro é promovido pela Universidade de São Paulo/Núcleo de Comunicação e Educação (NCE-USP) em parceria com o Sesc-SP e o Instituto Internacional de Jornalismo e Comunicação de Genebra Local: Sesc Vila Mariana, R. Pelotas, 141, São Paulo Mais informações: africabrasil@usp.br, www.usp.br/nce

CARIBE 9 a 12 de outubro A proposta do Encontro é debater o feminismo e os meios de criar uma conexão entre o tema e as questões que estão colocadas hoje no mundo e na América Latina e Caribe. Du-

rante o evento haverá um espaço reservado para reuniões de articulações, redes e campanhas. Local: Hotel Vale do Sol, Serra Negra Mais informações: www.10feminista.org.br

LUTAS SOCIAIS

Uma outra América é possível Daniel Antiquera e Soraia de Carvalho de Londrina (PR)

France Presse

Lideranças populares e intelectuais discutem alternativas para resistir ao imperialismo e ao neoliberalismo

D

e 20 a 22 de setembro, a Universidade Estadual de Londrina realizou o 1º Simpósio Estadual de Lutas Sociais na América Latina, somando o debate teórico às experiências dos que enfrentam nas ruas os efeitos do imperialismo e do neoliberalismo. Apesar da efervescência política e social, não são os inimigos tradicionais os únicos obstáculos a um projeto alternativo. Fragmentação, ilusão com a institucionalização, distanciamento das massas e adaptação à lógica do mercado são desafios comuns no Brasil, na Argentina e na Bolívia. “O movimento dos piqueteiros está confuso. Parte está no governo, outros submetem-se aos interesses de partidos tradicionais”, avalia Toty Flores, líder do Movimento de Desempregados na Argentina. Segundo ele, o governo Kirchner cultiva a divisão com políticas assistencialistas.

CONQUISTAS Mesmo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos principais movimentos da América Latina, reconhece o longo

Movimentos sociais fazem autocrítica quanto poder de mobilização

percurso a ser transposto. “Somos uma parte muito pequena da complexa sociedade brasileira. Não chegamos a 50% dos trabalhadores rurais. Precisamos unir forças com outros setores”, diz Gilmar Mauro, da direção nacional do movimento. Esforços têm sido feitos nesse sentido, como a Coordenadoria Latino-Americana de Organizações do Campo (CLOC), que se reúne em novembro, na Guatemala. Tanto os trabalhadores brasileiros como os argentinos buscam

opções, principalmente por meio de cooperativas, como os assentamentos do MST e as empresas autogestionárias na Argentina. Renata Honório, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), considera os assentamentos uma conquista, mas os vê como territórios em disputa – o Estado pretenderia, por meio deles, conter a mobilização popular. “Outro problema é a necessidade de rentabilidade para pagar os empréstimos, o que pode tornar capitalistas os

empreendimentos”, alerta. O financiamento é um gargalo também para as experiências autogestionárias do país vizinho. Elas contam com verbas das embaixadas do Canadá, do Japão e de organizações nãogovernamentais. Flores diz que o assunto gera polêmica: “Questionamos os financiamentos do Estado e de empresas privadas”. Na Bolívia, os levantes contra os saques das multinacionais correm o risco de diluirem-se na luta eleitoral. O dirigente do Movimento ao Socialismo (MAS), Evo Morales, aparece em primeiro lugar na última pesquisa. No entanto, o professor boliviano Aldo Durán explica que uma particularidade do sistema eleitoral do país tem levado Morales a abandonar o radicalismo e fazer concessões aos setores conservadores. As eleições só são diretas no primeiro turno; o segundo é decidido pelo parlamento. Como nenhum candidato é capaz de conquistar maioria absoluta, o líder cocaleiro já ameniza o discurso e tende a ceder aos interesses dominantes.

EXPERIÊNCIA DO PT Priorizar a via eleitoral às lutas de massas não é exclusividade da Bolívia. A crise brasileira também

evidenciou as fragilidades da democracia burguesa. Para João Machado, da direção nacional do PSol, encerrou-se o ciclo do PT: “É preciso abandonar a convicção de que o Estado tem um papel decisivo nas transformações, resgatando o papel dos movimentos sociais e partidos socialistas”. O PSol propõe o resgate das origens do PT, o que é controverso. “O PT das origens foi problemático. Mesmo importante na política brasileira, não defendia claramente o socialismo. Precisamos fazer a crítica e autocrítica. Não estamos acorrentados ao PT ou outras experiências, mas temos que aprender com elas”, aponta o economista da Universidade Federal do Paraná Claus Gemer. O debate crítico entre os que estudam e atuam nas lutas sociais foi a maior conquista do encontro, segundo Eliel Machado, organizador do evento e coordenador do Grupo de Estudos de Política da América Latina: “Assim, a universidade retoma seu papel fundamental de agente de transformação social”. Restou um consenso: é possível e necessário modificar profundamente a realidade. “Não temos dúvida, outra América é possível, mas não só pela democracia formal”, defende Flores.


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CULTURA

De 29 de setembro a 5 de outubro de 2005

PROPRIEDADE INTELECTUAL

Direitos autorais, sob nova gestão O

advogado Ronaldo Lemos está à frente de um dos mais ousados projetos do movimento de resistência à apropriação do conhecimento como mercadoria, que acontece em larga escala: o Creative Commons. Diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (RJ), entidade responsável pela coordenação desse projeto no Brasil, ele fala de um problema que tem crescido, nos últimos vinte anos: “Houve uma ampliação tão grande da interpretação dos direitos autorais que até as próprias idéias estão começando a ser objeto de proteção intelectual”. Diante dessa realidade, em que institucionalmete a batalha vinha sendo ganha pela grande indústria do entretenimento, surge o Creative Commons, que oferece ferramentas e instrumentos legais para que a liberdade de criação e o compartilhamento do conhecimento sejam exercidos na prática. Em entrevista ao Brasil de Fato, Lemos contextualiza quando e como a criação intelectual virou objeto de negócios, fala sobre a imposição de padrões proprietários estadunidenses e os acordo bilaterais que os EUA impõem ao Terceiro Mundo. Brasil de Fato – Quando o conhecimento começa a ser apropriado como mercadoria? Ronaldo Lemos – O conhecimento como mercadoria é produto da era moderna e do direito autoral. Começa a virar mercadoria quando se inventa a imprensa. Para imprimir livros, precisava de capital, e para recuperar o investimento feito, era preciso garantir exclusividade ao editor – não era nem ao autor. A partir daí, o conhecimento começa a virar mercadoria. BF – Quando essa mercadoria adquire valor no mundo moderno? Lemos – No começo, só existiam dois tipos de obra: livro e partitura musical. No século 19, não circulava nada além disso. A partir do começo do século 20, tem-se a invenção dos fonogramas e começa a surgir um outro nicho, o da distribuição de música como mercadoria. No início, a música não era o foco dos negócios. Não se ganhava dinheiro vendendo música. Ganhava-se vendendo equipamentos. A música era um modo de incentivar a compra de equipamentos. Tanto que se formos olhar as marcas das gravadoras antigamente, eram todas ligadas a fabricantes de equipamentos. Tinha a Victor, negócio de vitrola. Só depois, com o vinil, e sobretudo com o CD, vender música virou um excelente negócio. BF – Como é a história do videocassete? Lemos – Durante todo o século 20, sempre que houve disputa entre os detentores da tecnologia e os detentores do conteúdo, a tecnologia ganhou. A partir da década de 1990, essa equação começou a mudar. E a história do videocassete é a da última vitória dos detentores da tecnologia. Quando a Sony inventou o videocassete, os estúdios de Hollywood a processaram, alegando que a empresa tinha inventado uma máquina de violar direitos autorais. O caso chegou na Suprema Corte, que eximiu a Sony de responsabilidade alegando que a tecnologia não deveria ser culpada porque o videocassete podia ter também usos legítimos. Então, uma tecnologia que tivesse usos legítimos não poderia ser condenada pelos usos escusos que viessem a fazer dela. E isso mudou. A partir da década de 1990, essa foi praticamente a última decisão

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Bel Mercês da Redação

pelo professor Lawrence Lessing, na Universidade de Stanford, dos EUA, quando ele tentou mudar a lei de direito autoral estadunidense por uma ação judicial na Suprema Corte e não conseguiu. Ele constatou que a lei não muda, mas a realidade mundial mostra que um número muito grande, milhões e milhões de pessoas, querem mais é que suas obras circulem, sejam vistas e ouvidas. Nesse sentido, o Creative Commons dá as ferramentas e os instrumentos legais para que as pessoas exerçam suas liberdades na prática. BF – Quais são as ferramentas? Lemos – São as licenças jurídicas do Creative Commons. Um artista pode licenciar a sua obra dizendo que não se importa se ela for baixada pela internet, e ele permite que as pessoas façam isso. Ele pode exigir que a obra não seja usada comercialmente, por exemplo, tem uma licença nãocomercial que diz o seguinte: pode baixar na internet? Pode. Pode vender e colocar na trilha sonora da novela? Não, precisa pedir a autorização para o artista. Assim, o artista escolhe quais direitos quer outorgar à sociedade.

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em favor da tecnologia. A partir de então, todas decisões são a favor dos donos do conteúdo. BF – Até que ponto o conhecimento pode pertencer a alguém? Lemos – O direito autoral foi criado, originalmente, para proteger a manifestação da idéia. Não protege a idéia, em si, ou, pelo menos, não protegia. O problema é que a gente tem assistido, nesses últimos vinte anos, a uma ampliação tão grande da interpretação dos direitos autorais que agora até as próprias idéias estão começando a ser objeto de proteção. É um grande movimento de privatização de coisas que eram livres, esse é o grande ponto. BF – Dê algum exemplo. Lemos – A proteção dos bancos de dados na Europa. O continente criou um dispositivo específico que protege os bancos de dados, independentemente de os conteúdos serem protegidos ou não por direito autoral. Então, se tiver um banco de dados só com fatos, número de CPF, outros números, isso não tem proteção de direito autoral porque não houve criação nenhuma em cima daquilo. Entretanto, criouse essa lei e, pelo mero fato de se compilar o banco de dados, a informação recebe uma proteção semelhante à do direito autoral. BF – E na cultura, como isso se reflete? Lemos – No cinema, por exemplo, quando o filme Doze Macacos estreou, um designer estadunidense percebeu que uma das cadeiras que apareciam tinha sido desenhada por ele. Aí ele processou Hollywood e conseguiu suspender a exibição do filme por vários dias. Está acontecendo essa verdadeira loucura em torno dos direitos autorais. Tudo é protegido. Se você for fazer um filme e não quiser ter nenhum problema, tem que filmar numa sala, com as paredes brancas e com seus amigos. Se não fizer assim, vai ter que passar por todo um universo de licenciamento de direitos. BF – Como isso acontece com a música, onde a criação atual reflete culturas que vêm se desenvolvendo ao longo dos séculos? Lemos – No sampling, você precisa de autorização para usar a letra de uma música, especificamente. E também para fazer qualquer mú-

sica em que use trechos de outras. Tanto que houve uma decisão recente, nos EUA, que causou muita polêmica até entre as próprias gravadoras. Sampling – Uso de trechos de gravaÉ o seguinte: ções já existentes mesmo que o em músicas, que sampling seja são incorporados numa nova compode 0,0001 sesição. gundo, precisa autorização. Quer dizer, mesmo que seja quase imperceptível na música. BF – Em que momento surge essa resistência à apropriação do conhecimento como mercadoria? Lemos – Por incrível que pareça, existe desde as décadas de 1950 e 1960. O grande exemplo são os países africanos. Tem um fenômeno chamado “grande crise Copyright – Ao internacional pé da letra, “direito do copyright”, de cópia”. Define que aconteceu a configuração de direitos, autorais no processo de ou de distribuição, descolonizaaos processos de criação intelectual. ção da África. O termo usado para Quando os paíaqueles que acredises europeus tam na livre circulação do conhecimen- saíram das suas to é o copyleft. respectivas colônias, os países africanos se revoltaram contra o copyright, achando que não tinha a ver com a estrutura das sociedades tradicionais. BF – Os padrões de propriedade intelectual foram impostos pelos EUA para o resto do mundo. Como isso aconteceu na África? Lemos – Isso não só aconteceu, como continua acontecendo. A África é um dos continentes que sofrem mais pressão para assinar tratados bilaterais. Países como Burkina Faso têm uma das proteções à propriedade intelectual mais rígidas do mundo. Assinaram tratados com os EUA que os obrigam a tomar mediadas de proteção tecnológica, enquanto a maioria da população é analfabeta. Quer dizer, é uma coisa que deveria ser vista como imoral. Os EUA trabalham esse padrão essencialmente nas negociações comerciais, nos tratados que estabelecem privilégios comerciais, ou de cooperação. Se está vendendo minério, tem que proteger a propriedade intelectual. Imagina Burkina Faso, imagina os países tradicionais, em que essa idéia de copyright nem é formulada. BF – O que é Creative Commons? Lemos – Foi um projeto criado

BF – É a flexibilização dos direitos de autor? Lemos – O Creative Commons trabalha com o direito do autor tal qual ele é. Essa batalha pela flexibilização passa pelos tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte, inclusive os tratados da Organização Mundial do Comércio. Lutar pela flexibilização dos direitos de autor é travar uma luta no plano internacional. O que o Creative Commons faz é colocar em prática e mostrar, na prática, que um outro mundo é possível, que uma nova forma de gestão da propriedade intelectual é possível. E faz isso com base em quê? Fornecendo ferramentas para que artistas e criadores intelectuais possam autorizar usos de suas obras. Lida com a idéia de generosidade intelectual, em que artistas mostram que não há nada de catastrófico em permitir o uso de suas obras. BF – Esse movimento tem assustado os grandes “proprietários” do conhecimento? Lemos – Eu não diria assustado. Claro que é um modelo novo. Essas pessoas estão muito focadas nos modelos de negócio tradicionais, então muitas vezes elas sequer notam as novas formas de criação. E isso é uma fraqueza, um defeito, uma vulnerabilidade dos modelos tradicionais, não perceber que, inclusive, uma nova forma de fazer negócios é possível. BF – O futuro é a abolição das indústrias de entretenimento e das gravadoras? Lemos – Eu sou pessimista porque acompanho as mudanças da propriedade intelectual. O que tenho assistido é o seguinte: a batalha

Arquivo Pessoal

Projeto inovador fornece ferramentas para que os autores possam democratizar o acesso da sociedade a suas obras

Quem é Ronaldo Lemos da Silva Jr. é coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Mestre pela Universidade de Harvard e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, coordena o Creative Commons no Brasil. está sendo travada juridicamente. E cada vez mais a indústria, sobretudo a estadunidense, tem conseguido vitórias legais que permitem com que os modelos tradicionais de negócios delas persistam. E vão conseguir uma sobrevida por dez, quinze, sei lá quantos anos. Dependendo do quanto essas mudanças da propriedade intelectual vão se aprofundando. BF – O que se discute na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) para aplicar o conceito de propriedade intectual nos conhecimentos tradicionais? Lemos – Querem criar um tratado que emula a propriedade intelectual para os conhecimentos tradicionais. Agora, como fazer isso? As conseqüências podem ser dramáticas. Vários dos princípios em discussão são completamente legítimos, louváveis. O problema é: como se executam esses princípios. É a privatização de tudo. Um tratado como esse parte de uma visão unilateral de que é sempre o país rico que se apropria dos conhecimentos do país pobre. E ignora o fato de que as grandes trocas de conhecimento acontecem, na verdade, entre os próprios países pobres, e entre os países pobres e os países ricos. Pode-se criar um tratado em que a linguagem seja tão complicada que inclua coisas que são livres como sendo privadas. E aí vai ser preciso pedir autorização para tocar jazz. Ou para tocar hip hop, pior ainda. BF – Essas comunidades tradicionais chegaram a ser consultadas sobre a proposta? Lemos – Chegaram, de forma pouco expressiva. Várias comunidades sequer entendem o conceito de propriedade. Então, como vão participar da discussão? Primeiro, eles precisam entender. O problema é que prepondera essa visão unilateral. E as comunidades têm diversas opiniões, não há consenso.

Como tirar licenças e fazer pesquisas Em todo o mundo, cerca de 20 milhões de obras usam a licença Creative Commons. No Brasil são centenas de milhares de cineastas, escritores, músicos, fotógrafos. A banda pernambucana Mombojó é entusiasta do projeto, o ministro da cultura Gilberto Gil também. Um bom exemplo é a cidade de Olinda, que ganhou o título de capital cultural do Brasil e acabou de lançar um projeto que faz dela a primeira “Cidade Creative Commons” do país. O autor deve entrar na página da internet e escolher a licença. Se a obra estiver publicada na internet, o Creative Commons gera um código que o autor copia, cola e coloca em sua página da internet. Se é um CD, o autor precisa colocar na capa ou na contracapa um aviso de que é licenciado em Creative Commons. O autor pode permitir o uso da obra inteira ou partes dela. Na página do Creative pode-se pesquisar obras licenciadas. O Mozilla Fire Fox (programa de uso livre que faz nevegação na internet) tem uma barra de ferramentas do Google onde há um buscador do Creative. O usuário digita o termo que quer pesquisar e o programa mostra fotos licenciadas referentes ao tema. O Yahoo também tem um buscador para obras do Creative. (BM)


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