Ano 3 • Número 142
R$ 2,00 São Paulo • De 17 a 23 de novembro de 2005
Milho transgênico invade o país Raquel Casiraghi
Exatamente como a soja, transnacionais contrabandeiam sementes da Argentina para o Rio Grande do Sul
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mpresas como a Monsanto não se preocupam com a lei. São especialistas em criar fatos consumados, sabendo que contam com o apoio do Ministério da Agricultura e da Presidência da República, como demonstra a Lei de Biossegurança. Agora, denúncia da entrada de sementes geneticamente modificadas de milho no país, pelo Rio Grande do Sul, contrabandeadas da Argentina, foi levada ao Ministério Público, que, após teste, confirmou a transgenia. Em Barão
de Cotegipe, a venda de sementes de milho transgênicas é feita à luz do dia. Elas custam mais caro do que as sementes crioulas e os produtores que as adquirem, aparentemente, não sabem o que estão comprando. Disseminados pelo ar, genes OGMs contaminam culturas limpas, o solo e as águas. Eles vão prejudicar, sobretudo, pequenos agricultores e a avicultura, comprometendo as exportações para mercados que não aceitam transgênicos. Págs. 2 e 3
Cultivo de milho transgênico ameaça avicultura e plantações de pequenos agricultores gaúchos
Luciney Martins
Dívida da sociedade com negros continua Mais de um século depois da abolição da escravidão, a dívida social com os negros não foi paga. Às vésperas de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, protestos vão mostrar que a cordialidade e a democracia racial são mitos, no Brasil. As assimetrias sócio-raciais conti-
nuam. A escravidão, hoje, está na violência policial, na diferenciação do acesso ao mercado de trabalho. As verbas da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial não respondem aos desafios para os quais foi criada. Pág. 8
Arrocho inédito Governo francês gera mais uma decide reprimir crise no Planalto violentamente
Sociedade civil Escritor italiano conquista vitória acredita na força contra Rede TV! das multidões Após passar um dia fora do ar por decisão judicial, a Rede TV! assinou, dia 15, um acordo com o Ministério Público Federal e seis ONGs. A empresa terá de veicular, durante 30 dias, programação sobre direitos humanos. O acordo decorre de ação civil do Ministério Público contra a emissora, por preconceito e homofobia no programa de João Kléber. Pág. 5
Em sua nova obra, Multidão, Antonio Negri apresenta a teoria de uma organização social com potencial combativo. As “multidões” seriam aglutinadas a partir das singularidades de cada ser humano. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele fala de “nova subjetividade, que se forma através do trabalho, da linguagem, das relações mais vastas, de redes”. Pág. 11
Unesco aponta: quase 1 bilhão de analfabetos
Mais uma condenação do bloqueio a Cuba
Pág. 9
Divulgação
Caso de Polícia – Concorrente da Coca-Cola denuncia, na capital paulista, parecer da Polícia Federal sobre o uso de plantas de coca na produção de refrigerantes de cola, como mostrou reportagem da edição anterior do Brasil de Fato
No Brasil, diz-se, faltam recursos, mas sobra dinheiro, poupado pelo governo, para pagar juros da dívida aos bancos, arrochando a economia. Enquanto a produção industrial cai, os lucros dos bancos nunca foram tão altos. O arrocho gerou divergências entre a Fazenda e o Planejamento, de um lado, e a Casa Civil, de outro. Págs. 2 e 7
O presidente da França, Jacques Chirac, definiu a estratégia para conter a onda de protestos de jovens. A ordem é reprimir. O ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, autorizou governadores distritais a expulsar estrangeiros, mesmo que tenham visto, se forem presos em protestos. A medida aumenta a tensão étnica. Pág. 9
Seca devasta Amazônia e florestas somem Se não bastasse o problema do desmatamento – que aguarda votação de projeto de lei, no Senado, em favor do manejo sustentável das florestas – a Amazônia sofre com uma rigorosa seca. Cerca de 250 mil pessoas padecem com a desolação que toma conta da região. Perderam sua principal fonte de proteínas, os peixes, que morrem e contaminam a pouca água disponível. Comunidades inteiras ficam isoladas, sem acesso às roças onde trabalham. Cientistas atribuem a estiagem ao aquecimento do mar no Atlântico Norte. Mas pesquisadores brasileiros acreditam que o desmatamento agravou esse quadro. Pág. 13
Pág. 10 Solidariedade – Dom José Maria Saracho, da diocese de Presidente Prudente (SP), celebrou missa dia 10, em assentamento de Teodoro Sampaio, no Pontal do Paranapanema. Dom José manifestou apoio aos militantes do MST perseguidos e a Cledson Mendes, preso em Presidente Prudente.
Petrobras ameaça reserva no Equador
Ativista dá a vida para barrar usinas
Uma das maiores reservas ecológicas da América corre perigo. Segundo a ativista Esperanza Martinez, a Petrobras avança sua fronteira petrolífera em áreas ambientais no Parque Nacional Yasuní, no Equador. Pág. 6
O ambientalista Francisco de Barros morreu, após atear fogo ao próprio corpo, em protesto contra a tentativa de instalação de usinas de álcool e açúcar na região pantaneira do Mato Grosso do Sul. Pág. 5
E mais: COMUNICAÇÃO – Escritor Vito Giannotti defende melhoria dos meios de comunicação dos trabalhadores para obter justiça social. Pág. 4 ÁFRICA – Conhecida pelas medidas neoliberais que utilizou quando ministra das Finanças, Ellen Johnson-Sirleaf foi eleita presidente da Libéria. Pág. 12
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De 17 a 23 de novembro de 2005
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, 5555 Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
CARTAS DOS LEITORES UNIDADE DA ESQUERDA Creio que o calcanhar de Aquiles da esquerda tenha sido, ao longo da história, o problema da unidade. A falta de unidade é o maior motivo de nossas derrotas. Vejo no Brasil de Fato, para além de um eficiente veículo de informação no seio da esquerda, um pólo aglutinador das forças progressistas e socialistas. Por isso tenho me empenhado, dentro de minhas possibilidades, em divulgar e fazer crescer o jornal. É, portanto, com espírito de colaborador que quero oferecer-lhes uma crítica: tenho visto reportagens que atingem pessoalmente companheiros de luta sem que lhes seja dada, na mesma oportunidade, o direito de defesa. É o que se passou especificamente na reportagem sobre leilões de petróleo e gás natural (Brasil de Fato nº 137, pág. 5) em que um valoroso companheiro de muitas lutas - o comunista Haroldo Lima – é referido como “cooptado pelas multinacionais”. Ora, o jornalismo de esquerda deve ser livre, combativo, mas também leal. Se o jornal publicou uma crítica dura e pessoal a Haroldo Lima e ao PCdoB, deveria também ter-lhes dado espaço para manifestar suas opiniões sobre o tema. Pra mim, que vejo na unidade da esquerda o maior requisito para a vitória dos seus ideais, uma reportagem feita nesses termos favorece nossa desagregação, em contrapartida a vitória da direita, e, assim, não é digna de um jornal que se pretende de esquerda. João Souza, por correio eletrônico
ALERTA Quero aqui fazer um alerta ao perigo que os militares ainda representam (com exceções, é claro) para a sociedade brasileira. Na edição 113, em que foi entrevistado o tenente-brigadeiro-do-ar Sérgio Xavier Ferolla, este falou que a “esquerda ainda joga pedra na Geni”. Aqui eu faço uma pergunta acerca da colocação: como não atirar pedras na Geni, se ela ainda continua “a garota de programa da burguesia”? É um esclarecimento que faço a este grande jornal de cunho social. Os militares ainda continuam sempre os mesmos. Suas mentes são retrógradas e perversas, não dá para confiar. Já é a segunda entrevista que este jornal faz, de peito aberto, com oficiais generais. Cuidado com o golpe. Só para vocês terem uma idéia, já viram os discursos dos Srs. Alberto Fraga (PFL) e Jair Bolsonaro (PP), de origem militar, ambos deputados federais por Brasília e Rio de Janeiro respectivamente? Já ouviram falar em Abílio Teixeira (sargento do Exército), político de Brasília? E no jornal Inconfidência, de Belo Horizonte, em que boa parte de sua composição é formada por militares? Eles não gostam do MST e dos demais movimentos sociais, que, segundo eles ameaçam a “democracia dos ricos”. Então, como militar, faço este aviso a todos vocês, que estão na luta por mudanças. Job Rocha por correio eletrônico
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NOSSA OPINIÃO
Transgênicos e juros: grandes erros
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sta semana de meio feriado e de aniversário de uma falsa proclamação da República feita por um marechal que, após “decretar” a implantação da República, ainda teve o ato falho de gritar “viva o rei”, fomos sacudidos por fatos muito mais graves do que a corrupção para o futuro de nosso país. O Banco Central (BC) publicou um balanço da política monetária, ou seja, da política de juros nas últimas três gestões. Fernando Henrique Cardoso recebeu o governo em 1995, com uma dívida pública interna de R$ 60 bilhões. Pagou R$ 199 bilhões de juros no primeiro mandato, e mais R$ 250 bilhões no segundo. Portanto, transferiu para os bancos mais de R$ 400 bilhões. Mesmo assim, deixou uma dívida pública de R$ 600 bilhões. O povo votou em Lula na esperança de que esta política econômica de total submissão ao capital financeiro mudasse. Ledo engano. Segundo o BC, nesses três primeiros anos, o governo Lula pagou em juros nada menos do que R$ 260 bilhões, 50% a mais do que o governo FHC havia pago no seu primeiro mandato. E a dívida pública interna já saltou para R$ 993 bilhões. Não resta a menor dúvida: o Estado virou o principal mecanismo de acumulação de capital no Brasil. Ou seja, o governo se encarrega de arrecadar a mais valia social de todos os brasileiros e a repassa candidamente ao sistema financeiro. Podem acusar o presidente do BC do que quiserem.
Podem provar o que quiserem contra o ministro da Fazenda, mas eles são intocáveis. A política do capital financeiro é intocável. Assim, o resultado da manutenção das taxas de juros pelo BC num patamar mínimo de 19% foi que, segundo denunciaram os jornais, o sistema financeiro arrecadou em juros dos consumidores outros R$ 93 bilhões, em 2005. Enquanto não mudar esta política econômica, não haverá desenvolvimento ou combate à pobreza que dê certo. Engane-se quem quiser!
MILHO TRANSGÊNICO NO SUL A segunda notícia grave, vem da região Sul do país. As transnacionais estão contrabandeando sementes de milho transgênico, e vendendo clandestinamente aos agricultores. O deputado Frei Sérgio Görgen (PT-RS), membro da direção nacional da Via Campesina Brasil, recebeu denúncia anônima, entregou-a ao Ministério Publico Federal, que testou e comprovou sua veracidade. Mais grave: as empresas estão desovando as sementes transgênicas justamente nas regiões de pequena agricultura, para contaminar mais rapidamente toda a produção de milho do Sul, já que o milho transgênico se propaga pelo vento, que dissemina o pólen do organismo geneticamente modificado (OGM)transgênico e contamina todos os vizinhos de variedades naturais.
FALA ZÉ
As transnacionais – paparicadas pelo governo Lula e seu ministro da Agricultura, que as atendeu em tudo na nova Lei de Biosegurança – voltam a usar a mesma tática de introdução de uma variedade transgênica que está proibida. Colocando em risco, agora, todas as variedades de milho crioulas, e mesmo outras variedades híbridas. Além da avicultura e da saúde do consumidor. Resta saber, ainda, quem é o dono da patente desta nova variedade transgênica. Há apenas três empresas no mundo que comercializam milho transgênico: Monsanto, Cargill e Dupont. Outro caminho interessante seria pesquisar quanto essas empresas despejaram de recursos para as campanhas de políticos nas últimas eleições. Recentemente, o insuspeito jornal da direita, O Estado de São Paulo, publicou nota minúscula, que coincidiu com a votação da lei de tansgênicos, sobre a liberação de muitos milhões de reais... que circularam entre parlamentares. O milho trasnsgênico não está liberado. Sua utilização é um perigo para o futuro da agricultura camponesa. Precisa ser reprimida imediatamente. Com a palavra, o Instituto de Defesa do consumidor (Idec), o Ministério Publico Federal, a Polícia Federal, o senhor presidente da República e a senhora ministra do Meio Ambiente. OHI
CRÔNICA
Consciência Negra e o racismo brasileiro Marcelo Barros Desde alguns anos, a data do martírio do Zumbi dos Palmares se integra no calendário nacional como o Dia de União e Consciência Negra. Até alguns anos, poucos livros de história do Brasil contavam que, em 1695, senhores de engenho, bandeirantes de São Paulo e militares de Pernambuco invadiram o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, hoje Alagoas, onde viviam pacificamente mais de 30 mil pessoas, negras, índias e brancas em uma sociedade livre e mais igualitária. Com respaldo da sociedade e da hierarquia católica, os invasores mataram milhares de homens, mulheres e crianças. O líder Zumbi dos Palmares, traído por um companheiro, preferiu entregar-se aos inimigos para evitar o massacre de mais gente. No 20 de novembro de 1965, foi fuzilado e teve seu corpo esquartejado em uma praça do Recife. Mais de 300 anos depois, comunidades negras e quilombos são exemplos de resistência cultural e social do povo negro, em meio ao conjunto da sociedade brasileira, ainda injusta e discriminadora. Conforme o censo mais recente, 44% da população brasileira é afro-descendente, mas só 5% das pessoas se declaram negras.
Os dados mostram que as desigualdades sociais são mais profundas à medida que as pessoas pobres não só são empobrecidas, mas são negras. Dos brasileiros mais pobres, 64% são negros. O Brasil branco é 2,5 vezes mais rico que o Brasil negro. Nos últimos anos, as diferenças entre negros e brancos vêm se mantendo. Na educação, um branco de 25 anos tem, em média, mais do que o dobro de anos de estudo do que um negro da mesma idade. O sistema de cotas, adotado por algumas instituições públicas, continua provocando polêmica. Poucas universidades adotaram este sistema. Muita gente se opõe às cotas, argumentando com o critério do mérito para os mais capazes. Alguém denominou de meritocracia o governo dos mais capazes. Só entra na universidade quem consegue provar ser melhor que todos que com ele concorrem. Aristóteles já dizia que tratar de modo igual a pessoas desiguais é injustiça. Só reforça a desigualdade. Só o sistema de cotas não resolverá a desigualdade social ou racial. Mas, se, além das cotas, a universidade garante um acompanhamento especial e o sistema de cotas é integrado a critérios de justiça, pode tornar-se instrumento de integração
social. Não se trata de formar maus profissionais ou doutores medíocres, só para se ter índios ou negros diplomados. Abrir a universidade, como também outros espaços da vida social a todas as camadas do povo brasileiro, exige não só garantir uma vaga na instituição, mas também dar um acompanhamento direto e investir nesta integração. De acordo com dados oficiais, entre os 3,5 milhões de universitários brasileiros, os negros já constituem quase um milhão. No ensino fundamental são 45%. É uma realidade melhor do que há poucos anos, quando a proporção era escandalosamente maior. Daqui há pouco, não acontecerá mais o que me contava um amigo pastor. Ao visitar uma grande empresa nacional, foi convidado ao escritório do diretor-presidente. Quando entrou na sala luxuosa, viu do outro lado da mesa não um senhor louro de paletó e gravata, mas uma moça negra e jovem. Levou um choque. A sociedade inteira precisa deste choque de amor e justiça. Dom Pedro Casaldáliga diz: “a solidariedade é o novo nome da sociedade humana; a ternura dos povos”. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de vários livros
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NACIONAL TRANSGÊNICOS
Agora, chega o milho contrabandeado Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS)
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a mesma maneira que aconteceu com a soja transgênica, há dez anos, o milho geneticamente modificado está entrando aos poucos no Rio Grande do Sul, e contrabandeado da Argentina. Na semana passada, um agricultor denunciou que uma empresa do município de Barão de Cotegipe, região Norte do Estado, estaria vendendo semente de milho transgênico aos produtores locais. O estabelecimento comercial se chama Agropecuária Campesato e pertence a Jânio Luciano Campesato, morador antigo da região. Uma amostra deste milho foi encaminhada para análise no laboratório Alac, em Garibaldi, na Serra gaúcha. O resultado apontou que a semente possui 27,5% do gene GA21, resistente ao herbicida glifosato – mais conhecido pelo nome comercial Roundup, fabricado pela transnacional estadunidense Monsanto. Aquele gene é utilizado na variedade de milho transgênico RR GA21, da Monsanto, e é a que domina o mercado da semente geneticamente modificada na Argentina.
ABORDAGEM
João Alexandre Peschanski
De acordo com informações do agricultor autor da denúncia, que preferiu não se identificar, Campesato vende a semente abertamente como sendo transgênica, sem se preocupar em omitir o fato, mesmo ciente de que o plantio e a comercialização do milho geneticamente modificado não é permitido no Brasil. O vendedor justifica, ainda,
a pouca quantidade de semente que tem à venda justamente pelo fato de o milho modificado não ser legal. No entanto, os agricultores podem encomendar sementes, pois o carregamento é semanal. A comercialização é sem nota fiscal. Cada quilo da semente transgênica custa R$ 15,00, enquanto a convencional fica entre R$ 3,00 e R$ 4,00. Campesato também avisa que dentro de poucos dias vai receber um tipo de milho transgênico ainda mais resistente, que custará entre R$ 20,00 e R$ 22,00 o quilo. O produto é trazido da Argentina por um comerciante não identificado, dono de uma importadora de grãos. Para o agricultor denunciante, não há como ter uma dimensão exata da entrada da semente no Estado, mas ele acha que muitos produtores de Barão de Cotegipe e de municípios vizinhos como Sertão e Tapejara também estão plantando o milho modificado. Inclusive, existem suspeitas de que em 2004 já se produziu transgênico. “Há boatos de que um agricultor colheu 70 sacos desse milho no ano passado. Ele disse que não iria mais plantar semente transgênica, porque produz menos do que a convencional”, conta. Em 2004, o quilo da semente modificada estava sendo comercializado a R$ 8,00.
MINISTÉRIO PÚBLICO Na quarta-feira, dia 11, o deputado estadual Frei Sérgio Görgen (PT-RS) denunciou o contrabando de milho transgênico ao Ministério Público. Para ele, a falta de atitudes mais enérgicas do governo federal em relação à soja transgênica serviu para abrir precedentes ao plantio ilegal de outras culturas geneticamente modificadas, como o algodão e, agora, o milho. “O governo federal é o responsável pela entrada dos transgênicos no
Raquel Casiraghi
É confirmada a denúncia da venda de sementes geneticamente modificadas no Rio Grande do Sul
Milho transgênico contrabandeado da Argentina ameaça plantações de pequenos agricultores no Rio Grande do Sul
país. Não tomou qualquer atitude para interromper a entrada da soja contrabandeada, servindo aos interesses das transnacionais”, argumenta. Frei Sérgio critica, ainda, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio) que, em vez de regular os transgênicos, está à mercê das empresas. “O governo não respeita nem essa lei que fizeram à imagem e semelhança deles. Isso porque não tem qualquer respeito à nação brasileira.” O deputado alerta para o fato de que o principal afetado será a economia do Rio Grande do Sul. “O cultivo do milho transgênico é uma ameaça à avicultura e à suinocultura gaúchas, já que a contaminação da carne de suínos e aves podem criar diversos problemas às exportações brasileiras.” Feita a denúncia no Ministério Público, a Polícia Federal investigará o caso.
A soja percorreu a mesma rota Perseguição – Dia 15, a Corte de Apelações de Toulouse (sudoeste da França) condenou um dos símbolos do movimento contra os transgênicos, o agricultor francês José Bové, a quatro meses de prisão, por destruir cultivos de milho transgênico em 2004. Além de Bové, a Corte também condenou os deputados europeus do Partido Verde Gerard Onesta e Noel Mamere e outros cinco ambientalistas a três meses de prisão. Em janeiro de 2002, Bové participou da ocupação de uma fazenda da Monsanto em Não Me Toque (RS), juntamente com trabalhadores rurais sem terra e pequenos agricultores.
Atualmente, mais de 90% do cultivo de soja no Rio Grande do Sul é transgênico. O início do plantio começou por volta de 1998, com o contrabando da soja Roundup Ready (RR), da Monsanto, trazida da Argentina sem nota fiscal – pois o plantio e comercialização do organismo geneticamente modificado (OGM) não era legalizado no Brasil. Muitos agricultores usaram a transgenia sem saber exatamente do que se tratava e, muito menos, dos seus impactos na natureza e na economia da pequena propriedade familiar. Importadores clandestinos iniciaram a venda da semente no Estado, distribuindo em locais estratégicos das regiões produtoras. Ainda houve casos de alguns agricultores que ganharam a semente de graça, e de outros que receberam dinheiro diretamente das transnacionais para cultivar a soja, para construir o “fato consumado”. A transgenia se espalhou de tal maneira que, em 2003, o governo federal emitiu a primeira Medida Provisória (MP) legalizando o plantio da semente, mas somente naquela safra. No entanto, a MP foi prorrogada também para a safra 2004/2005. (RC)
Negócios ilegais à luz do dia Abaixo, o diálogo do agricultor que comprou a semente de Jânio Luciano Campesato, dono da Agropecuária Campesato, em Barão de Cotegipe (RS), com o vendedor do produto. Agricultor – Eu quero milho transgênico. Vendedor – Em saco ou em quilo? Agricultor – Em quilo. Vendedor – Está R$ 15, dá pra fazer por R$ 14. Vendedor – Tu é daqui da região? Agricultor – Sim. Vendedor – De São Valentim? Agricultor – Isso.
Exportação de aves e agricultura familiar, os grandes prejudicados Na opinião do ambientalista Sebastião Pinheiro, os exportadores de aves serão um dos principais atingidos com a chegada do milho transgênico. “Vamos acabar perdendo o mercado de carne suína e de carne avícola porque os europeus não querem milho transgênico. Os estadunidenses estão atrolhados desse grão porque não têm mercado, ninguém quer comer esse milho”, afirma. “Nós temos condições de plantar milho convencional de muito boa qualidade. Mas optamos pelo que parece ser ‘mais fácil’, sem pensar nas conseqüências,” acrescenta. Segundo a Associação Brasileira dos Produtores e Exportadores de Frango (Abef), o país é o segundo maior exportador mundial da ave, perdendo somente para os Estados Unidos. Em 2004, o Brasil vendeu no exterior cerca de 2,1 milhão de toneladas. O Rio Grande o Sul, o
terceiro maior Estado exportador, com vendas externas de 25,4% da sua produção, emprega direta e indiretamente cerca de 2 milhões de pessoas. Isso dá uma idéia do estrago que faria a diminuição da compra de aves. No entanto, não é somente a avicultura industrial que perde com a plantação do milho transgênico. Para o ambientalista, a agricultura familiar seria outra grande atingida, já que o milho, por servir de matéria-prima à alimentação humana e como ração aos animais, é fundamental na pequena propriedade.
PERIGO À VISTA “A briga não é no campo de pró-transgênico contra transgênico. A disputa é ‘com transgênico não há propriedade familiar em menos de dez anos’, porque ela desaparece por falta de alimento”, avisa Pinheiro.
A contaminação dos grãos convencionais de milho e a formação de outras plantas transgênicas são os grandes problemas ambientais apontados pelo especialista. “O milho é uma planta muito rara, que se cruza pelo ar, com os insetos, e também com outras gramíneas, como pastos e capins. No Rio Grande do Sul, encontramos muitas plantas que são ‘parentes’ do milho, mas que, na verdade, são pastagens”, explica. Essa característica do grão, aliada à transgenia, pode abrir mais uma brecha para a cobrança de royalties pelas transnacionais. Na Justiça, existe o registro do caso internacional de um agricultor que não usava transgênicos, mas foi acusado de estar utilizando sementes modificadas. O agricultor foi condenado porque o gen o modificado estava dentro da semente que plantou. (RC)
Vendedor – Quem falou para vocês que tinha aí? Agricultor – Foi um agricultor que tinha comprado aí. Vendedor – “Dura”, não é? Agricultor – É, parece que foi. Vendedor – Ele comprou 40 quilos de semente para plantar. Vendedor – Fizeram bastante estrago lá, então? (referindo-se às pragas) Agricultor – Mas é o diabo. Vendedor – Tem que botar um pouco mais de semente então. Vendedor – E o que mais? Adubo tem? Agricultor – Tem. Agricultor – Vou fazer um experimento. Vocês conseguem mais se eu precisar? Vendedor – Se precisar, a gente dá um jeito. É meio pouco ainda, porque isso é meio controlado, não está liberado. Logo vai ter outro tipo, o original mesmo. Só que aí ele vai custar bem mais caro né? Porque ele está em torno de R$ 20, R$ 22 o quilo. Agricultor – E a origem, é argentina? Vendedor – É. Em outros lugares não tem. Agricultor – Agora tu tens que ver, né. Coloca um pouco mais de semente, ao invés de quatro, cinco, coloca seis, sete, por metro. Agricultor – E resiste mesmo ao veneno? Vendedor – A qualquer um deles, Roundup. É só plantar e depois passar por cima (agrotóxico). Pode ficar tranqüilo. Agricultor – Vocês pegam de lá, direto? Vendedor – Não, não, tem um cara que traz de lá, direto. Ele tem uma importadora. (RC)
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Espelho ENTREVISTA
A comunicação da esquerda
Hamilton Octavio de Souza
Ali-babá liberado Depois de passar 40 dias numa cela da Polícia Federal, o empresário Paulo Maluf, um dos maiores ladrões dos cofres públicos do Brasil, voltou a ter boa desenvoltura na mídia empresarial: na última semana deu várias entrevistas a canais de TV e repetiu a velha história de que não tem conta bancária no exterior. Maluf solto é o maior exemplo de que os poderes da República burguesa não funcionam. Cerco palocciano Os jornais diários e as revistas semanais produziram material muito parecido na última semana sobre o cerco ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho. Considerados até recentemente como aliados do Palácio do Planalto, aqueles veículos de comunicação estão tão afoitos para a derrubada de mais um ministro que até andam nomeando os mais cotados para a sucessão. O presidente vai rifar seu auxiliar preferido? Banda oriental Dois outros queridinhos do presidente Lula estão na mira das CPIs: o ex-ministro Luiz Gushiken, da Secom, e o presidente do Sebrae, Paulo Okamoto. O primeiro precisa explicar por que deu dinheiro do Banco do Brasil à agência de publicidade DNA e não recebeu qualquer serviço em troca; o segundo precisa explicar onde arrumou dinheiro para pagar uma conta pessoal do presidente Lula. O clima deve esquentar no Planalto. Filosofia política Questionada sobre a relação entre o partido e o governo, a filósofa petista Marilena Chauí afirmou à revista Caros Amigos de novembro: “Se o partido não for autônomo com relação ao governo, ele é inútil”. Para ela, a situação atual do PT é resultado de uma concepção partidária “centralista, verticalizada, hieráquica e que exclui toda a base”. Recado comunista Ao analisar a conjuntura e o cenário eleitoral de 2006, em artigo publicado na revista Princípios, eis o que o presidente do PCdoB, Renato Rabelo, afirma sobre a aliança de seu partido com o PT: “Se essa repactuação vai ser feita com Lula ou não, a evolução política é que vai demonstrar. Não existe na relação entre o PCdoB e o presidente Lula uma aliança automática”. Só para registrar. Caixa-dois digital O ministro das Comunicações, Hélio Costa (PMDB-MG), tem dito que em janeiro vai anunciar o sistema de TV Digital a ser adotado pelo Brasil. Entidades civis e movimentos sociais de defesa da democratização das comunicações denunciam que o ministro abandonou o projeto de uma tecnologia nacional de TV Digital e está fazendo o jogo das empresas privadas nacionais e estrangeiras. O interesse público não vale nada! Confusão mental Acostumada a patrocinar o “coronel” Antonio Carlos Magalhães desde os tempos do golpe da NEC, a família Marinho, concessionária pública da TV Globo, está empenhada, agora, em promover o neto de Toninho Malvadeza, que usa o mesmo nome, a mesma arrogância e pratica a mesma velha política do clã baiano. Além de procriarem e de se reproduzirem, as oligarquias brasileiras também conseguem a conivência e a cumplicidade de setores do governo Lula. Pau mandado Estão circulando na Câmara dos Deputados e no Senado Federal duas propostas de emendas constitucionais praticamente iguais: ambas tentam limitar em 30% a participação do capital estrangeiro nas empresas que operam na Internet. Tudo indica que os projetos foram encomendados pela Rede Globo e outras associadas da Abert, contrárias à concorrência.
Para Giannotti, a mídia sindical deve lutar para transformar a estrutura capitalista Rosângela Ribeiro Gil do Rio de Janeiro (RJ)
D
esde que criou o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), órgão que visa “melhorar a comunicação dos trabalhadores para que eles construam um mundo com justiça e sem exclusão”, o escritor Vito Giannotti percorre o país participando de palestras, debates e cursos de formação ligados à mídia voltada para trabalhadores. Por traz desse esforço está a visão de que, se a esquerda, os movimentos populares e os sindicatos querem mudar o mundo, precisam, em meio à luta política, usar a comunicação para ganhar adesões em massa para suas idéias e projetos. Em entrevista ao Brasil de Fato, Giannotti fala, entre outros temas, da importância da comunicação como instrumento de transformação da estrutura injusta do capitalismo. Brasil de Fato – O NPC promove, no início de dezembro, no Rio de Janeiro, o 11º Curso Anual, que vai reunir especialistas em comunicação, jornalistas ligados aos movimentos populares e militantes políticos. Qual o objetivo desse curso? Vito Giannotti – A visão básica está numa frase publicada pelo jornal japonês Johji Shimbun, ao ser criado, em 1875. Em seu primeiro editorial, estava escrito: “Um partido sem jornal é como um exército sem armas”. Foi para ajudar a compreender melhor a necessidade de jornais e outros instrumentos de mídia e de aperfeiçoá-los constantemente que nasceu o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC). E é por isso também que promovemos cursos como esse, que reúne jornalistas de movimentos sociais desde a Amazônia até o Rio Grande do Sul. BF – Você percorre o país falando da necessidade de a esquerda ter seus veículos de comunicação. O que está por trás dessa visão? Giannotti – Asociedade de hoje é sustentada por uma enorme máquina de mídia. A comunicação tem uma centralidade na estrutura do poder e do convencimento que não tinha dois séculos atrás, e até mesmo 50 anos atrás. Por isso, se a esquerda, se os movimentos populares e os sindicatos querem mudar o mundo, precisam, no meio de toda a luta política, em todas as suas variantes, usar a comunicação para ganhar milhões de adeptos às suas idéias e planos. Sem isso, uma mudança revolucionária, seja de que tipo for, é pura ilusão. BF – Como se pode melhorar a comunicação alternativa de esquerda? Giannotti – Para uma comunicação com conteúdo à altura de fazer a disputa de hegemonia com nossos inimigos de classe é necessária uma pauta que trate dos temas dessa disputa. Do específico ao geral. Do Brasil ao mundo. Do mais abstrato ao mais concreto da vida: desemprego, violência, amor, filhos, arte, escola, custo dos livros, saúde etc. Esses temas são objetos de alguns cursos do NPC. Além da pauta, temos de fazer uma imprensa que convide à leitura e não afaste o leitor. A partir daí, nasceram cursos sobre a forma da nossa comunicação: diagramação, visual, foto, ilustrações, arte gráfica etc. Por fim, é preciso dar uma atenção obsessiva à linguagem. Sem uma linguagem que seja compreendida pelos leitores todo o esforço é inútil e nossa comunicação será um diálogo de surdos. Se queremos que nossa mensagem política comunique é necessário que seja a mais direta e visual possível. Foi dessas
Na edição de 2004, curso do Núcleo Piratininga de Comunicação abordou a produção de mídia pelos movimentos sociais
constatações de anos de experiências que nasceram nossos cursos, nossas apostilas, nossas cartilhas e os vários livros que escrevemos sobre todos esses temas. BF – Qual é a importância do jornalismo sindical hoje? Giannotti – É central. Sobretudo na nossa sociedade. Na minha visão, o sindicato não é só para fazer a tal luta econômica. A comunicação sindical, para mim, tem sentido se lutar para transformar a estrutura injusta da barbárie capitalista. Eu dou enorme valor a essa comunicação. Mas não é nada fácil fazer uma comunicação sindical que cumpra o papel de disputar a hegemonia na sociedade. BF – E qual é o poder de alcance da imprensa sindical? Giannotti – Enorme. O maior jornal da “grande imprensa” do Sergipe, hoje, novembro de 2005, não chega a 3 mil exemplares. O jornal Tribuna Metalúrgica, dos Metalúrgicos de São Bernardo, durante mais de 15 anos teve uma tiragem diária de 120 mil. Hoje deve estar com 60 mil, devido à diminuição de trabalhadores na base. No final da década de 1980, nos sindicatos da CUT, havia seis jornais sindicais diários. Isso representa um poder de fogo tremendo. Há sindicatos que têm belíssimas revistas. Há até quem tenha um jornal mensal para as famílias dos trabalhadores, como o Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos. Na época da eleição do [presidente Luiz Inácio] Lula [da Silva], em 2002, os sindicatos que queriam algo com a luta dos trabalhadores fizeram um esforço enorme para eleger aquele que representava a esperança de mudar o nosso país. Milhões e milhões de jornais sindicais apresentaram o projeto de um Brasil diferente da barbárie capitalista vigente. Aqui no Rio de Janeiro, temos exemplos de belíssimos jornais semanais, feitos nesse período, que certamente ganharam muitos e muitos votos. É o caso do Jornal do Sintufr, do Sindicato dos Trabalhadores em Educação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e do Surgente, do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro. BF – Essa imprensa sindical, então, cumpriu um papel importante, ao lado de outras publicações declaradamente políticas? Giannotti – Não foi só nessa campanha eleitoral específica que a imprensa sindical teve um papel político importante. Ela teve uma influência enorme na ocasião do impeachement de Fernando Collor de Melo. Depois, quem foi que fez a campanha contra as privatizações na época de ouro do neoliberalismo de Fernando Henrique Cardoso? Como foi feita a batalha
contra a reforma da Previdência, sem ser pelos jornais sindicais? A imprensa sindical cumpriu o papel da imprensa partidária, que não existiu. Qual jornal de esquerda cumpriu esse papel? Há belas publicações alternativas valiosíssimas, como é o caso das revistas Reportagem, Caros Amigos ou do Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Mas todos têm uma tiragem pequeníssima para um país com 185 milhões de pessoas. E sua periodicidade não permite fazer uma disputa à altura contra um inimigo que se comunica todo dia, pelo rádio, pela televisão e por inúmeros jornais. BF – Qual é o grande diferencial do jornalismo sindical e popular de esquerda? Giannotti – Que ele pode atingir um público que não é atingido pelos outros jornais. Atinge milhões de trabalhadores vítimas da TV de classe que está aí. O jornalismo sindical pode fazer a contraposição à Veja, à Folha de S. Paulo, à Rede Globo, que nossos partidos de esquerda deveriam ter feito e não fizeram, pelo simples fato de não ter existido uma imprensa partidária de esquerda. Uma imprensa diária, vendida em bancas e também distribuída de forma militante como sempre a esquerda fez no passado, capaz de se contrapor à mídia burguesa. Nossos partidos não conseguiram criar um único jornal diário, de 1964 para cá. Há pequenos jornais com periodicidade escassa, mas jornal, jornal, não. Hoje, o Brasil de Fato tenta cumprir esse papel, mas só ele é insuficiente. Ainda é semanal, embora tenha planos de se tornar diário. No nosso país há lugar para dez jornais diários de esquerda. BF – Quais são os problemas da imprensa sindical? Giannotti – O principal é a falta de compreensão da importância, da centralidade da comunicação, hoje. Há inúmeros diretores sindicais que vivem mendigando uma notinha no jornal da burguesia da sua cidade. Não compreendem que nós temos que ter nossos instrumentos para fazer a batalha contra nossos inimigos. Ou por acaso nos iludimos que o inimigo vai nos oferecer um cafezinho dentro dos seus tanques de guerra? O jornal deles é um tanque, armado até os dentes, para nos destruir. A Folha de S. Paulo, o “Estadão” e centenas de outros diários querem que sejam exterminados todos aqueles que querem a reforma agrária. A Veja quer destruir toda a esquerda, a começar pelo MST. O Globo e a Rede Globo e toda a mídia burguesa estão na mesma linha. BF – O que seria o grande diferencial dessa imprensa? Giannotti – Que nós não somos neutros. Só que nós declaramos
NPC
Acordão federal A reportagem de capa da revista Carta Capital desta semana faz uma boa especulação sobre o desinteresse do PT em não aprofundar as investigações sobre o caixa dois tucano, e nem em se esforçar para cassar o senador Eduardo Azeredo, do PSDB-MG. A reportagem deixa claro que as lideranças petistas estão preocupadas em salvar a própria pele e fazer um acordo para congelar as CPIs. Isso é o que dá o rabo preso!
NPC
da mídia
NACIONAL
Quem é O italiano Vito Giannotti, vive no Brasil há cerca de 40 dos seus 62 anos. Ex-operário metalúrgico em São Paulo, onde se engajou na luta contra a ditadura, ajudou a criar o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), que se dedica a melhorar a comunicação entre os trabalhadores. Integrante do conselho político do Brasil de Fato, Giannotti escreveu cerca de 20 livros sobre o movimento sindical e a comunicação dos trabalhadores, entre os quais, O que é jornalismo sindical, da coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense.
que temos lado. Enquanto isso a imprensa patronal disfarça, engana e tenta se dizer neutra. O fato de não sermos neutros não quer dizer que vamos fazer discursos vazios. Vamos apresentar dados, fatos, números, entrevistas reais com pessoas reais. E vamos lutar abertamente por nossas idéias sem disfarces e sem sermões idiotas. Por isso temos que ter nossa mídia. Só assim garantiremos nossa independência. BF – Como você avalia a luta de sindicatos pela democratização dos meios de comunicação? Giannotti – Fraquíssima. Não estamos fazendo essa luta seriamente. Os sindicatos, na sua imensa maioria, não têm compreensão da importância dessa luta. Quem disse que as atuais concessões de rádio e televisão são eternas? Quem disse que são públicas? Quem disse que são intocáveis? E quem disse que o MST, a Comissão Pastoral da Terra não podem ter suas rádios e um canal de televisão aberto? E tudo isso financiado e facilitado abertamente com recursos públicos, como a senhora Rede Globo é e sempre foi. Por que não se exige do governo uma medida provisória nesse sentido? A lei, muda-se. Com muita pressão. O movimento sindical não está fazendo pressão para mudar a lei profundamente antidemocrática das concessões de rádio e TV no nosso país. E pressão é gente na rua, dia e noite. São os trabalhadores em greve.
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De 17 a 23 de novembro de 2005
NACIONAL ATIVISMO
Uma vida para salvar o Pantanal O
ambientalista Francisco Anselmo de Barros, conhecido como Franselmo, deu a vida pela causa que defendia. Morreu um dia após atear fogo ao próprio corpo em meio a um protesto contra a instalação de usinas de álcool e açúcar na Bacia do Alto Paraguai, região pantaneira do Mato Grosso do Sul. Militante ecológico desde 1980 e presidente da organização não governamental Fundação para Conservação da Natureza de Mato Grosso do Sul (Fuconams), Barros se enrolou em um edredom encharcado de gasolina e ateou fogo, ao meio dia do dia 12, no centro de Campo Grande (MS). O ambientalista teve mais de 90% do corpo queimado. Nas 15 cartas deixadas para familiares, amigos e para a imprensa, ele esclareceu que sua morte foi planejada como forma de chamar a atenção para a tentativa do governo do Estado de aprovar um projeto de lei que permite a instalação de usinas na bacia do Pantanal – proibidas por lei desde 1982. O projeto foi enviado à Assembléia Legislativa de Mato Grosso do Sul em agosto, pelo governador José Orcírio Miranda dos Santos, o Zeca do PT
MENSAGENS A proposta contraria a resolução 001/85 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que suspende a concessão de licenças ambientais para usinas nas bacias hidrográficas sob influência do Pantanal. O projeto do Executivo fere ainda a Lei Nacional de Recursos Hídricos (nº 9.433/97), que estabelece diretrizes para gestão dos recursos hídricos no Brasil.
Gesto extremo de Francisco Anselmo de Barros (detalhe) denuncia desrespeito às leis ambientais que protegem o Pantanal
Na mensagem à imprensa, Franselmo afirmou: “Um terço dos deputados [da Assembléia é] a favor [do projeto das usinas], um terço contra e um terço sem saber o que é. Já que não temos voto para salvar o Pantanal, vamos dar a vida para salvá-lo”. A carta também cita, como problemas ambientais do país, o projeto de transposição do rio São Francisco, que está sendo encaminhado “no lugar da revitalização”, as queimadas na Amazônia e o contrabando de sementes transgênicas na fronteira Sul do país. Em outra carta, ele diz: “Foi difícil
tomar essa decisão de sã consciência. A minha vida sempre foi um sacerdócio em defesa da natureza. É a nossa casa e o presente maior de Deus. Se ele deu a vida por nós, eu estou dando a minha vida por ele, defendendo o futuro dos nossos filhos. [...] Continuem a luta por mim”. A ministra do Meio Ambiente,
Divulgação
A Fuconams, fundada por Francisco Anselmo Barros, o Franselmo, de 65 anos, é uma das primeiras entidades de defesa do meio ambiente do país. Franselmo também foi jornalista, ocupou cargos no Conselho Municipal de Controle Ambiental, integrou a Associação Brasileira dos Jornalistas de Turismo, a Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (Adesg). Foi diretor-executivo da Editora Saber, diretor-executivo da Associação de Fomento e Apoio às Artes e à Cultura em Geral. Sua militância ambiental era bastante ampla. Ele era filiado ao Fórum Brasileiro de ONGs, à Associação Brasileira de ONGs e participante das rede Rios Vivos, Pantanal, Aguapé de Educação Ambiental, Cerrado, do Instituto Socioambiental, da WWF, da Conservation International e do SOS Mata Atlântica. Além desses cargos, acumulava a função de coordenador do Fórum de Meio Ambiente e Desenvolvimento de Mato Grosso do Sul e do Fórum de Defesa do Pantanal.
CONTROLE DA INFORMAÇÃO
Um passo à frente na governança da Internet da Redação Foi aprovado dia 15, em Túnis (Tunísia), o texto que cria o Fórum de Governança da Internet (IGF, na sigla em inglês), cujo primeiro encontro, em 2006, pode ser na Grécia. O texto foi elaborado em uma das comissões preparatórias dos documentos finais que irão a plenário na Conferência Mundial da Sociedade da Informação (CMSI), que começa dia 16. O IGF não terá poder de mando sobre as entidades já existentes – o Icann, entidade não governamental, sediada na Califórnia e responsável pela designação dos domínios e números na rede, e a UIT – União Internacional das Telecomunicações (organismo da Organização das Nações Unidas). Se a formatação do Fórum não foi exatamente como queriam os
países em desenvolvimento, Brasil à frente, que lutaram pela criação de um órgão mundial e independente de governança da Internet, ela foi considerada uma grande vitória diplomática. Entre as atribuições do Fórum incluem-se discussões de políticas públicas relacionadas com elementos-chave de governança Internet para garantir seu desenvolvimento, sustentabilidade, segurança e estabilidade; construção de um discurso comum entre seus membros com diferentes políticas públicas ralacionadas à Internet, mantida a independência dos países-membros; fortalecimento e ampliação do engajamento dos sócios nos mecanismos de governança da Internet, especialmente dos países em desenvolvimento, e apóia-los para que ampliem o acesso público à rede.
registra a primeira parte da nota, divulgada um dia depois da morte do ambientalista. Também baseando-se na questão da constitucionalidade, o deputado Fernando Gabeira (PV) disse que pretende antecipar uma audiência pública na Câmara dos Deputados, marcada para o início do ano que vem, que vai tratar do assunto.
DIREITOS HUMANOS
Sociedade civil ocupa Rede TV! Bel Mercês da Redação
Trajetória de luta
Marina Silva, criticou o projeto de lei do governo de Mato Grosso do Sul: “O Ministério do Meio Ambiente lamenta a morte do ambientalista Francisco Anselmo de Barros. Esclarece, também, que é contra a implantação de agroindústrias de exploração de cana-de-açúcar e seus derivados em áreas limítrofes ao Pantanal sul-mato-grossense”,
No feriado do dia 15 de novembro, os ativistas de direitos humanos comemoraram uma vitória. Depois de ter seu sinal cortado por descumprimento de uma ordem judicial, no dia anterior, a Rede TV! assinou um acordo com o Ministério Público Federal (MPF) e seis entidades da sociedade civil, das áreas de direitos humanos, comunicação e do movimento Gays Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros (GLBT). Nesse acordo, a empresa compromete-se a veicular, durante 30 dias, de 5 de dezembro a 13 de janeiro de 2006 programas sobre direitos humanos, como direito de resposta por violação de direitos humanos, discriminação contra homossexuais e manifestações de homofobia veiculadas no quadro de “pegadinhas” do programa Tarde Quente, apresentado por João Kléber. Para Diogo Moyses, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, uma das entidades contempladas no acordo, o resultado desse processo é uma lição: “A TV é um espaço público fundamental para a formação de valores. Os concessionários desse espaço devem promover os direitos humanos, e não violá-los”. Ele lembra que essa é uma decisão histórica da Justiça. “Não só as entidades ligadas ao movimento GLBT, mas todas as outras áreas começam a perceber que a comunicação é uma arma fundamental para promoção dos direitos humanos. É preciso ocupar esses espaços”, ressalta. Além de transmitir os programas, a emissora terá de destinar R$ 200 mil para financiar a produção dos programas, e depositar uma multa de R$ 400 mil para o Fundo de Direitos Difusos. A Rede TV! também compromete-se a não mais ofender as pessoas nem violar os direitos humanos em sua programação. Outro quadro, o Teste de Fidelidade, igualmente apresentado por João Kléber, deverá ser alterado: o
Bia Barbosa
da Redação
João Roberto Ripper
Ambientalista morre em protesto contra instalação de usinas de álcool e açúcar no Mato Gorsso do Sul
Organizações participam de reunião com o Ministério Público Federal e Rede TV!
procurador regional dos direitos do cidadão em São Paulo, Sergio Suiama, redigiu uma série de causas que estabelecem limites para a exibição das pessoas e para cenas que possam incitar à violência.
FORA DO AR Quem ligou a televisão na Rede TV!, dia 14, a partir das 21h, encontrou apenas uma tela sem imagens e com chiados. Nesse dia, a emissora foi transmitida apenas na TV a cabo, o que rebaixou seu índice de audiência a quase zero pontos. A Rede TV! saiu do ar porque deveria ter exibido o primeiro programa de contra-propaganda, que já havia sido produzido pelas entidades em conjunto com o MPF. Isso aconteceu após a expedição de uma liminar pela Justiça Federal, dia 4, determinando a suspensão do Tarde Quente por 60 dias.A liminar, deferida pela juíza Rosana Ferri Vidor, foi uma resposta à ação civil pública protocolada dia 24 de outubro por Suiama, também assinada pelas mesmas seis entidades da sociedade civil. Além de pedir a suspensão do programa de João Kléber, foi requerida a cassação da concessão da TV Omega Ltda, a Rede TV!.Assim que a emissora descumpriu o acordo de exibir os programas de direito de resposta, no horário esperado, Suiama redigiu uma petição à juíza Rosana pela interrupção imediata
do sinal da Rede TV!. O procurador regional destaca que, desde a primeira notificação expedida, a empresa se recusou a permitir o ingresso de oficiais de justiça em suas dependências. Além disso, não cumpriu decisão judicial ao deixar de exibir noticiário nacional, em substituição ao Tarde Quente, assim que esse quadro foi tirado da programação. Também se recusou a receber as fitas com os programas produzidos pelas entidades. A juíza acatou a petição, houve o despacho pela Justiça Federal e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) lacrou a antena da emissora, que ficou fora do ar por mais de 24 horas. “Não se trata tão-somente de assegurar o direito dos autores à contra-propaganda. Trata-se, isso sim, de preservar a seriedade da função jurisdicional do Estado brasileiro, contra a prestadora de um serviço público delegado que se recusa a cumprir uma ordem judicial legítima e proferida nos estritos limites da legalidade”, atesta Suiama. Em contrapartida, a ação que pede cassação da emissora será retirada. Mas as atividades de contestação a programações inadequadas não devem parar por aí. “Estamos fazendo um levantamento de todos os programas que violam os direitos humanos. Os responsáveis serão chamados”, explica Moyses.
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De 17 a 23 de novembro de 2005
NACIONAL PETROBRAS
Fatos em foco
Reformas paradas O governo Lula não conseguiu aprovar a reforma universitária, não conseguiu nem mesmo debater a reforma sindical, e desistiu de tocar as reformas trabalhista e política. Pelo andar da carruagem, o governo Lula tende a ficar conhecido por ter aprovado apenas a reforma da Previdência – e assim mesmo a que foi criada pelo governo FHC, de acordo com a cartilha do neoliberalismo. Concentração privada Nos três anos de governo Lula, as maiores universidades privadas quase dobraram de tamanho: a Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, tem 48 unidades em cinco Estados e registra agora mais de 100 mil alunos; e a Unip, de São Paulo, tem 29 unidades em cinco Estados e 92 mil alunos. A tendência aponta para maior concentração nos próximos cinco anos. A universidade pública não acompanha a voracidade privada. Segredo inaceitável O Comitê de Direitos Humanos da ONU pediu oficialmente ao governo brasileiro, dia 3, que libere a documentação sobre a tortura durante a ditadura militar. Por incrível que pareça, o PT sempre defendeu a apuração de todas as torturas, mas o governo Lula determinou o sigilo dos arquivos sobre a repressão militar. É mais uma violência contra a apuração e a verdade dos fatos. Protegido presidencial Alvo de inúmeras denúncias e processos por crimes fiscais, remessas ilegais para o exterior e lavagem de dinheiro, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, está agora sob investigação pela promotoria de Nova York (EUA), que pediu a quebra do sigilo bancário dele ao Supremo Tribunal Federal do Brasil. O STF continua enrolando. Fogo amigo Além das inúmeras denúncias de corrupção que pesam contra o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, atribuídas à mídia e às oposições, ele está sendo bombardeado também pelos setores empresariais que sempre aplaudiram as políticas neoliberais, especialmente porque os juros não baixaram o que se esperava e várias áreas da indústria registram queda significativa de produção. Ou seja, o modelo vaza água entre os próprios beneficiados. Apoio inesperado Em sua última edição, a revista Veja, conhecido panfleto com posições de direita, defendeu em editorial “as qualidades de Palocci”, entre as quais a de seguir a política econômica do governo anterior, manter a estabilidade cambial e ter ótimo diálogo com o empresariado. A revista da Editora Abril termina o editorial pedindo que a política econômica não seja mudada. Quem diria? Explosão ambiental O protesto fatal do ambientalista Francisco Anselmo Gomes de Barros, em Campo Grande (MS), coloca em xeque o projeto do governador Zeca do PT, que pretende construir usinas de álcool e açúcar (altamente poluidoras) em pleno Pantanal. Semelhante ao protesto do bispo contra a transposição das águas do Rio São Francisco, o do ambientalista resultou na própria morte. Mais uma vez, cadê o Ministério do Meio Ambiente? Luta atual No domingo, dia 20, é comemorado o Dia Nacional Brasileiro da Consciência Negra, em homenagem a Zumbi, que liderou a organização do Quilombo dos Palmares, símbolo da resistência contra a escravidão e a exploração. Mais do que nunca, afro descendentes e pobres precisam lutar contra a discriminação e a desigualdade econômica e social.
No Equador, avança sobre o Parque Yasuní, uma das maiores reservas ecológicas do continente Igor Felippe Santos de São Paulo (SP)
A
Petrobras age como uma típica empresa privada, e avança sobre uma das maiores reservas ecológicas e de biodiversidade do continente americano, o Parque Nacional Yasuní, no Equador. É o que afirma Esperanza Martinez, ativista equatoriana da Oilwatch, entidade internacional de observação de problemas petroleiros, e do grupo Ação Ecológica, que defende o ambiente no território equatoriano. “A Petrobras, como empresa, tem o comportamento típico de qualquer transnacional, não tem diferença”, denuncia Esperanza. Os movimentos ambientalistas e indígenas são contra o crescimento da fronteira petrolífera em áreas ambientais e indígenas na região amazônica, território histórico da comunidade indígena Huaorani. No Brasil, a extração de petróleo em reservas ambientais tem limitações legais. “É intolerável que a empresa aja dessa forma no nosso país”, critica Esperanza, que classifica a relação da Petrobras com os movimentos populares equatorianos como “bem dura”. Segundo ela, a atividade petrolífera destrói as áreas de subsistência, a organização das comunidades e a saúde das famílias. Além disso, dificulta o trânsito das pessoas no interior do parque, inclusive dos indígenas. A empresa brasileira explora dois blocos localizados na Província de Orellana, no Parque Nacional. No bloco 18, as operações já começaram. A Petrobras ganhou a concessão para o bloco 31 e começou a extrair petróleo. “Entretanto, essa operação parou e a empresa e o governo brasileiro estão fazendo uma forte pressão para continuar”, afirma a ativista.
VIÉS IMPERIALISTA A Petrobras perdeu a licença ambiental por desrespeitar a legislação, ao financiar a construção de casas de cimento no interior do parque. Para Esperanza, a atuação do governo do Brasil em favor da Petrobras no Equador tem um viés imperialista. Os movimentos populares denunciam que no contrato de concessão não há qualquer garantia concreta por parte da Petrobras em relação à proteção do meio ambiente, apesar de a empresa dizer que se interessa pela preservação. Segundo a ativista, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) que serviu como
A ativista Esperanza Martinez acusa a Petrobras de colocar em risco as comunidades indígenas da região de Orellana
base para a autorização das atividades apresenta um diagnóstico genérico, como a garantia de utilizar a “melhor tecnologia aplicável”. De acordo com especialistas equatorianos, a petroleira brasileira não fez estudos suficientes para receber a autorização para trabalhar em uma área de preservação ambiental.
OS NÚMEROS DE 2004 Receita líquida (R$ bilhões) Lucro líquido (R$ bilhões)
18
Investimentos (R$ bilhões)
22 161,1
Número de acionistas (mil) Exploração
RESERVA DE BIOSFERA
50 sondas de perfuração (31 marítimas) 11,85 bilhões de barris de óleo e gás equivalente
Reservas
O Parque Nacional Yasuní tem 982 mil hectares e foi classificado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como reserva de biosfera em 1989. “Nas atividades de extração e transporte, o impacto será muito maior do que nos outros lugares que estamos acostumados a ver”, avisa a ativista. A expectativa de produção é de cerca de 2 mil barris por dia de petróleo. É um volume considerado baixo para o tamanho do investimento da empresa brasileira. De acordo com Esperanza, a operação no Bloco 31 faz parte de uma estratégia da Petrobras para controlar uma área ao lado, que tem uma grande reserva, descoberta pela estatal Petroecuador. A licitação para a concessão deve ser aberta em 2006. Em julho, mais de 120 índios da comunidade Huaorani, da Amazônia equatoriana, fizeram um protesto em Quito, capital do país, contra a expansão da fronteira petrolífera na região. O objetivo central da manifestação foi impedir que a Petrobras inicie a construção de uma estrada na área.
Poços produtores
13.821 (665 marítimos) 98 (72 fixas, 26 flutuantes)
Plataformas de produção Produção diária
1.661 mil b/d de petróleo e LGN e 359 mil barris de gás natural
Refinarias
16 1.797 mil b/d
Rendimento das refinarias
30.318 km
Dutos Frota de navios
120 (46 próprios) 6.154 ativos (631 próprios)
Postos Fertilizantes
2 fábricas: 1.852 toneladas métricas de amônia e 1.598 toneladas métricas de uréia
Fonte: site Petrobras
Na Bolívia, a Petrobras controla cerca de 25% do gás, além de ser proprietária de 50% dos dutos de gás e de duas refinarias de gasolina. Para o sociólogo Álvaro Garcia Linera, professor da Universidade San Andrés e candidato a vice-presidente na chapa de Evo Morales, a Petrobras atua no país tanto como uma empresa pública como privada. Desde 2001, a Petrobras explora a planta de processamento de gás natural na cidade de San Alberto, com capacidade para mais de 6 milhões de metros cúbicos por dia, além de 4 mil barris de petróleo diários. A produção de petróleo e gás natural é de cerca de 52 mil barris de óleo diariamente. A empresa atua também em San Antonio. Questionado se o Brasil tem uma ação imperialista na região, Linera respondeu que o país “tem interesses na América do Sul, interesses muito fortes para meu
Nota oficial refuta as acusações A assessoria de imprensa da Petrobras negou que a empresa atue como uma transnacional privada no Equador, garantiu que respeita todas as exigências legais e o compromisso com a preservação do ambiente. “Nossas operações refletem o respeito ao desenvolvimento social e soberano das comunidades existentes na área de influência de nossos projetos”, afirma nota da empresa. “A Petrobras reconhece a importância ecológica e da biodiversidade do Parque Nacional Yasuní, acreditando na possibilidade do seu desenvolvimento de forma sustentável, por meio da aplicação de tecnologias adequadas e métodos de gestão que garantam o controle e a minimização dos impactos ao meio ambiente, aos trabalhadores e às comunidades vizinhas”, complementa. De acordo com a assessoria, com a tecnologia implementada nas operações do bloco 31, serão utilizados cerca de 70 hectares, o que representa 0,007% da área total do parque. Além disso, a Petrobras afirma que as atividades no local atendem às condições estabelecidas pelo órgão de controle ambiental equatoriano para atuar em áreas de preservação. Os Estudos de Impacto Ambiental foram elaborados pela empresa Walsh Environmental Scientists and Engineers, entidade internacionalmente reconhecida. Segundo a empresa, foram contempladas as questões socioambientais e a sustentabilidade social e ambiental das operações. “Assumimos o compromisso com o desenvolvimento das comunidades locais através de projetos que promovam, no longo prazo, sua auto-sustentabilidade, baseados na autogestão comunitária e nos interesses e direitos dos cidadãos”, afirma a nota. (IFS)
108,2
gosto pessoal”. Ele admitiu que a Petrobras será afetada pela política de nacionalização dos hidrocarbonetos, uma das bandeiras defendidas por Morales. “Esperamos e confiamos que a Petrobras aceite as nossas propostas”, afirmou. Até agora, ela não recorreu a tribunais internacionais contra a nacionalização, como fizeram outras empresas que atuam na Bolívia. Carlos Walter Porto-Gonçalves, professor da pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, acredita que a ação da Petrobras é um dos pontos em que o Brasil deixa evidente a sua ambigüidade na América Latina. ”A presença da Petrobras agindo como empresa imperialista, atuando como qualquer grande corporação multinacional, é vergonhosa de uma perspectiva de esquerda”, afirma. (Colaborou Tais Peyneau, do Rio de Janeiro)
Arquivo Brasil de Fato
Bye-bye Brasil O Banco Mundial divulgou estudo recente que constata o crescimento da emigração de brasileiros com curso superior, que já é de 2,2% da população com diploma universitário. Ou seja, não só a mão-de-obra menos qualificada tem abandonado o Brasil para tentar a sorte em outro país, mas também setores privilegiados das classes médias que cursaram o ensino superior.
Desrespeito ao meio ambiente Igor Felippe Santos
Hamilton Octavio de Souza
Em Quito (Equador), indígenas protestam contra presença da transnacional brasileira
7
De 17 a 23 de novembro de 2005
NACIONAL POLÍTICA ECONÔMICA
Arrocho inédito divide ministros Dilma Rousseff dispara publicamente contra a política econômica; Palocci fala em deixar o governo Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO) Estupefato, o leitor esfrega os olhos, mas não consegue acreditar no que lê nos jornais. Relê, e continua pasmo. Num país que sofre cronicamente de falta de recursos, vai sobrar dinheiro em 2005. E muito dinheiro, “poupado” pelo governo como resultado de uma política inédita de arrocho. A intensidade do aperto e a possibilidade de seu prolongamento ao longo dos próximos anos, literalmente, racharam a equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, colocando em trincheiras opostas os ministros da Fazenda, Antônio Palocci, e do Planejamento, Paulo Bernardo, de um lado, e a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Uma crise temperada pela recente tendência de desaquecimento da atividade econômica, confirmada na semana que passou pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e por rumores segundo os quais Palocci estaria considerando a possibilidade de deixar o governo. Até setembro, o setor público economizou nada menos do que R$ 86,5 bilhões, 24% a mais do que no mesmo período de 2004, antes do pagamento dos juros da dívida pública. O resultado supera em R$ 3,8 bilhões a meta de R$ 82,8 bilhões estabelecida para todo o ano. E corresponde a 6,1% de todas as riquezas que o país teria produzido entre janeiro e setembro de 2005, nas contas do Banco Central (BC).
GASTOS COM JUROS DISPARAM Contas do setor público, em R$ milhões Discriminação
Jan-set 2004
Jan-set 2005
Déficit nominal total
25.513
33.647
9.168
47.398
Juros do setor público
95.284
120.149
Juros do governo central
56.670
100.862
+78
Resultado primário do setor público*
69.771
86.502
24
Resultado primário do governo central*
47.503
53.464
12,5
Déficit nominal do governo central
Variação (%) ) 32 417 26,1
(*) Exclui despesas com juros Fonte: Banco Central do Brasil
O ARROCHO NOS INVESTIMENTOS DO GOVERNO FEDERAL Em R$ milhões, até 15/10/2005
Ministérios
Orçamento 2005
Realizado
Percentual realizado (%)
Transportes
6.103
799
13,1
Saúde
2.673
141
5,3
Integração Nacional
2.404
109
4,5
Cidades
2.341
88
3,75
Defesa
1.545
316
20,4
Educação
965
125
12,98
Justiça
667
56
8,4
Ciência e Tecnologia
661
67
10,1
Turismo
658
3
0,5
Demais
4.093
415
10,1
22.110
2.119
9,6
Total
Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi)/Folha de S.Paulo
DESEMPENHO DA PRODUÇÃO INDUSTRIAL EM SETEMBRO Discriminação Bens de Capital
Contas do setor público, em R$ milhões Variações (%) Mês/mês*
Mensal
Acumulado
1,1
6,4
3,3
4,2
Acumulado 12 meses
ALÉM DOS LIMITES
Bens Intermediários
-0,4
-0,4
1,4
2,7
Se pretendesse ao menos repetir os números de 2004, quando a economia de recursos (integralmente destinada ao pagamento de juros) atingiu 4,59% do Produto Interno Bruto (PIB), o governo teria que despejar na economia entre R$ 22 bilhões e R$ 25 bilhões nos últimos meses do ano – além dos gastos obrigatórios com salários, 13º, aposentados, pensionistas e outras despesas. Detalhe: ainda assim, o superávit primário (receitas menos despesas, excluídos os pagamentos de juros da dívida pública) estaria acima da meta original fixada para 2005 (4,25% do PIB).
Bens de Consumo
-4,5
0,3
7,3
7,0
Bens Duráveis
-8,9
0,4
13,8
14,1
Bens Semiduráveis e não Duráveis
-3,4
0,3
5,6
5,2
Indústria Geral
-2,0
0,2
3,8
4,4
O desfecho de mais uma disputa entre os principais ministros do governo Lula terá reflexos decisivos sobre a definição da política econômica nos próximos meses. Os ministros da Fazenda e do Planejamento propõem mais um pacote fiscal, que na verdade apenas aumenta o arrocho produzido até aqui. Por isso mesmo, teve a oposição da ministra Dilma Rousseff. Antônio Palocci e Paulo Bernardo sustentam seu pacote basicamente sobre duas medidas impopulares: prorrogar indefinidamente a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), o “imposto do cheque”, mantendo sua alíquota em 0,38% até 2009, com redução gradual até 0,08%, a partir daquele ano, até 2013; e ampliar de 20% para 35% a parcela do orçamento que o governo poderá gastar livremente, retirando recursos da saúde e da educação para cobrir despesas com juros. Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, a reação de Dilma não poderia ser mais agressiva: “Pelo amor de Deus, não dá”. E classificou a proposta de “rudimentar”. As divergências obrigaram o presidente Lula a interferir. Por enquanto, o pacote fiscal parece congelado, enquanto Dilma deve se abster de criticar a política econômica em público, conforme noticiado pela imprensa. A intervenção presidencial, no entanto, pode não significar o fim da crise e a preservação de Palocci no cargo. (LVF)
Fonte: IBGE
A disputa entre os ministros envolve, parcialmente, o destino a ser dado àqueles recursos. A equipe econômica, representada por Palocci e Bernardo, preferiria que o dinheiro fosse destinado ao pagamento de juros. Dilma, de seu lado, defende que seja usado em investimentos públicos, criando condições para a retomada do crescimento.
Aperto paralisa indústria e desacelera produção Como este jornal havia antecipado, o terceiro trimestre foi marcado por nova fase de desaquecimento da atividade econômica, conforme mostram os últimos dados sobre produção industrial do IBGE. Em setembro, a indústria teve queda de 2% em relação a agosto, acumulando um recuo de 0,7% no terceiro trimestre, em comparação com os três meses anteriores. A taxa de crescimento em relação ao mesmo trimestre de 2004 aponta para uma forte desaceleração entre o segundo e o terceiro trimestres de 2005, saindo de mais 5,1% para um incremento de apenas 2,3%. Entre agosto e setembro, os principais resultados negativos foram colhidos pela indústria do fumo (queda de 38%), máquinas e equipamentos (menos 6%), refino de petróleo e produção de álcool (menos 4%) e veículos automotores (redução de 2%). Na análise do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), há muito pouco a fazer para “salvar” a indústria ainda em 2005. Os dados “acenam com um baixo crescimento para o setor no ano como um todo” – de 2,5%. Com isso, a economia tenderia a crescer menos de 3%, frustrando as previsões do mercado e do gover-
Um pouco mais do mesmo
no, analisa o Iedi. Na comparação com setembro de 2004, a produção industrial flutuou meros 0,2% – ou seja, virtual estagnação em um período em que, normalmente, o ritmo de atividade deveria esta acelerado, com a indústria se preparando para atender às encomendas de final de ano do comércio. Segundo a consultoria GRC Visão, em setembro, a produção de madeira, calçados e artigos de couro, e vestuário e acessórios despencou, pela ordem, 14%, 13% e 12% em relação a igual mês de 2004.
QUEDAS Também experimentaram queda os setores de máquinas e equipamentos (menos 9%), refletindo uma provável redução dos investimentos na economia; móveis (menos 8%);têxtil (queda de 5%); borracha e plástico (-5%); e alimentos (-4%). “O processo de desaceleração da indústria foi bastante intenso e em setores-chave do consumo, os quais dependem diretamente da renda disponível e de financiamentos. Isso demonstra que a política de juros (...) afetou a indústria, através da retenção do consumo e do câmbio, com influência direta nas exportações”, avalia a consultoria. (LVF)
Seria possível, por exemplo, dobrar os investimentos incluídos no orçamento da União (R$ 22 bilhões), triplicar os recursos para a educação, quadruplicar o dinheiro para a saúde e quintuplicar o orçamento dos transportes. A ministra tem se esforçado para dar alguma dimensão humana à política econômica, acentuando que decisões de governo não podem levar em conta exclusivamente um ponto de vista “fiscal”, e que é preciso considerar que aquelas medidas afetam o dia-a-dia das pessoas, ao reduzir ou ampliar as chances de se conseguir um emprego, por exemplo.
GELO SECO O arrocho aplicado até aqui, disse Dilma em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, vem simplesmente “enxugando gelo seco”, já que a política de juros altos consome toda a “poupança” acumulada mês a mês pelo setor público, desviando bilhões para a ciranda financeira, criando novos rombos todos os meses e impedindo a redução da dívida pública.
Os números do BC sustentam a posição da ministra, que defende o cumprimento das metas originalmente estabelecidas para a política de ajuste fiscal (corte de gastos para reduzir déficits entre receita e despesa no setor público).
GASTOS COM JUROS Considerando apenas a União, o resultado primário (receitas menos despesas, excluídos gastos com juros) atingiu R$ 53,5 bilhões de janeiro a setembro, num avanço de 12,5% em relação a igual período de 2004. Os gastos com juros, no entanto, dispararam, refletindo a política de elevação das taxas adotada pelo BC até outubro: pularam de R$ 56,7 bilhões, para R$ 101 bilhões – mais 78%. Por isso mesmo, a União registrou um rombo final de R$ 47,4 bilhões, integralmente provocado pela despesa com juros. Comparado com o déficit acumulado em nove meses de 2004, o crescimento foi de 417%. Quer dizer, o rombo cresceu mais de cinco vezes, simplesmente porque o
BC se recusou a rever sua política de juros escorchantes, mesmo com a inflação em queda.
CIRANDA Para cobrir o rombo causado pelos juros, repita-se, o governo é obrigado a emitir títulos, tomando recursos no mercado financeiro em troca daqueles papéis (que oferecem aos compradores, a título de remuneração, os mesmos juros mirabolantes determinados pelo BC). Por isso, o governo não consegue reduzir seu endividamento. Em setembro, a dívida do setor público somou R$ 973,45 bilhões, representando 51% do PIB (ou seja, mais da metade de todas as riquezas que empresas e famílias conseguiram produzir em um ano), praticamente a mesma relação observada em dezembro passado (quando a dívida representava 52% do PIB). Em resumo, como critica a ministra da Casa Civil, o governo produziu um arrocho recorde para não avançar um mísero milímetro na redução do seu endividamento. Assim, trata-se de “enxugar gelo”.
O setor público está estagnado Exemplos reais, colhidos do noticiário diário, revelam o retrato de um setor público à beira da paralisia, por falta de recursos. Os fiscais sanitários, em plena crise gerada pelos surtos de febre aftosa no rebanho bovino de Mato Grosso do Sul, estão em greve, protestando contra o corte de verbas para a defesa sanitária. Até 19 de outubro, nove dias depois da descoberta dos primeiros focos da doença naquele Estado, apenas R$ 24 milhões tinham sido efetivamente desembolsados para a Secretaria de Defesa Animal, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Ou seja, 14% dos recursos aprovados pelo Congresso para o orçamento da secretaria neste ano (R$ 169 milhões). No geral, até 15 de outubro, os investimentos do governo federal estavam limitados a R$ 2,119 bilhões, pouco menos de 10% dos R$ 22,110 bilhões previstos no orçamento da União. Apenas 27% dos recursos previstos para o setor de infra-estrutura (estradas, energia, saneamento) foram gastos até o mês passado – R$ 1,550 bilhão, face à previsão de R$ 5,760 bilhões, segundo a Associação Brasileira de Infra-Estrutura e Indústrias de Base. Em outubro, quase 70% das Santas Casas e hospitais filantrópicos de 14 Estados estavam paralisados em protesto contra a falta de correção dos valores pagos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O reajuste prometido (e autorizado) fora suspenso pelo novo ministro da Saúde, Saraiva Felipe, que substituiu Humberto Costa. A Agência Nacional do Petróleo (ANP), que vem liquidando as áreas de produção de petróleo do país, vendendo-as a preços de bananas, tem apenas três funcionários com experiência em leilões de venda – doze deixaram o emprego por falta de perspectivas de melhorias salariais. De uma proposta de R$ 412 milhões para o orçamento deste ano, a ANP obteve a liberação de R$ 79 milhões. (LVF)
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De 17 a 23 de novembro de 2005
NACIONAL CONSCIÊNCIA NEGRA
A cor da desigualdade social Dafne Melo e Jorge Pereira Filho, da Redação
Robson Oliveira
Dez anos após a primeira mobilização nacional, movimento negro cobra compromisso do Estado
V
ocê sabe que país é este? Seis em cada 10 pessoas são analfabetos funcionais; apenas 14 cidadãos em cada 100 completam o ensino universitário; o salário médio é de R$ 443; e 67% da população está desprotegida de seus direitos trabalhistas. Mais de um século após a abolição da escravidão, a dívida da sociedade brasileira com os negros continua explícita. Às vésperas do 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, movimentos sociais organizam protestos para mais uma vez mostrar que as idéias de cordialidade e da democracia racial no Brasil não passam de mitos. Formassem os negros um país à parte, o seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) seria o equivalente ao da Tunísia, país do Norte da África, atrás Equador e República Dominicana, no ranking de 175 países da Organização das Nações de Unidas (ONU) divulgado em 2002. Os indicadores sociais desse Brasil negro contrastam com a nação dos brancos (veja quadro ao lado) – que teria um Zumbi dos Palmares Um dos principais IDH prólíderes do Quilombo ximo ao da dos Palmares (funRepública dado em 1597,e o Tcheca (33ª maior que houve nas Américas), Zumbi é posição). considerado o maior Essas inícone da luta contra o formações escravismo no Brasil. A data de sua morte, constam em 20 de novembro de levantade 1695, foi escolhimento do da como um marco para definir o Mês da professor Consciência Negra. Marcelo João Cândido Paixão, da Marinheiro negro, filho Universidade ex-escravos, que liderou a Revolta da de Federal Chibata (com início do Rio de em 22 de novembro Janeiro de 1910), um levante armado que reuniu (UFRJ), a marujos do Rio de partir do Janeiro. “Nós queríIDH que amos combater os maus-tratos, a má colocou o alimentação (...) E Brasil na acabar com a chibata, 73ª posição. o caso era só este” “O país se – declarou João Cândido, em 1968, um transformou ano antes de falecer, em um país aos 89 anos. capitalista sem se democratizar ou implementar reformas sociais. Se o latifúndio virou o agronegócio, as assimetrias sócio-raciais também se atualizaram”, analisa. Segundo ele, a escravidão hoje se reflete na violência policial, na forma diferenciada de acesso ao mercado de trabalho e no desigual nível de estudo.
PROTESTOS
to de juros da dívida. Só o lucro do Bradesco entre janeiro e setembro de 2005 somou R$ 4 bilhões. A própria ministra Matilde Ribeiro considera insuficiente sua verba. “Esses recursos não res-
A ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), também enfatiza a nova situação da luta pela democracia racial. “Vivemos em uma sociedade muito discriminatória, não apenas com os negros, mas também com os pobres, as mulheres, os homossexuais. Agora, há um momento positivo de reconhecimento de que o racismo existe”, avalia. Sueli Carneiro, do Instituto Geledés da Mulher Negra, concorda com essa posição, mas faz uma ressalva: “Permanecem, ainda, questões pendentes. Uma delas é a impunidade em que se reveste a matança de jovens negros no Brasil”.
pondem à problemática do negro. Mas temos de considerar a lógica da secretaria, que é de coordenar ações em todos os organismos do governo para termos programas voltados à superação da desigual-
Unidade nas reivindicações; divisão na mobilização Há dez anos, o movimento negro se unia para a realização de uma grande marcha, “Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e pela vida”. Agora, nos dias 16 e 22, outras duas marchas serão realizadas para levar uma pauta de reivindicações ao governo federal. Embora as duas mobilizações tenham sido batizadas de “Zumbi + 10”, as entidades não estarão juntas. De acordo com Sônia Leite, do Fórum Estadual de Mulheres Negras de São Paulo e que participa da marcha do dia 22, a divisão decorre de “concepções distintas de como as mobilizações devem ser feitas”. Entretanto, quando o assunto é a pauta de reivindicações, as marchas se aproximam e pedem a efetivação de políticas públicas voltadas para a reparação do racismo, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, o repúdio à violência contra jovens negros e mulheres negras e a regularização de terras de quilombolas, entre outros.
CONQUISTAS Uma data importante nesse período foi a realização em 2001 da Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, na África do Sul. Nela, o Brasil assinou um documento reconhecendo o racismo como um crime contra a humanidade. Outro marco é o Estatuto da Igualdade Racial, proposto pelo senador Paulo Paim (PT-RS), que define novos compromissos do Estado para combater o legado da escravidão. Os deputados, no entanto, não têm priorizado o projeto de lei do Estado que, cinco depois de ser apresentado, foi aprovado apenas pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Além disso, o governo resiste à idéia de dotá-lo de um fundo orçamentário para implementar suas ações. “O Estatuto vai ser aprovado sem orçamento? Isso é uma piada”, critica Regina dos Santos, da Dombali. Em relação ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva, os movimentos sociais apontam a criação da Seppir e a implementação de políticas afirmativas como conquistas. O desempenho geral, no entanto, é visto como decepcionante. “Todos os movimentos sociais e a sociedade que elegeram Lula têm motivos para estarem frustrados”, considera Sueli.
ministro Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal. Frente à divisão das marchas, algumas entidades decidiram não participar de nenhuma. “Optamos, assim como a Educafro, por não participar de nenhuma das marchas, por ser uma divisão meramente política”, diz Regina dos Santos, presidente da ONG Dombali. Frei David dos Santos, fundador da Educafro, conta que a decisão foi tomada em um assembléia com participação de quase mil pessoas. Em contrapartida, a organização faz em São Paulo uma “Caminhada da Inclusão”. O frei ressalta, ainda, que é importante dizer que “a comunidade negra, assim como qualquer grupo humano, tem o direito de ter posições divergentes entre si. O fato de sermos negros não nos condiciona a ter um só pensamento”, diz o educador. A seu ver, o que houve foram discordâncias políticas, e como nenhum lado cedeu, a unidade não foi possível. “As divergências sempre farão parte da caminhada”, opina. Sueli Carneiro, do Instituto Ge-
ledés da Mulher Negra, diz que a marcha do dia 16 se coloca como autônoma. “Ao nos declararmos independentes, não queremos dizer que somos contra o governo. É uma posição de afirmação da autonomia do sujeito político negro. O movimento social deve ser isento, independente, livre de amarras partidárias”, diz. Já Sônia Leite diz que a marcha do dia 22 buscou alianças - e não a “tutela” de partidos e outros movimentos sociais. Ela cita a participação do PT, PMDB, PSB e PSOL, além de movimentos de moradia, a Marcha Mundial de Mulheres e da Central Única dos Trabalhadores (CUT). “Não dá para romper com o racismo e o machismo de forma selecionada. O racismo é um problema de toda a sociedade brasileira”, argumenta. Para Marcelo Paixão, pesquisador da UFRJ, a divisão das marchas enfraquece a ação do movimento negro. “Não concordo com a perspectiva da divisão das marchas; foi um equívoco sob qualquer aspecto e ângulo”, lamenta. (DF e JPF)
DIFERENÇAS Sônia Leite acrescenta que o dia escolhido, 22, também se deu em função da data da Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro negro João Cândido. Após a marcha, estão planejadas audiências com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os presidentes Aldo Rebelo, da Câmara dos Deputados, e Renan Calheiros, do Senado Federal, e o
Calendário de mobilizações Dia 16 – Concentração às 9h em frente da Catedral Metropolitana de Brasília (centro), DF. A marcha irá percorrer toda a Esplanada dos Ministérios. Dia 22 – Concentração marcada para as 8h, na Catedral Metroploitana de Brasília (centro), DF. A marcha percorrerá toda a Esplanada dos Ministérios. Dia 20 – Caminhada da Exclusão. Concentração na Praça da Sé (centro), São Paulo (SP), às 9h30 da manhã.
O quadro crítico do Brasil Negros (pardos + pretos) são 47,3% da população
ORÇAMENTO
Analfabetismo
Brancos – 7,1%
Negros – 33,7%
Apesar de ter status de ministério, o orçamento da Seppir nem de longe responde aos desafios para os quais foi criada. Em 2005, foram R$ 17 milhões, sendo que R$ 3 milhões ficaram retidos por conta da economia de gastos para pagamen-
Analfabetismo Funcional
Brancos – 18,4%
Negros – 64,6%
Nível de Escolaridade Superior Completo
Brancos – 46,4%
Negros – 14,1%
Ensino Médio
Brancos – 49,8%
Negros – 35,3%
Ensino Fundamental
Brancos – 11,6%
Negros – 30,9%
Miséria
Brancos são 32,2%
Negros representam 67,8% dos 10% brasileiros mais pobres do Brasil
Agência Brasil
Duas mobilizações serão realizadas em Brasília para expressar insatisfação com a permanência desse quadro e reivindicar ações de igualdade racial (veja texto ao lado). Ambas ocorrem 10 anos depois da primeira mobilização nacional dos negros em 1995. O balanço geral dos militantes é de que, nesse período, avançou-se no reconhecimento da causa negra, mas as ações implementadas pouco reduziram a desigualdade racial. “A luta do movimento negro era solitária, hoje, conseguimos aliados. A marcha de 1995 foi um divisor de águas e, com a pressão, conseguimos inserir esse debate no Brasil”, avalia Regina dos Santos, presidente da ONG Dombali.
Movimentos sociais organizam protestos para denunciar a discriminação racial e cobrar política públicas
dade racial, e não de desenvolver ações finais”, explica. Um exemplo citado pela ministra é o do Programa Universidade para Todos (Prouni), do Ministério da Educação, que concede bolsas de estudo em universidades privadas em troca de isenções fiscais. Dos 112 mil alunos beneficiados pelo programa, 38 mil são afrodescendentes, a partir de um recorte racial. Agora, a Seppir trabalha no Congresso pela aprovação de um projeto lei que prevê 50% de reserva das vagas da universidade pública para alunos das escolas públicas. O movimento negro, no entanto, manifesta insatisfação também com a política econômica do governo Lula, calcada no tripé: restrição ao consumo interno por meio dos juros, incentivo às exportações e redução dos investimentos sociais para pagamento da dívida. “As políticas neoliberais impactam violentamente os grupos mais vulneráveis, ampliam os níveis de exclusão desses segmentos. É evidente que os modelos econômicos a que estamos submetidos conspiram contra a possibilidade de reversão da exclusão”, analisa Sueli.
Brancos são 86,8%
Negros representam 13,2% dos 1% mais ricos do Brasil
Salário Médio dos Homens *
Brancos R$ 1.170
Negros R$ 491
Salário Médio das Mulheres *
Brancos R$ 682
Negros R$ 361
Não-remunerados
Brancos 9,7%
Negros 13,4%
Desigualdade
* População ocupada Negros comemora instalação da Secretaria para a Igualdade Racial, em Brasília
No Brasil, os negros têm 86,7% mais chances de serem assassinados do que os brancos
Violência
Fonte: IBGE Relatório do Observatório Social, 2004
Ano 3 • número 142 • De 17 a 23 de novembro de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO FRANÇA
A truculenta reação do governo Chirac Remy Gabalda/AP/AE
Presidente atende grupos de extrema-direita e dá ordem de reprimir, com violência, jovens que protestam nas periferias morte de dois adolescentes que fugiam da polícia, no dia 27 de outubro. Mas, para Sauvadet, as causas são mais profundas: “Os jovens nas periferias são constantemente vítimas de agressões, cometidas por policiais, outros jovens, seus pais, professores. Humilhados, aprendem a sobreviver na rua, onde é preciso ser violento para estar tranqüilo e ser respeitado”, diz. A disseminação dos protestos, explica o sociólogo, é resultado do “niilismo” de jovens em relação a outros meios de atuação política. Até partidos de esquerda e extre-
ma-esquerda são rejeitados pelos manifestantes, “pois, quando estiveram no poder, não conseguiram melhorar a condição de vida nos bairros pobres”. Sauvadet acredita que, mesmo se os protestos acabarem, não vão desaparecer. Conclui: “Eles são o resultado de um coquetel explosivo – pobreza e segregação – e, até que esses elementos desapareçam, o que não está na pauta dos partidos que dominam o cenário político francês, a raiva dos jovens em relação à ordem vigente vai continuar. E com ela, os protestos e a violência”.
Contra a violência, projetos para melhorar a vida nos bairros pobres
Governo francês proibiu a formação de grupos de pessoas em locais públicos e ameaça expulsar estrangeiros
João Alexandre Peschanski da Redação
A
sociedade francesa se polariza. De um lado, o governo, liderado pelo presidente Jacques Chirac, cada vez mais alinhado com grupos de extremadireita. Do outro, os moradores das periferias pobres de várias cidades, principalmente Paris. A causa da fratura: a etnia de milhares de jovens que, desde 27 de outubro, organizam protestos e quebra-quebras em bairros populares. No saldo das mobilizações, uma morte, centenas de pessoas presas, mais de 6 mil veículos incendiados e dezenas de prédios e lojas depredados. No dia 9, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, enviou
telegramas aos 96 governadores distritais da França, autorizandoos a expulsar estrangeiros, mesmo com vistos, que tenham sido presos por envolvimento em protestos. Em pronunciamento público, o ministro declarou que a medida pode ser aplicada a 120 pessoas, em detenção, cujas identidades não foram reveladas. A atitude de Sarkozy, sancionada pelo presidente, estimulou a radicalização dos protestos. Entre os dias 11 e 12, 876 carros foram destruídos e 418 pessoas foram presas, de acordo com dados da Direção Geral da Polícia Nacional (DGPN). A violência nas periferias levou a um recrudescimento da repressão policial, mas também de manifestações de racismo por integrantes do partido de extrema-direita Frente
Nacional (FN), como o presidente da agremiação, Jean-Marie Le Pen. Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo francês Thomas Sauvadet, que pesquisa as condições sociais e culturais nas periferias, afirma que Chirac não tem um projeto para os bairros pobres da França. “O governo reprime os protestos nas periferias como se os jovens que queimam os carros fossem pessoas violentas por natureza. Não aparece, nos discursos oficiais, a pobreza e a segregação em que vivem. São vistos como selvagens pela opinião pública e, para não perder seu eleitorado e disputar os apoiadores da FN, o governo adota o discurso e a prática da intolerância em relação às populações das periferias pobres”, afirma. O estopim dos protestos foi a
Para o sociólogo Thomas Sauvadet, especialista em política urbana, a resposta do governo francês às manifestações nas periferias é ineficaz, pois prioriza a segurança, sem apresentar projetos para melhorar a condição de vida das pessoas que moram nos bairros pobres. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele propõe três diretrizes que os políticos franceses deveriam seguir para conter a violência nas periferias: 1) Reduzir desigualdades econômicas e melhorar a situação dos mais desfavorecidos. De acordo com dados da entidade governamental Observatório Nacional das Zonas Urbanas em Risco, divulgados no dia 13, há 717 áreas urbanas “socialmente vulneráveis” na França, ou seja, áreas cujas condições de habitação, educação, saúde e emprego são degradadas. Segundo o sociólogo, é preciso desenvolver políticas e práticas de justiça social, pois “o problema [das periferias] não é policial, é de inclusão social”. 2) Rejeitar o modelo cultural dominante, baseado na propagação do consumo. “Os discursos, os informes publicitários e os cartazes na rua estimulam a visão de que ser cidadão é ser consumidor. Isso é humilhante para a população pobre, excluída desse universo”, explica Sauvadet, para quem é necessário construir um nova matriz cultural, que se oponha à supremacia do consumo. 3) Estimular e legitimar ações sociais e atores políticos, mesmo se irreverentes, oriundos de periferias. Segundo o sociólogo, os meios convencionais de participação – como grupos de pressão e partidos, tanto de esquerda quanto de direita – não conseguem canalizar as reivindicações de jovens da periferia. Ele condena a violência dos protestos, mas diz que é preciso preservar as organizações coletivas que surgirem destas manifestações. (JAP)
Há quase um bilhão de analfabetos no mundo Hoje, no mundo, de cada cinco pessoas maiores de 15 anos, uma não sabe ler, escrever nem fazer contas. No total, são 771 milhões de indivíduos nessas condições. É como se toda a população da África, ou quatro vezes o número de habitantes do Brasil, fossem analfabetos. Ou seja, tivessem um direito fundamental negado. A constatação é do 4ª Relatório de Monitoramento Global de Educação Para Todos, intitulado “Alfabetização para a Vida”, lançado dia 9, em Londres (Inglaterra), pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Com o objetivo de monitorar o alcance das seis metas fixadas por 164 países em 2000, durante a Conferência Mundial de Educação, em Dacar (Senegal), o foco deste relatório é a alfabetização. (Em 2000, as nações se comprometeram a reduzir as taxas de analfabetismo em 50% até 2015.) Mas, segundo a Unesco, esse objetivo dificilmente será cumprido, ainda mais quando se leva em conta que “as medições convencionais das taxas de analfabetismo subestimam a envergadura do problema”. Embora aponte avanços nos investimento em educação primária e na busca da paridade entre os sexos no acesso à educação, o trabalho deixa claro que a alfabetização é um dos objetivos de Dacar mais negligenciados pelo poder público e pelos financiamentos internacionais. “Os governos e os organismos de ajuda não dão prioridade aos programas de alfabetização de jovens e adultos”, diz a Unesco.
David Archer, autor do relatório “Writing the Wrongs: International Benchmarks on Adult Literacy” – que discute o problema do analfabetismo com base nos dados da Unesco – da Campanha Global por Educação, entidade que reúne Organizações Não Governamentais (ONGs) e sindicatos de professores de todo o mundo, explica por que as metas traçadas não serão cumpridas. “Não houve uma assinatura formal das metas de Dacar, por isso é muito difícil pressionar. No mesmo ano, a Cúpula do Milênio da Organizações das Nações Unidas produziu as Metas do Milênio para o Desenvolvimento, que ‘pegou’ apenas duas das seis metas de Dacar como prioridade (educação primária universal e paridade de gênero em educação), fazendo vista grossa para a de alfabetização de adultos”, diz.
FMI, UMA BARREIRA Para piorar, aproveitando este fato, o Banco Mundial (BM) rapidamente destacou apenas as duas metas da ONU e ignorou as outras. “O BM tem uma grande influência nas políticas de educação dos países pobres. Orçamentos nacionais foram prontamente aumentados apenas para atingir as duas metas”, explica Archer, que aponta que esta “priorização” está fortemente ligada às restrições macroeconômicas impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Ou seja, não havia espaço para mais gastos. Segundo o relatório da Unesco, até 2015 são necessários 26 bilhões de dólares por ano (cerca de R$ 56,2 bilhões) para que aproximadamente 550 milhões de pessoas possam cursar até o fim programas de alfabetização de 400 horas de duração.
De acordo com o relatório da Unesco, três quartos dos 771 milhões de analfabetos no mundo concentram-se em 12 países: Bangladesh, Brasil, China, Egito, Etiópia, Índia, Indonésia, Irã, Marrocos, Nigéria, Paquistão e República Democrática do Congo. Do total, 132 milhões (17,1%) têm entre 15 e 24 anos. As regiões com maior índice de analfabetismo são o Oeste e Sul da Ásia (41,4%), a África Subsaariana (40,3%) e os Estados Árabes (37,3%). O continente africano abriga os três países com menor índice de adultos alfabetizados: Burkina Faso (12,8%), Nigéria (14,4%) e Mali (19%). Segundo o relatório, no ritmo atual, em 2015 ainda existirão 14% de analfabetos maiores
de 15 anos no mundo, em relação aos 18% de hoje.
MULHERES, A MAIORIA As mulheres representam aproximadamente dois terços (64%) dos 771 milhões de analfabetos no mundo, o que mostra a alarmante desigualdade de gênero e que também ajuda a reforçá-la, criando um ciclo vicioso. Para a Unesco, 86 países correm o risco de não alcançarem a paridade entre os sexos até 2015. ”Principalmente na África e na Ásia, esta desigualdade é resultado de estruturas de exclusão absoluta das mulheres. No caso do Brasil e dos países da América Latina, elas estão avançando em relação aos homens, apesar dessa vantagem não se repetir no mercado de tra-
balho”, analisa Vera Masagão, da ONG Ação Educativa. De acordo com o relatório da Unesco, de cada 100 homens alfabetizados na América Latina, há 98 mulheres nas mesmas condições. O estudo da Unesco aponta também progressos na área e elogia a atuação de certos governos para enfrentar o problema. “Nos últimos anos, alguns países como Brasil, Burkina Faso, Indonésia, Marrocos, Moçambique, Nicarágua, Ruanda, Senegal e Venezuela têm dedicado uma maior atenção à alfabetização de adultos, unindo-se assim a outras nações – Bangladesh, China e Índia, por exemplo, que têm obtido resultados impressionantes graças aos esforços que realizaram na década de 1990.”
Luciney Martins/ 45 Imagens
Igor Ojeda da Redação
Analfabetos no mundo somam 771 milhões, o equivalente a quatro vezes a população brasileira
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INTERNACIONAL IMPERIALISMO
De novo, ONU condena bloqueio dos EUA Frank Martin de Havana (Cuba)
C
omo nos 13 anos anteriores, Cuba obteve um expressivo êxito na Assembléia Geral das Nações Unidas quando, no dia 9, 182 países votaram pela suspensão do bloqueio que os Estados Unidos impõem contra Cuba desde 1962. Essa política do governo estadunidense estabelece a perseguição e a discriminação de todas as empresas e nações que comercializam com Cuba. Apenas os Estados Unidos e mais três aliados incondicionais (Israel, Palau e Ilhas Marshal) se opuseram à aprovação dessa resolução. A Micronésia se absteve. Foi a maior votação já obtida por Cuba em toda a história na celeuma em torno do bloqueio, superando o apoio recorde de 179 países registrados em 2004. Participam da Assembléia Geral – instância máxima da ONU – os 191 Estados-membros da organização. O resultado não é obrigatório para Washington, mas foi qualificado por Cuba e outros países que repudiam o bloqueio como uma vitória moral da ilha.
Marcelo Garcia
Pela 14ª vez, Assembléia Geral das Nações Unidas apóia suspensão da discriminação econômica contra Cuba Rodríguez enfatizou que, apesar da enormidade das cifras, o sistema socialista que Washington queria destruir por décadas não só sobreviveu como atualmente experimenta uma evolução econômica positiva. Por isso, ressaltou o primeiro viceministro, a medida estadunidense pode ser considerada um fracasso. “Com bloqueio ou sem, o socialismo em Cuba é irreversível e a Revolução Cubana tem seu futuro assegurado”, garantiu.
EFEITOS DIVERSOS O chancelar cubano, Felipe Pérez Roque, e outros dirigentes participaram de assembléias com a população cubana durante todo o mês de outubro para expor como Cuba poderia ter um desenvolvimento econômico e social mais rápido e efetivo durante mais de quatro décadas se não fosse o bloqueio estadunidense. No dia-a-dia do cubano, os efeitos do embargo vão desde operações básicas, como o transporte, até questões de vida, como o acesso a medicamentos. “O bloqueio é imoral, ilegal, sem motivo, injusto e qualifica em termos internacionais como
uma medida genocida e terrorista”, denunciou o documento aprovado pela Assembléia Geral da ONU, em Nova York. Pérez Roque, que participou da sessão, afirmou que a condenação dos EUA reflete a defesa do respeito ao direito internacional e ao multilateralismo. Uma das estatísticas incluídas no documento apresentado por Cuba assinala que, em 2004, 77 entidades de terceiros países que negociavam com Cuba como empresas, entidades bancárias e outras receberam pesadas multas das autoridades estadunidenses por violar a ação extraterritorial. O documento acrescentou que a causa de novas restrições introduzidas no bloqueio pela atual administração do presidente dos EUA, George W. Bush, implicaram uma redução de 40,5% das viagens de cubano-americanos e de estadunidenses em geral a Cuba em 2004, na comparação com os números de 2003. Já nos primeiros nove meses do ano, estiveram em Cuba 26,5 mil estadunidenses – 33% a menos do que em igual período de 2004. (World Data Center – http: //www.wdrc.info)
CÚPULA DAS AMÉRICAS
PREJUÍZOS As autoridades cubanas apresentaram em 27 de setembro um relatório com estatísticas e dados atualizados para embasar o documento anual que apresenta na ONU pedindo a condenação do bloqueio. O primeiro vice-ministro, Bruno Rodríguez, disse que as chamadas
Cubanos comemoram aniversário da Revolução
leis do embargo estadunidense causaram à ilha prejuízos de 2,764 bilhões de dólares em perdas materiais em 2004 e nos nove primeiros meses de 2005. Desde a década
de 60, quando o então presidente dos EUA John Kennedy baixou as primeiras sanções contra Cuba, os prejuízos são calculados em mais de 82 bilhões de dólares.
Os efeitos da perseguição Estima-se que 7 milhões dos 11 milhões dos cubanos que vivem na ilha já nasceram sob o estigma do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos. Assim, sofrem suas conseqüências:
• A carência de medicamentos, equipamentos e material descartável no setor de saúde. O intercâmbio científico-técnico também é prejudicado por pressões do governo dos Estados Unidos. Apenas no setor de saúde, entre 1998 e 2004, o bloqueio provocou perdas de 2,19 bilhões de dólares. Esse valor não quantifica – porque a vida não tem preço – as carências, a dor e os sofrimentos que geraram os efeitos do bloqueio ao povo cubano;
• Limitações na construção, manutenção e reparação de centros e instituições escolares e na disponibilidade de material escolar. Carências de uniforme, calçado escolar, falta de meios de higiene e asseio pessoal, limitações na impressão de livros;
• Limitações financeiras e energéticas para a produção de materiais, reabilitação e conservação de casas; • Prejuízos nas importações de insumos para a produção agropecuária que repercutem na capacidade do setor de abastecer o consumo de alimentos da população e garantir sua segurança alimentar;
• Carência quase absoluta dos meios de transporte de passageiros e cargas.
Fox: “filhote do império” da Redação Em sua primeira aparição pública depois de regressar da Argentina, onde participou da Cúpula das Américas, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, classificou o presidente mexicano, Vicente Fox, de “filhote do império”. Chávez explicou que, no encontro concluído no dia 5, foi travada uma batalha contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), impulsionada pelos Estados Unidos, e lamentou a postura do presidente mexicano: “Que triste que um presidente de um povo como o mexicano seja o filhote do império estadunidense”. O venezuelano prometeu, ainda, divulgar os vídeos das intervenções dos presidentes durante a Cúpula. Um dia antes das críticas de Chávez, foi a vez do presidente argentino, Néstor Kirchner, disparar também contra Fox: “para alguns, diplomacia é ter uma atitude de reverência e abaixar a cabeça diante dos mais fortes”. A frase foi pronunciada em
resposta às acusações de Fox de que o governo argentino não teria trabalhado para o êxito da Cúpula. Para Chávez, Fox “se desesperou” e “perdeu as estribeiras” nos seus comentários. O presidente venezuelano elogiou o povo mexicano, mas criticou a submissão do político do conservador Partido Ação Nacional (PAN). “Esse é o povo de Pancho Villa, de Emilliano Zapata, de Lázaro Cárdenas. É uma pena que tenha um presidente que se ajoelha diante do império e que depois saia atacando os que defendemos a liberdade de nosso povo”, disse Chávez. Logo depois das críticas, a Secretaria de Relações Exteriores do México chamou o embaixador da Venezuela de volta ao país, Vladimir Villegas Poljak, para dar explicações sobre as críticas de Chávez. Analistas mexicanos consideram que a polêmica entre os dois presidentes podem reduzir ao mínimo as relações bilaterais ou, até mesmo, provocar uma ruptura. (Com La Jornada, www.lajornada.unam.mx)
HAITI
General é suspeito de colaborar com Pinochet Movimentos sociais do Haiti exigem a mudança de integrantes do alto escalão do comando das tropas da Organização das Nações Unidas (ONU), que ocupam o país desde 1º de junho de 2004. No foco, principalmente, o subcomandante da missão internacional, o general chileno Eduardo Aldunate, e seus assessores, suspeitos de terem participado de grupos repressivos durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Nesse regime, de acordo com estimativas oficiais, 3 mil pessoas foram assassinadas e 27 mil, presas e torturadas. Em nota à imprensa, divulgada no dia 9, a Federação Internacional das Ligas de Direitos Humanos (FIDH), o Comitê de Defesa dos Direitos do Povo (Codepu) do Chile e a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH) do Haiti exigem a realização de investigações do governo chileno e da ONU sobre Aldunate, além de sua suspensão imediata. Ao receber a denúncia, o ministro da Defesa Nacional do Chile, Jaime Ravinet,
defendeu o general, mas, no dia 13, confirmou que Aldunate participou por dez meses – entre janeiro e novembro de 1978 – do Centro Nacional de Informações (CNI), órgão repressor na ditadura de Pinochet. No dia 10, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) veiculou um comunicado defendendo Aldunate.
dos 7.500 soldados estrangeiros que ocupam o Haiti. Afirma que a mudança do comando militar – do general Augusto Heleno Ribeiro
Pereira para o general Urano Teixeira Da Matta Bacellar, ambos do Brasil – deslegitimou o propósito da Minustah. Isso porque, de acor-
do com a entidade, Bacellar não teria o mesmo compromisso com a democratização do Haiti do que seu antecessor.
Agência Brasil
João Alexandre Peschanski da Redação
MISSÃO CONTESTADA As entidades de direitos humanos acusam o general chileno, além de ter participado do CNI, de haver integrado a Brigada Mulchén, grupo de militares, apoiadores de Pinochet, que teriam perpetrado dezenas de crimes a pedido do ditador. A filha do diplomata espanhol Carmelo Soria, vítima dos integrantes da Brigada em 1976, reconheceu a participação de Aldunate no assassinato de seu pai. As denúncias contra o subcomandante da Minustah ocorrem em um momento em que entidades haitianas intensificam as críticas em relação à missão da ONU. No dia 8, a FIDH divulgou o relatório “Que devir para uma transição falha?”, em que analisa a atuação
Organizações sociais do Haiti criticam duramente a atuação dos 7.500 soldados estrangeiros no país
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INTERNACIONAL ENTREVISTA
Revolução a partir das singularidades Anderson Barbosa
Bel Mercês e Igor Fellipe Santos da Redação
Agência Brasil
Antonio Negri lança seu novo livro, Multidão, onde discorre sobre um potencial combativo comum
N
o livro Império, escrito em parceria com o americano Michael Hardt e lançado em 2000, o escritor italiano Antonio Negri apresenta a teoria de que o mundo é regido por um império supranacional, uma forma política do mercado mundial com instrumentos de regulação financeira, monetária e comercial, em uma sociedade amplamente controlada por estruturas disciplinadoras. “O Império é o comando exercido sobre a sociedade capitalista mundializada”, resume Negri no livro. A tese causou polêmica, principalmente após o avanço unilateral dos Estados Unidos sobre o Afeganistão e o Iraque. Mas, para Negri, até mesmo o poder hegemônico dos estadunidenses depende da relação e de acordos que os EUA mantêm com seus aliados. No recém-lançado Multidão, a dupla se reúne mais uma vez e apresenta a sua percepção de uma nova forma de organização social com potencial combativo. Segundo Negri, a ‘multidão’ seria aglutinada a partir da percepção das singularidades de cada ser humano, seus desejos, necessidades e pensamentos que se tornam comuns dentro de um grupo. “As singularidades se identificam na relação que uns têm com os outros”. Negri diz que, com a automatização e a crise do operariado, a produção de riquezas passa a depender de um trabalho mais intelectual e singular. “A classe operária, que era vista como massa, passa a se reconhecer única e cooperativa.” Ao passar pelo Brasil para o lançamento da obra que considera ser a continuação de Império, Antonio, ou simplesmente Toni Negri, como é conhecido, concedeu uma entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. Ele fala sobre a sua nova teoria e demonstra certo otimismo em relação aos movimentos mundiais, apesar de reconhecer a crise em alguns deles. “É preciso fazer-se multidão, tomar consciência e transformar o mundo, esta realidade”.
BF – No Império, o senhor parte de um pressuposto extraído de livro inacabado de Gilles Deleuze (La Grandeur Marx), segundo o qual o comunismo seria a multidão que se torna comum? Negri – Sim, este conceito de multidão é, antes de tudo, uma constatação de fato, algo que se refere ao modo como hoje se organiza o que então se chamava proletariado. Isto é, o conceito de multidão é um conceito de classe. Um conceito de classe que se transformou. Não contém em si o conceito de comunismo; esse está
Negri avalia com otimismo movimentos mundiais como o Fórum Social Mundial como alternativa ao imperialismo
contido somente enquanto possibilidade, vir-a-ser. O conceito de multidão não contém em si o objeto do comunismo. Há multidões diversas, inclusive a fascista. BF – Qual foi a passagem feita de Império para o novo livro? Negri – O Império era, sobretudo, um livro que dizia: “veja, aqui há uma situação, não há um mercado unificado”. Em realidade, a ordem e a lei são produzidas do lado de fora. Mas se perguntava como este tipo de ordem política que se sobrepõe à organização e ao desenvolvimento de mercado, da produção de mercadorias, da força de trabalho, como isso se colocava e já identificava alternativas contra o império. Um movimento que, no mundo, se opunha àquele tipo de ordem, de nova soberania. Multidão coloca duas séries de problemas, fundamentalmente. Em primeiro lugar, o da guerra. Busca interpretar por meio da guerra o unilateralismo estadunidense. O segundo diz respeito, sobretudo, àquela que é a unidade profunda do conceito de multidão, como constituição de uma nova subjetividade, que se forma através do trabalho, da linguagem, das relações mais vastas, de redes. BF – Qual é a relação da nova subjetividade com aquela que se organiza a partir das experiências “velhas”? Negri – Creio que a característica nova dessa subjetividade é o fato de agir em rede. Digamos que a diferença em relação ao velho movimento é o elemento de organização horizontal, de participação ativa, de tentativa de não delegar o próprio poder. Isto se torna sempre mais fundamental, estes novos movimentos da multidão têm essa característica da reapropriação do próprio destino. Esta é uma característica fundamental, e que corresponde também às características do processo de trabalho, que se tornam cada vez
menos padronizados, e cada vez mais singularizados. Quando se fala de singularização do trabalho, se fala, evidentemente, de um conteúdo de liberdade que está no interior da expressão da força de trabalho, de uma potência que está aí dentro. Esses movimentos pedem precisamente uma forte participação. É importante a democracia no seu discurso.
Hoje, quando se fala em democracia, fala-se de uma democracia que não é mais uma forma de gestão do uno, como era a monarquia, a aristocracia, a tradição BF – O senhor falou no novo conceito de democracia e que deve ser construída pela singularidade e pelo comum. Pode explicar melhor? Negri – Eu não creio que se possa falar de um conceito de democracia eterno. O conceito de democracia muda historicamente. A democracia na Grécia tem pouco que ver com a de hoje. Mesmo porque não se entende se a grega era, de fato, uma democracia ou, simplesmente, uma democracia de tribunos que excluía as mulheres, os escravos. Hoje, quando se fala em democracia, fala-se de uma democracia que não é mais uma forma de gestão do uno, como era a monarquia, a aristocracia, a tradição. Fala-se de participação a partir de baixo, forte e expressiva de uma multidão. BF – E nesta democracia como fica a representação? Negri – O representante é uma parte da teoria burguesa da democracia, é uma coisa muito estranha. Até pouco tempo atrás,
Anderson Barbosa
Brasil de Fato – O que seria a multidão? Antonio Negri – Multidão é o conjunto de singularidades das pessoas, dos operadores do trabalho, que vivem dentro de uma construção. O conceito de multidão é muito mais abrangente do que o conceito de classe. Nesse, como antes era interpretado, não havia a mulher e mesmo os camponeses eram considerados de maneira muito vaga e marginal. Não havia todas as pessoas que não estavam inseridas dentro de uma estrutura muito sólida como a de organização do trabalho. Hoje, a produção se dá através de um movimento social. É na sociedade que se produz, é valorizando aquelas relações comuns que estão no social que a produção é feita. Este tipo de conjunto de forças, singularidades, é considerado como a base da produção da riqueza.
Quem é
Lançamento de Multidão seguido de debate, no Teatro Oficina, em São Paulo
no final da segunda guerra mundial, na Europa, as mulheres não podiam votar. Até 1985, no Brasil, os analfabetos não podiam votar. Hoje, o conceito de representante é profundamente pervertido, dada a desigualdade no regime de comunicação, que é fundamental na formação da opinião. É algo que subverte a fundo a assim dita democracia representativa, mas não apenas isso. É claro que sempre somos colocados de frente com situações que parecem irreversíveis, isto é, vota-se a cada quatro ou cinco anos, sempre se vota no interior do que é uma descontinuidade, que prefigurou de maneira irreversível nossa possibilidade de intervenção na realidade. Então, a democracia representativa deve ser profundamente mudada. A relação representativa torna-se extremamente complexa e difícil nessa situação. Evidentemente se deveria buscar identificar uma nova forma de organização da participação. Creio que experiências interessantes já possam ser feitas na relação direta dos movimentos sociais no confronto com os governos. Isto é, que os movimentos possam se tornar muito mais que o parlamento, tornar-se fluxos de comunicação e de expressão. Estas são tentativas que se fazem na América Latina, mas que vêm sendo concebidas também na Europa como elemento fundamental e central do discurso político.
À luta contra a guerra, que foi muito forte e potente, segue-se agora um círculo social que diz respeito sobretudo à luta operária e à luta contra a precariedade BF – Como avalia a situação mundial dos movimentos sociais? Negri – Tenho a impressão de que o movimento de Seattle, não o movimento dos grandes movimentos, esteja em crise, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. Provavelmente, em países como a Índia, ou do Sudeste asiático, houve, neste período, uma certa retomada dos movimentos. Mas temos que, da crise política de Seattle – que é parte de um ciclo que vai de Seattle a Gênova que se está fechando – até a luta contra a guerra que foi muito forte e potente, segue-se agora um círculo social que diz respeito sobretudo à luta operária e à luta contra a precariedade, às
Filósofo e filho de camponeses, 72 anos, Antonio Negri é italiano. Considerado um dos dirigentes do grupo de extrema-esquerda, na década de 60/70, Brigadas Vermelhas, passou 14 anos exilado na França. Em 1997 voltou à Itália. Condenado a 13 anos de prisão cumpriu pena até abril deste ano em regime semiaberto. É considerado um dos principais pensadores da atual resistência ao imperialismo.
necessidades dos trabalhadores precários, um tema que se torna cada vez mais central. Isto é muito importante. Reabre-se um ciclo de lutas sociais.
O MST tem tudo a ganhar na relação com outros movimentos sociais e outros movimentos radicais e está dando uma demonstração muito inteligente de relação com o governo BF – O que pensa do MST no Brasil? É um movimento de multidão? Negri – Sem dúvida. Conheço muito pouco o MST, conheci alguns líderes, seus expoentes, aqui, ou na Europa. Penso que seja um movimento multitudinário, no sentido pleno da palavra. Acho que o MST tem tudo a ganhar na relação com outros movimentos sociais e outros movimentos radicais e que está dando uma demonstração muito inteligente de relação com o governo. Isto é, mantendo continuamente a própria autonomia, mas, de outro lado, estimulando e pressionando para que se desenvolva uma política a favor da multidão. BF – A idéia central do Império é que não existe uma nação que avance sobre as outras; que o império seria algo supranacional. Depois do lançamento do livro e dos atentados terroristas, os EUA avançaram sobre o Afeganistão, o Iraque, há 121 bases militares no mundo inteiro etc. Como vê essa mudança? Negri – Essa crítica foi muito freqüente logo depois da publicação do Império. Os EUA justamente perderam as reservas no Iraque. Foram derrotados no Iraque, e hoje buscam o apoio multilateral para o plano da constituição de uma nova soberania imperial. Mas não somente do ponto de vista militar. Se vocês considerarem a situação dos EUA do ponto de vista da balança financeira, comercial etc., o país está numa situação tal que a possibilidade de manter seu poder hegemônico depende muitíssimo da sua relação com os outros países, outras bases.
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INTERNACIONAL LIBÉRIA
“Dama de ferro” ganha eleições E
x-economista do Banco Mundial e conhecida na Libéria como “a dama de ferro” pelas medidas neoliberais que utilizou quando ministra das Finanças, Ellen Johnson-Sirleaf foi eleita presidente do país no segundo turno das eleições presidenciais realizado dia 8. Ela se transformou na primeira mulher chefe de Estado na África eleita pelas urnas. De acordo com a Comissão Nacional de Eleições, Ellen obteve 59,4 % dos votos, e seu adversário e ex-craque de futebol George Weah, 40,6%. As eleições da Libéria foram as primeiras realizadas no país desde o fim da guerra civil, em 2003. O conflito, que durou quatorze anos, deixou 150 mil mortos e destruiu a infra-estrutura do país. Weah e Ellen alcançaram os dois primeiros lugares no primeiro turno de 11 de outubro, que teve a participação de 22 candidatos e centenas aos cargos de senador e deputado federal. Nessa ocasião, Weah conseguiu 28,3% dos votos, enquanto Ellen somou 19,8%. Esta é a segunda vez que Ellen se candidata à presidência do país. Em 1997, foi derrotada por Charles Taylor, cujo governo provocou o recomeço da guerra civil temporariamente interrompida.
LIBÉRIA
Ellen Johnson-Sirleaf entra para a história como a primeira mulher a assumir a presidência em um país africano
Observadores internacionais que acompanharam a votação dizem que o processo foi, de forma geral, transparente e que se houve irregularidades, elas não chegam a ameaçar o resultado final. Segundo os especialistas, “não mais guerra, queremos paz” é a frase que melhor resume os sentimentos dos mais de 1,3 milhões de eleitores liberianos que foram às urnas. Em 1997, recém-saídos da mais feroz das guerras civis, acharam que eleger o vencedor era a única forma de garantir a paz. Deram uma vitória esmagadora a Charles Taylor e ao seu partido. Foi uma miragem. Seis anos depois, dois novos movimentos re-
DENÚNCIAS DE FRAUDES O resultado, porém, é contestado por Weah e seus partidários, que foram reprimidos pelas forças de Paz da ONU durante uma manifestação contra supostas fraudes nas eleições, dia 11. Weah defende a realização de um novo pleito, mas pediu a seus simpatizantes para permanecerem calmos até as alegações de fraude serem esclarecidas.
beldes estavam às portas da capital, Monrovia, sitiada e bombardeada. A comunidade internacional obrigou Charles Taylor a partir para o exílio, colocou o empresário Charles Gyude Briant na presidência interina e enviou 17 mil capacetes azuis da Organização das Nações Unidas para a Libéria para desarmar os ex-combatentes. A missão da ONU garantiu a paz mas não fez emergir uma nova liderança, popular e respeitada. A corrupção e a pilhagem dos recursos continuam: 80% da população está desempregada, milhares de jovens prontos a participar como mercenários em qualquer conflito armado e eleitores dizem sem ver-
Arquivo Brasil de Fato
da Redação
Liberian Observer
Ex-economista do Banco Mundial, Ellen Johnson-Sirleaf foi eleita a primeira mulher presidente na África
Weah denuncia fraudes nas eleições
gonha que trocariam o seu voto por cem dólares. Antiga aliada dos Estados Unidos, Ellen foi ministra das Finanças do regime conservador de
Nome oficial: República da Libéria Território: 111.370 km² Capital: Monróvia Nacionalidade: liberiana Localização: Oeste da África População: 3,3 milhões de habitantes Línguas: inglês (oficial) e línguas regionais Governo: república presidencialista Moeda: dólar liberiano Religião: tradicionais (63%), cristianismo (21%), islamismo (16%)
William Tolbert, no início dos anos 80. Quando Tolbert foi derrubado por um golpe militar chefiado por Samuel Doe, ela passou anos de “exílio” como alta-funcionária do Banco Mundial. Dia 11, o Conselho de Segurança da ONU adotou uma resolução sobre a Libéria, determinando que as forças de paz da ONU detenham o ex-presidente Charles Taylor se ele regressar ao país. Um tribunal da ONU baseado em Serra Leoa quer julgar Taylor, que está exilado na Nigéria, por crimes contra a humanidade supostamente cometidos durante a guerra civil. (Com agências internacionais)
ÁFRICA
Thalif Deen de Nova York (EUA) A União Africana (UA) prepara a implementação, no próximo ano, de um exército do qual participarão os 53 países do bloco, num momento em que recrudesce a crise humanitária em Darfur, no Sudão, e parece avizinhar-se uma nova guerra entre Eritréia e Etiópia. A Força de Reserva Africana (FRA) contará com apoio logístico e financeiro de países ricos e será projetada para desenvolver missões militares e de pacificação, em um continente assediado por conflitos, sobretudo por causa de suas riquezas minerais. O presidente da organização não-governamental estadunidense TransAfrica Forum, Bill Fletcher Jr., concorda com a necessidade de formar um exército de pacificação sob comando da UA o mais rápido possível. Fletcher alertou que a institucionalização dessa força dependerá do apoio logístico e financeiro dos países industrializados do Norte. Mas “a ajuda não deve ser um mecanismo para manipular o objetivo dessa força”, podera. Para ele, “um exército de pacificação não deve se converter em uma força de ocupação neocolonial a serviço de interesses de países e instituições que desejam subverter a soberania das nações africanas”, acrescentou. Quando estiver preparada para operar, a FRA se somará, ou substituirá, às forças de paz da Organização das Nações Unidas hoje atuando na África, diz um diplomata africano. Das 16 missões de paz da ONU hoje no mundo, oito estão na África: em Serra Leoa, República Democrática do Congo, Libéria, Costa do Marfim, fronteira entre Eritréia e Etiópia, Burundi, Sudão e Saara
Paulo Pereira Lima
União Africana prepara exército continental sendo chave.” A primeira fase da formação da nova força terminou em junho, e a segunda e última deve se completar em junho de 2010.
SUDÃO EM CRISE
Organizações sociais temem uso da Força de Reserva Africana para beneficiar países ricos
Ocidental. O comandante da Missão das Nações Unidas na Etiópia e Eritréia, general Rajender Singh, advertiu no início de novembro sobre uma possível guerra entre estes dois países. “Uma situação potencialmente volátil poderia detonar uma nova guerra.” A ameaça surge menos de cinco anos depois de encerrada a guerra que envolveu os dois países. A FRA, cuja criação foi prevista pela cúpula da UA em 2002, se encarregará não só de apoiar missões de paz, mas também intervirá militarmente para impedir a escalada do conflito.
MISSÃO DE PAZ Espera-se que os 53 países do continente, todos membros da UA, tomem medidas para formar seus próprios contingentes de soldados reservistas preparados para participar das missões de paz. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair,
disse em setembro, por ocasião da Cúpula Mundial 2005 em Nova York, acreditar que a FRA estará em funcionamento no próximo ano. O núcleo desta nova força militar poderia ser os mil soldados da UA que hoje estão no Sudão, acrescentou. “Embora nesse país o problema continue sendo extremamente crítico, estaria bem pior sem eles. Um exército africano efetivo permitiu criar um espaço político para lançar e fazer andar um processo de paz”, afirmou Blair. O primeiro-ministro insistiu na oportunidade que “as forças de pacificação africana têm de estar prontas em um ano”. Tanto os Estados Unidos quanto os 25 países que formam a União Européia prometeram apoio financeiro - mas não adiantaram cifras concretas - para a criação da força militar. As nações ricas não devem usar o apoio financeiro ou logístico que derem aos esforços de paz da UA
como um salvo-conduto para lavarem as mãos na hora de responder a uma crise na África, avalia AnnLouise Colgan, diretora de análise política da organização África Action. “Se se pretende que as forças de paz africanas reforcem seu poderio e ampliem suas operações, nos próximos anos necessitarão do apoio internacional”, diz Colgan. Entretanto, o apoio internacional à paz e à segurança do continente pode adotar muitas formas, incluindo o compromisso diplomático, a ajuda financeira e medidas institucionais que fortaleçam as iniciativas africanas, acrescentou a ativista. “Para poder responder aos grandes conflitos e às correspondentes crises humanitárias, seja na África ou em qualquer outra parte, sempre será necessário o compromisso e a cooperação de toda a comunidade internacional, e a ONU e outros organismos internacionais continuam
No caso de Darfur, no Sudão, a UA mostrou capacidade de liderança ao atender a crise iniciada em fevereiro de 2003, mas não teve os meios para evitar a morte de mais de 20 mil pessoas. Dia 5, mais de cem membros do Congresso dos Estados Unidos acusaram o presidente George W. Bush de apoiar o governo do Sudão, acusado de cumplicidade com o massacre. Colgan conta que a missão da UA em Darfur, composta por seis mil observadores, não é uma força de paz, pois carece de capacidade de comando, de soldados suficientes e da logística necessária para proteger a população civil de Darfur, cujo território é semelhante ao da França. Porém, a projetada FRA contará com essas características, previu. “Se as nações ocidentais estão verdadeiramente comprometidas com a missão de salvar vidas em Darfur, devem reforçar a missão da UA no Sudão enviando uma força internacional com capacidade de por fim ao genocídio”, afirma a ativista. “Recordemos que o genocídio não é apenas um problema da África, mas também um crime contra a humanidade. Em conseqüência, exige uma resposta internacional urgente. Infelizmente, esta ajuda não chegou e a situação continua se deteriorando”, ressalta. O Tribunal Penal Internacional contra crimes de guerra, contra a humanidade e atos de genocídio, com sede na cidade holandesa de Haia, realiza uma investigação sobre o caso de Darfur. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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NACIONAL AMAZÔNIA
Seca rigorosa afeta 250 mil pessoas Luís Brasilino da Redação
tl, a água que sobra é suja, não só pela mortandade dos peixes, como também pelos dejetos de esgotos lançados ao rio. “Ela chegou a provocar a morte de algumas crianças. Além da contaminação, falta de acesso a cuidados médicos”, relata o ativista. Outro problema é o isolamento provocado pelas dificuldades de deslocamento. As estradas da Amazônia são seus rios e lagos e muitas famílias, com a roça muitas vezes a uma hora de canoa de suas casas, pouco podem trabalhar. Isso teve um reflexo negativo sobre a economia local. De acordo com Rittl, muitas comunidades dependem de barcos regionais que transportam produtos e bens de consumo em geral, tais como alimentos e produtos de limpeza. Sem água e sem barcos, porém, a produção local não conseguia ser escoada, e os bens que chegavam aos seus destinos custavam muito caro. “A população está assustada. Estão todos desolados, pois não vêm muita esperança de mudança até a subida das águas. Vêm toda aquela quantidade de peixes mortos que não podem consumir, pensando em como suprir as necessidades da família, no que dar de comer para os filhos no dia seguinte”, informa o coordenador do Greenpeace.
A
grande seca que atinge a Floresta Amazônica nos últimos meses transformou algumas de suas regiões em cenários de um filme apocalíptico de ficção científica. O que antes era mata exuberante, mais parece um deserto com o solo todo rachado; sobre o que antes eram lagos enormes trafegam caminhonetes; peixes mortos tingem de cinza a superfície dos rios. Carlos Rittl, coordenador da campanha de clima do Greenpeace Brasil, nos últimos meses visitou as áreas atingidas e conta que o que viu de mais impressionante foi o Lago do Rei. Próximo a Manaus (AM) e com uma área de superfície de aproximadamente 12 mil hectares (um hectare é igual a um campo de futebol), o lago estava reduzido a pequenas lagoas e poças que, somadas, não davam mil hectares. “O que sobrou foram milhares de peixes mortos. Os ribeirinhos passam com suas canoas em canais estreitos, remando no meio de milhares de peixes mortos e outros em agonia. E um cheiro de podridão muito forte”, descreve. Apesar disso, acrescenta Rittl, as famílias que vivem ali tinham que conviver com a insalubridade e a desolação. “É assustador, o quadro geral era muito preocupante, porque a impressão que dá é que a água sumiu”, acrescenta.
Envolverde
Mortandade de peixes e dificuldades de deslocamento abalam a economia e acentuam a pobreza da região
CAUSAS Ele acrescenta que, não podendo escoar sua pequena produção, os ribeirinhos não têm nem como ir ao mercado. “Era um quadro de desolação e sem horizonte. Uma tristeza no olhar de pessoas que estão sem perspectiva de quando isso vai mudar”, lamenta Rittl. É predominante no meio científico a tese de que a causa desta
PARA OS POBRES, PIOR Estimativas apontam para mais de 250 mil pessoas atingidas pela estiagem. Com a baixa quantidade de água, diminui também a disponibilidade de oxigênio para os peixes, que morrem aos milhares. Assim, as comunidades perdem sua principal fonte de proteína. Segundo Rit-
O problema da seca na Amazônia não está relacionado apenas a fatores climáticos, mas também ao desmatamento da região
estiagem é o aquecimento anômalo da superfície do mar no Atlântico Norte. O mesmo fator que gerou furacões em grande quantidade e intensidade no Caribe e na América do Norte nos últimos meses. No entanto, pesquisadores brasileiros
acreditam que o desmatamento tem agravado este quadro. “50% da chuva que é produzida na região depende da existência da floresta. Primeiro, pela água que cai sobre as árvores e, antes de chegar ao solo, evapora graças à alta tempe-
ratura da região. E também pelo processo de transpiração da vegetação. Provavelmente a seca ocorreria em função do aquecimento das águas do Atlântico mas o desmatamento local a potencializa em muitas regiões”, conclui Carlos Rittl.
EXPLORAÇÃO SUSTENTÁVEL
Está parada há um mês e meio, à espera de votação no Senado, uma proposta do governo federal que deverá reduzir o desmatamento, especialmente na Amazônia. Trata-se do projeto de lei de gestão de florestas públicas (PLC 62/2005), por meio do qual o Executivo pretende oferecer uma alternativa economicamente sustentável para quem deseja explorar as matas brasileiras, diminuindo assim as atividades ilegais e descontroladas. Tasso Rezende, diretor da Secretaria de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), revela: a gestão que está sendo proposta não é novidade. Já é feita em 1,4 milhão de hectares (há) e consiste no seguinte processo de manejo florestal: numa área do tamanho de um campo de futebol (1ha), onde cabem em média mil árvores jovens e 200 adultas, são retiradas seis árvores adultas, de trinta em trinta anos, mantendo as árvores jovens. Segundo o projeto de lei, o impacto desse tipo de manejo é de menos de 4% na área. Para o diretor do MMA, esse projeto não é nenhuma panacéia, um remédio contra todos os males: “O que ele faz é permitir o uso sustentável de uma parte significativa das florestas brasileiras que estão em terra pública, ou seja, mantendo a floresta em pé”. Rezende acredita que uma das melhores formas de combater o desmatamento é fazer a floresta ter valor em pé. Segundo ele, em 2005, o governo investiu muito no controle e na fiscalização – o que deve representar uma diminuição de cerca de 40% no corte da vegetação, a maior queda histórica. “O problema é que esses resultados estão aparecendo a partir do estrangulamento de
Agência Brasil
Projeto do governo tenta reduzir desmatamento De acordo com o biólogo, não há conhecimento científico suficiente para estabelecer parâmetros de corte que garantam a preservação de espécies no longo prazo, pois várias espécies comercialmente importantes têm taxas de crescimento extremamente lentas e ciclos muito longos de desenvolvimento.
MAIS DESMATAMENTO
Além de fiscalização, ambientalistas defendem regulização fundiária na amazônia
atividades econômicas ilegais mas que fazem parte da dinâmica da região. Temos de ocupar o espaço da economia local com atividades sustentáveis e que possam manter a floresta em pé. A melhor forma de fazer isso é manejar a floresta”, conclui Rezende.
PALAVRAS BONITAS No entanto, a proposta de gestão de florestas públicas vem encontrando muita resistência nos setores que desconfiam do manejo sustentável. O biólogo Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews e colunista do jornal Correio da Cidadania, acha que a proposta do governo está recheada de palavras bonitas, mas é de pouca eficácia.
“Imaginemos que a maioria das concessões seja entregue a empresas interessadas na preservação. Imaginemos também que nenhuma empresa tente cortar mais do que o estabelecido, que ninguém tentará esquentar madeira ilegal, que não haverá uma interferência das empresas nas administrações municipais, que não haverá omissão consciente de fiscalização, que não haverá coerção ou assassinato de fiscais sérios e nem tentativa de corrupção, que as diversas regiões sem lei passarão a integrar-se ao Estado de direito. Mesmo esse cenário não é interessante porque manejo sustentável é algo que não existe no atual estágio de conhecimento. É apenas uma palavra bonita que vende bem, ajuda a convencer os incautos”, critica Grassetto.
Grassetto também defende que o projeto de lei aumentaria o desmatamento: “Obviamente haverá um aumento, já que o cerne da proposta é de concessão para uma exploração de madeira de forma presumivelmente sustentável. O impacto disso nos valores de desmatamento como um todo é difícil de prever”, confessa. Além disso, o biólogo prevê que mesmo a retirada de poucas árvores por hectare tem um impacto considerável, graças às clareiras abertas com a queda das toras, o sistema de trilhas para os tratores que puxam as toras, a abertura de estradas para os caminhões, os pátios de estocagem, entre outros. Grassetto acredita ainda que essas áreas, mais secas por conta dos efeitos da derrubada das árvores, estariam mais sujeitas a incêndios. Rezende, do MMA, discorda. Ele revela que, até o final da década de 1980, não havia, realmente, tecnologia para trabalhar o manejo florestal. “Hoje, o trabalho é feito de forma totalmente diferente. Primeiro, faz-se um mapa das árvores da floresta para definir exatamente quais serão abatidas e por onde serão arrastadas. Existem também estudos para calcular como cortar a árvore de forma a causar o menor impacto nas remanescentes. Quando calculamos impacto de 4%, já
contamos com as quedas e o arraste”, tranqüiliza Rezende.
ALTERNATIVAS A omissão dos governos anteriores em implantar um programa sério de fiscalização e controle, segundo Grassetto, gerou o desmatamento. “Por isso, como outros ambientalistas, defendo que a primeira medida deveria ser um aumento brutal na fiscalização. Uma vez controlado todo o desmatamento ilegal, poderíamos começar a pensar em projetos alternativos de desenvolvimento da Amazônia”, coloca. Rezende lembra que só policiamento não basta: “Não existe uma regra que permita fazer legalmente o manejo florestal da terra pública. Precisa haver a regulamentação de modo a tornar legal uma atividade econômica importante para a economia local. E, a partir dela, gerar renda para fazer um processo de fiscalização mais ordenado”, rebate Rezende. Grassetto, contudo, sustenta que além da fiscalização deveria haver um esforço de regularização fundiária da região “pois aquilo está uma bagunça”. Em paralelo, o biólogo defende investimentos em projetos que favoreçam primeiro as comunidades carentes e excluídas. “Além de socialmente justo, se não houver alternativas para elas, é impossível pensar em preservação em longo prazo. Também não sou favorável a mega-idéias, projetos grandiosos e únicos. Temos que considerar as diversidades e as diferentes propostas de fornecer renda sem destruir o ambiente, tais como turismo ambiental, frutas nativas plantadas dentro da floresta, piscicultura extensiva, criação extensiva de animais selvagens, extrativismo”, sugere Grassetto. (LB)
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DEBATE AMÉRICA LATINA
Política econômica e corrupção F
ECONOMIA PERIFÉRICA
O dano causado por esses juros não se limita ao efeito direto no “serviço da dívida pública”. Um efeito colateral, também muito grave, é a apreciação da taxa de câmbio do real, tal como nos primeiros anos de outra fraude denominada Plano Real. Nos últimos dez meses, a moeda nacional apreciou-se em nada menos que 35%, em função dos juros exorbitantes e dos saldos positivos no balanço de transações correntes com o exterior. Essa valorização do real implica sentença de morte para dezenas de milhares de empresas que dependem de preços competitivos para produzir e exportar, e o desaparecimento de milhões de empregos.
Mas as exportações que crescem muito são as intensivas de recursos naturais, à custa da dilapidação destes: há a perda dos recursos não renováveis, como os minérios, e o desgaste dos solos, o desperdício e a poluição dos recursos hídricos, em função do negócio agropecuário. Isso sem falar no desfrute de mão de obra mal paga e pouco qualificada. Para ilustrar como esse modelo inviabiliza o desenvolvimento econômico e tecnológico, compare-se as patentes brasileiras e as da Coréia do Sul registradas no escritório dos EUA, o mais ativo do mundo. Enquanto as nossas patentes aumentaram de 53, em 1980, para 130, em 2003, as sul-coreanas saltaram de 33 para 3.944. O Brasil tinha, em 2003, 34 mil doutores em atividade. Isso é muito pouco para um país com as nossas dimensões e que pretende desenvolver-se. Ao mesmo tempo, como aqui se adotou o modelo dependente, trata-se de um desperdício. Com efeito, a demanda por tecnologia é ínfima, em conseqüência de a indústria estar sob controle de empresas transnacionais, e estas empregarem tecnologias desenvolvidas na matriz. Por cúmulo, fazemnos gastar bilhões de dólares em royalties por um uso dessas tecnologias que só aproveita às próprias transnacionais. A exploração desbragada dos recursos naturais explica o paradoxo de haver saldos de comércio exterior, mesmo com a continuação da tradicional prática de importar caro e exportar barato, a clássica “transfer pricing”, ou seja, os preços de transferência praticados principalmente pelas empresas transnacionais.
PROPAGAÇÃO DA MISÉRIA
PARAÍSO DA AGIOTAGEM
Os saldos externos, por sua vez, decorrem da repressão à demanda interna, causada pelas próprias taxas de juros proibitivas para o investimento e para a pro-
Combinada com os juros, a valorização do real proporcionou aos especuladores que aplicam em títulos públicos um retorno superior a 50%, sem paralelo no
JUROS
O Banco Central determina juros absurdamente altos, para exclusivo benefício dos concentradores financeiros, e a capitalização de parte desses juros elevou o estoque da dívida pública e seu serviço a níveis insuportáveis. As “autoridades monetárias” asseguram mercado para os capitais especulativos, não só lançando títulos de dívida, mas oferecendo as taxas de juros mais altas do mundo. Assim, tais “autoridades” convidam capitais estrangeiros a auferir ganhos com que nem sonham em outras partes do Mundo. A taxa Selic beira 20% a.a. Com 15% a.a. em termos reais, ela é um múltiplo indecoroso das taxas de títulos públicos dos outros países. APRECIAÇÃO CAMBIAL
Kipper
alar de economia brasileira é descrever a luta desigual entre os brasileiros, que se esforçam por produzir, e as políticas, implacáveis em arrastá-los para a miséria. A política econômica mais absurda do mundo tem sido adotada pelo Executivo e aprovada no Poder Legislativo, enquanto arruína o tecido social do país de forma manifesta. Se houvesse respeito pela verdade e pela lógica, todos veriam aí uma contradição flagrante. Não estaria aí uma pista para o fato de grande parte dos votos de aprovação a essa política ser obtida por meio de estipêndios mensais e outras modalidades de suborno?
dução. A essas taxas está ligado o crescimento da carga tributária, bem como o aperto fiscal, i.e., o corte de gastos que não sejam “serviço da dívida”. Em outros termos, as políticas monetária e fiscal são os agentes patológicos transmissores da penúria que obriga os produtores a se voltar para as exportações. Tão radical é a política de expansão da miséria que, mesmo com a taxa de câmbio supervalorizada, a falta de demanda interna viabiliza o incremento das vendas externas e limita o crescimento das importações.
planeta. Essa marca só não é recorde de todos os tempos, porque aqui mesmo no Brasil houve taxas de retorno mais altas, especialmente durante o tucanato. As equipes econômicas do Tesouro e do Banco Central asseguraram, em 2002, rendimentos de mais de 80% a.a. aos banqueiros e especuladores, quando os títulos indexados em dólar chegaram a constituir 40% do total da dívida interna, e o real sofreu desvalorização acima de 50%. CONTROLE DE CAPITAIS E DE CÂMBIO
Os economistas orgânicos ou fisiológicos consideram tudo isso natural, mas, ao contrário do que proclama o pensamento movido a dinheiro, não é possível haver desenvolvimento econômico nem social, enquanto o País, colonizadamente, se render aos ditames da globalização e mantiver livre o fluxo internacional de capitais e o câmbio flutuante. Sem controle de capitais e cambial, não há como sobreviverem as empresas nacionais nem os empregos dos brasileiros. RADICALIZAÇÃO COLONIAL
Tenho más notícias para quem imagina ver alguma chance de
Kipper
Adriano Benayon
setores da atual administração no Brasil procurarem resistir aos draconianos abusos do escritório de patentes dos EUA, em matéria de propriedade industrial. Há, ademais, posições de política externa mal vistas pelos radical-imperialistas em Washington. Nos oito fatídicos anos da administração de FH, praticamente não houve bolsões de resistência, e foi grandemente acelerada a destruição das estruturas do Poder nacional brasileiro. Isso quer dizer que um retorno à monolítica linha tucana de submissão colonial constitui uma perspectiva agradável para a política imperial. Ademais, o presente governo se mostra, em geral, inepto e desastrado, o que oferece oportunidade de enfraquecê-lo e, assim, desmontar as últimas resistências localizadas. Nada disso significa, porém, que o PT mereça ser defendido. Porém, não menos danoso que continuar sob o reinado petista é beneficiar seus principais competidores e até mesmo seus aliados, agora mais aquinhoados na administração, graças à implosão do PT. Dessa implosão os propulsores da arremetida antipetista só estão querendo poupar o ocupante do Palácio do Planalto, que percebem ser mais maleável que o vice-presidente às imposições do sistema. A META COLONIAL: DESTROÇAR O PAÍS
preservação do país sob o atual sistema político. Por meio desta expressão, não me refiro apenas ao atual governo, mas a todo o sistema, que inclui as forças econômicas por trás dele e todo o conjunto dos partidos grandes e médios (em tamanho), sejam eles de oposição ao governo ou dele aliados, sem falar nos que nunca saíram da situação. Que está acontecendo? O mesmo de sempre, só que se aprofundando. O controle da economia está cada vez mais concentrado sob comando estrangeiro. Desse modo, os bancos e empresas transnacionais pouco precisam gastar em propinas para prosseguir com a predação sobre a economia nacional e levá-la a extremos inconcebíveis. Basta-lhes pressionar os “eleitos” e demais detentores de poder político local, brandindo ameaças econômicas, políticas e financeiras, bem como permitir que esses detentores se locupletem com os recursos dos contribuintes. Isso, como está evidenciado, se faz arrumando as licitações em favor de empresas que sobrefaturam fornecimentos e serviços, as quais repassam aos administradores públicos uma parcela da diferença entre os preços e os custos. Tais administradores transferem uma parte dessa parcela a parlamentares. FRAUDES NAS LICITAÇÕES, MENSALÕES, ETC.
Por que se desencadeou a atual onda de escândalos e investigações, se estava tudo funcionando às mil maravilhas para, entre outros donos do sistema, os beneficiários dos R$ 260 bilhões de juros extorquidos por ano no País, a saber, juros em excesso aos que resultariam de taxas toleráveis? Há indicações de reações nos EUA diante do fato de uns poucos
Parece clara, acima de tudo, a diretriz da política imperial de pôr o Brasil definitivamente na condição de colonizado. Diante do estupendo potencial de nosso país, isso faz muito sentido para potências empenhadas em acentuar sua hegemonia. Para a execução dessa diretriz não há instrumentos melhores do que os ministérios da área econômica e o Banco Central, atuando do modo que têm feito até aqui, sem falar no assalto à Petrobras e na ruinosa política oficial nas áreas da energia e do meio-ambiente. Como a aplicação de tais instrumentos tem dado resultados ótimos para a meta de destroçar e de desagregar o país, os controladores do sistema de poder julgam que essa aplicação deve ser intensificada. É nesse quadro que, enquanto um tsunami ou tsulama devasta tantos dirigentes do PT, alguns deles são glorificados pela mídia e pelos que a movem. Exatamente o ministro da fazenda e a atual chefe da Casa Civil, substituta do indigitado José Dirceu, credenciada por ser fiel continuadora na área da energia do desastre produzido pelo PSDB. O CONTO DO DÉFICIT ZERO PARA BAIXAR JUROS
Entra nesse contexto a nova suposta panacéia dos que buscam saídas dentro de um modelo político-econômico que não comporta qualquer alternativa para o Brasil que não a sua destruição. É a estória do déficit orçamentário zero, na versão Delfim Neto, meta que só poderá acelerar o descalabro, sendo buscada sem antes reduzir-se substancialmente o serviço da dívida pública (juros e amortizações). De resto, mesmo que se cortasse pela metade o kafkiano serviço dessa mais que questionável dívida, a política de déficit zero ainda se sua deletéria para a economia do País. Ela o é para qualquer Estado cujos dirigentes assumam a função de promover o desenvolvimento econômico e social.
Adriano Benayon é Doutor em Economia, Universidade de Hamburgo. Autor de Globalização versus Desenvolvimento, Editora Escrituras: www.escrituras.com.br
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA 2º SEMINÁRIO DA MULHER 19 O evento, organizado pelo Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS), pretende discutir geração de emprego e de renda, segurança e saúde pública para mulheres. Local: R. Fernando Augusto, 987, Fortaleza Mais informações: (85) 3497-2162 cdvhs@cdvhs.org.br
negro quanto à importância das questões relativas ao meio ambiente; dialogar com representantes do movimento negro como parceiros e como multiplicadores na luta pelo direito à dignidade. Local: Universidade Federal Fluminense, Campus do Gragoatá, auditório do ICHF, bloco O, Pça. de São Domingos, Gragoatá, Niterói Mais informações: www.fase.org.br
BRASÍLIA Arquivo Brasil de Fato
CEARÁ
SÃO PAULO DISTRITO FEDERAL
PERNAMBUCO SEMINÁRIO - NOVAS ESTRATÉGIAS PARA AMPLIAR A DEMOCRACIA E A PARTICIPAÇÃO 30 de novembro a 1º de dezembro O seminário, promovido por diversas organizações não-governamentais, como Abong, Ibase e Inesc, tem como objetivo avaliar criticamente a democracia vigente, a partir das experiências de diálogo entre a sociedade e os governos, além de definir coletivamente encaminhamentos políticos para ampliar a participação popular que implique a ampliação do controle social e a radicalização da democracia nos espaços públicos. Local: Praia Hotel, Av. Boa Viagem, 9, Recife Mais informações: (61) 3226-9126 abongbrasilia@uol.com.br
RIO DE JANEIRO SEMINÁRIO - DIÁLOGOS SOBRE POBREZA E DESIGUALDADES 23 e 24 Durante o evento, promovido pela organização não-governamental ActionAid, especialistas de Brasil, Estados Unidos, Jamaica, Uruguai, Haiti, Guatemala, Venezuela, Honduras e Equador vão apresentar novas pesquisas e um panorama atualizado dos indicadores, cenários e desafios relativos ao combate à pobreza, à exclusão social e às desigualdades. Local: Hotel Flórida, R. Ferreira Viana, 69, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 8136-4547 dialogos.pobreza@actionaid.org 10º ENCONTRO DE JONGUEIROS 25 a 27 A expectativa é de que o evento se transforme numa celebração do trabalho realizado pelas comunidades que ajudam a preservar o jongo, importante expressão da cultura afro-brasileira. Local: Santo Antônio de Pádua Mais informações: (21) 2629-2707 www.eefd.ufrj.br/redejongo 1º SEMINÁRIO BRASILEIRO CONTRA O RACISMO AMBIENTAL 28 a 30 O seminário tem como objetivos estudar as dimensões do racismo ambiental no Brasil; promover o encontro das lideranças do movimento negro com as do movimento indígena e desses dois com pesquisadores acadêmicos e técnicos de organizações não-governamentais a serviço da organização popular. O seminário também visa sensibilizar as lideranças do movimento
PRIMAVERA DOS LIVROS 17 a 20, das 14 às 21h O evento, organizado pela Liga Brasileira de Editoras, permitirá que os leitores conheçam os catálogos de editoras pequenas e médias e interajam com os editores e profissionais do ramo responsáveis por essa importante produção editorial. Local: Oca do Parque Ibirapuera, Av. Pedro Alvares Cabral, portão 3 Mais informações: www.libre.org.br/primavera 1º ENCONTRO REGIONAL DE AGROECOLOGIA DO ASSENTAMENTO RURAL DE PIRITUBA II Até dia 18 Durante o encontro serão abordados temas como sistemas agroflorestais, controle biológico e manejo integrado de pragas, bioarquitetura e escola de agroecologia. O evento é promovido pela Cooperativa dos Assentados e Pequenos Produtores da Região de Itapeva (Coapri-Itapeva-São Paulo). Local: Sede do MST da regional Sudoeste- Coapri- Agrovila V- Fazenda Pirituba, Itapeva Mais informações: (15) 3562-6602
1º ENCONTRO LATINO-AMERICANO RAÍZES DE AMÉRICA - CULTURA DE RESISTÊNCIA 25 e 26 Promovido pelo Sindicato dos Servidores das Justiças Federais no Estado do Rio de Janeiro (Sisejufe-RJ), em conjunto com CUT e MST, o encontro vai reunir pensadores representativos da América Latina para refletir sobre a cultura de resistência e sua criação como oposição à industria cultural globalizada. Entre os debatedores estarão a antropóloga Christian Valles, do Ministério da Cultura da República Bolivariana da Venezuela; Orlando Senna, diretor do Departamento de Áudio-Visual do Ministério da Cultura do Brasil; o sociólogo Theotônio dos Santos; o cientista político Emir Sader; o correspondente da agência cubana Prensa Latina, Abel Sardiña; o cineasta Silvio Tendler; a jornalista Beatriz Bíssio; o jornalista Mário Augusto Jakobskind e Cláudio Salles, da rádio comunitária Pop Goiaba. No encerramento do evento haverá um espetáculo musical com o grupo Raízes da América e o conjunto de samba de raiz Batifundo, em parceria com Monarco e Darcy da Mangueira. Os jornalistas Fausto Wolf, Maria Luiza Franco Busse e Mário Augusto Jakobskind vão lançar livros na abertura do Encontro, no dia 25, a partir das 19 horas. Fausto Wolf, colunista diário do Caderno B do Jornal do Brasil, lançará Imprensa Livre e A Milésima Segunda Noite. Maria Luiza Franco Busse, que além de jornalista é professora universitária, apresentará o Ensaio sobre a pergunta - uma teoria da prática jornalística. Mário Augusto Jakobskind estará lançando América que não está na mídia. Local: Associação Brasileira de Imprensa (ABI), R. Araújo Porto Alegre, 71, auditório, 9º andar, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 2232-1004
TARDE GRACILIANO RAMOS & VLADO, 30 ANOS 19, a partir das 14h Para lembrar Graciliano Ramos (nascido em 27/10/1892) e Vladimir Herzog (assassinado em 25/ 10/1975), os próximos convidados do projeto O Autor na Praça são o jornalista Audálio Dantas e o escritor Ricardo Ramos Filho. Audálio estará autografando o livro A Infância de Graciliano Ramos e Ricardo, neto de Graciliano, autografa os livros infanto-juvenis O pequenino grão de areia, Sonho entre amigos e Computador Sentimental. Local: Espaço Plínio Marcos, Feira de Artes da Praça Benedito Calixto, São Paulo Mais informações: (11) 3085-1502 oautornapraca@oautornapraca. com.br
Promovida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a mesa-redonda vai acontecer no mesmo dia em que será lançada a cartilha OMC: o que isso tem a ver com você? Local: R. Desembargador Guimarães, 21, São Paulo Mais informações: cursos@idec.org.br SEMANA OLÍMPICA DA REFORMA AGRÁRIA 19 a 27 Pelo quinto ano consecutivo os assentados da Fazenda Pirituba promovem a semana olímpica da reforma agrária. O objetivo do encontro é fortalecer o espírito de união entre campo e cidade e
MESA-REDONDA - CONSEQÜÊNCIAS DOS ACORDOS DE LIVRE COMÉRCIO PARA OS CONSUMIDORES 23, 14h
possibilitar aos assentados e pequenos agricultores o acesso ao mundo da cultura e do esporte. No dia 23 haverá a comemoração do VII anivesário da Rádio Camponesa, quando haverá uma programação especial, com a participação da comunidade Local: sede do MST da regional Sudoeste- Coapri- Agrovila V- Fazenda Pirituba, Itapeva Mais informações: (15) 3562-6602 EDUCAR PARA EMANCIPAÇÃO DIGITAL Até o dia 30 de novembro O programa “Educar para Emancipação Digital” estará com inscrições abertas para recebimento
de projetos e pesquisas de cunho socioeducacional que ajudarão a definir a grade de oficinas do “Educar 2006”. O programa, que pertence à Cidade do Conhecimento da USP, é um espaço de aprendizagem permanente sobre o impacto de novas tecnologias de comunicação e informação em práticas pedagógicas e políticoinstitucionais escolares. Podem participar professores, diretores, coordenadores pedagógicos, alunos e pessoas envolvidas em programas educacionais de organizações não-governamentais, empresas privadas ou setor público. Mais informações: (11) 3091-4305 cidade@usp.com.br
A morte, numa obra de Saramago Rosângela Gil de São Paulo (SP) “É um livro sobre a Morte, e, portanto, é um livro sobre a vida”. Foi assim que o escritor português José Saramago, o único Prêmio Nobel de língua portuguesa, definiu o seu mais recente romance, As intermitências da morte (editado pela Cia. das Letras), cujo lançamento mundial aconteceu no Brasil, dia 27 de outubro. O livro conta a história de amor entre um violoncelista obcecado pela suíte número 6 de Bach e a morte, personalizada na figura de uma mulher sedutora. A obra foi feita em papel certificado, num gesto que simboliza a adesão do autor à campanha de proteção às florestas primárias do mundo. Ao pedir a suas editoras de diversos países que publiquem o livro em papel certificado, Saramago disse que isso poderia ser o princípio de uma pequena
Rosângela Gil
SEMINÁRIO - CONSTRUINDO ESTRATÉGIAS DE EXIGIBILIDADE DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA 17 e 18 O objetivo do seminário é avançar na discussão de conceitos, estratégias e metodologias de exigibilidade do direito humano à alimentação adequada, com base nas experiências práticas de mecanismos de exigibilidade em todo o país. Local: Hotel St. Peter, Setor Hoteleiro Sul, quadra 2, bloco D, Brasília Mais informações: (61) 3272-8705 3340-7032
Saramago: livro sobre a vida
revolução para salvar as florestas do planeta. Durante o evento de lançamento do livro em São Paulo, no auditório
do Sesc Pinheiros, Saramago contou que o livro nasceu quando ele estava lendo Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke. “Há uma passagem em que um suposto narrador, ou um suposto diarista, que escreve uma espécie de diário, narra a morte de uma pessoa extraordinária. Então me fiz uma pergunta bastante parecida àquela que tinha feito quando do Ensaio sobre a Cegueira, quando questionei o que seria se nós ficássemos todos cegos. Nesse caso, a pergunta foi: e se nós não morrêssemos? Parece uma pergunta tonta, uma vez que não há outro remédio, mas também é certo que o ser humano sempre alimentou a esperança de uma imortalidade. E essa esperança é tão forte que a própria igreja se encarregou de nos prometer a vida eterna. A vida eterna para depois, não para agora. A igreja pode muito mas não pode tanto”. Ao falar sobre sua inspiração para tratar do tema da morte, o Prê-
mio Nobel lembrou que, quando nasceu, numa aldeia em Portugal, a esperança de vida era de 35 anos. “Não é que não houvesse pessoas idosas, mas as crianças morriam cedo”, disse, acrescentando que, no entanto, está completando 83 anos, “quase como ter entrado numa eternidade...” Ressaltando que nós “não gostamos que nos falem de morte”, mas por outro lado a morte se banalizou completamente, invadindo as casas todos os dias e todas as horas, por meio da televisão, Saramago desafiou: “Imaginemos que a morte vai embora, que a morte nos deixe finalmente em paz depois de nos ter atormentado a existência durante milênios, desde que o homem descobriu que era um ser mortal. O que é que aconteceria? Num primeiro momento, uma euforia total”. Mas completou, instigando a leitura de sua nova obra: “Ocorre que seria um caos”.
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CULTURA
De 17 a 23 de novembro de 2005
ARTESANATO
A arte das paneleiras de Goiabeiras Rômulo Cabral de Sá de Vitória (ES)
Divulgação
Grupo de mulheres de Vitória faz artesanato que preserva tradição de cerâmica indígena
U
ma das formas de contraposição à homogeneização da cultura mundial perpetrada pela globalização neoliberal é a defesa das culturas locais, nacionais ou regionais. Para a manutenção da diversidade cultural – pluralidade tão cara e necessária à construção de uma humanidade mais fraterna e solidária –, é preciso, em primeiro lugar, que conheçamos o conjunto de ações por meio das quais nossos diferentes grupos sociais expressam suas maneiras especificas de ser, ou seja, a sua cultura. A cerâmica praticada no Brasil tem a marca da ancestralidade dos povos formadores da nacionalidade brasileira, em especial de sua matriz indígena, responsável por produzir uma cerâmica utilitária de excepcional beleza, desconhecendo as tecnologias de que se beneficiaram os povos do Velho Mundo. Apesar da influência oriental, principalmente japonesa, e da influência de outros países europeus, devida aos imigrantes que aqui aportaram no século 19, a cerâmica praticada no Brasil de hoje ainda conserva a marca de suas matrizes indígena, africana e portuguesa.
Artesãs de Goiabeiras, no Espirito Santo, utilizam técnica semelhante à das tradições indígenas Tupi-Guarani e Una; atividade é reconhecida como Patrimônio cultural brasileiro
Processo de produção é patrimônio cultural
HERANÇA INDÍGENA No Espírito Santo, o encontro do colonizador com o índio, como em todo Brasil, resultou em tragédia para os donos da terra que sucumbiram em guerras na defesa de suas terras, na resistência contra o trabalho escravo ou vitimados pelas doenças dos brancos. Os Botocudo, estimados em 30 mil indivíduos no século 16, ainda resistiram até o início do século 20 e foram objeto de muita curiosidade por parte dos viajantes estrangeiros que descreveram seus costumes, ao percorrer a região do Rio Doce no século 19. Dos povos Tupi restam hoje apenas remanescentes dos Tupiniquim que, somados aos Guarani, vindos do Sul do país, habitam aldeias no município de Aracruz (ES), onde travam luta constante com a empresa Aracruz Celulose para recuperar parte de suas terras, expropriadas para a implantação de imensas florestas de eucalipto. Exceto pela fabricação esparsa, nessas aldeias, de utilitários para cozinha e armazenamento, a cerâmica indígena do Espírito Santo está quase extinta. Entretanto, um grupo de mulheres da região de Goiabeiras, em Vitória, produz uma cerâmica utilitária que guarda estreita vinculação com a cerâmica indígena, mais precisamente com as tradições Tupiguarani e Una, com influência mais evidente da tradição Una (veja quadro). Trata-se do núcleo ceramista denominado Paneleiras de Goiabeiras, de início incerto na história, mas com tecnologia passada de mãe para filha, que pouco se alterou com o tempo.
ORGANIZAÇÃO O trabalho artesanal das paneleiras tem garantido a sobrevivência econômica de suas famílias, como também de suas tradições. No início, o trabalho era de cunho familiar e o trabalho, feito no quintal das casas das paneleiras. Recentemente, com a criação da Associação das Paneleiras e ações da Prefeitura Municipal de Vitória, empresas e outras entidades, foi construído um galpão onde foi concentrada grande parte da produção. Por sua associação com a culinária de frutos do mar do Espírito Santo, nomeadamente a moqueca e a torta capixaba, bem como por toda tradição envolvida em sua confecção, a panela de barro teve seu modo de produção registrado como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A atividade das
A argila com que se faz a cerâmica utilitária produzida pelas Paneleiras de Goiabeiras vem de uma jazida localizada no Vale do Mulembá, no bairro de Joana D’Arc, município de Vitória. A partir de bolas amassadas de cerca de 50 quilos, a quantidade para fazer a panela é cortada e colocada sobre uma tábua, formando uma bola. Então, o utensílio é conformado a partir de um buraco no centro dessa bola, que vai sendo adelgaçada com as mãos, auxiliado por um pedaço de cabaça para arredondar a superfície interna e uma faca de metal para desbastar. Paneleiras de Goiabeiras tornou-se, a partir de 21 de novembro de 2002, um bem imaterial, o primeiro tombado no Brasil. A tradição de suas etapas de produção (veja quadro) desde sua origem; a sua inserção na comunidade e a utilização de insumos do meio natural circundante – a jazida de argila do Vale do Mulembá e o tanino do manguezal – fizeram com que o mencionado registro fosse votado por unanimidade pelo Conselho Consultivo do Ministério da Cultura. Tal medida, juntamente com o selo de autenticidade conferido, em 1995, pela Prefeitura Municipal de Vitória à panela de barro de Goiabeiras, concorre para atestar a autenticidade desse utensílio contra a falsificação perpetrada por ceramistas instalados em Guarapari (ES) que, por meios não pertencentes à tradição das Paneleiras de Goiabeiras (outro tipo de argila, uso do torno e cozimento em forno), produzem panelas de qualidade inferior, prejudicando o comércio da panela tradicional. A sobrevivência do artesanato da panela de barro depende de uma série de fatores. Fatores ecológicos, porque as paneleiras dependem de três elementos básicos para continuar fazendo panelas: do barreiro de onde sai a argila, do mangue, que fornece o tanino para tingimento das panelas e, eventualmente, a lenha para queima das panelas. Fatores sociais e culturais, na maneira de fazer a panela, da sociabilidade e também da terminologia lingüística que empregam para designar as etapas de confecção das panelas. E, finalmente, fatores políticos, na luta pelo fortalecimento de sua organização e na luta pela preservação dos elementos necessários à continuidade da tradição.
PANELEIRAS DE SÃO MATEUS Em São Mateus, Norte do Espírito Santo, ainda está em atividade Antônia Alves dos Santos, 90 anos, natural de Jequié (BA). Dona Antônia, como é conhecida, é representante de uma outra tradição de
produção de artefatos cerâmicos, principalmente panelas, em que o uso do forno faz a principal diferença em relação ao artesanato das Paneleiras de Goiabeiras. Dona Antônia, descendente direta de africanos, aprendeu em 1930 o ofício de paneleira com sua mãe Maria Justina da Conceição, natural de Nazaré das Farinhas (BA). Nazaré das Farinhas, no Recôncavo Baiano, é um tradicional núcleo ceramista brasileiro, onde acontece a Feira dos Caxixis a cada Semana Santa. Nessa feira são vendidos potes, moringas, pratos e demais artigos para cozinha, produzidos nas olarias da região por uma população predominante de afrodescendentes. Embora a tradição de Nazaré das Farinhas já incorpore o torno (roda de oleiro) e a aplicação de engobes no estilo europeu, o método de dona Antônia é mais rudimentar, muito embora o resultado final seja uma cerâmica bem feita e bastante original. Ela fala de sua técnica: “Eu faço na mão, é subindo, batendo o bolo, faço o buraco. Aí eu vou levantando, cada uma palheta dessas é uma peça, quer dizer, pra gente que conhece, né? Aí no outro dia é que eu vou lá, aliso, raspo direitinho, pego o sabugo, aí com a pedra fica lisinho assim ó ... Depois que a gente dá o brilho. Aí seca”.
Obtido o formato pretendido, a peça é retirada da tábua e os excessos, retirados por um pedaço de arco de barril. O acabamento final é realizado um dia após a conformação, quando a peça é raspada e polida com um seixo rolado, utilizado também para a fixação de grãos de areia proeminentes na superfície. Uma peça demora cerca de um dia para secar, processo que pode ser acelerado, expondo-a cuidadosamente por algum tempo ao sol. Fazemse, além das panelas, frigideiras, assadeiras, caldeirões, bules, chaleiras, cinzeiros, fogareiros, recipientes para assar peixe, recipientes para servir siris ou caranguejos desfiados e outros. O cozimento se dá em fogueiras abertas, com as peças colocadas sobre um estrado de lenha e sobre elas colocada cuidadosamente uma coberta também de lenha. A boca da fogueira é posicionada sempre a favor da direção do vento. O fogo é atiçado e mais lenha vai sendo acrescentada até a queima total das peças, o que dura de 4 a 5 horas. Ainda rubras devido ao cozimento, as peças vão sendo tingidas em toda sua superfície com uma tinta à base de tanino, aplicada por intermédio de uma vassourinha de “muxinga”, ramo de um arbusto local chamado “vassourinha do campo”. A tinta é obtida da casca de mangue macerada com água e presta-se ao enegrecimento e à impermeabilização do utilitário.
O barro utilizado por dona Antônia é proveniente das barrancas do Rio Cricaré, embora também seja utilizado o barro de Conceição da Barra (ES), de Montanha (ES) ou de Nanuque (MG). As peças são queimadas no forno montado por ela mesma em sua olaria, na Rodovia Otovarino Duarte Santos, km 4, bairro Pedra D’água, São Mateus (ES) e são de grande variedade de formas e tamanhos, incluindo a purunga ou cabaça (mo-
ringas com formato antropomorfo e/ou fitomorfo), pratos, panelas com alças, panelas cara-de-peixe, garrafas, copos, potinhos, vasos, quase todos sem pintura. A continuidade da tradição de Dona Antônia está, por enquanto, assegurada pelo trabalho de sua neta Hosana dos Santos, que produz utilitários e lembranças, mantendo os princípios básicos aprendidos com sua avó. (Revista eletrônica Olhar Crítico, http://coopemult.com.br)
Tradições da cerâmica do Espírito Santo A cerâmica arqueológica encontrada no Espírito Santo está classificada em três tradições: Una, Tupi-guarani e Aratu. A tradição Una caracteriza uma cerâmica pequena de cor escura (queima redutora) e bem feita, possuindo formas arredondadas e alguma decoração. No Espírito Santo está relacionada à cultura dos índios Puri-Coroado e a datação de seus vestígios chega a 2.500 anos, compreendendo sua abrangência de Vitória até o sul do Estado do Espírito Santo. Relacionada a povos do tronco Macro-Jê, especificamente no Espírito Santo representado pelos índios Malali, a tradição Aratu apresenta uma cerâmica de grandes proporções, bem feita, de cor vermelha (queima oxidante), possuindo formas esféricas e ovóides e decoração plástica, sendo os vasilhames principais: vasos, tigelas e urnas funerárias. A datação mais antiga no Espírito Santo é de 1.300 anos e refere-se a um sítio em Linhares. Essa cerâmica é a mesma produzida pelos índios Pataxó, Malali, Cumanaxo e Maxacali. A tradição Tupi-guarani, por sua vez, relaciona-se aos povos Tupi, no Espírito Santo representados pelos índios Temiminó, Tupinambá e Tupiniquim, que ocupavam o litoral. Trata-se de uma cerâmica não muito boa tecnologicamente, predominantemente constituída de vasos e tigelas extremamente decorados com pintura em policromia: vermelho e preto sobre branco. No Espírito Santo, o sítio mais antigo dessa tradição foi encontrado em Piúma e tem cerca de 1.200 anos.