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EDIÇÃO ESPECIAL TRANSPOSIÇÃO

Ano 3 • Número 137 São Paulo • Outubro de 2005

O São Francisco resiste e protesta Ruben Siqueira de Juazeiro (BA)

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s movimento sociais brasileiros vão levar adiante a reivindicação do frei Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese da Barra (BA), que durante 11 dias fez greve de fome para se manifestar contra o projeto de transposição de águas do Rio São Francisco. No dia 9, cerca de 1.200 pessoas representando mais de 60 organizações populares com presença em vários Estados nordestinos fizeram um encontro na cidade de Juazeiro (BA), ribeirinha do São Francisco, para dar prosseguimento às mobilizações desencadeadas com a greve de fome. Trata-se da Assembléia Popular pela Vida do Rio São Francisco, do Semi-Árido e do Brasil, convocada por entidades populares da região, e que contou com a presença do próprio frei Luiz. O bispo foi recebido com festa e homenageado por uma coreografia realizada por crianças ao som da música composta por ele próprio, que diz: “Meu Rio de São Francisco, nessa grande turvação, vim te dar um gole d’água e pedir sua bênção”. Simbolizando a adesão dos presentes à sua luta, o religioso entregou às crianças a imagem de São Francisco Peregrino e recebeu bandeiras e bonés das várias organizações.

Roberto Pereira/AE

Movimentos populares abraçam a causa de frei Luiz e preparam ação conjunta para exigir o fim do projeto de transposição

Moradores de Cabrobó (PE) participam de romaria em apoio ao bispo e frei fransciscano Luiz Cappio, durante o período de sua greve de fome

gem (MAB), o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) e outros –, a assembléia construiu e aprovou uma Carta-Compromisso. Também compareceu ao encontro dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que discursou reforçando o significado ético e mobilizador do gesto de frei Luiz.

Dom Luiz, vestindo a camisa do “Comando Virgulino em Defesa do Sertão”, grupo de artistas da região, mostrou sinais de abatimento e cansaço, mas quis permanecer toda a manhã em companhia dos movimentos populares. Ao discursar, o frei disse ainda confiar que o governo vai cumprir o acordo firmado em Cabrobó (PE), no dia 6, pelo qual decidiu interromper a greve de fome. Caso contrário, “poderíamos ter a ousadia de dizer que o governo mentiu, houve um blefe”, afirmou ele, completando que, neste caso, voltará a fazer greve de fome, contando com mais gente o acompanhando. Depois de afirmar que em toda a sua vida de militante “vestiu a camisa do Lula”, agora esperava que o presidente vestisse a sua camisa, “a mesma de milhares de nordestinos do semi-árido”. Frei Luiz disse que o sentido do seu gesto em defesa da vida, levantando-se contra uma decisão autoritária do governo, foi entendido pelo povo organizado e aquela assembléia era expressão disso. O religioso afirmou que agora esperava que o movimento desencadeado crescesse e forçasse o governo a recuar e a abrir um amplo e transparente debate nacional sobre o semiárido e o São Francisco, capaz de definir a melhor forma de desenvolver sustentavelmente toda região, com prioridade para os mais pobres. Com base nas falas de representantes dos principais movimentos presentes – como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Atingidos por Barra-

venção da polícia ou protestos mais sérios por parte dos que trafegavam. Lida a Carta-Compromisso, foi realizado um simbólico abraço ao rio, com as pessoas dando-se as mãos e repetindo em voz alta os compromissos firmados na assembléia. A solidariedade ao frei Luiz no Nordeste não se resumiu a esse ato. No dia 4, militantes do

Gervásio Baptista/ABR

DEFESA DO SERTÃO

Após a assembléia, os participantes saíram em passeata pela cidade até a orla fluvial, onde muitos moradores se encontravam nos bares. Depois, os manifestantes tomaram a movimentada ponte Presidente Dutra, que liga a cidade baiana à pernambucana Petrolina, e a interditaram por mais de uma hora, sem que houvesse inter-

MPA iniciaram uma greve de fome em Cabrobó (PE), pontes e estradas foram bloqueadas em quatro Estados do Semi-Árido, uma cerimônia ecumênica foi realizada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, mais de mil pessoas protestaram nas ruas de Salvador (BA) e em frente ao Palácio do Planalto.

Nem agronegócio ganha com a transposição Projeto é a cara da indústria da seca. Solução faraônica que não ataca o problema da falta de recursos hídricos da população. Pior, quintuplica o custo da água e afeta a matriz energética. Pág. 2

Ministro Ciro Gomes, da Integração, comanda o rolo compressor do governo para implementar a transposição do São Francisco

O rolo compressor do governo A Justiça baiana cassou, dia 7, a licença prévia concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) para as obras de transposição do Rio São Francisco. Assim, está em suspenso o processo que culminaria na licença de instalação, a derradeira etapa legal que o governo federal precisa superar para iniciar a construção dos canais. Caso a permissão seja concedida, em poucos dias o exército irá a campo iniciar as obras, uma vez que o Tribunal de Contas da União (TCU) não concluiu o processo de licitação (previsto para o dia 26) e as empreiteiras não foram definidas. Trata-se da última demonstração do que o frei Luiz Flá-

vio Cappio, em greve de fome, chama de “rolo compressor” do governo. O próprio Ibama, responsável agora pela palavra final acerca da construção, já deu mostras de subordinação às pressões vindas do Palácio do Planalto e do Ministério da Integração Nacional, o empreendedor do projeto. Dia 29 de abril, o Instituto concedeu a licença prévia da obra sem que nenhuma das audiências públicas programadas nos Estados doadores, onde a oposição ao projeto é mais forte, fosse realizada. Nas que aconteceram, o governo fez uma apresentação de duas horas e concedeu somente três minutos para cada integrante da platéia se manifestar. Essa postura

fez o professor Apolo Heringer, coordenador do Projeto Manuelzão, de Minas Gerais, apontar a transposição como “a guerra do Iraque” do governo Luiz Inácio Lula da Silva, dada a falta de debates e de “seriedade”. UM GOLPE

No entanto, foi em janeiro que a Integração Nacional promoveu seu maior golpe na sociedade civil. Depois de uma batalha jurídica que se arrastou por quase dois meses, dia 17, o governo conseguiu reverter decisão do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) que restringia o uso externo das águas do Rio São Francisco (o objetivo da transposição)

Uma luta pelo povo sofrido do velho Chico Exigindo “soluções verdadeiras e sustentáveis para a região semi-árida”, o bispo dom Luiz Cappio ficou 11 dias só ingerindo água do Rio São Francisco para protestar contra a sua transposição. Pág. 3

Convivência com o Semi-Árido é o caminho Soluções específicas para cada realidade são resposta aos desafios impostos pela seca. Cisternas e mandalas, dentre outras alternativas mais baratas, podem levar desenvolvimento ao Semi-Árido. Pág. 4


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ESPECIAL TRANSPOSIÇÃO

Por que o frei não aceita a transposição Regiões beneficiadas não têm déficit hídrico e projeto, de R$ 4 bi, pode quintuplicar preço da água Luís Brasilino, da Redação

Os novos rumos

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o dia 30 de setembro, o frei Luiz Flávio Cappio expôs ao povo do Nordeste seus motivos para se opor à transposição. Suas palavras: “Há muito tempo, os poderosos querem fazer vocês acreditarem que só a água do Rio São Francisco pode resolver os problemas que vos afligem todos os anos, no período da seca. Não é verdade. Estes mesmos problemas são vividos à pouca distância do Rio São Francisco. Ter água passando próxima não é a solução, se não houver a justa distribuição da água disponível. E temos, perto e longe do rio, muitas fontes de água: da chuva, dos rios e riachos temporários, do solo e do subsolo. O que está faltando é o aproveitamento e a administração competente e democrática dessas águas, de modo a torná-las acessíveis a todos, com prioridade para os pobres”. No artigo Transposição do Rio São Francisco: Realidade e Mito, Roberto Malvezzi, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), reforça o que diz frei Luiz com dados que só o governo parece não enxergar. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), uma região apresenta estresse de água apenas quando sua disponibilidade é inferior a mil metros cúbicos por habitante/ano (m³/hab/ano). O Estado brasileiro mais seco é Pernambuco, com 1.270m³/hab/ano. Já o Ceará e o Piauí, dois dos supostos beneficiários da transposição, possuem mais água por habitante do que São Paulo ou o Rio de Janeiro. Como argumenta Cappio, os problemas atuais podem ser superados via técnicas alternativas de convivência com o Semi-árido (ver página 4).

O Projeto de Integração da Bacia do São Francisco às Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional prevê dois canais – o menor, a Leste, que levará água para Pernambuco e Paraíba, e o maior, na direção Norte, atendendo Ceará e Rio Grande do Norte. A captação do canal Norte ocorrerá nas imediações da cidade de Cabrobó; para o canal Leste, será no lago da barragem de Itaparica, ambos em Pernambuco. O canal Norte levará água para os rios Salgado e Jaguaribe (CE); Apodi (RN); e Piranhas-Açu (PB e RN). O canal Leste levará água até os rios Paraíba (PB), Moxotó e Brígida (PE). Nos anos hidrologicamente favoráveis, a vazão total dos dois canais será de 63m³/s; nos demais anos, corresponderá a 26m³/s – o equivalente a 1,4% da vazão média do rio, medida no reservatório de Sobradinho, na Bahia.

O bispo diz mais: “Não lhes contam toda a verdade sobre este projeto da transposição. Ele não vai levar água a quem mais precisa, pois ela vai em direção aos açudes e barragens existentes e, a maior parte, mais de 70%, é para irrigação, produção de camarão e indústria. Isso consta no projeto escrito. Além disso, vai encarecer o custo da água disponível e estabelecer a cobrança pela água além do que já pagam. Vocês não são os reais beneficiários deste projeto. Pior, vocês vão pagar pelo seu alto custo e pelo benefício dos privilegiados de sempre”. Segundo o hidrólogo João Abner, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN), nem os empresários do agronegócio, que receberiam aqueles 70% da água da transposição, como menciona frei Luiz, serão beneficiados. “O projeto é um verdadeiro presente de grego para todos os setores da economia do Semi-árido porque a água que vai chegar terá um custo elevadíssimo”, informa o professor. Depois da obra, a estimativa é que o custo da água será de R$ 0,11 o m³. Hoje, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) fornece água a R$0,023 o m³, portanto, cinco vezes menos. Com isso, os insumos produzidos pelo agronegócio perderão competitividade no mercado internacional e precisarão ser subsidiados pelo go-

verno. Ou seja, mais uma na conta da população, isso se nenhum país contestar tal subsídio na Organização Mundial do Comércio (OMC), o que é muito provável.

UM RIO DE DINHEIRO Não se pode esquecer que o governo planeja investir, em quatro anos, mais de R$ 4 bilhões na obra de transposição. Quase o dobro do que foi investido na reforma agrária em 2004. Pior, também consta do projeto que o sistema estará em funcionamento completo apenas quando quase toda (94%) represa de Sobradinho estiver abastecida. Assim, os canais da transposição só serão utilizados em sua plenitude a cada onze anos, em média.

Um outro erro grave do governo é considerar insignificante o volume de água (25m³ por segundo) que vai ser retirado do rio, 1% do que chega ao mar. O certo seria considerar a vazão alocável do São Francisco, que é de 360m³/s. Destes, 335m³/s já estão outorgados. Logo, os 25m³/s são tudo o que sobrou. Já o resto da água do rio - aquilo que não pode ser retirado, ou 1.500m³/s - destinam-se à produção de energia elétrica. Daí vem mais um problema resultante da transposição que, segundo Abner, pode gerar um conflito nacional. “Como o sistema Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) já está funcionando no seu limite, a transposição vai implicar numa mudança muito grande na matriz energética no Nordeste, pois será necessário trazer energia de fora, ou gerá-la por meio de termoelétricas”, explica. Assim, terá que ser produzida energia para a transposição e para os usos da nova água nos Estados receptores. Isso para não falar da água que vai ser retirada com a transposição. “A implicação disso tudo é um aumento de custo da energia elétrica em todo o sistema nacional”, alerta Abner. Por fim, a transposição não deve ser feita, pois se encaixa perfeitamente na lógica da velha indústria da seca. “Grandes obras, uso de muito dinheiro, empreiteiras gigantes e pouca discussão. O principal problema do Semi-árido é a falta de terra e de água. Do total de unidades agrícolas do país, 42% estão nessa região. São 2 milhões de famílias de pequenos agricultores, com pouquíssima terra, apenas 4,2% do total. E nossa visão é a de que a transposição não vai alterar isso”, resume Roberto Malvezzi.

Priscila D. Carvalho, de Brasília À toque de caixa, o governo federal tenta impor o projeto de transposição do rio São Francisco aos povos indígenas fazendo vistas grossas ao que determina a lei. A Constituição Federal estabelece que, para o aproveitamento de recursos hídricos de terras indígenas, é necessário consultar as comunidades afetadas previamente e submeter o projeto à aprovação do Congresso Nacional. No entanto, nada disso foi feito pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Críticos do projeto, a oposição dos povos indígenas afetados pela transposição está sendo ignorada. O projeto prejudicará diretamente pelo menos 5 povos: os Truká, os Pipipã, os Pankararu e os Kambiwá, em Pernambuco; e o Tumbalalá, na Bahia. “No Eixo Leste, o projeto pega água dentro da terra dos Pankararu. No Eixo Norte, capta água em Cabrobó, em terras Truká e Tumbalalá”, afirma Ailson Truká, representante dos povos indígenas no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). A estimativa é que há cerca de 70 mil índios, de 24 povos indígenas, vivendo ao longo dos 2.700 km do Rio ou nas suas imediações. O Ministério da Integração Nacional afirma que as consultas não seriam necessárias porque o São Francisco não passaria por dentro de territórios indígenas. O rio apenas

Roberto Pereira/AE

Governo desrespeita a lei e os indígenas

Indígenas Tumbalalá dançam toré em apoio ao protesto de frei Luiz

delimitaria a terra indígena. Entretanto, há ilhas do São Francisco que são parte das terras dos povos Truká. Além disso, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, reconhecida pelo Brasil em abril deste ano – durante o governo Lula –, diz, em seu artigo 6º, que “os governos deverão consultar os povos em questão, mediante procedimentos apropriados (...) toda vez que sejam examinadas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar-lhes diretamente”. Em 17 de fevereiro, uma iniciativa da Companhia Independente de Operações e Sobrevivência em Área de Caatinga (Ciosac) tentou quebrar o cordão de silêncio em torno dos povos indígenas e marcou uma reunião para aquele

dia com representantes governamentais, no município de Cabrobó (PE). O encontro, no entanto, acabou não ocorrendo. A polícia pernambucana dispensou tratamento “diferenciado” aos indígenas que chegaram ao município para a reunião, revistando-os e exigindo documentos. No dia anterior à reunião, a TV Grande Rio, afiliada local da Rede Globo, veiculou uma reportagem dizendo que a reunião seria cancelada por falta de segurança. O cacique Truká, Aurivan dos Santos, avalia que quiseram naquele momento “criar a imagem de que o povo está sendo intransigente. Mas nós queremos fazer o debate”.

IMPACTO DAS OBRAS Em um dos mapas presentes no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) apresentado pelo Mi-

nistério da Integração Nacional, aparecem dez povos indígenas na área de influência indireta da obra, mas o relatório cita impactos apenas sobre os povos Truká, Pipipã e Kambiwá. As piores “interferências com populações indígenas” indicadas no texto seriam causadas pela “maior movimentação de pessoas de fora – trabalhadores da construção”, porque elevaria “as possibilidades de aumento no contato com as comunidades indígenas”. Entre as medidas para diminuir o impacto da obra, sugere-se um programa de apoio com ações de compensação para “suprir carências reais desses grupos diante da nova situação”, “divulgar intensivamente programas de saúde, com ênfase especial para doenças infecto-contagiosas e sexualmente transmissíveis”, e “orientar trabalhadores das obras sobre cuidados que deverão ser tomados quando tiverem contato com as comunidades indígenas”. Nenhuma linha discorre sobre a necessidade da demarcação da terra dos Pipipã, um povo que há quatro anos luta pela criação de um Grupo de Trabalho para identificação de seu território, sem resposta da Fundação Nacional do Índio (Funai). Nenhuma linha há também sobre a possibilidade de aumento do interesse econômico sobre as terras indígenas, ou sobre o impacto da presença de grandes plantações irrigadas. Nem sobre a necessidade de outorga para uso da água que vai beneficiar

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Silvio Sampaio • Assistente de redação: Bel Mercês • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. • Apoio: Cáritas Brasileira, Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Comissão Pastoral da Terra (CPT).

os grandes agricultores com propriedades irrigadas e impedir o acesso dos ribeirinhos e dos indígenas. Todos esses previsíveis impactos são citados por Ailson Truká. O relatório lista possíveis ações para o desenvolvimento das comunidades indígenas. São quatro itens ligados a alternativas de sustentabilidade e melhoria dos serviços de saúde e saneamento. “Precisamos de um levantamento bem feito. O governo que a gente elegeu está esmagando o povo indígena. Conversei pessoalmente com o Lula, que disse que era contra a transposição. É uma obra eleitoreira para ele e para o Ciro Gomes (ministro da Integração, ex-tucano) também”, diz a liderança indígena. O caráter eleitoral da obra também é criticado pelo secretário do CBHSF, Luiz Carlos Fontes. “O governo está agindo de forma atropelada. Não há justificativa para isso que não de ordem eleitoral. Esta decisão não deveria ser tomada de forma superficial. A água tem um valor econômico muito grande. Esse é um projeto de transferência de patrimônio, emprego, renda e recursos hídricos de uma região para outra. A região do São Francisco também é semi-árida e também não é atendida pela água. Se esse projeto acontecer, quem tem força política pode usar os recursos naturais de outro Estado. Se o governo rasgar a lei e impuser que determinado grupo faça uso do patrimônio natural, ele vai abrir um precedente grave”. Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815


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ESPECIAL TRANSPOSIÇÃO

Uma vida pelo São Francisco C

omo se ainda fosse necessário mais algum sinal místico para o frei Luiz Flávio Cappio adotar a greve de fome como último recurso possível contra a transposição das águas do Rio São Francisco, a certeza veio no dia em que a Agência Nacional de Águas (ANA) concedeu a outorga e o Certificado de Sustentabilidade Hídrica ao projeto. Não bastasse frei Luiz ser franciscano, ter nascido no dia em que se celebra a morte de São Francisco e estar decidido a entregar a sua vida pela do rio, o religioso ainda se viu impelido a entrar em greve de fome no mesmo dia em que a ANA deu a sua licença ao projeto – 26 de setembro, a mesma data de nascimento do santo. A data, desconhecida pela agência e também pela maioria dos fiéis (já que os dias dos santos se referem aos dias de sua morte), não passou em branco aos olhos de frei Luiz. “Estou desde 26 de setembro de 2005, dia do nascimento de São Francisco, em jejum e oração permanente”, escreveu, referindo-se à data, em carta endereçada ao povo do Nordeste. “Estou em Cabrobó, Pernambuco, às margens do São Francisco (local onde está previsto o ponto de captação no eixo norte do rio), numa capela dedicada a São Sebastião. Minha disposição, amadurecida e lúcida, é de dar a minha vida pela vida do Rio São Francisco e de seu povo, contra o projeto de transposição, e em favor de soluções verdadeiras e sustentáveis para a região semi-árida”, diz outro trecho da carta. Há, ainda, mais coincidências. Frei Luiz nasceu justamente na mesma data em que se comemora o dia de São Francisco (4 de outubro, quando há 779 anos, o santo foi sepultado em Assis, na Itália, aos 45 anos). Em 2005, nesse dia, frei Luiz completou 59 anos e 9 dias de greve de fome.

Degradação – O desmatamento é o pior de todos. Há um grande desmatamento nas proximidades do rio. E, os grandes desmatamentos nas áreas de nascente são uma condenação do rio à morte. Também a devastação das matas ciliares, que são aquelas na beira do rio, que protegem os barrancos e não deixam acontecer o assoreamento. Então o rio fica cada vez mais largo, cada vez mais raso e todo assoreado. Durante o período de greve de fome, frei Luiz Cappio fez duras criticas ao governo por não dialogar com os movimentos sociais e ribeirinhos

do rio, que trata de “Irmã Água, preciosa e casta, humilde e boa”. Mais um ensinamento de São Francisco – o santo dos pobres, dos humildes e protetor dos animais – que, no “Cântico das Criaturas”, trata a água como “Irmã bondosa, útil e bela”. Bispo da diocese de Barra, na Bahia, desde 1997 (escolhido por não ter outro que se dispusesse a viver na região), frei Luiz vive na beira do rio há mais de 30 anos. Antes de vir para o sertão nordestino com a roupa do corpo, este paulista de Guaratinguetá, filho de italianos, ordenado sacerdote franciscano em 1971, trabalhou três anos na periferia de São Paulo, junto à Pastoral Operária. No dia 4 de outubro de 1992, para alertar os ribeirinhos dos sintomas de morte do rio, e como prova de seu amor por ele e por seu povo, o religioso iniciou uma peregrinação de 6 mil quilômetros ao longo do São Francisco, completada em um ano. A experiência gerou o livro O Rio São Francisco – Uma Caminhada entre Vida e Morte. O religioso saiu da nascente do rio, na Chapada da Zagaia, na Serra da Canastra, em Minas Gerais, até chegar, no dia 4 de outubro de 1993, no Oceano Atlântico, entre Alagoas e Sergipe. Em 1994, durante a Caravana da Cidadania pelo São Francisco realizada por Lula, frei Luiz foi

Poluição – A poluição é outro grande problema. O rio hoje é um grande esgoto a céu aberto, seja dos dejetos sanitários das cidades e vilas à beira do rio que jogam seus dejetos direto no rio, seja também os dejetos químicos das indústrias lá na região de Belo Horizonte, do Sudoeste de Minas, que é uma região bastante industrializada. Isso devagarinho vai matando o rio. Irrigação – A irrigação é um outro problema. Não há nenhum gerenciamento das águas. Não que a gente seja contra a irrigação. De maneira nenhuma, mas não existe nenhuma administração da água tirada. Quer dizer: cada um pega o que quer, sem dar satisfação a ninguém. Isso não pode.

apresentado a ele por seu professor de teologia, Leonardo Boff.

RAZÃO E LOUCURA

1. De livre e espontânea vontade assumo o propósito de entregar minha vida pela vida do Rio São Francisco e de seu povo contra o Projeto de Transposição, a favor do Projeto de Revitalização.

Aos que acham sua atitude extrema, frei Luiz responde: “Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho”. Mas, ao contrário do que isso possa dar a entender, deixa bem claro que não não deseja a morte: “Eu não quero morrer, mas eu quero vida para todos”, disse durante missa que reuniu cerca de 2.500 pessoas em frente à capela em que estava, em Cabrobó, no dia 4 de outubro. Sem saber do peso e dos desdobramentos da negociação levada a cabo pelo governo, frei Luiz garantiu que só encerraria a greve em posse de documento “assinado pelo Exmo. Sr. Presidente da República, revogando e arquivando o Projeto de Transposição”, como estava previsto em sua declaração registrada em cartório. O texto dizia ainda que caso o documento de revogação, devidamente assinado pelo Exmo. Sr. Presidente, chegasse quando ele não fosse mais senhor dos seus atos e decisões, por caridade, deveriam prestar socorro a ele, pois seu desejo era o de não morrer.

2. Permanecerei em greve de fome, até a morte, caso não haja uma reversão da decisão do Projeto de Transposição.

DETERMINAÇÃO

IRMÃ ÁGUA Mas o religioso não pode ser acusado de planejar que seu protesto coincidisse com o período de celebração de São Francisco. Muito antes, na Páscoa, o religioso registrou em cartório sua predisposição em sacrificar a sua própria vida “pela vida do Rio São Francisco e de seu povo” logo que a ANA aprovasse o projeto. Durante os dias que ficou sem comer, frei Luiz só ingeriu água

Argumentos do bispo dom Luiz Flávio Cappio, da diocese de Barra (BA), que fez 11 dias de greve de fome contra o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco. Importância do São Francisco – O Rio São Francisco é de grande importância para o povo, para a vida. Aprendemos a amá-lo, pois ele é um grande gerador de vida para toda a população ribeirinho. Mas, nós percebemos que o rio estava num profundo processo de morte, mostrando, a cada ano, sintomas cada vez maiores de morte.

João Zinclar

Marcelo Netto Rodrigues da Redação

Agência Estado

Após 11 dias ingerindo apenas água do rio, frei diz que volta à greve se acordo for descumprido

Não engulo a transposição

“Uma Vida pela Vida” Declaração de dom Luiz Flávio Cappio, registrada em cartório na Páscoa: Em nome de Jesus Ressuscitado que vence a morte pela Vida plena, faço saber a todos:

3. A greve de fome só será suspensa mediante documento assinado pelo Exmo. Sr. Presidente da República, revogando e arquivando o Projeto de Transposição. 4. Caso o documento de revogação, devidamente assinado pelo Exmo. Sr. Presidente, chegue quando já não for mais senhor dos meus atos e decisões, peço, por caridade, que me prestem socorro, pois não desejo morrer. 5. Caso venha a falecer, gostaria que meus restos mortais descansassem junto ao Bom Jesus dos Navegantes, meu eterno irmão e amigo, a quem, com muito amor, doei toda minha vida, em Barra, minha querida diocese. 6. Peço, encarecidamente, que haja um profundo respeito por essa decisão e que ela seja observada até o fim. Barra, Bahia, domingo de Páscoa de 2005 Dom Frei Luiz Flávio Cappio, OFM R.G.: 3.609.650 C.P.F.: 291.828.835-72 “Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho” (frei Luiz) Para saber mais sobre a luta de frei Luiz Cappio e assinar o abaixo-assinado contra a transposição, visite a página www.umavidapelavida.com.br

Ele deixou claro, ainda: “Peço, encarecidamente, que haja um profundo respeito por essa decisão e que ela seja observada até o fim”, um pedido feito para motivar o povo a protegê-lo caso a polícia ou médicos tentassem levá-lo à força para algum hospital nos momentos finais. O religioso sabe que, tradicionalmente, um desejo de morte é visto como lei entre as pessoas simples do povo. O recado parece ter surtido efeito. Romeiros que chegavam para visitá-lo, “queriam estar próximos do bispo como se quisessem protegê-lo ou como se quisessem sua proteção”, reportou à Agência Carta Maior, frei Florêncio Vaz, que esteve com frei Luiz nos dias 1º e 2.

Frei Luiz ficava cada dia mais fraco. “De sábado para domingo, foi visível como ele definhou, ficou com os gestos mais lentos e com o rosto mais magro”, relatou frei Florêncio. Era dado como certo em Cabrobó que o bispo só sairia dali em procissão, ‘celebrando a vitória do povo ou indo para o cemitério num caixão’. E Lula é quem carregaria este caixão por toda a vida. O presidente já havia, por duas vezes, tentado demover frei Luiz de sua determinação em levar a sua greve de fome até as últimas conseqüências antes de selar o acordo pelo qual decidiu suspender sua greve. Mas Lula não falava em arquivamento do projeto. Primeiro, enviou uma carta convidando o frei a ir à Brasília. O religioso rejeitou o convite, considerando que a carta não mudava a posição do Planalto. Depois, Lula fez uma proposta, por meio do deputado Walter Pinheiro (PT-BA), de liberar R$ 400 milhões para a revitalização do rio, antes de dar início às obras de transposição. Como se a situação já não estivesse delicada, Lula afirmou, no dia 3, “que se todo mundo fosse fazer greve de fome por alguma coisa, ficaria complicado”. Uma declaração no mínimo constrangedora sabendo-se que Lula leu a última frase da primeira carta que frei Luiz lhe escreveu: “Minha vida está em suas mãos”. No dia 4, para piorar ainda mais a situação, frei Luiz havia respondido em mensagem gravada: “Presidente, em toda minha vida vesti a sua camisa, e neste momento, eu espero que você vista a minha”. Após o acordo firmado, a dúvida ainda persiste, já que quando perguntado por um repórter sobre o futuro da transposição, o ministro Jacques Wagner respondeu rispidamente: “Você ouviu em algum momento eu citar a palavra adiamento?” Como isto fazia parte do conversado, frei Luiz já se antecipa: “Se o acordo for descumprido, eu volto à greve de fome”.

Modelo de agricultura – O modelo de agricultura usado é outro problema. Utiliza-se muito agrotóxico e isso vai aos poucos para o rio e envenenando cada vez mais as suas águas. Barragens – As grandes barragens impedem a subida dos peixes para a desova e está acabando com a vida do rio, que também está se transformando em imensos lagos. Hoje a pesca é rara no rio, que outrora foi um rio viscoso, cheio de peixe. Conscientização – Nas nossas caminhadas, procuramos fazer um grande trabalho de conscientização do povo ribeirinho, sobre a importância do rio e a necessidade de preservá-lo. Procuramos estabelecer diálogo com toda população ribeirinha, para que compreendessem o rio como um grande dom de Deus para a vida deles. Portanto, era preciso iniciativas para preservá-lo. Projeto de transposição – É um projeto que demanda muito dinheiro e um consumo muito grande de energia elétrica. E quem vai pagar a conta com certeza será o povo. Eles escondem os verdadeiros interesses políticos e econômicos. Não existe nenhum projeto social realmente sério de redenção, de desenvolvimento do povo onde o rio passa naturalmente. Não conseguiram resolver o problema do povo onde o rio passa naturalmente. Agora querem resolver problema do povo onde sequer passa. Portanto, é um projeto destinado às elites e para as grandes empresas trasnacionais. Projetos alternativos – Penso que a melhor solução é investir nos projetos alternativos. Existem muitos projetos alternativos, de pequeno custo, de gerenciamento mais adequado, sem problemas ecológicos, como a construção de tanques para armazenamento da água de chuva, construção de pequenos açudes, poços artesianos. São pequenas iniciativas que solucionam o problema das pequenas comunidades, sem exigir esses investimentos faraônicos. Revitalização – Anêmico não doa sangue. Se quiser que o rio São Francisco doe, garanta a vida dele. Então nós somos pela revitalização do rio em primeiro lugar para depois pensar em levar água para outras regiões.


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ESPECIAL ALTERNATIVAS

Existem soluções ecologicamente viáveis Suylan Midlej de Brasília (DF)

Caritas

Em vez de grandes obras, que benefíciam o agronegócio, há opções mais baratas e mais eficazes

O

A cisterna caseira é uma alternativa simples e barata que garante o abastecimento das famílias durante a estiagem

Quanto ao aproveitamento das águas subterrâneas e da água de chuva, existem tecnologias tradicionalmente simples e de baixo custo que possibilitam captar a água de onde ela está. Um exemplo são as cisternas, construções de placas de cimento, areia, brita e armações de ferro utilizadas para captação, conservação e utilização da água gerada pelas chuvas. As cisternas se localizam geralmente ao lado das casas e por meio de uma calha ligada ao telhado armazenam em média 16 mil litros, água suficiente para suprir as necessidades básicas de uma família de cinco pessoas durante o período de estiagem. Malvezzi afirma, ainda, que não basta ter água no Semi-Árido. Para viabilizar um desenvolvimento sustentável é preciso uma reforma

ANÁLISE

O Brasil aproveita muito pouco o seu potencial de águas subterrâneas e desdenha da potencialidade da captação da água de chuva. O Semi-Árido brasileiro é um dos que mais apresentam incidência de chuva no mundo, sendo a captação dessa água uma das mais eficientes tecnologias de combate à seca e promoção da segurança alimentar e dignidade humanas. Experiências alternativas de barragens e perenização de rios têm sido desenvolvidas pelos próprios agricultores e pelas organizações populares. É o caso das barragens subterrâneas, que armazena água de chuva e de braços de rio no solo, o que permite a fertilidade para o plantio e produção, e das barragens sucessivas de saco de areia, que pereniza pequenos trechos de rios que normalmente não mantém volume suficiente para garantir o abastecimento. Além dessas, só para citar, estão sendo desenvolvidas também: cisternas subterrâneas, hortas de lona, cacimbas, barreiros de trincheira, pequenos açudes, caldeirões (tanques de pedra) e mandalas. Todas essas tecnologias vêm sendo pensadas e experimentadas no intuito de garantir água para consumo humano e animal, água para produção de alimentos (segurança alimentar e nutricional) e para comercialização

REVITALIZAÇÃO Outra ação mais do que necessária para a convivência com o SemiÁrido, segundo Malvezzi, é a revitalização do Rio São Francisco. “O

das populações ribeirinhas. Malvezzi acredita que com essas medidas o Rio São Francisco pode recuperar sua força, a fauna e a flora que um dia teve.

COMITÊS Malvezzi lembra que a Lei de Recursos Hídricos nº 9.433/97 prevê a criação de comitês de bacias constituídos pelo poder público, pela sociedade civil e por usuários, tendo como atribuição elaborar planos diretores. Mas o Ministério da Integração Nacional está passando por cima das recomendações do comitê da bacia do Rio São Francisco, que deu parecer contrário à transposição. E finaliza: “É preciso que haja um projeto de desenvolvimento sustentável para o Semi-Árido, e a transposição não garante isso”.

REVITALIZAÇÃO

Por um desenvolvimento mais justo Luís Cláudio Mandela e Marcela Menezes

governo federal diz que já iniciou um projeto de revitalização, mas é tão insignificante que ninguém percebe absolutamente nada. Isso porque, na verdade, não se percebe um projeto objetivo de recuperação da bacia”, afirma. A revitalização, de acordo com outros estudiosos, deve ser um processo continuado de redução dos impactos ambientais ocorridos ao longo dos 500 anos da descoberta do rio. A revitalização seria um processo associado a tantos outros, como a construção de um modelo de desenvolvimento agropecuário (agroecologia); reflorestamento; nova gestão dos centros urbanos (esgoto, lixo, detritos); repovoamento das espécies nativas; demarcação das terras indígenas; dragagem e valorização social, cultural e econômica

agrária adaptada a esse bioma único do planeta, com terra e água. A proposta da Articulação do Semi-Árido (ASA), que reúne mais de 800 entidades, é o projeto “Uma Terra e Duas Águas”: terra suficiente para cada família que vive na área rural, uma captação de água de chuva no pé da casa para consumo humano e uma área de captação de água de chuva na roça para produção. “Foi dessa maneira que a China resolveu o problema básico de insegurança hídrica e alimentar de dois milhões de famílias de seu Semi-Árido”, descreve.

dos excedentes agrícolas, baseados na economia solidária.

PEQUENAS OBRAS As experiências demonstram que por meio de pequenas obras de infra-estrutura, de baixo custo, para captação e armazenamento, construídas a partir da mobilização e da participação ativa das comunidades, com o uso de tecnologias desenvolvidas e apropriadas localmente, é possível descentralizar o acesso à água. É preciso que toda a sociedade brasileira comece a encarar o Semi-Árido enquanto um lugar possível de se viver dignamente, com cidadãos e cidadãs ativos e ativas, capazes de gerenciar sua própria água e fazer valer os direitos humanos de se alimentar, ter moradia e participar ativamente da construção de um país melhor e mais igualitário. Ao se posicionar contra a transposição, a Cáritas Brasileira se posiciona a favor de um projeto de desenvolvimento que efetivamente mate a sede com eqüidade, dignidade, justiça e responsabilidade. Luís Cláudio Mandela é engenheiro agrônomo, mestre em desenvolvimento rural e assessor nacional do Programa de Convivência com o Semi-Árido da Cáritas Brasileira Marcela Menezes é psicóloga e articuladora do Programa de Convivência do Semi-Árido da Cáritas Regional NE III

Recuperar a vida do rio deve ser uma prioridade Priscila D. Carvalho de Brasília (DF) “Reconhecemos que o São Francisco está doente, tem água de má qualidade. São 505 municípios depositando esgoto, dejetos, metais pesados. Nós estamos morrendo aos poucos, temos doença de pele, vermes. A lavoura não dá mais, como dava antes. Não temos mais peixe porque o peixe não cresce se não tem mata ciliar para ele se alimentar. Não tem mais capivara, o jacaré está escasso. O que precisamos é que o Rio São Francisco seja tratado. Que as nascentes voltem a gerar água, que se pare de desmatar nas margens do rio para evitar assoreamento”. A fala é de Ailson dos Santos Barros, liderança do povo Truká, para quem a revitalização deveria ser prioridade nos investimentos no Rio São Francisco, em vez do projeto de integração de bacias. A posição de Truká coincide com a da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. O Comitê afirma, no documento “Carta de Salvador”, que a revitalização deveria ser a prioridade nos investimentos da política de recursos hídricos do governo federal, “até que o diálogo amplo entre as partes interessadas possa nos indicar quais são as soluções mais sustentáveis para o desafio da escassez hídrica do Semi-Árido brasileiro”.

João Zinclar

Semi-Árido alcança aproximadamente 1 milhão de km2 onde estão 30 milhões de pessoas. Nem por isso as ações nessa região precisam ser megalomaníacas, como se pretende com o projeto de transposição do Rio São Francisco. São várias as soluções ecologicamente viáveis para se conviver com o Semi-Árido e para salvar o São Francisco, embora o governo federal insista em repetir a fórmula das grandes obras, que beneficiam principalmente o agronegócio. Segundo Roberto Malvezzi (Gogó), da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), há um consenso entre várias entidades da sociedade civil, Banco Mundial, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), comitê da Bacia do São Francisco e especialistas como João Abner da Costa (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e Aldo Rebouças (Universidade de São Paulo), de que a solução hídrica do SemiÁrido passa pela construção de uma malha de distribuição de água estocada nos açudes, pelo aproveitamento sustentável das águas subterrâneas e pelo aproveitamento minucioso da água de chuva que cai todos os anos sobre essa região. Vários estudos apontam que o grande problema não é a falta de água, mas a distribuição, pois existem as chamadas sobras de água do rio ou dos açudes. A alternativa da malha de distribuição faria a água chegar às casas por meio de tubulação. Com a transposição, essas águas seriam destinadas aos projetos de irrigação e não às populações mais necessitadas, adverte Malvezzi. Além do quê, “atender a essas populações com outras ações custaria algumas vezes menos que transpor, inclusive porque a água transposta será muito cara”, orienta.

A sociedade deve encarar o Semi-Árido como um lugar de se viver com dignidade

A revitalização do rio incluiria obras de saneamento básico - já que cerca de 150 municípios das margens do São Francisco ainda jogam esgotos e lixo no rio -, o controle da qualidade da água, a reposição de matas ciliares, a contenção dos desmatamentos que geram assoreamento do rio e combate à desertificação. Dentro do projeto de transposição, o governo prevê investimentos de R$ 100 milhões para a revitalização do rio em 2005, a serem gastos pelos Ministérios da Integração Nacional e pelo Ministério do Meio Ambiente. “O programa de revitalização do São Francisco contempla ações voltadas para o reflorestamento de áreas críticas, a construção de barragens em rios

afluentes, a melhoria da calha navegável do seu curso médio, o tratamento de esgotos das cidades e vilas localizadas nas suas margens, o controle da irrigação e a educação ambiental. Há também ações para a melhoria das condições de vida das comunidades ribeirinhas”, diz a página da internet do Ministério da Integração Nacional. Para Luiz Carlos Fontes, Secretário Executivo do Comitê de Bacia do São Francisco, a sociedade não deve aceitar a revitalização como moeda de troca para a transposição: “Ela foi apresentada pelo governo para diminuir a resistência ao projeto, e agora o governo quer que todo projeto de revitalização - novo ou antigo - seja visto como parte do projeto de transposição”.


Ano 3 • Número 137

R$ 2,00 São Paulo • De 13 a 19 de outubro de 2005

O drama do povo na Guatemala S

eis dias de descaso. Esse foi o tempo que o governo da Guatemala levou para socorrer as vítimas de uma das maiores catástrofes que já atingiram o país. Dia 3, o furacão Stan provocou chuvas fortes e deslizamentos. Comunidades inteiras foram destruídas. A situação dos camponeses é caótica. Faltam água potável, comida, transporte e medicamentos. Uma missão internacional da Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc) visitou a área atingida e constatou que a ajuda governamental se resume a sacos de milho, feijão e soja dos EUA.

As vítimas têm resistido graças ao apoio de igrejas, das ONGs e das próprias comunidades, além da solidariedade de médicos cubanos e de bombeiros espanhóis. Congresso – As vítimas receberam uma homenagem de 88 representantes de organizações camponesas da América Latina que estiveram na Cidade da Guatemala, capital do país, entre os dias 9 e 11, para o 4º Congresso da Cloc. O encontro ratificou a luta dos camponeses no continente: reforma agrária, soberania alimentar e resistência ao imperialismo, entre outras bandeiras. Pág. 10

Ulises Rodríguez/EFE/AE

Furacão deixa milhares de mortos, a maioria camponeses indígenas; sobreviventes sofrem com descaso do governo

Terremoto e disputa por território matam na Ásia Dia 8, mais de cem mil paquistaneses e indianos morreram em conseqüência de um terremoto. A área mais atingida foi a Caxemira, onde houve dezenas de milhares de vítimas. A ajuda

aos sobreviventes tarda, pois os governos do Paquistão e Índia, que disputam o controle da área, não entram em acordo para formar equipes de resgate e apoio. Pág. 11

Mal a economia Greves nas respira, governo federais seguem fala em inflação sem definição As greves nas universidades federais não têm dia para acabar. As propostas apresentadas pelo MEC estão sendo consideradas insuficientes pelos servidores públicos e professores, representados por Sinasefe, Fasubra e Andes, parados há pelo menos um mês e meio. No dia 19, os três sindicatos programam manifestações conjuntas em todo o país. Pág. 4 Maringoni

A turma do arrocho, leia-se Ministério da Fazenda e Banco Central, com suas análises da economia baseadas em falsas premissas, e o amargo remédio dos juros, faz o país pagar um preço alto. Porque atira a atividade econômica em um mar de instabilidade, que afugenta investimentos produtivos, congela a criação de empregos, freia o crescimento. Pág. 7

Sobreviventes do furacão Stan, na Guatemala, sofrem pela falta de água potável, comida e medicamentos

Mais protestos contra a transposição A greve de fome de 11 dias do frei Luiz Flávio Cappio colocou a transposição do Rio São Francisco no centro do debate nacional. O Brasil de Fato traz

caderno especial sobre o projeto contestado também por diversos movimentos sociais. Ao religioso, o presidente Lula prometeu discutir o projeto. Para o frei, a

transposição é parte da indústria da seca e deve ser substituída por soluções de convivência com o Semi-Árido. Edição Especial

3 mil sem-teto ocupam terreno em São Paulo

Quilombo é reconhecido no Paraná

Chávez combate o narcotráfico na Venezuela

Pág. 3

PETRÓLEO – Dia 17, vão a leilão 1.134 blocos, que representam 3,4 bilhões de barris. As empresas transnacionais agradecem. Pág. 5

Pág. 9

Relembrar Vlado e outras vítimas da ditadura

Luciney Martins/ BL 45Imagem

E mais:

Pág. 6

DIREITOS IGUAIS – Após passar por 53 países, a Marcha Mundial das Mulheres chega a Burkina Faso. Pág. 12 COMUNICAÇÃO – Em parceria com universidades, Observatório de Favelas do Rio lança Escola Popular de Comunicação Crítica. Pág. 13

Em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, 1.500 famílias de sem-teto participam da ocupação Chico Mendes

Em 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi torturado até a morte em cela do DOI-Codi paulista. Um ano depois, na mesma cela, foi a vez do metalúrgico Manuel Fiel Filho. Hoje, lembrar o assassinato de Vlado é reafirmar que nenhuma das vidas destruídas pela ditadura militar brasileira caiu no esquecimento. Mesmo aquelas que tiveram o destino da vala comum, com suas identidades falsificadas. Caso de Flávio Carvalho Molina, cujos restos mortais só foram devolvidos à família após uma via crucis de 34 anos. Pág. 8


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De 13 a 19 de outubro de 2005

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, 5555 Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Solidariedade camponesa

D

e 9 a 11 de outubro, organizações camponesas da Guatemala receberam representantes de 88 entidades membros da Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc) de 25 países, para a realização de seu 4º Congresso. Diante da tragédia que atingiu o país, em conseqüência da passagem do furacão Stan, as organizações guatemaltecas tiveram de tomar a difícil decisão de dar continuidade ao congresso, apesar da destruição de muitas comunidades indígenas e camponesas. O desespero de militantes que perderam familiares foi compartilhado entre os participantes. Essa experiência representou mais um desafio para organizações camponesas, que já sofreram situações semelhantes durante as catástrofes causadas pelo furacão Mitch, na América Central, e pelas ondas gigantes conhecidas como Tsunami, na Ásia. As fortes tormentas que atingiram a Guatemala dia 5 causaram a morte de milhares de pessoas e a destruição de comunidades inteiras. Milhares de pessoas continuam desaparecidas, provavelmente soterradas nos deslizamentos de terra. Somente após seis dias do início da tragédia a ajuda governamental começou a chegar, mas ainda de forma muito insuficiente. Tanto a

imprensa nacional quanto a internacional omitiram dados realistas sobre a dimensão da destruição e das perdas de vidas humanas. Em resposta, as organizações camponesas decidiram promover campanhas de solidariedade internacional e enviaram uma delegação para verificar a real situação das comunidades mais atingidas, à beira do lago Atitlán. A população sobrevivente sofre com a falta de alimentos, água, transporte, medicamentos e abrigo. É impossível constatar a dimensão total dos estragos, uma vez que muitas comunidades seguem completamente isoladas. A perda quase total das lavouras significa que a população enfrentará a falta de comida por muito tempo. A maioria da ajuda vem de organizações sociais e religiosas. Toda a comunidade local se mobilizou em mutirões de trabalho, para arrecadar, transportar e distribuir mantimentos, consertar estradas e organizar abrigos para milhares de pessoas que perderam suas casas. As comunidades contam ainda com o trabalho voluntário de médicos cubanos e bombeiros espanhóis. O governandor Júlio Ruez, do Estado de Solola, onde se encontram as áreas mais atingidas,

demonstra empenho em atender as vítimas, mas a omissão do governo federal é evidente. O presidente Oscar Berger sequer visitou a região. O governo estadual reclama da falta de meios de transporte, como lanchas e helicópteros, para chegar até as comunidades atingidas. Por outro lado, o governo federal já anunciou que vai destinar grande quantidade de recursos para atender as áreas dominadas pelo latifúndio, onde predomina a agricultura para exportação. O Estado da Guatemala tem um forte aparato militar, utilizado durante décadas para promover um dos maiores esquemas de repressão da história das ditaduras na América Latina. Estima-se que mais de 200 mil pessoas tenham sido assassinadas no país durante esse período. Hoje, os povos indígenas e camponeses, que representam a maioria da população gualtemateca, vivem uma nova tragédia. Sofrem os efeitos devastadores das chuvas, em conseqüência da destruição ambiental causada por grandes empresas. Porém, a tradição Maya desses povos, sua sabedoria e sua força, nos enchem de esperança. A solidariedade é um dos principais pilares da luta camponesa.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES CORAGEM Quero parabenizar esse jornal pela coragem com que vem lutando contra os algozes do pensamento único da mídia burguesa. É também por isso que me orgulho de ser assinante desse veículo de comunicação. Sou estudante de Geografia da Unesp de Presidente Prudente e tenho lutado para que a nossa biblioteca assine o Brasil de Fato. Até agora não obtive êxito, mas continuarei tentando. Embora seja assinante desse jornal, há pouco tempo, perdi algumas reportagens sobre a exploração dos cortadores de cana, principalmente na região de Ribeirão Preto. Então, gostaria de saber se é possível receber essas reportagens – principalmente a matéria que relata a morte de trabalhadores de tanto trabalhar – por correio eletrônico. Claudemir Mazucheli Canhin por correio eletrônico MARACUTAIAS DO CONGRESSO Esse nosso Congresso, fustigado pelos mais diversos tipo de escândalos envolvendo corrupção financiada por empresas de telecomunicações, por bancos, enfim, por interesses privados, precisa fazer algo em defesa do interesse público – sua própria razão se ser. Esse Congresso precisa demonstrar que não está a soldo de grupos que privatizaram a telefonia, doadores de vários milhões para deputados, aprovando a isenção de pagamento da assinatura de telefones

fixos, projeto da Câmara que até hoje foi o que teve mais apoio da população, a qual também recorreu aos tribunais, dezenas de milhares, pela eliminação lesiva da cobrança. Não aprovando o projeto, os deputados demonstram que estão do lado dos financiadores de suas eleições. Antonio Rodrigues de Souza São Paulo (SP) DESARMAMENTO Incapazes de desarmar os bandidos, os nossos governantes, que vivem bem guardados e longe das ruas, optaram por desarmar o povo. E é o que pretendem ao impor um “referendo” que traz em sua publicidade, implicitamente, em qual das opções apresentadas deveremos votar. Quem mais agradecerá pela proibição da venda de armas e munição serão os bandidos, os quais ficarão mais a vontade para roubar, estuprar e matar. Os contrabandistas também serão gratos, pois seus negócios serão ampliados. Teremos taxas de desemprego ainda maiores, enquanto o emprego aumentará nos países fabricantes de armas/ munições. Por que não se cria uma lei que regulamente a venda de armas e munição mediante um curso prévio de manuseio e segurança com armas de fogo? Povo desarmado é povo conquistado! João C. da L. Gomes Porto Alegre - RS

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

Idosos e jovens em um mundo de inclusão Marcelo Barros Ao celebrar neste 1º de outubro “o Dia Internacional dos Idosos”, a Organização das Nações Unidas (ONU) chamou a atenção para o progressivo envelhecimento da população mundial e a dificuldade cada vez maior que as pessoas idosas sentem de integrar-se na vida social. O problema não está no campo legislativo. A Constituição de quase todos os países reconhece o direito à igualdade social e prevê recursos de assistência especial a idosos carentes. No Brasil, a pessoa idosa tem direito ao seguro social, ou à aposentadoria, variando as idades, se homem ou mulher, se trabalhador urbano ou rural. Há dois anos, o presidente da República celebrou esta data, sancionando o “Estatuto do Idoso” que amplia os direitos dos cidadãos brasileiros com idade superior aos 60 anos. Conforme o Estatuto, a pessoa idosa tem atendimento preferencial no Sistema Único de Saúde (SUS). Tem direito a receber medicamentos gratuitos e, quando internado,

pode sempre ter acompanhante. Os maiores de 65 anos têm direito ao transporte coletivo gratuito. Nenhuma pessoa idosa poderá ser objeto de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão. Estes direitos devem ser assegurados a toda pessoa humana, qualquer que seja a sua idade. Entretanto, em uma sociedade na qual a desigualdade social é cada vez maior, já é uma conquista garantir tais privilégios à camada mais frágil da sociedade. Neste começo de século, a população idosa é cada vez maior e merece cuidados. Antigamente, aposentadoria era sinônimo de velhice. Hoje, aposentadoria não significa mais voltar aos aposentos. A medicina permite que pessoas de 80 e 90 anos estejam lúcidas e ativas. Alguém que entra nos 60 anos pode ter ainda muitos anos de vida ativa e cidadã. Uma pesquisa norte-americana revelou que, em geral, nos meios de comunicação de massa e especialmente no Cinema e na Televisão, a

imagem das pessoas idosas é caricaturada e negativa. O teatrólogo Bernard Shaw dizia que o maior pecado que cometemos contra os outros não é odiá-los e sim simplesmente ignorá-los. Em um mundo que se transforma rapidamente e os valores estão sempre em mutação, o diálogo entre jovens e idosos pode ser uma força maravilhosa para avançar corajosamente no tempo, sem ignorar a história. A comunhão entre as gerações impedirá que haja jovens com o pensamento e a sensibilidade mais envelhecidos do que seus avós e também que os mais velhos se fechem em recordações de antigamente. Como, na altura dos seus 80 anos, sintetiza a sábia Yalorixá Mãe Stella de Oxossi: “Meu tempo é agora!” Marcelo Barros é monge beneditino. É autor de 27 livros, entre os quais está no prelo A Vida se torna Aliança, (Como orar ecumenicamente os Salmos), Ed. CEBI-Rede da Paz, 2005

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De 13 a 19 de outubro de 2005

NACIONAL SEM-TETO

Um lugar para morar. Até quando? Marcelo Netto Rodrigues de Taboão da Serra (SP)

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isto de cima, o recém-formado acampamento “Chico Mendes” – organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em Taboão da Serra, a 25 km do centro de São Paulo – lembra o mapa do Brasil. Do lado de dentro, a semelhança ganha vida: são mais de três mil pessoas sem ter onde morar, num país que carece de sete milhões de casas. Só no Estado de São Paulo, faltam 1,4 milhão de moradias – 20% do déficit total do país. A necessidade é tanta que, três dias após a ocupação, ocorrida na madrugada do dia 1º, o número de pessoas do acampamento já havia aumentado de 300 para três mil. O terreno escolhido – equivalente a oito campos de futebol – está abandonado há 12 anos e era utilizado para desova de cadáveres, estupros e desmanches de carro. Por isso, a própria vizinhança escreveu uma carta de apoio à ocupação. A ação dos sem-teto também foi encampada pelo presidente da Câmara de Vereadores do município, que encaminhou uma moção de apoio ao acampamento e permitiu que o MTST utilizasse cinco minutos da sessão da Câmara para expor a luta das famílias. Se necessário, os sem-teto prometem marchar até o Palácio do Governo para evitar a reintegração de posse. Mas até o fechamento desta edição, dia 11, a reintegração pedida pelo suposto proprietário, que tem dívidas referentes a impostos, estava para ser assinada pela juíza. O receio dos militantes do MTST é que a reintegração, caso determi-

Luciney Martins/ BL 45Imagem

Mais de três mil pessoas ocupam um terreno abandonado há 12 anos, mas temem ser expulsas pela polícia

Antes de ir ao acampamento Chico Mendes, Cláudia Ferreira de Oliveira morou quase três meses embaixo de uma marquise

nada, seja feita pelos mesmos policiais que antes da ocupação faziam bico como jagunços no terreno.

RÁDIO PEÃO O acampamento, subdividido em cem grupos, é formado por pessoas como Avelângio Rodrigues da Silva, 38, desempregado, que morava de favor nos fundos de uma borracharia. Há 14 anos em São Paulo, natural de Alagoas, Silva desabafa: “Estamos aqui para mostrar o sofrimento do pobre, que precisa de um teto para

morar. Quem está aqui, precisa”. Luciene Fernandes de Jesus, 37, conta a via-sacra de pessoas como ela, que não tem casa própria: “Há 20 anos, só trabalho e trabalho. No final, vai tudo no pagamento do aluguel. Não tenho como comprar um terreno. Por causa da renda incerta, o pobre fica sempre com o nome sujo. Pobre não pode ter nada. Nem celular, nem carro, mal uma televisão quebrada. Se a assistente social vê um tanquinho (de lavar roupa), ela não aceita a sua criança na creche”.

Pelas vielas do acampamento, uma notícia da “rádio-peão” (informação passada boca a boca) informa o nascimento de um “sem-tetinho” dentro de um dos barracos. A mãe, Claúdia Ferreira de Oliveira, 35, conta que o bebê nasceu quando ela estava em outro acampamento, há alguns meses. Seu sofrimento pode ser avaliado pela precisão com que ela detalha os últimos dias na rua: “Fiquei dois meses e 28 dias dormindo embaixo de uma marquise de pizzaria antes de vir para cá”.

REFORMA AGRÁRIA

MORTE DE SINDICALISTA

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz questão de assegurar, sempre que perguntado, que a política econômica não muda. Assim, seguem as altas taxas de juros, o elevado superavit primário e, conseqüentemente, o arrocho dos gastos públicos. Da mesma forma, em relação à área social, o governo também não se mostra empenhado em grandes mudanças. E só se mexe debaixo de intensa mobilização popular. A última demonstração dessa “reação forçada” foi a greve de fome do frei Luiz Flávio Cappio, encerrada dia 6, que fez o presidente prometer mais tempo para debater a transposição do Rio São Francisco. Outro chacoalhão na inércia social no Palácio do Planalto foi dado pelas atividades do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre os dias 26 e 30 de setembro, quando o MST realizou sua maior jornada de lutas durante o governo Lula.

AÇÕES CONJUNTAS Aproximadamente 30 mil pessoas foram mobilizadas para ocupar 30 prédios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 21 Estados, mais de 20 latifúndios improdutivos, 10 agências bancárias, seis pedágios paranaenses e estradas em três Estados. “Recebemos amplo apoio da sociedade. Fizemos ações conjuntas com os bancários, com o Movimento dos Atingidos por Barragens, com o movimento pelo passe-livre, entre outros. Assim, foi possível estreitar laços com muitas entidades urbanas”,

avalia Álvaro Santin, da coordenação do MST catarinense. As reivindicações da jornada estavam centradas nos compromissos assumidos pelo governo, em maio, durante a Marcha Nacional pela Reforma Agrária. “A marcha terminou e logo depois estourou a crise política, paralisando o governo. A jornada voltou a colocar nossas pautas em discussão”, conta Valdir Misnerovicz, da direção nacional do MST.

SACUDIDA Depois da jornada, o governo se comprometeu a atualizar os índices de produtividade, até o final de outubro, e a publicar edital de concurso público para criar 1,3 mil vagas no Incra até dia 21 – a maior contratação da história do Instituto. Da pauta acordada na Marcha, falta ainda a liberação de mais recursos para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que estão sendo contingenciados pela Fazenda; a criação de novas linhas de crédito para assentados; a agilização do programa de agroindústrias cooperativadas; o estabelecimento de garantias do envio de cestas básicas para os acampamentos e o cumprimento da meta estabelecida no Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), de assentamento de 400 mil famílias até o final de 2006. Para Misnerovicz, o governo precisa perceber que seu tempo está acabando. Os processos da reforma agrária são lentos; leva até um ano para se assentar uma família. Começando agora, os resultados só vão aparecer no final do mandato de Lula. Portanto, a cada dia que passa, o governo se vê mais distante de cumprir as

metas do PNRA. Pelos dados oficiais, até setembro, foram assentadas 160 mil famílias na gestão petista.

Governo do RS será denunciado na OIT Daniel Cassol

Jornada de lutas conquista avanços Luís Brasilino da Redação

Na cidade de São Paulo, o prefeito José Serra (PSDB), em continuidade à sua política de higienização social do centro, mandou despejar violentamente, no dia 4, as 137 famílias da ocupação Paula Souza, na região da Luz. As famílias decidiram se unir aos ex-moradores da ocupação Plínio Ramos, despejadas há dois meses, e que continuam acampados em frente à ex-moradia. As famílias estão sem água, pois utilizavam as instalações do prédio que teve a entrada fechada com tijolos e cimento.

SEM FOCO Além disso, o governo peca por não atacar o centro dos problemas, buscando soluções periféricas. “É a manutenção da mesma estratégia de fabricar números, empregada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso”, denuncia Misnerovicz. Já Santin revela que os assentamentos são feitos em locais distantes e, por isso, as ações no âmbito da reforma agrária não funcionam no sentido de resolver conflitos. Delweck Matheus, coordenador do MST de São Paulo, conta que o número de acampados não mudou no governo Lula. Isso significa que a estrutura fundiária não vem sendo alterada. “As reivindicações têm que sair em conjunto. Por exemplo, não adianta apenas contratar mais funcionários para o Incra. É preciso equipá-lo, oferecer melhores condições de trabalho, tornar mais eficiente a burocracia interna”, cobra Misnerovicz.

PROMESSA DO GOVERNO De todo modo, o MST comemora a promessa do governo de atualizar os índices de produtividade. Os índices utilizados hoje foram elaborados em 1970. Ou seja, hoje o governo se baseia em dados defasados tecnologicamente em 35 anos para determinar se uma propriedade rural cumpre ou não sua função social. “Do ponto de vista ideológico, é uma conquista importante pois ataca diretamente a relação com o latifúndio”, celebra Matheus.

Sindicalistas homenageiam Jair Antônio da Costa, assassinado pela PM

Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS) A Central Única dos Trabalhadores (CUT) vai fazer uma denúncia contra o governo de Germano Rigotto (PMDB) na Organização Internacional do Trabalho (OIT) pela morte do sindicalista gaúcho Jair Antônio da Costa, asfixiado por policiais dia 30 de setembro, em uma manifestação em Sapiranga, Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul. O anúncio da medida aconteceu durante o ato promovido por diversos sindicatos calçadistas do Estado e movimentos sociais, dia 7, em frente ao Palácio Piratini, sede do governo estadual. “O governo, o patrão, é obrigado a explicar na Organzação Internacional do Trabalho os seus atos. Nós queremos evitar que no futuro surjam novos ‘Jaires’, novas pessoas sejam assassinadas”, disse João Felício, presidente da CUT. Feita a denúncia, governo do Estado e CUT terão que prestar esclarecimentos em Genebra, na Suíça, onde fica a sede da OIT. Para Felício, a ação internacional significa assegurar que os movimentos sociais possam reivindicar os seus

direitos livremente. “Toda vez que alguém, nesse país, quer organizar a luta, quer ocupar a terra, quer reivindicar, esses setores mais conservadores da sociedade criminalizam e se utilizam do autoritarismo para impedir o livre direito de manifestação”, argumenta. “Uma sociedade é democrática quando ela tem os movimentos sociais participando da vida político-social”. Dia 10, uma comitiva formada por sindicatos calçadistas da região do Vale do Rio dos Sinos e movimentos sociais se reuniu com o governador Rigotto, que se comprometeu a dar ajuda à família do sindicalista assassinado. Além da responsabilidade do Estado para com a família de Jair, a audiência com o governador abordou a violência utilizada contra os movimentos sociais e a crise pela qual passa o setor coureiro-calçadista. Para o dirigente do Sindicato dos Calçadistas de Sapiranga, João Batista, é preciso que o governo trate a questão dos sapateiros como um caso social e não um caso de polícia: “Entendemos que o governo deve tratar a questão do emprego como um problema social e não como um caso de polícia, que é diferente”.


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Espelho EDUCAÇÃO

Servidores federais resistem

da Redação Omissão elitista No dia 8, grupos da juventude de vários movimentos sociais realizaram manifestação na porta da Daslu, a mais cara e elitista loja de São Paulo. Não apenas os manifestantes foram proibidos de “conhecer” a loja: os policiais também foram barrados e tratados rispidamente pelos seguranças privados. O fato foi registrado pelos canais de TV, emissoras de rádio e a reportagem dos jornais, mas ninguém divulgou a manifestação. Por que será? Paraíso capitalista Segundo a agência de notícias Bloomberg, dos Estados Unidos, os principais banqueiros de investimentos do país estão eufóricos, pois calculam que os seus lucros líquidos, em 2005, devem variar entre 10% a 20% sobre o faturamento do ano passado. As cinco maiores corretoras estimam lucrar mais de 18 bilhões de dólares. Claro, boa parte disso sai dos juros pagos por países como o Brasil. Não importa como vive o povo. Relações camufladas A posição da revista Veja de apoiar ostensivamente o comércio de armas tem razões que ela não informou aos seus leitores. Entre elas, que a Editora Abril aluga – e paga uma fortuna – o prédio da incorporadora e construtora Birmann, que pertence ao Grupo Arbi, que, por sua vez, controla a Companhia Brasileira de Cartuchos – uma das maiores fabricante de armas e munições do Brasil. Ou seja, o referendo interfere diretamente nos negócios dos donos da Veja . Lição jornalística Parecida com a Veja na linha editorial e ideológica, a revista IstoÉ aproveitou a capa partidária da Veja sobre o referendo do comércio de armas e emendou uma capa mais equilibrada e jornalística, mostrando argumentos contra e a favor no referendo de 23 de outubro. Agora, até os concorrentes resolveram tripudiar o direitismo que tomou conta da redação da Veja . Por que será que os jornalistas da Editora Abril não reagem? Desarmamento já Uma pesquisa realizada recentemente pelo Instituto Datafolha confirmou o que muita gente percebe e não pode fazer nada: os telespectadores consideram a programação das emissoras de TV com excesso de cenas violentas, fúteis e erotizadas. Esse lixo todo despejado nas casas das pessoas não tem sido tratado com seriedade pelo governo federal – que é o responsável pelas concessões de radiodifusão no Brasil. Até quando? Luta democrática Várias entidades realizam, de 17 a 22 de outubro, a Semana Nacional pela Democratização da Comunicação, com palestras, debates e manifestações em vários Estados. Um dos eventos previstos é o ato “De costas para Hélio Costas”, no dia 20 (quinta-feira), às 13 horas, na Estação Vergueiro do Metrô de São Paulo. Será uma homenagem ao ministro da TV Globo. Manifestação feminina De acordo com a edição online do jornal argentino La Tercera, mais de 30 mil mulheres marcharam domingo à noite pelas ruas da cidade de Mar Del Plata, após conclusão de um encontro nacional que defendeu a liberação do aborto nos serviços públicos de saúde. Além disso, as manifestantes gritaram palavras de ordem contra o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, chamado-o de “fascista” e “terrorista”. Campanha sutil Conhecido defensor das oligarquias, o jornal O Estado de S. Paulo está em campanha direta para conseguir mais verbas públicas para os grandes fazendeiros e as empresas rurais. Praticamente todo dia apresenta uma situação de dificuldade do setor (queda do dólar, seca, geada etc.) para justificar a mamata. Usa também como pressão a ameaça do ministro do latifúndio e do agronegócio, Roberto Rodrigues, em pedir demissão do cargo. A tática não é nova.

Com negociações emperradas, trabalhadores pensam em radicalizar as paralisações Igor Ojeda da Redação

Agência Brasil

da mídia

NACIONAL

T

udo leva a crer que as greves dos servidores federais (parados há um mês e meio) e dos professores das universidades federais e dos trabalhadores dos centros federais de educação tecnológica (parados há dois meses) ainda vão demorar para acabar, pois as negociações entre os sindicatos e o Ministério da Educação (MEC) pouco avançam. A situação é mais dramática para os trabalhadores representados pela Federação de Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras (Fasubra). No fim de setembro, o MEC suspendeu as negociações, alegando que a federação iniciou a paralisação no meio das discussões. A Fasubra afirma que decidiu pela greve por não ver atendida uma de suas principais reivindicações, a garantia dos recursos previstos no orçamento – destinados à segunda etapa do enquadramento dos servidores no plano de carreira, que incluiria verba para qualificação e capacitação. “No momento, estamos tentando abrir um canal de negociação com o governo, que está intransigente. Protocolamos um pedido de audiência dia 20 de setembro e até agora o MEC não respondeu”, afirma Marcos Botelho, coordenador de comunicação da Fasubra. Entre as principais demandas da entidade,

Sindicato pretende ampliar e radicalizar a greve, inclusive com a suspensão dos processos seletivos das universidades federais

destacam-se a implantanção de um plano de saúde para a categoria, reajuste no vale-alimentação – há dez anos congelado – e destinação do correspondente a 1% da folha de pagamento para capacitação dos trabalhadores em educação. Enquanto o governo não os recebe, os grevistas representados pela Fasubra estão fazendo gestões junto a parlamentares e enviando documentos aos presidentes da Câmara e do Senado e para alguns ministérios, como os da Casa Civil, Planejamento e Fazenda, na esperança de serem

Greves pelo país Na manhã do dia 11, os funcionários de bancos privados encerraram cinco dias de paralisação em 23 Estados ao aceitar a proposta da Federação Nacional dos Bancos (Fenaban). Pelo acordo, o reajuste nos salários e demais benefícios passará de 4% para 6%, com o pagamento de abono único, que subirá de R$ 1 mil para R$ 1.700 a todos os bancários. Em relação à Participação nos Lucros e Resultados (PLR), a nova regra será de 80% do salário mais R$ 800 fixos.

PT

Na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo (SP), 12.400 trabalhadores estão em greve desde o dia 29 de setembro. Os funcionários explicam que os motivos principais da paralisação são a divergência sobre os valores da PLR, a suspensão e advertência dada pela empresa a um grande número de trabalhadores que reivindicavam a contratação de 350 operários e o descumprimento do acordo entre a empresa e a categoria para que o modelo Fox fosse de produção exclusiva da planta. (IO)

Campo Majoritário mantém presidência Luís Brasilino da Redação

Ricardo Berzoini é o novo presidente do Partido dos Trabalhadores (PT). Com a apuração atingindo cerca de 95%, o candidato do Campo Majoritário (CM) obteve 112,4 mil votos contra 105,3 mil votos do candidato da esquerda, Raul Pont, que assegura sua permanência no partido: “Não tinha razão para deixar o partido e não tenho agora”. O deputado estadual do Rio Grande do Sul acredita que o PT tem democracia interna e possibilidades de regeneração. “Não só o PT tem condições de sair dessa crise, como o Brasil precisa de um grande partido de esquerda”, analisa. Para ele, a dispersão das forças de esquerda colabora com o “retorno do neoliberalismo” Pont considerou este Processo de Eleições Diretas (PED) uma grande vitória das correntes minoritárias. “Elegemos 42 das 81 cadeiras do Diretório Nacional e disputamos a presidência em pé de igualdade”, comemora o candidato da esquerda, para quem o resultado puxa o partido mais para a esquerda. “Mas precisamos garantir a materialização disso”, alerta. Wladimir Pomar, analista político e ex-dirigente petista, lembra que, pelas regras anteriores ao domínio absoluto do CM, Pont será secretáriogeral do partido. “Além disso, uma

diferença tão pequena era impensável tempos atrás. O CM também não está mais tão unido e suas correntes não vão votar sempre com a tendência. É uma situação nova”, avalia. Para a economista Laura Tavares, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a situação do PT pode ser comparada com a do governo Lula: “Não existe essa de acabar a disputa. Ao desistir, você entrega para a direita”. Laura classifica a derrota do PT como uma derrota da esquerda, da tentativa de construir um partido de esquerda. “Não podemos satanizar os partidos. Não adianta dizer que o que é puro vem apenas da sociedade, são só os movimentos sociais. Isso é uma coisa extremamente neoliberal”, descreve Laura. Somando os dois turnos, foram mais de 500 mil votos – 314 mil no 1º e, pelo menos, 230 mil no 2º. Comparada com outros partidos, a diferença é absurda. Em eleição de chapa única, o PSDB elegeu, dia 9, o presidente de diretório de São Paulo (SP), com 38 votos. Para Wladimir Pomar, este foi o significado maior do PED: “Existe uma militância disposta a mudar os rumos do partido”. Laura sustenta que em respeito às bases não se deve abandonar o barco. “São pessoas sérias, honestas, que lutaram a vida inteira. Em nome delas é importante continuar a luta”, garante a economista.

novamente chamados para negociar. “O desfecho da greve só depende do governo, agora”, alerta Botelho.

RADICALIZAÇÃO Os servidores públicos federais representados pelo Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional (Sinasefe) estão parados há um mês e meio, envolvendo cerca de 70% de seus 22 mil filiados. Na pauta de reivindicações, a entidade exige, entre outros pontos, reajuste emergencial dos salários em 18% – como antecipação das perdas salariais dos últimos dez anos –, contra o 0,1% proposto pelo governo, e a incorporação das gratificações. Para William Carvalho, coordenador-geral do Sinasefe, o próximo passo do sindicato é ampliar e radicalizar a greve, inclusive com a suspensão dos processos seletivos das universidades federais. “Até agora o governo impôs o processo e apresentou uma proposta bastante reduzida”, justifica. Já a greve dos professores, ini-

ciada no dia 30 de agosto, atinge, segundo o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), 35 de um total de 61 universidades e cerca de 36 mil docentes. As principais demandas são as mesmas do Sinasefe: reajuste de 18% e incorporações das gratificações. No dia 7, representantes da entidade e do MEC estiveram reunidos para discutir a pauta de reivindicações. Na avaliação de Paulo Rizzo, 1º vice-presidente do Andes, a proposta do governo foi insuficiente: “Para nós está claro que, para haver uma proposta que satisfaça o conjunto dos professores, vai ter que ter mais dinheiro. O que eles propuseram dá muita distorção e não repõe a inflação”, argumenta. Segundo Rizzo, há espaço para o governo ceder. Dia 19 haverá outra reunião entre o MEC e o Andes. No mesmo dia, ocorrerão manifestações em todas as capitais brasileiras, promovidas em conjunto pelo próprio Andes, pela Fasubra e pelo Sinasefe.

Professores derrubam projeto de Alckmin Bel Mercês da Redação A suspensão do projeto de lei que regulamenta, no Estado de São Paulo, a contratação de trabalhadores no regime Ocupante de Função e Atividade (OFA), mais conhecido por sua extinta nomenclatura, Admitidos em Caráter Temporário (ACT), foi uma vitória dos professores da rede estadual de ensino. O projeto estabelece que os trabalhadores temporários de todo funcionalismo público do Estado sejam contratados por seis meses, com renovação não garantida para outros seis. E, após esse período de serviço cumprido, só podem ser contratados novamente após dois anos. Dia 5, diante da pressão da categoria – que paralisou as ruas do centro da cidade de São Paulo –, o governador Geraldo Alckmin voltou atrás na intenção de aprovar o projeto de lei recém-enviado à Assembléia Legislativa (AL). Segundo estimativas do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), depois da passeata pelo centro, cerca de 30 mil docentes da rede pública estadual reuniramse em frente à Assembléia. Dia 13, Alckimin recebe as entidades representativas do funcionalismo público para uma conversa sobre a regulamentação dos temporários.

PREJUÍZO AO ENSINO Mais da metade dos professores estaduais (55,6%) não é efetiva e trabalha como ACTs. Em números redondos, isso significa que 128 mil docentes, de um total de 230 mil, são temporários. Segundo o presi-

dente da Apeoesp, Carlos Ramiro, “esse projeto retira alguns dos direitos dos professores contratados como temporários e prejudica a qualidade de ensino”. Yara Lúcia Calles, professora de 1ª a 4ª série da Escola Estadual Pedro Calil Padis, na Vila Campestre, zona sul da cidade, leciona há 17 anos contratada em regime temporário. Para ela, a lei ia piorar a situação, que não é boa, mas é melhor do que com esse projeto. “A parte pedagógica seria a mais afetada. Pegar uma turma e abandoná-la em seis meses é um absurdo”, ressalta. Segundo Ramiro, “do jeito que está”, os professores têm contrato precário, ilegal e inconstitucional. “Quando o funcionário é mandado embora, sai sem direito nenhum”, explica. Mesmo assim, os temporários têm garantidas as férias e o 13º salário, conquistas históricas do sindicato. Para ambos os professores, o caminho é a efetivação de docentes concursados e a abertura de novos concursos. Além disso, o sindicato luta pela criação do cargo de professor adjunto, que também seria efetivado e participaria de todas as atividades pedagógicas, podendo inclusive substituir afastamentos. Segundo Yara, essas medidas foram tomadas no âmbito municipal, durante a gestão da prefeita Marta Suplicy (PT-SP), reduzindo bastante o número de professores temporários. “Também temos outras reivindicações para levar ao governador. Queremos a redução do número de alunos para 35 por sala e a reconstituição da matriz curricular”, completa a professora.


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NACIONAL VALERIODUTO TUCANO

Campanha de Azeredo foi paga com caixa 2 Marcos Valério distribuiu dinheiro a apoiadores do então candidato à reeleição, Eduardo Azeredo este quem lhe contou que parte do dinheiro foi repassado pelo evento “Enduro da Independência”, realizado pelo governo estadual em 1998. No total, segundo ele, saíram R$ 1,5 milhão dos cofres da Cemig, R$ 1,5 milhão da Copasa, R$ 1 milhão do Bemge, R$ 1 milhão do Credireal, R$ 1 milhão da Comig e R$ 500 mil da Loteria de Minas e R$ 2 milhões dos cofres do Estado. “O nome do Azeredo não foi citado até hoje na CPI. Se tem alguém que se beneficiou do caixa 2, do esquema Marcos Valério, foi Eduardo Azeredo. Mais do que qualquer um. Querem cassar quem pegou R$ 20 mil, enquanto o Azeredo pegou R$ 53 milhões. Isso é um absurdo, isso que é pizza”, afirmou Rogério Correia.

Divulgação

Mariana Starling de Belo Horizonte (MG)

N

o dia 21 de outubro de 1998 a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) depositou R$ 1,7 milhão na conta da SMP&B. A coincidência é que, além de ser véspera do segundo turno para a eleição ao governo do Estado, no dia seguinte, 22 de outubro, a agência de Marcos Valério distribuiu R$ 1.162.459,28 aos apoiadores do então candidato à reeleição, Eduardo Azeredo, por meio de dezenas de transferências bancárias realizadas no Banco de Crédito Nacional (BCN). A Cemig justifica a transferência dizendo ser pagamento pela produção de revistas, cartazes e folhetos. Ressalte-se também que o “ex-sócio” da SMP&B, Clésio Andrade (PFL) era candidato a vice na chapa de Azeredo. Estes dados, constantes em vasta documentação, foram reunidos pelo 2º vice-presidente da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, Rogério Correia (PT) e entregues aos ministérios públicos estadual e federal. Além disso, Correia enviou um detalhado ofício ao relator da CPMI dos Correios, Osmar Serraglio, no qual descreve os caminhos do caixa 2 tucano em 1998. “Passo a remeter resumo das informações que possuo, colocando-me à disposição para relatá-las em detalhes, e pessoalmente, caso Vossa Excelência julgue necessário. Reitero que possuo documentos comprobatórios, os quais entreguei ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais e ao Ministério Público Federal, e que colocarei à vossa disposição se for preciso”, descreve Correia no documento. O deputado mineiro solicitou – tendo posse dos comprovantes dos depósitos bancários efetuados pela agência publicitária aos integran-

NOMES GRAÚDOS A lista de documentos bancários em mãos de Correia é a mesma de posse da CPI dos Correios e divulgada em toda a mídia, na qual aparecem 70 políticos da coligação de Azeredo que receberam recursos do valerioduto. Entre os depósitos há um para o ex-líder do PSDB na Câmara dos Deputados, Custódio de Mattos, beneficiado com R$ 20 mil através de um DOC da conta 588.318-4, da SMP&B no BCN. Este é só um exemplo. Mas há ainda uma outra, na qual Valério disse existir nomes “graúdos”, e que integrantes da CPI tentam desqualificar. Rogério Correia explica que, após a perda das eleições de 1998, integrantes do PSDB mineiro projetaram Marcos Valério para atuar nacionalmente para o partido. O próprio Valério, em entrevista à rádio CBN em 29 de agosto, afirmou ter passado dinheiro à campanha tucana. É o antigo, mas não veiculado pela grande mídia, “valerioduto tucano”.

Eduardo Azeredo, presidente nacional do PSDB, acusado de se beneficiar do esquema de corrupção de Marcos Valério

tes da coligação PSDB/PFL no dia 22 de outubro —, informações à Cemig sobre os pagamentos efetuados à SMP&B, entre 1998 e 1999. Em resposta ao ofício de Correia, o superintendente de Comunicação Empresarial, Luiz Henrique Michalick, informou que foram efetuados oito pagamentos entre junho de 1998 e janeiro de 1999 para a empresa de Marcos Valério, totalizando R$ 2.182.512,72.

As justificativas da Cemig são as mais diversas e vão desde a produção de cartazes até o patrocínio “de campeonato de peteca”. Além de existir indícios de que os trabalhos não foram realizados e de terem sido justificados por notas fiscais frias, os valores são superfaturados. O valor supostamente pago para confecção de cartazes e panfletos é muito maior do que o realizado pelo mercado atual e à época.

Uma outra importante fonte é o lobista Nilton Monteiro, que afirmou em depoimento ao Ministério Público Federal que Eduardo Azeredo sabia que sua campanha foi abastecida com cerca de R$ 8,5 milhões oriundos dos cofres do Estado. Ele diz ter mantido reuniões com o ex-governador por diversas vezes e ter obtido documentos com o tesoureiro da campanha, Cláudio Mourão. Segundo Monteiro, foi

O PETRÓLEO É NOSSO

Aproxima-se o dia da 7ª Licitação de petróleo e gás natural, 17 de outubro. Para as entidades que se opõem a essa medida, mais uma vez o governo Luiz Inácio Lula da Silva está cometendo um “crime lesa-pátria”, porque está entregando de mão beijada riquezas incomensuráveis e que nas mãos das transnacionais significará um desperdício para o Brasil, que pesquisou as áreas que entrarão na 7ª Licitação. Para o tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, da Academia Nacional de Engenharia, e Paulo Metri, conselheiro do Clube de Engenharia, as licitações de áreas para a exploração de petróleo, iniciadas no governo Fernando Henrique Cardoso, mais precisamente em 1999, representam para o país uma sangria bem superior à do “valerioduto”, que tanta indignação vem causando. O tamanho dessa sangria pode ser avaliado pela declaração, feita no ano passado, do próprio Ministério das Minas e Energia. Segundo o secretário executivo desse ministério, “o potencial de descoberta de petróleo nos blocos oferecidos na 7ª Rodada de Licitações da Agência Nacional de Petróleo (ANP) chega a 3,4 bilhões de barris”. Segundo Ferolla e Metri, “com uma conta simples, calculando-se o barril de petróleo a 60 dólares, chega-se a uma receita de 198 bilhões de dólares – sem considerar que, no futuro, o barril ficará certamente bem acima dessa cotação”. Os cálculos dos prejuízos para o país não ficam só nisso, garantem o

Sindicalistas da Petrobras repudiam a venda de blocos para exploração de petróleo

tenente-brigadeiro Ferolla e o engenheiro Metri: “O lucro do negócio, que corresponde à receita menos os investimentos, os custos de produção e as taxas e impostos, será pelo menos metade desse valor, ou seja, cerca de 100 bilhões de dólares”. Para a 7ª Rodada estão sendo oferecidos 1.134 blocos exploratórios, uma área total de 397,6 mil km² divididos em 34 setores. Esses setores estão localizados em 14 bacias sedimentares brasileiras: Pelotas, Santos, Campos, Espírito Santo, Jequitinhonha, CamamuAlmada, Recôncavo, Sergipe-Alagoas, Potiguar, Barreirinhas, Pará-Maranhão, Foz do Ama zonas, Solimões e São Francisco. Outros engenheiros especialistas no setor de petróleo, como o presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), Heitor Pereira, e o secretário de comunicação da entidade, Fernando Siqueira, não poupam críticas ao

atual governo pela política adotada no setor de petróleo, que segue em gênero, número e grau o que foi feito pelo governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso. O ex-deputado Haroldo Lima (PC do B), atual diretor-presidente da ANP, é acusado por Pereira – que concedeu uma entrevista exclusiva ao Brasil de Fato – de ter sido “cooptado pelas multinacionais”. Siqueira considera que Lima está cometendo um “crime lesa-pátria” com a sua atual posição de defesa das licitações de petróleo e gás natural. Ele lembra que, quando era deputado, Lima combatia as licitações. Brasil de Fato – Quais os prós e os contras do leilão que tem o nome de 7ª Licitação? Heitor Pereira – Olha, os prós não existem. A 7ª Licitação é uma atitude de subserviência do governo atendendo às elites apodrecidas. Nunca houve um

projeto de nação independente, de nação soberana. O governo é servil ao capital financeiro internacional. Aqui no Brasil, subserviente à oligarquia anglo-saxônica desde os tempos da colônia. Na área do petróleo, as maiores empresas são anglo-saxônicas. E o governo brasileiro se submete aos interesses dessas oligarquias hoje centradas nos Estados Unidos. Fernando Henrique liquidou o monopólio estatal com uma tal de Lei do Petróleo, que permite às concessionárias que o descobrirem fazer dele o que quiserem. Em função dessa lei, o governo resolveu leiloar as bacias sedimentares, já pesquisadas pela Petrobras, e agora oferecidas às companhias estrangeiras. Fernando Henrique Cardoso começou com isso e fez quatro leilões. Lula chegou com a promessa de que não os faria. Fez o quinto, o sexto, está fazendo o sétimo. E já disse que entregará tudo. BF – O Lula disse isso? Pereira – Disse. Mais de uma vez. A Petrobras descobriu onde tem petróleo e que venham buscar. Esse é o governo Lula e a sua política petrolífera. Uma traição aos interesses nacionais. Em cinco ou seis anos, chegaremos ao pico da produção no mundo e o petróleo não é renovável. É o que eles chamam de commodities. Por que não chamar de matéria-prima? É uma violação à língua brasileira. O leilão, ou seja, a 7ª Licitação foi antecipada para 17 a 20 de outubro. Nós resistimos e vamos continuar a resistir porque o nosso objetivo é acabar com essa Lei do Petróleo e voltar ao monopólio

estatal como a única solução que interessa à nação brasileira. BF – E como fica a Agência Nacional do Petróleo? Pereira – FHC criou essas agências para defender os interesses das multinacionais. O partido (PC do B) do presidente da ANP, o Haroldo Lima, está totalmente cooptado pelas transnacionais do petróleo. E este moço é um propagandeador do leilão. É uma opção da direção nacional do PC do B. Alessandra Bandeira

Mário Augusto Jakobskind e Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ)

Anderson Barbosa

Brasil é o maior prejudicado com novo leilão

Quem é Heitor Pereira, presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), 80 anos, é natural do Recife. Engenheiro civil e metalúrgico, com especialização em engenharia do petróleo. Participou da campanha “O Petróleo é Nosso”, no início dos anos 1950. Na Petrobras desde a sua fundação, só se afastou no golpe militar de 1964, tendo sido preso e perseguido. Reintegrou-se em 1985 com a anistia.


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NACIONAL AFRODESCENDENTES

Vitória quilombola no Paraná

Hamilton Octavio de Souza

Reconhecida a primeira comunidade de descendentes de escravos no Paraná

Ganância capitalista Inúmeros alimentos industrializados – à venda em qualquer supermercado ou empório – introduziram na sua composição, principalmente para baratear custos, derivados da soja transgênica. No entanto, os empresários (toda empresa privada tem dono e responsável) não identificam esses produtos com o símbolo do transgênico e não informam corretamente os consumidores. Atrás do lucro vale até prejudicar a saúde do cidadão. Alívio palaciano O acordo do governo com o bispo Luiz Flávio, para encerrar a greve de fome em troca de novo prazo para debate sobre a transposição do Rio São Francisco, deu enorme alívio na corte brasiliense, já que prenunciava um clima de pânico caso o religioso levasse a demanda às últimas conseqüências. Agora falta cumprir o trato, o que é mais difícil porque a transposição é alavanca eleitoral tanto de Lula como de Ciro Gomes. Tudo indica que o bispo foi devidamente enrolado. Objetivo eleitoral Independentemente do resultado eleitoral no PT, que define o novo presidente do partido, alguns grupos ligados ao Campo Majoritário se reuniram no sábado passado para planejar o esquema publicitário da campanha eleitoral de 2006, o sistema de captação de recursos e a relação das candidaturas proporcionais – deputados estaduais e federais – com as candidaturas majoritárias para o Senado, governos estaduais e Presidência da República. Tudo como antes. Neoliberalismo puro No início dos anos 1980, as greves dos canavieiros de Guariba, na região das usinas de açúcar de Ribeirão Preto, ajudaram a projetar o PT como partido vinculado às lutas dos trabalhadores. Agora, os canavieiros de Guariba voltaram ao noticiário da imprensa porque suas condições de trabalho pioraram demais. A exploração das usinas aumentou tanto que o Ministério Público investiga dez casos de mortes por excesso de trabalho. E a solidariedade é bem menor. Sonegação zero O setor de fiscalização de impostos da Venezuela aplicou multas e determinou o fechamento – por 24 e 48 horas – das filiais das empresas multinacionais IBM, Microsoft, Nokia, Bosh, Ericsson, Honda e Siemens, todas acusadas de não cumprir integralmente suas obrigações tributárias. O governo Hugo Chávez não está brincando na aplicação do Plano Evasão Zero, que verifica os livros fiscais de todas as empresas privadas do país. Proposta avançada Em sua última visita ao Brasil, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, propôs ao presidente Lula a constituição – junto com a Argentina – de um Banco do Sul, com sede em Brasília e voltado para a integração e desenvolvimento da América do Sul. Chávez adiantou que o seu país entra com capital inicial de 5 bilhões de dólares. Resta saber se o governo Lula encara a proposta e enfrenta a contrariedade dos banqueiros brasileiros e estadunidenses. Quem aposta? Conquista salarial Depois de cinco dias de greve, os bancários conseguiram melhorar a proposta salarial dos banqueiros: passou de 4% para 6% de reajuste e mais um abono de R$1.700, que inicialmente era de R$1.000. Aos poucos, os trabalhadores tentam recompor os salários arrochados em quase quinze anos de neoliberalismo. E cada conquista depende exclusivamente de muita mobilização e muita luta.

Kelen Vanzin de Curitiba (PR)

A

desocupação da Invernada Paiol de Telha – terras quilombolas de Guarapuava, no Paraná – seguia um mesmo ritual: primeiro chegava o delegado Oscar Pacheco com histórias de que vários moradores já haviam vendido as terras, e que não era negócio ficar por ali. A conversa mansa logo virava uma ordem de desocupação em 48 horas, em caso de resistência. Além de ameaças: “Outras medidas a serem tomadas”. Noite a fora, vinha a brutalidade para a desocupação: jagunços chegavam a cavalo, ateando fogo e atirando para todos os lados. Capatazes eram contratados para ocupar as terras férteis do “Fundão”, como a Invernada é chamada pelos negros. Tudo para desenvolver na região uma comunidade alemã e uma cooperativa, hoje a Cooperativa Agrária Mista Entre Rios Ltda. Os alemães chegaram à região na década de 1960, e com o apoio da elite de Guarapuava, incluindo delegado, juiz e até o governo do Estado tentavam se estabelecer no “Fundão”, localizado no município de Reserva do Iguaçu, antes pertencente à Guarapuava. A área, de aproximadamente 3 mil alqueires foi herdada pelos escravos em 1860. A proprietária Balbina Francisca de Siqueira deixou em seu testamento que repassava as terras para os seus escravos e libertos.

Os descendentes quilombolas de Guarapuava celebram conquista da terra após 30 anos de resistência

1975, as terras finalmente foram ocupadas pelos descendentes de alemães. Expulsa de suas terras, dona Ondina Marques, 83 anos, neta de escravos, foi trabalhar em uma casa de alemães. Quando descobriram que era uma das herdeiras do “Fundão” foi levada até uma ponte e seus pertences foram jogados rio a baixo.

CONQUISTA Após 30 anos de luta, os descendentes quilombolas finalmente receberam a certidão de auto-reconhecimento que comprova que descendem de escravos e são remanescentes das comunidades dos Quilombos. A certidão é concedida pela Fundação Cultural Palmares, atualmente vinculada ao Ministério da Cultura. Com isso, a Paiol de Telha é a primeira no Paraná a ser reconhecida como comunidade quilombola. A entrega da certidão foi no dia 28 de setembro, em ato solene, organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha a causa dos negros desde 1988. “Aqui estamos em um momento histórico em que a Fundação Cultural Palmares reconhece a comunidade Paiol de Telha como quilombola. Lutamos para que a história destes negros não morresse e para que a ganância de alguns não se apropriasse dela”, afirmou Dioniso Vandressen, coordenador da CPT. A certidão, além de comprovar que os negros da Reserva do Iguaçu são descendentes de escravos, é um

VIOLÊNCIA SEM FIM As atrocidades cometidas estão vivas na memória dos sobreviventes do terrorismo da desocupação. Um dos bisnetos de escravos, seu Domingos Guimarães, 71 anos, lutou por sua herança até o fim, em 1975, quando foi atingido por uma bala que ainda hoje está alojada em seu corpo. Ele foi um dos últimos a deixar a Invernada Paiol de Telha. “Eles chegavam com armas, tratores e iam destruindo tudo o que viam pela frente. Na madrugada, chegavam a cavalo ateando fogo por tudo e disparando. Ficávamos recolhidos em casa, com medo de morrer. No dia seguinte, nossas benfeitorias e nossa produção estavam destruídas”, relembra seu Domingos. Ele conta que os alemães destruíram 400 alqueires que os negros tinham plantado. Chegou uma hora que os negros não tiveram mais como resistir. Em

grande passo para que eles voltem às terras que herdaram ainda em 1860. O documento estabelece os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação. O processo será iniciado pelo Incra-Paraná neste mês. Esta é a primeira vez que o Incra dará inicio aos procedimentos administrativos de reintegração de terras quilombolas no Paraná. Representantes do próprio Instituto reconhecem que este é um precedente para que outras comunidades quilombolas do Estado reconquistem suas terras. Atualmente, segundo a Associação Cultural de Negritude e Ação Popular, de Curitiba, existem 30 comunidades paranaenses que buscam a certidão de auto-reconhecimento. As principais se concentram nos municípios de Castro, Lapa e Ponta Grossa.

CORAGEM A defesa dos negros na região de Reserva do Iguaçu exigiu coragem dos envolvidos. Em 1981, a Paiol de Telha contratou dois advogados que foram torturados e ameaçados de morte. Um deles, Gilson Amaral dos Santos, foi agredido em 1980, quando retornava de uma visita à comunidade. Capturado na estrada que liga Guarapuava a Curitiba, foi espancado, ficou paraplégico e cego, como conta seu Domingos Gonçalves. Outro, Jacinto Simões, foi ameaçado de morte e desistiu da ação.

Atualmente, existem mil herdeiros dos escravos do “Fundão” espalhados por diversos Estados, segundo pesquisa da Associação Comunidade Paiol de Telha. Do total, cerca de 340 estão na região de Pinhão, Guarapuava e Reserva do Iguaçu.

ASSENTAMENTO Parte dos descendentes (cerca de 31 famílias) está vivendo em um assentamento organizado pelo Incra, no distrito de Entre Rios. São pequenos agricultores que produzem para a sua subsistência. A área de pouco mais de mil hectares foi comprada pelo Incra do Banco do Brasil, em 1996. Mas, segundo a CPT, apenas 90 hectares são cultiváveis. No início, eram 64 famílias, muitas das quais não se adaptaram ao assentamento. De fato, o engenheiro do Incra, Omar Guilherme Gauzatilho, admite que, na época, o órgão errou na forma de organizar o assentamento, pois não considerou o modo de vida dos afrodescendentes. “Foi uma experiência muito importante para nós. Acertamos ao providenciar rapidamente as terras para assentá-los, porém cometemos este erro”, avalia. O Incra estuda a possibilidade de reorganizar o assentamento e repassá-lo definitivamente para a comunidade negra. Porém, há a preocupação de que se o assentamento estiver em nome da comunidade Invernada Paiol de Telha, poderá dificultar a recuperação das verdadeiras terras quilombolas, no município de Reserva do Iguaçu.

Capítulos da violência Os descendentes de escravos da Comunidade Paiol de Telha herdaram 3 mil alqueires de dona Balbina Francisca de Siqueira, em 1860. O respectivo testamento foi homologado pelo juiz da comarca de Guarapuava em 1866. Conforme estudo da antropóloga Miriam Hartung, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, a ocupação das terras por descendentes de alemães ocorreu de forma brutal, com abuso de poder, falsificação de documentos e desrespeito aos direitos humanos. “A expropriação da Invernada Paiol de Telha é resultado de um movimento de ocupação de terras no Paraná, caracterizado por negociações viciadas favoráveis aos grandes proprietários e homens influentes da região”, escreve a antropóloga em seu livro O sangue e o espírito dos antepassados, lançado em 2004. Ela diz mais: “A expropriação, entretanto, não se limitou a negócios escusos, mas recorreu à violência, também característica da forma do Estado do Paraná encaminhar as questões relativas à terra. Quando, em 1967, os descendentes dos escravos e libertos tomaram conhecimen-

Kelen Vanzin

Desonestidade original A indústria farmacêutica dos Estados Unidos está descarregando no Brasil todo o estoque de remédios proibidos na América do Norte e na Europa. A conivência das autoridades da saúde e dos médicos é criminosa, pois existem listas públicas desses produtos e informações científicas sobre os danos que causam aos seres humanos. Cadê a ação do governo Lula na defesa do povo?

Kelen Vanzin

Fatos em foco

Revoltados, instalaram-se na beira da estrada em frente a Invernada Paiol de Telha e ali ficaram vivendo miseravelmente durante 14 meses. Seu Domingos Guimarães dos Santos conta que neste período passou fome, frio e sua família foi acometida por diversas doenças. Seu irmão, João, acabou falecendo aos 70 anos.

LUTA

Domingos Guimarães e a comunidade passou a viver à beira da estrada

to de que seus direitos hereditários estavam sendo indevidamente transferidos, contestaram a legitimidade do processo. Além do descaso do poder público, obtiveram como resposta a coação física”.

ÊXODO Após serem expulsos em 1975, os descendentes de negros se espalharam pelas periferias de Guarapuava, vivendo de forma miserável nas favelas e na beira de estradas.

Outros migraram para outros Estados, mas, segundo a antropóloga, sempre mantendo os laços culturais e a união entre eles. Em 1996, aproximadamente 200 famílias se reuniram numa tentativa de reaver as suas terras e ocuparam parte do Fundão, já totalmente desenvolvido e ocupado pela Cooperativa Agrária Mista Entre Rios. Em menos de uma semana foram expulsos, por ordem da Justiça local.

A situação dos negros à beira da estrada chamou a atenção de diversas entidades, movimentos sociais e pesquisadores que, com o apoio da Pastoral da Terra, lutaram para que os acampados fossem para um assentamento do Incra. Passados 145 anos, os negros de Guarapuava ainda batalham pelo reconhecimento de suas origens e pelas terras que herdaram. Brigam, também, contra o preconceito ainda muito forte que impede que seus direitos sejam reconhecidos. “Sempre acreditei que o corpo pode morrer, mas o espírito de luta não”, conclui seu Domingos Guimarães, que vibra com a conquista da certidão de auto-reconhecimento. (KV)


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NACIONAL CONJUNTURA

Falsos dilemas emperram o crescimento Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

V

olta e meia, economistas e técnicos do governo parecem acometidos de surtos de paralisia mental, criando falsos dilemas que acabam provocando decisões equivocadas e emperrando o crescimento econômico. Invariavelmente, recebem, nesta missão, a ajuda de um certo tipo de analista econômico encontrado em profusão em bancos, corretoras e grupos financeiros conhecidos, consultados sem parcimônia pela grande imprensa. Para quem não se recorda, o debate econômico no final do ano passado girava em torno de uma tese aparentemente lógica, mas desajeitada, pelas conseqüências futuras que acarretaria para a economia como um todo. Dizia-se, então, que a incipiente tendência de recuperação esboçada pela economia já teria esbarrado num limite e que a insistência nesse caminho traria de volta a inflação. Para resumir, a “turma do arrocho”, encastelada em gabinetes privilegiados de Brasília, achava que as fábricas não tinham capacidade para aumentar a produção no mesmo ritmo do avanço da demanda, sendo, portanto, necessário esfriar o consumo, achatar a renda do consumidor para evitar aumentos de preços.

PLANOS ABORTADOS Resultado desse raciocínio capenga, o Banco Central (BC) passou a puxar as taxas de juros (que já se encontravam nas alturas) ainda mais para cima, a partir de setembro de 2004. O objetivo era encarecer o custo dos empréstimos bancários e esfriar a demanda, reduzindo supostas pressões sobre os preços em geral por dois caminhos: com o encarecimento do crédito, o consumidor tenderia a

Valter Campanato/ABR

A produção industrial dá sinais de instabilidade; a economia volta a perder fôlego no terceiro trimestre Em agosto do ano passado, as fábricas estavam operando a 84,1% de sua capacidade. “Só é possível produzir mais, com uso menor da capacidade, se tiverem ocorrido investimentos”, analisa o economista Flávio Castelo Branco, coordenador da unidade de política econômica da CNI.

EXPECTATIVA FRUSTRADA

Juros altos enriquecem os banqueiros enquanto brasileiros sofrem com a falta de trabalho e os salários baixos

reduzir suas compras, e as empresas seriam encorajadas a desovar estoques, porque ficaria mais caro mantê-los Ao mesmo tempo, com o corte no consumo, empresas e consumidores seriam estimulados a poupar uma parte de seus ganhos, o que ampliaria a sobra de recursos na economia para investimentos (que fariam aumentar a capacidade de produção na indústria). Um erro flagrante de diagnóstico, pois as empresas já haviam iniciado projetos de ampliação da capacidade, diante da perspectiva de manutenção do crescimento, abortada pela decisão do BC de aumentar os juros.

ANÁLISE FURADA Ao contrário do falso dilema fabricado pelo BC e Ministério da Fazenda, as empresas investem quando há chances de crescimento (porque sabem que será possível

vender ao mercado a produção adicional). Portanto, o risco de um estrangulamento não existia. A capacidade de produção tenderia a aumentar paralelamente ao crescimento da economia em geral, como de fato ocorreu. Por conta da política de juros altos, no entanto, esse crescimento tem ficado muito abaixo do razoável, fazendo murchar a demanda inicialmente projetada pela indústria. Os dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) comprovam que a análise feita pela “turma do arrocho” era furada, totalmente desconectada da realidade. Nos primeiros oito meses de 2005, o total de horas trabalhadas na produção cresceu 6,2% na comparação com igual período do ano passado. Em agosto, mostra a pesquisa mensal da Confederação, o mesmo indicador cresceu 4,8% em relação ao mesmo mês de 2004. A indústria, no entanto, passou

INDICADORES CONJUNTURAIS DA INDÚSTRIA EM AGOSTO DE 2005 Variação Segmentos

Ago05/ Jul05 (com ajuste)

Ago05/ Ago04

Acumulado no ano

Acumulado em 12 meses

geral

1,1

3,8

4,3

5,1

extrativa mineral

-0,3

7,9

10,1

8,9

de transformação

1,2

3,6

4,0

4,9

bens de capital

3,1

3,0

2,7

4,7

bens intermediários

0,1

0,4

1,6

3,3

bens de consumo

1,3

9,2

8,4

7,8

duráveis

-1,7

13,0

15,7

15,7

semiduráveis e não duráveis

1,6

8,2

6,4

5,7

Classe de Indústria

Categorias de Uso

Fonte: IBGE - Pesquisa Industrial Mensal

A “turma do arrocho” apronta mais uma A equipe econômica, mais conhecida como a “turma do arrocho”, atropela até mesmo as leis para impor ao país o seu pensamento único e suas decisões controversas. Há alguns anos, o governo criou uma Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), que, como o próprio nome diz, serve para corrigir empréstimos de prazos mais longos, utilizados pelas empresas para financiar investimentos, já que, no Brasil, as aplicações financeiras – incluindo as operações de compra e venda de títulos do governo – continuam concentradas no curtíssimo prazo, com negociações até de um dia para outro. O uso dos juros que remuneram esse tipo de aplicação nos empréstimos destinados a investimentos poderia tornar inviável a execução desses projetos, que exigem prazos mais longos para dar lucro. Criouse, então, uma lei que deveria (isso mesmo, deveria, porque não vem sendo cumprida) regular a fixação da TJLP periodicamente.

Nesse cálculo, são levados em conta a projeção para a inflação dos próximos 12 meses, os juros cobrados nas operações realizadas entre bancos e o tal “risco Brasil” – que nada mais é do que uma taxa extra que os banqueiros internacionais impõem ao país porque consideram que o governo brasileiro pode, um dia, quem sabe, deixar de pagar a dívida externa.

TAXA CONGELADA Para ficar mais claro, além dos juros normalmente cobrados no mercado internacional, aqueles banqueiros ainda exigem uma taxa hoje bastante próxima de 3,7% a 3,8% ao ano. No começo deste mês, o Conselho Monetário Nacional (CMN), que reúne os ministros da Fazenda e Planejamento e o presidente do Banco Central, decidiu manter congelada a TJLP em 9,75% ao ano, desrespeitando o que diz a legislação. Parênteses: o CMN é o órgão encarregado de regular o mercado

financeiro e decidir, entre outras coisas, sobre a oferta de crédito na economia, a venda de títulos do governo federal e definir a TJLP. Com base no que diz a lei, como a previsão de inflação baixou e também o “risco Brasil” está em queda, a TJLP deveria recuar para alguma coisa entre 8% e 9% – o que significaria baratear o custo dos empréstimos tomados pelas empresas para financiar seus projetos de investimento, o que poderia se refletir em fábricas, máquinas, equipamentos e seus acessórios mais baratos do que hoje, abrindo a possibilidade de redução dos custos de produção e, mais adiante, até mesmo de preços mais baixos para o consumidor, diante de um possível aumento da oferta de bens pela indústria. Numa palavra, poderia ser criado um ambiente mais favorável ao crescimento de toda a economia. Mas não é isto que a “turma do arrocho” quer para o Brasil. (LVF)

a ocupar o correspondente a 82,9% de sua capacidade, vale dizer, das máquinas e equipamentos instalados para fabricar televisores, geladeiras, aparelhos de imagem e som, carros, aço e mesmo outras máquinas e equipamentos, entre uma série de outros produtos.

Mais claramente, as empresas investiram na compra de novas máquinas à espera de um crescimento que não veio. A produção industrial, aponta o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), tem demonstrado “pronunciada instabilidade”, alternando, neste ano, períodos curtos de avanço, com fases de queda ou estagnação. Os números da CNI indicam recuo de 0,7% nas vendas em agosto, frente a idêntico período do ano passado, enquanto pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apura incremento de 1,1% para a produção no mesmo período. “Em outras palavras, (a indústria) acumulou estoques”, analisa o Iedi. O arrocho ao crédito ameaça criar um outro tipo de constrangimento para a economia, como se verá a seguir.

DESEMPENHO NO BRASIL E EM OUTROS PAÍSES Produção da indústria de transformação, variação em relação ao mesmo período do ano anterior Países

Variação (%)

África do Sul (jul/05)

2,6

Argentina (jul/05)

7,6

Brasil (ago/05)

3,6

Chile (jul/05)

5,2 -0,1

Hong Kong (2º tri/05) Índia (jul/05)

8,3

Malásia (jul/05)

0,5 10,3

Tailândia Fonte: IBGE e órgãos nacionais de estatísticas – Elaboração: Iedi

Juros espantam investimentos e recuperação fica difícil Neste momento, desenha-se um cenário inverso ao verificado antes da mais recente elevação dos juros. Com taxas ainda nas nuvens, as empresas claramente desaceleraram seus planos de investimento, o que significa reduzir as chances futuras de crescimento da economia. O erro de avaliação do BC cobrará um preço extremamente elevado e a conta, parcialmente vislumbrada no aumento das despesas com juros do governo, como demonstrou Brasil de Fato, vem sendo apresentada ao país, sob a forma de taxas de crescimento medíocres, muito abaixo da média observada nos demais países em estágio de desenvolvimento semelhante ao brasileiro (veja quadro). Divulgado na semana que passou, o levantamento do IBGE sobre a produção industrial em agosto apurou um aumento de 4,7% acumulado pela indústria de bens de capital (que fabrica máquinas, equipamentos, tratores, caminhões, ônibus usados na produção) nos 12 meses anteriores.

IRREGULARIDADE Esse é o dado “velho”, que reflete uma realidade de meses atrás. No mês de agosto em particular, a produção do setor cresceu 3% e acumulou uma variação de 2,7% nos primeiros oito meses do ano. Tomando uma série mais longa, no trimestre encerrado em agosto a produção de máquinas e equipamentos registrou virtual estagnação (mais 0,04% em relação aos três meses encerrados em julho). Na prática, isso significa que os investimentos em bens de ca-

pital se mantiveram praticamente inalterados naqueles três meses. Em relação a igual período do ano passado, a variação limitou-se a 1,9%, enquanto a indústria em geral avançou 3,75%, puxada pela produção de bens duráveis (veículos, televisores, geladeiras, DVDs etc), que saltou 16,8%. A análise do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) não poderia ser mais direta. Depois de enfrentar estagnação entre setembro do ano passado e fevereiro deste ano, a produção industrial passou a registrar um desempenho irregular nos meses seguintes, “ora sendo puxada por fatores ligados ao dinamismo do comércio exterior (pelo crescimento das exportações)”, ora estimulada pela maior oferta de crédito ao consumidor, “ora por ondas de desrepresamento de investimentos empresariais ou, ainda, por espasmos de evolução do mercado interno”.

VAIVÉM Mais claramente, o setor tem alternado curtos períodos com algum crescimento, quase sempre relacionados a fatores momentâneos, e fases de encolhimento da produção e das vendas. A instabilidade decorre, adicionalmente, do fato de o modesto avanço da produção estar concentrado em poucos setores da indústria. Entre janeiro e agosto, quatro setores (veículos, telefones celulares e tevês, gráficas e mineração, com destaque para minério de ferro e petróleo) responderam por praticamente 60% da taxa de crescimento acumulada (4,27% sobre os mesmos oito meses de 2004). (LVF)


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NACIONAL MEMÓRIA DA DITADURA

Lembrar Vlado, lembrar todas as vítimas Nunca esquecer cada ano do assassinato do jornalista é homenagear as vidas destruídas pelos militares movimentos populares (estudantes, sindicatos, setores da Igreja etc.) queria iniciar uma abertura lenta e segura, para continuar com o controle do país. Entretanto, para alguns militares, isto não era admissível. Neste contexto, em São Paulo, o comando de ultradireita do II Exército decidiu exterminar os militantes do PCB. “Em 1974/75 todos os grupos da luta armada tinham sido exterminados. O regime quis, então, acabar com o PCB, que optara por uma resistência pacífica”, conta Maria Aparecida. Com a morte de Herzog, acrescenta, o então general-presidente, Ernesto Geisel, “sentiu a faca no fígado”. A luz sobre a crueldade do regime ficaria ainda mais intensa em janeiro de 1976. Foi então que Manuel Fiel Filho, operário militante do PCB foi torturado até a morte na mesma cela do DOI-Codi onde Vladimir Herzog também fora torturado até à morte. Dessa vez, o comandante-chefe do II Exército, Ednardo D’Ávila Melo, foi afastado da função.

Divulgação

Dafne Melo da Redação

“A

certa altura, os gritos pararam. Silêncio. Percebi uma movimentação de pessoas. No dia seguinte, houve um remanejamento interno dos presos e, então, consegui conversar rapidamente com um colega que me avisou que tinham matado o Vlado”. As lembranças são do jornalista Sérgio Gomes, que em 25 de outubro de 1975, data da morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), estava preso na cela ao lado de onde Herzog foi torturado até morrer. Gomes recorda mais: “O que ficou claro na hora, para nós, naquele momento, é que o regime estava numa situação difícil. Como eles iam explicar a morte de um jornalista da TV Cultura, um intelectual, judeu, ex-correspondente da BBC?” Antes de Herzog, centenas de militantes, incluindo diversos jornalistas, já tinham sido assassinados pelo regime. Gomes explica que, antes, como a imensa maioria dos militantes mortos estava na clandestinidade, era mais fácil para o regime ocultar suas vítimas. “Por que o nome de José Montenegro de Lima, por exemplo, não apareceu naquele período? Ele também foi preso, torturado e assassinado, mas vivia na clandestinidade”, exemplifica Gomes. Lima, também conhecido como Magrão, era integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi preso em setembro de 1975. Até hoje, seus restos mortais não foram encontrados.

VISÃO CAOLHA

Vladimir Herzog, assassinado pelos militares em 25 de outubro de 1975

houve um despertar de consciências”, conta Dantas. Sérgio Gomes ressalta a importância do papel que o sindicato desempenhou naquele momento, denunciando as prisões de jornalistas, e articulando as mobilizações com outros setores sociais. A movimentação culminou com um ato ecumênico em homenagem a Vlado, na Catedral da Sé (centro de São Paulo), reunindo mais de 8 mil pessoas, uma semana após a morte do jornalista. A professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, Maria Aparecida Aquino, concorda que o assassinato de Herzog teve um peso simbólico muito

REAÇÃO Naquele mesmo ano de 1975, o Sindicatos dos Jornalistas do Estado de São Paulo, depois de mais de uma década (precisamente 12 anos) nas mãos de grupos ligados ao governo militar, elegia uma direção que se opunha à ditadura militar. Audálio Dantas, então eleito presidente do sindicato, conta que a versão do suicídio não foi aceita pelos colegas, visão que se alastrou pelo restante da sociedade. “Ali,

importante, pois deu visibilidade a um crime cometido pelo militares. Mas ela pondera que o assassinato do jornalista “ não deve ser vista como um marco definitivo. A reabertura política foi um processo, e foi uma conquista do povo”. Sérgio Gomes lembra que, em 1974, o partido de oposição ao regime, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), tinha conseguido importantes vitórias nas eleições, o que catalisava um movimento oposicionista na sociedade.

PINGOS NOS IS Maria Aparecida Aquino explica que, naquele período, parte do setor militar, sentindo a rearticulação dos

A professora diz que atitudes como esta, não podem ser vistas como concessão do regime, mas como fruto das reivindicações da sociedade. “Desde a independência, temos uma inversão total. Os setores populares queriam a independência, mas a elite criou uma farsa, antes que o povo a conquistasse de fato. O mesmo aconteceu com o afrouxamento da ditadura, e pagamos este preço até hoje. É como se os movimentos populares não existissem, e se fica vendendo a idéia de que sempre ficamos esperando ordens superiores”, avalia Maria Aparecida. Sérgio Gomes acredita que a comemoração do 30º aniversário da morte de Vladimir Herzog traz à memória fatos que devem servir de reflexão para a esquerda brasileira. “O que nós vimos ali, naquele momento, foi uma ação aglutinadora de diversas forças na sociedade, sem sectarismo. Como diz (Theodor) Adorno, não se trata de reviver o passado, mas de realizar as suas esperanças”, conclui o jornalista.

Os familiares de Flávio Carvalho Molina, militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo), torturado e assassinado pelo regime militar em 1971, passaram pelo mesmo drama de dezenas de parentes de desaparecidos políticos no Brasil. “Venho lembrar a saga que vivemos há 34 anos, inicialmente buscando descobrir e entender como ocorreu sua morte, posteriormente vivendo com a expectativa constante de identificação dos restos mortais de meu irmão”.É o que escreve Gilberto Molina, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Entretanto, diferentemente daqueles que continuaram a buscar respostas para a sorte e o paradeiro aos parentes desaparecidos, no dia 10, a família Molina conseguiu recuperar os restos mortais de Flávio. “Uma vez resolvida esta questão, vem a sensação de alívio, mas por baixo da pele permanece, insistente, a marca daqueles dias tenebrosos”, continua Gilberto, em nota oficial. Carioca, Flávio Molina começou sua militância no movimento estudantil. Em 1969, entrou para a Aliança Libertadora Nacional (ALN, mesmo grupo do comandante Carlos Lamarca), e passou para a clandestinidade. Com a prisão preventiva decretada em duas ocasiões, foi para Cuba no mesmo

Marcos D’Pauloa/AE

Os Molina encerram busca de 34 anos

Vlado, 30 anos depois Confira algumas atividades programadas em homenagem ao 30º aniversário do assassinato do jornalista, em São Paulo, neste mês de outubro. De 14 a 20 Ciclo de cinema com filmes sobre o período do regime militar (Cinesesc – Rua Augusta, 2.075; e Galeria Olido – Av. São João, 473, veja programação completa em www.jornalistasp.org.br). Dia 18 Inauguração de Exposição de Fotos sobre Vladimir Herzog e o período em que foi assassinado (Sindicato dos Jornalistas – Rua Rego Freitas, 530 – sobreloja), às 20 horas. Dia 19 Exibição do Programa Diálogo Brasil – Especial Vlado (TV Educativa/Radiobrás/TV Cultura), às 22h30. Dia 20 Sessão solene em homenagem a Vlado, na Câmara Municipal de São Paulo, às 19 horas (Viaduto Jacareí, 100). Concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo em memória de Herzog, na Sala São Paulo (Praça Júlio Prestes s/nº), às 21 horas. Dia 21 Ato simbólico no portal do Presídio Tiradentes (Av. Tiradentes), às 10h30. Dia 22 Inauguração da Exposição Vlado, 30 anos (celas do Dops, na Estação Pinacoteca – Largo General Osório, 66), às 11 horas. Dia 23 Ato Inter-religioso na Catedral da Sé em memória de Vlado, com a participação de representantes de 20 religiões, e apresentação de coral de 1.000 vozes, sob regência do maestro Martinho Lutero, às 14h. Dia 24 Sessão solene em homenagem a Herzog, na Assembléia Legislativa de São Paulo (Plenário JK), às 10 horas. Inauguração da Sala Vladimir Herzog da Associação dos Cronistas Políticos, na Assembléia Legislativa de São Paulo, às 11h30.

Enterro dos restos mortais de Flávio Carvalho Molina, torturado e morto pela ditadura militar em novembro de 1971

ano, onde ficou até 1971, agora já no Molipo.

VIA CRUCIS Preso em novembro de 1971, foi levado às dependências do DOI-Codi, em São Paulo, onde foi torturado até a morte. Flávio foi enterrado com o nome falso de Álvaro Lopes Peralta na vala clandestina do cemitério de Perus. Em 1979, por iniciativa própria, a família começou a investigar e acabou por obter documentos comprovando que seu nome fora

trocado, e que ele estaria enterrado como indigente em Perus. Após batalhas judiciais, as ossadas foram abertas em 1990, e enviadas para a Unicamp.

ABRIR ARQUIVOS Após 15 anos de tentativas frustradas, dia 2 de setembro, exame de DNA identificou os restos mortais do militante do Molipo. Para Gilberto, esse resultado mostra que, “com uma verba pequena, com um laboratório brasileiro competente e com autoridades infelizmente ainda pressiona-

das, podemos, após tantos anos, ter a identificação de dezenas de outros assassinados e desaparecidos, cujos familiares estão morrendo”. O irmão de Flávio destaca que, para mais desaparecidos continuarem a ser identificados, é essencial o esforço do governo federal. “Os sepultamentos com identidades trocadas, ou em locais ignorados, evidenciam a absoluta necessidade de informações corretas. Elas existem nos arquivos secretos das Forças Armadas, são tão reclamados e nunca apresentadas”, diz. (DM)

Dia 25 Mesa-redonda sobre Vladimir Herzog, no Auditório da Faculdade de História da USP, das 14 às 17 horas, promovida pelo Laboratório de Estudos da Intolerância. Cerimônia de entrega do XXVII Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog e entrega do I Prêmio Vladimir Herzog para Novos Talentos do Jornalismo, com homenagem a cidadãos cuja vida foi dedicada à causa dos Direitos Humanos, no Parlamento Latino-Americano (av. Auro Soares de Moura Andrade, 564 – Barra Funda), às 19 horas.


Ano 3 • número 137 • De 13 a 19 de outubro de 2005 – 9

SEGUNDO CADERNO BOLIVARIANAS

Exército desapropria fazenda do tráfico Claudia Jardim de San Cristobal (Venezuela)

“Q

uando chegaram os militares, pensei que ia ser como a Marquesenha. Mas depois o general me explicou que isso era uma investigação”, disse o camponês Oscar Rangel sobre a operação da Guarda Nacional (o Exército venezuelano) na fazenda em que trabalha. Em meio à guerra declarada pelo presidente Hugo Chávez ao latifúndio, os militares ocuparam 21 fazendas em três Estados. Diferentemente do que ocorreu com a fazenda Marquesenha, deMarquesenha sapropriada em – Fazenda de 8 mil setembro, desta hectares resgatada vez, a ação não pelo governo por haver sido considefoi motivada rada improdutiva e pela improdutiporque os supostos vidade da terra. donos não apresentaram o título de Mas sim era propriedade. decorrência de um processo de investigação do Comando Regional Nº 1 (Core 1) da Guarda Nacional que desmontou uma rede colombiana que utilizava fazendas no interior da Venezuela como fachada para lavagem de dinheiro do narcotráfico. Localizadas entre o triângulo fronteiriço que abarca os Estados de Apure, Barinas e Táchira, as fazendas somam aproximadamente 30 mil hectares, mantêm como atividade a produção de gado de corte e estão há uma hora da Colômbia. “Me surpreendi quando me contaram que era coisa do narcotráfico. O que fazemos aqui é um trabalho normal do campo. Cuidar do gado, fumigar o pasto e arrumar as cercas”, afirma Rangel, encarregado da fazenda há quinze anos. A investigação teve início quando um carregamento de drogas proveniente da Colômbia foi apreendido no Estado Táchira. A partir daí, foram feitas intervenções das fazendas supostamente de propriedade de Felipe Andres Ocampo, filho do ex-senador colombiano, Guilhermo Ocampo Ospina. O crime sob investigação é o de legitimação de capitais que nada mais é do que um mecanismo para justificar a procedência de um dinheiro obtido de maneira ilícita, neste caso por meio de tráfico de drogas. A compra de propriedades, no caso fazendas produtoras de ga-

Marcelo Garcia

Investigação do governo venezuelano desmantela operação de criminosos colombianos em propriedades no país

Militares venezuelanos desmontam rede colombiana que utilizava fazendas como fachada para lavagem de dinheiro do narcotráfico

do, geralmente em nome de terceiros, é a maneira pela qual se passa a justificar a aparição de grandes quantidades de dinheiro em uma conta bancária.

EXTENSO CONFLITO A gigantesca fronteira colombo-venezuelana com 2,2 mil quilômetros de extensão é uma das barreiras para controlar o fluxo de entrada e saída ao território venezuelano. Combater a infiltração de grupos paramilitares de direita, de guerrilheiros de esquerda e controlar o narcotráfico é a difícil tarefa das Forças Armadas. Nos últimos meses, cerca de 62 toneladas de drogas provenientes da Colômbia foram apreendidas pelo Estado venezuelano. “Estamos no meio de um fogo cruzado entre o produtor e o consumidor da droga”, avalia o general Jaime Escalante, responsável pela operação. Na fazenda Palmichal, de 600 hectares, onde trabalha o camponês Oscar Rangel e mais duas famílias colombianas, foram encontradas 5,1 toneladas de uréia.

“Vim para cá buscando melhores condições de vida. No meu país, a situação no campo é pior”, comenta Jameline Rangel, esposa de Oscar. Mãe de dois filhos, Jameline conta que desde que casou, há cinco anos, vive na fazenda Palmichal. “Me deu muita tristeza quando disseram que dependendo da decisão do juíz teríamos que sair , não temos para onde ir”, lamenta. O retrato da família Rangel é o da maioria. Quase a totalidade dos empregados das fazendas em que o governo autorizou a intervenção são colombianos. “O que me interessa é poder garantir a comida para meus filhos. Vida de bóia-fria não é fácil. O que a gente ganha quase não dá para nada”, afirma

Essa substância é utilizada na agricultura como adubo, mas na fazenda foram encontrados nela traços de cocaína. De acordo com as investigações do Laboratório Científico do Core 1, isso leva a crer que o galpão onde estava armazenado o produto serviu de depósito de droga em algum momento. Outra hipótese levantada é a de que a uréia tenha sido contaminada no seu local de origem. Um dos subprodutos da uréia, o amoníaco, é utilizado pelo narcotráfico na produção da cocaína. Outro indício de ilegalidade é que a uréia não havia sido certificada pela indústria química venezuelana, Pequiven, encarregada por autorizar a manipulação e posse do produto no país.

Cooperação, só com soberania

EXPLORAÇÃO Mais do que trazer à luz uma das inúmeras estratégias de manutenção do tráfico internacional de drogas, a situação de exploração em que vivem os camponeses empregados nas fazendas revelam uma outra problemática venezuelana: a situação dos imigrantes colombianos.

Além de enfrentar o narcotráfico, a descoberta da rede de lavagem de dinheiro representa uma contundente resposta aos Estados Unidos, que acusa o governo venezuelano de não colaborar com a luta antidrogas na região. Há um mês, o presidente Chávez rompeu o convênio que mantinha com a Agência Antidrogas estadunidense (DEA, na sigla em inglês). Na avaliação do presidente, a DEA “utilizava a luta contra o narcotráfico como máscara para fazer inteligência antigovernamental na Venezuela”. Alguns militares das Forças Armadas vão além e afirmam que o trabalho da DEA, ao contrário do que se divulga, procura facilitar o tráfico de drogas, e não combatê-lo. A resposta da agência estadunidense frente às críticas foi a negativa da certificação dada aos

Uma aliança entre militares e o povo Estado Táchira. Nove de outubro. O jipe da Guarda Nacional conduzia rumo a uma das 21 fazendas suspeitas de estarem ligadas à lavagem de dinheiro do narcotráfico. Um cabo conduzia o veículo. Escoltando o grupo, um jovem reservista de 20 anos. Dois jornalistas representando os civis e, à frente, o tenente José que carrega o sobrenome do libertador: Bolívar. Para qualquer brasileiro acostumado com o símbolo repressor da maioria dos militares, em um passado não muito distante, presenciar a atitude amistosa de tenente, que leva à igualdade a relação cívico– militar entre povo e Forças Armadas, é um dos fenômenos da revolução bolivariana. Ao se deparar com esses homens de uniforme verde-oliva que passaram a praticar a Nova Doutrina Militar encabeçada pelo presidente Hugo Chávez, a pergunta é inevitável: de que maneira os militares venezuelanos, treinados sob a lógica repressora da Escola das Américas – como a maioria dos militares latino-americanospuderam mudar de mentalidade e de atitude da noite para o dia?

países que desenvolvem planos de combate ao tráfico. Após um mês da cisão, ao mesmo tempo que anunciava a intervenção das fazendas, o ministro de Interior e Justiça, Jesse Chacón, reestabeleceu a comunicação com Washington, por meio do embaixador estadunidense, em Caracas, William Browsfield, para reorientar o trabalho de cooperação entre a DEA e a Venezuela. O trabalho realizado pela Guarda Nacional colocou a Venezuela em uma situação vantajosa. “Mostramos aos Estados Unidos que não necessitamos da ajuda deles para combater as drogas. Isso para nós é questão de soberania nacional”, afirma o general Jaime Escalante. Nesse cenário, o ministro Chacón anunciou que a tentativa de um novo acordo deve, em primeiro lugar, respeitar a soberania do país. (CJ)

Marcelo Garcia

A resposta foi simples e precisa: “A mentalidade muda quando Chávez sensibiliza as Forças Armadas a estar voltada à humanidade, a respeitar e se ver como ser humano. O presidente resgatou a capacidade de pensar que estava adormecida (nos quartéis)”, explica o tenente. “Agora, o militar entendeu que é o povo, que veio do povo”. No caminho, Bolívar mostra que é possível manter a disciplina militar sem deixar as relações humanas de lado. Em uma parada para a comida, preocupa-se em alimentar o reservista que, por estar em missão de escolta, não poderia sentar-se à mesa para almoçar. Um dos jornalistas, venezuelano, comenta: “Antes, os reservistas eram tratados como burros de carga”.

Candelário Aguiar, 61anos, pai de três filhos. Assim como os demais trabalhadores, Aguiar ganham por mês R$ 416, menos de um saláriomínimo venezuelano. “Se pudesse ter um pedaço de terra para plantar uma mandioca, um tomate, seria diferente, mas como? Se o que a gente ganha mal dá para comprar comida”, lamenta. O destino das fazendas após as investigações, será determinado pelo Poder Executivo. O presidente Hugo Chávez anunciou que as fazendas serão destinadas para a produção de Núcleos de Desenvolvimento Endógeno, baseado no trabalho de cooperativas, e serão incluídas nos planos do governo para alcançar a soberania alimentar.

O jipe segue seu caminho pelas secas e quentes planícies venezuelanas e o tenente recorre à sua formação de antropólogo para explicar a mudança de atitude da sociedade. Bolívar conta que a capacidade de atuar e pensar de maneira emancipada foi interrompida pelo processo de colonização. No entanto, apesar da coerção a que foram submetidos pelo domínio espanhol , a herança do índio-caribe – uma das guerreiras etnias da região que lutou pela libertação – não se perdeu. “Com a revolução despertamos, esse lado guerreiro. Chávez enfrenta o imperialismo porque sempre foram eles que tiveram o domínio da palavra. Agora, chegou a nossa vez de falar. O presidente tem feito com que nos respeitem como país”. Nesse sentido, um dos exemplos transformadores é romper a visão da vaca sagrada, o capitalismo, como único caminho a seguir. Justamente por romper com tal paradigma, o tenente-coronel à Presidência do país mostra aos venezuelanos e à América Latina que a construção de uma sociedade socialista deve ser a trilha para extinguir o abismo social provocado pelo atual modelo. “O grande mal que Chávez causou aos EUA foi fazer com que a juventude venezuelana pensasse e fosse capaz de propor novos modelos econômicos, políticos e sociais. Ao despertar, essa sociedade se nega a ser dominada”. (CJ) Acordo para combater as drogas deve respeitar soberania, diz governo venezuelano


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INTERNACIONAL GUATEMALA

Mais um caso de omissão em catástrofes Cristiane Gomes e Maria Luisa Mendonça da Cidade da Guatemala (Guatemala)

Fotos: Ramiro Tellez

Missão visita as áreas atingidas pelo furacão e comprova que governo abandonou as comunidades

O

furacão Stan, que atingiu a costa sul do Oceano Pacífico, em 3 de outubro, provocou fortes chuvas em El Salvador, Nicarágua, México e Guatemala. Comunidades inteiras foram destruídas e milhares de pessoas seguem desaparecidas. A maioria das vítimas é de ascendência indígena. Na segunda-feira, 10 de outubro, uma comissão internacional de solidariedade, formada por integrantes de organizações que participam do 4º Congresso Continental da Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), percorreu a região mais vitimada pelas chuvas e pelos desabamentos de terra que ocorreram na Guatemala após a passagem do Stan. A área, que abriga dois grandes vulcões, foi atingida por fortes chuvas no dia 5 de outubro. “Na noite anterior, sonhei que a montanha me contava que a estavam maltratando e que, por isso, iria partir”, conta uma senhora indígena. De fato, as tormentas causaram enormes deslizamentos de terra, que soterraram comunidades inteiras. A área visitada, no Estado de Sololá, compreende os municípios localizados ao redor do lago Atitlán. Dados oficiais falam em 500 mortos em todo o país. Entretanto, de acordo com organizações locais, o número de mortos é muito maior. Somente em Santiado Atitlán, 160 corpos foram encontrados e mais de mil pessoas estão desaparecidas, provavelmente soterradas. O próprio governo afirmou que será

O furacão Stan destruiu comunidades inteiras e fez milhares de vítimas; os sobreviventes sofrem pela falta de água potável, comida, transporte e medicamentos

como um tsunami que veio do céu”, afirmou o governador de Sololá, Júlio Ruez, em audiência com representantes da Cloc. A comissão visitou os municípios de San Jorge e Jaival, à beira do lago Atitlán, de onde saem mantimentos para os municípios atingidos. A maioria da ajuda emergencial vem da sociedade civil organizada. Além da solidariedade de organizações sociais, as comunidades contam com o trabalho voluntário de médicos cubanos e bombeiros espanhóis. Igrejas, organizações não-governamentais e as próprias comunidades fazem a distribuição de alimentos, água e remédios. Para isso, utilizam meios de transporte privados, como caminhonetes e lanchas. O apoio governamental que a missão presenciou em Jaival se resumia a sacas de milho, feijão e soja, vindas dos Estados Unidos. Alimentos que são, provavelmente, transgênicos.

impossível resgatar todos os corpos e saber, com exatidão, o número de mortos. Por isso, decretou que a área será considerada como um cemitério coletivo. As famílias sobreviventes sofrem pela falta de água potável, comida, transporte e medicamentos. O consumo de água contaminada do rio já começa a causar doenças. Com a perda de suas famílias, casas e cultivos, é nítida a forte tensão psicológica que afeta os sobreviventes. Esta região é responsável por grande parte da produção de milho, feijão e hortaliças. A perda quase total das lavouras significa que a população sofrerá com a falta de comida por um longo período.

DESCASO Somente seis dias após o início do desastre, a população começa a receber ajuda do governo. “Reconhecemos que não estávamos preparados para essa tragédia. Foi

Diante deste cenário, o povo guatelmateco pede socorro. “Não recebemos ajuda do governo. O auxílio está vindo da igreja e outras entidades, sem que haja apoio institucional. Estamos com fome e não temos combustível para que as lanchas cheguem ao outro lado do lago”, afirma Maria Mendonza, moradora da comunidade de Santiago Atitlán.

DIFICULDADES Outro problema é a falta de acesso às comunidades, pois as estradas e as pontes estão danificadas. Além disso, falta combustível. A maioria dos veículos usados para o transporte de alimentos é disponibilizada por voluntários. O governo estadual possui somente seis lanchas e quatro helicópteros. A população local organizou diversos grupos de trabalho e iniciou o reparo das estradas, mas reivindica que o governo envie ao

menos comida para sustentar os trabalhadores. Questionado, o governandor Júlio Ruez reconheceu que os efeitos devastadores das chuvas têm como causa a destruição do meio ambiente por madeireiras e grandes empresas. “Os camponeses e índigenas são os únicos responsáveis pela preservação da natureza. Por isso, é necessário a participação de suas organizações para formular projetos de reconstrução destas comunidades”. Uma das principais recomendações da missão foi a criação de um grupo que realize uma auditoria social para monitorar a utilização de doações materiais e financeiras. Dessa forma, seria possível evitar desvios e garantir que o auxílio seja distribuído de maneira efetiva. (colaboraram Plácido Júnior e Ramiro Tellez, da Minga Informativa, www.movimientos.org)

Congresso define estratégias de organizações camponesas Cristiane Gomes e Suzane Duraes da Cidade de Guatemala (Guatemala) “Uma década de luta, unidos contra o saque imperialista. Render-nos? Jamais!!! Pela vida, a terra, o território e a soberania de nossos povos.” Esse foi o lema do 4º Congresso Continental da Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), realizado na Cidade de Guatemala, capital do país. O encontro, que ocorreu de 9 a 11 de outubro, reuniu 88 organizações provenientes de 25 países, com o objetivo de analisar uma década de atividades da Coordenadora e também definir estratégias de lutas. “Temos de definir com clareza as novas estratégias frente ao imperialismo e suas políticas de saque que estão destruindo os recursos naturais dos povos”, propôs Juan Tiney, atual secretário operativo da Cloc. Além disso, o encontro serviu para as organizações prestarem solidariedade ao povo guatelmateco, que sofre com os efeitos do Fura-

Somente seis dias após o início do desastre, a população começa a receber ajuda

Em 7 e 8 de outubro, antes do início dos debates do 4º Congresso Continental da Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), as entidades que integram a coordenação do encontro realizaram a 3ª Assembléia Continental de Mulheres e a 2ª Assembléia de Jovens. As duas atividades tiveram como objetivo avançar na articulação feminina e da juventude latino-americana com o intuito de solidificar a resistência contra as políticas neoliberais. O espaço foi também de troca de experiências e impressões. “Este foi o momento de intensificar e estabelecer laços de solidariedade. Além de ser um momento para discutirmos políticas específicas”, afirmou Maria Helena Sequeira, da Associação de Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo (ATC ), da Nicarágua. As mais de 100 participantes da Assembléia, que se nomearam Filhas da Terra, reafirmaram em sua declaração final, o rechaço ao neoliberalismo e ao domínio das instituições financeiras na sociedade. As mulheres se solidarizaram com o povo cubano, em especial às camponesas, e defen-

deram a libertação dos cinco presos cubanos que estão nos Estados Unidos. A Assembléia marcou também a decisão de lançar uma campanha que se oponha a todas as formas de violência existente contra mulheres e crianças do campo. Já as discussões feitas na Assembléia da Juventude, que reuniu mais de 80 participantes latino-americanos, destacaram que o atual modelo político e econômico em vigor afeta a continuidade da agricultura familiar, o que impulsiona a migração dos jovens para outros países. Quando chegam nestes lugares, tornam-se mão-de-obra barata. Com a sociedade organizada sob o ponto de vista patriarcal, novamente as mulheres são o alvo de uma exploração mais intensa. “Os que migram em busca de melhores condições de vida e de trabalho, dificilmente conseguem alcançar o objetivo. Os países de destino, geralmente, são os capitalistas. Centenas de pessoas já morreram cruzando fronteiras. Devemos criar condições para evitar a saída dos jovens do campo” afirmou Carla Oporta, da Associação de Trabalhadores do Campo da Nicarágua. (CG e SD)

Ramiro Tellez

Unidade e resistência de jovens e mulheres

cão Stan, que atingiu a Costa Sul do Pacífico no início de outubro. O Congresso da Cloc foi dedicado às milhares de vítimas da catástofre – a maior parte delas de comunidades camponesas indígenas. Cerca de 178 delegados e delegadas presentes na atividade defenderam a necessidade de se buscar alianças e combater as políticas neoliberais. Eles debateram temas como a reforma agrária, militarização, migração, livre-comércio e soberania alimentar. Outro debate feito foi sobre a necessidade de os movimentos fortalecerem o processo da comunicação, criando mecanismos para que a informação, instrumento fundamental para a ação política, circule entre as entidades. Com relação às políticas de livre-comércio, as organizações se declararam em mobilização permanente. Houve avanços, mas as entidades destacaram que ainda há muito o que fazer. Diante das tentativas de implantação desses acordos, as lutas sociais devem continuar contra estes e outros instrumentos do imperialismo,

Camponeses de outros países prestam solidariedade às vítimas do furação

como os planos Colômbia, Puebla-Panamá e as políticas da Organização Mundial do Comércio (OMC). Outro avanço apontado é a construção de três escolas de formação camponesa, localizadas no Brasil, México e Cuba. Foi proposta ainda a criação de uma escola na Nicaraguá para atender a América Central. Na declaração final do Congresso, as organizações afirmam o combate ao agronegócio, as transnacionais, aos transgênicos e a privatização dos recursos naturais, principal alvo de interesses da política de colonização dos Estados Unidos. (Minga Informativa, www.movimientos.org)

O que é a Cloc? A Coordenadora LatinoAmericana de Organizações do Campo (Cloc) reúne movimentos sociais, indìgenas e de afro-descendentes da América do Sul, Central, Caribe e México. Surgiu em 1994, no Brasil, em um contexto de lutas e reivindicações de camponeses e indígenas. De acordo com a avaliação dos coordenadores, estes 11 anos da Cloc tiveram saldo positivo. “Temos que fortalecer nossa unidade. Há um acúmulo de debate sobre o funcionamento da organização e alguns princípios devem ser ratificados”, disse Altacir Bunde, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Para Etelvina Massioli, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Cloc tem sido importante para afirmar os princípios dos movimentos camponeses anti-imperialista que promovem a solidariedade entre os povos. “A luta campesina é internacional e manteremos firmes as bandeiras de luta”


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INTERNACIONAL TERREMOTO

Relações entre Índia e Paquistão à prova Unicef

Mais de 2 milhões foram atingidos pelo terremoto na Caxemira, região já castigada pelo conflito entre os dois países Ranjit Devraj de Nova Délhi (Índia)

O

cometeram nos últimos anos vários atentados. Nova Délhi acusa Islamabad de apoiar militarmente esses guerrilheiros islâmicos, mas o governo paquistanês afirma que somente lhes dá “apoio moral e diplomático”. A Índia foi o primeiro país a oferecer ajuda ao Paquistão para as operações de resgate. “A Índia está em uma posição única para colaborar com as operações de resgate na região da Caxemira controlada pelo Paquistão”, mas Islamabad prefere a ajuda de outros países mais distantes, como Estados Unidos e Grã-Bretanha, disse o analista indiano Kamal Mitra Chenouy, da Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Délhi. “Se o Paquistão aceitar, a Índia poderá enviar ajuda às zonas afetadas em questão de horas, já que o terreno é familiar para seus soldados. “Lamentavelmente, o enfoque continua sendo militar e não humanitário”, disse Chenouy. Muitas áreas da Caxemira paquistanesa, afetadas especialmente por desmoronamentos causados pelo terremoto, são mais acessíveis a partir do lado indiano, mas até

LIVRE-COMÉRCIO

Organizações da sociedade civil irão às ruas em todo o mundo nos próximos dias para protestar contra o processo de liberalização comercial que conduz a sexta conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que se reunirá em Hong Kong em dezembro. Os promotores dos protestos recordam que as maiores frustrações da política de abertura de mercados incentivadas pela OMC aconteceram quando a sociedade civil se mobilizou, como durante as conferências ministeriais de Seattle, em 1999, e de Cancún, em 2003. “Se observarmos Seattle e Cancún, é importante destacar o papel desempenhado pela sociedade civil em desbaratar essas conferências. Agora esperamos cumprir o mesmo papel em Hong Kong”, disse o filipino Walden Bello, da Focus on the Global South. “Vamos deter as negociações da OMC porque vemos que não apresentam nenhuma perspectiva favorável aos países, em particular aos da América Latina e África, insistiu a brasileira Iara Pietricovsky, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Um lema lançado na presente campanha, “Hong Kong será a Stalingrado da OMC”, apenas confirma as intenções das ONGs asiáticas, européias e latino-americanas que convocam as demonstrações de protesto.

PRIMEIROS PROTESTOS Em Stalingrado, cidade que retomou seu nome original russo de Volvogrado em 1961 sob o governo do primeiro-ministro Nikita Kruschev, as tropas da ex-União

da fronteiriça zona glacial Siachen, considerada “o campo de batalha mais alto do mundo”. Manter tropas na geleira Siachen, cerca de 6.300 metros acima do nível do mar, custa à Índia mais de 1 milhão de dólares por dia, além das freqüentes perdas humanas pela exposição dos soldados a temperaturas extremamente baixas. Está prevista para janeiro próximo uma rodada de diálogo bilateral

agora há pouca cooperação entre os exércitos dos dois países na fronteira.

DESMILITARIZAÇÃO O terremoto sacudiu a Caxemira bem depois de o chanceler indiano, Natwar Singh, ter passado quatro dias em Islamabad para elaborar um documento em que os dois países se comprometem com uma desmilitarização progressiva

para chegar a um acordo sobre o controle dessa zona estratégica. Por outro lado, parece improvável que o Paquistão aceite a ajuda indiana para as vítimas do terremoto. “A última coisa que o Paquistão quer é ver soldados indianos caminhando por uma zona onde se sabe que estão as bases de vários grupos separatistas”, afirmou um analista militar indiano. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

RÚSSIA

Novamente às ruas contra a OMC Gustavo Capdevilla de Genebra (Suíça)

Apesar da tragédia envolvendo Paquistão e Índia, há pouca cooperação entre os exércitos para ajudar as vítimas da Caxemira

Soviética infligiram em 1943 uma derrota ao exército invasor da Alemanha nazista que marcaria o começo do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas agora será em um país neutro, na cidade suíça de Genebra, onde serão realizados os primeiros atos de protesto durante as próximas semanas, com a intenção de estendê-los, em seguida, a Hong Kong e outros lugares do mundo, como anunciou a Rede Mundial da Sociedade Civil. Os ativistas atribuem uma importância-chave às reuniões que a OMC realizará a partir desta semana, com a sessão de quinta-feira do Comitê de Negócios Comerciais, máximo organismo técnico das discussões. Na semana que vem prosseguirão com as sessões dos dias 19 e 20 do Conselho Geral, organismo que gerencia o sistema multilateral nos intervalos entre conferências ministeriais.

CONFERÊNCIAS MINISTERIAIS Outro argumento dos movimentos sociais para justificar as manifestações é que a OMC mudou suas táticas e prefere evitar que as negociações fiquem para o último momento, pois quando fracassam desprestigiam as conferências ministeriais, como nos casos de Seattle e Cancún. Por esse motivo, as negociações que se desenvolverão este mês em Genebra serão cruciais para o desenlace de Hong Kong, afirmam os ativistas. A conferência de dezembro deveria estabelecer acordos para se avançar nas negociações da Rodada de Doha, um plano de ampliação da abertura dos mercados lançado na capital do Qatar em 2001. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

Vladimir Putin, o czar eleito João Alexandre Peschanski da Redação Desde a derrocada da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, a Rússia era controlada por organizações mafiosas. O governo tinha pouco poder contra os criminosos. Em 2005, essas organizações desapareceram. O que não quer dizer que a máfia desapareceu. Suas atividades são mantidas, em regime de monopólio, pelo presidente russo, Vladimir Putin. A avaliação é do economista Anders Åslund, diretor do Programa de Pesquisa sobre a Rússia e a Eurásia no Centro Internacional Carnegie, instituição de ensino sediada em Washington, Estados Unidos. Segundo ele, Putin não assumiu só o papel dos criminosos, mas de todas as instituições do país. “O objetivo de seu segundo mandato, iniciado em 2004, é acabar com os centros de poder, menos o seu. Seu regime não é mais funcional, pois está centralizado demais. Além disso, não há transparência. As pessoas não conhecem o projeto do governo, as políticas não são negociadas, não há como obter informações”, afirma Åslund, em entrevista ao Brasil de Fato. Putin manda prender pessoas que se opõem a seu regime, como sindicalistas. Se sobra autoritarismo, falta competência para resolver problemas internos. No início de 2005, ele ordenou uma reforma previdenciária que, entre outras conseqüências, cortou as pensões de famílias pobres. No mesmo período, quintuplicou seu salário – recebe 48 mil dólares por mês – e os de seus ministros.

George Monbiot

terremoto que matou pelo menos 30 mil pessoas e deixou outras 40 mil feridas na Caxemira, dia 8, pôs à prova a aproximação diplomática entre Índia e Paquistão, países que disputam esse território há 58 anos e agora estão em uma fase de “reconciliação”. Dados não definitivos indicam que a grande maioria das mortes em razão do sismo, de 7,6 pontos na escala Richter, aconteceu do lado paquistanês da província. Fontes oficias informam que o número de mortos pode aumentar. O terremoto destruiu dezenas de vilas e causou deslizamentos de terra que dificultam os trabalhos de resgate em muitas áreas devastadas, onde os corpos das vítimas estão espalhados pelo chão. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que o número de pessoas atingidas diretamente pelo desastre chegue a mais de 2 milhões. Índia e Paquistão disputam o controle da Caxemira desde 1947, quando ficaram independentes do império britânico. Trata-se de uma zona rica em petróleo e cuja população é majoritariamente muçulmana, como no Paquistão. Esta disputa provocou três guerras entre os dois países, levando a ONU a criar uma fronteira provisória – a chamada linha de controle – através da qual, entretanto, a troca de tiros ainda é freqüente. Na parte sob controle indiano, integrada ao Estado de Jammu e Caxemira, atuam grupos separatistas que

Bush (EUA) e Putin (Rússia) satirizados na manifestação contra o imperialismo

estadunidense Freedom House (do inglês, casa da liberdade). Em 2005, a Rússia foi considerada “não livre”, mesma classificação de países sob intervenção militar estrangeira, como Afeganistão e Haiti, e de ditaduras, como Guiné Equatorial e Sudão. No ano anterior, a Rússia ficou como “parcialmente livre”. Segundo Åslund, a guinada autoritária de Putin levanta dúvidas sobre sua estratégia para 2008, fim de seu governo. Ele não pode se reeleger, pois a Constituição da Rússia não permite que presidentes tenham três mandatos seguidos. Putin está no poder desde 1999. “Ele não quer abalar sua imagem internacional, indo contra as regras constitucionais. Mas também não quer se afastar do poder, com o qual tem lucrado muito. Há uma grande indecisão”, explica o economista.

REGIME AUTORITÁRIO

INSATISFAÇÃO POPULAR

Pela falta de direitos políticos e ataques do governo a liberdades civis, a Rússia se tornou um país sob regime autoritário. É isso que indica a “Pesquisa da Liberdade no Mundo”, publicada pela entidade

Nas cidades russas, protestos contra Putin pululam. De acordo com o jornal francês L´Humanité, foram sessenta mobilizações contra o governo, em setembro. Nesse mesmo mês, em 2004, o governo foi acusa-

do de omissão durante um seqüestro em uma escola, na cidade de Beslan, no sudoeste da Rússia. Foram assassinados 330 reféns, principalmente crianças. Os manifestantes dizem que Putin não é um presidente, mas um czar, em referência ao título dos soberanos russos da Idade Média. Åslund não descarta a possibilidade de um levante popular se Putin tentar modificar a Constituição: “A população está muito irritada, descrente em relação à elite política. Pode se repetir o fenômeno da Ucrânia”. No final de 2004, manifestações se alastraram na Ucrânia contra a posse de Viktor Ianuvitch, acusado de ter vencido as eleições presidenciais de modo fraudulento. O levante, conhecido como “revolução laranja”, foi liderado por Viktor Iutchenko, o outro candidato que disputou o pleito. Na Rússia, como reportou L´Humanité, multiplicam-se novos Soviets, nome dos conselhos populares, criados em 1905, onde se criou a estratégia da revolução russa, em 1917. Nos novos Soviets são organizadas mobilizações simultâneas contra Putin.


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INTERNACIONAL CARTA MUNDIAL DAS MULHERES

Volta ao mundo em defesa de direitos Tatiana Merlino da Redação

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epois de sete meses viajando por mais de meia centena de países, a Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade chega, dia 17, a seu destino final, a cidade de Ouagadougou, capital de Burkina Faso, na África. Elaborado coletivamente, por meio de debates dos grupos que participam da Marcha Mundial de Mulheres em todos os continentes, o documento aporta à África junto com a Colcha da Solidariedade Feminista, que foi sendo confeccionada com retalhos que expressam as reivindicações das mulheres dos países por onde passou. Não por acaso, o fim da viagem da Carta e da Colcha coincide com a comemoração do Dia de Luta Contra a Pobreza, quando mulheres do mundo todo estarão mobilizadas em 24 horas de solidariedade. Do meio-dia até a uma hora da tarde, vão às ruas pedir mudanças. Segundo Ouedraogo Awa, da coordenação da Marcha em Burkina Faso, estão sendo esperadas 600 pessoas vindas do mundo inteiro e 225 do interior do país para as comemorações em Ouagadougou. Entre as reivindicações mundiais do Dia de Luta Contra a Pobreza, Ouedraogo menciona o fim da violência doméstica, melhoria da imagem feminina na mídia e aumento do acesso das mulheres ao ensino médio e universidades.

Antonio Milena/ABR

A Carta chega à África, depois de percorrer 53 países; mulheres exigem fim da opressão, da exclusão e da intolerância

Das Américas à África

Marcha Mundial iniciou no Brasil e percorreu 53 países antes de chegar ao destino final, em Ouagadougou, em Burkina Faso

número de mulheres produtoras de notícias, estaremos contribuindo para a emancipação feminina”, ressalta a militante. A escolha de Burkina Faso como ponto de chegada não é casual. O país é um dos mais pobres do planeta, com o terceiro mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), e onde as mulheres são submetidas a violências domésticas, matrimônios forçados e mutilações sexuais.

PRAÇA PELA PAZ Em Ouagadougou, haverá uma recepção oficial para a chegada da Carta, vinda de Mali, um ato pela paz seguido de shows e apresentações culturais. Durante a tarde do dia 17, mulheres do mundo todo farão uma marcha pelas ruas da cidade, que irá terminar com a inauguração de uma estátua feminina numa praça, que será batizada de “Praça da mulher pela paz”. Além disso, lembra Ouedraogo, a Marcha pretende expressar a sua solidariedade às mulheres africanas, patrocinando um curso de graduação em jornalismo a uma jovem de Burkina Faso. “Aumentando o

EM TODO O MUNDO “Aqui, meninas são condenadas a viver com homens que têm a idade de seus pais ou avôs. Se a mãe fica do lado da filha, pode ser abandonada pelo marido. Lutamos para ensiná-las a resistir”, afirma Ouedraogo. Ela conta que durante a viagem da Carta, esteve na África do Sul, Camarões e Benin, “onde, acredite, muitas pessoas choraram ao ver o quanto nossas reinvidicações são verdadeiras. Creio nas mudanças. Somos fortes o suficiente para brigarmos por elas”, assinala. No Japão, as mulheres protes-

tarão em Yokohama, onde se localiza a segunda maior base militar dos Estados Unidos; na Bélgica, farão uma paralisação na região da Bolsa de Valores, em Bruxelas. No México, haverá um ato em Chiapas, e na capital, Cidade do México. Em Buenos Aires, Argentina, as mulheres vão fechar uma avenida perto da Praça de Maio, e distribuir panfletos com os pontos da Carta. Já no Brasil, estão programadas manifestações em todos os Estados e o tema central das reivindicações será o salário-mínimo. Em São Paulo, o ato do dia 17 terá concentração na Praça Ramos de Azevedo, com apresentação da campanha de valorização do salário-mínimo, caminhada pelas ruas do centro da capital e manifestações em frente às agências dos Bancos Itaú e Bradesco. A Carta, assim como as ações internacionais da Marcha Mundial das Mulheres, foram lançadas no dia 8 de março, em ato nacional que levou às ruas mais de 30 mil mulheres na cidade de São Paulo.

De lá, ela viajou de trem, ônibus, avião e barco por países da América, Europa, Ásia, Oceania, Oriente Médio e África (veja box).

SEM EXPLORAÇÃO O documento contém 31 afirmações que descrevem os princípios básicos da proposta feminista para um mundo sem exploração, opressão, intolerância e exclusão; onde a integridade, a diversidade e os direitos e liberdades de todos sejam respeitados. A Carta faz um chamado a todas as mulheres, homens e a todos os grupos oprimidos do planeta a proclamar seu poder para transformar o mundo e modificar as relações existentes por meio da igualdade, na paz, na liberdade, na solidariedade e na justiça. O texto é fruto de um longo processo de consulta e discussão com grupos feministas em 50 países, que estiveram representados na grande manifestação pública que ganhou as ruas de São Paulo esta semana. Todos se aglutinam em torno da Marcha Mundial de

A Carta Mundial das Mulheres da Humanidade e a Colcha da Solidariedade Feminista deram a volta ao mundo em sete meses. Partiu da cidade de São Paulo, Brasil, dia 8 de março, e chega em Ouagadougou, Burkina Faso, dia 17 de outubro. Abaixo, os países por onde o documento passou: Brasil, Argentina, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Haiti, Cuba, Honduras, El Sala, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia Romênia, Bulgária, Suíça, Espanha, Austrália, Japão, República da Coréia, Filipinas, República Democrática Popular do Lao, Birmânia, Tailândia, Índia, Pasquistão, Líbano, Jordânia, Tunísia, Palestina, Israel, Sudão, República Democrática do Congo, Ruanda Mvador, México, Estados Unidos, Canadá, Grécia, Turquia, Itália, Portugal, França, Moçambique, África do Sul, Camarões, Benin, Nigéria, Guiné, Uganda, Senegal, Mali, Burkina Faso. (TM)

Mulheres, uma articulação feminista internacional que, desde 2000, organiza as mulheres para a construção de uma agenda radical anticapitalista, fortalecendo sua autoorganização e sua presença nos movimentos sociais. Para mais informações sobre as mobilizações, visite o endereço eletrônico da Marcha Mundial de Mulheres Internacional: http: //mmf.lecarrefour.org/afrique/en/

SERRA LEOA

Elisabeth Schreinemacher de Nova York (EUA) Um tribunal penal especial encarregado de julgar crimes de guerra em Serra Leoa, país do Oeste da África, ficará sem dinheiro no próximo ano, a menos que consiga 25 milhões de dólares para manterse funcionando. Em uma tentativa para impedir que isso ocorra, a vice-secretária-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Louise Fréchette, pediu urgência aos países-membros em suas doações. “Ao fazê-lo, os Estados deixarão claro que aqueles que cometem crimes atrozes contra o direito institucional, estejam onde estiverem, deverão prestar contas de seus atos”, afirmou. O Tribunal Especial para Serra Leoa foi criado em janeiro de 2002 por um acordo entre a ONU e o governo desse país da África Ocidental. Seu objetivo é processar “pessoas que tenham a maior responsabilidade em graves violações do direito humanitário internacional” cometidas nesse país desde 30 de novembro de 1996, data do Acordo de Paz de Abidjan entre o governo de Serra Leoa e a rebelde Frente Unida Revolucionária (RUF, sigla em inglês). O conflito foi um dos mais brutais da região e envolveu violações, amputação de membros e outras atrocidades contra civis.

Arquivo Brasil de Fato

Sem dinheiro para prosseguir os julgamentos

Conflito em Serra Leoa foi um dos mais brutais da África

A RUF aterrorizou Serra Leoa durante uma guerra civil em que os rebeldes conseguiram fundos do tráfico ilegal de diamantes, facilitado pelo presidente da Libéria, Charles Taylor (1997-2003), hoje exilado na Nigéria. Taylor, sobre quem pesam 17 acusações relativas ao apoio de insurgentes e ao fornecimento de armas e treinamento à RUF, está sob proteção do governo nigeriano, que se nega a entregá-lo. “No momento, só podemos agir diplomaticamente, porque o Tribunal não tem nenhum poder para obrigar a Nigéria a entregar o senhor

Taylor”, afirmou Desmond Silva, promotor principal dessa corte. Segundo Silva, é provável que o Tribunal complete seu trabalho dentro dos próximos 18 meses. Embora 11 acusados já tenham sido processados, ainda falta capturar dois suspeitos-chave: Johnny Paul Koroma, ex-líder do Conselho Revolucionário das Forças Armadas, e o próprio Taylor.

CONTRIBUIÇÃO VOLUNTÁRIA O Tribunal foi criado a partir de contribuições voluntárias feitas até o final de 2004. Em junho de 2005, a Assembléia Geral outorgou 20

milhões de dólares para complementar os recursos financeiros da Corte nos primeiros seis meses deste ano, e autorizou outros 13 milhões de dólares para cobrir os gastos da segunda metade de 2005. Mas em 1º de janeiro de 2006 o Tribunal voltará ao regime de contribuições voluntárias. Segundo o juiz Robert Vincent, são necessários 25 milhões de dólares para financiar as atividades do tribunal no ano que vem. “Temos testemunhado um forte apoio hoje, por isso temos esperança de que nos aproximaremos dessa soma nas próximas semanas e meses”, disse durante uma conferência para arrecadar fundos realizada na ONU no início de outubro. Além da Comissão Européia (órgão executivo da União Européia), 14 Estadosmembros da ONU já prometeram até 9 milhões de dólares. Daudi Ngelautwa Mwakawago, representante especial da Secretaria-Geral para Serra Leoa, disse em entrevista coletiva que a ONU cumpriu com juros os objetivos de segurança que se propôs há seis anos. A missão das Nações Unidas em Serra Leoa, que chegou a 17 mil soldados, hoje se reduziu a dois mil. Desde que foi consolidada a paz em 2002, o governo desarmou 70 mil combatentes e quase 9.500 policiais foram treinados e equipados. “Outro ponto

importante é a publicidade que os julgamentos tiveram no país. A questão da impunidade agora está sendo desafiada, o que constitui uma contribuição significativa do Tribunal”, afirmou Daudi Mwakawago. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

SERRA LEOA Localização: África do Oeste Principais cidades: Freetown (capital), Koidu-Sefadu, Bo, Kenema Línguas: inglês (oficial), crioulo, mende, limba e temne Nacionalidade: leonesa Divisão política: 4 províncias Regime político: república presidencialista População: 5,8 milhões Moeda: leone Religiões: islamismo (45%), crenças tradicionais (40%), cristianismo (11%)


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NACIONAL CULTURA POPULAR

Mais esperança no ar, em Heliópolis Baby Siqueira Abrão de São Paulo (SP)

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Gerônino Barbosa, responsável pelo Ponto de Cultura, comanda programa na rádio comunitária de Heliópolis

for levado em conta o fato de que a mobilização cultural na favela conseguiu, entre outros benefícios, baixar o número de homicídios – de 50 mortes na década de 1990, para 19 no ano passado. “Com a verba do MinC vamos reformar o prédio da rádio comunitária e comprar equipamentos para capacitar 50 jovens da região para atuar em rádio”, explica José Geraldo de Paula Pinto, secretário-geral da União de Núcleos, Associações e Entidades de Heliópolis e São João Clímaco (Unas). “Esse dinheiro

ção de projetos e a organização de espetáculos. Cada participante do projeto receberá uma bolsa-auxílio de R$ 150. “É um grande passo para a rádio, que começou com cornetas penduradas nos postes”, anima-se Geronino Barbosa, diretor de comunicação da Unas e coordenador da Rádio Comunitária Heliópolis FM (97,9), regularizada por decreto municipal de junho de 2005. Apresentador do “Forrozão de Heliópolis” – no ar aos sábados e domingos, das 14h às 16h –, Gerô, como é conhecido,

também vai ajudar a pôr em prática um projeto que busca a interação dos mais de cem grupos musicais daqui, por meio de um curso de produção cultural”, acrescenta.

CURSOS E ESPETÁCULOS Da capacitação radiofônica, com assessoria da Oboré Projetos Especiais em Comunicações e Artes, fazem parte cursos de locução, programação, retórica, elaboração de releases (comunicados para a imprensa). Na área de produção cultural, os focos são a preparaWilson Dias/ABr

ão poderia ter sido mais significativo o fato de o Ministério da Cultura (MinC) escolher Heliópolis para o lançamento oficial da segunda fase do projeto Pontos de Cultura. A favela, a maior de São Paulo, abriga mais de 120 mil habitantes em um milhão de metros quadrados e é referência nacional em trabalho comunitário e movimento social. Heliópolis começou a ser formada no início de 1970, com a remoção de 150 famílias da favela da Vila Prudente para a Gleba de Heliópolis. Ali, num alojamento “provisório” (que ficou em pé por 29 anos), nasceu uma mobilização que hoje envolve grande parte da comunidade em projetos sociais e culturais. A criação do Ponto de Cultura de Heliópolis – ocorrido em 3 de outubro, com as presenças do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dos ministros Gilberto Gil, da Cultura, e Luiz Marinho, do Trabalho – foi o reconhecimento do governo federal a um esforço comunitário de mais de 30 anos. Esse apoio virá na forma de uma verba de R$ 180 mil, a ser repassada pelo MinC em cinco parcelas semestrais. Os recursos vão ser destinados ao trabalho realizado principalmente com crianças e adolescentes da região – quase 60 mil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Não é uma verba muito alta, considerando o tamanho da população de Heliópolis e os problemas que a favela enfrenta, mas ajuda bastante. Em especial se

Wilson Dias/ABr

Projetos da maior favela de São Paulo mostram que a cultura é uma resposta eficaz para as questões sociais

Maré forma comunicadores com visão crítica Raquel Junia do Rio de Janeiro (RJ)

O que são os Pontos de Cultura Criados em 2004 como parte do programa Cultura Viva, do MinC, os Pontos de Cultura funcionam em comunidades carentes, quilombolas, indígenas e em assentamentos rurais. Essas comunidades, em geral, já desenvolvem atividades culturais – oficinas, grupos de teatro, música e dança, bibliotecas –, às quais o governo federal passa a dar suporte financeiro e de equipamentos, por meio do MinC. Da segunda fase do projeto, inaugurada em Heliópolis, fazem parte 328 Pontos de Cultura, que se somam aos 210 já existentes em todo o país. Para cada centro está prevista a instalação de estúdio multimídia com câmara de vídeo digital, gravação de CD e ilha de edição de vídeos. E eles já começaram a entrar em rede, via internet, com software livre desenvolvido no Brasil, o que vai permitir a integração e a troca de experiências culturais em todo o território nacional. Para o ano que vem, está previsto um investimento de R$ 48 milhões nos Pontos de Cultura. Esse valor inclui 12,5 mil bolsas-auxílio de R$ 150 mensais para 50 jovens de cada centro. A iniciativa já chamou a atenção de organismos internacionais. O MinC vai assinar convênios com as universidades de Berkeley e Columbia (Estados Unidos) interessadas em conhecer mais de perto a experiência brasileira.

Na disciplina Leitura Crítica, a exibição do vídeo Brasil: muito além do Cidadão Kane atrasou em mais de uma hora o término da aula. O filme inglês, de 1993, que mostra o apoio da TV Globo à ditadura militar e outros episódios que questionam a concessão pública de rádio e TV no Brasil, provocou intenso debate entre os estudantes da Escola Popular de Comunicação Crítica, na favela da Maré. O vídeo foi levado pelo diretor de cinema Eduardo Coutinho, que, nesse dia, atuou como um dos professores da Escola. Desde o início de setembro, 35 jovens de seis comunidades – Jacarezinho, Maré, Manguinhos, Mangueira, Morro do Alemão e Parada de Lucas – estudam comunicação no prédio do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, uma das entidades parceiras e executora do projeto. Outros parceiros da iniciativa são a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade Federal Fluminense, que serão responsáveis pela certificação do curso, além do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, do Canal Futura, entre outros. “A televisão condiciona as pessoas. A imprensa leva uma visão do que não está acontecendo nas comunidades. Levam, por exemplo, a visão de um policial, que não é a nossa visão”, afirma uma das alunas do curso, Rosinete Pereira Cardoso, de 20 anos, moradora do Morro do Alemão. Ela tem como objetivos desenvolver um programa de rádio para jovens e um jornal impresso na comunidade de origem. Para Diogo Araújo, de 19 anos, morador da Maré, a preocupação da escola em congregar jovens

de diversas comunidades é importante: “As experiências são diferentes. Violência tem em todas as comunidades, mas se dá de maneira diferente em cada uma”, afirmou. O que se percebe em Diogo e nos outros alunos da Escola é uma vontade grande de aprender e um encanto pela comunicação: “Nosso olhar crítico não chegou aqui bastante aprofundado e agora estamos tendo oportunidade para isso”, diz ele.

VISÃO CRÍTICA Os estudantes têm aulas de segunda a quinta-feira, no período noturno. Cada dia da semana é dedicado, nesse primeiro módulo, a uma das áreas temáticas – Leitura Crítica, Comunicação Integrada, Audiovisual ou Fotografia. “Queremos formar pessoas críticas, de maneira a retrabalhar as possibilidades da cidade, a repensar seus espaços, seus atores. A idéia é desmontar a cidade do medo, trocar linguagens e percepções de mundo”, afirmou o jornalista André Esteves, coordenador de um dos três eixos de ensino da Escola – Comunicação Integrada. As outras coordenações ficam

a cargo de João Roberto Ripper (fotografia) e do cineasta Márcio Blanco (audiovisual). André Esteves prevê, a partir da iniciativa, a consolidação de uma rede de comunicação alternativa no Rio de Janeiro. Dessa maneira, pode-se obter uma “organicidade da outra voz”, a voz das comunidades populares. Para tanto, um dos próximos objetivos da Escola Popular de Comunicação Crítica é, além da expansão, a construção de um centro de produção multimídia. Os estudantes já estão produzindo. Crônicas sobre o Caveirão: o blindado visto de fora é o nome do primeiro conjunto de produções. A proposta foi motivada por uma reportagem do Fantástico que mostra imagens captadas de dentro do Caveirão (carro blindado da PM carioca usado em incursões nas favelas). “Essa perspectiva construída sem uma contraposição fica perversa. Os alunos, que deparam com o carro quase cotidianamente, têm histórias muito pesadas para contar e essas histórias precisam ser divulgadas”, explica André Esteves.

Divulgação

Internet vai permitir a troca de experiências entre os pontos de cultura de todo o país

também coordena o Jornal da Unas, “que por enquanto só sai em datas especiais, mas logo será bimestral” e desenvolve trabalhos com a população homossexual da região. Entre uma música e outra, atendendo telefonemas dos ouvintes, brincando com Fábio de Oliveira e Olino do Ceará, seus parceiros no programa, Gerô fala dos projetos e das realizações da comunidade. Conta que são atendidas diariamente mais de duas mil crianças e adolescentes em situação de risco nas cinco creches e nos seis Núcleos Socioeducativos (NSE) de Heliópolis. O atendimento, que vai de atividades de arteducação a cidadania, passando por reforço escolar, esporte e meio ambiente, privilegia o protagonismo infantojuvenil. “A partir dos 14 anos os jovens começam a dar às crianças um atendimento igual ao que receberam”, conta José Geraldo. Tudo com supervisão pedagógica, nutricional e de saúde. Esse trabalho, além de reduzir a criminalidade e a violência, estimula os jovens a desenvolver o próprio potencial. É o caso de Renato Carlos Libânio, 18 anos, que já foi agente ambiental e habitacional da favela e agora trabalha na Unas. Ou de Tânia Maria de Jesus, também de 18 anos, que começou fazendo mediação de leitura (projeto para despertar o interesse da comunidade pelos livros, usando música e teatro) e agora é estagiária na recém-inaugurada Biblioteca Comunitária de Heliópolis – que está aceitando doações. Para conhecer outras atividades da comunidade, visite a página de internet www.unas.org.br.

Na escola de comunicação, jovens aprendem a produzir mídia para a comunidade


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DEBATE ELEIÇÕES MUNICIPAIS PORTUGUESAS

Na crise global da Humanidade Miguel Urbano Rodrigues estejei no domingo, em Serpa, entre camaradas e amigos, os resultados alcançados pela Coligação Democrática Unitária (CDU) – composta pelo Partido Comunista Português (PCP), pelo Partido Ecologista (os verdes), pela Intervenção Democrática (ID) e por democratas independentes – nas eleições municipais. Desde o início da contra-revolução, no outono de 1975, sempre atribuí às eleições locais maior importância do que às legislativas. A história dos últimos 30 anos demonstra que os eleitos comunistas e os seus aliados tiveram a possibilidade de – mesmo em contexto muito desfavoráveis, enfrentando a hostilidade permanente do Poder Central – levar à pratica programas que, na fidelidade aos ideais da Revolução de Abril, transformaram a vida das populações, criando os alicerces de uma futura sociedade participativa e autenticamente democrática. Já o mesmo não acontece com as instâncias legislativas. Elas semearam inicialmente ilusões que ainda persistem. Nunca subestimei a importância de uma forte bancada comunista na Assembléia da República. Mas a minha própria experiência como deputado em instituições parlamentares européias e em Portugal reforçou a convicção de que não é possível hoje a um partido comunista em qualquer país da Europa chegar ao governo através do funcionamento da democracia dita representativa. Em uma época em que o controle dos sistemas midiáticos é hegemonicamente exercido pelas forças do grande capital, o voto das grandes maiorias é decisivamente condicionado por engrenagens trituradoras que formam a opinião, desinformando por meio da imposição de uma realidade virtual. A tese segundo a qual um partido comunista, atuando em uma coligação como parceiro menor de um partido socialista, tem a possibilidade de contribuir para uma democratização lenta do sistema encontrou também uma resposta negativa. Os partidos social-democratas europeus diferem na sua atitude perante o Estado de BemEstar Social. Mas todos se distanciaram do marxismo e desenvolvem atualmente políticas neoliberais. Todos, portanto, arquivaram projetos teoricamente socialistas para adotarem o capitalismo.

Neste tempo em que uma crise global se aprofunda, com o adensar de ameaças à própria continuidade da vida, as forças responsáveis pela opressão social estão empenhadas em privilegiar a política de copa e cozinha No caso português a diferenciação das bases sociais não impede que o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), cujas direções são igualmente reacionárias (incluindo personalidades como Mário Soares), coincidam no fundamental: a opção por políticas neoliberais, traçadas na dócil submissão a estratégias impostas pela União Européia e o imperialismo estadunidense. É utópica a idéia de que a eleição de uma forte bancada

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norama assustador resultante da devastação dos recursos naturais não renováveis, situação agravada pela estratégia monstruosa de um sistema de poder de contornos neonazista que destrói simultaneamente culturas, cidades, florestas e povos, que envenena os rios, os campos e a atmosfera terrestre, que contamina os oceanos e dissemina epidemias. O petróleo, a manter-se o consumo atual já superior a 85 milhões diários de barris, acabará em meados desse século. Não há fonte de energia alternativa no horizonte. As reservas de carvão, de gás natural, de cobre, ouro, estanho e outros minérios não atingirão também o século 21. A PERSPECTIVA É DE TRAGÉDIA.

comunista pode forçar qualquer governo do PS a mudar de rumo e empreender uma politica que responda a aspirações mínimas do povo. Admitindo que o PCP conseguisse duplicar a sua representação em São Bento, (o que fora de um contexto revolucionário não parece possível), o Partido de Soares & Sampaio, independentemente do primeiro-ministro de turno, continuaria a aplicar com zelo uma política interna de classe cujas linhas mestras seriam sempre traçadas de acordo com as orientações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, e a desenvolver uma política internacional ditada por Bruxelas e Washington. Inferir daí que as eleições legislativas carecem de significado para as forças progressistas portuguesas seria um erro. Os textos de Lenin sobre os processos eleitorais continuam a ser uma fonte preciosa de ensinamentos. Tudo depende da forma como os comunistas atuam nos Parlamentos. O PCP já contou com mais de 40 deputados na Assembléia da República, representando doze distritos. A presença dessa numerosa bancada na vida nacional era, por si só, um pesadelo para os partidos da burguesia e um incentivo poderoso para as lutas sociais e a defesa das conquistas de Abril. São do conhecimento público as circunstâncias em que essa representação foi minguando, num panorama em que o desaparecimento da URSS e a imposição do neoliberalismo na Europa e na América alteraram profundamente a relação de forças no final do século 20 e abalaram, contaminaram e destruíram partidos comunistas. Não foi o caso do PCP que permanece como partido revolucionário, assumindo-se como marxista-leninista. Incluo-me entre aqueles que sempre se distanciaram de aproximações com o PS susceptíveis de viabilizar no Parlamento entendimentos paralisantes.

Neste tempo em que uma crise global se aprofunda, com o adensar de ameaças à própria continuidade da vida, as forças responsáveis pela opressão social estão empenhadas em privilegiar a política de copa e cozinha. Num país periférico e atrasado como Portugal, o enxame de simuladores de cultura instalado na televisão e nas colunas de uma imprensa mercenária difunde esforçadamente a mensagem tranqüilizadora que serve os objetivos do sistema imperial. Enquanto as manchetes se concentrarem na crítica ou na apologia da política de Sócrates (primeiro-ministro português, José Sócrates) e o confronto SoaresCavaco for apresentado como decisivo para o futuro de 10 milhões de portugueses, a polarização do debate em torno desses figurantes, marginais na história profunda, será desviada dos grandes problemas da humanidade, impedindo as massas de tomar consciência de que o descalabro interno tem raízes numa ameaça exterior de dimensão planetária. Sócrates e a sua política reacionária sofreram agora nas urnas uma derrota inocultável. Mas que não haja dúvidas. Assim como o PS sucedeu ao PSD de Santana (Pedro Santana Lopes, excandidto ao cargo de primeiroministro), amanhã, em próxima eleição, este voltará ao governo, para dar continuidade à politica de direita num rodízio deprimente, imposto pelo funcionamento de um sistema falsamente democrático. Somente o povo, como sujeito da história, romperá um dia a engrenagem. Não subestimo, obviamente, o significado da eleição presidencial. Mas insiro o acontecimento no grande painel da crise global. José Saramago foi realista ao nos lembrar há dias que a humanidade será, por diferente da atual, irreconhecível dentro de um século. Não compartilho, porém,

o seu catastrofismo. Não tenho por inelutável o apocalipse, creio que a caminhada para o abismo pode ser detida. Mas para que isso seja possível é imprescindível que a humanidade lute pela sobrevivência de formas de civilização, de cultura, por ela criadas ao longo de milênios.

Os partidos social-democratas europeus diferem na sua atitude perante o Estado de Bem-Estar Social. Mas todos se distanciaram do marxismo e desenvolvem atualmente políticas neoliberais O desfecho depende dela. Somente o efeito cumulativo de incontáveis lutas travadas no planeta ameaçado pela engrenagem trituradora de um sistema monstruoso poderá confirmar que, afinal, o túnel para onde nos empurraram tem saída. A grande ameaça reúne hoje numa frente de batalha única ecologistas, físicos, botânicos, pensadores, teólogos, revolucionários marxistas e não marxistas. O filósofo comunista húngaro-britanico Istvan Meszaros terá sido um dos primeiros intelectuais a colocar a humanidade perante a opção socialismo ou barbárie, retomando, 100 anos transcorridos, num contexto histórico muito mais dramático, a alternativa de Rosa Luxemburgo. John Bellamy Forster, o editor da prestigiada revista estadunidense Monthly Review, em lúcido artigo publicado por http://resistir.info/, esboça o pa-

É no combate pela humanidade que insiro a luta de partidos revolucionários como o PCP. É nele que desejo ver empenhado o grupo parlamentar do meu partido, no distanciamento firme de organizações políticas que atuam como marionetas no palco de um teatro de feira. É no assumir de um desafio em defesa da humanidade, que transcenda a rotina da vida parlamentar, tutelada pela ditadura da burguesia de fachada democrática, que concebo um papel insubstituível para os deputados comunistas na denúncia ativa do sistema, no incentivo à mobilização das massas contra um sistema insuscetível de reforma capaz de colocá-lo a serviço do progresso. A grande lição, a mais bela que extraio dos resultados alcançados pela CDU, é a do espírito militante dos comunistas e não comunistas que os tornaram possíveis, desmentindo as previsões da mídia. Acompanhei a campanha no distrito de Beja. Participei dela e festejei em Serpa, entre camaradas, repito, as vitórias dos alentejanos progressistas da Margem Esquerda do Guadiana. Elas, como a reconquista do Barreiro e da Marinha Grande, como a defesa de muitas Câmaras e Freguesias cuja defesa parecia muito difícil, não devem ser encaradas numa perspectiva eleitoleira, matemática. O novo discurso do PCP, transmitido com clareza por Jerónimo de Sousa e outros dirigentes nacionais e locais, contribuiu para que estas eleições reforçassem a confiança dos comunistas no seu partido. Mas o espírito militante, a disponibilidade para a luta dos filhos e netos dos trabalhadores que há 30 anos cumpriram o papel de alavanca das transformações revolucionárias do 25 de Abril, foram nesta campanha, ao lado da firmeza da velha geração, o fator decisivo das vitórias alcançadas. Compreender – e não é fácil – que essa tremenda energia e combatividade devem ser utilizadas numa luta tenaz, permanente, dura, contra o sistema capitalista em defesa da humanidade é o maior desafio que se coloca hoje aos comunistas portugueses. Porque nunca como hoje o nacional e o universal se apresentaram tão intimamente interdependentes. Afinal, no Barreiro, como em Serpa, em Peniche como em Moura, ao derrotarmos os responsáveis pela transformação do Portugal de Abril num país imperializado e parasitário, estamos também lutando pelos povos do Iraque, da Venezuela bolivariana, da Cuba socialista. Por quantos na Terra enfrentam com heroísmo uma engrenagem medonha que ameaça a continuidade da vida. Serpa, 10 de Outubro de 2005 Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e membro do Partido Comunista Português (PCP)


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA NACIONAL

ENCONTRO INTERNACIONAL ÁFRICA-BRASIL 12 a 14 de outubro Sob o tema “Igualdade racial: um desafio para a mídia”, o Encontro tem como objetivo promover um programa internacional de estudos entre jornalistas, comunicadores, pesquisadores, educadores, lideranças políticas e agentes culturais sobre os desafios que as questões relacionadas à etnia e à raça apresentam para a mídia e os processos de comunicação, na África e no Brasil. Além de disseminar experiências e análises de natureza antropológica, política e cultural, o Encontro destina-se à celebração de compromissos para a implementação de ações coletivas e de políticas públicas voltadas à igualdade racial. Durante o evento, a Agência Nacional pelos Direitos da Infância (Andi), de Brasília, apresentará um estudo sobre o comportamento da mídia impressa no que diz respeito ao tema da etnia e da raça, no Brasil. O Encontro é promovido pela Universidade de São Paulo/Núcleo de Comunicação e Educação (NCE-USP) em parceria com o Sesc-SP e Instituto Internacional de Jornalismo e Comunicação de Genebra Local: Sesc Vila Mariana, R. Pelotas, 141, São Paulo Mais informações: africabrasil@usp.br, www.usp.br/nce

Dovulgação

Atividades para o FSM 2006 Organizações, movimentos e redes já podem inscrever atividades para o Fórum Social Mundial Policêntrico 2006, que será realizado nas cidades de Bamako (Mali), Caracas (Venezuela) e Karachi (Paquistão), em janeiro. As inscrições podem ser feitas em inglês e espanhol, pela página da internet www.wsf2006.org/ spanish/spanish. É necessário se cadastrar como indivíduo, registrar a organização e depois preencher a ficha indicando as atividades que pretende realizar. Apenas organizações podem inscrever atividades. Mais informações: programa@ forumsocialmundial.org.br

SÃO PAULO

LIVROS INVENTÁRIO DAS SOMBRAS O livro do jornalista e critico literário José Castello é uma viagem ao mundo dos grandes autores brasileiros e estrangeiros. São relatos de entrevistas feitas durante sua carreira de mais de 20 anos. Perfis e opiniões de quem conheceu de perto José Saramago, João Antônio, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, Manoel de Barros, entre outros. O livro da editora Record tem 308 páginas e custa R$ 40,90. Mais informações: www.record.com.br IMPUNIDADE NA BAIXADA FLUMINENSE Após seis meses da Chacina da Baixada, que vitimou 29 moradores da Baixada Fluminense, as organizações Viva Rio, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, Justiça Global e SOS Queimados lançaram um livro que reúne três meses de pesquisas sobre o cenário de violência e descaso público com a região. As instituições envolvidas na pesquisa tentam, a partir desse trabalho, detalhar a situação da Baixada, especialmente em relação à questão da impunidade. Um dos dados de destaque da publicação é do sociólogo e pesquisador Ignácio Cano, da UERJ, que constata a redução da criminalidade na região depois da prisão dos acusados pela chacina. Ao final do estudo são apresentadas 29 propostas para enfrentar a violência. Mais informações: www.fase.org.br O CARACOL E SUA CONCHA - ENSAIOS SOBRE A NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO Nesse livro, o sociólogo Ricardo Antunes analisa a questão do trabalho no capitalismo contemporâneo. Distante das teorias que tentam desconstruir ou relativizar sua importância na sociedade, o autor mostra que se as transformações tecnológicas influem nas formas de exploração e acumulação do capital, elas não retiram

do trabalho seu papel central, seja para a sustentação do capitalismo, seja para a sua superação. Por isso, torna-se essencial a compreensão das transformações ocorridas nesse universo. A publicação aborda o presente e o futuro das relações capital-trabalho, desde a suposta tese do “fim da classe trabalhadora”, a crescente exploração rentista na era da “qualidade total” até seu contraponto, o desemprego estrutural que atinge porcentagens cada vez maiores da população, inclusive nos países mais ricos do sistema. O livro, da Boitempo Editorial tem 136 páginas e custa R$ 25. Mais informações: www.boitempo.com.br

CEARÁ ENCONTRO INTERCONTINENTAL SOBRE A NATUREZA - O2 2 a 8 de novembro Promovido pelo Instituto Hidroambiental Águas do Brasil (IHAB), o Encontro vai discutir questões do desenvolvimento sustentável em nível intercontinental, ressaltando as atuais condições, os estudos realizados e as ações a serem implementadas para o manejo geoecológico da natureza, além de mobilizar a população para a conscientização sobre a proteção da água, do meio ambiente, do turismo ecológico. Local: Av. Santos Dumont, 7700, Fortaleza

Mais informações: www.ihab.org.br, www.o2.org.br

PERNAMBUCO MOSTRAMUNDO - FESTIVAL DA IMAGEM EM MOVIMENTO 3 a 11 de novembro Mostras, debates, palestras, oficinas e cursos para ampliar a discussão sobre o mercado cinematográfico brasileiro. Serão cinco mostras: uma internacional, apenas para exibição de filmes, e quatro competitivas, nas categorias estudantil, universitária, profissional e web. Só a mostra internacional exibe 70 filmes de várias partes do mundo. Outro destaque é a mostra web, que acontece em um ambiente digital. Os vídeos dessa categoria serão colocados na Internet e submetidos a um júri popular. Inscrições aberta desde 11 de outubro. Local: Faculdades Integradas Barros de Mello, Av. Transamazônica, 405, Olinda Mais informações: www.aeso.br

mia. As inscrições são gratuitas. Local: R. Brejo Novo, 153, Cidade Alta, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 3341-6561

RIO GRANDE DO SUL TERRA, MÍDIA E MOVIMENTOS SOCIAIS 17 a 19 Dois seminários vão discutir a luta pela terra no Brasil e a criminalização dos movimentos sociais pela mídia. Promoção do DCE da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do CA de comunicação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os estudantes da PUC e da UFRGS estão constituindo o Grupo de Apoio à Reforma Agrária, com objetivo de aproximar os estudantes universitários dos movimentos sociais. Local: Rua Ramiro Barcelos, 2705, Porto Alegre Mais informações: (51) 3210-2382, comunicacaors@mst.org.br

SÃO PAULO 3ª Semana Nacional pela Democratização da Comunicação Programação da cidade de São Paulo Dia 17, 12h30 Ato de abertura com atividades culturais e intervenções Local: Em frente ao prédio da TV Gazeta, Av. Paulista, 900 Dia 18, 19h Diálogo de Movimentos Sociais sobre Monopólio e Concentração da Mídia Local: Auditório da Ação Educativa, R. General Jardim, 660, Vila Buarque Dia 19, 19h Debate – Mídias alternativas Local: Fundação Instituto Tecnológico de Osasco, Av. Angélica, 100, Jardim Nova Granada, Osasco Dia 20, 9h Debate – Regulamentação dos Meios de Comunicação Local: Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC, R. Monte Alegre, 984, Perdizes 13h Ato “De costas para Hélio Costa”, em frente à Anatel Local: Concentração no Metrô Vergueiro 19h Debate – Regulamentação e digitalização das mídias Local: Auditório da Ação Educativa, R. General Jardim, 660, Vila Buarque Dia 21, 18h Debate – Vladimir Herzog: democracia e repressão ontem e hoje Local: Auditório Freitas Nobre, Escola de Comunicação e Artes da USP, Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Cidade Universitária Oficinas em núcleos de comunicação comunitária: Comunicabem (Febem Brás e Baruei): informações com Carol – krollemos@yahoo.com.br Rádio Heliópolis: informações com Sue – sueiamamoto@yahoo.com.br Revista Ocas: informações com Guilherme – guijeronymo@gmail.com Revista Viração: informações com Carol – krollemos@yahoo.com.br

RIO DE JANEIRO SÃO PAULO ENCONTRO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA PARA MULHERES 14, das 9h às 17h Promovido pelo núcleo da Ação Comunitária do Brasil no Rio de Janeiro, o encontro terá como palestrante a Economista Sandra Quintela, que vai discutir com as participantes os aspectos culturais que incluem a mulher na econo-

PROMETEU: ESTUDO Nº 1.1 Até 30 de outubro, sexta e sábado às 20h, domingo às 19h Espetáculo teatral em que, utilizando-se do clássico Prometeu, de Ésquilo, a Cia. Antropofágica faz uma leitura crítica da punição e do declínio do império a partir dos acontecimentos de 11 de setembro. Local: Teatro Martins Pena, Lgo. do Rosário, 20, São Paulo Mais informações: (11) 293-6630 3ª CONFERÊNCIA REGIONAL SOBRE MUDANÇAS GLOBAIS

6 a 10 de novembro A Conferência, realizada pelo Instituto de Estudos Avançados da USP, tem entre seus objetivos discutir os progressos e as incertezas no estudo das causas, magnitude, conseqüências e vulnerabilidade face às mudanças globais, reunir conhecimento científico e sugestões para futuras ações, órgãos governamentais e não-governamentais dos países sul-americanos em questões associadas com as mudanças globais. Local: Av. Ibirapuera, 2.927, São Paulo Mais nformações: www.acquaviva.com.br/mudglobais


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CULTURA

De 13 a 19 de outubro de 2005

MÚSICA

Os revolucionários se guiam por amor CubaNews

Fernando Ravsberg de Havana (Cuba)

João Laet

Um símbolo da canção de protesto na América Latina, Silvio Rodríguez fala de arte e de revolução

F

ilho de um povoado conhecido por sua vocação artística, Silvio Rodríguez iniciou, na adolescência, uma carreira que o consagrou por sua arte e por sua contribuição para a reflexão política. Um dos nomes-símbolo da canção de protesto latino-americana, cantou a revolução cubana, que triunfou quando ele tinha apenas 12 anos. Ativista social desde a juventude, ele avalia: “Os movimentos revolucionários estão guiados pelo amor aos semelhantes, por querer que os menos favorecidos tenham oportunidades ao menos uma vez na vida”.

Quando e como você deixou as artes plásticas e se tornou músico? Rodríguez – No Exército, tratando de driblar a solidão noturna e os longos dias e noites de acampamento. Mas eu já tinha uma vocação musical e conheci, no semanário Mella, o companheiro Lázaro Fundora, que tocava guitarra. Quando criança, estudei piano em duas ocasiões: a primeira porque meus pais me levaram e a segunda, com 15 ou 16 anos, por minha própria vontade. Eu gostava tanto que arrumei uma professora e logo comecei a dar aulas de piano. Não fui muito longe porque eu não tinha um piano, que é caro, nós não tinhamos condições de ter um. Me encontrei com a guitarra pela segunda vez no Exército. Alguns companheiros tinham guitarra e eu pedia emprestado. Ficava envergonhado porque às vezes queria ficar com a guitarra mais tempo do que eles. Era um problema, até que uma das vezes em que saí de licença comprei uma guitarra. Custou sessenta pesos. E então comecei a me dedicar. Primeiro passei pela fase em que os dedos se acabam. Depois ficam verdes e pouco a pouco você vai perdendo os calos, vai sarando e não sangra mais. Na realidade, o progresso depende muito da persistência e eu tinha muito tempo para treinar. Foi na época do Exército que compus as primeiras canções. Minha primeira platéia foram meus companheiros de armas, três ou quatro recrutas que se reuniam para ouvir minhas composições. Fala-se muito da sua adolescência, com a guitarra pelas ruas de Havana. Cantava um pouco, era preso, saía, voltava a cantar... como foram aqueles tempos? Rodríguez – Eu cantava nas casas dos meus amigos, não cantava em qualquer lugar e vou explicar por quê. Desde que comecei a trabalhar com música, minhas canções não eram um passatempo. Eu via que ser escritor era uma coisa importante, respeitada, que gratifica; ser cineasta era extraordinário; ser bailarina era um fenômeno, ser poeta era o máximo. Mas os cantores não tinham esse prestígio, eram os últimos da fila, e me identifiquei muito com eles por isso. Eu sentia que na realidade a música tinha mais valor do que o que se dava a ela. Um dos

Silvio Rodríguez foi um dos principais expoentes da canção de protesto latino-americana. Suas canções, muitas com conteúdo político, se identificaram com a esquerda da América Latina e da Europa. Entre suas obras mais conhecidas estão Por quem merece amor, Praia Girón, Canção do eleito e Unicórnio. Estudantes de países latino-americanos celebram aniversário da revolução cubana, fonte de inspiração para Rodríguez

meus propósitos foi fazer música da melhor qualidade, com textos e idéias trabalhadas, para que não fossem canções para “fundo musical”. Por ter essa consciência eu não gostava de cantar em qualquer lugar. Quais os efeitos da revolução cubana em sua arte e em sua vida? Rodríguez – Quando a revolução triunfou, fazia um mês que eu tinha completado 12 anos. Minha adolescência desabrochou na Cuba revolucionária. Até então eu tinha sido um garoto protegido em sua casa. A partir da revolução, houve uma tomada de consciência de que éramos um país com muitos analfabetos e de que era necessário alfabetizá-los. Lembro que em 1961 me incorporei à campanha de alfabetização. Eu tinha 14 anos, foi a primeira vez que saí de casa, que dormi fora da minha casa. A partir daí, dormi fora muito tempo, em condições bastante difíceis. Então comecei a crescer. Nessa época, eu me aproximei das atividades contra os bandos de Escambray. Mataram Escambray – Em um rapaz do 1960, apoiados pelo meu grupo, governo estadunique hoje é dense, bandos de contra-revolucionáum mártir da rios simpatizantes revolução: Mado ditador deposto, nuel Ascunce Fulgêncio Batista, Domenech. Ele se organizaram nas montanhas de Esfoi torturado, cambray. assassinado... um garoto de 15 anos. Foram coisas muito fortes que vivi de perto. Houve algum desencontro seu com o aparato cultural da revolução? Rodríguez – Sim. Tudo começou, aparentemente, da parte que me toca, quando a televisão acabou com um programa que eu tinha, chamado Entretanto. Contados hoje, os problemas que tive na televisão parecem bobagens, completamente absurdos. Eu tinha acabado de deixar o exército. Os únicos sapatos que eu tinha eram umas botas russas que davam no quartel. Foi uma confusão eu aparecer na televisão com aquelas botas russas. Não havia onde comprar um par de sapatos. Outro problema era que eu não cortava o cabelo. Era natural, eu estava tentando deixar crescer o cabelo depois de ter sido obrigado a usar cabelos curtos por três anos! Na televisão, naquela época, havia uma espécie de obsessão, um homem não podia ter cabelo maior do que 2 centímetros. Os cabelos eram um transtorno, te mandavam cortar imediatamente, havia um pânico com isso. Era inacreditável, estou falando de 1967. Não fazia dez anos que um exército libertador

cabeludo havia baixado da serra para nos dar a liberdade.

Alabanzas. Quem sabe algum dia, quando encontrar as palavras, possa fazer uma canção para os balseiros. Para mim não é um tema tabu. Realmente ainda não encontrei o tom. O que quero dizer sobre isso sai com muita facilidade, mas não para cantar. E como não desejo fazer um discurso político, tenho que esperar as palavras adequadas. Me parece um tema muito digno de uma canção. Acho que também já mencionei, em alguma canção, os cubanos que vivem no exterior. Não rejeito os cubanos que vivem fora de Cuba. Ao contrário, tenho muitos amigos fora, a quem vejo constantemente.

Qual a sua ligação com a revolução? Você acredita que, se desaparecer a revolução, desaparecerá também Silvio Rodríguez? Rodríguez – Espero que não desapareça a revolução cubana. E quando digo isso quero dizer que espero que não desapareçam o espírito e os feitos, as coisas que o povo conquistou por esse processo. Estou bastante consciente de que algo diferente se avizinha, mas espero que não seja para regredirmos e sim para avançarmos, que seja para dar um salto qualitativo. Isso quer dizer que muitos feitos da revolução, aquilo que a revolução nos mostrou, nos ensinou, se mantenham e até cresçam. Não acho ruim que minhas canções estejam ligadas à revolução. Há coisas piores para estar ligado, nesta vida, que a uma revolução que, ainda que tenha tido erros, arriscou tudo pelos mais necessitados. Por isso, para mim, é uma honra estar ligado à revolução. Como é o seu processo de criação? É fácil encontrar as palavras para seus versos? Rodríguez – Não, não acho fácil. Quando decido fazer uma música, salvo raras exceções, trabalho muito. Trabalho muito as palavras, trabalho muito a melodia, trabalho muito tudo. Às vezes, até depois de terminadas, depois de cantadas, continuo mudando as letras das músicas.

Qual foi a situação que mais o tocou por sua beleza e qual mais o deixou angustiado? Rodríguez – Pela beleza, me encantei na primeira vez que fui à Nicarágua, nos anos 1980, quando começava a campanha de alfabetização. Estive nas ruas, houve um concerto enorme e me lembrei de quando era adolescente no meu país. Isso me deixou muito emocionado, foi um reencontro com uma zona perdida de minha infância. Tristeza, não sei. Cada vez que acontece um êxodo de cubanos, me dá uma tristeza extraordinária. Por que a morte está tão presente em suas canções? Rodríguez – Não é que esteja

presente em minhas canções, está presente em tudo. Qual é o significado da canção Oxalá? Rodríguez – A palavra oxalá está baseada em uma expressão árabe que significa “queira Deus”. Foi inspirada em uma ex-noiva. Enquanto estava navegando pelo Oceano Atlântico, me dei conta de que a lembrança dessa noiva me rondava, me fazia pensar no bem que teria sido se nós tivéssemos nos separado. Essa lembrança, naqueles anos, era uma espécie de obsessão que dava voltas e voltas. Essa é a história da música. Você acredita que um mundo comunista ainda é possível? Rodríguez – Me parece muito difícil que o mundo seja igual. Isso é um pouco utópico. Alguns países conseguiram, de certa forma, um ganho social; outros deverão ir por outro caminho, depende do desenvolvimento, das características de cada país. Não creio, por exemplo, que as coisas possam ser iguais na Suécia e em El Salvador. É impossível porque são duas realidades muito diferentes. O que eu acredito é que cada região do mundo, a seu modo, vai ter que ser justa com todo o mundo porque enquanto essa justiça não aparecer não me parece possível haver paz. (Entrevista concedida à BBC e publicada no portal Rebelion, www.rebelion.org)

Prensa Latina

Você tem arte no sangue, é verdade? Silvio Rodríguez – Nasci em San Antonio de los Baños, a 40 quilômetros de Havana. É um povoado que tem personalidade, com gente de nível cultural bastante alto. Um povoado com uma quantidade enorme de publicações ao longo de sua história, muitas delas humorísticas. É uma terra de humoristas, pintores, cantores repentistas. Ou seja, de poetas. E eu fiquei com essa marca do povo: o gosto pelas artes plásticas.

Quem é

Como se diferencia a revolução da anarquia, como saber se um movimento revolucionário é movido por amor ou por ódio? Rodríguez – As revoluções, às vezes, sobretudo nas primeiras etapas, podem parecer um pouco anárquicas. São os momentos do frigir dos ovos, em que a ordem estabelecida está se convertendo em outra coisa. Aí tem um instante em que isso pode parecer caótico, anárquico, inclusive pode ser utilizado por pessoas equivocadas que têm pensamento anárquico, que defendem o caos. Mas isso não quer dizer que uma mudança revolucionária leva necessária e inexoravelmente à anarquia. Até onde sei, os movimentos revolucionários estão guiados pelo amor aos semelhantes, por querer que os menos favorecidos tenham oportunidades ao menos uma vez na vida, e esse é um sentimento de amor. Algum dia você fará uma canção para os balseiros e para os que vivem fora de Cuba? Rodríguez – Os balseiros eu mencionei no meu último disco, em uma canção que se chama

“Enquanto a justiça não aparecer, não me parece possível haver paz”, diz Rodríguez


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