Ano 3 • Número 141
R$ 2,00 São Paulo • De 10 a 16 de novembro de 2005
Na França, a periferia contra o Estado N
a França, os jovens da periferia cansaram de ser oprimidos e se rebelaram. Desde o dia 27 de outubro, milhares deles, principalmente na periferia da capital Paris, se mobilizam todas as noites. Não têm uma pauta de reivindicação definida. Apenas expressam sua rejeição, sua fúria, em relação à ordem dominante. Tampouco faltam motivos para a revolta. O Estado deixa as áreas periféricas à míngua: sem serviços públicos, sem emprego, sem cidadania. Os jovens, nas ruas, não se deixam canalizar pelos meios tradicionais da política – partidos, grupos de pressão, entidades. Quebram o protocolo e o que encontram pela frente, sobretudo carros e prédios públicos. Enfrentam a polícia, enviada às pressas para conter a “ralé”, como classificou o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy. A intolerância do governo é aplaudida pelos grupos de extrema-direita que defendem a adoção de medidas duras. A revolta, que se alastra pela França e também pela Europa, obrigou o governo a decretar estado de emergência. Págs. 2 e 9
Michel Spingler/AP/AE
Em fúria, jovens pobres da região parisiense desafiam a ordem vigente, da qual cansaram de ser excluídos
Governo francês decreta estado de emergência, após doze dias de protestos dos jovens da periferia de Paris e de outras cidades contra a exclusão social
EUA fracassam; a Alca segue morta
Grevistas resistem nas universidades
De um lado, milhares de pessoas protestaram contra a presença do presidente estadunidense na América do Sul. De outro, os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e a Venezuela bloquearam todas tentativas
de reabertura das negociações. Enquanto isso, representantes de organizações sociais avançaram na discussão de uma proposta de integração dos povos, com a realização da 3ª Cúpula dos Povos. Págs. 10, 11 e 14
J.F. Diorio/AE
Após 60 dias, já são 40 entidades de ensino superior públicas paralisadas, das 61 existentes. De um lado, docentes prometem resistir; do outro, o Ministério da Educação teima em reapresentar proposta já rejeitada. Para Paulo Rizzo, do Andes (sindicato dos docentes), o que impede a negociação é que “o governo se move a partir da política econômica” e da meta do superavit primário. Pág. 3
O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, viajou para Mar del Plata, na Argentina, para ressuscitar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), durante a 4ª Cúpula das Américas. Chegando lá, a história foi outra.
Coca-Cola usa folha de coca, diz laudo da PF O Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal concluiu em laudo que a CocaCola do Brasil utiliza folhas de coca como matéria-prima na composição de seu refrigerante de cola, o que é terminantemente proibido pela legislação brasileira de entorpecentes em vigor. Se a lei for seguida à risca, o produto deve ter sua comercialização suspensa, diz especialista na área. Pág. 6
Brasileiros têm bilhões em paraísos fiscais
Bush no Brasil: aliado de Lula, inimigo do povo
Oficialmente, brasileiros (empresas e cidadãos) tinham no exterior 93 bilhões de dólares no final de 2004 - 36% a mais do que em 2001. O dinheiro migrou via brechas na lei, que permitem driblar a Receita e sonegar impostos. Os dólares não se destinaram a investimentos: 55% aportaram em paraísos fiscais. Pág. 7
O repúdio a George W. Bush, presidente dos EUA, levou milhares de manifestantes às ruas de capitais brasileiras, em atos que se concentraram em agências de bancos e lanchonetes McDonald`s. Mas Lula ficou animado com a promessa de Bush de reduzir os subsídios agrícolas, se os europeus fizerem o mesmo. Pág. 8
E mais: MÍDIA ALTERNATIVA – Projeto social impresso focado no protagonismo juvenil, a revista Viração ganha o Prêmio Cidadania Mundial 2005, concedido pela Comunidade Bahá’i do Brasil. Pág. 4 MÁRTIR DA TERRA – Dia 10, faz dez anos da morte do escritor e ambientalista nigeriano Ken Saro Wiwa, assassinado a mando da Shell. Pág. 12
Impunidade – Moradores de rua protestam em frente ao Tribunal da Justiça de São Paulo, no Centro da capital, dia 8, contra a rejeição da denúncia apresentada pelo Ministério Público contra cinco policiais militares e um segurança clandestino por suposta participação na morte de moradores de rua na região central de São Paulo em agosto de 2004
Após 9 meses, sem-teto de GO vivem dilema Pág. 5
PM de SC atira em atingidos por barragens Pág. 5
Justiça tira do ar programa de João Kleber Pág. 6
Teatro traz soluções para a vida real Criador do Teatro do Oprimido, hoje praticado em dezenas de países, o dramaturgo Augusto Boal fala ao Brasil de Fato sobre o Teatro Legislativo – em que o público é convidado a subir ao palco e buscar alternativas para os problemas encenados. Essa experiência já resultou até em projetos de lei. “Mais importante do que assistir a um filme, é as pessoas serem capazes de fazer filmes”, diz o artista, para quem “democratizar a cultura é permitir que as pessoas criem cultura”. Pág. 16
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De 10 a 16 de novembro de 2005
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Gorgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, 5555 Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
CARTAS DOS LEITORES O BOM DO BRASIL É O BRASILEIRO Os governos deste país sempre roubaram para si e para os seus privilegiados. Esses ladrões estão sendo acusados por parte da grande mídia de perseguir o atual governo, que eles o classificam de socialista. A gritaria desses que sempre mamaram nas tetas do erário é por ter perdido o osso que sempre nutriu suas contas bancárias. Porém, classificar este governo trapalhão de socialista é estar fora da realidade. Só se for socialismo às avessas. É um governo tão canalha e mentiroso quanto o do sociólogo beiçudo que, juntamente com a quadrilha de sempre, roubaram fortunas vendendo empresas estatais, montadas com o suor desse povão imbecilizado pela imprensa, que os mantêm mais preocupado com futebol, novela e loteria do que com a dura realidade de não ter escola para os filhos, saúde, segurança, emprego. Daí o porquê do governo afirmar que o bom do Brasil é o brasileiro. Claro, para dar mordomias a tantos malandros só mesmo sendo muito bom (ou idiota). José Mário Ferraz Vitória da Conquista (BA) EDUCAÇÃO: PROBLEMA DE TODA A SOCIEDADE Quero congratular-me com o jornal Brasil de Fato pelas matérias publica-
das sobre a greve dos trabalhadores de educação das instituições públicas federais. Como continuamos sem ter espaço na grande midia impressa e televisiva, a cobertura do Brasil de Fato é importantíssima. O silêncio que envolve a educação na grande imprensa brasileira (salvo se houver um escândalo, uma violência...), é emblemático do lugar que a educação ocupa na sociedade brasileira. Precisamos que a educação se torne um problema de toda a sociedade, que seja pautada com questão de debate e reivindicação de amplos setores da população desprovidos de serviços educacionais suficientes e de qualidade, para todos. Aproveito para lembrar uma experiência bem sucedida no México que cobre regularmente, em todo o país, os temas educacionais. Há cinco anos, criouse uma publicação intitulada Anuário Educativo Mexicano. A cada ano, é produzido e vendido, nas bancas de jornais e revistas, um livro (dois volumes) contendo análises de especialistas sobre as principais matérias jornalísticas sobre educação publicadas no país. A publicação tornou-se material fundamental de consulta para o estudo dos temas educacionais. Maria Ciavatta por correio eletrônico
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
NOSSA OPINIÃO
Quando os povos entram em cena
T
rês fatos dos últimos dias demonstram que a entrada em cena da luta popular altera rapidamente a situação internacional. A 3ª Cúpula dos Povos sufocou a Cúpula Presidencial das Américas. Nenhuma situação poderia ser mais simbólica para infringir a maior derrota ao projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) desde seu surgimento. Ganhamos uma importante batalha, embora saibamos que a guerra ainda será longa. Aprendemos que a Alca é mais do que um mero projeto. É uma necessidade estratégica para as grandes corporações e os interesses imperialistas dos EUA. Portanto, ainda é cedo para comemorar uma vitória definitiva, mas, sem dúvida ingressamos numa nova fase. A proposta de construir a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) se populariza e ganha força após Mar del Plata. A Campanha contra a Alca construiu uma sólida unidade entre as forças de nosso continente. Conseguimos o que muitos consideravam impossível – deter a Alca, derrotando o governo dos EUA. Ao mesmo tempo, Bush enfrenta seu pior momento. Nas principais capitais brasileiras, foram organizadas manifestações de protesto e centenas de jovens inundaram os muros com a pichação “Fora Bush”. Somente a docilidade do churrasco oferecido por Lula destoou do forte rechaço que
presidente estadunidense enfrentou em sua passagem pela América do Sul. Ao invés da posição firme apresentada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e até mesmo por Néstor Kirchner, da Argentina, Lula optou pela velha postura subserviente, limitando-se a pedir alívio no subsídio dos produtos agrícolas. Mas o que importa é o desgaste político crescente de George W. Bush, que enfrenta seus maiores índices de rejeição. A Marcha contra a Guerra em Washington, com mais de 150 mil participantes, inaugurou uma nova fase na luta. Até mesmo o general Douglas Lute, responsável pelo I Comando Central que supervisiona a ocupação do Iraque, já afirma publicamente que serão obrigados a retirar tropas significativas nos próximos 12 meses, apesar da “violência continuada”. Na Europa, a morte em circunstâncias não esclarecidas de dois adolescentes franceses, descendentes de imigrantes do norte da África, que se escondiam numa subestação elétrica na periferia de Paris, deflagrou uma intensa onda de explosões sociais que se propaga para Holanda, Bélgica e Alemanha. Milhares de jovens expressam seu desespero frente a um sistema excludente que não lhes oferece qualquer perspectiva de futuro. As reformas neoliberais privatizaram
os serviços, precarizaram os postos de trabalho ampliando o desemprego e concentrando as comunidades imigrantes em verdadeiros guetos, excluídos dos principais benefícios ainda existentes. Logo no início das revoltas, o ministro do Interior da França, Nicolas Sarkozy, referiu-se aos jovens rebelados como “ralé”, “gentalha” e “escória”, evidenciando o forte componente racista do governo. É simbólico que o governo francês tenha que ressuscitar uma lei dos anos 50, utilizada para reprimir a luta pela libertação da Argélia, para instaurar “toques de recolher” e assegurar mecanismos repressivos. Numa Europa rica e poderosa, exibida como modelo pelo capitalismo, a entrada em cena dos jovens excluídos pelo sistema revela a mesma face de barbárie que conhecemos tão bem em nosso continente. Milhões de trabalhadores imigrantes, que nada têm a perder, constituem uma nova face da segregação européia. Embora desorganizados, desvinculados dos demais setores operários e com baixo nível de consciência, o despertar destes jovens anuncia um novo período para a luta social na Europa. As três situações demonstram que os tempos estão mudando. Quando as lutas e mobilizações entram em cena a história acelera seus passos.
FALA ZÉ
OHI
CRÔNICA
Os chineses estão chegando Luiz Ricardo Leitão Já que a viperina Veja, honrando o seu papel de porta-voz oficial do capital transnacional em Pindorama, não hesitou em caluniar os cubanos às vésperas da viagem de BB Bush ao Cone Sul, este humilde cronista também se julga no direito de assuntar as invasões em curso no país. É claro que não usaremos da mesma tática a que se habituou a imprensa marrom tupiniquim, que a cada seis meses trata de destilar seu veneno com factóides bem ao gosto da burguesia tropical (lembram-se da insidiosa acusação de que as Farc, associadas ao narcotráfico, estariam financiando o PT?), tampouco aplicaremos a velha máxima do ministro de Propaganda nazista, segundo a qual uma mentira repetida à exaustão terminará tornando-se uma verdade. Aliás, por mais que Cuba se empenhe em exportar médicos e vacinas para o mundo, os herdeiros de Goebbels, que ainda vivem em plena Guerra Fria, jamais deixarão de pintá-la como um inferno ainda mais tenebroso que o pesadelo de Dante, povoado de comunistas que comem criancinhas e com o terrível demônio Fidel às portas do Hades, acionando com o seu tridente um formidável arsenal de armas biológicas. No atribulado reino dos homens, porém, enquanto Cuba apenas se empenha em tratar deficientes visuais e implantar programas de medicina familiar no Terceiro Mundo, parece que
um outro fantasma vermelho anda fazendo grandes estragos. Quem deu o alarma foi um pacato município do interior de Minas, talvez desconhecido dos leitores, batizado por algum devoto fervoroso com o singelo epíteto de Santo Antônio do Monte. Com apenas 28 mil habitantes, a cidade emprega 10 mil pessoas na indústria dos fogos de artifício, artistas anônimos que iluminam as noites de festa junina nos sertões e os festejos de Ano-Novo nas maiores capitais do país. Dizem que os mineiros são desconfiados e cautelosos em excesso, mas o povo de lá tem suas razões para alardear que “o perigo vem da China.” A concorrência asiática está tirando o sono de muita gente no povoado: este ano, segundo previsões dos fabricantes, as vendas cairão 30%, já que os fogos chineses, bem mais baratos que os nossos, estão ganhando cada vez mais espaço nos céus do Brasil. Até o réveillon carioca, famoso pelos efeitos pirotécnicos nas praias de Copacabana e da zona sul, capitulou à onda mandarim, fazendo com que o produto nacional ficasse estocado nos galpões das Gerais. O detalhe curioso é que, à diferença do que a peçonhenta Veja diz sobre Cuba, ao invés de exportar “dólares” ou “revoluções” (como um dia sonhou o audacioso Che nas selvas da África ou da Bolívia), a China, que também já foi um paradigma socialista no século 20, trata
de conquistar cada vez mais “mercados” neste mundo neoliberalmente globalizado. Conforme atestam suas taxas de PIB, a economia chinesa não pára de se expandir – e tamanha demanda seria até um fator chave a explicar a alta inexorável dos preços do petróleo. Os produtos made in China se espalham pelo mundo afora. Junto com eles, milhares de jovens cruzam a Grande Muralha e vão ser representantes comerciais de seu país em várias regiões do planeta, inclusive na América Latina. Por vezes, o choque cultural é inevitável, mas eles nunca desistem. Ao contrário: orgulhosos de sua pátria e de suas tradições milenares, incumbem-se com enorme obstinação da missão que lhes foi confiada. Sei que o modelo chinês é discutível e não posso prever o sucesso ou insucesso de sua estratégia (até porque, no breve espaço da vida humana, as ilações históricas são quase impossíveis), mas devo reconhecer que, pelo menos, eles estão bem menos taciturnos que o povo de Santo Antônio e de tantos outros santos deste almanaque chamado Brasil... Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)
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NACIONAL UNIVERSIDADES
Greves já duram mais de 60 dias Bel Mercês da Redação
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uas greves atingem universidades federais em todo o país. Há mais de 60 dias, professores de 38 das 61 instituições de ensino superior públicas estão parados. Dia 17 de agosto, foi a vez dos funcionários técnico-administrativos decretarem paralisação. Juntando as duas mobilizações, em cerca de 40 instituições as atividades acadêmicas estão suspensas e os processos de seleção já foram comprometidos. Os docentes rejeitaram a última proposta feita pelo Ministério da Educação (MEC) ao Comando Nacional de Greve do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), em reunião no dia 4. O secretário executivo adjunto do MEC, Ronaldo Nado Teixeira, havia se comprometido a apresentar uma nova proposta ao Comando, dia 31 de outubro. Segundo Marina Barbosa, presidente do Andes-SN, o governo reapresentou, durante a reunião, a mesma proposta rejeitada anteriormente. “O que ocorreu gera uma profunda indignação no comando de greve e no sindicato, nós já havíamos recusado essa proposta duas vezes”, alega. Os professores pedem reajuste de 18% como parte de recomposição salarial, incorporação das gratificações equiparadas pelos seus valores mais altos com paridade e isonomia, retomada dos anuênios, implementação das classes especial e de professor associado, abertura de discussão em torno da carreira única e realização de concursos públicos para reposição de vagas.
Marcello Casal Jr/ABR
Professores e funcionários das instituições de ensino superior não aceitam propostas do MEC e mantêm paralisações
Em frente ao Ministério da Educação, em Brasília, professores pedem reajuste de 18% para reposição salarial
O MEC propôs a liberação de R$ 500 milhões para as folhas de pagamento, sem incorporar as gratificações aos salários nem garantir isonomia e paridade. Os professores consideram os recursos insuficientes e asseguram que a proposta acaba com os planos de carreira, além de não incorporar reajuste para os aposentados. Por isso, o Andes-SN planeja, para dia 10, a entrega oficial ao MEC da decisão da categoria pela manutenção da greve. O ato de entrega deverá ser acompanhado por manifestações culturais na porta do ministério.
FUNCIONÁRIOS A paralisação dos funcionários acontece em 43 instituições do país. O Comando Nacional de Gre-
ve da Federação dos Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras (Fasubra) protocolou, dia 8, ofício em resposta a uma contraproposta feita pelo MEC, rejeitada pelos grevistas. Para Marcos Botêlho, um dos diretores da Fasubra, a proposta apresentada na última reunião com o ministério, dia 31 de outubro, é inviável: “Estamos tentando negociar. Essa semana vamos pressionar os líderes dos partidos e o ministro (do Trabalho) Luiz Marinho”. Os funcionários reivindicam garantia de recursos orçamentários para implementação da segunda etapa da carreira em janeiro de 2006, níveis de capacitação e incentivo de qualificação, resolução do Vencimento Básico Complementar
(distorção gerada na implantação da carreira), auxílio à saúde, rejuste do vale-alimentação e parcelamento de férias.
PROTESTOS Dia 8, o Comando Nacional de Greve entregou um documento a parlamentares, no Congresso Nacional. O documento afirma: “A Fasubra pauta sua história na defesa intransigente da universidade pública, gratuita, de qualidade e com compromisso social”. Os funcionários pedem que os políticos intercedam junto ao governo, “no sentido de sensibilizá-lo para que seja instalada, imediatamente, uma negociação efetiva”. Apesar de as greves serem distintas e terem pautas de reivindicação
próprias, professores, funcionários e estudantes têm realizado reuniões e protestos unificados. A Universidade Federal Fluminense (UFF), localizada na cidade de Niterói (RJ), foi palco de uma manifestação que acabou em pancadaria e repressão da Polícia Militar, dia 25 de outubro. O Comando Unificado de Greve realizava um ato pacífico no campus, quando policiais armados com cassetetes e cães de guarda investiram violentamente contra os manifestantes. “Funcionários, professores e alunos foram espancados com cassetetes e machucados com spray de pimenta”, conta a professora e mestre em sociologia Wilma Pessôa, que também integra o Comando Local de Greve dos docentes. Após a invasão da UFF, os manifestantes ocuparam a reitoria até que o superintendente administrativo da Federal Mário Ranconi, responsável pelo chamado à polícia, fosse afastado do cargo pelo Conselho Universitário. Na Universidade Federal de Alagoas, a reitoria está ocupada por alunos desde 26 de outubro. O estudante de jornalismo Mário Júnior relata que a ocupação conta com o apoio dos professores e funcionários, que levam alimentos aos manifestantes. Em contrapartida, os alunos apóiam as greves. “A gente entende que isso é uma luta em defesa da universidade pública. A greve é um instrumento de manifestação legítimo e necessário”, acredita. Segundo ele, a ocupação permanecerá enquanto a reitoria não se comprometer a acabar com as taxas cobradas por expedição de documentos e a abrir o restaurante universitário para todos os alunos.
ENTREVISTA
Governo intransigente em negociar A manutenção da política econômica, que exige altas taxas de superavit primário (economias do governo originadas principalmente dos cortes em gastos sociais), é a grande questão por trás da intransigência do governo em negociar o reajuste salarial de professores do ensino superior. Essa é a opinião de Paulo Rizzo, vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) que, em entrevista ao Brasil de Fato, também fala de outro grande desafio para os defensores da universidade pública, gratuita e de qualidade: mudar o atual anteprojeto da reforma universitária. Brasil de Fato – Essa é a segunda greve que o Andes participa no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Qual o balanço desse governo até agora? Paulo Rizzo – No governo Lula, fomos surpreendidos já no primeiro ano com a reforma da Previdência, quando o presidente mandou o projeto de emenda constitucional da Previdência ao Congresso sem fazer qualquer discussão com os servidores públicos. Aquele foi o motivo da primeira greve, pois ficou claro que o governo é seletivo no temas para negociação, ou seja, alguns negocia e outros, não. BF – E a greve deste ano? Rizzo – O que aconteceu é que o Ministério do Planejamento chamou, em abril, a Mesa Nacional de Negociações para dizer que não haveria reajuste nenhum, apenas um reajuste formal para atender à exigência da Constituição, que seria de 0,1%. Abriram negociações separadas com cada ministério, mas a decisão
comprometem a autonomia da universidade. Tudo na universidade deve ser aprovado pelo ministro da Educação, desde o estatuto da universidade, até o modelo em que as universidades devem buscar recursos próprios, inclusive para remunerar seus professores. Ao nosso entender, a autonomia da universidade depende do seu financiamento pleno. Quando a universidade passa a depender de empresas privadas ela perde autonomia.
Marcello Casal Jr/ABR
Dafne Melo da Redação
Professores resistem à privatização das universidades federais
de não dar reajuste maior já estava tomada. Então decidimos pela greve. Mesmo assim, o que o governo está negociando com a gente, agora, é para 2006, pois, para atingir a meta do superavit primário este ano, ele não está fazendo nenhuma concessão. Então, tudo que ele negocia este ano, é na verdade para 2006. BF – O que representa essa postura intransigente do governo? Rizzo – Evidencia que ele se move a partir da política econômica adotada, e que ela é o elemento central desse governo. O Ministério da Fazenda define e todos devem se submeter a essa política econômica. Isso dificulta todo o processo de negociação. A postura do MEC é dizer que eles batalham junto ao Ministério do Planejamento, mas que eles não aceitam. Agora estamos buscando outros setores do governo, pois ficou claro que o MEC não apita muito. BF – Este ano se falou em um movimento antigrevista por parte dos professores, que estaria mais agressivo a articulado. Como é isso?
Rizzo – Ano passado, quando nossa chapa – que era situação – foi eleita, a que perdeu criou uma nova entidade, a Proifes. Eles se propõem a ser um fórum de professores, mas é uma entidade pelega, que funciona com um braço do governo no movimento de docentes. Se apóiam nas associações de professores das universidades federais de São Carlos, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Goiás, entidades que não entraram em greve. Se baseiam num sindicalismo de resultados, então partem do que consideram possível – na verdade, aquilo que o governo quer conceder. Na nossa leitura, eles se submetem à lógica da política econômica. BF – A greve também é importante para mostrar ao governo que professores e estudantes têm força para se mobilizar também em relação à reforma universitária? Rizzo – Com certeza, pois o que está acontecendo é o enfrentamento entre duas lógicas. Nas propostas salariais, há duas lógicas que de certa forma expressam o embate que se dá na reforma universitária. Nesse projeto, eles
BF – Quais são outras evidências dessa interferência do setor privado nas universidades públicas? Rizzo – Há muitas contradições dentro das universidades. Por exemplo, na UFSC, há um curso de especialização, no Direito, feito por uma fundação. O curso é pago, tem biblioteca, todas as instalações e os alunos regulares não podem ter acesso àquilo. É uma ilha dentro da própria universidade. Esse é o processo de privatização interna dentro das universidades, onde indivíduos e grupos passam a ser proprietários de laboratórios, do conhecimento, e têm ali uma fonte de lucro. BF – Essa mobilização mostra também, ao governo, uma resistência à reforma universitária? Rizzo – A greve demonstra que dentro das universidades há um movimento de resistência muito grande a qualquer medida privatizante. Temos feitos assembléias em todos os lugares e a participação tem sido grande. Assim, vemos que temos condições melhores de enfrentamento na questão da reforma. O que nós trabalhamos nessa questão, mais do que dizer não ao anteprojeto, é fazer contrapropostas. BF – Na área do financiamento,
Divulgação
Quem é Paulo Marcos Borges Rizzo é professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Santa Catarina e vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) desde junho de 2004. como são as propostas? Rizzo – Queremos atacar no sistema legal tudo o que foi mudado nos anos 1990 e que reduzem o financiamento da universidade pública. No projeto do governo se diz que dos 18% da receita líquida de impostos destinados à educação, 75% ficam para o ensino superior. Só que esses 18% são menos dinheiro do que era em 1988. De lá para cá, inventaram as chamadas contribuições, sobre as quais não incidem verbas para a educação. Se as receitas de impostos em 1988 eram quase 50% da receita da União, hoje são menos de 30%. Depois, criaram a Desvinculação de Receitas da União (DRU), em que podem tirar até 20% do orçamento anual da educação. Então, buscamos mostrar que é possível modificar a legislação para ter garantias de que o governo não possa cada vez tirar mais.
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Espelho
Prisões secretas O jornal The Washington Post, dos Estados Unidos, denunciou que a CIA – agência de espionagem – mantém vários esconderijos fora de seu país para interrogar e torturar suspeitos de atividades antiestadunidenses. Segundo o jornal, essas prisões secretas são do conhecimento da Casa Branca, embora todos neguem a sua existência. Vale lembrar que as denúncias de torturas contra militares dos Estados Unidos são cada vez mais freqüentes. Reconhecimento externo O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, conhecido por suas denúncias contra os grupos econômicos que destroem a floresta amazônica, recebeu o Prêmio International Press Freedom, do Commitee to Protect Journalists, que será entregue dia 22, em Nova York. Recentemente, o jornalista foi agredido fisicamente pelo empresário Ronaldo Maiorana, que manda na mídia do Pará. A liberdade de imprensa ainda precisa ser conquistada no Brasil. Intriga midiática A imprensa empresarial, que sempre esteve ligada aos interesses das oligarquias e do imperialismo, vive inconformada com o crescente prestígio do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e com os ventos esquerdistas que sopram na Bolívia. Dia sim dia não, o jornal O Estado de S. Paulo publica alguma matéria de intriga política envolvendo Chávez, Lula e Evo Morales. Não que todos sejam iguais, mas certamente não fazem parte das elites preferenciais do jornal. Manobrinha safada Ao noticiar que as eleições gerais na Bolívia serão realizadas no dia 18 de dezembro, o jornal O Estado de S. Paulo informou, sutilmente, que o candidato Jorge Quiroga, de centro-esquerda, é “um dos favoritos nas pesquisas”; e que o candidato Evo Morales está “bem colocado nas pesquisas”. Na verdade, todas as pesquisas colocam Evo Morales, do Movimento ao Socialismo, bem na frente de Jorge Quiroga. É só um detalhe. Toninho Malvadeza No tiroteio generalizado de denúncias de corrupção praticado pelas revistas semanais burguesas, a Carta Capital incluiu um relatório do Tribunal de Contas da Bahia, segundo o qual cerca de R$ 48 milhões foram desviados da Bahiatursa para as contas da Propeg, agência de publicidade comandada por pessoas ligadas ao velho coronel Antônio Carlos Magalhães, do PFL. Por sinal, Toninho Malvadeza construiu um império de comunicações praticamente do nada – talvez seja obra dos orixás. Ilusão democrática A última edição da Revista da Adusp publica amplo material de debate sobre a falsa democracia que impera na Universidade de São Paulo, onde as regras dos colegiados e das eleições favorecem o controle da instituição pelo clã dos professores titulares. A imensa maioria dos professores, alunos e funcionários continua excluída do processo democrático. Masoquismo petista A submissão do governo Lula à imprensa tradicional é mais uma das contradições da ascensão petista ao poder: inexplicavelmente a Secom continua jogando dinheiro público em veículos que não têm compromissos com o povo brasileiro e o país. É o caso da revista Veja, que recebeu seis páginas de anúncios estatais na última semana, inclusive de anunciantes que cortaram o patrocínio da Agência Carta Maior – que produz um jornalismo ético e independente.
Viração ganha prêmio de cidadania Revista foi escolhida por ousadia e pioneirismo nos temas abordados Gabriel Mitani de São Paulo (SP)
A
revista Viração ganhou, dia 3, mais um prêmio por seu trabalho focado no protagonismo juvenil. Desta vez, a revista recebeu o Prêmio Cidadania Mundial 2005, concedido pela Comunidade Bahá’i do Brasil. Viração consagrou-se entre os nove vencedores brasileiros, dos 54 finalistas de 23 Estados. Alberto Dines (do Observatório da Imprensa), Ângela Basto (do Diário Catarinense), Eugênio Bucci (da Radiobrás), Gilberto Dimenstein (da Folha de S. Paulo), Marcelo Canela (do Jornal Nacional, da Rede Globo) e o cartunista Ziraldo Alves Pinto foram os escolhidos na categoria individual do prêmio. Na categoria institucional, além da Viração, foram premiadas a página de internet DHNet, do Rio Grande do Norte, e a TV Educativa, do Rio de Janeiro. Realizado a cada dois anos, o prêmio enfoca um tema atual que mereça a atenção da sociedade e contempla uma mídia comprometida com a defesa das populações vulneráveis. “Considerando que o papel da comunicação social é muito importante na construção de valores, o tema Mídia Cidadã foi escolhido para este ano”, conta Washington Araújo, presidente da Comunidade Bahá’i do Brasil e um dos jurados do prêmio. Para escolher os vencedores deste ano, além da própria Comunidade Bahá’i, a entidade contou com outros sete jurados, representantes da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), da Ordem dos Advogados do Brasil, do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e da Secretaria
Representantes de escolas, organizações e movimentos sociais participam do conselho editorial jovem da revista Viração
de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Os critérios para a escolha dos vencedores de 2005 foram o impacto e a transformação sociais suscitados pela atividade jornalística, o pioneirismo nas matérias e reportagens, o reconhecimento público, a coragem e a audácia nos trabalhos. “A ousadia da Viração foi fundamental para a revista ganhar o prêmio”, revela Araújo. Para o presidente da Comunidade Bahá’i, “a revista desenvolve o respeito pelas diferenças e maneiras alternativas de ver e pensar o mundo”, analisa. Para quem trabalha na redação da revista, o prêmio tem um sabor especial. “É um estímulo e dá mais visibilidade ao nosso projeto”, afirma Daniela Landin, repórter da Viração. “O reconhecimento de um trabalho sério acaba, de certa forma, estimulando outras iniciativas do tipo e mesmo o patrocínio”, avalia.
PROJETO SOCIAL IMPRESSO A cerimônia de entrega do prêmio será dia 13 de dezembro, em Brasília, no Ministério da Justiça. Os nove premiados de 2005 se
juntam a um seleto grupo de Cidadãos Mundiais, do qual fazem parte Lygia Fagundes Teles (1996), Hélio Bicudo (1997) e Leonardo Boff (1998). Projeto social impresso de educomunicação, como se autodefine, a Viração promove oficinas de comunicação e educação para a mídia em escolas e grupos de jovens na cidade de São Paulo. Criado em março de 2003, o projeto é afiliado à organização não-governamental Associação de Apoio a Meninos e Meninas da Região Sé (AAMM) e recebe apoios institucionais da Unesco e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Sem similares no mercado, em termos de proposta editorial, a revista tem mais um diferencial: o Conselho Editorial Jovem, composto por representantes de escolas públicas, escolas privadas, ONGs e movimentos sociais. Atualmente há conselhos editoriais jovens em 13 capitais (Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Recife, Natal, Fortaleza, São Luís, Campo Grande e Manaus).
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Sem limite Na entrevista coletiva do presidente Lula para o programa Roda Viva, da TV Cultura, ficou evidente que ele está informado sobre as denúncias e a crise que atingem seu governo e o PT; ou seja, não está tão alienado como insistiam alguns setores da oposição. De outro lado, o presidente não conseguiu disfarçar o cinismo em suas respostas sobre o desempenho da administração federal. Deu a entender que já fez tudo o que o país precisava. O povo que o diga.
Divulgação
da Redação
MÍDIA JOVEM
Primeira no ranking de mídia jovem
Em 2004, a revista foi premiada pelo Programa de Iniciativas Culturais, da Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, e recebeu o Prêmio Don Mario Pasini Comunicatore, em Roma. Também foi a primeira colocada no ranking 2005 de mídia jovem, promovido pela Andi. Para mais informações sobre o prêmio, acesse a página de internet www.bahai.org.br/premio. Sobre a revista Viração, veja www.revista viracao.com.br.
Jornais escolares melhoram o aprendizado Ana Rogéria Araújo de Fortaleza (CE) O jornal Cria Nossa chega à Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Maria, localizada num bairro da periferia de Fortaleza, Estado do Ceará. A edição, uma publicação com quatro páginas, feita a partir de textos e desenhos dos próprios alunos e diagramada pelos professores, aumenta a euforia na hora do recreio. Todos querem ver o jornal que fizeram, fruto do projeto Primeiras Letras. Voltado para o ensino fundamental, o projeto tem como proposta dinamizar o processo de ensino-aprendizagem por meio da produção de jornais escolares. A experiência se repete em 915 escolas cearenses e em outras 50 pernambucanas, onde o projeto já está implementado. O município de Santarém, no Pará, acaba de aderir. “A idéia é criar uma rede de jornais escolares, socializar conhecimentos e novas formas de apropriação do jornalismo escolar, constituindo uma comunidade de aprendizagem”, afirma Daniel Raviolo, coordenador geral da organização não-governamental Comunicação e Cultura, responsável pelo Primeiras Letras. Tendo como base o pensamento de educadores como Paulo Freire e Celestin Freinet, o Primeiras Letras faz do jornal escolar uma ferramenta para desenvolver nos alunos senso crítico da realidade em que vivem, além de tornar as aulas mais prazerosas e os alunos, mais interessados. Entusiasmo não falta. “É muito bom porque muitas vezes você não
Comunicação e Cultura
da mídia
NACIONAL
têm medo de ser críticos. Eles chegam e dizem o que querem, reivindicam seus direitos”. Ela destaca ainda o alcance da publicação. Há algum tempo, conta, um esgoto a céu aberto em frente à escola era freqüentemente citado nos textos dos jornais. “De tanto o jornal cobrar providências do prefeito, o buraco foi tapado. Toda edição que sai a gente manda para a prefeitura e para as Secretarias de Educação do Estado e do Município”, diz Marluce.
COMBATE À DESERTIFICAÇÃO
Jovens do Cria Nossa fazem parte da rede de jornais de escola
tem coragem de falar, aí escreve. Acho que o jornal mudou muita coisa na escola. Tem gente que não dá muita atenção, mas quando vê que outras pessoas participam, quer entrar também”, conta Juliane Rodrigues, 15 anos, estudante da escola Santa Maria. A aluna Dayane Henrique, 14 anos, afirma que escrever para o jornal escolar faz com que os alunos fiquem mais criativos e espertos: “A gente fica mais atento e mais informado. Eu gosto de ver meus textos publicados, gosto de saber que posso estar fazendo alguma coisa útil e que alguém vai ler aquilo que escrevi”.
FORMANDO CRÍTICOS Os professores são fundamentais nessa dinâmica de ensinoaprendizagem. Atuando como
“editores” dos jornais escolares, eles trabalham, em sala de aula, o material que será transformado em texto para as publicações. Consciente dos problemas do ensino público brasileiro, a vicediretora Lucineide Araújo de Andrade afirma que, embora existam professores resistentes, a maioria tem adotado o projeto com muita vontade. “Precisamos entender que aquilo que é bom para o aluno, também é bom para o professor. Esse crescimento conjunto faz parte do nosso dia-a-dia”, salienta. Pioneira no projeto, a professora Marluce Maia, que desde 1995 vem trabalhando com o jornal escolar na Escola Paroquial do Trilho, situada numa região carente de Fortaleza, ressalta os benefícios para os alunos: “Os meninos não
Acreditando nas escolas como espaços geradores de discussões e de formação de opinião, o projeto Primeiras Letras lançou, em parceria com o Instituto Sertão, com sede em Fortaleza, o concurso “Jornais Escolares contra a Desertificação”. O objetivo é levar o assunto para debate em sala de aula e, depois, abordar o tema nos jornais escolares. Serão premiadas as melhores reportagens. Mais de 75% da Região Nordeste está sujeita à desertificação, o que interfere diretamente na qualidade de vida dos habitantes. O assunto requer muita discussão, sobretudo em termos de políticas públicas efetivas para reverter esse quadro. Muitos jornais escolares estão trazendo informações sobre a convivência com o semi-árido, sobre os meios para evitar o desmatamento e apontando os riscos da desertificação. “Como os jornais circulam não só nas escolas, mas também nas comunidades, acreditamos que as pessoas estão realmente sendo informadas sobre o problema”, comenta Raviolo.
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NACIONAL MORADIA
Briga política prejudica sem-teto em GO Marcelo Netto Rodrigues da Redação
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novela dos 15 mil sem-teto despejados violentamente por 2 mil policiais em Goiânia, em fevereiro, vai completar nove meses. E continua a surpreender, a cada capítulo. Apesar de ter o nome de 12 policiais suspeitos pelo crime, o delegado responsável pela investigação das mortes dos dois sem-teto no confronto preferiu prender, no dia 26 de outubro, duas lideranças dos ocupantes. A justificativa foi de que Eziel Feitosa e Américo Novaes seriam os mandantes, durante a ocupação, de um disparo que atingiu um tenente – promovido a capitão após o conflito. No dia 8, data do fechamento desta edição, Feitosa continuava na prisão com previsão de soltura, e Novaes já estava livre. As prisões foram consideradas ilegais e desnecessárias pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Nélson Naves, depois de os habeas-corpus terem sido negados pela Justiça de Goiás. “Fui preso dentro do carro quando levava meus filhos para a escola”, disse Novaes, que quer a entrada da Polícia Federal no caso e a federalização do processo – já que, segundo ele, o delegado Waldir Soares estaria assediando acampados para que se transformem em testemunhas contra as lideranças, em troca de cestas básicas e promessas de emprego.
Arquivo Brasil de Fato
Justiça prende lideranças enquanto famílias sofrem à espera de definições para construção de casas
Sem-teto vítimas da ação truculenta da Polícia Militar do governador Marconi Perillo (PSDB), realizada em fevereiro
para que os R$ 18,5 milhões repassados pelo governo federal sejam utilizados na construção de casas em um local definitivo, antes que o dinheiro volte aos cofres públicos. A aplicação dos recursos depende de um consenso entre os governos estadual e municipal, que ainda não chegaram a um acordo. A área não é problema. Uma propriedade de 31 alqueires (o equivalente a 75 campos de futebol),
SONHO REAL O próximo capítulo da ocupação “Sonho Real” já tem data marcada: se dará até dezembro, data-limite
que pode ser repartida em 2.972 lotes, já foi adquirida. Agora, as 1,8 mil famílias – que estão acampadas em barracos de lona após o despejo – aguardam o desenrolar da disputa política entre o governador Marconi Perillo (PSDB) e o prefeito de Goiânia Íris Rezende (PMDB). “Enquanto eles ficam nos usando como bola de pingue-pongue para bater um no outro, nós estamos correndo o risco de perder o dinheiro
ATINGIDOS POR BARRAGENS
mandado pelo governo federal”, desabafou Novaes. Enquanto a moradia não vem, 12 acampados já morreram, em conseqüência das precárias condições a que estão submetidas, segundo informações de Lúcia Moraes, relatora nacional para o Direito Humano à Alimentação Adequada e Terra Urbana, ligada ao Programa das Nações Unidas para o Voluntariado. O despejo do Parque Oeste Indus-
trial, dia 16 de fevereiro, foi considerado uma das mais graves violações de direitos humanos da história do Brasil, praticada pelo próprio Estado. Durante o confronto, que ocasionou a morte de Pedro Nascimento Silva e Wagner da Silva Moreira, outro sem-teto, Marcelo Henrique Dias, ficou paraplégico. Além disso, várias pessoas foram feridas e mais de 800 foram detidas. As famílias são ligadas ao Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MTL).
RIO DE JANEIRO
Polícia fere famílias acampadas Igreja desaloja moradores da zona portuária em Campos Novos A violência contra os atingidos por barragens se repete em Santa Catarina. Na semana passada, cerca de 300 famílias reocuparam a Usina Hidroelétrica de Campos Novos, e logo na chegada foram recebidas à bala pela polícia, que feriu mais de 20 pessoas. A obra, das empresas Votorantin, Bradesco, Camargo Corrêa e CBA, integrantes do consórcio Enercan, conta com investimentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Desde o início deste ano, o clima é tenso na região. A prisão claramente política de dez lideranças do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), dois dias antes de uma mobilização em 14 de março, Dia Internacional de Luta Contra as Barragens, iniciou uma seqüência de violações aos direitos humanos. Os atingidos pela barragem de Campos Novos denunciam irregularidades na construção da usina, como o fechamento das comportas sem autorização da Fundação do Meio Ambiente (Fatma), o início do enchimento do lago durante a noite, sem nenhuma campanha avisando a população e o fechamento da barragem sem soluções para os problemas sociais e ambientais. Além disso, mesmo depois da divulgação do relatório da Fatma reconhecendo as famílias como atingidas, a Enercan continuou oferecendo indenizações irrisórias. A pressa em iniciar o enchimento do reservatório resultou no vazamento em um dos túneis da
Lígia Coelho do Rio de Janeiro (RJ)
MAB
Alexania Rossato de Brasília (DF)
Em Campos Novos, atingidos por barragens foram recebidos à bala pela polícia
barragem, conforme noticiou o jornal Diário Catarinense de 27 de outubro. “Esse fato a empresa tenta esconder, mas temos que denunciar, pois põe em risco a vida das pessoas”, afirma Tiago Cavichon, liderança da região.
DENÚNCIA À OEA Frente a isso, no início de outubro a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DHESC) e o MAB encaminharam à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) um pedido de medida cautelar com denúncias de violação de direitos humanos dos atingidos. A denúncia foi motivada pela expedição da licença de operação da barragem que pode tornar irreversível “a destruição das bases materiais e culturais de que dependem os grupos populacionais atingidos, inviabilizando a sustentação de seus sistemas produtivos tradicionais e sua repro-
dução sociocultural”, como consta na denúncia. Ainda em outubro, o MAB e a ONG Terra de Direitos enviaram representantes a Washington, nos Estados Unidos, para cobrar do BID providências frente a todos os problemas locais. “Entendemos que tanto os que constroem, quanto os que financiam a obra têm responsabilidades sobre os fatos que estão ocorrendo na região”, afirmam as lideranças. O MAB estuda a possibilidade de solicitar ao Banco a instalação do Mecanismo de Investigação Independente, assim como aconteceu na barragem de Cana Brava, em Goiás. Esta semana, começou mais uma rodada de negociações entre MAB, Ministério de Minas e Energia, Fatma e Enercan. O MAB alerta que o que acontece em Campos Novos não é um fato isolado no Brasil. Segundo lideranças do movimento, os treinamentos militares na barragem de Tucuruí, no Pará, e na barragem de Samuel, em Rondônia, confirmam que a repressão continua.
Em uma cena que contrasta com os princípios de fraternidade pregados pela Igreja Católica, 30 famílias da comunidade da Pedra do Sal, no bairro da Saúde, zona portuária do Rio de Janeiro, foram despejadas de suas casas, dia 24 de outubro, por conta de uma ação movida pela Venerável Ordem 3ª de São Francisco da Penitência. Ligada à Igreja Católica, a ordem religiosa alega ter a propriedade dos imóveis e vem pressionando para remover antigos moradores da região, sob diversos pretextos – necessidade de ampliação da Escola Padre Francisco da Mota, administrada pela Ordem, reintegração de posse, atraso nos pagamentos dos aluguéis, denúncia vazia. As famílias despejadas ou ameaçadas acreditam, porém, que o verdadeiro motivo das ameaças e ordens de despejo seria a súbita e contínua valorização dos imóveis da região, desde que foi anunciado o projeto de revitalização da zona portuária. Damião Braga, presidente da Associação de Moradores e Amigos da Saúde, é um dos ameaçados. Nascido e criado na região, ele e a família ocupam, desde 1998, o imóvel de número 11 da Travessa Sereno, próximo ao Largo de São Francisco da Prainha, ponto de encontro e local de lazer e socialização da comunidade. Para despejálo, a Ordem 3ª está movendo uma ação de reintegração de posse. Outro caso é o de Raimundo Ferreira. Morador do Adro de São Francisco, nº 8, junto à igreja de mesmo nome, ele está no local desde março de 1976. Está sendo despejado sob a alegação de falta de pagamento, embora guarde con-
sigo todos os recibos de pagamento dos aluguéis.
RESISTÊNCIA Segundo Damião, presidente da Associação de Moradores, a pressão para que os moradores deixassem os imóveis começou há cerca de cinco anos. Dispostos a resistir, eles se organizaram e recorreram a órgãos públicos, entre eles o Instituto da Terra do Estado do Rio de Janeiro (Iterj). Por um processo administrativo de regulação fundiária, o Instituto reconheceu que toda a região, a partir da Rua Sacadura Cabral em direção ao Morro da Conceição, faz parte de um complexo remanescente de quilombos. Isso beneficiaria os descendentes dos antigos quilombolas que lá permaneceram. Resultante de aterro construído por escravos e assalariados durante as obras de construção do cais do porto, a Rua Sacadura Cabral abriga em seu entorno prédios do século 19. Antigos decretos reais, datados de 18 de novembro e 20 de dezembro de 1816, asseguram a posse de todos os imóveis construídos no local aos trabalhadores que aterraram a região e seus descendentes. Com base em documentos como esse e pelo apoio de outras entidades e grupos organizados, como o Movimento Negro Unificado, a Associação de Moradores pretende resistir na Justiça. A briga é grande, uma vez que a Ordem 3ª também apresenta documentação antiga, embora posterior (cópia de alvará do então príncipe regente, D. Pedro I, doando a área para a ordem religiosa). Sem ter para onde ir, os moradores vêm fazendo atos públicos. Planejam, inclusive, manifestações durante as missas de domingo na região.
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NACIONAL COCA-COLA
PF comprova uso de folha de coca
Hamilton Octavio de Souza
Componente proibido pela lei brasileira torna o refrigerante passível de suspensão do mercado
Encrenca grossa – 2 Da mesma forma, fica cada vez mais inacreditável que o Banco do Brasil tenha transferido uma fortuna para a agência de Marcos Valério, que essa tenha colocado o dinheiro no BMG, que este tenha “emprestado” o dinheiro para o PT – sem que o Banco Central e o Ministério da Fazenda tenham percebido algo estranho nessas operações. Qualquer governo sério demitiria os responsáveis só por dormir no serviço. Surpresa sindical Finalmente as principais centrais sindicais do Brasil decidiram unificar suas forças para defender o reajuste do salário mínimo para R$ 400 e correção da tabela do Imposto de Renda na fonte em 13%, a partir de 2006. As entidades estão prometendo realizar manifestações em Brasília, nos dias 28, 29 e 30. Será um teste para ver se – juntas – as centrais sindicais conseguem colocar os trabalhadores nas ruas. Ilegalidade suspeita Estimativas de entidades da agricultura registram que mais de 50% dos cereais plantados no país, da safra 2005-2006, são de sementes piratas, em parte porque o comércio das transgênicas, embora liberado, continua sendo feito de forma irregular. Afinal, a quem interessa o contrabando e o comércio ilegal de sementes? Esperteza judicial Para escapar da nova resolução do Conselho Nacional de Justiça, que reafirma a ilegalidade do nepotismo no serviço público, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte tratou de conseguir, por meio da Assembléia Legislativa e aval da governadora Wilma Faria, do PSB, uma lei que mantém os parentes dos juízes nos cargos comissionados em que estão. Tremenda maracutaia em nome do “direito adquirido”. Nem o Judiciário escapa do banditismo. Situação grave Parece incrível, mas independentemente de governos, o Brasil continua violando a Convenção sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, assinada em 1976, que condena a prática da escravidão, da tortura e dos excessos cometidos por agentes policiais nas detenções e interrogatórios. Recentemente, o Comitê de Direitos Humanos pediu ao Brasil que erradique esses abusos e os “assassinatos extra-judiciais”. E olha que o país saiu da ditadura em 1985. Truculência tucana Cada dia mais violenta, a Polícia Militar do governo Geraldo Alckmin, do PSDB, usou todo o seu arsenal de guerra, inclusive bombas de gás pimenta, para reprimir os trabalhadores rurais sem-terra que protestaram dia 3, na rodovia entre Rancharia e Martinópolis, no Pontal do Paranapanema, contra a prisão de lideranças do MST. Os policiais não tiveram a menor consideração com as crianças atingidas pelo gás. Prêmio Bush para Alckmin. Indagação necessária Se a proposta da Alca afundou e se Brasil e Estados Unidos não concordam em quase nada sobre economia e América do Sul, o que explica a exagerada troca de elogios entre os presidentes Bush e Lula, no churrasco do dia 6, na Granja do Torto, em Brasília?
Igor Ojeda da Redação
ra. Desde 2003, a Dolly acusa a Coca-Cola na Justiça de concorrência desleal, abuso do poder econômico e práticas criminosas para tirá-la do mercado. O requerimento da Câmara dos Deputados foi um desdobramento dessa briga. Em comunicado à imprensa, a Coca-Cola acusa a Dolly de coordenar uma campanha difamatória contra si.
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audo do Instituto Nacional de Criminalística (INC) do Departamento da Polícia Federal concluiu: a Coca-Cola do Brasil usa folhas de coca como matéria-prima na fabricação do extrato vegetal (também chamado de mercadoria nº 05) utilizado como componente do seu refrigerante de cola. Segundo a Lei de Fiscalização de Entorpecentes em vigor no país, o Decreto-Lei 891, de 25 de novembro de 1938, o uso dessa substância e de suas preparações é terminantemente proibido, mesmo que não acusem alcalóides entorpecentes. A análise química foi realizada pelos peritos Octavio Brandão Caldas Netto, Felipe Gonçalves Murga e Adriano Otávio Maldaner, em atendimento à solicitação da Câmara dos Deputados de novembro de 2004, em nome do deputado Renato Cozzolino (PDT-RJ). O requerimento questionava, entre outras coisas, se o extrato vegetal usado pela Coca-Cola e importado da empresa estadunidense Stepan Chemical Company era derivado da folha de coca e se continha alguma substância entorpecente derivada da coca.
COMERCIALIZAÇÃO SUSPENSA
PROIBIÇÃO DE DERIVADOS Em relação à primeira pergunta, o laudo atesta: “... as folhas de coca provenientes do vegetal cientificamente denominado Erytroxylum novagranatense, variedade truxillensi, cultivada no Peru, são utilizadas como matéria-prima na fabricação do extrato vegetal a partir do qual é fabricado o refrigerante Coca-Cola”. Em relação à segunda, o texto responde que “as análises químicas realizadas (...) não revelaram a presença de cocaína e outras substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas na composição dos extratos vegetais”. No entanto, revela que algumas substâncias “não foram identificadas por meio de técnicas analíticas empregadas” e que
Folha de coca é utilizada pela Coca-Cola para a produção de refrigerante de cola
outras análises ainda serão realizadas, “caso sejam úteis para o esclarecimento do caso”. Em comunicado oficial à imprensa, a Coca-Cola do Brasil comemora o fato de que o laudo do INC atesta “que não há nenhuma substância ilegal na fórmula do produto”. Afirma ainda que esse resultado era esperado e, nas palavras do diretor de Comunicação, Marco Simões, que seu produto “já foi exaustivamente testado onde mais interessa: no mercado, por bilhões e bilhões de consumidores, ao longo de 120 anos”. Esquece de mencionar, contudo, que a legislação brasileira não proíbe apenas a utilização
de alcalóides entorpecentes, mas de qualquer derivado da folha de coca. Omite também a presença no extrato vegetal das substâncias nãoidentificadas pelo laudo. “Não adianta mascarar a verdade. As autoridades constituídas têm o dever de tomar uma providência imediata, proibindo a comercialização do produto”, afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, Laerte Codonho, dono da empresa de refrigerantes brasileira Dolly. “Como pode um alimento, consumido inclusive por crianças, trazer folhas de coca e outras substâncias não-identificadas?”, questiona uma nota emitida pela empresa brasilei-
O diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Auditoria em Vigilância Sanitária (Inbravisa), Rui de Andrade Dammenhain, diz que, uma vez comprovada a transgressão da lei, o poder de ação é do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “O produto, em tese, teria que ter sua comercialização suspensa. É muito difícil esse laudo ser contestado, porque eles (os peritos do INC) são muito criteriosos, e o resultado dele é oficial”, diz, reforçando que a lei brasileira é bem clara em relação ao assunto. Para ele, o fato de o laudo não ter apontado a presença de alcalóides entorpecentes vai causar uma briga jurídica grande pois, apesar da lei proibir a utilização de folha de coca, pode-se alegar que não foram identificadas substâncias que fazem mal à saúde do consumidor: “Agora, é preciso ver quais são essas outras substâncias utilizadas, porque elas podem eventualmente somatizar o efeito no organismo humano. É preciso fazer outros exames, com outros reagentes, para tentar identificar”. Procurado pelo Brasil de Fato, o Ministério da Agricultura preferiu não se manifestar, por não ter sido informado formalmente sobre o assunto. Desde março deste ano, tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ) mandado de segurança impetrado pela Dolly contra o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, solicitando providências imediatas com relação à cassação do registro da Coca-Cola. Por meio de representação feita pela empresa brasileira, o laudo do INC passou a fazer parte do processo.
BAIXARIA NA TV
Liminar tira programa de João Kleber do ar Bia Barbosa de São Paulo (SP) A juíza federal Rosana Ferri Vidor concedeu, dia 4, liminar suspendendo por 60 dias a veiculação do programa Tardes Quentes, da Rede TV!, dirigido e apresentado pelo humorista João Kleber. A partir do dia 5 de janeiro, o programa poderá ser exibido somente depois das 23h30. A liminar veio em resposta a uma ação civil pública protocolada dia 24 de outubro pelo procurador regional Sérgio Suiama, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão em São Paulo, em conjunto com ONGs que defendem os direitos dos homossexuais e os direitos humanos. A ação pediu a cassação da concessão da TV Omega Ltda, a Rede TV!, por ter cometido uma série de violações de direitos humanos no programa Tardes Quentes. Junto à ação, o Ministério Público Federal (MPF) havia entregue à Justiça Federal um DVD com duas horas de compilações do quadro que faz “pegadinhas”. Entre as cenas selecionadas estão quadros em que os atores que representam os homossexuais são humilhados e terminam punidos com socos e pontapés pelos passantes. Mas não só os homossexuais são desrespeitados pelo programa. As pessoas abordadas pelos atores são gratuitamente chamadas de “trouxas”, “fedidos”, “aleijados”, “cornos”, “otários”, “escrotos” e
Divulgação
Encrenca grossa – 1 Se ficar comprovado que a CPI dos Correios tem razão sobre a origem do dinheiro usado pela dupla Marcos Valério e Delúbio Soares, proveniente do Visanet-Banco do Brasil, o desvio compromete diretamente o governo Lula no “caixa dois” do PT e no pagamento da bancada aliada no Congresso Nacional. Como é possível que o ex-ministro Luiz Gushiken, que controlava toda a verba de comunicação, tenha perdido a bagatela de R$ 10 milhões?
Marcelo Curia
Fatos em foco
cidadãos; do direito dos telespectadores não serem agredidos por sua orientação sexual e na sua dignidade humana”, afirma o procurador.
DESEDUCAÇÃO
João Kleber, líder na baixaria
“galinhas”. Alegando não ter sido informada oficialmente, a Rede TV! transmitiu o programa Tardes Quentes dia 7. A juíza Rosana Ferri Vidor, que concedeu a liminar, definiu logo em seguida que a emissora terá de pagar multa de R$ 200 mil por dia se violar novamente a ordem judicial. “A emissora de TV é uma concessão pública e como tal deve obedecer preceitos estabelecidos pela Constituição Federal. Humilhar pessoas comuns do povo e submetê-las ao constrangimento é algo intolerável num Estado Democrático de Direito, que deve assegurar o direito à igualdade. Este é um humor que não causa riso”, afirma Suiama. “No caso dos homossexuais, esse tipo de veiculação reforça uma conduta preconceituosa e homofóbica. É uma forma de inferiorizar os homossexuais, que são as vítimas preferenciais dos programas humorísticos. Trata-se, portanto, da violação dos direitos de milhões de
A juíza Rosana Ferri Vidor concordou com a argumentação da ação e afirmou na liminar que os quadros apresentados pelo humoristas apresentam atitudes claramente depreciativas, preconceituosas e deturpadas de estereótipos de minorias, tais como os homossexuais, idosos, mulheres, pessoas com deficiência física e crianças. Para a juíza, a reiteração constante desse tipo de comportamento num meio de comunicação de massa banaliza esse tipo de atitude e contribui para a “deseducação” da sociedade, sobretudo num horário em que milhares de crianças e adolescentes estão assistindo à televisão. A juíza Rosana afirmou ainda que no programa Tardes Quentes verifica-se a sistemática utilização de personagens estereotipados, comentários vulgares, palavreado chulo, violência e humilhações aos participantes, ridicularizando minorias sociais. Desde 2003, o MPF em São Paulo apura queixas de telespectadores em relação aos programas comandados pelo apresentador. Além do Tardes Quentes, exibido de segunda a sábado durante o dia, o Eu Vi na TV recebe diversas reclamações em função do supostamente montado quadro “Teste de Fidelidade”, em que mari-
dos ou mulheres traídos assistem, no palco, a gravações de seus parceiros os traindo. Por diversas vezes, o quadro exibe cenas de agressões entre os casais. Os dois programas aparecem constantemente no ranking da campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”, criada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. “Tal pedido não implica a interferência na liberdade de expressão da emissora ou dos produtores do referido programa, uma vez que as liberdades individuais devem ser exercidas por cada um de modo a não interferir na esfera de liberdade do outro. São como linhas paralelas, que devem seguir sem se atingirem. A partir do momento que uma fere a outra, ou seja, que um indivíduo usa de sua liberdade de modo que interfira na esfera de direitos dos outros, havendo provocação, o Estado-Juiz deve intervir”, escreveu a juíza na liminar. O Ministério Público pede ainda que a emissora e João Kleber, que dirige e produz o programa, sejam condenados a indenizar a sociedade por dano moral coletivo no valor de R$ 20 milhões – o equivalente a 10% do faturamento bruto anual da emissora. A cassação da concessão da Rede TV! é pedida no mérito da ação, ou seja, ainda depende do trâmite normal do processo para ser definida. A emissora pode recorrer do resultado. (Agência Carta Maior, www.agenciacartamaior.com.br )
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De 10 a 16 de novembro de 2005
NACIONAL A ROTA DOS PARAÍSOS FISCAIS
Remessas de dólares crescem 36% Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
O
dinheiro mantido oficialmente por brasileiros em contas e investimentos diversos no exterior atingiu 93,2 bilhões de dólares no final de 2004, dado mais recente divulgado pelo Banco Central (BC), na semana passada. Aquele valor cresceu quase 13% em relação a dezembro de 2003, e acumula um incremento de praticamente 36% desde 2001, quando o BC passou a contabilizar esse tipo de estatística. O primeiro levantamento, realizado em 2002, identificou a existência de 68,6 bilhões de dólares de brasileiros em outros países, em 31 de dezembro de 2001. Na maior parte, foi um dinheiro que deixou o país aproveitandose de brechas na legislação, que permitem o que os especialistas na área classificam como “planejamento tributário” – que nada mais é do que a “arte” de driblar o leão da Receita Federal. E, assim, reduzir substancialmente o pagamento de impostos, ou mesmo isentar integralmente grupos econômicos e milionários de seu recolhimento, criando uma situação de concorrência desleal frente a empresas que não podem recorrer aos mesmos expedientes. Um indício de que esses dólares não saíram daqui para gerar investimentos, renda, empregos em outros países e abrir mercados para futuras exportações do país é que, nada mais, nada menos do que 54,5% dos dólares foram destinados a investimentos, aplicações financeiras e negócios realizados em paraísos fiscais. Nesses locais, não se cobram impostos, ou a carga tributária existente é irrisória e, importante, asseguram sigilo sobre a identidade dos donos das contas bancárias e das empresas, em vários casos. Essa é uma conta parcial, já que o BC não detalhou o destino de quase 4,6 bilhões de dólares, lançados como “outros investimentos”.
SÓ UMA PARTE O total de recursos depositados em contas e aplicados em empresas instaladas em paraísos fiscais somou 48,3 bilhões de dólares no ano passado, mais 30,4% em relação a 2001. Na comparação com 2003, praticamente não houve variação. O grande salto ocorreu entre 2001 e 2003, quando o saldo daqueles investimentos e aplicações cresceu 29%. Não por coincidên-
Arquivo Brasil de Fato
Mais da metade do que foi enviado legalmente se destinou aos paraísos fiscais – lá, não há impostos e sigilo
As empresas lideram envio de recursos
Em 2003, as remessas de dólares enviados ao exterior representaram 17% do Produto Interno Bruto
CAPITAIS BRASILEIROS NO EXTERIOR (Em milhões de dólares) Ativos
2001
2002
2003
2004
2004/2003
2004/2001
Investimento direto
49.689
54.423
54.892
69.196
+26,1%
+39,3%
Investimento em carteira*
5.163
4.449
5.946
8.224
+38,3%
+59,3%
Derivativos**
42
105
81
109
+34,6%
+159,5%
Financiamento
155
313
186
68
-63,4%
-56,1%
Empréstimo
696
537
687
631
-8,1%
-9,3%
1
3
0
–
–
–
Depósitos
9.441
7.890
16.412
10.418
-36,5%
+10,3%
Outros investimentos
3.411
4.605
4.488
4.597
+2,4%
+34,8%
Total
68.598
72.325
82.692
93.243
+12,8%
+35,9%
Ativos no exterior/PIB
13,6%
16,1%
16,7%
15,4%
–
–
Arrendamento financeiro
(*) Ações, títulos da dívida externa brasileira, bônus e papéis emitidos por empresas e bancos (**) Títulos cujos valores dependem de outros indicadores, como os preços das ações, do dólar, da soja, da arroba do boi gordo etc. Fonte: Diretoria de Fiscalização/Banco Central do Brasil (BC)
cia, o chamado caixa dois cresceu aceleradamente em todos esses anos, sugerindo que o movimento de fuga de recursos deve ter superado largamente a estatística oficial. Na verdade, os dados oficiais refletem uma pálida porção dos recursos desviados para fora do país por empresas e pessoas físicas, já que correspondem ao que é comunicado oficialmente ao BC. Portanto, não cobrem, obviamente, as remessas irregulares, decorrentes de sonegação, caixa dois, tráfico de drogas, contrabando e outros ilícitos penais. Uma economia que se move nas sombras, alimentando e sendo alimentada por esquemas de corrupção, fraudes em licitações, superfaturamento de importações,
subfaturamento de exportações e outros crimes.
CAIXA DOIS Como este jornal já apontou, com base em levantamentos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), o faturamento não declarado pelas empresas, mais conhecido como caixa dois, chegou a praticamente R$ 1,029 trilhão no ano passado, equivalente a pouco mais de 58% do Produto Interno Bruto (PIB). Comparado a 2003, quando movimentou R$ 748,4 bilhões, o caixa dois cresceu 37%, acumulando, desde 2000, um salto de 91%. Uma parte desse dinheiro foi desviada para o exterior, engordando contas secretas em paraísos fiscais. Apenas a Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o caso Banestado identificou desvios de 30 bilhões de dólares. Sem declaração, o caixa dois lesou os cofres públicos, no ano passado, em R$ 192 bilhões, representando pouco mais de 30% de toda a arrecadação, somada, da União, Estados e municípios, segundo estimativa do IBPT. Corresponde, ainda, a 11% do PIB, ou seja, quase 11% de todas as riquezas que os brasileiros e suas empresas produziram em 2004. A sonegação cresceu 47% na comparação com 2003, quando teria atingido R$ 131 bilhões nas contas do IBPT. Desde 2000, quando R$ 85 bilhões em impostos deixaram de ser pagos, a sonegação cresceu incríveis 126%, enquanto o PIB aumentou
No ano passado, o Banco Central (BC) registrou a participação de 11.245 empresas e pessoas físicas no levantamento sobre capitais brasileiros remetidos para outros países, mais de 6% em relação à pesquisa anterior. Representando apenas 15% da amostragem, 1.656 empresas fizeram parte do levantamento, respondendo pela remessa de 75 bilhões de dólares, ou 80% do saldo dos investimentos registrados em 31 de dezembro de 2004. Na comparação com 2003, as remessas realizadas pelas empresas registraram um incremento de 14%. Com investimentos de 19 bilhões de dólares (20% do total), as pessoas físicas representaram 79% na amostra (8.920 felizardos). Os valores remetidos por pessoas físicas evoluíram 9% diante de 2003, segundo o BC. O Banco tornou obrigatória a declaração de remessas superiores a 100 mil dólares desde o ano passado. Nada impede, no entanto, que grandes remessas sejam divididas em lotes menores, driblando a fiscalização. No caso do envio de dólares para empresas com participação acima de 10% de grupos brasileiros, o setor de serviços manteve a liderança, recebendo 96% dos investimentos – 52 bilhões de dólares em 2004 (crescimento de 19% em relação a 2003). A fatia do setor havia sido ligeiramente maior em 2003, quando recebeu 97% dos investimentos. Na prática, houve um retorno aos níveis de 2002, que já haviam sido superiores aos 91% registrados em 2001. (LVF)
60% em termos nominais (quer dizer, em números não atualizados de acordo com a inflação do período). Com base na estatística oficial do BC, tomando-se os dados estimados em dólar pela instituição para o PIB, o estoque de capitais de brasileiros legalmente desviados para o exterior somou 15% de todas as riquezas geradas internamente em 2004. Os dólares enviados para o exterior chegaram a representar 14% do PIB em 2001, pulando para 16% no ano seguinte, e para 17% em 2003.
Investimentos ou especulação? O mais grave é que as empresas e pessoas físicas que remetem recursos para o exterior não cometem qualquer crime perante a legislação brasileira. Os envios são autorizados e registrados pelo Banco Central (BC). O destino dos recursos, no entanto, sugere a intenção de driblar a lei, com o objetivo de reduzir ou não pagar impostos, aqui dentro, mesmo em casos de remessas legalmente registradas como investimentos diretos no exterior. Na contabilidade oficial, pouco mais de 74% de todos dólares mantidos lá fora por brasileiros, num total de 69 bilhões de dólares, foram destinados a investimentos diretos. Segundo o BC, um incremento de 26% em relação a 2003, e salto de 39% desde 2001. Daquele valor, 54 bilhões de dólares (78%) foram aplicados na compra de ações em volume superior a 10% do capital de empresas criadas no exterior pelos mesmos investidores brasileiros ou já existentes lá fora. Esse montante
inclui, ainda, empréstimos realizados entre empresas de um mesmo grupo, envolvendo a matriz brasileira, por exemplo, e sua filial, instalada, na maioria dos casos, em paraísos fiscais. Também aqui, a parte mais substancial dos dólares desembarcou nos tais paraísos fiscais, numa proporção equivalente a 59% ou, em valores aproximados, 32 bilhões de dólares (4% mais do que em 2003 e 10% acima dos 29 bilhões de dólares anotados em 2001).
FUGA PARA OS PARAÍSOS (Em milhões de dólares*) Destino
2001
2002
2003
2004
Paraísos fiscais
37.037
40.883
47.820
48.296
Demais países
28.105
26.729
30.303
40.241
Total
65.142
67.612
78.123
88.537
Paraísos fiscais/total
56,8%
60,5%
61,2%
54,5%
(*) Inclui investimentos diretos de brasileiros no exterior, empréstimos entre companhias, compra de ações, títulos, bônus e outros papéis, financiamentos, empréstimos de depósitos lá fora Fonte dos dados brutos: Diretoria de Fiscalização/Banco Central do Brasil (BC) Elaboração: própria.
INTRA-EMPRESAS A fatia desviada para as Ilhas Cayman e Bahamas (no Caribe), Barbados, Liechtenstein, Luxemburgo, Ilhas Virgens Britânicas e Antígua e Barbuda, de fato, chegou a ser mais generosa em 2002 e 2003, aproximando-se de 68%, mas isso não parece refletir uma mudança de ânimo entre os “investidores” brasileiros. Classificados pelo BC na rubrica “investimento direto”, o item de maior crescimento foram
os empréstimos realizados entre companhias de um mesmo grupo econômico, ou subordinadas a uma mesma holding (empresa de participação criada especialmente para administrar várias empresas de um mesmo grupo). Com participação de 22% no total de investimentos diretos, os empréstimos entre companhias dispararam de 10 bilhões de dólares, em 2003, para 15 bilhões de dólares no ano passado, num salto de quase
50%. Desde 2001, seu valor mais do que dobrou, acumulando um aumento de 113%.
DISFARCE Empréstimos intercompanhias, numa versão mais apimentada, têm servido para encobrir operações de remessa disfarçada de lucros, com empresas matrizes assumindo falsos prejuízos (zerando os impostos devidos aqui dentro) no Brasil, e transferindo ganhos para filiais
em paraísos fiscais, onde a carga tributária, como visto, é baixa ou inexistente. Mais da metade dos recursos utilizados por empresas e pessoas físicas brasileiras para compra de ações em proporção superior a 10% do capital de empresas e instituições financeiras no exterior foram direcionados para o setor financeiro. Os segmentos de intermediação financeira e de atividades auxiliares da intermediação financeira (captação de recursos junto ao público e concessão de empréstimos) receberam 28 bilhões de dólares, o equivalente a 52% dos 54 bilhões de dólares registrados nessa modalidade de aplicação. Coincidentemente, os investimentos em atividades auxiliares da intermediação, que incluem corretoras de valores, empresas de seguro e previdência privada, entre outros, cresceram 52% entre 2003 e 2004, saindo de 8 bilhões de dólares para 13 bilhões de dólares. (LVF)
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De 10 a 16 de novembro de 2005
NACIONAL UMA VISITA INDESEJADA
Repúdio a Bush une esquerda no Brasil Joana Tavares
Luís Brasilino, Cecília Guimarães e Roberto Lessa da Redação e de Belo Horizonte (MG)
Antonio Cruz/ABr
Agências do Bank Boston e lanchonetes do McDonald`s foram alvos dos protestos que ocorreram em 12 capitais
“N
Em Belo Horizonte e em Brasília, protestos contra o “inimigo número um da humanidade”, o presidente George W. Bush
setores progressistas da sociedade. “Os movimentos sociais brasileiros estão unidos para sepultar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e impedir a continuidade das atrocidades e dos crimes sanguinários praticados por George W. Bush. A unidade e a força demonstrada nesta recepção é nossa melhor resposta”, atacou Gustavo Petta, presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), durante manifestação em São Paulo. Na capital paulista, o ato aconteceu dia 5. Concentrou-se em frente à agência do Bank Boston e seguiu em passeata até o Banco Central (BC). Um dos principais beneficiados da política econômica brasileira, o banco estadunidense ainda possui na sua folha de pagamento Henrique Meireles, presidente do BC.
Assustados, os funcionários fecharam as portas. Pessoas paravam para expressar seu apoio ao ato. Algumas pediam cartazes para colarem em suas casas, como Silvana Teodoro, 40 anos, que comentou: “Bush é um homem sem-vergonha, levando seu próprio povo para morrer no Iraque”. Pedro Valadares, diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Municipal (Sind-Ute/BH), avaliou o ato como positivo, ressaltando a adesão dos belo-horizontinos e a diversidade dos movimentos presentes.
FRENTE ÚNICA Num momento em que a esquerda brasileira atravessa uma crise e sofre com o sectarismo, os protestos contra Bush conseguiram colocar no mesmo lado todos os
Governo descarta mercado interno
Os patetas Laerte Braga
Para Magnólia Said, da coordenação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, não há motivo para entusiasmo. “O governo estadunidense sempre diz uma coisa e faz outra. Quando chega na hora da negociação, eles nunca abrem nada”, alerta. De todo modo, a advogada considera mais preocupante o fato de o Brasil estar fazendo cada vez mais ofertas, sem se ater à proteção. “Nas últimas discussões que tivemos em Genebra (Suíça, preparatórias para a reunião da OMC), a postura da diplomacia brasileira chamou muita atenção. Está fechada em torno do raciocínio do setor hegemônico do governo, que envolve Antônio Palocci (Fazenda), Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento e Indústria) e Roberto Rodrigues (Agricultura). Todos interessados em elevar as exportações e gerar superavit comercial”, avalia Magnólia. Segundo a coordenadora da Rede Brasil, esta lógica permeia todo o comércio exterior brasileiro. Além de ser prejudicial para a agricultura familiar e as classes média e baixa, a postura do governo afasta o Brasil dos demais países sul-americanos. “Exatamente aqueles de quem deveríamos nos aproximar para nos fortalecer na OMC”, revela Magnólia. (LB)
Bush e Lula negociam a redução dos subsídios agrícolas
visitada por Bush na sua primeira viagem ao Brasil, os protestos começaram no dia 4. Mil estudantes e militantes ligados à Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) fizeram uma caminhada que foi da Catedral da cidade até a Embaixada dos Estados Unidos, onde a bandeira deste país foi queimada. No dia 6, 40 pessoas entraram no McDonald`s portando faixas de “Fora Bush”, sentaram-se às mesas e almoçaram produtos tipicamente nacionais, como arroz, feijão e farofa. Outros 200 manifestantes protestaram em frente à Granja do Torto, residência oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, onde o mandatário estadunidense almoçava. (Com informações da Agência CUT e da Agência Notícias do Planalto)
ANÁLISE
Bush deve ter chegado a Washington, religioso que é, enviado dos céus, detentor do privilégio de falar com Deus e acendido uma vela em intenção de Lula. As cenas do terrorista norte-americano em Brasília, comendo churrasco com o presidente brasileiro, são patéticas. A tentativa direta de transformar o fracasso da Conferência das Américas num êxito qualquer, por menor que seja, junto ao governante do maior país latino-americano. A passagem meteórica por Brasília foi só isso. Comercial para o distinto público de seu país.
“ALCA AL CARAJO”
Antonio Cruz/ABr
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se vangloriou das conversações que teve com George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, em visita ao Brasil nos dias 5 e 6. Depois de uma participação propositalmente apagada na Cúpula das Américas, realizada dias 4 e 5 em Mar del Plata (Argentina), na qual evitou posicionar-se entre os mandatários estadunidense e venezuelano, Lula ficou animado com um compromisso assumido por Bush. O presidente acredita ter sensibilizado o estadunidense a reduzir os subsídios agrícolas, caso a União Européia (UE) faça o mesmo. Já no dia 7, Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, sinalizou com a possibilidade de o Brasil cortar em 50% as tarifas industriais se os europeus reduzirem em 54% as alíquotas de produtos agrícolas. As negociações devem continuar até a Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), programada para ocorrer entre 13 e 18 de dezembro em Hong Kong (China). Desde o início do governo Lula, o Brasil vem se aliando a outras nações pobres ou em desenvolvimento no sentido de conquistar um acordo mais vantajoso aos países periféricos no que diz respeito à liberalização do comércio agrícola global.
Do Rio Grande do Sul, Luciana Genro, deputada federal (PSOLRS), cobrou que o Brasil siga o mesmo caminho de outros países latino-americanos que enfrentaram o capital financeiro internacional. Em Porto Alegre, centenas de trabalhadores e estudantes iniciaram, dia 4, manifestação na Esquina Democrática e seguiram até uma agência do Citibank. “Nós somos o povo soberano do Brasil que toma as ruas contra a política de guerra e destruição das nações, para botar para fora do nosso país Bush e as imposições do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial”, resumiu, em São Paulo, Júlio Turra, da direção executiva da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Na capital federal, única cidade
Antonio Cruz/ABr
ão aceito o Bush no Brasil. Ele quer vir destruir nosso país. Devia ir sozinho ao Iraque, sem os seguranças dele, para ver o que acontece”. O desabafo de Daniel Lafaitete, 23 anos, catador de papel nas ruas do Centro de Belo Horizonte (MG), mostra bem o espírito que contagiou as manifestações contrárias à presença de George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, em Brasília (DF) nos dias 5 e 6. Além da capital federal, Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Campo Grande (MS), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), João Pessoa (PB), Natal (RN), Porto Alegre (RS), Porto Velho (RO), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP) foram palco de manifestações que tiveram como principais alvos agências de bancos estadunidenses e lanchonetes da rede McDonald`s. Em Belo Horizonte, militantes de associações, movimentos sociais e estudantis, sindicatos e partidos políticos se reuniram em frente ao McDonald`s, na Praça 7, no Centro da cidade, no fim da tarde do dia 4. Queimaram um boneco de Bush e a bandeira dos Estados Unidos, acenderam velas em memória dos mais de 30 mil inocentes mortos na invasão ao Iraque e colaram nas paredes da lanchonete cartazes com a frase “Fora Bush, inimigo nº1 da humanidade”.
Os meios de comunicação tentaram transformar a presença do presidente Hugo Chávez na Cúpula dos Povos em algo grotesco, em farsa populista. Não entendem de povo, mas entendem muito bem desse negócio de populismo. Lula inventou o neoliberalismo populista com esse mundo de bolsa isso, bolsa aquilo, desde que na hora da inscrição o título eleitoral esteja à mão. Já a reforma agrária, essa a Monsanto tomou conta do mercado. O pedido feito a George Bush para aliviar nos subsídios aos produtos agrícolas mostra só a subserviência ao modelo e transfere a decisão, já que a Europa entra de sola no assunto, para a Organização Mundial do Comércio (OMC). Uma espécie de reunião dos poderosos chefões. Máfia das máfias. A colaboração estreita no combate ao “terrorismo”, essa vai de vento em popa. Há uma ação orquestrada em todo a América Latina no sentido de impor um cerco a Chávez, num primeiro momento e controlar, um segundo momento, situações consideradas no mínimo complicadas, tudo com objetivo final da recolonização, já que a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) não está sendo emplacada. Conta com
Em Brasília, repúdio à política terrorista de Bush
governos corruptos e controlados, como o de Álvaro Uribe na Colômbia, de Vicente Fox no México e a falsa esperteza de Lula, que acha que dá nó em pingo d’água ou desentorta banana. As eleições na Bolívia foram adiadas no momento em que Evo Morales, líder cocaleiro e integrante da Via Campesina, era o principal favorito, com vitória consolidada. Alberto Fujimori, amigo de FHC, ditador peruano, ameaça voltar ao seu país e sabe que sua simples presença no Chile cria instabilidade política no Peru. A compra do governo paraguaio e a base pretendida naquele país. O controle do governo do Equador. Todo o arsenal para um
cerco aos movimentos populares na América Latina. O processo eleitoral no Haiti deve ter se inspirado no ideal de Ariel Sharon sobre eleições: só podem concorrer os que são servis. O Hamas, segundo maior partido político palestino, não. Lula com Bush lembra aquela história segundo a qual os gordos gostam de sair com magros, ou mulher feia com mulher bonita, na presunção de serem visto magros e bonitas. Lula devia ter pedido ao americano para apitar a partida de futebol do Torto. Aí nem Groucho Marx iria superar a dupla. Mas, em papéis ridículos. Sem talento. Laerte Braga é jornalista
Ano 3 • número 141 • De 10 a 16 de novembro de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO FRANÇA
Jovens tomam as ruas por reconhecimento João Alexandre Peschanski da Redação
A
s periferias pobres de Paris, capital da França, bramem. Desde 27 de outubro, e até o fechamento desta edição, 12 dias depois, milhares de jovens saem, todas as noites, às ruas, depredando carros e imóveis. Enfrentam a polícia que, mobilizada às pressas pelo governo, tenta detê-los. No distrito de Seine-Saint-Denis, principal foco das mobilizações, cerca de mil veículos foram destruídos. O estopim foi a morte dos adolescentes Zyed Benna e Bouna Traore, dia 27. Perseguidos pela polícia, após um confronto em Clichy-sous-Bois, cidade em Seine-Saint-Denis, eles se esconderam em um transformador de energia. Morreram eletrocutados. A partir das mortes, protestos contra a violência policial se multiplicaram no distrito. Alguns prefeitos, assustados com as mobilizações, decretaram toques de recolher. No dia 8, o presidente francês, Jacques Chirac, decretou estado de emergência, dizendo-se preocupado com a violência em Seine-Saint-Denis. Em pronunciamento público, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, qualificou os manifestantes de “grupos criminosos” e “ralé”. Recebeu apoio de partidos de extrema-direita. Os grandes meios de comunicação, franceses e internacionais, ecoaram o discurso de Sarkozy, tratando as manifestações como se fossem doenças. Chamam-nas de “epidemia de violência” e “surto”. Nos jornais brasileiros, o fenômeno foi alcunhado de “distúrbio”.
NOVO MOVIMENTO Os jovens que tomam as ruas de Seine-Saint-Denis não apresentam pauta de reivindicação, não se fazem representar pelos canais costumeiros da política
Karim bem Khelif/NYT/AE
Durante duas semanas, milhares de pessoas protestam contra mazelas sociais, em Seine-Saint-Denis, periferia de Paris
Carros e imóveis são alvo dos protestos furiosos dos jovens da periferia de Paris há doze dias; governo reage com estado de emergência
– partidos, sindicatos, entidades. Os protestos são espontâneos e têm novas formas. Ação direta, rap, violência. Os jovens, cujos pais são geralmente imigrantes africanos, trazem para o espaço público – o enfrentamento com a polícia, a imagem da televisão – o que vivem. Na França, potência mundial, centenas de milhares de pessoas, como se estivessem em países do Terceiro Mundo, sofrem com a miséria, a discriminação e a falta de perspectiva (veja reportagem abaixo). O recado de Seine-Saint-Denis se faz entender por outros. Abriu-se a caixa de Pandora das
periferias. Em outras cidades da França, como Marseille e Bordeaux, jovens tomaram as ruas no início de novembro. Queimam carros, enfrentam a polícia. Querem tornar-se atores fundamentais na política nacional. Expande-se o ras-le-bol (enfastiamento, em francês). Na Alemanha, Holanda e Itália, também ocorreram protestos similares. Alastra-se o fenômeno. Imitando a postura do governo francês, os governos desses países afirmaram que vão reprimir as manifestações. Na França, uma pessoa foi morta e centenas foram presas, desde 27 de outubro.
Periferias de Paris: segregação social SEINE-SAINT-DENIS Localização: distrito ao norte de Paris, capital da França Superfície: 236 quilômetros quadrados População: 1,4 milhão de habitantes Jovens: 42% Características sociais: presença de pessoas de 80 nacionalidades diferentes Religião dominante: islamismo e catolicismo
* VIDA NOS GUETOS Nas periferias de Paris, há conjuntos habitacionais – prédios de mais de vinte andares, com oito a dez apartamentos por piso – para famílias pobres, geralmente imigrantes. As residências são, muitas vezes, financiadas pelo Estado. No departamento de Seine-SaintDenis, periferia do norte de Paris, 32% dos habitantes dependem de auxílio moradia para pagar aluguel. Estão em zonas degradadas, próximas a parques industriais, sem áreas de lazer. Os custos dos transportes para Paris são altos, impagáveis para a maioria dos banlieusards, como são conhecidos os moradores das periferias. Nessas áreas, há geralmente alta densidade populacional, principalmente de jovens.
* PRECARIEDADE NO EMPREGO Nos bairros populares da região parisiense, a taxa de desemprego é a mais elevada da França – 19% da população ativa não encontra emprego. Entre os jovens, o índice chega a 22,7%. A taxa nacional está em 9,8%. Muitos banlieu-
sards aceitam trabalhos precários e temporários. Ficam empregados alguns meses, na construção civil, por exemplo, e, quando seus contratos acabam, não têm certeza de encontrar outro trabalho. Em Seine-Saint-Denis, 29% dos assalariados recebem abaixo do salário mínimo, cerca de R$ 3.513. A renda, alta para o padrão brasileiro, não é suficiente para suprir as necessidades básicas. O custo de vida na França é um dos mais altos do mundo. Um saco de arroz, com cinco quilos, custa R$ 42.
* ESTADO AUSENTE Os serviços públicos, nas periferias parisienses, são escassos. Faltam hospitais. Agências dos Correios, que funcionam como locais de crédito popular, concentram-se em bairros onde a população tem poder aquisitivo alto. Nas escolas, não há professores. Poucos aceitam dar aulas nas periferias. A metade dos 116 colégios de Seine-Saint-Denis é considerada “em situação de abandono”. Sob orientação do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, a polícia
adota uma postura de tolerância zero em relação a pessoas que cometem pequenos delitos, como pixações e delitos. Desde 2002, o efetivo policial dos bairros populares da região parisiense tem sido sistematicamente reduzido. Em La Courneuve, cidade de Seine-Saint-Denis, passou-se de 153 policiais em 2002 para 40, três anos depois.
* CÓDIGO DA RUA Os jovens vivem nas periferias de Paris com base em normas de conduta, um tipo de código da rua, que não se assemelha às leis vigentes na França. Por exemplo, em alguns bairros, onde há atuação de gangues, ser agressivo é motivo de prestígio social. Os moradores das áreas pobres são geralmente obrigados a se submeter a esse código da rua. As gangues são as principais organizações coletivas que atuam nos bairros populares porque movimentos sociais, partidos e entidades, tanto de esquerda quanto de direita, não conseguem – ou não querem – penetrar nessas áreas. (JAP)
PALESTINA
Os povos se sobrepõem ao conflito Arturo Hartmann de São Paulo (SP) Salah Habboub e Eyal Sagie vieram ao Brasil para mostrar uma face pouco conhecida do conflito entre Israel e Palestina. Em evento realizado pela Faculty for Israeli Palestinian Peace e pelo Instituto da Cultura Árabe, falaram à comunidade acadêmica para incentivar movimentos globais que ajudem a dar fim à ocupação na região. Salah, 35 anos, é palestino de Ramallah, bacharel em Ciências Sociais e funcionário do departamento de prisioneiros da Autoridade Palestina (AP) – “provavelmente o único no gênero, no mundo”. Ficou preso durante sete anos e dois meses, de 17 de outubro de 1990 até o final de 1998. Na época, ele militava no grupo político Fatah, hoje a principal força da Autoridade Palestina. Foi interrogado por 103 dias, tempo durante o qual foi torturado para confessar um crime que não havia cometido: “Diziam que se eu confessasse, parariam com as torturas e me levariam para a prisão, como se a prisão fosse um palácio”. Eyal, 23 anos, é israelense de Tel Aviv. Também sofreu com a opressão de não poder expressar uma opinião rara dentro de Israel – a de total oposição à ocupação. “Salah e eu pertencemos à mesma comunidade, pelo menos à mesma comunidade oprimida, ainda que de maneiras diferentes”. Quando o palestino foi preso, tinha completado apenas metade do bacharelado: “Fazíamos greve de fome de até 18 dias para exigir direitos de saúde e de alimentação. Quem estudava, queríamos que continuasse estudando”. Salah pôde continuar seu curso, não em Birzeit, Universidade na Cisjordânia que freqüentava, mas na Universidade Aberta de Israel. Para isso, teve que aprender hebraico: “Há um ditado que diz que todos os palestinos sabem falar hebraico, pois quase todos passaram por prisões israelenses”. Hoje são cerca 8 mil palestinos presos. A convivência próxima entre Eyal e Salah pode dar a impressão errada do que é a situação na região. Israelenses e palestinos pouco se falam, têm poucas ligações. O ter-
ritório no qual vivem soma 26.860 2 km . Oficialmente, três quartos dessa área compõem o Estado de Israel. O restante, os israelenses controlam militarmente. O combustível da ocupação é o constante medo, o ódio e o sentimento de ameaça que o Estado de Israel cria na população. Durante os doze primeiros anos da educação israelense, a história ensinada é a de que em 1948 o país estava vazio, que os palestinos eram arruaceiros e que estavam contra os israelenses desde o começo. “Esses são os mitos ensinados na escola desde o primeiro dia – odiar o outro, ver os árabes de maneira racista. Depois, nos ensinam os valores de ir para o exército, muito importantes no sistema de educação”, diz Eyal. Em Israel, servir o Exército é obrigatório, três anos para os homens e dois para as mulheres. Salah revela que um de seus sonhos é dar aulas em Israel: “A educação tem um papel muito importante para ensinar o outro a nos ver como iguais”. Sete anos atrás, quando o palestino ainda estava na prisão, a organização da qual Eyal fazia parte propôs ao governo um projeto de educação alternativo. Foi rejeitado.
ENTENDENDO A OCUPAÇÃO Eyal não ignora o aspecto da oposição entre os grupos, mas considera que ao ser dado destaque ao chamado conflito, cria-se um problema para entender a ocupação. “Há um problema de entendimento sobre a ocupação. Chamá-la de ocupação israelense não é o termo exato. Porque a ocupação cria uma mentira, não só pelo lado de Israel, mas também dos Estados Unidos. Uma mentira criada por interesses políticos, imperialistas. São os Estados Unidos que estão mentindo, é o governo de Israel que está mentindo, e também é a Autoridade Palestina que mente. É como se nós estivéssemos lutando um contra o outro, como se Sharon e Bush, de um lado, e o Hamas e Arafat, de outro, nos dissessem que estamos lutando um contra o outro. Não há guerra entre populações acontecendo. Há apenas políticos com interesses geográficos e econômicos, não só israelenses, mas também dos Estados Unidos, em dominar a região”.
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INTERNACIONAL CÚPULA DAS AMÉRICAS
Fracassa tentativa de reviver a Alca da Redação
O
DISSENSO O resultado do embate entre essas duas visões distintas foi uma contraditória Declaração da 4ª Cúpula das Américas. Por sugestão do Panamá – com apoio dos Estados Unidos e promoção do México –, o texto final contém um trecho que registra o compromisso dos países com o sucesso de um acordo da
Diante da derrota dos Estados Unidos na 4ª Cúpula das Américas, Mercosul sai mais fortalecido
Marcelo Garcia
saldo da 4º Cúpula das Américas é cristalino: fracassaram os intentos dos Estados Unidos e de seus aliados – com destaque para México e Colômbia – de ressuscitar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Foram dois dias de discussões entre 34 chefes de Estado do continente americano, com exceção de Cuba, excluída do encontro pela Organização dos Estados Americanos (OEA). E todo esforço da diplomacia estadunidense foi em vão: o documento final da Cúpula não estabeleceu nem condições nem prazo definitivo para a retomada das negociações. As discussões sobre a Alca foram praticamente interrompidas em fevereiro de 2004, frente às divergências entre os países quanto ao acordo. Na 4ª Cúpula, os Estados Unidos – que lançaram a idéia da Alca, em 1994, na 1ª Cúpula, em Miami – tinham como objetivo arrancar dos outros países o compromisso de que as discussões seriam reiniciadas a partir de abril de 2006.
Essa proposta se chocou diretamente com a posição dos países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e da Venezuela. As cinco nações se opuseram à inclusão de qualquer menção que implicasse prazos para negociar a Alca. A posição oficial defendida pelo presidente pro tempore do Mercosul, o uruguaio Tabaré Vázquez, foi a de que não há condições para negociar o acordo, sobretudo porque, no início de dezembro, a Organização Mundial do Comércio (OMC) vai discutir a questão da redução dos subsídios agrícolas concedidos pelos países ricos a seus produtores rurais (leia mais na página 8).
Ricardo Stukert/PR
Estados Unidos não conseguem obter dos 34 países compromisso de retomar as negociações do acordo de livre-comércio
Chávez e Kirchner, duros na crítica à política internacional de Bush
Alca “equilibrado e compreensivo, dirigido à expansão dos fluxos comerciais e, em nível global, um comércio livre de subsídios”. Já o Uruguai – com apoio do Mercosul e da Venezuela – incluiu na Declaração um comentário dizendo que “outros membros sustentam que ainda não estão dadas as condições” para uma Alca que “leve em consideração as necessidades e sensibilidades de todos os sócios, assim como as diferenças nos níveis de desenvolvimento e tamanho de economias”. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, interpretou o resultado como um “nocaute fulminante” do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. “Sinto o sabor do mel da vitória”, disse Chávez, já depois
“Os Estados Unidos têm a responsabilidade inequívoca e imperdoável de considerar que as políticas que aplicaram na América não só provocaram miséria, pobreza e uma grande tragédia social, como também instabilidade institucional e a queda de governos democraticamente eleitos”, assegurou o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, na abertura da 4ª Cúpula das Américas, no dia 4. Diante de George W. Bush, o argentino acrescentou que a democracia não é um patrimônio de nenhum país ou região. “Nossos pobres, nossos excluídos, nossos países, nossas democracias já não suportam mais que sigamos falando em voz baixa. É fundamental falar com muito respeito e em voz alta para construir um sistema que coloque todos em um marco de igualdade”, discursou o presidente anfitrião do encontro realizado em Mar del Plata.
PERVERSIDADE Não foi a primeira vez que o presidente estadunidense ouviu palavras ásperas de seu homólogo argentino. Isso ocorreu também em janeiro de 2004 em Monterrey, no México. Dessa vez, Kirchner recordou que Bush, em sua posição de primeira potência mundial, deve fazer um exercício responsável dessa liderança e apoiar as estratégias de crescimento sustentável dos países menos desenvolvidos, “na convicção de que ali está sua conveniência, ajudando o mundo a ser mais estável, seguro e pacífico”. O presidente argentino criticou também o Fundo Monetário Internacional (FMI) por realizar o “exercício perverso” de conceder os empréstimos que provocaram a crise financeira da Argentina e por, ainda hoje, continuar impondo as
mesmas políticas que levaram o país à suspensão do pagamento da dívida externa. Kirchner também fez poucas concessões em relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca). “Não nos servirá qualquer integração, simplesmente formar um convênio não será um caminho fácil rumo à prosperidade”, disse acrescentando que só será possível aquela integração que reconheça as diversidades e permita benefícios mútuos. “Um acordo não pode ser um caminho de uma só via de prosperidade, não pode resultar de uma imposição com base em relativas posições de forças”, criticou. O presidente argentino também fez referências ao acordo de livre-comércio proposto pela União Européia, dizendo que é necessário criar salvaguardas e compensações para quem padece de atrasos relativos.
TERCEIRA VIA A disposição de aliados tradicionais dos Estados Unidos, como México, Panamá e Colômbia, no entanto, sinaliza que o projeto de criar uma zona de livre-comércio no continente ainda não foi sepultado. Em meio ao impasse, a Colômbia ventilou uma proposta logo apoiada pelo presidente mexicano, Vicente Fox, de criar a Alca, então, para os 29 países que não se opõem ao acordo – excluindo o Mercosul e a Venezuela. A proposta foi ironizada pelo ministro das Relações Exterio-
res, Celso Amorim, que sabe que o Brasil é o principal alvo dos Estados Unidos nas negociações da Alca. O texto final registra que o governo da Colômbia deverá fazer gestões com os 34 países para saber se há possibilidade de fazer avançar as discussões do tratado de livre-comércio após a reunião da OMC, em setembro. De qualquer forma, a avaliação é de que o projeto de Washington não pôde ser imposto nos termos imaginados por Bush e as distâncias verificadas entre os objetivos do Norte e do Sul deixam claro que , apesar da incondicionalidade do apoio de alguns à Casa Branca, o equilíbrio e a correlação de forças na região mudaram na última década. (La Jornada, www.unam.jornada.mx)
A agenda de Bush: mais militarização
EUA, os responsáveis pela tragédia social do continente da Redação
de ter regressado de Mar del Plata. Para o presidente venezuelano, a crítica à Alca que consta da Declaração do encontro representa um marco na história da América do Sul.
Marco Gandásegui da Cidade do Panamá (Panamá) A agenda do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, em Mar del Plata, tinha como objetivo desarticular os planos de integração dos países do Cone Sul do continente, ilhando sobretudo o Brasil dos outros países da região. O projeto estadunidense da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) tem um concorrente potencial na Comunidade Sul Americana de Nações, criada em dezembro de
2004 e cuja próxima reunião em Montevidéu será decisiva. A médio prazo, no entanto, Bush se prepara para seguir impulsionando sua política armamentista na América Latina. Sua presença militar na Colômbia e seu contorno, assim como as tropas militares no Paraguai atestam essa vocação estadunidense. A cooperação que recebeu no Haiti por parte do Brasil e do Chile também é bem-vista. Recentemente, estimulado pelos Estados Unidos, o Chile adquiriu novos aviões de guerra convidando o Peru a fazer o mesmo.
Em relação à América Central, os Estados Unidos celebram seu acordo recente para desenvolver uma estratégia de deslocamento militar rápido, o que significa a subordinação das forças armadas dos países da região ao Pentágono. A bacia do Amazonas, ainda, é vista como estratégica para o domínio global no futuro. A presença militar de Washington na Colômbia e no Paraguai faz parte do plano de submeter a região da maior floresta do mundo a uma estratégia estadunidense. (Alai, www.alainet.org)
DITADURAS
Alberto Fujimori é preso e pode ser extraditado
SATISFAÇÃO Ao final do encontro, Néstor Kircher considerou que o resultado da 4ª Cúpula das Américas foi um “fato histórico para o Mercosul e para a Venezuela”, que resistiram à dura intenção dos Estados Unidos de ressuscitar o projeto da Alca. Para ele, a Declaração final representa o triunfo da posição latino-americana de mudar o eixo das discussões sobre integração para os verdadeiros temas regionais e as justas demandas dos povos. A posição de Washington encontrou ferrenha resistência na Argentina. O presidente estadunidense teria ficado “surpreso” com o considerável crescimento do sentimento antiimperialista na população argentina, expresso na marcha que juntou dezenas de milhares de pessoas em Mar del Plata (leia mais na página 11) e respaldado pelo discurso de Kirchner. (La Jornada, www.unam.jornada.mx)
da Redação O ex-presidente do Peru Alberto Fujimori está, finalmente, mais próximo de ser julgado por seus crimes contra os direitos humanos e por corrupção. O fugitivo foi detido dia 6 ao chegar ao Hotel Marriott, em Santiago do Chile. Ele chegou repentinamente ao Chile num vôo privado desde o México, com o propósito de lançar sua candidatura política para 2006. A Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH) expressou num comunicado sua satisfação frente à detenção de Fujimori e exortou ao governo chileno a entregar Fujimori o antes possível à Justiça peruana. Fujimori é acusado pela Justiça peruana, entre outros delitos, por homicídio qualificado, lesões graves e desaparecimento forçado, relacionado às matanças de Barrios Altos e
Cantuta, ocorridas durante seu governo, em 1991 e 1992, e por enriquecimento ilícito. Desde novembro de 2000, data em que Fujimori fugiu para o Japão, abandonando o governo que ainda exercia, ele tem se negado a enfrentar a Justiça peruana. Em 2003, a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol, sigla em inglês) emitiu uma ordem de detenção internacional e o governo peruano solicitou ao Japão sua extradição. Para a FIDH, o julgamento de Alberto Fujimori contribui para a consolidação do Estado de Direito no Peru, bem como constitui um passo importante para a superação da impunidade. “Confiamos que as autoridades chilenas contribuirão para este propósito que se estabelece no espírito e compromissos da Carta Democrática Interamericana, que reafirma “que a
promoção e proteção dos direitos humanos é condição fundamental para a existência de uma sociedade democrática”. Ao chegar ao aeroporto de Santiago, Fujimori enviou um comunicado no qual assinalava que tinha se trasladado para o Chile como parte do processo de retorno ao seu país, com o objetivo de participar das eleições presidenciais peruanas de 2006. “É meu propósito permanecer temporariamente no Chile, como parte do processo de retorno ao Peru, e cumprir com o compromisso adquirido com um importante setor do povo peruano que me convocou a participar como candidato à Presidência da República nas próximas eleições de 2006”, informa. O Peru enviou ao Chile uma missão de alto nível para negociar a extradição do ex-presidente. (Adital, www.adital.org.br)
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INTERNACIONAL INTEGRAÇÃO
O contraponto da Cúpula dos Povos Suzane Durães e Raquel Casiraghi de Mar del Plata (Argentina)
Suzane Durães
Representantes da sociedade civil criticam militarização incentivada pelos EUA e propõem agenda alternativa
M
ilhares de pessoas marcaram a história de Mar del Plata, cidade turística da Argentina, ao participarem da 3ª Cúpula dos Povos da América e da Marcha contra Bush. O evento, realizado de 1º a 5 de novembro, reuniu cerca de 500 organizações sociais, políticas e culturais de vários países, entre eles Argentina, Brasil, Chile, Cuba, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai. Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz e um dos coordenadores da Cúpula dos Povos, afirmou que o encontro é um espaço de construção do pensamento de liberdade e de determinação própria da comunidade americana em contraposição ao pensamento único difundido pelos países dominantes. “Nosso povo não precisa de mais exércitos, principalmente se forem dos Estados Unidos, mas sim de mais recursos para a saúde e para combater a pobreza. Necessitamos de ações para a vida, e não para a morte”, afirmou. A Cúpula dos Povos organizada pela Aliança Social Continental (ASC) – coligação de organizações sindicais, religiosas, camponesas, de direitos humanos, de mulheres e outros movimentos sociais – teve formato similar ao Fórum Social Mundial e contou com cerca de 150 atividades cen-
Organizações e movimentos sociais reafirmam a luta contra o pagamento da dívida externa e a implantação da Alca
fes de Estado e presidentes dos 34 países do continente, com exceção de Cuba (leia mais na página 10). Enquanto milhares de policiais argentinos garantiam a segurança do presidente dos Estados Unidos na cidade, outros milhares de manifestantes expressaram sua solidariedade ao povo cubano, seu apoio ao presidente venezuelano Hugo Chávez e seu repúdio a George W. Bush, na Cúpula dos Povos.
trais, como oficinas, mobilizações e atividades culturais. Entre os temas debatidos nos quatro dias, estavam o livre-comercio, a militarização, o terrorismo e a soberania alimentar.
INCONCILIÁVEIS Na contramão do evento foi realizada nos dias 4 e 5, em Mar del Plata, a Cúpula das Américas, que contou com a participação dos che-
“A verdadeira cúpula é essa, a do povo”, resumiu o presidente do Parlamento cubano, Ricardo Alarcon de Quesada, que repudiou a presença de Bush na região e participou da Cúpula dos Povos. “Há quatro décadas, Che Guevara nos convocou para lutar por nossa verdadeira e irrenunciável independência”, lembrou o cubano. O encerramento do encontro reuniu mais de 50 mil pessoas no Estádio
Mundialista e contou, ainda, com a presença de Hugo Chávez e do ex-jogador de futebol argentino Diego Maradona. Na ocasião, o trovador cubano Silvio Rodrigues embalou o público com as canções revolucionárias que já serviram de hino em diversas mobilizações populares no mundo. Os milhares de delegados na Assembléia dos Povos reafirmaram, em sua declaração final, a luta para eliminar a pobreza, o desemprego e a exclusão social. O texto exige também o fim da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a anulação de toda a dívida externa dos países da região e a qualifica de ilegítima, injusta e impagável. A defesa da soberania alimentar dos povos, da agricultura sustentável e uma reforma agrária integral, bem como uma rejeição enérgica à militarização do continente, são outras reivindicações inclusas. A declaração condena os Estados Unidos por suas ações terroristas no mundo e determina a retirada das tropas militares estadunidenses da América Latina, Iraque e Haiti. Também defende a liberdade dos cinco patriotas cubanos, presos há sete anos, que conseguiram a primeira vitória em agosto quando o tribunal de Atlanta anulou o julgamento. Agora, os cubanos aguardam o resultado da apelação feita pelo governo dos Estados Unidos que não acatou a decisão do tribunal. (Minga Informativa de Movimentos Sociais, www.movimientos.org)
De novo, unanimidade O desafio de construir a Alba contra Bush coso, da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), leu a carta final formulada na Cúpula. O destaque fcou por conta da presença do presidente venezuelano, Hugo Chávez, único dirigente do continente a participar da 3ª Cúpula dos Povos.
TÚMULO DA ALCA Diante de aplausos e de gritos como “Viva a República Bolivariana”, Chávez afirmou que em Mar del Plata estava sendo enterrado o projeto da Alca. “Aquí em Mar del Plata está o túmulo da Alca, garantido pelo povo”. Ele considerou o dia como “histórico” e lembrou de companheiros que não puderam estar presentes, como o presidente cubano, Fidel Castro. Chávez disse que para destruir o modelo neoliberal é preciso, acima de tudo, que o povo intervenha como protagonista nesse processo. O presidente também ressaltou a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) como principal alternativa para uma integração justa e socialista dos povos. “Assim como o império fracassou com a revolução cubana, ele vai fracassar com a revolução bolivariana”. (SD) (www.movimientos.org)
Pelas ruas de Mar del Plata, mais de 20 mil contra Bush
posta a ser construída. O economista cubano Osvaldo Martinez salientou que a iniciativa não deve se pautar pelo crescimento econômico, mas sim pelo social, criando modelos alternativos. Um deles seria para substituir o petróleo, principal fonte energética mundial, não-renovável, e que está com os seus dias contados devido à exploração exagerada.
TELESUL Outra área citada por Martinez é a comunicação. O economista afirma que a Telesul (canal de TV criado pela Venezuela, com apoio de Argentina, Cuba e Uruguai) é um início, mas precisa ser melhorada. “A comunicação popular deve ser desenvolvida como um canal de articulação”, definiu. Outro destaque da Cúpula foi
a denúncia da militarização do continente como estratégia de dominação dos Estados Unidos. Orlando Castillo, integrante do Serviço de Paz e Justiça do Paraguai (Serpaj), alertou para o perigoso discurso de que as invasões dos exércitos estadunidenses servem para “garantir a paz e a solidariedade”, acrescentando que a própria população paraguaia acredita nessa idéia. Em vez disso, como nos mostra os episódios do Haiti e do Iraque, as invasões das tropas dos EUA são explicadas pela necessidade da reconstrução política, social e econômica dos países depois das guerras. “Essa é uma forma de dominar países em nome da solidariedade”, destacou o haitiano Camille Chalmers, da Rede Julibeu Sul. (SD) (www.movimientos.org)
Mulheres definem desafios para a Marcha Mundial Suzane Durães
O presidente estadunidense, George W. Bush, foi a personalidade mais criticada durante 3ª Cúpula dos Povos. As principais ruas de Mar del Plata estiveram tomadas por pixações, cartazes, faixas e camisetas com dizeres “Fora Bush” e “Fora Alca”. Nos espaços do encontro, também não foi diferente. Em praticamente todos os painéis e grupos de discussão, a oposição a Bush e ao o que ele representa esteve evidente. O maior protesto ocorreu no último dia da Cúpula dos Povos e início da 4ª Cúpula das Américas, reunião dos presidentes do continente americano (veja mais na página 10). Cerca de 20 mil pessoas participaram da marcha de encerramento do encontro, percorrendo durante uma hora e meia as ruas vazias de Mar del Plata. O comércio da cidade, com a grande maioria de lojas, bancos e restaurantes fechados, e a pequena presença de policiais chamaram a atenção. Alguns moradores vinham às janelas para tirar fotos e assistir às manifestações; outros batiam palmas e faziam gestos de apoio. A marcha seguiu até o Estádio do Complexo Poliesportivo, onde aconteceu o ato final. Blanca Chan-
Um dos pontos mais discutidos durante a 3ª Cúpula dos Povos foi a necessidade de se construir uma integração dos povos americanos. Mais do que uma alternativa à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a união dos países da América deve promover um desenvolvimento econômico soberano e ambientalmente sustentável e resgatar a história e a cultura dos povos, respeitando as especificidades de cada sociedade local. “As alternativas para uma integração mais justa devem ser buscadas e encontradas dentro dos nossos países, e não fora deles”, afirmou Blanca Chancoso, da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). Nesse sentido, a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) foi colocada como a principal pro-
Cerca de 70 mulheres de todo o continente elencaram os principais desafios da Marcha Mundial das Mulheres. Durante a 3ª Cúpula dos Povos, em Mar del Plata, Argentina, a defesa do livre-comércio, da soberania alimentar e da autodeterminação dos povos foram apontadas como as principais lutas gerais da Marcha. Para as participantes, a dominação a que a mulher está submetida atualmente está relacionada a todas essas questões. “Quando se fortalece a dominação capitalista, a dominação sobre a mulher aumenta”, afirma Nalu Farias, da Marcha Mundial de Mulheres no Brasil. Segundo a integrante brasileira, o sistema neoliberal se utiliza do controle sobre a mulher por meio do desemprego e da pobreza para se sustentar. Nesse sentido, elas concluíram que é necessário encontrar um meio de sensibili-
zar, para a luta, as mulheres que sucumbiram aos “benefícios” econômicos que o capitalismo traz a uma minoria.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Sobre as questões mais específicas da Marcha, o combate à violência doméstica e ao assassinato das mulheres, chamado de “feminicídio”, estiveram entre os comentários. Leonor Aida Concha, da Rede Nacional de Gênero e Economia do México, ressaltou que metade das mulheres mexicanas sofre agressões físicas de seus companheiros dentro da própria casa. “Estamos muito entusiasmadas em continuar com as ações da Marcha no México, principalmente para combater a pobreza, construindo um modelo econômico que una os povos, e para mudar a relação cultural entre mulheres e homens a fim de construir a nossa cidadania”, argumentou Leonor.
Para isso, estão formulando uma campanha de educação popular entre as mexicanas, abordando preceitos como igualdade e justiça. “Estes são os valores que queremos que constituam uma nova sociedade. Só que, para que isso aconteça, precisamos primeiro saber o que significam”, finaliza. O futuro da Marcha também esteve em pauta. As participantes destacaram que se integrar a outros movimentos sociais é fundamental ao processo de transformação social. “Não queremos ser apenas parceiros, mas sim integrantes permanentes na organização popular”, destacou Nalu Farias. Com esse objetivo, a Marcha Mundial de Mulheres está ajudando a Via Campesina a organizar a Conferência Internacional de Soberania Familiar, que acontece em 2007, em local ainda nao definido. (RC) (www.movimientos.org)
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INTERNACIONAL ÁFRICA
Saída está na agricultura alternativa Nos últimos dez anos, os maiores doadores internacionais, incluindo o Banco Mundial, abandonaram a questão agrícola por exemplo, na introdução de práticas inovadoras que constituem uma grande promessa de alívio da pobreza, segundo o especialista.
Ipalac
Linus Atarah de Helsinque (Finlândia)
A
agricultura alternativa oferece mais possibilidades de desenvolvimento para a África do que a ajuda monetária, segundo Dov Pasternak, diretor do Programa Internacional de Cultivos em Terra Árida (Ipalac, sigla em inglês), especialista em projetos agrícolas nesse continente. “Todos falam em ajudar a África, mas esse discurso não tem substância”, diz. O Ipalac tem sua sede em Niamey, no Chade, na África Ocidental, e busca promover o uso racional das plantas em áreas propensas à desertificação. O projeto é financiado basicamente pelo governo finlandês. Durante os últimos dez anos, os maiores doadores internacionais, incluindo o Banco Mundial, abandonaram a questão agrícola, que também saiu da mira dos que tomam decisões na África, seguindo Pasternak. “A redução da pobreza não pode ser alcançada simplesmente transferindo grandes quantidades de dinheiro”, afirma. “Se alguém deseja ajudar a África tem de apoiá-la no que ela faz melhor, e a agricultura é o que os africanos conhecem melhor, simplesmente porque cerca de 80% da população vive em áreas rurais, onde a principal ocupação está nos cultivos”, acrescenta Pasternak. O Ipalac foi criado por cientistas israelenses em 1995 para ajudar os vizinhos árabes em assuntos como administração da água e dos alimentos. Desde então, o projeto expandiu. Israel é líder mundial em agricultura em terras áridas e pioneiro em tecnologias como irrigação por gotejamento, um sistema que permite levar água
REVOLUÇÃO VERDE
Técnica especial de irrigação permite aos pequenos agricultores pagar suas dívidas em apenas uma safra
diretamente a cada planta, em lugar de regar toda a área plantada. O Ipalac lançou o projeto “Árvores da Terra Santa”, destinado a expandir cultivos mediterrâneos como oliveiras, figueiras, palmas, tamareiras e pinhos, disse o especialista. Algumas técnicas agrícolas aplicadas no Sahel, a enorme zona árida fronteiriça do deserto do Saara (oeste e centro da África), têm potencial para serem adotadas amplamente no resto do continente em poucos anos, acrescentou. Entre elas está um sistema de
irrigação por gotejamento chamado Jardim do Mercado Africano, que requer pressão hídrica de um metro para irrigar 500 metros quadrados de terra. Até agora, 1.500 unidades foram instaladas em oito países do Sahel. Pasternak acredita que outras quatro mil logo estarão em uso em outras partes do continente.
JARDIM AFRICANO O sistema custa cerca de 50 dólares para uma área de 80 metros quadrados, e 500 dólares para 500
metros quadrados. World Vision, Care International e Catholic Relief Services estão entre as organizações não-governamentais que oferecem créditos para adquirir estes sistemas de irrigação. Como a tecnologia permite abundantes cultivos, Pasternak diz que os agricultores podem pagar suas dívidas em apenas uma safra. O Instituto Internacional de Investigação de Cultivos para Trópicos Semi-Áridos (Icrisat) com sede na Índia, trabalha junto com o Ipalac em vários projetos,
O Icrisat pesquisa cinco cultivos locais (amendoim, grão-de-bico, feijão, sorgo e milho) cultivados principalmente por agricultores pobres em áreas semi-áridas. O diretor do Icrisat, William D. Dar, diz que o grande crescimento populacional na região impede que se mantenha o tradicional sistema chamado de barbecho (período de descanso da terra cultivável). A única opção é intensificar a agricultura. A técnica de microdose desenvolvida pelo Icrisat em Niamey supõe um mesmo resultado aplicando apenas 20% da quantidade usual de fertilizantes, porque estes se introduzem diretamente debaixo de cada planta, em lugar de ser espalhado por todo o terreno. Devido a essas inovações, nos últimos cinco anos mais de cem mil espécies de cultivos e árvores frutíferas resistentes às secas se propagaram pela região do Sahel, conta Pasternak. “Tem de haver uma segunda revolução verde para a África, porque esse continente perdeu a primeira”, diz o especialista, referindo-se aos polêmicos processos de renovação realizados na Ásia duas ou três décadas atrás para aumentar o rendimento do trigo e do arroz. A África enfrenta um desafio diferente por causa de suas grandes áreas que sofrem longos períodos de secas ou chuvas insuficientes. E as novas técnicas enfrentam precisamente esse desafio, ressaltou Pasternak. (Africacover/IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
NIGÉRIA
Kuha Indyer especial para o Brasil de Fato de Lagos (Nigéria) Muitas nações africanas são abençoadas com vários recursos que podem garantir uma vida digna para as suas populações. Infelizmente, a maioria dos líderes na África não anseia em se tornar líderes por causa do serviço ao povo que o elege. Eles querem o poder para se enriquecer por meio dos recursos humanos e naturais que têm à disposição e sob o seu controle. Os casos de corrupção são freqüentes e marcaram a história. Dois ex-ditadores são exemplos disso: Sani Abacha, na Nigéria, que morreu e deixou sacolas de dinheiro em seu quarto e milhões de dólares em contas no exterior; e Late Mobutu, do ex-Zaire. Ambos eram mais ricos que seu próprio país. O que também entristece o povo é que esses líderes não estão preocupados em proteger seus cidadãos da ganância das empresas transnacionais que estão interessadas em levar recuros para fora do continente. Um exemplo típico é o caso da Nigéria. Nas áreas de produção de petróleo do país, as atividades das empresas multinacionais causam problemas ambientais, privam moradores de terras para o cultivo, poluem a única fonte de suprimento de água, e o governo não faz nada para resolver o problema. Entretanto, em sua bondade, Deus sempre suscita profetas que se dedicam a lutar contra injustiças cometidas contra o seu povo. O escritor e ambientalista Ken Saro Wiwa foi um deles. Dia 10, celebra-se o seu décimo aniversário de morte. Saro Wiwa foi enforcado pelo regime militar de Sani Abacha em 10 de novembro de 1995. Representante do povo Ogoni, no Delta do Rio Níger, Saro Wiwa dedicou a vida toda a lutar contra a
Arquivo Nigrizia
Dez anos sem o ambientalista Ken Saro Wiwa “A morte não vai nos intimidar” Leia, abaixo, trecho da declaração do escritor Ken Saro Wiwa para o Tribunal Militar Nigeriano
Ken Saro Wiwa foi assassinado por defender o povo Ogoni da exploração da empresa multinacional Shell
destruição do ambiente causada pela exploração de petróleo pelas empresas multinacionais na Nigéria, principalmente a Shell e a British Petroleum. Ele fez suas as palavras do escritor algeriano, Tahar Dhaout: “O silêncio é a morte. Se você ficar em silêncio, você está morto. E se você falar, você está morto. Então fale e morra”. Em 1991, ele fundou o Movimento pela Sobrevivência do Povo Ogoni (MOSOP) e começou uma vigorosa campanha internacional contra os problemas ambientais na Nigéria. Ele criticou a Shell, acusada de ser a responsável pela destruição ecológica e poluição industrial de sua terra natal. No mesmo momento ele também criticou com todas as palavras o governo nigeriano, acusando-o de levar o genocídio contra o seu povo. Apesar
da campanha governamental brutal contra os Ogoni, Saro Wiwa sempre defendeu protestos não-violentos e pacíficos. Todavia, no dia 21 de junho de 1993 ele foi preso. Foi solto quatro semanas depois, após uma forte pressão internacional promovida por organizações ambientalistas e movimentos sociais.
CONDENAÇÃO Em maio de 1994, ele foi preso novamente, acusado de estímulo e assassinato seguido de morte de quatro líderes do povo Ogoni, considerados simpatizantes dos militares. Saro Wiwa negou as acusações, mas foi encarcerado por mais de um ano antes de ter sido julgado culpado e sentenciado à morte por um especialista do tribunal militar. O julgamento foi duramente criticado pelas organizações dos direitos humanos.
Os protestos e condenações das organizações dos direitos humanos não deteram o regime de Sani Abacha de levar adiante seus atos severos. Assim, no dia 10 de novembro de 1995, Saro Wiwa e outros oito líderes do MOSOP foram executados por enforcamento. Saro Wiwa nasceu em 1941 em Bori, na costa sul da Nigéria. Ele estudou na escola pública Umuahia e na Universidade de Ibadan. Na metade dos anos 1960, ele se tornou um assistente de palestras na Universidade de Lagos. Entre 1967 e 1970, foi administrador do Porto de Bonny, perto de Ogoni no Delta do Níger. Depois da sua demissão, em 1973, por causa do apoio à autonomia Ogoni, Saro Wiwa passou a escrever. Uma de suas obras mais famosas é Sozaboy, que conta a história de um garoto morador de
“Todos nós vivemos para a história. Sou um homem de paz, de idéias. Intimidado pela pobreza do meu povo que vive em uma rica terra, aflito por sua marginalização política e estrangulação econômica, furioso pela devastação de suas terras, a última herança deles, ansioso para preservar seus direitos à vida e de ter uma vida decente, e determinado a conduzir este país como justo e um sistema de democracia justa que protege todos e todos os grupos étnicos e nos dá o direito da civilização humana. Eu devotei minha intelectualidade e recursos materiais, minha vida, para uma causa que eu acredito muito e que eu não vou ser chantageado ou intimidado. Não tenho dúvida nenhuma sobre o sucesso de minha causa, não tem importância os julgamentos que eu e aqueles que acreditam em mim podem encontrar na nossa caminhada. Nenhuma prisão ou morte vai nos intimidar, nos impedir de chegarmos à vitória.”
um vilarejo que foi recrutado para o Exército durante a guerra civil da Nigéria. Outras obras: Diário de Guerra, uma planície obscura, Basi e Co., Floresta de Flores. Saro Wiwa hoje está morto, mas suas idéias ainda permanecem vivas, o que ainda motiva o povo Ogoni a se empenhar pelos seus direitos para viver em um ambiente melhor na Nigéria.
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NACIONAL PÓLO SIDERÚRGICO
Projeto é adiado pelo sócio chinês Ed Wilson Araújo de São Luís (MA)
Ed Araújo
Rejeitado pela comunidade, pólo acaba sendo adiado pela Baosteel, sócia da Vale do Rio Doce
A
trilha que liga Rio dos Cachorros ao Taim, passando por Limoeiro, impressiona pela abundância de brejos rodeados de buritizeiros, juçaraís e uma variedade de fruteiras nativas, contrastando com trechos de grandes jazidas de areia e pedra. “Esse caminho lembra muito a nossa infância, as brincadeiras e as lendas da nossa cultura”, recordam as jovens Carla dos Santos Dias, Deusimar Martins (Kekê) e Graciela Pires da Silva, indicando a gruta de pedra erguida no meio da mata onde celebram Nossa Senhora da Conceição, uma das tradições no festivo calendário religioso da zona rural de São Luís. Mas todo esse ambiente bucólico e lúdico corria o risco de desaparecer. Rio dos Cachorros, Limoeiro, Taim e mais oito comunidades estão na área onde se pretendia instalar o Pólo Siderúrgico. Dia 8, porém, de acordo com informação veiculada pela Agência Reuters, Xu Lejiang, presidente da Baosteel, maior siderúrgica da China, anunciou, em entrevista concedida na sede da fábrica, nos arredores de Xangai, o adiamento do projeto conjunto com a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a européia Arcelor. (leia box)
População de Rio dos Cachorros e comunidades vizinhas, no Maranhão, temem a poluição do ar, do solo e do subsolo com a construção do pólo siderúrgico
sileira e 2,3% do aço fabricado no mundo). A meta era gerar 10,5 mil empregos diretos e indiretos, mas o impacto ambiental e social do projeto seria gravíssimo. Instituições científicas como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) chegaram a divulgar uma moção repudiando o empreendimento, alertando para a poluição do ar, do solo e do subsolo.
COMPLEXO
RESISTÊNCIA
O objetivo do empreendimento, que consumiria 1,5 bilhão de dólares na fase inicial, era instalar, na capital maranhense, próximo ao porto do Itaqui, um complexo de três usinas e duas gusarias, em uma área de 2.471 hectares, onde moram cerca de 14 mil pessoas, em onze comunidades rurais. Cada usina teria capacidade de produzir 7,5 milhões de toneladas anuais de placas de aço, totalizando 22,5 milhões de toneladas para exportação (72% da produção bra-
A resistência ao pólo é coordenada pelo movimento Reage São Luís, formado por várias entidades sindicais e populares, estudantes e líderes das comunidades. A maioria prefere o pólo no continente e há quem não queira as fábricas em nenhum lugar do Maranhão. O pólo é defendido pelos governos federal e estadual, e acolhido pela Prefeitura de São Luís. Após a realização de onze audiências públicas, a Câmara de Vereadores está apreciando o projeto encaminhado
As explicações da Baosteel Alegando dificuldades diversas, a Baosteel, maior siderúrgica da China, anunciou, dia 8, o adiamento do empreendimento conjunto com a Vale do Rio Doce e a siderúrgica européia para instalação de planta no Brasil. Precisamente em São Luís, capital do Maranhão. O projeto, com previsão de investimento de 2,5 bilhões de dólares, seria o maior do país no exterior. Um dos motivos da suspensão, segundo a Agência Reuters, seria o excesso de oferta no mercado mundial.
pela prefeitura para modificar a Lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano, transformando a zona residencial rural em zona industrial. O movimento Reage São Luís argumenta que mudanças na lei de ocupação urbana têm de passar, primeiro, pela revisão do Plano Diretor, conforme recomenda o Estatuto das Cidades. Após o trâmite em quatro comissões temáticas e no plenário na Câmara, o projeto vai enfrentar, ainda, a fase de licenciamento ambiental.
Xu Lejiang, presidente da Baosteel, declarou que o projeto estaria ainda em estudos, e não anunciou qualquer outro cronograma para implementação do pólo siderúrgico, que deveria entrar em operação em 2010. “Tivemos algumas dificuldades com a aquisição de terrenos, certificações ambientais e impostos”, declarou Xu Lejiang em coletiva de imprensa, na sede da empresa. “Não resolvemos essas questões e o projeto está sendo prorrogado por essas razões,” acrescentou.
No transcurso das audiências públicas, o Reage contabiliza vitória parcial no debate público. A Câmara está cogitando a redução da área do pólo de 2.471 para mil hectares, com a instalação de uma só siderúrgica.
DIMINUIR NÃO RESOLVE O pescador Alberto Cantanhede Lopes, o Beto, uma das lideranças do Taim, afirma que a redução da área não resolve o problema. “A gente sabe que implantando
uma parte, no futuro virá a proposta de trazer o restante”, argumenta, citando o exemplo de expansão da Alumar, a fábrica transnacional de alumínio implantada em São Luís, na década de 1980. “A permanência é vital para as comunidades, mas é vital também para a ilha de São Luís por conta dos recursos que nós temos”, destaca Beto. Ed Wilson Araújo é jornalista e professor universitário
Na região onde o projeto seria instalado, foram detectadas em torno de 130 nascentes e mais algumas áreas de recarga aqüífera. E com um empreendimento do tipo do pólo, a cidade de São Luís perderia esta reserva hídrica. “Então, nós teríamos um grande problema com o abastecimento de água no futuro, visto que o Rio Itapecuru está também com o seu potencial e a qualidade comprometido”, adverte Beto Lopes. As estimativas do pólo prevêem um consumo de 2,4 mil litros de água por segundo, captados do Rio Itapecuru, volume correspondente ao abastecimento de toda a população de São Luís. Durante as audiências públicas, o mapa apresentado pela prefeitura omitiu as 123 nascentes de rio na área, que são protegidas pelo Código Florestal (Lei 4.771/65). As cabeceiras dos rios e um raio de 50 metros em torno delas são “áreas de preservação permanente”, argumenta o promotor do Meio Ambiente, Fernando Barreto, com base no código. A apresentação do mapa falso, omitindo as nascentes, levou os integrantes do movimento Reage São Luís a questionar a validade das audiências públicas. Integrante do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) e do Movimento Nacional de Pescadores, Beto Lopes aponta a gravidade dos impactos sociais, ambientais e econômicos do pólo: remoção de pessoas, inchaço urbano e poluição de toda a ilha de São Luís. A área pretendida para o pólo é contornada por manguezais e entrecortada de nascentes. As condições geográficas permitem aos moradores
Ed Araújo
Águas, um tesouro em perigo
Estimativas do pólo siderúrgico prevê o consumo de 2,4 mil litros de água por segundo, colocando em risco o aqüífero da região
o acesso a múltiplas formas de trabalho: pesca, maricultura, extrativismo, roças de subsistência, criação de abelhas e pequenos animais que integram a base alimentar da população.
REJEIÇÃO A rejeição ao pólo é comum à quase totalidade dos moradores do Taim. Maria da Conceição Cruz, 66 anos, 16 filhos, ressalta a tranqüilidade, a liberdade e a paz do lugar onde nasceu e não quer sair. Os argumentos são endossados por outra Maria, a da Conceição Ramos, 51 anos, dez filhos e 13 netos, todos nascidos no Taim. “A liberdade aqui é tudo para nós. O pólo vai ser um transtorno. Aqui a gente vive tranqüilo, em paz, não tem assalto, nada que incomode. Saindo daqui para outro local que a gente não conhece, não vamos ter paz. Até nos acostumarmos, a gente já morreu de fome. Eu acho que vou morrer e não vou me acostumar”, lamenta.
Taim é uma das mais antigas comunidades da zona rural de São Luís, com cerca de 150 anos, remanescente da escravatura, onde ainda existem ruínas de construções típicas da época. O lavrador José Reinaldo Moraes Ramos, 44 anos, é da sexta geração familiar. “Aqui nós temos paz, água com fartura e muitos recursos naturais. Isso faz com que a gente lute por nossa moradia, que é ficar aqui na nossa comunidade”, afirma, temeroso diante da possibilidade de ser removido. O local indicado pelo governo do Estado é próximo ao aterro sanitário da Ribeira.
DESASTRE “A remoção seria desastrosa para nós e para o restante da população. Para onde for um grande contingente de pessoas haverá uma disputa de espaço, um acirramento de conflitos. O bairro da Liberdade, por exemplo, se tornou
violento devido ao crescimento populacional, com pessoas que vieram de outras regiões, como os removidos do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). A disputa por espaço, por trabalho, certamente gera esse conflito”, explica Lopes. Os moradores temem pelo destino de Flor de Liz Santana, a Florzinha, 70 anos. Ela morava em Paquatíua, de onde foi remanejada nos anos 80, época da implantação da Alumar. Com o dinheiro da indenização, mudou-se com a família para a Vila Sarney. O marido logo comprou um carro, mas ninguém sabia dirigir. Então contrataram um motorista. Entre idas e vindas pela estrada precária, o carro deteriorou, o dinheiro acabou e ela teve de voltar para o Taim, onde contou com a solidariedade dos moradores. Hoje, viúva, lamenta a aventura e não recomenda a indenização para ninguém.
“Cada qual pegou uma mixaria, não deu para enriquecer, não deu para hoje em dia ter nada de lá. Eu não tenho vontade e não penso em sair. Nós já estamos acostumados, nós dormimos tranqüilos, é uma comunidade muito unida”, conta. Entre Rio dos Cachorros e Taim fica o povoado Limoeiro, onde vivem seis famílias do mesmo tronco, lideradas por Lionel Eduardo Mesquita, 77 anos, dono de uma casa de farinha partilhada pelos lavradores. A ingerência de terceiros na área deixa dúvidas na cabeça de Lionel Mesquita em relação ao pólo siderúrgico. “Aqui, não é meu. Sou encarregado, só tomo conta. Eu fico entre uma cruz e outra. Não sou contra, nem a favor, porque nasci e me criei aqui nesse lugar. Minha mãe, meu pai, meus avós, todos foram criados aqui. Não tenho do que me queixar. Só quero os meus direitos”, desconversa. (EWA)
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DEBATE AMÉRICA LATINA
Marcelo Câmara recado será dado mais uma vez. Seu grito será lançado das vozes de milhares de pessoas, integrantes de movimentos diversos, que têm em comum aquilo que o uruguaio Raul Zibechi caracterizou como o “movimento dos sem”: são os sem-trabalho, sem-terra, sem-teto, sem acesso à saúde e à educação, sem o reconhecimento de suas diferenças culturais e/ou de suas próprias línguas originárias, e as mães sem os filhos, perdidos na luta. É um brado que ecoará através das cadeias midiáticas e através das redes de articulação de seus movimentos, rompendo as fronteiras. Seu endereço é certo, e seu recado é direto: já basta! A realização da Cúpula das Américas na cidade de Mar del Plata, na Argentina, foi mais uma ocasião para os dirigentes das nações latino-americanas escutarem as manifestações das milhares de pessoas que participaram dos protestos contra o evento. Mas sabemos que, salvo pontuais exceções, é pouco provável que tais manifestações ecoem junto àqueles que estarão dentro dos salões hermeticamente protegidos onde tais cúpulas acontecem. Seu recado, mais do que aos chefes de Estado, deve ser refletido, isto sim, pelas consciências cidadãs de milhões de latino-americanos, para que, com sua atenção voltada àqueles rostos anônimos na multidão, juntos possamos construir alternativas de soberania popular. Essa foi a mensagem transmitida ao longo de 5 dias de intensos debates na Conferência Internacional “Pensamento e Movimentos Sociais na América Latina”, encontro ocorrido de 13 a 17 de outubro na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói – numa promoção conjunta do Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades (Lemto), vinculado ao Departamento de Geografia da UFF, e do MST –, quando investigadores sociais de toda a América Latina procuraram
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debater as alternativas contra-hegemônicas no continente, numa proposta extremamente adequada ao momento. A observação do contexto latino-americano das últimas décadas nos mostra um continente que, a despeito dos indicadores macroeconômicos favoráveis e das reduções freqüentes do chamado “risco-país” em diversas de suas nações, amarga índices crescentes de desigualdade social, num efeito contraditório que parece passar despercebido nas negociações palacianas. Um continente onde os 10% mais ricos acumulam quase 50% da renda nacional, enquanto na ponta de baixo, os 10% mais pobres “fartam-se” com 1,6% da renda (!). A aplicação desenfreada do receituário neoliberal baseado nos preceitos do Consenso de Washington foi a projeção na América Latina de uma construção estratégica e sistemática de poder ancorada na utopia do mercado total. Aos que acreditaram no fim do imperialismo, o sistema ofereceu aumento da concentração, descaso com o direito internacional e unipolaridade. Os EUA, responsáveis por mais da metade dos gastos militares mundiais, possuem bases instaladas em 121 países, posicionadas de acordo aos seus interesses estratégicos. A América Latina não passa despercebida nesse processo (Plano Colômbia, bases no Equador e no Paraguai). Como afirma o argentino Atilio Borón, “o sistema vigente tem um rosto agressivo, militarizado, financeiro e destruidor do meio ambiente”. INSTITUCIONALIDADE
O fracasso social desse modelo, implantado em todo o continente em diferentes momentos das duas últimas décadas, tem como conseqüência o desapontamento com a democracia representativa. A população, que em momentos votou pelo neoliberalismo, baseada especialmente nas promessas de sua face populista, hoje sente um mal-estar gerado por esse
Kipper
Protagonismo popular e movimentos sociais
modelo. Também a frustração com os governos “de esquerda” que chegaram ao poder nesse período contribui a esse aprendizado. Os partidos de esquerda não implementaram mudanças, apenas defenderam o Estado, carentes de poder de decisão soberana sob pressões externas e de elites locais subordinadas a essas, e isolados dos movimentos sociais que foram, historicamente, a sua base. A percepção que resulta desse processo é de que apenas na mobilização popular é possível encontrar as chaves para romper com o modelo excludente, tornando-se, assim, cada vez mais abrangente entre as forças populares do continente. Cabe, portanto, aos movimentos sociais
serem os protagonistas de um novo cenário, propondo novas estratégias de poder, passando das ações puramente reivindicativas à resistência política. Como afirma o sociólogo boliviano Álvaro Garcia – candidato à vice-presidência da Bolívia pelo Movimiento Al Socialismo (MAS) – , “não há governo de esquerda sem um movimento social amplo que o vigie”. PODER POPULAR
O atual perfil dos movimentos sociais na América Latina mostra o quanto essa compreensão difunde-se em todo o continente. O conceito de protagonismo popular, enfatizado pelo geógrafo Carlos Walter Porto Gonçalves, incide diretamente na questão: é
necessário reverter o protagonismo exercido historicamente pelas elites. Essa conscientização não aponta sua prioridade à conquista do Estado, mas sim à construção de poder popular e soberano. Os exemplos vêm sendo dados por movimentos dispersos nos países de nosso continente: são piqueteros, camponeses, associações de vizinhos que, na discussão cotidiana, estão propondo novas relações na empresa, no campo, nas ruas. São movimentos baseados em relações de horizontalidade, construídos a partir da ligação e identificação com o território, da proximidade e da solidariedade nascida na convivência. São movimentos sociais que sabem que devem priorizar a construção de relações de poder, pois a construção de uma relação de governo é apenas uma das ferramentas de um processo mais amplo. Este cenário reforça a necessidade de convergência dos movimentos sociais latino-americanos, para finalmente rompermos com uma sociedade de matizes coloniais, onde a pobreza e a riqueza têm cor. Há um desafio conjunto proposto pelo contexto atual. Se identificamos inimigos comuns, é possível que busquemos soluções comuns. A chamada a um sentimento de “americanidade”, como sentimento necessário à libertação dos nossos povos, é também a chamada para que o protagonismo ativo dos movimentos sociais seja o promotor das mudanças necessárias. Como defendido pelo uruguaio Zibechi, “o fortalecimento das pequenas experiências deve ser a base para a construção de novas experiências”, para que estas “ilhas” de resistência popular possam espraiar-se em verdadeiras manchas de revolução democrática – e com protagonismo popular ! Marcelo Câmara é professor de Geografia da América Latina e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
A estratégia de guerra dos EUA César Fonseca o momento em que se realizava, em Mar del Plata, Argentina, a Cúpula das Américas, para tentar ressuscitar a idéia da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), veio uma notícia-bomba: a revelação do Washington Post, no dia 3, de que o orçamento do Pentágono contempla no período 20082013 recursos definidos – não se revelaram os valores – para a deflagração de uma guerra contra a Venezuela. A América Latina entra, de novo, no circuito das guerras localizadas, denominadas pequenas guerras O relatório intitulado Revisão Quadrienal de Defesa – documento preparado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos – evidenciou a estratégia de guerra aos cinco países que a Casa Branca considera reais inimigos de Tio Sam, na atualidade global, pela ordem: Coréia do Norte, Irã, China, Síria e Venezuela. Coréia e Irã insistem em construir bomba atômica; China já tem a sua e se transformou no grande exportador e consumidor mundial a partir de moeda desvalorizada; a Síria porque, a juízo dos generais estadunidenses, transformou-se na nova matriz do terror muçulmano, depois da queda de Sadam Hussein, no Iraque; e a Venezuela porque esse país latino-americano, quarto maior produtor de petróleo do mundo, representa 15% do consumo de óleo dos Estados Unidos.
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A guerra está, portanto, à vista, prevista na contabilidade do Estado industrial-militar estadunidense. Convencido por seus serviços secretos de que a Casa Branca prepara invasão à Venezuela, hipótese, agora, confirmada pelo vazamento de informações sobre a estratégia estadunidense no continente latino-americano, o presidente Hugo Chávez reagiu colocando fuzis nas mãos das milícias populares que têm sido fortalecidas, também, orçamentariamente, pelo governo nacionalista boliviano. As tensões guerreiras tenderão a crescer quanto mais se aproximar o período 2008-2013. Nesse sentido, as instalações de base estadunidense no Paraguai, alvo de preocupações máximas em todas as chancelarias diplomáticas – inclusive em Brasília –, e a participação cada vez mais intensa do dinheiro americano para armar o governo colombiano contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs) representariam esse ensaio geral para a guerra na América Latina.
vez, presidente da Venezuela. Bush, além da guerra, no âmbito da América do Sul, prega o livrecomércio, o câmbio flutuante e o regime de metas inflacionárias. Chávez e, também, Néstor Kirchner, presidente da Argentina, fugiram dessa pregação. Ambos partiram para o controle da entrada de moeda na economia. Com isso, conseguiram reduzir a taxa de juros e favorecer o aumento dos investimentos.
A Cúpula das Américas, em tal ambiente de incerteza, serviu para mostrar as tensões que passaram a viver a América Latina, agora, formalmente, inserida no orçamento de guerra do governo estadunidense
CÚPULA DAS AMÉRICAS
É nesse contexto politicamente explosivo que se realizou a 4ª Cúpula das Américas, em Mar del Plata, palco de intensas lutas políticas, tendo como alvo maior, de um lado, o presidente Bush, acossado por desacertos internos do seu governo e desgaste político provocado pela invasão ao Iraque, e, de outro, Hugo Chá-
Os PIBs argentino e venezuelano estão crescendo 8% e 12%, respectivamente. Enquanto isso, no Brasil onde a entrada e a saída de moedas é livre e vigora regime de metas inflacionárias, o PIB cresce cerca de 3,5%. Kirchner e Chavez disseram não a essa reivindicação funda-
mental de liberdade para o capital do governo estadunidense. O presidente brasileiro seguiu caminho oposto: a moeda oscila selvagemente, sem ser, duramente, contida por compras insuficientes de dólares, para elevar seu preço, sem sucesso, pelo Banco Central, enquanto os juros, frente ao câmbio flutuante, permanecem elevados. Ao mesmo tempo em que atrai dólares, eleva a dívida pública. Uma providência anula a outra. No caso da Argentina, Kirchner, com sua política financeira nacionalista, obteve maioria no Congresso em recentes eleições legislativas: renegociou 75% da dívida externa e controlou entrada de capital na economia, providência, agora, elogiada por George W. Bush, em entrevista ao La Nacion, de Buenos Aires no dia 3. Na Venezuela, Chávez também segue comandando uma política econômica nacionalista, de proteção da moeda contra a oferta excessiva de dólares no mercado mundial, e deverá obter, em dezembro, vitória semelhante à de Kirchner, quando serão renovadas as cadeiras no Legislativo venezuelano, como admitem as pesquisas dos próprios adversários do chavismo. As políticas nacionalistas adotadas por Kirchner e Chávez contrastam com a pregação neoliberal do presidente estadunidense. O incômodo maior da Casa Branca é o de que as posições nacionalistas passaram a dar vo-
tos, o que significa que políticas econômicas neoliberais poderão não mais assegurar votos no jogo da democracia representativa. BEIJO DA MORTE
Nesse ambiente de tensão política, Bush, acossado interna e externamente, politicamente desgastado, pode ter dado beijo da morte em Lula ao dizer que tem no presidente brasileiro “uma pessoa interessante”, interlocutor capaz de ajudá-lo a promover a democracia na América Latina. Bush disse intencionalmente o mesmo que Nixon destacou nos anos de 1970: para onde vai o Brasil, a América Latina segue atrás. A esquerda passou a olhar o titular do Planalto com olhos desconfiados. A Cúpula das Américas, em tal ambiente de incerteza, serviu para mostrar as tensões que passaram a viver a América Latina, agora, formalmente, inserida no orçamento de guerra do governo estadunidense. A reação popular, na Argentina, comprovou o que a pesquisa do Instituto Zogby concluiu: 86% da elite latino-americana desaprova a estratégia de guerra dos EUA. Os militares estadunidenses, porém, parecem não se importar. Eles, segundo o Washington Post, vêem a emergência bélica contra a Venezuela como a generalização dos acontecimentos mundiais no período pós-11 de setembro de 2001. César Fonseca é jornalista
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA Y AHORA, FIDEL? O livro de Arthur Amorim, com caderno de 67 fotos coloridas de Lilian Vaz, é uma reportagem sobre a ilha caribenha, desde a época de Cristóvão Colombo, passando pela colonização espanhola, pelas lutas de independência, pelo período do domínio estadunidense, pela revolução cubana, até os dias de hoje. Não é um livro sobre Fidel Castro, nem sobre Che Guevara, embora eles sejam personagens com forte presença. Focaliza Cuba, suas lutas, sua gente, seus esportistas campeões, sua economia. Lançada pela Editora Codex, a obra tem 200 páginas e custa R$ 35. Mais informações: www.editoracodex.com.br
BAHIA BANDO OLODUM Até 4 de dezembro O Bando de Teatro Olodum, anunciador da nova (velha) civilização baiana, completa 15 anos. Para comemorar, o grupo reapresenta o seu maior sucesso de público, Cabaré da RRRRaça, com novas músicas, figurino redesenhado e a participação de vários artistas importantes na trajetória do Bando e na valorização da cultura afrodescendente no Brasil. Local: Teatro Vila Velha, Passeio Público, Salvador Mais informações: (71) 3336-1384
GOIÁS SEMINÁRIO - DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA BACIA DO ALTO TOCANTINS 24 e 25 O evento tem o intuito de aprofundar a discussão, elaborar propostas de desenvolvimento sustentável e incentivar a criação do Comitê do Rio Tocantins. A iniciativa é do Conágua Alto Tocantins – Consórcio Intermunicipal de Usuários de Recursos Hídricos para Gestão Ambiental da Bacia Hidrográfica do Alto Tocantins. Local: Colinas do Sul Mais informações: conaguato@ecodata.org.br
RIO GRANDE DO NORTE 6º ENCONTRO NACIONAL DO TERCEIRO SETOR 25 e 26 A proposta do encontro é abordar a profissionalização da gestão do terceiro setor, com destaque para a aprendizagem coletiva e a formação de redes de apoio mútuo. Local: Hotel-Escola Senac Barreira Roxa, Av. Senador Dinarte Mariz, 4020, Natal Mais informações: (84) 3201-7429
RIO GRANDE DO SUL 6º SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE AGROECOLOGIA - 6º SEMINÁRIO ESTADUAL SOBRE AGROECOLOGIA 16 a 18 A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, fará a abertura, e frei Betto, o encerramento dos eventos. Durante três dias, especialistas, agricultores, professores e estudantes de diversos países e Estados brasileiros devem participar dos debates sobre o desenvolvimento local. A questão será abordada em 16 palestras desenvolvidas a partir de seis eixos temáticos: o desenvolvimento e o meio ambiente; a alimentação adequada como direito planetário; o saber local como patrimônio da humanidade; a tecnologia social e manejo de agroecossistemas sustentáveis; a comunicação como ferramenta do empoderamento; e o desenvolvimento e a ecologia. Também consta da programação a apresentação de algumas experiências agroecológicas desenvolvidas no Brasil. Local: Assembléia Legislativa de
Porto Alegre, Pça. Marechal Deodoro, 101, Porto Alegre Mais informações: www.emater.tche.br
SÃO PAULO PALESTRAS: SONHOS DO IMPÉRIO AMERICANO 17, 18h POLÍTICAS PÚBLICAS E REFORMA AGRÁRIA EM ZIMBÁBUE 18, 18h
DISTRITO FEDERAL Arquivo Brasil de Fato
LIVRO
No dia 17, debate com Richard Peet, professor do Departamento de Geografia da Jefferson Academic Center, da Clark University (Worcester, Massachusetts, Estados Unidos). Em trabalho recente, o professor analisa criticamente o atual pensamento estratégicomilitar dos Estados Unidos, que divide o mundo em dois grupos de países: aqueles integrados ou conectados ao sistema global de livre mercado e suas leis, regulamentações e instituições; e os países que estão desconectados e, por isso, representam uma ameaça à “ordem coletiva”. No dia 18, a palestra será ministrada pelo professor Sam Moyo, diretor executivo do African Institute for Agrarian Studies, instituto de estudos pan-africanos de Harare, Zimbábue. O professor estuda a ressurgência dos movimentos rurais na África e a importância da ocupação de terras por camponeses sem-terra e trabalhadores desempregados, com caráter político e ideológico diverso, como tática usada para confrontar o Estado neoliberal e forçar, a contragosto, a entrada da população rural na agenda nacional. A atividade é uma realização do Laboratório de Geografia Agrária, do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana e do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP). Haverá tradução simultânea. Local: Anfiteatro do Departamento de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo Mais informações: (11) 3091-3769, agrari@edu.usp.br MADAME DE SADE Até 11 de dezembro Espetáculo teatral que investiga, por meio do feminino, acontecimentos históricos da vida do aristocrata francês Marquês de Sade. O texto original pertence ao polêmico Yukio Mishima, conside-
2ª MARCHA DO SALÁRIO MÍNIMO 28 a 30 Movimentos sociais e centrais sindicais estarão em Brasília para participar da Marcha, que deve reunir dez mil pessoas na Esplanada dos Ministérios. No dia 28, as delegações dos Estados se reunirão em Candangolândia – cidade localizada a 15 quilômetros de Brasília. Os manifestantes passam a noite no município e na manhã da terça-feira, 29, partem em caminhada rumo à Esplanada. Na noite de 29 para 30 está programada uma vigília com diversas atividades culturais; uma tenda circense será instalada para abrigar os participantes. O último dia da marcha será marcado por atos políticos, leitura de manifesto e encontro com lideranças políticas. Mais informações: www.cut.org.br
rado o maior escritor japonês do século 20. O espetáculo recebeu o prêmio de melhor peça moderna escrita no Japão, segundo a Associação Internacional de Críticos Teatrais. Local: Centro Cultural Banco do Brasil, R. Álvares Penteado, 112, São Paulo Mais informações: (11) 3113-3649 TERRA PAULISTA Até 11 de dezembro Mostra que propõe uma reflexão diferente sobre a história e as expressões culturais do Estado de São Paulo, apresentando as tensões e práticas cotidianas de cada
período histórico com intervenções artísticas. Local: Sesc Pompéia, R. Clélia, 93, São Paulo Mais informações: (11) 3871-7700 ENCONTRO GLOBAL DE JUVENTUDE PARA DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 13 a 15 de dezembro O encontro, promovido pelo Movimento Jovem pela Democracia e pela Rede Global de Ação Juvenil, terá seis painéis de discussão, cada um seguido de oficinas que exploram o tema com mais profundidade. Os painéis terão grande abrangên-
cia, unindo grupos e idéias diversas em um novo diálogo com o objetivo de questionar, instigar e facilitar a participação. Os apresentadores serão líderes de todas as partes do mundo, incluindo o Grupo de Trabalho Internacional do Movimento Jovem Pela Democracia, que é composto de seis jovens ativistas de democracia em diferentes continentes, trabalhando desde a melhoria na integridade jornalística na Ásia até eleições livres em Burma e estreitamento da democracia no Brasil Local: R. Vereador José Nanci, nº 300, Santo André Mais informações: (11) 3815-9926, www.ymd.youthlink.org
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CULTURA
De 10 a 16 de novembro de 2005
TEATRO DO OPRIMIDO
No palco, soluções para a vida real “A
ugusto Boal inovou e reinventou o teatro”, já disse sobre ele o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Mais importante do que assistir a um filme, diz o dramaturgo, é que as pessoas pensem também ser capazes de fazer filmes. Ou que as pessoas que recebam um livro para ler sejam também incentivadas a escrever livros elas mesmas. Essas afirmações definem não apenas Boal como todo o seu trabalho, mais que conhecido – praticado nos cinco continentes. Criador do Teatro do Oprimido, ele foi o diretor artístico do Festival Nacional do Teatro Legislativo, que aconteceu entre os dias 25 e 30 de outubro, no Rio de Janeiro. Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Boal fala de seu trabalho e conta que a primeira lei brasileira de proteção às testemunhas de crimes importantes surgiu a partir de um projeto do Centro do Teatro do Oprimido, no qual os grupos populares apresentavam espetáculos em que o público é convidado a entrar em cena, substituir o protagonista e buscar alternativas para o problema encenado. Brasil de Fato – O que é o Teatro Legislativo? Augusto Boal – O Teatro Legislativo foi a necessidade que nós sentíamos, antes de eu ser vereador, de transformar em lei aquilo que era um desejo manifestado pela população do Teatro Fórum. Neste, você apresenta o problema, e não as soluções possíveis. Por exemplo, o Shakespeare tem uma peça, Hamlet, em que ele fala que o texto deve ser um espelho, e esse espelho deve refletir a realidade como ela é: com nossos vícios e nossas virtudes. Isso é a opinião dele, o teatro é um espelho. Eu acho isso bonito e tudo. Mas ao mesmo tempo acho que a gente não tem que pensar só em compreender a realidade. Tem que procurar transformar a realidade. Esta sempre deve ser passível de uma transformação e vai necessitar sempre da transformação. Então, eu gostaria que o teatro fosse um espelho mágico, no qual você penetra e, não gostando da imagem que ele reflete, você vai lá dentro e modifica essa imagem. A gente sentiu que estava tendo idéias muito boas e tudo isso, mas na realidade a gente precisava de alguma lei. Mesmo que a gente saiba que as leis não são respeitadas no Brasil, é melhor tê-las ao nosso lado do que contra, contra nós. Então a gente começou a pensar na idéia de transformar em lei, entrando para a Câmara dos Vereadores. E eu fui candidato, fui eleito, por quatro anos.
Nestor Cozetti
Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ)
Rodrigo Valente
Difundido por todo o mundo, o trabalho do dramaturgo brasileiro gerou até projetos de lei
Quem é
Boal desenvolve trabalhos em parceria com diversos movimentos sociais, como o dos trabalhadores rurais sem-terra
E eu apresentava essa lei. Entre elas, a primeira lei brasileira de proteção às testemunhas de crimes. Não havia nenhuma lei que protegesse as testemunhas. Nós fizemos durante meio ano, nas ruas, nas igrejas, nos sindicatos, nas escolas, em toda parte a gente ia, levava as peças e depois fazia a discussão teatral, com o espectador entrando em cena e dando sugestões. E aí, essa foi a primeira lei brasileira, que depois se transformou em uma lei estadual no Espírito Santo. E passou também a ser a base da lei federal. BF – Fruto de uma encenação do Teatro do Oprimido? Boal – Sim, de vários grupos, sobre o mesmo tema. Claro que depois o tema foi para Brasília, se ampliou enormemente, porque as possibilidades federais são bem maiores que as municipais. Quando eu saí (da Câmara de Vereadores) a gente continuou fazendo isso. Tem agora três ou quatro leis aprovadas depois que eu saí, porque é muito mais difícil manter a lei, sem ter um vereador ou deputado, assim totalmente empenhado. BF – Como nasceu o Teatro do Oprimido? Boal – Em 1970, quando eu trabalhei uma forma chamada Teatro Jornal, eram doze técnicas para ajudar as pessoas a transformarem notícias de jornal em cena teatral. Foi aí a semente do Teatro do Oprimido. O que aconteceu é que a gente não podia mais fazer teatro, tinha censura, invasão da polícia, prisões e tudo. Aí a gente falou: em vez de dar o produto acabado, vamos dar os meios de produção, a platéia produz o seu teatro.
BF – Por qual partido? Boal – Pelo Partido dos Trabalhadores. Durante quatro anos a gente criou quase 20 grupos, no Rio de Janeiro inteiro, fazendo o Teatro Fórum. De 1993 a 1996. Chegamos a produzir quase 50 projetos de lei. Desses, 13 foram aprovados e hoje são leis. Algumas foram leis bastante localizadas.
A gente não tem que pensar só em compreender a realidade. Tem que procurar transformar a realidade
BF – Projetos de lei surgiram dessas encenações? Boal – Sim, com a platéia entrando em cena, havendo a discussão contraditória. Quer dizer, a peça trazia um problema, mas o primeiro espectador não achou uma solução boa, contra o segundo, o terceiro, o quinto. Então, fazendo muito o Teatro Fórum, a gente chegou a poder dizer: bom, o que eles estão querendo é uma lei nesse sentido.
BF – O senhor se refere a um meio de produção cultural? Boal – Sim, e teatral. Depois eu fui exilado, em 1971. Antes fui preso, torturado, aquela coisa “normal” da época. Fui banido, expulso do país. Na Argentina, comecei a desenvolver formas de teatro, como, por exemplo, o Teatro Invisível, em que a gente vai para a rua e faz uma cena, e não revela que é teatro, para
que todo mundo participe. Depois, no Peru, é que eu comecei com o Teatro Fórum, em que a gente apresenta o problema, o espectador entra em cena e mostra alternativas. Então fui para Portugal, de lá passei a trabalhar em quase todos os países da Europa. BF – E nesses países ficaram frutos de seu trabalho? Boal – Sim, até hoje e cada vez mais. Na internet existe um página internacional do Teatro do Oprimido. BF – Qual o endereço? Boal – O nome é em inglês, porque a página é holandesa: www. theatreoftheoppressed.org/en. Então, ao acessar você vê que tem um mapa-mundi e aí você clica em qualquer continente e aparecem todos os países onde se pratica o Teatro do Oprimido. São, setenta, oitenta países. É o primeiro método da América Latina, de um continente do Hemisfério Sul, que é praticado no mundo inteiro.
Nós estamos tentando fazer com que o Teatro do Oprimido seja usado em todo o tecido social BF – Por que o senhor e o Teatro do Oprimido são excluídos da grande mídia? Boal – Eu acho que todos aqueles artistas que fazem alguma coisa que é extremamente útil para a população e tudo, mas que não tem um gancho, como por exemplo um ator de televisão conhecido, ou algum outro evento que individualize as pessoas, esses são excluídos. Não é o Teatro do Oprimido, nem eu. É qualquer artista que não fizer assim. É excluído mesmo. Em geral, a mídia se interessa pela individualidade, só. E o que nós estamos tentando é fazer com que o Teatro do Oprimido seja usado em todo o tecido social. Não é ver, por exemplo, onde estão os talentos da Favela da Maré. Nós não queremos transformá-los em atores de televisão, não é isso. Agora estamos lançando um projeto novo, que é a Estética do Oprimido. Nosso objetivo não é descobrir qual é o melhor poeta de Jacarepaguá, ou qual é o melhor pintor de tal lugar. BF – Então, o que vocês querem não é o produto final, mas o processo de elaboração.
Boal – Sim, o processo estético é mais importante que o produto artístico. Agora, para que a gente quer isso, não é um capricho, não é? É que a gente vive na Terceira Guerra Mundial, clara, e estamos perdendo. E essa guerra mundial que estamos perdendo é a guerra da informação. Liga a televisão, hoje, e você vai ver somente filmes estadunidenses, e só de violência. Você nota se o filme é estadunidense ou não, de inspiração em Hollywood ou não, se em cada cinco minutos tem um soco, um tiro, ou uma explosão. Aí isso é estadunidense. O filme europeu raramente tem isso. BF – E o Teatro do Oprimido, também por não fazer isso não sai na mídia? Boal – Não sai. Porque a gente quer é o contrário, quer que as pessoas em vez de ficar assimilando, produzam, produzam. Então elas vão questionar, inclusive, as informações recebidas. Se você é obrigado a escrever um poema, depois você se anima, porque os poetas se animam. Entre as domésticas, tem uma que não pára de escrever. Atola a gente de poemas. BF – Essa seria a Estética do Oprimido? Boal – É isso, é fazer com que as pessoas se apropriem da arte. Não sejam massacradas pela informação. BF – E como é o seu trabalho com os movimentos sociais? Boal – Com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o trabalho é muito bom, mas seria melhor se a gente tivesse meios para isso. Há alguns anos, eles começaram a vir ao Rio de Janeiro, do Brasil inteiro. Trabalharam com a gente durante algum tempo, e passamos para eles o que podemos. Depois eles voltaram para seus Estados, Rio Grande do Sul, Pará, Pernambuco etc., e lá eles começaram a desenvolver o Teatro o Oprimido. BF – Existem dificuldades logísticas? Boal – E econômicas. Mas a gente trabalha com eles. E também com os sindicatos dos bancários, dos professores. E estamos trabalhando com dez grupos da periferia. Nas prisões, em seis ou sete Estados brasileiros. Com um projeto de um ano e meio, com o Ministério da Justiça apoiando. E sai caro, porque você imagina ir daqui para Recife e voltar. BF – O trabalho é feito com os prisioneiros? Boal – Fazemos as duas coisas. Desta vez tentamos fazer com os
Dramaturgo, diretor e produtor teatral e escritor, Augusto Boal é natural da cidade do Rio de Janeiro. Preso e torturado no período da ditadura militar, em 1971, em São Paulo, teve sua obra censurada e precisou sair do país. Retornou ao Brasil em 1979, com a Lei da Anistia. Só agora, em outubro de 2005, aos 74 anos, teve seu processo aprovado na condição de anistiado político com direito à indenização. Seu exílio inspirou a música Meu Caro Amigo, de Chico Buarque e Francis Hime. funcionários, para que se sintam também participantes desse processo. Quer dizer, que eles entendam que são oprimidos também, e que não resolvem a opressão deles oprimindo outros. BF – E o que é para o senhor a democratização da cultura e meios de produção cultural? Boal – Democratização da cultura é uma expressão que está sendo muito usada, mas num sentido que não me agrada. Porque é como se dissessem assim: existem algumas pessoas excepcionais, que são os produtores de cultura. Então, esses produtores de cultura vão democratizá-la levando a um maior número de pessoas. Mas o maior número é entendido como de consumidores, e não como de produtores de cultura. Acho mais importante ainda que as pessoas que recebem o filme sejam também capazes de poder pensar em fazer filme. Ou as pessoas que recebem um livro para ler sejam também incentivadas a escrever elas mesmas.
Democratizar a cultura é permitir que as pessoas criem cultura BF – É o que acontece com a democratização da comunicação, também queremos democratizar os meios de fabricar o jornal. Boal – É, se você só democratizar a leitura, a exibição e tal, e transformar os outros somente em consumidores, é ruim. Mas tem que ser complementado com dizer: bom, nós viemos mostrar a vocês esses poemas. Agora escrevam vocês mesmos, vocês têm que escrever também. Democratizar a cultura é permitir que as pessoas criem cultura. É democratizar os produtores de cultura e não apenas da produção terminada. Senão se está criando mercados, e criar mercados não é o objetivo da cultura. E na informação é a mesma coisa, a gente tem que criar meios de informar, de contra-informar, de se opor informações para que dessa confrontação, para que dessas dúvidas, inclusive, nasçam certezas. E é isso o que a gente está tentando fazer.