Ano 3 • Número 140
R$ 2,00 São Paulo • De 3 a 9 de novembro de 2005
Venezuela livre do analfabetismo Política radical de educação pública do presidente Hugo Chávez reduz para menos de 1% o número de analfabetos
U
m ano e quatro meses de trabalho. Esse foi o tempo que um programa criado pelo presidente Hugo
Chávez, a Missão Robinson, levou para alfabetizar 1,5 milhão de venezuelanos. Com esse feito, o país foi declarado
território livre do analfabetismo pela Unesco. Agora, menos de 1% da população de 23 milhões de pessoas não sabe ler. No iní-
cio do governo Chávez, a taxa era de 8,4%. Já no Brasil, a taxa de analfabetismo continua em 13,3%. Leia no Brasil de Fato
o que a mídia empresarial do país preferiu esconder de seus leitores. Págs. 10 e 11 Marcelo Garcia
Flávio Cannalonga
Enquanto o presidente estadunidense Bush provoca miséria, conflitos e mortes no mundo inteiro, o presidente venezuelano Hugo Chávez comemora a alfabetização de 1,5 milhão de pessoas em 18 meses
A visita de um terrorista de Estado Ele fraudou as eleições de seu país para tornar-se presidente. Invadiu o Afeganistão e o Iraque às custas de 70 mil vidas e 180 mil feridos. Deixou morrer mil de seus conterrâneos ao negli-
anos, vem mostrando ao mundo seu desprezo pela vida. Ele chega ao Brasil dia 6, enfraquecido pelos conflitos que espalhou pelo planeta, e espera pedir auxílio ao governo Lula na “estabilização”
da América Latina. Manifestações ocorrerão pelo país para impedir que o presidente se submeta mais uma vez a este papel, como já faz no Haiti. Págs. 2, 12 e 14
Jorge Custódio
Cúpula discute novas propostas de integração
genciar estudos prevendo que Nova Orleans ficaria submersa caso um furacão a atingisse. Esta é uma pequena parte do currículo de George W. Bush, presidente estadunidense, que, nos últimos
Organizações e movimentos sociais americanos estão reunidos desde o dia 1º na cidade argentina de Mar del Plata para a 3ª Cúpula dos Povos da América. Longe de se limitar aos protestos contra a realização da 4 ª Cúpula das Américas, que reúne a partir do dia 4, na mesma cidade, presidentes de 34 países, o encontro contempla a discussão de propostas alternativas de integração do continente. Pág. 9
AMIANTO – O Brasil continua na contramão da história na proibição do uso do minério cancerígeno. O lobby da indústria é forte. Pág. 6 TRABALHO – Em setembro, o desemprego aumentou assim como o número de brasileiros que vivem de bico. Pág. 7
Como o governo não faz a reforma agrária, latifundiários intensificam a violência contra os trabalhadores rurais sem-terra
A Navalha na Carne, em nova edição Homenagem ao combativo dramaturgo Plínio Marcos, que teria completado 70 anos em setembro, a Azougue Editorial relança, em edição de luxo, uma das obras mais polêmicas do autor, A Navalha na Carne. Várias vezes censurado pela ditadura militar, o escritor deu voz aos excluídos e se tornou um símbolo da luta pela liberdade de expressão. Pág. 16
Gilmar
E mais:
De 25 a 28 de outubro, em Brasília, cerca de 8 mil pessoas de mais de 40 organizações sociais mostraram ao país o que é democracia – o poder do povo. Lá, realizou-se a Assembléia Popular, cujos debates foram centralizados no país real onde há desemprego, insuficiência de políticas públicas e concentração de terras. Lá, os movimentos construíram sua própria agenda. Um documento final espelhou sua pluralidade. Págs. 4 e 5
Estupros são a maior causa de Aids na África
Estudantes nas ruas em defesa do passe livre Pág. 8
Movimentos sociais: lição de democracia
O estupro, inclusive de bebês, tem sido o principal responsável pela propagação da Aids na África subsaariana. A prática é estimulada pela crença de que relações com pessoas virgens curam o infectado. Um projeto de lei que obrigaria a África do Sul a dar remédios a vítimas de estupro foi alterado. Pág. 13
PT reage às denúncias feitas por Veja A nova investida da revista do grupo Abril é contra o PT e o governo cubano. Mesmo sem provas, Veja acusa o partido de ter recebido dinheiro de Cuba para a campanha eleitoral de 2002. “Isso não é jornalismo. Eles estão a serviço do capital internacional”, diz o deputado Dr. Rosinha, que acusa a Abril de ter estadunidenses no seu conselho administrativo. Pág. 6
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De 3 a 9 de novembro de 2005
CONSELHO POLÍTICO
NOSSA OPINIÃO
Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
O império passa em revista as tropas
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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E
sta semana, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, visitará a América Latina. Mais do que uma visita protocolar, com eventos que não servem para nada, como advertiu o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a presença de Bush pode simbolizar a vontade do capital estadunidense – por meio de suas transnacionais – de recuperar e manter o controle do nosso continente. As recentes revoltas populares no Equador e na Bolívia deixaram o império preocupado. Portanto, é necessário passar em revista os capatazes e seus puxa-sacos. Recentemente, num seminário internacional sobre América Latina, realizado na Universidade Federal Fluminense, em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o argentino Atilio Borón, diretor do Centro Latino-Americano de Sociologia (Clacso), disse que, nessa etapa histórica de domínio do capital financeiro internacional, foram construídos novos pólos de poder hegemônico, que ultrapassam o poder dos presidentes. O primeiro pólo de poder mundial, segundo Borón, é o grupo denominado G-7, que reúne os interesses dos capitalistas dos sete países mais ricos do planeta. Como subpólo desse grupo, estão as reuniões de Davos, na Suíça. Logo abaixo, está o poder do governo dos EUA, por sua capacidade militar e tecnológica, e sobretudo pelo controle
que detém do dólar. Abaixo deles, e subordinado às suas determinações, estão os organismos internacionais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e outras agências fiscalizadoras que o capital internacional criou. Esses organismos atuam permanentemente para ver se os governos cumprem os objetivos estratégicos do capital internacional. Logo abaixo deles, estariam os bancos centrais e os ministérios da Fazenda dos países periféricos – em geral, ocupados por economistas formados nos EUA e fiéis a seus professores, ou diretamente por banqueiros, como é o caso brasileiro. A eles cabe aplicar e justificar tecnicamente as políticas econômicas que interessam ao capital financeiro. Como quinto andar do poder, subalterno, sem maior capacidade de decisão na área econômica, estão os presidentes dos países. A eles cabe apenas explicar ao povo que aquelas políticas fazem parte da governabilidade, e que isso pode ser bom para o país. Às vezes o povo não acredita na manipulação dos presidentes e chega a derrubá-los. Mas como a política econômica está blindada pelos andares de cima, mudam-se os presidentes e nada muda. Que o digam as massas do Equador e da Bolívia, que num espaço de seis, sete anos, trocaram igual número de presidentes. É nesse contexto que se inserem
as três principais notícias da semana. A primeira, é a visita de Bush para passar em revista suas tropas subalternas, as elites locais. A segunda notícia vem do Ministério da Fazenda brasileiro: o eufórico anúncio de que foi alcançada, em setembro, a meta do superavit estabelecida pelos “andares de cima” para dezembro. Mais: o superavit roubou recursos dos gastos sociais, dinheiro público que todos nós pagamos, R$ 87 bilhões, em nove meses. Mas ainda está muito aquém da quota que o capital financeiro internacional nos impôs: este ano, cabe ao governo Lula recolher aos cofres dos bancos R$ 127 bilhões, apenas em juros. Já que a dívida interna seguirá crescendo de R$ 771 bilhões, no início do ano, para R$ 992 bilhões, até o final do ano, há alguma dúvida de que estamos vivendo sob o comando do império do norte e do capital financeiro internacional? Pior do que isso é o presidente Lula ir à televisão dizer que essa política econômica é dele, e que nada mudará! A terceira notícia é favorável ao povo. Reuniram-se, em Brasília, mais de oito mil militantes de todo o Brasil e de todos os movimentos sociais, para discutir um projeto alternativo, popular, para o Brasil. Esse é o único caminho que nos resta. Conscientizar, organizar e mobilizar o povo para lutar e construir um verdadeiro projeto popular para nosso país.
FALA ZÉ
OHI
CRÔNICA CARTAS AOS LEITORES
Ajude a manter o Brasil de Fato Caros amigos e amigas Durante todo o ano de 2002, intelectuais, artistas, jornalistas e representantes de movimentos sociais somaram forças em nome de um projeto político e editorial. A idéia era construir um novo jornal que ajudasse a veicular informações não divulgadas ou noticiadas de forma deturpada pela mídia tradicional. A publicação também teria a missão de contribuir para a formação da militância social e da opinião pública em geral. Assim nasceu o Brasil de Fato. Seu ato de lançamento se transformou numa grande festa com a presença de mais de 7 mil militantes sociais, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em 2003. Para tocar o jornal, foi montada uma equipe de jornalistas comprometidos com o projeto. E todos fomos à luta. Nos últimos dois anos e meio, o jornal sobreviveu graças a uma grande disposição de transpor os obstáculos que qualquer veículo da imprensa independente enfrenta, incluindo boicotes de todo tipo. Apesar de tudo, estamos
resistindo! Mas, neste momento, estamos precisando de apoio extra para driblar as dificuldades resultantes da concentração do poder econômico e do aumento dos custos de produção do jornal. O Brasil de Fato depende da valiosa contribuição de seus assinantes. Só assim vamos manter um veículo de imprensa independente e de esquerda. Mesmo elogiado por todos, tanto por sua linguagem quanto por sua linha editorial, o Brasil de Fato precisa aumentar o número de assinaturas para seguir adiante. Por isso, apelamos para sua consciência e seu compromisso pessoal. Se você ainda não é assinante, faça a sua assinatura. Se é assinante, conquiste mais uma assinatura com um (a) amigo (a). Se você é vinculado (a) a algum sindicato ou movimento, coloque nosso pedido na pauta da reunião da diretoria, para que a instituição faça assinaturas coletivas. Contamos com seu apoio. Conselho Editorial do Brasil de Fato
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A Carta da Terra: uma promessa Leonardo Boff Nos dias 6 a 9 de novembro ocorrerá em Amsterdã (Holanda) um balanço dos 5 anos de aprovação da Carta da Terra. Esse documento nasceu como resposta às ameaças que pesam sobre o planeta como um todo e como forma de se pensar articuladamente os muitos problemas ecológico-sociais tendo como referência central a Terra. Em 1992 por ocasião da Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, fora proposto tal documento que por razões que não cabe aqui referir não foi aceito. Em seu lugar adotou-se a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Desta forma a Agenda 21, o documento mais importante da Eco-92, ficou privado de uma fundamentação e de uma visão integradora. Insatisfeitos, os organizadores, especialmente Maurice Strong da Organização das Nações Unidas (ONU) e Mikhail Gorbachev, diretor da Cruz Verde Internacional, suscitaram a idéia de se criar um movimento mundial para formular uma Carta da Terra que nascesse de baixo para cima. Deveria recolher o que a humanidade deseja e quer para sua Casa Comum, a Terra. Depois de reuniões prévias e muitas discussões, criou-se em 1997
a Comissão da Carta da Terra composta por 23 personalidades dos vários continentes (eu entrei pelo Brasil), para acompanhar uma consulta mundial e redigir o texto da Carta da Terra. Efetivamente, por 2 anos, ocorreram reuniões que envolveram 46 países e mais de cem mil pessoas, desde favelas, comunidades indígenas, universidades e centros de pesquisa até que em inícios de março de 2000 no espaço da Unesco em Paris o texto final da Carta da Terra foi aprovado. É um dos textos mais completos que se tem escrito ultimamente, digno de inaugurar o novo milênio. Recolhe o que de melhor o discurso ecológico produziu, os resultados mais seguros das ciência da vida e do universo, com forte densidade ética e espiritual. Tudo é estruturado em quatro princípios fundamentais, detalhados em 16 proposições de apoio. Estes são os quatro princípios: (1) respeitar e cuidar da comunidade de vida; (2) integridade ecológica; (3) justiça social e econômica; (4) democracia, não-violência e paz. O sonho coletivo proposto não é o “desenvolvimento sustentável”, fruto da visão intra-sistêmica da economia política dominante. Mas “um modo de vida sustentável” fruto do
cuidado para com todo o ser especialmente para com todas as formas de vida e da responsabilidade coletiva face ao destino comum da Terra e da Humanidade. Este sonho bemaventurado supõe entender “a humanidade como parte de um vasto universo em evolução” e a “Terra como nosso lar”; implica também “viver o espírito de parentesco com toda a vida”, “com reverência o mistério da existência, com gratidão, o dom da vida e com humildade, nosso lugar na natureza”; propõe uma ética do cuidado que utiliza racionalmente os bens escassos para não prejudicar o capital natural nem as gerações futuras; elas também têm direito a um Planeta sustentável e com boa qualidade de vida. As quatro grandes tendências da ecologia – ambiental, a social, a mental e a integral – estão aí bem articuladas com grande força e beleza. Se for aprovada pela ONU, a Carta da Terra será agregada à Carta dos Direitos Humanos. Assim teremos uma visão holística da Terra e da Humanidade, formando um todo orgânico, sujeito de dignidade e direitos. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É também autor de mais de 60 livros
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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA
Violência contra sem-terra dispara Em uma semana, quatro sem-terra são assassinados; quatro são condenados à prisão e uma jovem sem-terra é atropelada
A
recorrente indiferença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva frente à reforma agrária tem colaborado para aumentar a violência no campo e facilitar a criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em apenas uma semana, aconteceram três mortes de lideranças de movimentos que lutam pela terra em Pernambuco; um sem-terra morreu após conflito em Minas Gerais; quatro militantes do MST foram condenados a dez anos de prisão em São Paulo; e no Rio Grande do Sul uma menina de 12 anos morreu atropelada em frente ao seu acampamento. Em Brasília, no intuito de associar o MST à corrupção, o senador Álvaro Dias (PSDB-PR) voltou a acusar o movimento de usar dinheiro público para financiar ocupações de terra, para o que encontrou amplo apoio na grande mídia.
Reforma Agrária (Incra), foi atacado por um grupo da Fetraf que tentou despejar as famílias da área.
Chico Porto/ JC Imagem/AE
Marcelo Netto Rodrigues da Redação
SÃO PAULO
Amigos e parentes se despendem de Antônio José dos Santos, em Tacaimbó (PE), mais uma vítima do latifúndio
pode ser outro: um terreno fértil para conflitos fundiários e fatalidades. Desde o dia 27 de outubro, em Pernambuco, em menos de quatro dias, três trabalhadores rurais (ligados a três movimentos diferentes) foram assassinados. Anilton Martins da Silva, dirigente do Movimento pela Libertação dos Sem Terra (MLST), levou 18 tiros no rosto, em Itaíba. Antônio José dos Santos, acampado do MST em Tacaimbó, foi torturado e levou 14 facadas depois de sair de
PERNAMBUCO Esses fatos precisam ser analisados à luz das estatísticas oficiais da reforma agrária. Faltando aproximadamente um ano para o final do governo, apenas 117 mil famílias foram assentadas, da promessa de assentamento de 400 mil. E, das 140 mil que continuam acampadas, somente 15 mil famílias ligadas ao MST devem ser assentadas este ano. O resultado de tamanho descaso não
uma festa que comemorava a imissão de posse da terra de uma fazenda ocupada desde 2000. E Luís Manoel de Menezes, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Taquaritinga do Norte, ligado à Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape), morto com dois tiros. Além disso, no dia 28 de outubro, cerca de dez pistoleiros armaram uma emboscada contra as famílias de um acampamento do MST, em Altinho.
Em Buritis, Minas Gerais, Miguel José Caetano, trabalhador rural ligado ao MST, morreu no dia 1º de novembro depois de ferido durante conflito com famílias ligadas à Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf). Um lote do assentamento Mãe das Conquistas, de famílias vinculadas ao MST, que estava sendo ocupado provisoriamente por algumas famílias do movimento, seguindo orientações do Instituto Nacional de Colonização e
Também no dia 28 de outubro, na região do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, o juiz de Teodoro Sampaio condenou os dirigentes do MST Clédson Mendes, Sérgio Pantaleão, José Rainha Jr. e Manuel Messias Duda a dez anos de reclusão, acusados de queimar pasto e furto, durante uma ocupação, em 2000. Apenas Clédson foi preso, até o fechamento desta edição, dia 1º de novembro. Os advogados do MST vão entrar com habeas corpus porque a regra, nesses casos, é aguardar em liberdade o julgamento da apelação. Em Nova Santa Rita, região metropolitana de Porto Alegre, Marisa Cardoso Lourenço, de 12 anos, morreu atropelada na BR-386 por um carro em alta velocidade, no final da tarde do dia 30 de outubro, em frente a um acampamento do MST. Marisa estava na luta pela terra há cerca de cinco anos, junto com mais de 2,5 mil trabalhadores sem-terra acampados em beiras de estradas no Rio Grande do Sul – Estado onde somente pouco mais de cem famílias foram assentadas desde 2003. O MST afirma que fez diversos pedidos à Polícia Rodoviária Federal para que sinalizasse a rodovia de forma adequada na região do acampamento, mas não foi atendido. (Colaborou Daniel Cassol, de Porto Alegre)
CRISE DO LEITE
Suzane Durães e Daniel Cassol, de Brasília (DF) e de Porto Alegre (RS)
Suzane Durães
Pequenos agricultores protestam contra políticas do governo gesto desses marginais”, afirmou em seu programa o jornalista Rogério Mendelsky, porta-voz da direita gaúcha, que fez carreira na grande imprensa durante a ditadura militar. Na Rádio Pampa, Adroaldo Streck, ex-deputado federal pelo PSDB, reclamou da demora da ação policial, mas elogiou o sucesso da operação, “ao contrário do que aconteceu em Carajás, quando alguns PMs, para se defender, tiveram que matar alguns manifestantes”.
Contra as políticas adotadas pelo governo, cerca de 2 mil agricultores organizados na Via Campesina participaram, na semana passada, de mobilizações em cinco Estados (Santa Catarina, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Goiás e Paraná) e no Distrito Federal. Em Brasília, mais de 300 produtores protestaram contra a Instrução Normativa 51/2002 e o baixo preço recebido pelo litro do leite. De acordo com dados do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), os produtores de Goiás são os que recebem menos pelo produto, chegando a apenas R$ 0,19 o litro. Em Minas Gerais, em alguns locais o valor recebido é de R$ 0,25. Em algumas regiões de Santa Catarina, os produtores receberam R$ 0,28 por litro. No Rio Grande do Sul, a média é de R$ 0,30, sendo que em março os produtores receberam até R$ 0,62 pelo litro. Os agricultores lavaram com leite as calçadas do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “É mais barato lavar o chão com leite do que com água”, afirmou Altacir Bunde, da direção nacional do MPA.
QUESTÃO CENTRAL
PELO BRASIL Uma comissão foi recebida pelo secretário de Defesa Agropecuária, Gabriel Alves, que assumiu o compromisso de criar um grupo de trabalho que contará com representantes do Mapa e da Via Campesina. A intenção é levantar dados sobre a cadeia produtiva do leite e as causas da crise. Com isso, a Instrução Normativa 51/2002 continuará sendo instrutiva e não punitiva, até que sejam concluídos os estudos do grupo. Além do Mapa, a comissão foi recebida pelos ministérios do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Desenvolvimento Social (MDS), das Relações Exteriores (MRE), da
Pequenos agricultores protestam contra o baixo preço do litro de leite
Casa Civil, e pelos líderes do Congresso. O governo se comprometeu a liberar cerca de R$ 130 milhões para a compra direta de leite, pelo Programa de Aquisição de Alimentos. Para Altacir Bunde, houve avanço nas negociações com o governo: “As mobilizações foram proveitosas. Alcançamos alguns objetivos, mas vamos continuar lutando para aprovar todas as reivindicações”. No Rio Grande do Sul, cerca de 2 mil trabalhadores ligados à
Via Campesina ocuparam, dia 26 de outubro, uma empresa de distribuição das principais indústrias de leite do Estado, localizada em Esteio, na região metropolitana de Porto Alegre. A mobilização dos agricultores em uma empresa privada irritou a elite gaúcha. “Vejam o nível do protesto, protesto entre aspas, não se respeita mais nada neste país. Isso é coisa de marginal, bandido e criminoso, não há argumento que sustente o
Os agricultores escolheram a empresa de logística Standard porque ali passam os produtos das principais indústrias de leite do Estado, que exploram os pequenos produtores. “A questão central é o preço do leite, que hoje chega a R$ 0,28 o litro ao produtor, enquanto o produto é vendido por mais de R$ 1 no mercado”, afirmou Mario Lill, da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como garantia de pagamento aos prejuízos na empresa, a juíza do município Uiara Maria Castilho dos Reis ordenou a apreensão dos cerca de 30 ônibus que levaram os trabalhadores à mobilização. Os ônibus só foram liberados no dia seguinte, depois que os agricultores trancaram a BR-116, principal rodovia de acesso a Porto Alegre, durante quatro horas. Instado a agir rapidamente, o delegado Ireno Schulz, titular da Delegacia de Polícia de Esteio, deu um show de agilidade e eficiência, anunciando que irá indiciar mais de mil integrantes da Via Campesina por roubo, formação de quadrilha, cárcere privado, invasão de local de trabalho e dano ao patrimônio público. No Paraná e em Santa Catarina, centenas de agricultores discutiram em assembléias a crise do setor. Em Governador Valadares (MG), os produtores ocuparam a sede da Receita Federal.
MPA denuncia Afubra por retirar dinheiro Daniel Cassol de Encruzilhada do Sul (RS) O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) protocolou, dia 24 de outubro, no Ministério Público Federal de Santa Cruz do Sul (RS), uma representação contra irregularidades praticadas pela Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra). Munido de documentos, um plantador de fumo do município de General Câmara está denunciando que a Afubra forjou procurações e assinou contratos bancários em seu nome, sem seu conhecimento. No mesmo dia, o MPA também fez a denúncia em audiência da comissão de representação externa da Assembléia Legislativa que acompanha a produção de fumo no Rio Grande do Sul, em Encruzilhada do Sul. O agricultor Júlio César Selbach relata que, sem ser informado pelo instrutor da Afubra, assinou uma procuração para a associação. Depois, descobriu que a Dimon do Brasil tinha retirado dinheiro em seu nome, utilizando um contrato assinado pela Afubra em nome dos agricultores. “O negócio que eu fiz foi com a fumageira. Quando fui buscar custeio para a lavoura de melancia, me disseram que eu tinha uma dívida de R$ 116 mil. Descobri que eles tinham tirado dinheiro em quatro bancos diferentes”, relatou Selbach. De acordo com o MPA, as empresas de fumo tomam dinheiro nos bancos em nome dos agricultores e eles, sem ser consultados, dão uma procuração para a Afubra”, explica Gilberto Tuttenhagen, da coordenação estadual do MPA. “Hoje o controle da indústria sobre a cadeia do fumo chega ao nível de escravidão. O agricultor não escolhe semente, insumo. Produz o que a indústria quer, ao preço que a indústria quer pagar. Ele não tem nenhuma influência na cadeia”, resume. O secretário da Afubra, Romeu Schneider, disse que não iria opinar antes de analisar os documentos.
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Espelho DEMOCRACIA DIRETA
Quando o povo fez política
da Redação
Alucinação direitista Há muito tempo a revista Veja deixou de expressar o pensamento conservador e consumista das classes médias brasileiras: ela tem representado cada vez mais – nos últimos anos – a direita truculenta que vai do governo George W. Bush aos coronéis e oligarquias que atuam no PFL de Antônio Carlos Magalhães e Bornhausen. A radicalização da Veja assusta até a direita civilizada que atua dentro do PSDB. Encomenda ianque O material da Veja sobre o “ouro de Cuba” foi publicado na mesma semana do encontro de presidentes das Américas, em Mar del Plata, na Argentina. Pode ser coincidência, mas está cheirando a algo articulado para conter as posições do Brasil, Cuba e Venezuela durante o encontro. Ainda mais que as manifestações anti-Bush mobilizam cada vez mais gente na América Latina. Orquestração midiática Outrora concorrente da Editora Abril em vários negócios, o jornal O Estado de S. Paulo não pensou duas vezes para embarcar na história da Veja e deu a manchete da edição de domingo em cima da revista semanal. O jornal não teve o cuidado de seguir os critérios mínimos do jornalismo, que mandam ouvir os vários lados de uma história e fazer a checagem de todas as informações. Se errou, vai reconhecer e pedir desculpas aos leitores? Campanha renovada Voltou a circular pela internet o material da campanha “Veja que mentira”, lançada em 2003 por várias entidades de direitos humanos e veículos alternativos, que procurava conscientizar a população para ter uma postura crítica diante da revista Veja. Estranhamente o PT e a CUT desprezaram solenemente aquela campanha. Também aumentou a circulação pela internet de inúmeros artigos contra a Editora Abril e a grande imprensa empresarial. Já é alguma reação da sociedade. Nazismo tucano Além de contar com a simpatia da direção da Folha de S. Paulo, o prefeito tucano de São Paulo, José Serra, tem conseguido impedir a publicação de críticas à sua gestão naquele jornal devido ao uso de métodos nada democráticos: o próprio Serra costuma ligar para os Frias e pedir a demissão de repórteres que produzem uma ou outra matéria que não sejam do agrado do alcaide. Mais um filhote do autoritarismo solto na política. Informação sonegada Os principais jornais nacionais continuam escondendo as notícias que não lhe interessam politicamente por um ou outro motivo. Na última semana ignoraram completamente o que ocorreu na Assembléia Popular realizada em Brasília, com a participação de oito mil militantes sociais de todo o país. Não deram, também, nenhuma linha sobre a comemoração que a Venezuela de Hugo Chávez fez para marcar a erradicação do analfabetismo. Por que será? Liberdade de expressão Na semana passada, o Tribunal Regional Federal de São Paulo revogou, por unanimidade, sentença anterior que havia suspendido a exigência de diploma universitário para a profissão de jornalista. Ou seja, só pode ser jornalista quem tem diploma de curso superior. Falta agora os jornalistas lutarem – junto com a sociedade – para democratizar o ensino superior e os meios de comunicação, em especial as concessões de rádio e TV, para que o povo brasileiro possa se expressar livremente.
Assembléia Popular reúne 8 mil pessoas em Brasília para discutir um projeto social para o país Jorge Pereira Filho de Brasília (DF)
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a cidade onde política é sinônimo do conchavo e de articulação de cúpula, cerca de 8 mil pessoas de mais de 40 organizações da sociedade relembraram aos políticos o sentido original de democracia, o poder do povo. Entre os dias 25 e 28 de outubro, Brasília recebeu a Assembléia Popular: Mutirão por um Novo Brasil. Os debates travados nesse encontro pouco levaram da crise tão presente no noticiário dos jornais e televisões empresariais. Em vez disso, as discussões refletiram sobre outra crise, mais profunda e verdadeira, a do povo brasileiro. Desemprego, falta de acesso à educação e à saúde, concentração de terras, ausência de políticas de moradia, cooperativismo, tolerância e combate à discriminação, transporte público... Enfim, temas que se referem diretamente à vida dos participantes. “Depois da frustração com o governo Lula, a Assembléia Popular é um momento histórico dos movimentos sociais na construção de uma agenda própria”, resumiu Paulo Maldos, assessor político do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Os três dias de debates produziram um calendário de lutas, um documento com as principais reivindicações (veja quadro na página 5) e uma Carta final (leia texto abaixo).“As propostas que saíram daqui são muito bem elaboradas, justamente porque são vivenciadas pelos movimentos há mais de 30 anos”, disse Maldos, remetendo a uma trajetória de luta das organizações sociais iniciada ainda na luta pela redemocratização do país.
Flávio Cannalonga
Pura provocação A denúncia da última edição da revista Veja, de que a campanha presidencial de Lula teria recebido dinheiro de Cuba, revela que a imprensa “aliada” do Palácio do Planalto quer mesmo melar a reeleição do PT em 2006. Se a denúncia chegar a alguma comprovação, a situação do presidente estará bem complicada; se for mais uma reportagem mentirosa da revista, qual será a reação do governo?
Assembléia Popular reuniu 8 mil pessoas para discutir saídas para o Brasil, sem estar submissa ao calendário eleitoral
elaborar propostas, de acordo com sua vivência, para intervir na realidade e assumir a condução do processo político. O desafio levado para Brasília foi consolidar essas propostas em uma única direção. “Viemos aqui para refletir sobre o momento que estamos vivendo e para desenvolver ferramentas que nos ajudem a intervir na sociedade brasileira para transformar esse país”, definiu João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em um dos discursos de início dos trabalhos.
ESFORÇO MILITANTE A idéia de dividir as discussões também em biomas – regiões do Brasil que apresentam uma composição ambiental comum e uma identidade social, como Cerrado ou Mata Atlântica – aproximou ainda mais o debate das realidades vivenciadas. “A idéia não foi despertar regionalismos, mas trabalhar a região não apenas em uma dimensão local, mas também nacional. Nós, por exemplo, temos muito a contribuir com um olhar caatingueiro do Brasil”, afirmou Rubens Siqueira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), durante a discussão no bioma da Caatinga. A jornada da Assembléia come-
PROCESSO O processo das assembléias populares não começou nem se resumiu ao evento de Brasília. Desde meados de 2005, em uma conjuntura de completo descrédito com a chamada democracia representativa, movimentos sociais e organizações da sociedade civil iniciaram um esforço para estimular o exercício da democracia direta e da formação política do povo. Foram realizadas assembléias populares em comunidades, nos municípios, nas sub-regiões e, depois, nos Estados. Nelas, os participantes podiam
çava cedo. “Levantei todos os dias por volta das 6 horas para conseguir tomar banho antes dos trabalhos”, explicou a sul-matogrossense Cleide de Oliveira Rocha, da Pastoral da Juventude Rural (PJR). O sol forte e o clima seco de Brasília castigaram os participantes. Mesmo assim, a presença massiva nas arquibancadas do ginásio Nilson Nelson, local do encontro, mostrou que a disposição de participar dos debates era maior.
SATISFAÇÃO A vontade era tamanha que, no dia 27, os 8 mil participantes caminharam por Brasília durante duas horas, em um protesto pela soberania e pela solidariedade. O trajeto incluiu a Embaixada dos Estados Unidos (e lá foram dados os primeiros gritos “Fora Bush”! – leia mais na página 12), o Itamaraty e a Praça dos Três Poderes. Uma delegação com 20 representantes entregou, ainda, ao ministro Jacques Wagner (Relações Institucionais) duas cartas com reinvindicações. A primeira ressaltou a luta do povo nordestino contra a transposição do Rio São Francisco e a segunda, assinada pelo MST, pedia o cumprimento dos sete pontos do acordo firmado na Marcha Nacional pela Reforma Agrária em maio deste ano.
O balanço final do encontro é o de que o processo das assembléias seguirá com o povo. “Houve um grande número de movimentos urbanos, de favelas, catadores, feministas. Acendemos uma fagulha para sair da apatia que tem tomado conta do povo brasileiro”, avaliou Sandra Quintela, da Rede Jubileu Sul/Brasil. Para Luiz Bassegio, do Grito dos Excluídos, o evento destacou três bandeiras estratégicas. “A luta pela valorização do salário-mínimo e da aposentadoria; pela redução da jornada de trabalhos e pelo comprometimento com a eliminação das nossas dívidas sociais, em vez do pagamento das dívidas do capital”, afirmou. De seu lado, João Paulo Rodrigues, do MST, ressaltou a diversidade dos participantes e considerou que a Assembléia estimulou a participação popular. “As mudanças do país só vão ocorrer se passarem nas mãos do povo”, disse. E coube a dom Demétrio Valentini, bispo de Jales (SP), esclarecer que a Assembléia não se opunha aos partidos políticos, mas também não era submissa ao calendário eleitoral. “Queremos um Estado, sim, mais de acordo com a cidadania. Não temos ojeriza contra partidos, mas nosso horizonte não pode ser a eleição” (Colaborou Nina Fideles).
O exercício da democracia popular A metodologia da Assembléia Popular trouxe o espírito da Ágora – praça onde os atenienses discutiam temas políticos – para os arredores do ginásio Nilson Nelson, em Brasília. Distribuídos em 10 tendas gigantes, os participantes assumiram o papel de protagonistas na formulação de propostas para os problemas da população. As discussões não partiram do zero. Foram orientadas pelos resultados de um extenso processo de debates locais consolidado em um documento único com sugestões divididas em 10 temas e em 6 biomas – regiões do Brasil que apresentam uma composição ambiental comum e uma identidade social, são elas: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal. Os debates da Assembléia Popular foram acalorados. “Deveríamos aumentar e estimular a convocação de plebiscitos, mas é preciso ter instrumentos para evitar que a mídia deturpe o conteúdo das discussões”, sugeriu Tatiane Rodrigues, do Sindicato dos Municipários de Pelotas (RS). A gaúcha lembrou, em seu grupo de trabalho sobre sistema político, o decepcionante resultado do referendo sobre o desarmamento. Já o catarinense
Jorge Custódio
da mídia
NACIONAL
Representantes da assembléia entregam documento ao ministro Jacques Wagner
Mauro José Velho, do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Assessoria, Perícia, Pesquisa e Informação, sugeriu: “Deveríamos acabar com a reeleição para todo cargo eletivo e reduzir o mandato dos senadores para 4 anos.”
PROPOSTAS A paraense Bruna Naiara Coelho aprovou a experiência. Aos 18 anos, a moradora de Igarapé-Apu (norte do Pará) estava na capital do país pela primeira vez e lamentou a
curta duração da Assembléia, que terminou dia 28. “É no momento em que podemos trocar idéias, com nossas vivências, que construímos um projeto”, afirmou. Bruna trabalha na sua cidade com uma comunidade formulando alternativas de desenvolvimento local, a partir da economia solidária, e pretende disseminar a experiência que está passando com outros moradores de Igarapé. Toda essa diversidade de realidades e propostas ficou refletida na pluralidade da Carta da Assembléia
Popular, divulgada no final do encontro. O documento contemplou reivindicações do movimento gay (“é preciso respeitar a livre orientação sexual e acabar com a homofobia”), dos ativistas que lutam pelo passe livre (“O transporte público está à mercê da lógica mercantil e privativista”), dos sem-teto (“Nas cidades, 1% dos proprietários controla mais da metade dos lotes”), dos sem-terra (“1% dos proprietários rurais concentra mais de 46% das terras agriculturáveis”), entre outros grupos. Outro item ao qual se refere a Carta é a respeito da ausência de investimentos públicos em favor de iniciativas comunitárias e cooperativas de economia popular solidária, especialmente as autogestionadas. Uma proposta bem de acordo com o que defendeu Roberto Fernandes da Silva, que trabalha em uma cooperativa de catadores de lixo, em um dos debates. “É preciso uma legislação específica para estimular a criação de cooperativas populares porque trata-se de uma alternativa para combater o desemprego”, argumentou. Para ler a Carta da Assembléia na íntegra, acesse www.assembleiapopular.com.br. (JPF, colaborou Cristiano Navarro)
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De 3 a 9 de novembro de 2005
NACIONAL DEMOCRACIA DIRETA
Diversidade marca encontro popular Jorge Pereira Filho da Redação
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o alto das arquibancadas do ginásio Nilson Nelson, um homem em uma cadeira de rodas fazia sua última refeição em Brasília, pouco depois do encerramento da Assembléia Popular. Era a tarde do dia 28 de outubro. Camiseta negra com estampa do Che Guevara, calça jeans, cabelos tingidos de loiro e um brinco na orelha esquerda. Mexia-se bastante enquanto falava, era expressivo, mas seus gestos eram difíceis e duros. Conseqüências de um acidente de carro dois anos atrás que o deixou paralítico e lhe comprometeu alguns movimentos do braço direito. Mas o que levou esse paranaense chamado Célio Antonio de Souza, trinta e poucos anos, a viajar durante 25 horas, com todas as suas limitações, para participar de um encontro com mais oito mil pessoas? “Quero mostrar para mim mesmo e para o povo da minha comunidade que o acidente não me tornou um inútil”, respondeu, com os olhos trêmulos. Souza mora na periferia da região metropolitana de Curitiba, onde participa de uma associação de bairro. Sua presença no encontro resumiu uma das marcas de um fenônemo da Assembléia: a boa aceitação da idéia no meio urbano e a diversidade dos participantes. Os movimentos sociais rurais, reunidos pela Via Campesina, já escrevem uma trajetória de organização e acúmulo de força marcada, diversas vezes, por encontros populares em Brasília com a participação de milhares de pessoas, como na Conferência Terra e Água, em 2004. Já a Assembléia Popular reuniu também moradores de diversas cidades brasileiras, de todos os Estados. Muitos são pessoas sem vínculos com movimentos sociais, mas que estão dispostas a largar seus compromissos cotidianos durante três dias para discutir propostas para um novo país. Ao final, definiram um calendário de lutas e os próximos passos (veja quadro ao lado) de uma luta conjunta. “Nossa cidade é muito pequena e não dá para resolver localmente todos os problemas. Por isso, achei que deveria vir aqui”, explicou Souza. Quem também conhecia Brasília pela primeira vez era Maria Helena
Flávio Cannalonga
Pessoas de todas as regiões brasileiras colocam um pouco de sua história na construção de um outro país
Calendário de Lutas 2006 8 a 14 de março: Jornada Nacional em Defesa das Águas; 8 de março: Dia Internacional da Mulher; 17 de abril a 1º de maio: Lutas em Defesa da Reforma Agrária, do Salário-Mínimo e pelo Direito ao Trabalho; 19 de abril: Dia dos Povos Indígenas; 1º a 7 de setembro: Jornada Nacional pela Soberania Nacional e Contra o pagamento da Dívida Interna e Externa; 17 de outubro: Semana de Luta pela Democratização dos Meios de Comunicação.
Representantes dos movimentos populares partilham a construção de um novo Brasil marcado pela pluralidade cultural
de Souza. Durante os três dias do encontro, essa negra descendente de escravos usou um colete laranja – a vestimenta da equipe da saúde. Sua missão era orientar os outros participantes sobre cuidados básicos, como beber água com freqüência para enfrentar o clima quente e seco, e encaminhar idosos ou pessoas com mal-estar para o ambulatório. Enfim, Maria Helena praticou um pouco da solidariedade que exercita diariamente no bairro Vila Paciência, no Rio de Janeiro, onde vive e participa da associação de moradores. “Nós lá assistimos idosos, crianças e adolescentes com cursos artesanais e organizamos arrecadação de alimentos, remédios e roupas”, explica.
POR UMA VIDA MELHOR Maria Helena participou de uma Assembléia Popular na capital fluminense. Entusiasmada com a idéia de discutir os problemas do povo, ficou com vontade de ir ao encontro em Brasília. “Sonho que nossa comunidade leve uma vida melhor, mais digna, não temos nem a posse do terreno onde moramos”, conta. Segundo ela, as primeiras casas foram construídas em Vila Paciência há 44 anos. “Costumo dizer que nossa comunidade não é violenta, mas muito violentada. Estamos sitiados pelas brigas das facções do
tráfico e da polícia. E sofremos com a ausência absoluta do Estado.” A única escola do bairro ensina só até o 1º grau. Não há postos de saúde. “Mas o nosso maior problema é o desemprego, uma calamidade”.
ALTERNATIVAS A curitibana Nair de Queiroz Cunha concorda com a amiga carioca. Tanto que participa de uma iniciativa que está semeando um pouco de esperança no bairro onde vive: as padarias comunitárias. Basicamente, trata-se de um espaço com uma bancada e um ou dois fornos. Ali, mulheres do próprio bairro de Sítio Cercado fazem pães e vendem para outros moradores. “Nosso lucro é dividido entre as trabalhadoras, de acordo com o esforço de cada uma. Há mulheres que conseguem R$ 200 por mês, sendo que trabalhamos apenas dois dias por semana”, conta. Atualmente, o bairro conta com 20 dessas minipanificadoras. A primeira foi montada depois de uma arrecadação entre os próprios moradores; a segunda e as posteriores vieram com o lucro da iniciativa. Cada padaria gera renda para 40 mulheres. Essencial para o sucesso da experiência foi o apoio da comunidade, que deixa de comprar pão nos mercados para privilegiar o trabalho local.
Os próximos passos
Mas se a iniciativa está dando certo, por que dona Nair, mãe de três filhos, 48 anos, foi para Brasília? “Ora, não é apenas fazendo pães que vamos resolver os problemas do Brasil”, ensina. Ela completa dizendo que, depois da experiência das padarias comunitárias, decidiu voltar a estudar. “Percebi como o estudo é importante e agora estou fazendo um curso de alfabetização para adultos”, relata.
1. Lutar por uma reforma política que, de fato, mude o processo de representação política;
ALFABETIZAÇÃO
5. Lutar contra o pagamento da dívida interna e os altos juros;
Se dona Nair não vivesse em Curitiba, mas em Teresina, é possível que sua educadora fosse Luzinete de Souza Santos, que há 15 anos dá cursos de alfabetização na capital do Piauí. Essa piauense viajou durante quase um dia inteiro para chegar a Brasília. Defendeu, na Assembléia, que os programas de alfabetização não sejam iniciativas isoladas, temporárias, mas sim uma política de Estado (leia mais sobre educação nas páginas 10 e 11). As dificuldades são muitas, mas não impedem que Luzinete continue na estrada que já percorre há década e meia. “Temos muita evasão, faltam recursos e os programas do governo federal, infelizmente, não dão recursos para infra-estrutura, um de nossos problemas”, avalia.
2. Auditoria e suspensão do pagamento da dívida externa; 3. Lutar pela valorização do salário-mínimo e das aposentadorias; 4. Lutar pelo direito ao trabalho e pela redução da jornada de trabalho;
6. Lutar por uma política externa soberana baseada no princípio da solidariedade entre os povos e na defesa da biodiversidade; 7. Lutar pela educação pública gratuita e de qualidade para todos; 8. Realizar uma jornada nacional pela reforma agrária e em defesa das águas; 9. Lutar para que os recursos do orçamento público sejam destinados prioritariamente para as políticas sociais, como saúde e educação; 10. Promover uma jornada nacional de luta pela democratização dos meios de comunicação.
SÃO FRANCISCO
Governo descumpre acordo com bispo à obra”. Durante a Assembléia Popular, lideranças das comunidades indígenas de Alagoas, Bahia, Pernambuco e Sergipe divulgaram um documento contra a transposição. O texto diz que o projeto vai interferir diretamente no modo de sobrevivência das comunidades: “É deste rio que irrigamos a terra para plantar e pescamos o peixe para comer. Nossos rituais sagrados têm tudo a ver com o rio, nossas ciências estão nas águas do Velho Chico”.
Jorge Custódio
A discussão sobre a transposição do Rio São Francisco – e sobre soluções alternativas de convivência com o Semi-Árido – foi um dos temas contemplados nos debates da Assembléia Popular. Uma informação do indígena Neguinho Truká foi simplesmente explosiva: as obras do megaprojeto agora encampadas pelo governo Lula continuam sendo executadas à revelia de três liminares da Justiça. E da promessa feita a frei Luiz Cappio para que suspendesse sua greve de fome. Segundo ele, o Exército está trabalhando atualmente na Ilha de Assunção (BA), a 600 quilômetros da capital Salvador. Nesse lugar, passará um canal e os militares estariam desalojando as famílias do local e também da região de Cabrobró (PE) com o objetivo de preparar as áreas para receber as máquinas. “Qualquer obra que esteja sendo feita, fere tanto a Justiça quanto o acordo feito”, afirmou frei Luiz, que esteve em Brasília para o encontro dos movimentos sociais. “Antes da transposição, é preciso dialogar. O povo do Nordeste precisa ser levado a sério e consultado sobre as alternativas para o Semi-Árido”, completou
DEBATE
Defensor ferrenho do São Francisco, frei Cappio diz que Lula é “refém do capital”
frei Luiz Cappio, bispo da Diocese de Barra (BA). Em outubro, o religioso interrompeu uma greve de fome de onze dias, após obter um compromisso do presidente Lula de que nada seria feito antes de um
debate ampliado sobre o projeto com a população. Neguinho Truká disse que as tropas presentes na região querem “reprimir os índios Truká, de tradição guerreira, que seguem resistindo
Atualmente, três liminares concedidas pela Justiça da Bahia proíbem a realização das obras. O governo só poderá seguir adiante com seu projeto, judicialmente, se essas ações forem derrubadas no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Sepúlveda Pertence é o relator dos processos. Duas dessas ações interrompem indiretamente as obras, pois questionam a autoridade do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e da Agência Nacional das Águas (ANA) para conceder licença ambiental prévia e outorga, respectivamente, ao projeto de transposição. Já uma outra ação alega que houve irregularidades no processo de licencia-
mento coordenado pelo Ibama. O ministro Jacques Wagner (Relações Institucionais), que mediou o acordo que colocou fim à greve de fome de dom Cappio, negou que as obras de transposição estejam sendo realizadas e afirmou que o governo está disposto a prolongar o debate sobre o projeto. “Queremos que a discussão seja ampliada, mas não vamos ter posição neutra: vamos nos colocar como governo, ou seja, somos favoráveis ao projeto”, declarou, durante sua passagem pela cerimônia de abertura da Assembléia Popular. Confiante na pertinência do projeto, o ministro garantiu que, caso seja comprovado equívoco no andamento de sua execução, o governo terá o “bom senso” de revê-lo. “A obra é de interesse do próprio Lula que, como nordestino, tem consciência da necessidade de resolver essa questão”, explicou. Já frei Cappio manifestou opinião diversa, avaliando que Lula é “refém do capital” e parece ter deixado suas raízes de lado. “Espero que gestos como a Assembléia Popular façam com que o presidente volte a fazer parte do povo, como ele era antes”, disse. (JPF, com Gissela Mate).
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De 3 a 9 de novembro de 2005
NACIONAL IMPRENSA VENDIDA
Fatos em foco
Acusações sem provas
Hamilton Octavio de Souza
Partido e governo cubano repudiam reportagem da Veja sobre doação de dinheiro ao PT
Gatunagem protegida Finalmente o Banco Central conseguiu apurar o tamanho do rombo do Banco Santos, quebrado fraudulentamente no ano passado: R$ 2,6 bilhões para os clientes, mais R$ 26 milhões de tributos e multas para o governo. O dono do banco, Edemar Cid Ferreira, que desviou uma boa parte do dinheiro para adquirir imóveis e obras de arte, continua livre, leve e solto. Por que ninguém pede a prisão do banqueiro ladrão? Surpresa bancária A CPI dos Correios está prometendo desvendar, nos próximos dias, os nomes dos titulares das contas bancárias que depositaram 10 milhões de dólares para o publicitário Duda Mendonça, na sua conta mantida em paraíso fiscal no exterior, para pagamento da campanha eleitoral de Lula em 2002. Se a apuração for para valer, não será surpresa que o dinheiro tenha saído de contas ligadas ao próprio Banco Rural ou de empresas privadas que têm negócios com o Estado brasileiro. Escalada violenta Além de promover tiroteio contra o governo Lula, contra o PT e as esquerdas em geral, a escalada da direita – mais acintosamente desde que o ex-deputado Roberto Jefferson denunciou o “mensalão” – tenta alvejar também os movimentos sociais mais ativos e combativos, como os sem-terra, os sem-teto, os sem-universidade e os sem-transporte. As várias centrais sindicais estão caladas diante da violência contra os trabalhadores. Pura acomodação? Esquecimento infantil O presidente da Fundação Abrinq, Rubens Naves, denunciou recentemente que o governo Lula não está cumprindo as metas fixadas para a infância e a adolescência, entre as quais a que prevê a redução da mortalidade materna, a eliminação de disparidade no rendimento de meninas e meninos no ensino fundamental e médio e a melhoria da qualidade do ensino de matemática. Em compensação, o governo bateu novo recorde de superavit primário para pagamento dos juros da dívida pública. Como sempre, os banqueiros em primeiro lugar. Protesto paulista Grupos políticos de esquerda e movimentos sociais de São Paulo estão organizando ato de repúdio ao presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, para o dia 5 de novembro. A manifestação é contra a Alca e contra o imperialismo, e em defesa da luta dos trabalhadores da América Latina. Isso prova que o desgaste de Bush não é só interno, está cada dia mais globalizado. Aftosa indigesta De volta do encontro de cúpula em Mar del Plata, na Argentina, o presidente George W. Bush passará algumas horas em Brasília, dia 6, quando será recebido pelo presidente Lula para um churrasco na Granja do Torto. O encontro merece ser analisado pelos grandes especialistas de marketing: quais imagens públicas estão mais desgastadas, as dos presidentes ou a da carne brasileira?
ela elogia o modelo econômico do governo Lula? Porque ele favorece os interesses dessas corporações”, avalia.
A
direção do PT reagiu com veemência à reportagem de capa da última edição da revista Veja, que acusa o partido de ter recebido dinheiro de Cuba para a campanha eleitoral de 2002. Sem provas, a revista diz que o governo cubano teria enviado 3 milhões de dólares ou 1,4 milhão de dólares ao PT, entre agosto e setembro de 2002. As afirmações são baseadas em depoimentos de dois ex-auxiliares do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, que teriam ouvido a história de Ralf Barquete – secretário municipal na gestão de Palocci em Ribeirão Preto, falecido em junho de 2004. “Essa revista está delirando. Isso é mentira”, rebateu o deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR), lembrando que a Veja já afirmou, em março deste ano, que o PT recebeu dinheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), mas até agora não conseguiu provar nada. Segundo o deputado federal, o objetivo verdadeiro da publicação é cassar o registro eleitoral do partido – medida prevista em caso de infrações como o recebimento de financiamento do exterior. “Isso fica claro num trecho do texto onde consta que, com o registro cassado, os petistas não poderiam se candidatar na eleição de 2006. É isso que eles querem”, acrescenta o parlamentar.
INTERESSES ESTRANGEIROS O partido pretende entrar na Justiça contra a publicação. Para o secretário-geral do PT, Raul Pont, Veja representa “o que há de pior em informação no país. São denúncias absurdas”. Rosinha
RELAÇÕES PERIGOSAS
Maringoni
Fascismo americano Os Estados Unidos mantêm há anos um campo de concentração na base militar de Guantánamo, na ilha de Cuba, com centenas de prisioneiros seqüestrados no Afeganistão e nos países árabes. Entidades de direitos humanos denunciaram a violência contra essas pessoas, pois estão sem julgamento, sem receber visitas e sem que seja respeitado o Tratado de Genebra, que regulamenta os casos de prisioneiros de guerra. Por que a ONU não determina a desativação dessa prisão?
Tatiana Merlino da Redação
concorda: “Isso não é jornalismo. Eles estão a serviço do capital internacional”. Para fundamentar a tese de que a revista da Editora Abril defende os interesses de investidores estrangeiros, Rosinha revela que dois representantes da Capital International – terceiro maior administrador de fundos dos Estados Unidos e parte integrante do conglomerado transnacional Capital Group – fazem parte do conselho de administração da editora. “Um deles é o estadunidense William Bannister-Parker; o outro, o executivo brasileiro Guilherme Lins”. Segundo a página do Capital Group na internet, Parker
atua em Londres (Inglaterra) como vice-presidente do Capital International Research. Lins trabalha num escritório do Capital Group em Gênova (Itália). Em julho de 2004, a Capital International adquiriu 13,8% do grupo Abril. Conforme dados divulgados na época, a operação – viabilizada por meio de uma emenda constitucional sancionada em 2002 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso – teria resultado na injeção de R$ 150 milhões no grupo Abril, segundo denuncia o deputado. “Exatamente por isso a revista tem adotado essa linha editorial golpista. Por que será que
Não é só com os Estados Unidos que a revista mantém estreitas relações. De acordo com Gustavo Barreto, pesquisador da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Editora Abril tem, desde 1995, uma parceria com a Cisneros Group of Companies, holding cujo controlador é Gustavo Cisneros – um dos maiores opositores do presidente venezuelano Hugo Chávez e forte apoiador do golpe contra ele, em 2002. Cisneros é dono de um império que agrega 75 empresas nas áreas de mídia, entretenimento, internet e telecomunicações, instaladas no Canadá, Estados Unidos, América do Sul, Espanha e em Portugal. Detém, por exemplo, a Univisión Communications, principal canal espanhol nos Estados Unidos. Desde 2000, Cisneros e Abril, de acordo com Barreto, são parceiros comerciais na empresa resultante da fusão entre a AOL e a Time Warner. Outro alvo permanente das matérias da Veja, o governo cubano negou o envio de dinheiro para a campanha petista e, em nota oficial, chamou a matéria de “caluniosa”. O texto afirma que o governo cubano “jamais interferiu nos assuntos internos da nação” e que “aqueles que orquestram essa campanha de mentiras contra Cuba e contra o governo brasileiro buscam afetar as relações bilaterais entre os nossos países, caracterizadas pelo diálogo fraternal, respeito mútuo e não ingerência nos assuntos internos de nossas nações”.
AMIANTO
Ações judiciais tentam derrubar proibição Dafne Melo da Redação O amianto, mineral utilizado em materiais de construção, é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como cancerígeno. Este ano, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgou dados que confirmam, mais uma vez, a nocividade do mineral no ambiente de trabalho: por ano, morrem cerca de 100 mil trabalhadores em todo o mundo, devido ao asbesto, como também é conhecida a substância. As evidências, porém, não são suficientes para convencer as autoridades brasileiras a seguir o exemplo de outros 42 países que baniram a exploração do mineral. Pelo contrário. Hoje, no país, segundo Fernanda Giannasi, auditora fiscal do Ministério do Trabalho “no Brasil, o lobby da indústria do amianto está muito presente no governo, sobretudo no Executivo.” Ela é uma das maiores defensoras do banimento do amianto no país, e fundadora da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto (Abrea).
LUTA NA JUSTIÇA Em decorrência das pressões, cinco Ações de Inconstitucionalidade (Adins), duas impetradas pela Eternit (maior fabricante de amianto crisotila, que explora a mina de Minaçu, em Goiás), e outras três pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) estão para ser julgadas no Supremo Tribunal Federal (STF). Essas ações pedem o fim da proibição da produção do amianto no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pernambuco, onde leis
estaduais determinaram o fim da exploração do asbesto.
PROIBIÇÃO A CNTI alega que a inconstitucionalidade advém do fato de que a questão não seria de competência estadual, mas da União. O argumento foi aceito em outras duas ações semelhantes, que derrubaram a proibição em São Paulo e Mato Grosso do Sul. Para Fernanda, apesar de ser uma entidade representativa dos trabalhadores, a CNTI é um exemplo de “entidade pelega, de um sindicalismo que defende os interesses das empresas”. Ela argumenta, ainda, que os Estados têm autonomia para definir leis ambientais. No dia 26 de outubro, o STF suspendeu a votação para o caso de Pernambuco, a pedido de vistas do ministro Joaquim Barbosa, após o relator da matéria, o ministro Eros Grau, votar pela procedência da ação para suspender a lei estadual. Fernanda acha que ainda é cedo para definir se o adiamento é favorável ou não. Entretanto, ela chama atenção para a maneira como o governo federal tem lidado com a questão. A seu ver, a criação de uma comissão interministerial para estudar o tema, não passou de “uma estratégia do governo para adiar a questão, assim como outras comissões interministeriais formadas”. Um exemplo da ação do lobby no Executivo, conta, é a indicação, pela Casa Civil, de Carlos Crespo, conhecido aliado da indústria do amianto, para uma reunião na OMS, este mês, justamente para discutir a questão do asbesto. Fernanda Giannasi não acredita
em boas novidades do Executivo, afirmando que o importante é solidificar a união com outras entidades da sociedade civil. Como a aliança com o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que tem feito um trabalho de conscientização com consumidores. “Na minha opinião, o uso do amianto não é compatível com a democracia, porque para justificar seu uso é necessário forjar dados, corromper, chantagear e intimidar”, diz a fiscal, que já recebeu ameaças de morte. Enquanto isso, na França, o
Senado divulgou, em outubro, um relatório sobre as conseqüências da contaminação por asbesto, classificada pelos parlamentares de “catástrofe sanitária”. O documento aponta “responsabilidade coletiva” de empresas e do poder público, que negaram, durante anos, a nocividade do asbesto, que só foi banido em 1997, embora estudos já apontassem o poder cancerígeno da substância ainda na década de 1960. O relatório ainda acusa o Estado francês de ter se deixado “anestesiar pelo lobby do amianto”, financiado pela indústria do setor.
Roosewelt Pinheiro/ABR
Novas táticas O documento final da Assembléia Popular, que reuniu cerca de oito mil militantes sociais em Brasília, defende a instituição do poder popular por meio de assembléias para “construir um Brasil livre, pluriétnico, autônomo, soberano e socialista”. O sentimento predominante no encontro foi de desconfiança em relação aos partidos políticos tradicionais e às lideranças cooptadas pelas classes dominantes. A lição está sendo aprendida.
Reforma política – Chico Whitaker, presidente da Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entregou, dia 26 de outubro, aos presidentes da Câmara e do Senado, documento com 230 mil assinaturas em defesa da moralidade política e eleitoral. A iniciativa foi promovida pelo movimento Da Indignação à Ação, formado por diversos setores da sociedade que defendem uma reforma política profunda. A proposta apresentada pelo movimento estende até o dia 31 de dezembro a possibilidade de fazer alterações nas regras eleitorais de 2006. Além disso, propõe abolir a propaganda oficial nos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), em níveis federais, estaduais e municipais, à exceção de informações de interesse público, como campanhas de vacinação, por exemplo.
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De 3 a 9 de novembro de 2005
NACIONAL TRABALHO
Desemprego sobe em setembro Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
SEM SAIR DO LUGAR Taxa mensal de desemprego, em %
O
mercado de trabalho não dá sinais de reação há quatro meses consecutivos. Em setembro, chegou a registrar até mesmo uma ligeira elevação da taxa de desemprego apurada mensalmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em seis regiões metropolitanas. Em junho, o percentual de desocupados naquelas regiões (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre) havia recuado de 10,2% para 9,4%, permanecendo estacionado nesta mesma faixa até agosto. No mês seguinte, a taxa subiu para 9,6%, indicando que a economia, mais uma vez, não tem conseguido criar empregos em número suficiente para absorver as pessoas que chegam ao mercado de trabalho ou tentam conseguir uma nova colocação depois de meses de desocupação. Por trás da estatística, isso significa que 2,14 milhões de pessoas estavam desempregadas em setembro nas seis regiões pesquisadas, diante de 2,07 milhões na mesma situação em agosto. Entre os dois meses, o total de desempregados aumentou 3,6%. Esse número, é bem verdade, já foi maior num passado recente, aproximando-se de 2,85 milhões de desocupados em abril do ano passado. Desde lá, o total de pessoas sem uma ocupação caiu praticamente 25%, enquanto o número de pessoas ocupadas passou de 18,951 milhões para 20,072 milhões (1,121 milhão a mais).
Anderson Barbosa
Desempenho contraria tendência histórica desta época do ano, quando a desocupação normalmente entra em baixa FÔLEGO CURTO Rendimento real médio da população ocupada nas seis principais regiões metropolitanas
Mês
Taxa
Set/04
10,9
Mês
Out/04
10,5
Set/04
956,10
Nov/04
10,6
Out/04
944,46
Dez/04
9,6
Nov/04
945,17
Jan/05
10,2
Dez/04
927,69
Fev/05
10,6
Jan/05
947,69
Mar/05
10,8
Fev/05
956,83
Abr/05
10,8
Mar/05
961,76
Mai/05
10,2
Abr/05
944,91
Jun/05
9,4
Mai/05
930,82
Jul/05
9,4
Jun/05
944,87
Ago/05
9,4
Jul/05
968,47
Set/05
9,6
Ago/05
974,96
Set/05
974,90
Fonte: IBGE
Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), “é que o desemprego nos últimos quatro meses parou de cair quando era esperada uma redução”. Na visão dos mesmos economistas, o país poderia estar em melhor situação não fosse “o crescimento da economia ainda incipiente”. Nesta época, diante da proximidade do Dia das Crianças e das festas de Natal e ano-novo, a indústria deveria reforçar suas contratações para atender às encomendas do comércio, aquecendo a economia em geral como ocorre em todos os anos. Mas não é o que se tem percebido, ao menos até setembro. No ano passado, apenas para comparação, a taxa de desemprego, que havia alcançado 11,7% em junho, recuou para 11,2% no mês seguinte, mantendo-se praticamente estável (11,4%) em agosto. Em setembro, no entanto, o índice recuou para 10,9% – ainda elevado, mas que indicava tendência de queda (lenta e gradual). Neste ano, nem isso. Como este jornal apontou, houve queda nas vendas de geladeiras, máquinas de lavar roupa e lavadoras de louça em setembro, com elevação concentrada em televisores de tela plana, celulares e DVDs, além de eletrodomésticos de baixo valor. O desaquecimento atinge siderúrgicas, com retração no mercado de aço, e montadoras de veículos. Como indício do enfraqueci-
SEM REAÇÃO Como 413 mil pessoas entraram no mercado de trabalho naqueles 17 meses, a economia conseguiu operar uma redução no total de desempregados equivalente a 710 mil pessoas. Em grande parte, no entanto, a “boa fase” aconteceu entre julho do ano passado e junho deste ano. Desde então, a criação de novos empregos entrou em desaceleração, culminando com uma nova fase de virtual estagnação do desemprego entre junho e setembro deste ano. Mais importante, analisam os economistas do Instituto de
Fonte: IBGE
LIGEIRA ACELERAÇÃO Pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas na semana da pesquisa, em milhares Mês
Vítimas da política econômica do governo buscam emprego em São Paulo
mento do mercado de trabalho, a economia abriu menos vagas, em setembro, do que o total de pessoas em busca de colocação. Foram criadas 175 mil ocupações a mais do que em agosto passado, enquanto 249 mil pessoas entraram no mercado. Isso significa que em torno de 75 mil delas não conseguiram colocação, engrossando o desemprego.
EFEITO TEMPORÁRIO Para alguns analistas, trata-se de uma situação momentânea, já que, em fases iniciais de retomada do crescimento, as pessoas se sentem estimuladas a retomar a procura por emprego (já que, teoricamente, há maiores chances de conseguir colocação). Esse movimento acaba provocando um aumento temporário do desemprego, pois haverá maior número de pessoas em busca de emprego, superando a oferta de vagas.
Arquivo Brasil de Fato
Mais empregos com carteira, mais trabalhos como bicos O baixo dinamismo do mercado de trabalho em setembro abriu espaço para tendências aparentemente conflitantes. No mesmo mês, cresceram tanto os empregos formais, que oferecem ao trabalhador registro em carteira, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e Previdência, quanto as ocupações por conta própria – “bicos” realizados pelo trabalhador sem carteira para assegurar sua sobrevivência até que surja uma oportunidade no mercado regular. Na comparação com agosto, o total de empregados com carteira assinada avançou pouco mais de 1%, com o acréscimo de 93 mil vagas. Esse número representou 53% das 175 mil novas ocupações criadas no mês. Em valores absolutos, os empregados com carteira eram 8,937 milhões em agosto e passaram a 9,030 milhões no mês seguinte. Sua participação em relação ao total de pessoas ocupadas saiu de 43,4% em setembro do ano passado para 45% neste ano. No caso dos empregados por conta própria, o IBGE registrou um incremento de quase 2% entre agosto e setembro, com o total subindo de 3,859 milhões para 3,935 milhões, o que correspondeu a 43,4%
Fora do mercado de trabalho, trabalhador sobrevive com “bicos”
dos novos empregos criados. Uma contribuição ainda expressiva, como se percebe, o que sugere que o mercado ainda não superou a fase de “precarização” das relações trabalhistas, agravada nos últimos anos. Em setembro do ano passado, um quinto dos ocupados trabalhava por conta própria, percentual que recuou ligeiramente, para 19,6%, no mesmo mês deste ano. O número de empregados sem carteira mantém-se estável, num total de 4,465 milhões de pessoas, correspondendo a 22,2% do total de ocupados (22,8% em setembro
Rendimento (R$)
do ano passado). Aparentemente, as empresas têm preferido assinar a carteira para os novos contratados, evitando reconhecer formalmente os trabalhadores que já tinham emprego informal (sem registro). Provavelmente porque têm preferido realizar contratações a baixos salários: na comparação com setembro do ano passado, o desemprego caiu de forma mais acentuada entre as pessoas sem instrução e com menos de oito anos de estudo (queda de 16,5% diante de um recuo de 7,5% entre aquelas com 11 anos e mais de estudo). (LVF)
Quando o crescimento econômico se mantém, os candidatos a novas colocações passam a ser absorvidos, com conseqüente redução do número de desempregados. No caso atual, no entanto, a variação do total de ocupações na economia vem sofrendo desaceleração mês a mês. No início do ano, na comparação com o mesmo período de 2004, mensalmente a oferta de vagas vinha agregando ao mercado entre 700 mil e 800 mil novas colocações, recuando para menos de 650 mil em junho. Daí em diante, a variação caiu abaixo de 470 mil empregos adicionais a cada mês. Em setembro deste ano, num exemplo, o total de pessoas ocupadas (20,072 milhões) cresceu 2,3%, representando a criação de 447 mil novos empregos. Em igual mês do ano passado, haviam surgido 704 mil vagas a mais ou quase 60% a mais do que em
Ocupados
Set/04
19.625
Out/04
19.666
Nov/04
19.741
Dez/04
19.765
Jan/05
19.497
Fev/05
19.430
Mar/05
19.560
Abr/05
19.581
Mai/05
19.823
Jun/05
19.834
Jul/05
19.816
Ago/05
19.897
Set/05
20.072
Fonte: IBGE
setembro de 2005. Mesmo com a entrada de quase 300 mil pessoas no mercado, foi possível retirar do desemprego, em setembro do ano passado, 414 mil pessoas, na comparação com o mesmo mês de 2003. Isso fez com que o número de pessoas sem qualquer ocupação baixasse de 2,814 milhões para 2,4 milhões. Na comparação entre setembro de 2005 e idêntico período de 2004, no entanto, o desemprego encolheu em um número equivalente a 260 mil pessoas (de 2,4 milhões para 2,140 milhões de desempregados).
Rendimentos ficam na mesma Em mais um resultado nada positivo para a economia, aponta o Iedi, o rendimento médio dos trabalhadores estancou em setembro, repetindo os números de agosto. “Depois de três meses seguidos de aumento real (1,5% em junho, 2,5% em julho e 0,7% em agosto), o rendimento médio (...) apresentou estabilidade na comparação com o mês anterior”, aponta o instituto, com base em dados do IBGE. Na média, cada pessoa ocupada recebeu, em setembro, o correspondente a R$ 974,90. Em agosto, o rendimento médio havia alcançado R$ 974,96. Na comparação com setembro do ano passado, quando os trabalhadores ganharam R$ 956,10, registra-se uma variação de aproximadamente 2% em termos reais, com avanço de 5,3% frente a setembro de 2003. Abre parênteses: a variação em termos reais já desconta o crescimento dos preços em geral. Significa, no caso, que os rendimentos subiram mais do que os preços no período, indicando que os salários venceram a corrida com a inflação – em grande parte porque, como se viu, os preços vinham subindo bem menos nos últimos meses,
chegando a entrar em queda efetiva por um período relativamente prolongado. Não por coincidência, os rendimentos atingiram valores reais relativamente mais elevados exatamente entre julho e setembro, quando a inflação entrou em baixa. Fecha parênteses. O menor crescimento do emprego e a estabilidade dos rendimentos reais determinou uma desaceleração na taxa de crescimento da massa total de salários (que corresponde à soma do total de salários pagos na economia). Em setembro, a massa de rendimentos nas seis regiões pesquisadas pelo IBGE atingiu alguma coisa ao redor de R$ 19,6 bilhões, com variação de 0,9% frente a agosto. Nos dois meses anteriores, o total de salários havia crescido 2,4% entre junho e julho e 1,1% entre julho e agosto. Tomando como base os mesmos meses do ano passado, a massa de rendimentos chegou a crescer 6,2% em agosto. Mas, em setembro, a taxa de aumento ficou limitada a 4,3%. Em setembro do ano passado, quando comparada a idêntico período de 2003, a massa de rendimentos havia experimentado um incremento de 7,1%. (LVF)
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De 3 a 9 de novembro de 2005
NACIONAL PASSE LIVRE
Protestos em mais de dez cidades Dafne Melo da Redação
CMI
Movimentos em defesa de transporte público organizam manifestação unificada em todo o país
N
o Dia Nacional de Lutas pelo Passe Livre, 26 de outubro, manifestantes saíram as ruas em mais de dez cidades para protestar contra aumentos abusivos das tarifas de ônibus e reivindicar a implementação do passe livre para estudantes e desempregados. Organizadas de forma autônoma pelos coletivos do Movimento Passe Livre (MPL) em cada cidade, as manifestações buscaram divulgar as propostas do Movimento e suas demandas junto ao poder público. Um jornal impresso foi distribuído, nacionalmente, explicando a natureza do Movimento. “O MPL é um movimento social autônomo que luta por um transporte verdadeiramente público, de acesso a todas as pessoas, sem exclusão social. Neste momento, lutamos pelo passe livre estudantil, que já é realidade em cidades como Rio de Janeiro e Cuiabá. A longo prazo, nosso objetivo é municipalizar todo o transporte coletivo, com a participação das pessoas neste processo”, diz o jornal. Philipe Araújo, de Fortaleza, acredita que as manifestações foram importantes principalmente para dialogar com a sociedade, “mostrando para as pessoas que estamos lutando por um direito que, em alguns casos, é castrado devido
No Dia Nacional de Lutas pelo Passe Livre, em Florianópolis (SC), manifestantes pedem a libertação dos estudantes presos durante os protestos de junho
à questão financeira”, diz o representante do MPL. De acordo com a última Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, de 2003, o gasto das famílias brasileiras com transporte só fica atrás da habitação e alimentação, e é superior às despesas com saúde e educação. Na capital cearense, segundo Araújo, cerca de 300 estudantes participaram da manifestação que, ao contrário da realizada no ano passado, foi apartidária e autônoma. Agora, o coletivo montará um grupo para estudar a viabilidade
técnica da implementação do passe livre em Fortaleza, para poder apresentar propostas concretas à prefeitura. “Não queremos que a prefeitura aumente a carga tributária, não queremos que o custo do passe livre vá para o contribuinte, mas sim para as empresas”, argumenta Araújo.
MAIS MOBILIZAÇÕES Aracaju (SE), Blumenau (SC), Brasília (DF), Cuiabá, (MT), Curitiba (PR), Goiânia (GO), Rio Branco (AC), São Paulo e Santos (SP) e
Vitória (ES), foram outras cidades em que os estudantes realizaram manifestações no dia 26. Em todas elas, catracas foram queimadas simbolicamente. Em Rio Branco, a Universidade Federal do Acre (Ufac), em greve há mais de dois meses, incorporou a luta pelo passe livre, reforçando as reivindicações que já vêm sendo feitas há dias, que são o congelamento da tarifa dos coletivos, o fim das cotas de passes escolares, e da personalização dos passes e a descentralização do Conselho Tarifário.
Na próxima semana, segundo o presidente do DCE, Alexandre Manuel Lopez, haverá a primeira palestra dos integrantes do Comitê do Movimento pelo Passe Livre e o comando de greve da Ufac. “Hoje, foi só uma espécie de panfletagem para demonstrar a nossa insatisfação diante das medidas tomadas pelo Conselho Tarifário e deixar claro que vamos continuar lutando pelos nossos direitos”, disse Lopez. (Com informações do Centro de Mídia Independente, www.midiaindependente.org)
ANISTIA
MÍDIA
Luís Brasilino da Redação O cinegrafista Alex Antunes recebeu, dia 25 de outubro, o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos, na categoria imagem, justamente pelo trabalho que causou sua demissão. Em junho, ele fez, para a TV Floripa, a cobertura das manifestações contra o aumento das tarifas de ônibus em Florianópolis (SC). A ironia da situação só não supera a brutalidade das gravações: as cenas que renderam o prêmio mostram um policial desferindo um golpe de jiu-jitsu em um estudante. Atirado ao chão, o manifestante é segurado por outros dois soldados enquanto aquele que o derrubou passa socá-lo na cabeça. Depois de alguns segundos, os policiais saem correndo e a vítima fica caída. O jovem foi para o hospital com traumatismo craniano. No final de maio, o prefeito de Florianópolis aproveitou o feriado de Corpus Christi para elevar mais uma vez aquela que já era a tarifa de transporte público mais cara do Brasil. As conseqüências foram mais de 20 dias de manifestações e conflitos com a polícia, que culminaram com a queda no preço das passagens. Nos primeiros quatro dias de manifestações, as imagens captadas por Antunes foram transmitidas sem cortes pela TV Floripa. A audiência da pequena rede comunitária começou a competir com a das grandes redes abertas. “No quarto dia de manifestação, representantes da Companhia Operadora de Terminais de Integração (Cotisa), interessada no aumento das passagens, reuniram-se com a direção da TV. A partir desse dia, as fitas passaram a ser editadas. Disseram que minhas imagens estavam incitando a violência, que eu não era profissional pois não seria possível ser cinegrafista e militante ao mesmo tempo. Ao final das manifestações, fui demitido”, revela Antunes. Guto Sisson, coordenador de comunicação social da TV Floripa, elogia o trabalho de Antunes mas
Alex Antunes
Demitido ganha Prêmio Vladimir Herzog
Brasil fracassa na garantia dos direitos humanos Tatiana Merlino da Redação
Cenas registradas por Alex Antunes, um dos vencedores do Vladimir Herzog 2005
contesta as justificativas da demissão. “O cinegrafista chegou ao ponto de discursar para os estudantes com crachá e camiseta da TV. Quando vi isso, tirei as imagens do ar. Antunes discutiu com a direção, levou as fitas e ficou uma semana sem aparecer. Foi demitido por seqüestrar as fitas da emissora e desaparecer do trabalho”, explica Sisson. Com relação às reuniões com a Cotisa, o diretor da TV conta que, três meses antes das manifestações, negociou com a agência de publicidade da empresa alguns programas sobre a história do transporte público na cidade, que não chegaram a ser feitos. “No início dos atos, o contato da agência esteve na TV e pediu uma reunião comigo, com a
apresentadora do telejornal e com o presidente da Cotisa, que, segundo ele, gostaria de explicar sua visão dos acontecimentos. Aceitei a reunião mas ela nunca aconteceu”, declara Sisson. Antunes revela que tirou as fitas da emissora quando soube da reunião com a Cotisa. Ele juntou o material com os arquivos produzidos pelos jornalistas Fernando Evangelista, Juliana Kroeger, Vinícius Moscão e pela equipe da página de internet Sarcástico (www.sarcastico.com.br), e fez o vídeo Amanhã Vai Ser Maior. Os interessados em obter uma cópia do vídeo podem escrever para amanhavaisermaior@riseup.net ou para alexandro.antunes@gmail.com.
A conclusão do relatório da Anistia Internacional, divulgado dia 25 de outubro, é contundente: o governo brasileiro fracassou na proteção aos direitos humanos porque não investiu política e financeiramente o necessário para reverter a situação constatada em 1996, quando foi criado o Plano Nacional de Direitos Humanos no Brasil. O relatório, apresentado à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), avalia o desempenho do Brasil no Pacto Internacional de Proteção aos Direitos Civis e Políticos, firmado em 1992. De acordo com Tim Cahill, pesquisador da Anistia Internacional no Brasil e responsável pelo relatório, o “ponto de virada oferecido pela criação do Plano Nacional, há quase dez anos, não resultou nas reformas necessárias para garantir que os brasileiros não sofram mais tortura, ameaças e morte nas mãos dos que deveriam protegê-los”. O pesquisador acredita que os governos que se sucederam sempre deixaram o “banco de trás da política para os direitos humanos”. Assim, a falta de vontade política e de investimentos continua matando milhares de brasileiros. Mesmo com a aprovação de uma lei proibindo a tortura, em 1997, poucas pessoas foram processadas. A tortura ainda é praticada por “agentes do Estado de maneira generalizada e sistemática”. Na maioria dos casos não é denunciada, nem investigada, tampouco punida, segundo denúncia da Anistia. O documento destaca que as principais vítimas da violência no país são homens jovens afro-brasileiros, em crimes muitas vezes praticados por policiais envolvidos em atividades corruptas e criminosas, como ‘esquadrões da morte’, responsáveis por atos de limpeza social e crime organizado.
O pesquisador da Anistia no Brasil destaca os assassinatos de 29 moradores de rua na Baixada Fluminense, em abril de 2005, e o homicídio da missionária estadunidense Dorothy Stang, como casos “em que houve indicações claras da presença ativa e contínua de ‘esquadrões da morte’ policiais em centros urbanos no Brasil”.
IMPUNIDADE Como exemplos de impunidade, o documento da Anistia cita quatro massacres que ficaram famosos, inclusive na comunidade internacional: Candelária, Vigário Geral (ambos em 1993, no Rio de Janeiro), Eldorado dos Carajás (em 1997, no Pará), e Carandiru (em 1992, em São Paulo). Nos dois do Rio de Janeiro, apenas alguns policiais acusados foram condenados. Em relação às mortes de 19 trabalhadores rurais no Pará e ao massacre de 111 presos na penitenciária paulistana do Carandiru, apenas os oficiais em cargos de chefia foram condenados. “Mesmo assim, nenhum está detido, enquanto apelam de suas sentenças”, diz o documento. O Plano Nacional de Segurança Pública do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, adotado em 2003, que previa reformas na política do setor, também recebeu sérias críticas. “Passados dois anos, não vimos a implementação dessas reformas. Além disso, o governo federal não fez quase nada para mudar a situação”. Sobre as reformas do governo para fiscalizar o porte de armas e o referendo para controlar a venda de armas, a Anistia acredita que “são passos importantes para tentar combater os níveis de violência armada”. Porém, para alcançar uma redução mais drástica de crimes com armas de fogo, a organização diz que “é preciso agir contra o tráfico ilegal de armas e o abuso do uso de armas por parte de policiais”.
Ano 3 • número 140 • De 3 a 9 de novembro de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO INTEGRAÇÃO
Alternativas para os povos da América Divulgação
3ª Cúpula dos Povos discute propostas alternativas à Alca e protesta contra a presença de Bush na região Igor Ojeda da Redação
A
té o dia 5, as atenções do continente americano estarão voltadas para o balneário de Mar del Plata, na Argentina. Nessa cidade, localizada a 400 quilômetros ao sul da capital Buenos Aires, acontecem, quase ao mesmo tempo, dois eventos de grandes proporções. Um deles é a 4ª Cúpula das Américas, dias 4 e 5, da qual participam mandatários de 34 países – Cuba, mais uma vez, foi deixada de fora – e que representa o risco do retorno das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), como mostra uma das versões do rascunho da declaração final da cúpula (veja texto abaixo). O outro evento é a 3ª Cúpula dos Povos da América, que vem reunindo, desde o dia 1º, organizações e movimentos sociais contrários à implementação da Alca. Eles discutirão alternativas de integração que levem em conta as aspirações dos povos do continente e mostrarão sua repulsa à visita do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush (veja reportagem na página 12). Convocada pela Aliança Social Continental (ASC), fórum criado em 1997 que reúne organizações e movimentos sociais progressistas de todos os países americanos, a Cúpula dos Povos de 2005 tem como objetivos “aprofundar o debate e a discussão sobre a construção de alternativas; o fortalecimento das resistências frente à Alca e aos demais tratados de livre-comércio, ao pagamento da dívida externa, à militarização e à pobreza; e mobilizar todo o continente contra a presença de Bush e suas políticas a nível mundial”. Segundo a assessoria de imprensa do encontro, mais de 500 organizações e movimentos sociais inscreveram cerca de 150 atividades. A estimativa era de que aproximadamente 10 mil pessoas participassem. O evento começou na tarde do dia 1º, com o painel “As Américas frente ao Imperialismo e o Livre Comércio”. A abertura oficial estava prevista para as 19h30 (horário de verão do Brasil) – após o fechamento desta reportagem – , com os votos de boas-vindas a cargo do Prêmio Nobel da Paz e ativista dos direitos humanos Adolfo Pérez Es-
Cartazes da Cúpula dos Povos conclamam a união dos movimentos sociais do continente e o repúdio à presença do presidente estadunidense George W. Bush
quivel, e com a presença dos músicos Silvio Rodríguez e Santiago Feliú, de Cuba, e Daniel Viglietti, do Uruguai. Dia 5, as resoluções debatidas durante a Cúpula serão apresentadas em conferência de imprensa.
PERSONA NON GRATA “Na Cúpula oficial, dos chefes de Estado, estará sendo delineada uma retomada das negociações da Alca. Então, para nós, a idéia é o reforço de nossa resistência a esse acordo, mas também o reforço na oposição à presença do Bush na nossa região e sua militarização promovida pelos Estados Unidos”, diz Fátima Mello, da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip). Dia 4, as organizações e os movimentos sociais participantes da Cúpula dos Povos deixarão claro o seu repúdio à presença de Bush na Argentina. Na parte da manhã, está
prevista a Assembléia dos Povos da América, com a concentração para a mobilização contra o presidente estadunidense. Além de Mar del Plata, estão previstos protestos em outras cidades argentinas. Para se ter uma idéia do porte das manifestações, a Central de Trabalhadores Argentinos (CTA), uma das maiores centrais sindicais do país, declarou uma paralisação nacional no dia da chegada de Bush.
ALTERNATIVA BOLIVARIANA Composta por uma rede de movimentos que ajudaram a barrar, até o momento, a Alca, a 3ª Cúpula dos Povos, cujo formato segue o modelo do Fórum Social Mundial, também debaterá durante cinco dias alternativas ao modelo de integração neoliberal proposto pelos EUA. “É um modelo que insiste em se impor porque, mesmo a Alca estando falida, morta, há outros tratados de livre comércio. Inclusive alguns
com elementos de militarização e segurança, como é o caso da Aliança para a Segurança e a Prosperidade da América do Norte (Aspan)”, alerta Gonzalo Berrón, coordenador da Aliança Social Continental. Entre as alternativas, destaca-se a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), acordo proposto pelo presidente venezuelano Hugo Chávez para uma integração que leve em consideração as necessidades de cada país. “De um lado, está o projeto imperialista dos EUA, ao qual se associam as classes dominantes de nossos países, que pressionam os governantes a aderir à política exterior estadunidense. Do outro, o projeto da Venezuela, que Chávez vem sustentando desde o Fórum Social Mundial de Porto Alegre deste ano e para o qual o capitalismo não dá resposta às necessidades dos povos, sendo preciso pensar nos termos de um socialismo do
século 21”, explica o economista Júlio Gambina, da Associação pela Taxação das Transações Financeira e Ação Cidadã da Argentina (Attac-Argentina).
AÇÕES CONCRETAS Além do reforço nos laços entre os movimentos da região, a Cúpula dos Povos servirá também para delinear ações conjuntas. Segundo Fátima, vai-se discutir, por exemplo, a integração das lutas contra os diversos tratados de livre-comércio no continente. Do encontro sairá ainda, de acordo com Gambina, um programa de resistência à conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que se realizará em dezembro, em Hong Kong, e um plano de ação vinculado a várias campanhas, entre elas o rechaço ao pagamento das dívidas externas públicas de nossos países e especialmente ações contra a militarização da região.
Para quem acreditava que os Estados Unidos tinham desistido da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a declaração do secretário de Comércio estadunidense, Carlos Gutiérrez, dia 28 de outubro, no jornal argentino La Nación, serviu para demonstrar de uma vez por todas o principal objetivo da 4ª Cúpula das Américas, encontro criado em 1994 pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Este ano sob o lema “Criar trabalho para enfrentar a pobreza e fortalecer a governabilidade democrática”, o evento foi criado em 1994 justamente para fomentar a Alca. “A Cúpula das Américas será uma grande oportunidade para impulsionar a Alca. Se nos unimos, o comércio ajuda o crescimento, a redução da pobreza, o desenvolvimento social. E nossa tarefa é promover o livre-comércio até que todos se convençam de seus benefícios”, disse Gutiérrez. E acrescentou: “O objetivo é entrar em acordo com toda a região junta, unida. Mas se isso não for possível, avançaremos com os acordos bilaterais”. De acordo com Fátima Mello, da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), o cenário
Arquivo Brasil de Fato
Alca, questão de honra para os EUA mais tardar em abril de 2006 para retomar as negociações da Alca”. O conteúdo da Declaração de Mar del Plata, que vem sendo discutido há meses, seria debatido até o dia 3 por representantes dos 34 países participantes.
OUTROS TEMPOS
O presidente argentino Nestor Kirchner dá as boas-vindas aos chefes de Estado
é muito preocupante, “porque existem países querendo de fato reintroduzir a Alca na declaração final. No rascunho, há fortemente a proposta dessa inclusão”. De fato, na 7ª versão do rascunho do Projeto de Declaração e Plano de Ação de Mar del Plata, obtido pelo Brasil de Fato, há um parágrafo dedicado ao tema. Embora enfatizem a necessidade de um “acordo equilibrado”, países como Chile,
Canadá, Brasil, Argentina, Peru, além de blocos econômicos como Comunidade e Mercado Comum do Caribe (Caricom, na sigla em inglês) e Mercado Comum do Sul (Mercosul) propõem colchetes (termo diplomático que significa os pontos ainda em discussão) que mostram o desejo do retorno das discussões. Um exemplo: “Instruímos nossos ministérios responsáveis pelo comércio a se reunir o
No entanto, apesar da boa vontade de alguns países com a Alca e do perigo dela ainda ser implementada, essa hipótese é pouco viável, na opinião de Gonzalo Berrón, coordenador da Aliança Social Continental. “Temos que ficar de olho no que vai acontecer em Hong Kong, nas negociações da conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio. Dependendo do resultado, os países vão tentar investir ou em acordos do tipo da Alca, ou em acordos bilaterais”. Júlio Gambina, da Associação pela Taxação das Transações Financeira e Ação Cidadã da Argentina (Attac-Argentina), concorda: “Acredito que a Alca não tem nenhuma possibilidade de ser implementada com as condições atuais e por esse motivo os EUA se apóiam nos tratados de livre-comércio bilaterais”. Na Cúpula anterior, que aconteceu em abril de 2001 em Quebec
(Canadá), a tarefa dos EUA era bem mais fácil. O modelo econômico neoliberal era praticamente um consenso entre os países americanos, e o processo da Alca dava seus primeiros passos. “Desta vez, se anuncia a polarização entre Bush o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e as iniciativas de integração regional que apresenta – da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) à Petrosul, passando pela TV Sul, entre outras. O que já dá idéia de como evoluiu a situação do continente. Hoje a polarização se dá entre projetos diferentes e contrapostos de integração regional”, analisa o sociólogo Emir Sader, para quem a América Latina está mudando rapidamente “e não na direção que o governo dos EUA desejaria”. Durante a 4ª Cúpula das Américas, a Alba deverá ser novamente defendida por Chávez, apontado por Bush e seu governo como fator de desestabilização no continente. Essa tática – que, segundo Sader, tem sido rechaçada até por governos considerados moderados –, somada “às reações continentais às políticas neoliberais e de guerra de Washington, tem levado a um isolamento cada vez maior dos EUA”. (IO)
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INTERNACIONAL VENEZUELA
Um povo que conquista sua cidadania Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
B
airro 23 de Janeiro, periferia de Caracas. Quem entra na casa de Sinforoza das Mercedes, construída em uma das ladeiras do morro, imediatamente se depara com um diploma envolto em uma moldura de vidro preso à parede. Essa venezuelana de 63 anos não é médica, tampouco advogada. O diploma, exibido com orgulho, mostra que nesta casa, há menos de dois anos, havia uma analfabeta. Sinforoza é uma das milhares de venezuelanas alfabetizadas entre julho de 2003 e outubro de 2005. A epopéia, disse o presidente Hugo Chávez, permitiu ao país ser declarado território livre de analfabetismo pela Organização da Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A receita para erradicar o flagelo foi definir educação como prioridade de Estado, associar conhecimento acadêmico com sabedoria popular, e solidariedade interna e externa. A Missão Robinson, programa que erradicou o analfabetismo, teve início em julho de 2003, baseado no método “Yo, sí, puedo”, desenvolvido pelo Instituto Pedagógico Latino-Americano de Cuba, adaptado ao contexto venezuelano.
A DIFERENÇA Sinforoza conta que nunca pôde estudar. Pequena, ajudou a mãe a criar seus nove irmãos. Casada, ficou viúva quando os seis filhos eram pequenos. “Como pensar em estudar? Tinha que trabalhar para dar comida a eles”, conta. “Depois, não pensei mais nisso. Não fazia diferença. Agora que sei ler e escrever, vejo a diferença que faz. Mudou a minha vida”, diz. Entre os alfabetizados incluemse 70 mil indígenas que receberam educação bilingüe. Os deficientes visuais e auditivos e a população carcerária também foram incluídos no programa. Além de vontade política, a sociedade foi convocada a apoiar o programa. Após o anúncio da Missão, mais de 125 mil pessoas se ofereceram como voluntários. À época, o requisito básico para ser facilitador era ter o primeiro grau completo. “Quando o comandante convo-
Marcelo Garcia
Educar é muito mais do que ensinar a ler e a escrever; é transformar o trabalhador em agente político
Novos rumos
O presidente Hugo Chávez comemora os resultados da Missão Robinson, que erradicou o analfabetismo da Venezuela
cou a participação de todos, imediatamente me apresentei. Era hora de sair do banco da universidade e ajudar na formação de outros compatriotas”, comenta a estudante de técnicas agropecuárias, Lilian Oropeza. Ela, que após um ano de trabalho voluntário passou a integrar a Comissão Presidencial da Missão Robinson, afirma que a alfabetização contribuiu inclusive para melhorar a saúde da população. “No campo, grande parte das enfermidades resultava da falta de conhecimento. Hoje, a incidência caiu para 70%”, acrescenta.
Assim, Castro foi aprender a ler e escrever. “Hoje, posso ir a Caracas sem medo de me perder. Sei ler os avisos. Devagarzinho ainda, mas eu chego lá”, emociona-se, enquanto prepara a terra para a próxima safra.
RAPIDEZ O método trazido pelos cubanos parte da premissa de que os adultos, pela sua história e vivência, podem aprender mais facilmente do que as crianças, a partir da associação da sua realidade com o aprendizado. A maioria dos adultos que ingressaram no programa sabia calcular, mas não sabia ler. Apoiados nas aulas via televisão, os facilitadores auxiliam na associação entre o conhecido (números) e o desconhecido (letras). E em sete semanas um adulto pode ser alfabetizado. “Quero aprender cada vez mais. Como era possível eu não saber que Antônio José de Sucre foi um dos heróis latino-americano? Agora conheço a nossa história”, orgulha-se Sinforoza. Depois de alfabetizada, ela passou à Missão Robinson II que agrega disciplinas regulares como História, Geografia, Espanhol e Matemática. O programa de alfabetização serviu de esteio para a criação e con-
ADAPTAÇÃO A Missão também foi apoiada pelas Forças Armadas, cuja tarefa era bater de porta em porta, identificar a população analfabeta e conscientizá-la para se incorporar ao programa. O horário das aulas foi adaptado à realidade de cada comunidade para facilitar o seu acesso, foram organizadas turmas pela manhã, tarde, noite, ou nos fins de semana. Em uma casa de pau-a-pique situada em uma das regiões litorâneas do país, Ocumare de Tuy, Estado Miranda, o agricultor Juan Castro, de 53 anos, conta que a jornada de trabalho o impedia de ir à escola.
solidação de outras missões sociais, o sustentáculo da revolução bolivariana. A facilitadora Maglenys Salas conta que, na sala de aula, foi possível identificar outros problemas que passaram a ser atendidos por outros programas sociais. “Muitos não enxergavam bem e não tinham recursos para comprar óculos”, exemplifica. O programa de saúde Bairro Adentro foi integrado à alfabetização para o atendimento oftalmológico. Cuba doou à Venezuela 300 mil óculos para distribuição à população.
PRÓXIMOS PASSOS Alfabetizados, a grande maioria dos venezuelanos se incorpora ao novo modelo econômico e social impulsionado pelo governo, de construção de uma economia solidária e endógena, assentada na criação de cooperativas. Enquanto era alfabetizada, Lina Ramos, integrante de uma ocupação de terra no Estado Guárico, soube da Missão Vuelvan Caras (de capacitação técnica para formação de cooperativas). “Fizemos o curso, criamos uma cooperativa e decidimos ocupar terras,” conta Lina. Ela é o exemplo do que o educador Paulo Freire chamava de “a transformação do trabalhador
A missão não pára na alfabetização. A nova meta anunciada pelo presidente Chávez quer garantir a formação até o sexto ano e incentivar o processo de interpretação de textos com incentivo à leitura. “O primeiro poder que deve ter o povo é o conhecimento”, afirma. Uma vez por mês, uma biblioteca básica é distribuída gratuitamente à população, incluindo até mesmo obras de Machado de Assis. Entre os autores clássicos, recentemente foi distribuído Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, massificado nas praças Bolívar de todo o país. Visando a integração latino-americana e a efetivação da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), Chávez propõe a extensão da Missão Robinson para a Bolívia e a República Dominicana. (CJ)
como agente político”, a partir do conhecimento. “Nossa idéia é colocar em prática o modelo de desenvolvimento endógeno que o presidente fala”, explica Lina, debaixo de uma barraca de lona, na fazenda La Vaca, de 33 mil hectares, considerada improdutiva pelo governo. “Agora sim podemos”, reafirma.
Simón Rodríguez Foi um dos intelectuais latinoamericanos mais importantes do século 19, no tocante à construção de um modelo de educação popular. Ele foi o principal mentor do libertador Simón Bolívar. O nome da Missão Robinson é tomado ao seu pseudônimo, Samuel Robinson, que usou do outro lado das fronteiras venezuelanas. Ele defendia a combinação da educação com o trabalho, com a promoção de escolas técnicas e agrícolas. Com Bolívar e Ezequiel Zamora (o general que lutava por terras e homens livres), Rodríguez integra a árvore das três raízes que condensam o pensamento da revolução bolivariana.
ANÁLISE
Angel Guerra Cabrera Na semana passada escrevi que, no mundo atual, é na América Latina que se dá a batalha decisiva contra o imperialismo. Mencionei os movimentos populares e os novos governos com orientação mais independente que, unidos à jovem revolução bolivariana e à permanência da revolução cubana, mudaram a correlação de forças em nossa América. Não existe situação igual em nenhuma outra região do planeta. Nesse quadro, é de singular transcendência, por sua enorme colaboração com a luta antiimperialista, o ascenso ao governo da Venezuela do movimento popular liderado por Hugo Chávez. Sempre me chamou a atenção que, quando se fala dos chamados “novos movimentos sociais” que surgiram frente às políticas neoliberais das últimas décadas, é raro ver mencionado o único deles que conseguiu ascender ao poder, defendê-lo da contra-revolução e do imperialismo, e iniciar a construção de “outro mundo possível”. Esse que é reivindicado pelos que lutam contra a globalização neoliberal, quase sempre solidários com a Venezuela. E a experiência bolivariana
é uma referência relevante por ter propiciado o acesso das maiorias à política, por suas conquistas sociais e pelo impulso dado à unidade latino-americana e à luta pela justiça e pela paz no mundo. Nas palavras de Chávez: “O protesto passou a ser proposta, a proposta passou a ser governo e o governo passou a ser revolução”. O protesto e a proposta, ainda que tenham raízes históricas remotas na empreitada inconclusa de Simón Bolívar, se referem, em um passado recente, ao caracazo de 1989, rebelião antineoliberal de massas, e à insurreição cívico-militar patriota de 1992, encabeçada pelo então comandante dos pára-quedistas. Derrotada militarmente, no âmbito político acabou reunindo uma legião de simpatizantes em torno do oficial encarcerado. Entre eles, aqueles que tinham protagonizado a mencionada rebelião contra o pacote econômico do social democrata Carlos Andrés Perez, reprimida ferozmente. Nove anos depois do caracazo, Chávez conquistava a Presidência com ampla margem, na primeira de nove consultas eleitorais enfrentadas vitoriosamente pelo movimento bolivariano. Na Venezuela, que no dia 28 de outubro se declarou território livre
Marcelo Garcia
Do protesto à proposta, ao governo, à revolução
Na Venezuela de Chávez, lucro da estatal de petróleo reforça programas sociais
do analfabetismo, o lucro da empresa estatal de petróleo e o aumento da arrecadação tributária foram destinados principalmente a programas sociais e ao desenvolvimento. Depois da derrota da greve dos gerentes pró-ianques (2003) da PDVSA, a venezuelana foi a economia latinoamericana que mais cresceu. Vinte mil médicos cubanos levaram assistência sanitária aos antes marginalizados, e a metade da população estuda por um sistema de educação continuada para adultos.
O desemprego foi consideravelmente reduzido, a inflação acabou e foi criada uma rede varejista que vende mais barato. Apesar da tenaz oposição da burguesia local e dos latifundiários, a reforma agrária avança, e em três anos foram recuperados mais de 3 milhões de hectares e foram entregues terras a mais de 180 mil famílias organizadas em empresas de produção social, que recebem créditos do Estado. O atendimento de saúde triplicou e está sendo construída uma
rede de policlínicas comunitárias. Milhões de dólares são destinados para equipar os hospitais com a mais alta tecnologia, para construir uma grande siderúrgica estatal e para realizar obras de infra-estrutura de transportes. A Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), projeto de integração embasado na solidariedade e no aproveitamento, para benefício mútuo, das potencialidades e das fragilidades dos países que dela participam, tem expressões muito concretas em acordos com países sul-americanos e do Caribe. Além do avançado processo integracionistas entre Cuba e Venezuela, o maior passo é a Petrocaribe, que salvou muitos Estados da bancarrota diante das altas cotações do petróleo bruto – ao proporcionar preços e fretes preferenciais, grandes facilidades de pagamento, um esquema de armazenamento e ao destinar recursos para desenvolver programas sociais. Duzentos mil médicos latino-americanos serão formados gratuitamente, em um programa venezuelano-cubano nos próximos dez anos. Não é por acaso que o próximo Fórum Social as Américas vai ser em Caracas. Angel Guerra Cabrera é articulista do La Jornada
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INTERNACIONAL VENEZUELA
Como erradicar o analfabetismo P
ara transformar a realidade, há que escolher um caminho. O governo venezuelano optou por romper com a agenda neoliberal e eleger como prioridade o investimento social. Um dos resultados foi a alfabetização de 1.482 milhão de pessoas em um ano e meio. Em entrevista ao Brasil de Fato, Aristóbulo Istúriz, ministro da Educação, Cultura e Esporte da Venezuela, afirma que a ruptura com o modelo privatista da educação e a reestruturação do orçamento foram os elementos determinantes para a eliminação do analfabetismo no país. “Somente uma nação autônoma e livre pode orientar o seu orçamento para o social,” diz o ministro.
Arquivo Brasil de Fato
Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
Marcelo Garcia
Soberania é a arma do governo Chávez que possibilitou a alfabetização de 1,5 milhão de pessoas em 18 meses
Quem é: Aristóbulo Istúriz, ministro da Educação, Cultura e Esporte da Venezuela, é professor do ensino fundamental, com especialização em História e Ciências Sociais.
Brasil de Fato – Como a Venezuela conseguiu erradicar o analfabetismo? Aristóbulo Istúriz – Temos que fazer uma reflexão política importante. Devemos nos perguntar se todos os países latino-americanos estão se esforçando para erradicar o analfabetismo e por que a Venezuela teve êxito. Acredito que se ainda estivéssemos transitando no modelo neoliberal não teríamos conseguido o mesmo resultado. O analfabetismo é conseqüência de um processo histórico de exclusão, característico do neoliberalismo. Somente quando o povo venezuelano, com o governo revolucionário de Hugo Chávez, passa a caminhar contra aquela corrente é que a Venezuela consegue avançar.
Revolução bolivariana promovida pelo presidente Hugo Chávez tem a educação como prioridade
cação pública e privada. Nunca houve um decreto determinando a privatização da educação. No entanto, o desmonte da educação se deu com a deterioração do ensino público. Com isso, a população se via obrigada, por mais pobre que fosse, a buscar a educação privada. E o número de excluídos cresceu a cada dia. Pouco a pouco, o número de ingressos nas escolas foi diminuindo. Ao avaliar a educação naquele período, o que vemos é o aumento da privatização e, por conseqüência, o desenvolvimento de uma educação elitista. Só quando o povo decide que a educação é um direito humano fundamental, e nós a assumimos com um enfoque de direito para combater a pobreza, então a educação se converte em uma obrigação real do Estado, que precisa massificá-la.
BF – Qual era o número de analfabetos antes do governo Chávez? Istúriz – Na década anterior a Chávez, foram alfabetizadas 70 mil pessoas. Em um ano e meio, o atual governo conseguiu alfabetizar 1.482 milhão de compatriotas. Temos 1.466 milhão cursando o ensino médio, mais de 450 mil na Missão Sucre, incorporados à educação superior. Até 2002, o Censo apontava 1,2 milhão de analfabetos. Isso significa que alfabetizamos mais de 99% da população.
BF – Quais são as bases do novo modelo educativo? Istúriz – Vimos que deveríamos aperfeiçoar o modelo educativo e trabalhar para garantir educação para todos. Muitos compatriotas nunca foram à escola por serem pobres. Essa realidade contribuiu para estimular os voluntários que passam a participar de um modelo de educação de inclusão. O presidente tomou quatro medidas para frear o caminho por onde caminhávamos: o fim da cobrança da matrícula nas escolas públicas, o programa de alimentação escolar, a construção de bibliotecas e esco-
BF – Como foi possível o avanço? Istúriz – A diferença entre mais de um milhão em um ano e 70 mil durante dez anos está relacionada com o modelo político e com a vontade política. Enquanto estávamos impregnados pelo neoliberalismo, o impacto sobre a educação era tremendo, com acentuada divisão entre a edu-
las bolivarianas e o aumento do orçamento.
BF – Qual o orçamento destinado para a educação? Istúriz – Nós aumentamos os recursos para educação de 2,7% do PIB para 7% do PIB. Somente um país autônomo, livre, pode orientar o seu orçamento para o social. Para nós isso não significa gastos, e sim investimento na nossa gente. Mas sem vontade política não é possível qualquer mudança.
a universidade tudo isso conforma o sistema de educação bolivariano. As missões se inter-relacionam porque não se pode conceber educação sem saúde, por isso a Missão Bairro Adentro. Não se concebe sem a capacitação e a organização para a produção, por isso a Missão Vuelvan Caras. Não se concebe sem a alimentação, para isso está o Mercal, que beneficia 16 milhões de pessoas. Não concebemos um sistema educativo que não inclua os excluídos. Estamos em um processo de transição no qual ainda convivem os modelos velho e novo. Assumimos um novo conceito de educação fundamental, criamos escolas e liceus bolivarianos e estamos em um processo de transformação também do ensino superior. Criamos a Universidade Bolivariana e queremos que ela esteja onde as pessoas estão, e que atenda às necessidades da comunidade. Estamos criando as aldeias universitárias para que o ensino superior chegue aos pequenos municípios para dar resposta às demandas.
BF – De que maneira a Missão Robinson, de alfabetização, contribuiu para a criação e consolidação das demais missões sociais? Istúriz – As missões são um subsistema dentro do processo educativo, que contemplam a alfabetização e a pós alfabetização. Missão Robinson para alfabetizar, Missão Robinson II para o ensino médio. Missão Ribas para o segundo grau e Missão Sucre para
BF – Por que o governo venezuelano decidiu adotar o método cubano, Yo, sí, puedo (Sim, eu posso)? Istúriz – Porque é um método que vai do mais complexo ao mais simples. Do conhecido, ao desconhecido. Aplica o conceito andragógico segundo o qual os adultos conhecem os números, mas desconhecem as letras. Aproveita a experiência de vida dos
BF – E depois disso? Istúriz – Transformar a educação pública implica em ter uma política agressiva de recuperação, reestruturação e criação de infraestrutura. Em recobrar a auto-estima do docente que estava no subsolo. O currículo é muito importante. Não podemos permitir que venezuelanos saiam das escolas e continuem reproduzindo os valores neoliberais, segundo os quais, o ter é mais importante do que o ser. Estamos determinados a criar um ser social solidário, criativo.
adultos para acelerar o processo de aprendizagem. Pela associação de letras e números se facilita a compreensão. Em sete semanas e meia, um adulto aprende a ler e escrever. Um dos aspectos importantes foi incorporar a tecnologia da comunicaAndragogia – É a arte e ciência de ção, o televisor, orientar adultos a o videocassete, aprender. O modelo o professor no andragógico é um método de formação vídeo acompade adultos que se nhado de um caracteriza por uma na educação horizontal. facilitador Procura-se garantir sala de aula. O a formação de couso da tecnomunidades de estudo interdependentes logia permitiu o que possibilitem alto massificar grau de participação método. Com de seus membros. a ajuda dos assessores cubanos e das Forças Armadas conseguimos implementar o programa. BF – De que maneira o Estado associa a educação com a consolidação da revolução bolivariana? Istúriz – A educação e a organização social vão gerando consciência política. Todas as missões estão cruzadas. Dificilmente vamos ver um estudante da missão de alfabetização que não esteja integrado aos Comitês de Terra, urbano ou rural, na Contralodoria Social ou qualquer outra organização de bairro. Essa é a maneira de dar sustentação ao processo e torná-lo irreversível. BF – O que representa para a América Latina essa conquista do povo venezuelano? Istúriz – Significa que todos podemos. Basta ter vontade política. A Venezuela é o exemplo de que sim, podemos fazer mudanças.
OLIGOPÓLIO DA MÍDIA
Claudia Jardim e Jorge Pereira Filho de Caracas (Venezuela) e da Redação O telefone toca. Quem atende é Nita Freire, mulher do educador Paulo Freire cujo compromisso com a superação do analfabetismo dispensa comentários. Após as apresentações, vem a pergunta: “O que a senhora acha do anúncio feito pelo presidente Hugo Chávez declarando a Venezuela como território livre do analfabetismo?” A resposta é um curto silêncio, seguido de espanto e alegria. “Sensacional, que notícia maravilhosa. Estou arrepiada. Não sabia disso, me manda mais informações.” Em um país cuja imprensa está concentrada em grupos empresariais, não causa espanto a surpresa de Nita. Como ela, milhões de brasileiros vivem na pele as con-
Marcelo Garcia
A serviço da desinformação
Na Venezuela e no Brasil, mídia a serviço do capital e da alienação
seqüências do monopólio das comunicações no Brasil e da espiral do silêncio que os donos da mídia empresarial impõem a tudo aquilo que contrarie seus interesses. Sim, é aquela mesma tese que
os colunistas da grande imprensa convencional e alguns intelectuais insistem em afirmar que não existe. “Teoria da conspiração”, dizem, para depois cultuarem a suposta neutralidade e objetividade da mídia.
A imprensa comercial, por exemplo, considera que não merece uma única reportagem o anúncio de que um país vizinho conseguiu erradicar o analfabetismo em apenas um ano e meio. Essa foi a avaliação que fizeram os responsáveis pelos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e pelas revistas Isto É, Época e Veja – apenas para relacionar as maiores publicações. Calaram-se e desinformaram seus leitores sobre um outro modelo, sobre uma outra possibilidade de políticas que resultem na superação de uma das maiores marcas do atraso e da desigualdade social brasileira: a persistência do analfabetismo. O interesse público do tema é indiscutível. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 13,3% dos brasileiros com idade superior a 15 anos são
analfabetos, ou seja, não sabem ler e escrever um bilhete simples. A carência educacional é maior ainda no Nordeste: 26% de analfabetismo. É verdade que essa herança de um modelo de sociedade autoritária e elitista data do início da história brasileira. Mas a gestão do governo Lula não alterou essa situação. Como publicado na edição 132 do Brasil de Fato, um estudo do 5º Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf) constatou que não houve rupturas na política educacional. A pesquisa foi mais específica e apontou, ainda, que 37% dos jovens e adultos brasileiros conseguem ler apenas títulos ou frases, localizando uma informação específica. “Temos um dos métodos mais extraordinários para fazermos a alfabetização, criado pelo Paulo Freire, mas não há vontade política”, constata o sociólogo Emir Sader.
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INTERNACIONAL BUSH NO BRASIL
Vem aí uma persona non grata Luís Brasilino da Redação
O
Brasil se prepara para receber George W. Bush, presidente dos Estados Unidos. O feitiço voltou-se contra o feiticeiro e o mandatário estadunidense que, outrora, se dedicava a apontar “eixos demoníacos” pelo mundo tornou-se, ele sim, a personificação contemporânea do mal. Segundo Antonio Carlos Spis, um dos organizadores dos atos programados pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) contra a presença do estadunidense, Bush pode ser considerado o maior assassino da história do planeta, tanto pelas intervenções militares que protagonizou quanto pela disseminação de um clima de belicismo global.
PROBLEMAS O economista e sociólogo Theotônio dos Santos, professor da Universidade Federal Fluminense, avalia que a figura de Bush se transforma cada vez mais no símbolo do mal. “Do mal mesmo, daquele que age no sentido de destruir, de querer impor e intervir aonde seja. Ele traz consigo a imagem do poder destrutivo, perigoso e maldito”, analisa. Para Spis, também secretário de comunicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), o imperialismo de Bush não se restringe à intervenção econômica e política.
Don Barleta/Charges Latuff
Movimentos sociais protestam contra a visita do títere que chega dia 6 para se reunir com o presidente Lula
Vai pra casa, Bush! Belo Horizonte – Dia 7, concentração na Praça Sete, às 16 h. Brasília – Dia 4, concentração na Catedral de Brasília, às 9 h, e marcha até a Embaixada dos Estados Unidos. Campo Grande – Dia 4, a partir das 8h30, panfletagem no cruzamento das avenidas Afonso Pena e 14 de Julho, seguida de marcha até a Praça Ari Coelho. Rio de Janeiro – Dia 4, em frente ao consulado estadunidense, concentração na Cinelândia, às 16 h.
A receita perfeita para o fascismo dos EUA: um governo criminoso, uma mídia corrupta e uma população em coma
O sindicalista diz que, quando ele não consegue o que quer por bem, consegue por mal. “Lança mão do militarismo, assassinando pessoas pelo mundo afora. Se posicionar contra isso é fundamental. Precisamos reafirmar nossa soberania e deixar claro que não queremos, nem aceitamos, que, além dessas visitas protocolares, possam acontecer prejuízos ao nosso petróleo, ao meio ambiente, às florestas, à água e outros recursos objeto da cobiça mundial e, principalmente, da cabeça de um insano como o Bush”, afirma Spis. (veja box com os lo-
cais das manifestações) Theotônio dos Santos avalia que o encontro de Bush com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode desaguar na pressão ao governo brasileiro para que assuma papel estabilizador na América Latina. A situação está complicada para Bush na região. “Seu poder é fraco. Não no sentido de quem não pode devastar, mas sim por não estar em condições de dar seqüência aos seus objetivos”, opina o professor. Para ele, a tensão dos Estados Unidos com a Venezuela tem crescido. “Já teve golpe de Estado,
uma tentativa de derrubada do governo via referendo revogatório, locaute das elites e, até agora, tudo fracassou. Eles não têm uma perspectiva clara do que podem fazer lá”, raciocina Santos. A seu ver, uma invasão teria um custo demasiado alto e se torna quase impossível nas circunstâncias atuais. Os estadunidenses já têm seus problemas no Iraque, no Afeganistão, além de potenciais confrontos na Síria, no Irã, na Coréia do Norte. Por isso, Bush espera que o governo brasileiro possa conter em parte a radicalização venezuelana.
Salvador – Dia 4, na Praça da Piedade, começa com a queima de um grande boneco de Bush às 9 h. São Paulo – Dia 5, às 14 h, concentração no Bank Boston da Avenida Paulista (número 800) e caminhada até o McDonald´s.
Há também a Bolívia, onde o cocaleiro Evo Morales, deputado pelo Movimento ao Socialismo (MAS), preocupa os Estados Unidos. Ele é o grande favorito à sucessão presidencial e promete uma aproximação com o presidente Hugo Chávez. Outro ponto deve ser a presença militar dos EUA na Colômbia e no Paraguai, questão que incomoda principalmente as Forças Armadas do Brasil.
ANÁLISE
Os principais feitos de George W. Bush
O assassino vem para impor a Alca José Arbex Jr.
2000 – Perdeu as eleições presidenciais para Albert Gore, então vice-presidente dos Estados Unidos. Graças ao controle do seu partido – Republicano – sobre o aparato eleitoral do Estado da Flórida, o resultado foi fraudado. O golpe foi ratificado pela Suprema Corte, também dominada por republicanos. Em 20 de janeiro de 2001, Bush foi empossado presidente dos Estados Unidos. Setembro de 2001 – O início de seu governo foi marcado pelo corte de impostos dos ricos e pela queda na sua popularidade. Os atentados do dia 11 de setembro resultaram em um aumento estrondoso de seu poder, principalmente após a aprovação do Ato Patriota, retirando direitos civis e conferindo poder ao governo. Outubro de 2001 – Em uma jogada que lhe deu enorme popularidade, invadiu o Afeganistão para “capturar” o líder terrorista Osama Bin Laden, supostamente responsável pelos atentados. A intervenção nesse país continua até hoje, sem que Bin Landen tenha sido preso. O país asiático vive um caos social, com conflitos diários entre tropas estadunidenses e afegãs. Março de 2003 – Depois de uma campanha mentirosa de apro-
ximadamente seis meses, Bush passou por cima de resolução da Organização das Nações Unidas e invadiu o Iraque sob a alegação de que Sadam Hussein tinha armas de destruição em massa. Até hoje, já morreram 30 mil iraquianos civis, 2 mil soldados estadunidenses (a maioria pobres e negros) e nenhuma das alegações de Bush para justificar a invasão foi comprovada. 2004 – A pobreza nos Estados Unidos cresceu pelo quarto ano consecutivo. Segundo o Departamento de Censo estadunidense, apesar do crescimento econômico, em 2004 os EUA tinham 37 milhões de pobres, 1,1 milhão a mais que no ano anterior. 2005 – Bush se recusou a assinar o Protocolo de Kyoto, destinado a reduzir a emissão de gás carbônico na atmosfera e, conseqüentemente, o aquecimento global. O Golfo do México teve um dos anos com o maior número de furacões de sua história e um deles, o Katrina, devastou a cidade de Nova Orleans, matando milhares de negros e pobres. As obras para impedir que isso acontecesse custariam 2 bilhões de dólares, mas Bush optou por destinar 300 bilhões de dólares para o Iraque. (LB) CMI Boston
Em seu próprios país, Bush é visto como persona non grata
Imerso até o pescoço em novo escândalo político nos Estados Unidos, o presidente George W. Bush deverá participar da 4ª Cúpula das Américas, na Argentina, nos dias 4 e 5, quando também pretende visitar o Brasil. “Na Argentina há gente contrária à presença de Bush. Eu sou o primeiro, ele nos prejudicou. Para mim ele é um assassino, nos despreza e nos pisa. Vou com minha filha encabeçar essa marcha”, declarou o ex-craque Diego Maradona, dia 27 de outubro, durante um programa de TV realizado em Cuba, certamente refletindo os sentimentos da imensa maioria das nações latino-americanas. Como na Argentina, também no Brasil foram convocadas manifestações de repúdio à presença de Bush. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, já anunciou que pretende também participar da Cúpula dos Povos, evento paralelo organizado por movimentos populares e sociais das Américas. Os Estados Unidos pretendem acelerar os planos de implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mesmo que os acordos eventualmente assinados pela cúpula não sejam formalmente designados como Alca. Um claro indício da determinação de Bush foi a aprovação da Área de Livre Comércio da América Central (Cafta), em agosto, pelo Congresso estadunidense. Para aprovar o acordo, a Casa Branca teve que vencer grandes resistências, até mesmo entre os congressistas republicanos (partidários de Bush), como comprova o resultado final da votação: 217 a 215 votos. As resistências ao acordo refletem o temor dos trabalhadores estadunidenses de perder os seus empregos, com o deslocamento de fábricas e montadoras para os países latino-americanos, onde os salários praticados são muito menores, as vantagens fiscais muito maiores e as empresas mais facilmente burlam as leis trabalhistas, de proteção ao ambiente e outras. Ao mesmo tempo em que o
“livre-comércio” estende os seus tentáculos a toda a América Latina, o setor militar também projeta a sua sombra. Após a instalação de bases militares estadunidenses no sul da Argentina, agora é a vez do Paraguai, cujo governo aceitou a realização de “trocas militares bilaterais” com os Estados Unidos, inicialmente entre 1º de junho de 2005 e 1º de dezembro de 2006. Nesse período, Washington enviará ao Paraguai 400 militares que participarão de treze “missões”, com armas, equipamentos e munição. Uma das “missões” consistirá no treinamento de um contingente de elite da milícia paraguaia na luta contra o terrorismo e o narcotráfico. O pretexto, no caso, é a vigilância da Tríplice Fronteira, área que, segundo Washington, serve de “santuário” a organizações narcoterroristas, incluindo células das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e da Al-Qaeda. O detalhe é que a região geográfica cedida para a instalação da base fica sobre o Aqüífero Guarani, já considerado absolutamente estratégico como fonte de água potável, cujas reservas são suficientes para abastecer o mundo por três séculos ou o
Brasil por três milênios. Entre 16 e 18 de agosto, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld fez uma visita ao Paraguai e ao Peru, para discutir, entre outras coisas, a “instabilidade” na Bolívia, um controle mais rigoroso das fronteiras com a Venezuela (no caso peruano) e a necessidade de “estreitar os vínculos de colaboração” com Washington. A visita de Bush, portanto, dá prosseguimento a uma escalada do processo de recolonização do hemisfério. Apesar disso, dentro de seu próprio país o presidente vive um “inferno astral”, com a recente comprovação de que Lewis Libby, um dos principais assessores do vice-presidente Dick Cheney, não passa de um mentiroso e dedo-duro: foi o responsável pelo “vazamento” proposital para a imprensa da identidade de uma agente da CIA, por represália política. O escândalo também envolve Karl Rove, o principal conselheiro de Bush Júnior. O escândalo, mais uma vez, reitera o que o mundo já sabe: Bush comanda um governo de mentirosos, uma gangue de bandidos sem princípios nem caráter. Maradona disse tudo. José Arbex Jr. é jornalista
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INTERNACIONAL ÁFRICA DO SUL
Juventude é vítima de estupro e Aids Charlene Smith de Johanesburgo (África do Sul)
A
os 23 anos, Sindiswe Mbandiwa já sofreu inúmeros abusos sexuais – inclusive um praticado pelo próprio avô. Soropositiva, ela compartilha o destino de 40% das pessoas que sobrevivem a um estupro, a quase totalidade delas sem obter o tratamento preventivo prometido pelo governo sul-africano. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Agência das Nações Unidas para a Aids (Unaids) concordam que a violência sexual é um fator predominante da propagação da Aids na África subsaariana. A maioria das mulheres não está em condição de negociar relações protegidas, e isso fica evidente nas estatísticas publicadas no fim de março de 2004 pelo enviado especial das Nações Unidas para a África, Stephen Lewis, que fez uma recente visita a Swazilândia: “A incidência do HIV entre as mulheres que freqüentam os centros de cuidados pré-natais era, em 1992, de 3,9%; em 1994, de 16,1%; em 1996, de 26%; em 1998, de 31,6%; em 2000, de 34,2%; em 2002, de 38,6%. É um salto de quase 900% em uma década; 87% das mulheres infectadas têm menos de trinta anos; 67%, menos de vinte e cinco”. Na Swazilândia, por causa da Aids, a expectativa de vida já caiu para os 37 anos. Na África do Sul, é de 49 anos.
ESTRANHA AÇÃO A história de Sindiswe é tristemente banal. A Rape Crisis, uma associação sediada na Cidade do Cabo, estima que o número real de estupros seja vinte vezes mais alto que os 52 mil casos anuais relatados oficialmente pelas estatísticas. O governo da África do Sul havia garantido, em 17 de abril de 2002, que todas as sobreviventes de estupros teriam a partir de então acesso a um tratamento antiviral preventivo a fim de diminuir o risco de
Paulo Pereira Lima
Traumas sociais complexos permitem que os abusos sexuais continuem a ser vistos com naturalidade, na África do Sul
Por causa da Aids, a expectativa de vida caiu para 49 anos na África do Sul e para 37 anos na vizinha Swazilândia
infecção pelo vírus HIV. Um ano depois dessa promessa, o governo retirou de seu projeto de lei uma cláusula que o teria obrigado a fornecer sistematicamente essa profilaxia depois de um estupro, bem como medicamentos para evitar a gravidez e contra diferentes doenças sexualmente transmissíveis, sem esquecer um acompanhamento terapêutico e psicológico. Em contrapartida, manteve-se a cláusula que permite ao estuprador beneficiar-se de um tratamento médico completo, incluindo despesas de hospital particular, medicamentos contra Aids, reabilitação e cuidados com eventual dependência de álcool e drogas. Mais de três anos depois, jamais foi dada qualquer justificativa para essa decisão.
O estupro não é a única ameaça que paira sobre as mulheres. O Conselho para a Pesquisa em Ciências Humanas revelou, em julho de 2004, que a cada dia quatro mulheres sucumbem sob os golpes de seus companheiros. Segundo uma pesquisa recente – com aproximadamente 300 mil crianças e adolescentes de dez a dezenove anos, em 1418 escolas do país – realizada pelo grupo de pesquisa Community Information Empowerment and Transparency (Ciet), o fato de alguém estuprar “qualquer pessoa conhecida” não é assimilado como uma violência sexual – como também não são os “toques não consentidos”. E mais de um quarto dos jovens entrevistados afirmaram que “as moças gostam de ser estupradas”.
Ainda de acordo com o mesmo estudo, a maneira com que os adolescentes encaram a violência sexual e o risco de contaminação pelo HIV é “compatível com a aceitação da coerção sexual, e as atitudes de ‘adaptação’ necessárias à sobrevivência em uma sociedade violenta”. De fato, 11% dos rapazes e 4% das moças reconheceram ter obrigado alguém a manter relações sexuais. Dois terços dos rapazes e cerca de três quartos das moças afirmaram já ter se submetido a relações sexuais forçadas. O governo retirou de seu projeto de lei uma cláusula que o obrigava a fornecer a profilaxia anti-Aids após um estupro. Por outro lado, as crianças violentadas
acreditam mais do que as outras que uma relação sexual com uma virgem poderia curar o HIV ou a Aids – crença que não deixa de ter relação com o grande número de casos de abuso sexual de crianças muito novas, inclusive bebês. Na Cidade do Cabo, o hospital para crianças da Cruz Vermelha avaliou em dezembro de 2002, depois de nove anos de pesquisas, que a faixa de idade com maior número de casos de internação por causa de abusos sexuais era a das crianças de três anos. É nessa idade, também, que Sindiswe foi violentada pela primeira vez, pela pessoa que tomava conta dela durante o período em que sua mãe doente ficou no hospital. (Le Monde Diplomatique, www.diplo.com.br)
SUDÃO
Unicef
Em Darfur, mais violência, menos tropas de paz e fundos
Em Darfur, uma das regiões mais pobres do Sudão, população convive com o medo
Stefania Bianchi de Bruxelas (Bélgica) A situação de segurança na região sudanesa de Darfur continuará se agravando e o processo político permanecerá paralisado se a União Européia (UE) e a União Africana não “mudarem radicalmente de atitude e respeitarem seus compromissos”, alertou o Grupo Internacional de Crise (ICG, a sigla em inglês), organização não-governamental especializada em “prevenção e resolução de conflitos”. No relatório “A sociedade UE-União Africana em Darfur: combinação ainda não vencedora”, apresentado dia 25 de outubro, a organização afirma: “Para que Darfur consiga estabilidade no curto prazo, a Missão da União Africana no Sudão (Amis) deverá receber mais tropas, um mandato mais sólido e novos recursos, enquanto a UE terá de redobrar sua contribuição financeira”. “Qualquer das partes deve mudar seu comportamento de maneira radical e cumprir seus compromissos. O tamanho e o mandato da Amis têm de ser ampliados, e deve receber o apoio que necessita. Ao analisar a história do conflito, esta é a única opção real”, disse David Mozersky, analista do ICG, com sede em Bruxelas. O documento analisa os pontos fortes e os fracos da capacidade de resposta da UE ao conflito em Darfur e sugere vias para torná-la mais efetiva. Diz que a intervenção do bloco europeu no ocidente do Sudão colocou à prova
sua própria estrutura de segurança, bem como a da União Africana.
NOVOS REFUGIADOS Os problemas de Darfur, reino independente anexado pelo Sudão em 1917, começaram nos anos 1970 como uma disputa pelas terras de pastoreio entre nômades árabes e agricultores negros. As duas comunidades étnicas compartilham a fé islâmica. Mas a tensão se transformou em uma guerra civil em fevereiro de 2003, quando guerrilheiros negros responderam às hostilidades das milícias Janjaweed (homens à cavalo). A Organização das Nações Unidas estima que desde o início desse conflito já morreram entre 180 mil e 300 mil pessoas e mais 1,8 milhão tiveram de fugir de suas casas pelo assédio das milícias, que contam, segundo a maioria dos observadores internacionais, com apoio do governo do Sudão. Além disso, centenas de milhares de pessoas tiveram de procurar refúgio no vizinho Chade. O ICG alertou que a situação em Darfur é cada vez mais grave, pois nenhuma das partes respeita o cessar-fogo estabelecido e o processo político está paralisado. “A segurança em Darfur se deteriorou rapidamente nas últimas semanas. São necessários milhares de soldados a mais na região, imediatamente”, disse o diretor do programa do ICG para a África, Suleiman Baldo. A ONU considera a crise humanitária em Darfur, uma das zonas mais pobres do Sudão, a pior do mundo. A União Africana, formal-
mente criada em julho de 2002, teve um papel-chave nos esforços para pôr fim ao conflito sudanês, assumindo a liderança nas negociações entre o governo e os rebeldes e enviando sua força de 3.144 soldados para vigiar o cumprimento do cessar-fogo. A Amis obteve o apoio financeiro do Fundo de Paz na África, um pacote da UE de 310,7 milhões de dólares. Porém, o ICG alertou que esses fundos praticamente acabaram e devem ser repostos.
VONTADE POLÍTICA O ICG disse que a UE deve encontrar a vontade política e os recursos necessários para expandir o mandato e a capacidade da Amis, além de melhorar a coordenação com a União Africana. “A União Européia tem de melhorar também a coordenação entre suas próprias instituições e Estados-membros ativos na questão de Darfur, bem como a coordenação com a União Africana, dando ao seu novo representante especial no Sudão, Pekka Haavisto, a autoridade e os recursos necessários para que possa falar com voz única e forte”, diz o relatório. O instituto também insiste em que o número de efetivos internacionais em Darfur deve ser de 12 mil a 15 mil soldados o mais rápido possível para proteger os civis, estimular o regresso dos refugiados às suas casas e criar todas as condições para um processo de negociações produtivo. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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DEBATE IMPERIALISMO
A Estratégia Militar dos Estados Unidos A atuação das Forças Armadas brasileiras no Haiti tem sido alvo de sérias denúncias de violações de direitos humanos. Para manter sua hegemonia econômica e militar, os Estados Unidos investem em um grande aparato tecnológico. Este aparato inclui desde sistemas de comunicação e espionagem, até “bombas inteligentes” (como aquelas que destruíram escolas, hospitais, museus, universidades e sítios arqueológicos no Iraque) e mecanismos de controle da reprodução da vida, como a biotecnologia.
Maria Luisa Mendonça visita do presidente Bush à América Latina, no início de fevereiro, confirma a agenda dos Estados Unidos da América (EUA) no Continente que, basicamente, reforça a estratégia estadunidense em nível mundial. Um dos principais objetivos de sua política externa é o controle de bens estratégicos, que inclui recursos naturais, energéticos e biodiversidade, além da implementação de um modelo econômico que promove a privatização de “serviços” básicos. Estes “serviços” são, na verdade, direitos fundamentais, como saúde, educação, previdência, entre outros. Historicamente, a política externa dos EUA tem sido marcada por constantes intervenções militares ao redor do mundo. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington, a estratégia militar estadunidense entra em uma nova fase, marcada por uma política de “guerra sem limites”. Diversos analistas debatem o significado dessa estratégia. Alguns acreditam que os Estados Unidos utilizam seus últimos recursos, ou jogam todas as suas “fichas”, para manter sua hegemonia política, econômica, cultural e militar, já que os ataques de 11 de setembro demonstraram sua vulnerabilidade. Outros crêem que estes eventos propiciaram condições favoráveis para a manutenção, e até mesmo a ampliação do poder político, econômico, cultural e militar que os Estados Unidos exercem no mundo.
O atual governo dos EUA estabelece sua política externa a partir da imagem do mundo como um “campo de batalha” Porém, qualquer uma dessas posições indica que é necessário entender os mecanismos utilizados nessa nova fase do imperialismo. O atual governo dos EUA estabelece sua política externa a partir da imagem do mundo como um “campo de batalha”. Sua estratégia diante daqueles povos ou países que considera como “inimigos” pode se expressar através do combate direto (utilizando desde campanhas de difamação até a intervenção militar) ou através do controle de recursos que garantam o bem-estar ou a própria sobrevivência desses povos. Segundo o escritor Eduardo Galeano, os Estados Unidos sempre encontram “causas nobres” para justificar a guerra. Nunca admitem que “matam para saquear”. É evidente que o governo estadunidense difundiu informações mentirosas sobre a existência de armas de destruição em massa para justificar sua intervenção no Iraque, quando o principal motivo para a guerra era o controle das reservas de petróleo do país. Além disso, o Iraque conta com uma das mais importantes fontes de água doce do Oriente Médio, provenientes dos rios Tigre e Eufrates. Mais recentemente, representantes do governo estadunidense intensificaram suas críticas ao Irã, especialmente no sentido de propagar a imagem de que o programa nuclear daquele país representa uma ameaça para o mundo. O Irã é hoje uma das principais potências do Oriente Médio e possui grandes reservas de petróleo e gás natural. Estes seriam os reais motivos para uma
Kipper
A
possível intervenção militar no país, além da preocupação dos Estados Unidos com acordos de cooperação econômica entre Irã, China e Rússia. Na América Latina, a Campanha pela Desmilitarização das Américas (CADA) tem realizado estudos sobre a presença militar estadunidense. Esta presença se concentra em regiões ricas em recursos naturais, como a região do Plano Puebla Panamá (sul do México, América Central e Caribe), a região Amazônica e a Tríplice Fronteira (entre Brasil, Paraguai e Argentina). A visita ao Brasil do secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, em março de 2005, representou um exemplo claro dessa política. Os principais tópicos na agenda de Rumsfeld foram o interesse pelo Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), o monitoramento da Tríplice Fronteira, a continuidade da presença militar brasileira no Haiti e a preocupação com as relações de colaboração da Venezuela com outros países latino-americanos. O Sivam é um conjunto de radares e sensores com capacidade para monitorar 5,5 milhões de km² na Amazônia. Este projeto teve início no governo FHC, custou 1.4 bilhão de dólares aos cofres brasileiros, e sua execução foi entregue à Raytheon, uma das principais empresas bélicas dos EUA, depois de uma licitação fortemente contestada.
Em relação à Tríplice Fronteira, um dos principais interesses dos Estados Unidos é o controle do Aqüífero Guarani, que representa o maior lençol freático de água do planeta, com 1,2 milhão de km² Em relação à Tríplice Fronteira, um dos principais interesses dos Estados Unidos é o controle do Aqüífero Guarani, que representa o maior lençol freático de água do planeta, com 1,2 milhão de km². Para justificar sua presença na região, o governo estadunidense tem alegado a necessidade de combater “células terroristas”. Porém,
o ex-chefe do FBI no Brasil, Carlos Alberto Costa, desmente essa tese. “Investigamos exaustivamente, nós, a CIA, os serviços secretos dos países, e não conseguimos comprovar a existência de células terroristas ali”, afirmou em entrevista à revista Carta Capital. Como forma de garantir o controle da região, os Estados Unidos propuseram um acordo militar bilateral com o Paraguai, iniciado em junho de 2005. O acordo prevê uma série de exercícios militares, intercâmbio de informações militares e de “especialistas em assuntos civis”, seminários estratégicos com membros do Comando Sul (um setor do Pentágono que atua na América Latina), programas de “imersão cultural” na Academia Militar dos EUA, entre outros. Um grupo de 400 marines norteamericanos já está no Paraguai. Estes oficiais contam com uma série de regalias, como imunidade diplomática e liberação alfandegária, como descrevem os seguintes itens da Lei 2594, aprovada pelo Congresso Nacional Paraguaio: “Artigo 1, item C: O Governo da República do Paraguai outorgará liberação alfandegária sobre importação / exportação, assim como isenção de impostos locais para produtos, propriedades e materiais para oficiais dos Estados Unidos. (...) fora da conformidade com a legislação paraguaia”. “Artigo 1, item E: (...) O Governo da República do Paraguai assumirá absoluta responsabilidade por qualquer reclamação surgida pelo uso de projetos construídos, total ou parcialmente, durante o desenvolvimento dos exercícios”. Organizações de direitos humanos alertam para a possibilidade de os Estados Unidos passarem a controlar a base de Mariscal Estigarribia, no ocidente do Paraguai. Esta base tem capacidade para abrigar até 16.000 soldados e possui uma pista de pouso de 3.800 metros, que comportaria aviões militares, garantindo acesso rápido aos territórios da Bolívia, Brasil e Argentina. Os Estados Unidos intensificaram as negociações para alcançar um acordo militar com o Paraguai, após o Congresso argentino ter vetado um projeto que permitiria treinamentos militares liderados pelo Coman-
do Sul em seu território. Estas atividades, conhecidas como Águilas III, deveriam ter início em 2003. A estratégia de procurar países vizinhos, após a rejeição de um projeto, também ocorreu em relação à implementação da Academia para o Cumprimento da Lei (ILEA). Esta “academia” é na verdade uma versão da Escola das Américas para policiais latino-americanos e visa também influenciar os poderes legislativos e judiciários dos países da região. Após a proposta ter sido rejeitada na Costa Rica, os EUA iniciaram negociações com o governo de El Salvador, e a ILEA foi implementada recentemente naquele país. Há, porém, um forte movimento de contestação por parte de organizações sociais que denunciam a falta de transparência na negociação e demandam que o projeto seja votado no Congresso Nacional.
A intervenção militar estadunidense, em várias partes do mundo, tem gerado aumento das violações de direitos humanos, a migração forçada de milhões de pessoas, a destruição do meio ambiente e a perda da autodeterminação dos povos A intervenção militar estadunidense, em várias partes do mundo, tem gerado aumento das violações de direitos humanos, a migração forçada de milhões de pessoas, a destruição do meio ambiente e a perda da autodeterminação dos povos. Na América Latina, um exemplo recente foi a intervenção no Haiti. A partir de um longo processo de repressão a movimentos populares, foram criadas as condições para a deposição do presidente Jean Bertrand Aristide, comandada pelos Estados Unidos e pela França. Atualmente, essa intervenção é legitimada pelas “Forças de Paz” da Organização das Nações Unidas (ONU), comandadas pelo Brasil.
A atual liderança do Banco Mundial torna ainda mais evidente a relação entre estratégias econômicas e militares Essa estratégia necessita de agentes que promovam uma política econômica articulada com a militar. Um deles é o Banco Mundial (Bird), que funciona como uma espécie de “cérebro”, elaborando conceitos incorporados por outras instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). A atual liderança do Banco Mundial torna ainda mais evidente a relação entre estratégias econômicas e militares. O atual presidente do Bird, Paul Wolfowitz, foi vice-secretário de Defesa dos EUA. O presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (braço do Banco Mundial para a América Latina) é Luiz Alberto Moreno, ex-embaixador da Colômbia em Washington e idealizador do Plano Colômbia. Além disso, o Banco Mundial é responsável por implementar grandes projetos de infra-estrutura para a apropriação de recursos naturais e funciona como o principal condutor da “reconstrução”, em situações de desastres naturais ou de “pós-conflito”. No Afeganistão, por exemplo, o Banco Mundial promoveu a privatização do sistema público de saúde, como parte do projeto de “reconstrução” do país. Nos países da Ásia afetados pelo Tsunami (ondas gigantes), o Banco incentivou a entrada de grandes empresas de pesca e de turismo, expulsando definitivamente comunidades de pescadores que viviam no litoral. A atual estratégia militar do governo estadunidense representa um grande desafio para organizações sociais em todo o mundo. Nesse sentido, é importante fortalecer redes de mobilização e solidariedade. Uma articulação importante foi aquela que deu origem aos protestos simultâneos, em nível internacional, contra a guerra no Iraque, que mobilizaram mais de 40 milhões de pessoas em fevereiro de 2003. Na América Latina, foi criada a Campanha pela Desmilitarização nas Américas (CADA), que busca articular organizações sociais, elaborar denúncias e campanhas de incidência sobre os governos. A CADA tem ainda como prioridade o apoio a movimentos sociais em cada país, que lutam por sua terra, sua cultura, seu trabalho e sua dignidade, no sentido de construir uma alternativa igualitária para a integração latinoamericana. Maria Luisa Mendonça é jornalista e integrante da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA
Francisco Rojas
RIO GRANDE DO SUL
LIVRO INVASÃO DO IRAQUE MANIPULAÇÃO, CENSURA E MENTIRAS DA IMPRENSA DOS EUA O livro do jornalista Carlos Eduardo Pestana Magalhães reúne artigos divulgados na internet, entre 2003 e 2005, mostrando as incoerências da cobertura jornalística estadunidense no conflito do Iraque. O livro procura destacar as falhas da tão propalada liberdade de opinião nos Estados Unidos, mostrando que predominaram, nas reportagens, o patriotismo e os valores estadunidenses. A tese da defesa e da expansão da democracia defendida pela administração do presidente George W. Bush, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, foi aceita e difundida pela grande imprensa dos Estados Unidos. O livro, lançado pela Editora Canudos, tem 160 páginas e custa R$ 25. Mais informações: (11) 3331-2316, edcanudos@hotmail.com
CEARÁ OFICINA JURÍDICA SOBRE RADIODIFUSÃO COMUNITÁRIA 29, a partir das 14h Durante a oficina, promovida pelo Movimento Cearense pela Democratização da Comunicação (MCDC), serão enfocados os aspectos legais da radiodifusão comunitária e a questão das intervenções da Anatel e da Polícia Federal no fechamento das emissoras. Local: Instituto Teológico Pastoral
(Itep), R. Tenente Benévolo 201, Fortaleza Mais informações: (85) 9979-0000 1º SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE SOCIOECONOMIA SOLIDÁRIA 8 a 12 O objetivo do seminário é fortalecer o movimento da socioeconomia solidária e sua capacidade de interferir na elaboração, na execução e na avaliação das políticas públicas. Durante o evento haverá palestras sobre os seguintes temas: “A Socioeconomia solidária e as práticas de vidas humanas – um diálogo em construção”, “Políticas públicas de economia solidária no Brasil”, “Um outro mundo possível – experiências internacionais de socioeconomia solidária”, “Gênero e economia solidária – um debate necessário”, “Economia solidária no Brasil: o que pode a sociedade civil”. Local: Casa de Retiro Nossa Senhora de Fátima, no Condomínio Espiritual Uirapuru (CEU), Fortaleza Mais informações: (85) 3247-1660
DISTRITO FEDERAL SEMINÁRIO - CONSTRUINDO ESTRATÉGIAS DE EXIGIBILIDADE DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA 17 e 18 Promovido pela Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH), o seminário visa avançar na discussão de conceitos, estratégias e metodologias de exigibilidade do direito humano à alimentação adequada, com base
MARCHA DOS SEM 2005 A luta por mudanças na política econômica, a defesa da soberania nacional e a campanha “Acorda Rio Grande – a farsa acabou” serão os eixos da Marcha dos Sem deste ano, que vai reivindicar terra, trabalho, moradia, salário, saúde, educação, segurança, valorização dos trabalhadores e dos serviços públicos, redução da jornada de trabalho e das horas extras, valorização do salário-mínimo. A Marcha também vai cobrar o fim do superavit primário, a destinação dos recursos à geração de empregos e à educação pública e a redução da taxa básica de juros. Organizam a Marcha dos Sem: Camp, CMP, Conam, CPT, CUT-RS, MMM, MNLM, MTD, pastorais sociais, Ubes, UNE e Via Campesina. Local: Concentração para a caminhada às 13h30, no Planetário (Av. Ipiranga, 2000). Encerramento na Praça da Matriz, Porto Alegre Mais informações: (51) 3224-2484
nas experiências práticas de mecanismos de exigibilidade locais que a ABRANDH desenvolve junto às comunidades Sururu de Capote (Maceió/AL) e Vila Santo Afonso (Teresina/PI). Local: Brasília Mais informações: (61) 3340-7032 abrandh@abrandh.org.br
RIO DE JANEIRO 2º ENCONTRO ESTADUAL DO SERVIÇO SOCIAL NO CAMPO SOCIOJURÍDICO 3e4 Dirigido a assistentes sociais, estudantes e profissionais interessados, o evento vai abordar a ética e a justiça no campo sociojurídico. Durante o encontro, serão discutidos temas como: o papel do Estado e a consolidação das políticas públicas, Justiça e garantia de direitos, mídia e criminalidade, garantias legais para infância e juventude e os novos projetos de lei, lei de execução penal e garantia de direitos, exercício profissional no campo sociojurídico. Local: Capela Ecumênica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, R. São Francisco Xavier, 524, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2587-7100 DOMINGO É DIA DE CINEMA 20, às 9h Para comemorar o Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, o projeto Domingo é Dia de Cinema vai exibir o filme Hotel Ruanda, que trata da guerra civil iniciada no país em 1994, e que resultou na morte de mais de um
milhão de Tutsi. O genocídio foi ignorado pelo mundo. Local: Odeon-BR, Pça. Floriano, 7, Cinelândia, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2240-1093
crições são gratuitas e já podem ser feitas pela internet www.ufscar.br/ semanaflorestan. A abertura do evento acontece dia 7, às 15h, com a conferência do geógrafo Aziz Ab’Saber, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Com o objetivo de debater não só a trajetória intelectual de Florestan Fernandes como também os temas de seus estudos, o evento contará com seis mesas-redondas. Participam dos debates Andreas Hofbauer (Unesp - Marília), Antônio Gouvêa Mendonça (Mackenzie), Cybeli Rizek (USP), Francisco de Oliveira (USP), Gabriel Cohn (USP), Maria Arminda Arruda do Nascimento (USP), Milton Lauherta (Unesp - Araraquara), Ricardo Antunes (Unicamp), Sedi Hirano (USP), Valter Silvério (UFSCar), Wagner Romão e Wolfgang Leo Maar (UFSCar). Local: Rod. Washington Luís (SP310), km 235, São Carlos Mais informações: www.ufscar.br/semanaflorestan.
ORATÓRIA PARA MULHERES 22 e 23 Estão abertas as inscrições para o curso de Oratória Sindical, promovido pela Secretaria de Formação da CUT-RJ e pela Comissão Estadual de Mulheres da CUT. Realização do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC). Local: Av. Rio Branco, 277, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2196-6700 ENCONTRO DO MOVIMENTO FÉ E POLÍTICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 27, das 9h às 18h Sob o tema “Reinventar a democracia: construindo o poder do povo”, o encontro vai promover a palestra “A crise da democracia representativa e a militância”, com o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira. Haverá também oficinas sobre os seguintes temas: economia solidária, mecanismos de controle social das políticas públicas, movimentos sociais em novos tempos, projetos comunitários (de arte) e política, ecumenismo e diálogo inter-religioso. Local: Pça. Mahatma Gandhi, 2, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2524-9761
4º COLÓQUIO MARX E ENGELS NA UNICAMP 8 a 11 Organizado pelo Centro de Estudos Marxistas (Cemarx), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, o colóquio deste ano traz algumas novidades. Uma delas é o caráter internacional do evento. Haverá conferências sobre os temas: a obra teórica de Marx e o marxismo, socialismo no século 21, marxismo e ciências humanas, economia e sociedade no capitalismo contemporâneo. Local: Universidade Estadual de Campinas Zeferino Vaz (Unicamp), Campinas Mais informações: cemarx@unicamp.br, www.unicamp.br/cemarx
RIO GRANDE DO SUL LANÇAMENTO ESTADUAL DA AGENDA DOS TRABALHADORES 11, das 9h às 12h O lançamento da agenda será feito juntamente com um seminário sobre perfil profissiográfico profissional e sobre a emissão de comunicação de acidente de trabalho. Durante a tarde haverá uma caminhada do Sindicato dos Metalúrgicos até a sede da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), onde a Agenda dos Trabalhadores será entregue. Uma audiência pública com a bancada gaúcha no Congresso Nacional está sendo marcada para o final da tarde, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, para discussão e entrega da Agenda. Local: Sindicato dos Metalúrgicos de Porto Alegre, R. Francisco Trein, 116, Porto Alegre Mais informações: (51) 3228-4877
3º SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA E 3º SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA 11 a 15 Os simpósios, que têm como tema “Desenvolvimento do campo, das florestas e das águas”, propõem expandir ainda mais o debate a respeito da questão agrária no mundo. Nesse mesmo evento será realizada a Jornada Ariovaldo Umbelino de Oliveira, que pretende homenagear e analisar as contribuições desse importante cientista para a formação do pensamento geográfico brasileiro. Haverá mesas-redondas sobre os seguintes temas: agroindústria, questão agrária, questão indígena, movimentos sociais e reforma agrária, desenvolvimento do campo, leituras geográficas do desenvolvimento, geografia urbana, ensino de geografia, desenvolvimento das florestas, desenvolvimento das águas. Local: R. Roberto Simonsen, 305, Presidente Prudente Mais informações: www2.prudente.unesp.br/agraria
SÃO PAULO SEMANA FLORESTAN FERNANDES 7 a 10 Promovida pela Universidade Federal de São Carlos, a Semana reúne conferências, mesas-redondas, exibições de vídeos e atividades culturais dentro da série de atividades pelos dez anos da morte do sociólogo Florestan Fernandes. As ins-
MEMÓRIA
Mário Augusto Jakobskind do Rio de Janeiro (RJ) “– Meu pai, o que é a liberdade? – É o seu rosto, meu filho, o seu jeito de indagar o mundo a pedir guarida no brilho do seu olhar. A liberdade, meu filho, é o próprio rosto da vida que a vida quis desvendar.” Moacyr Félix, em Canto para as transformações do homem
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iz o cancioneiro popular que “quando morre um poeta, em Mangueira todos choram”. Esse verso, extraído da composição de Nelson Cavaquinho em homenagem à Estação Primeira de Mangueira, pode e deve lembrar que “os brasileiros choram” a morte, dia 25 de outubro, do poeta carioca Moacyr Félix, universalista e engajado nas lutas sociais
de seu tempo. Segundo sua irmã, a escritora Maria Helena Kuhner, Félix, com 79 anos, enfrentava uma depressão acentuada, há dois anos, desde a morte de sua esposa, a sueca Birgitta Lagerblad. A história do poeta, integrante da chamada “Geração de 45”, serve de inspiração para poetas de todas as gerações. Desde jovem, primou pela retidão como intelectual e criador de composições reconhecidas nacional e internacionalmente. Um pequeno exemplo: em abril de 1986, Félix foi protagonista de um feito inédito no rádio brasileiro. A rádio estatal Roquette Pinto, do governo do Estado do Rio de Janeiro, fazia um programa especial, ao vivo, comemorativo dos 25 anos do vôo de Yuri Gagarin, o primeiro cosmonauta do mundo a subir ao espaço. Moacyr Félix compôs um poema em homenagem a Gagarin, lido pelo próprio poeta para os tripulan-
tes da estação Myr, que navegavam na órbita da Terra e passavam naquele momento sobre o Brasil, confirmando o que o cosmonauta soviético dissera: que a Terra era azul e viam o verde das terras brasileiras. Simultaneamente, o seu texto era transmitido em russo para toda a União Soviética. Da obra de Félix destacam-se, entre outros, os livros Singular Plural, Neste Lençol, Ênio Silveira, Arquiteto de Liberdades. Em 2000, lançou Introdução a Escombros, no qual reuniu poesia e prosa em várias reflexões filosóficas e políticas sobre a história dos indivíduos, e pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti. No mesmo ano, Félix recebeu o prêmio do Pen Club do Brasil. Moacyr Félix foi um dos idealizadores e diretores da Editora Paz e Terra. Nos anos 1950, colaborou com o jornal de cultura do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Paratodos, dirigido por Jorge Amado e
Oscar Niemeyer. Também dirigiu, de 1963 a 1971, a coleção Poesia Hoje, da Civilização Brasileira, editora que teve papel de destaque na luta contra a ditadura. Entre 1962 e 1963, foi organizador e prefaciador dos três volumes da série Violão de Rua, seleção de poemas em livros de bolso, feita pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). A experiência teve enorme êxito e aceitação pela crítica, mas foi interrompida pelo golpe de Estado de abril de 1964. Os militares definiram o trabalho como “exemplo de literatura subversiva”. A ditadura não perdoou Moacyr Félix, que em 1963 tinha sido um dos fundadores do Comando de Trabalhadores Intelectuais (CTI), que teve adesão, no Rio de Janeiro, de mais de 400 intelectuais de todas as áreas das artes, da literatura, da ciência e das profissões liberais.
Arquivo pessoal
Um poeta que queria transformar os homens
Félix, engajado nas lutas de seu tempo
Poucos meses antes do golpe civilmilitar, Félix foi eleito integrante do Conselho Deliberativo do CTI. O poeta foi preso em 1966, por suas manifestações a favor da liberdade de expressão.
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CULTURA
De 3 a 9 de novembro de 2005
ARTE ENGAJADA
A Navalha afiada de Plínio Marcos Marcos Muzzi/ Revista Caros Amigos
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caba de sair do forno mais uma homenagem ao dramaturgo Plínio Marcos, considerado um dos mais importantes nomes do teatro brasileiro, que teria completado 70 anos dia 29 de setembro. Uma de suas obras mais polêmicas, A Navalha na Carne, ganha nova edição, de luxo. O autor, proibido várias vezes durante toda a ditadura militar por dar voz em sua obra aos excluídos, se tornou um símbolo da luta pela liberdade de expressão. Antes mesmo de ser exibida, a peça A Navalha na Carne, de 1967, foi considerada subversiva e imediatamente censurada. O caminho encontrado para driblar a censura ferrenha foi lançá-la em livro. A nova edição, da Azougue Editorial (160 páginas, R$ 46), é uma reprodução fac-símile da edição histórica lançada em 1968. Produzido em um período ainda distante das modernas ferramentas tecnológicas Pop Art – Tendência artística que de produção surgiu na década gráfi ca, o livro de 1950 e utilizava traz um visua estética massificada da publicidade al inovador e e dos quadrinhos. visionário que remete às historias em quadrinhos e também à pop art. A idéia veio de Pedro Bandeira, que assina um texto de introdução à nova edição, onde conta um pouco da história do livro. Amigo de Plínio desde a infância, em Santos, Bandeira é escritor de livros infanto-juvenis, mas já trabalhou como jornalista e ator. Dividiu o palco diversas vezes com Plínio e, juntos, também enfrentaram muitas dificuldades. Segundo ele, não havia apoio para as produções, pois eles eram considerados comunistas: “O jeito era encenar peças baratas, sem cenário e com poucos figurinos”. Além dos algozes da censura, a trupe ainda enfrentaria outro obstáculo: devido aos vários palavrões que apareciam no texto, nenhuma gráfica se dispunha a imprimir a obra. O livro acabou sendo impresso de madrugada, quando todas as mulheres, da única gráfica que aceitou a encomenda, estivessem fora. Bandeira lembra ainda que, apesar de tantos contratempos, a tiragem de 5 mil exemplares foi vendida em apenas duas semanas. O projeto gráfico do livro foi pensado com o objetivo de transferir para o papel o impacto dramático, o clima marginal “barra pesada” e a ferocidade da linguagem dos personagens. A idéia foi posta em prática pelo artista gráfico uruguaio Walter Hüme e pelo fotógrafo publicitário Yoshida. Para isso, foi fotografada uma apresentação especial, que não era aberta ao público, com o elenco da primeira montagem – Paulo Villaça, Ruthnéia de Moraes e Edgar Gurgel Aranha. Com as fotos tratadas por uma técnica chamada alto contraste, o livro, em estilo “fotonovela”, ganhou o aspecto sombrio do drama vivido na peça. A diagramação também é toda estilizada, de forma a dar ênfase à dramaticidade, com páginas ocupadas por um único grito ou com uma única foto – como em uma das últimas páginas em que uma das personagens, a prostituta Neusa Sueli, resignada à própria tragédia e abandono, saboreia um pão com mortadela. Assim como a maior parte da obra de Plínio Marcos, A Navalha na Carne também gerou polêmica e rendeu muitas críticas, em especial referentes à nova edição. Textos de Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, João Apolinário, entre outros, dão uma dimensão da repercussão da obra nos anos
Capa da primeira edição do livro
Plínio Marcos, “o repórter da gente simples, do povão lesado da sociedade”, como ele mesmo se definia
de chumbo da ditadura. Também é possível perceber um pouco do preconceito que permeava o cenário cultural trinta anos atrás. Em uma das críticas, sugere-se que a peça ficaria melhor sem os palavrões. A peça de Plínio narra o conflito entre uma prostituta, um cafetão e um homossexual. No centro da história, ele expõe, de forma crua e sem retoques, a profunda solidão humana, como observa Anatol Rosenfeld, em uma das críticas publicadas na época, e que acompanha a nova edição: “O dinheiro ganho pela prostituta daqueles que a compram e que serve para comprar o rufião (o cafetão) é roubado pelo homossexual para que possa comprar, por sua vez, um pouco de afeto”. A história se passa em um “sórdido quarto de hotel de quinta categoria”, como descreve Plínio na abertura da peça. Nesse cenário simples, o dramaturgo descortina, em ritmo de navalhadas, os submundos da alma humana, revelando feridas sociais que continuam bem abertas. Apesar da censura e dos inúmeros obstáculos, Plínio deu seu recado. Por meio de sua obra, uma verdadeira navalha afiada, ele deu voz e mostrou a face daqueles que, como ele costumava dizer,
“viviam se danando por aí”. Plínio Marcos se dizia o repórter dessa gente simples, “o povão lesado da sociedade, que apesar de tudo é generoso, apaixonado, alegre, esperançoso e crente numa existência melhor, na paz de Oxalá”.
HISTÓRIA E OBRA Plínio Marcos nasceu em 1935, no bairro portuário de Macuco, em Santos. Teve um currículo extenso e diverso, antes de se consagrar como autor teatral e escritor. Trabalhou como estivador, jogador de futebol na Portuguesa Santista, camelô e palhaço de circo. Foi no circo, aliás, sua estréia como ator, no papel do palhaço Frajola. Também foi lá, conforme ele mesmo contava, em um circo de ciganos no qual passou cinco anos, que aprendeu a escrever para teatro. Em 1958, Barrela, sua primeira peça, sobre a vida nas prisões, foi encenada. Tida como pornográfica, a obra logo foi censurada por duas longas décadas, voltando a ser remontada apenas em 1978. Se a censura não gostava de Plínio, por outro lado, desde o começo, ele teve também apoio de peso. No mesmo ano em que escreveu sua primeira peça, a escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu, o convidou para um papel
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Carlos Minuano de São Paulo (SP)
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Reedição de luxo da peça A Navalha na Carne presta homenagem aos 70 anos que o dramaturgo completaria este ano
Primeira exibição de A Navalha na Carne, sob a censura dos militares
na peça Pluft, o fantasminha. Em seguida, Plínio se mudou para São Paulo, onde começou a trabalhar com Cacilda Becker. Além das já citadas, entre suas principais obras estão Abajur Lilás, Dois Perdidos numa Noite Suja e os livros Querô, Uma Reportagem Maldita, Na Barra do Catimbó e Histórias das Quebradas do Mundaréu. Teve também uma sólida carreira no jornalismo,
passando por diversos jornais, como Última Hora, Diário da Noite, Folha de S. Paulo, e revistas como Veja, Realidade, Caros Amigos, entre outras. Sua obra também recebeu várias adaptações para o cinema, como os filmes Navalha na Carne e A Mancha Roxa. Pouco antes de sua morte, apesar dos problemas de saúde decorrentes do diabetes, Plínio vivia um bom momento. Trabalhava com sua mulher, a jornalista Vera Artaxo, fazendo palestras pelo país. Sua obra era finalmente reconhecida, chegou a ser homenageado na França com a tradução e leitura de duas peças. Plínio Marcos morreu na tarde do dia 19 de novembro de 1999, de falência múltipla dos órgãos, aos 64 anos de idade. Sua trajetória nos deixa como legado um exemplo de dignidade e de fidelidade aos próprios ideais, coisa rara nos dias de hoje. Grande parte da extensa obra que escreveu vem sendo revista. Artistas indiferentes, no passado, hoje o reverenciam. Sua obra, uma radiografia do lixo social, permanece atual. Sobre tal atualidade, Plínio, como quem enxergava o futuro, já afirmava: “A culpa não é minha, a culpa é do país que não evolui socialmente”. Boa parte da vida e obra de Plínio Marcos está registrada em um acervo digital mantido pela família, no endereço de internet www.pliniomarcos.com
Romance premiado vai para o cinema As homenagens ao dramaturgo santista Plínio Marcos estão longe de terminar. Mais uma obra sua deve chegar às telas em breve, o filme Querô, baseado no livro Uma Reportagem Maldita – Querô, publicado em 1976 e relançado recentemente pela Editora Publisher Brasil (96 páginas, R$ 18). A obra, que seguirá para os cinemas, ganhou o Prêmio APCA de melhor romance no ano em que foi lançada: em 1993, recebeu o prêmio Shell. Querô é a história de um garoto pobre, filho de uma prostituta, submetido às mazelas e às injustiças de um mundo corrompido em seus valores, tragado por uma sociedade que praticamente determina, a um grande contingente de jovens, a marginalidade como única opção. Essa história, que infelizmente continua atual, foi parar na literatura porque o autor, na época, já estava com todas as suas peças proibidas pela censura. Por isso optou pelo romance, como ele mesmo explica: “Eu fui escrever porque a censura não estava liberando nenhuma peça minha. O Querô ia ser mais uma peça de teatro. Segundo o diretor, Carlos Cortez, o filme teve em seu elenco jovens das favelas e cortiços de San-
tos e arredores: “Optamos por trabalhar com jovens que conhecem a realidade retratada no filme”. A preparação desses pequenos e incomuns “atores” foi feita por Fátima Toledo, que traz em seu currículo outros elencos similares, como os de Pixote, Central do Brasil, Cidade de Deus, entre outros. O filme, que está em fase de finalização, deve chegar aos cinemas no primeiro semestre de 2006. A aproximação do cineasta Cortez com Plínio Marcos ocorreu durante as filmagens do documentário Geraldo Filme, sobre o sambista da velha guarda paulistana, de quem Plínio foi amigo. Começaram depois a escrever o roteiro do filme Vida de Artista, que reuniria cinco contos do autor sobre “pequenos artistas marginais”. Cortez conta que “a idéia era fazer os personagens centrais de cada conto viverem uma mesma história”. O filme, que já havia sido aprovado na Lei do Áudio Visual, acabou, no entanto, indo para a gaveta. “Escrevemos um primeiro tratamento, não conseguimos grana, o Plínio adoeceu, aí abandonei o projeto porque não vi mais sentido. O que mais me atraia era escrever com ele”, conclui o cineasta. (CM)