Ano 3 • Número 145
R$ 2,00 São Paulo • De 8 a 14 de dezembro de 2005
Transposição em troca da reeleição A
transposição do Rio São Francisco virou moeda de troca para 2006. Apadrinhado político do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), o ministro da Integração Nacional Ciro Gomes só apóia a reeleição presidencial se a obra sair do papel. Ciro e Tasso fazem parte da elite urbano-industrial cearense que assumiu o comando do Estado na década de 1980. A menina dos olhos desse grupo é o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, um imenso parque industrial onde está sendo montada uma megaestrutura para atrair empreendimentos. A transposição atenderia à demanda do complexo. A proposta federal é levar água até o Açude do Castanhão, de onde o governo do Ceará pretende transportar a água até o Pecém. Pág. 13
Fotos: Agência Brasil
Em defesa da elite cearense, Ciro Gomes impõe a obra a Lula prometendo apoio na campanha de 2006
Governo se omite; violações aumentam A reforma agrária tarda. As violações aos direitos fundamentais crescem. Um relatório organizado por entidades de direitos humanos denuncia e condena a ausência de políticas públicas em benefício da população pobre. Pág. 8
O ministro da Integração Ciro Gomes, o senador do PSDB Tasso Jereissati e o presidente Lula, juntos em defesa da transposição do Rio São Francisco
Hegemonia ruralista no Congresso
Na Venezuela, oposição sofre mais uma derrota
representantes fiéis, que vetam projetos contrários a seus interesses e atacam os movimentos sociais do campo. Parlamentares progressistas são obrigados a
buscar aliados fora do Congresso, como a Organização das Nações Unidas, para denunciar a hegemonia ruralista. Pág. 3
Andrew Alvarez/AFP/AE
Os resultados das eleições legislativas na Venezuela, dia 4, não podiam ser melhores para o presidente Hugo Chávez. A expectativa é de que o partido do governo e seus aliados ocupem 100% das cadeiras do Parlamento. Antes, a oposição tinha 79 postos. Pág. 9
Senhores da terra dominam a política brasileira. Era assim no período colonial. Continua assim no governo Lula. Na Câmara dos Deputados, eles têm 73
Homossexuais sob a mira do Vaticano Entidades de defesa dos direitos civis criticam a decisão do papa Bento 16 de proibir o acesso de homossexuais ao clero. Enquanto a polêmica se acirra, o Vaticano deixa de discutir questões importantes como o celibato obrigatório. Págs. 2 e 6
O PIB encolhe mas política de arrocho continua A economia começou a descer a ladeira no trimestre encerrado em setembro. O que levou a inúmeras revisões, para baixo, do crescimento do Brasil em 2005. Como a equipe econômica não gostou da notícia, manipula os resultados e tenta desacreditar o IBGE. Porém, nada do que dizem o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central bate com os dados do mundo real. Aqui, a economia encolhe com a política de arrrocho e juros altos. Pág. 7
OMC: rumo ao fracasso nas negociações A agricultura vem emperrando as negociações para a Conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), que começa dia 13, em Hong Kong. A abertura de mercados para o agronegócio é prioridade para o Itamaraty, mas a União Européia se recusa a ceder. Pág. 11
Evo Morales amplia vantagem na Bolívia Pág. 10
Sem-terra levam ao palco a reforma agrária Simpatizantes do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, comemoram vitória nas eleições legislativas, dia 4, em Caracas
E mais: ÁFRICA – Metade das crianças soropositivas dos países pobres do continente morre antes de completar dois anos de idade por falta de remédios e exames. Pág. 12 DEBATE – A vida e a herança do líder seringueiro Chico Mendes, descritas 17 anos depois de sua morte. Pág. 14
Pág. 16
Procurador que acionou Rede TV! explica acordo Em entrevista ao Brasil de Fato, o procurador regional dos direitos do cidadão em São Paulo, Sergio Suiama – que junto com mais seis entidades da sociedade civil conseguiu obrigar a Rede TV! a ter de exibir durante um mês programas que enfoquem os direitos humanos – conta em detalhes o caso que levou a emissora a rever sua grade de programação. O programa Direitos de Resposta irá ao ar de dezembro de 2005 a janeiro de 2006. Pág. 4
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De 8 a 14 de dezembro de 2005
CONSELHO POLÍTICO
NOSSA OPINIÃO
Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes•
À espera da luta social
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stamos chegando ao final de mais um ano. Como é de praxe, os movimentos sociais, as empresas, os times de futebol e os jornais fazem suas avaliações. Infelizmente, o balanço de 2005 não é muito positivo para a classe trabalhadora e para o povo mais pobre – o que se reflete na apatia das forças populares e da sociedade como um todo. Mesmo diante de fatos gravíssimos de violência social, de injustiças, a sociedade permaneceu quieta, insensível, como que acostumada com sua própria tragédia. Basta lembrar dois episódios: no primeiro semestre, um grupo de policiais massacrou, à luz do dia, e por nenhum motivo, nada menos que 29 pessoas, inclusive crianças, num bairro pobre da Baixada Fluminense. A imprensa noticiou. O povo assistiu. Há poucos dias, uma quadrilha de traficantes seqüestrou um ônibus com trabalhadores, fechou as portas, ateou fogo. Cinco mortes. A televisão mostrou as cenas repetidamente. O povo assistiu. Mesmo as mobilizações positivas não ganham entusiasmo popular. A CUT organizou uma caminhada para pressionar por aumento no salário mínimo. Uma causa justa e necessária. Uma promessa de campanha do presidente Lula – pelo programa divulgado na época, hoje o salário mínimo deveria ser de R$ 466 e, em maio de 2006, chegaria a R$ 554. A central sindical exige R$ 400. O parlamento não se manifesta. O governo dorme. A imprensa dá pouco destaque e tudo fica como dantes, no quartel de Abrantes. Todos esses fatos são apenas ilustrativos da conjuntura. Porém, revelam
uma crise generalizada da sociedade brasileira. Uma crise econômica, que agora nem a imprensa burguesa consegue esconder. A manutenção, pelo governo Lula, da política neoliberal criada pelos tucanos, e defendida em verso e prosa por toda a classe dominante e sua imprensa, começa a dar sinais de fraqueza. O crescimento do PIB será ridículo. Mas isso não é importante. Importante é que a política econômica não está resolvendo os problemas do povo. Os capitalistas continuam acumulando dinheiro, aplaudindo seu ministro Palocci. Mas quem vive de trabalho, quando tem trabalho, vai cada vez pior. A grave crise social tem no desemprego a principal chaga. Doze milhões de trabalhadores adultos estão desempregados (54% até 25 anos, com segundo grau completo) e outros quinze milhões estão no trabalho informal. Todos sem direitos previdenciários e sociais. Salvos apenas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O governo esconde-se atrás da bolsa família, de R$ 70, distribuída para oito milhões de famílias. Isso mata a fome, mas não recupera dignidade. O que recupera a dignidade do pobre é trabalho e renda. Também há uma crise política no país. O Ibope revelou que 92% dos brasileiros não acreditam mais no sistema de representação política. Mais de 70% dos entrevistados acham que todos os parlamentares são corruptos. É enorme o descrédito nesse tipo de democracia hipócrita, que reduz o direito de votar, a cada dois anos, em oportunidade de esco-
lher “quem o vai trair durante quatro anos!”, como diz o jurista Fábio Konder Comparato. De novo, governo e parlamento perderam a oportunidade de, atendendo ao clamor da sociedade, fazer uma profunda reforma política, que garantisse mecanismos de democracia direta, maior participação do povo na política, fidelidade partidária e novos métodos de fazer campanha política. O Brasil padece de uma crise de destino. Uma crise de projeto de desenvolvimento. Infelizmente, as forças populares e sociais organizadas não conseguem realizar ainda um mutirão para debater um novo projeto. Não conseguem sensibilizar o povo para se mobilizar, lutar por seus direitos. 2005 realmente foi um ano muito ruim para a maioria do povo brasileiro. E certamente 2006 será ainda pior, se o governo não levar em conta esse quadro de crise e insistir em falsas propagandas eleitorais que podem até garantir reeleição, mas não resolvem os problemas do povo, muito menos mobilizam a sociedade para debater as saídas. Nas últimas semanas, partidos da base aliada, como o PSB, setores nacionalistas do PMDB promoveram seminários e debates para pensar os problemas do Brasil. Certamente, o povo brasileiro tem muita energia para fazer as mudanças necessárias, na economia, no social e na política. Mas precisa se mobilizar para isso. As verdadeiras mudanças só virão com a possibilidade de reascenso do movimento de massas. Com a luta social.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES PROMESSAS Justiça seja feita ao presidente Lula. Ele jamais deixou de ser fiel às suas promessas de campanha. Promessas feitas tanto para um lado quanto para o outro. Porém, desde o início de seu governo ficou claro o lado que seguiria. Passou com mala e cuia, como dizemos aqui no Sul, para o mesmo lado das elites e o capital internacional. Assim, Lula vem cumprindo, e até ampliando, todo e qualquer acordo imposto ao país. Aliás, ele nunca disse que desrespeitaria. Por tudo isso volto a repetir: realmente houve “mudança”, mas de lado. Ao esquecer o seu povo e os milhões de votos que o elegeram, Lula passará para a história de nosso país; de salvador a traidor. João C. da L. Gomes Porto Alegre (RS) VENEZUELA A entrada da Venezuela no Mercosul representa, sem dúvida, o mais alvissareiro acontecimento para esta comunidade de nações desde a sua fundação. Grande produtora, refinadora e exportadora de petróleo, detentora de uma das maiores reservas em moeda estrangeira da América Latina, a Venezuela começou a ser um fator integrante e integrador em nossa comunidade já bem antes do seu ingresso. Adquirindo cerca de meio bilhão de dólares em títulos da dívida argentina, investindo no setor petroleiro do Uruguai, criando uma grande refinaria de petróleo no Nordeste brasileiro em associação com a Petrobras, inaugurando a rede televi-
siva integradora Telesul, dando um extraordinário exemplo de programas de reforma agrária e alfabetização em massa como há muitas décadas não se vê em nosso continente, a Venezuela de Chávez implementa de forma prática e concreta os ideais de união sul-americana do grande libertador Simón Bolivar, cuja necessidade e importância hoje se sente mais do que nunca. Reny Barros Moreira São Paulo (SP) COCA-COLA Caros amigos do Brasil de Fato, me interessei muito sobre a reportagem da Coca-Cola e enviei o comentário para o informativo Migalhas que circula no mundo jurídico (afinal o laudo da PF e a questão da ilegalidade do refrigerante teriam tudo a ver). O referido informativo envioume a seguinte resposta: Migalhas dos leitores – Coca-Cola x Dolly “Recebi a informação do Brasil de Fato, que é um jornal independente, de que o Instituto de Criminalística da Polícia Federal comprovou a utilização de folhas de coca na fabricação da Coca-Cola, conforme denúncia da Dolly Guaraná. Não foi comprovada a existência dos alcalóides, o que não exime a Coca-Cola de infringir a legislação brasileira sobre entorpecentes. Então, Migalhas não vai comentar nada sobre este espantoso fato?” Alexandre de S. Gonçalves Por correio eletrônico
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CRÔNICA
A sexualidade, a Igreja e o Natal Marcelo Barros Os cristãos acreditam que, no Natal, a divindade se revelou em uma pessoa humana: Jesus de Nazaré que, dizem os textos, assumiu, em sua pessoa, toda a humanidade. Viveu em tudo a fraqueza humana. O 4º Evangelho revela: “O Verbo se fez carne”. As Igrejas têm como missão ser testemunhas de que toda a humanidade é divinizada. Nada é mais humano do que a dimensão afetiva e sexual. É um assunto delicado porque toca no mais profundo da pessoa. A afetividade e o sexo nos conduzem ao mistério mais íntimo de cada ser humano. Ninguém faz essa “viagem” sem certa parcela de insegurança e sofrimento. Gonzáles Faus, teólogo católico espanhol, escrevia: “A força do sexo é, em geral, superior à racionalidade e desautoriza a razão iluminada que se acredita capaz de dominar todas as dimensões humanas”. Diante da força do instinto sexual e da afetividade, as pessoas costumam agir de duas formas opostas. Uma primeira reação é “baixar o nível”. É a atitude da sociedade que se diz “liberada” e banaliza as relações eróticas e sexuais. O capitalismo investe nisso e a indústria pornográfica é das que mais dão lucro. A outra reação é contrária. Eleva exageradamente o nível e proclama regras altas demais para a sexua-
lidade. Propõe uma espiritualização tão alta da sexualidade que angustia mais ainda as pessoas e dificilmente alcança os seus objetivos sem danos graves à sanidade humana. Muitas vezes, tem sido esta a tendência de igrejas e de algumas religiões. Infelizmente, em certos casos, uma sexualidade reprimida favorece uma sexualidade distorcida e que pode chegar até mesmo a ser pervertida. As perversões têm causas diversas, mas uma delas é a repressão dos instintos mais básicos. Aquilo que, equivocadamente, as pessoas se proíbem de viver de forma “normal”, mas, ao mesmo tempo, não conseguem evitar, acaba se impondo da forma menos desejada e correta. O assédio sexual e o abuso de crianças e adolescentes podem ser um dos sinais terríveis e criminosos desta repressão que podem ocorrer nas famílias, nas escolas, como nas Igrejas. No mundo atual, o movimento feminista e os grupos homossexuais têm conquistado o respeito da sociedade e têm participado das grandes causas da humanidade. Há uma expressão da afetividade e sexualidade humana homossexual tão digna como outra qualquer. Entretanto, existe uma cultura heterofóbica que fecha a pessoa ou o grupo em si mesmo e na busca do semelhante.
Sociedades com dificuldade de lidar com o diferente desenvolvem verdadeira fobia do heteros, do outro, seja a mulher, seja pessoa de outra cultura. É uma espécie de homofilia cultural. Ambientes que privilegiam um estilo diplomático pouco sincero, favorecem cerimônias que estimulam o narcisismo, contém elementos homofílicos (o gosto pelo semelhante) e heterofóbicos (a rejeição ao diferente). Não serão documentos repressivos e pouco amorosos que sanearão os ambientes eclesiásticos. No lugar de multiplicarem leis, os pastores precisam propor uma mística. A humanidade do século 21 tem direito de esperar das Igrejas a lição do Natal: que sejam humanas como Jesus que, “passou pelo mundo fazendo o bem” e nunca discriminou ninguém nem jamais aceitaria que nenhuma pessoa ou instituição usasse seu nome para discriminar ou excluir alguém. Celebrar o Natal de Jesus Cristo é reconhecer em todo ser humano uma imagem divina e assumir a condição humana como ela é, felizes de que Deus se revelou na carne de Jesus para que toda pessoa humana se descubra divina. Marcelo Barros é monge beneditino e autor de 27 livros
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De 8 a 14 de dezembro de 2005
NACIONAL CÂMARA DOS DEPUTADOS
Ruralistas são a hegemonia do atraso Bancada, formada por 73 parlamentares ligados ao agronegócio, chantageia governo e barra projetos progressistas João Alexandre Peschanski da Redação
O
s senhores da terra controlam a Câmara dos Deputados e barram projetos de interesse popular, como a reforma agrária. A afirmação, repetida em diversos períodos da história do Brasil, adquire tom mais dramático no mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Porque a influência da bancada ruralista aumentou durante o seu governo. Manifestação da força dos fazendeiros foi o desfecho da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra, em 29 de novembro. Os ruralistas, maioria na CPMI, rejeitaram um relatório, apresentado pelo deputado federal João Alfredo (Psol-CE), que não atendia a seus interesses. Em seguida, aprovaram um texto alternativo, apresentado por Abelardo Lupion (PFL-PR), propondo, entre outras medidas, uma lei que considere crime hediondo a ocupação de terra, principal forma de pressão dos movimentos sociais que atuam no campo. De acordo com informações do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a maioria dos cerca de 6.424 assentamentos, base de projetos de reforma agrária, teve origem em ocupações. No dia 6, parlamentares que defendem a reforma agrária se encontraram com alguns ministros, como Márcio Thomaz Bastos (Justiça) e Miguel Rossetto (Desenvolvimento Agrário), e Hina Jilani, representante especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Defensores de Direitos Humanos, e lhes entregaram o relatório apresentado por João Alfredo na CPMI da Terra.
Os coronéis do agronegócio Deputados federais
Ronaldo Caiado (PFL-GO)
COMPOSIÇÃO MÚLTIPLA Segundo o estudioso do Inesc, os partidos que compõem, majoritariamente, a bancada ruralista são: PMDB, PP, PFL, PSDB, PL,
Alvaro Dias (PSDB-PR)
César Borges (PFL-BA)
Abelardo Lupion (PFL-PR)
Darcísio Perondi (PMDB-RS)
Gilberto Mestrinho (PMDB-AM)
Ney Suassuna (PMDB-PB)
Geddel Vieira (PMDB-BA)
Jader Barbalho (PMDB-PA)
Osmar Dias (PDT-PR)
Romero Jucá (PMDB-RR)
Com Lula, os senhores da terra se deleitam
ABUSO DE PODER Para a deputada federal Luci Choinacki (PT-SC), que participou da entrega do documento, é preciso denunciar, nacional e internacionalmente, a ação dos ruralistas na Comissão. “Os fazendeiros têm uma força desproporcional na Câmara e abusam de seu poder. A criminalização de movimentos sociais, intenção deles no relatório da CPMI da Terra, é um meio para barrar a reforma agrária”, afirma Luci. Para os deputados comprometidos com a mudança social, acrescentou, resta denunciar a truculência dos ruralistas e articular grupos que defendam os direitos humanos e a democracia. A força dos fazendeiros não é um resíduo do passado. Tampouco é algo desarticulado. É a expressão moderna e organizada da hegemonia do atraso. De fazendeiros e empresários agrícolas que se articulam para preservar, intactos, seus privilégios. A avaliação é do cientista político Edélcio Vigna, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que estuda e acompanha as estratégias e as ações da bancada ruralista. Segundo Vigna, a bancada ruralista é composta por 73 deputados federais, de um total de 440. Os expoentes são os que conquistam visibilidade por sua truculência (veja quem são, acima). Para definir os ruralistas, o cientista político usa as declarações dos próprios parlamentares, que constam do Repertório Biográfico da Câmara dos Deputados. Vigna considera que os auto-proclamados ruralistas tenham a capacidade de reunir, na defesa de seus projetos e interesses, cerca de 120 deputados.
Senadores
José Thomaz Nonô (PFL-AL)
Kátia Abreu (PFL-TO)
Onyx Lorenzoni (PFL-RS)
Xico Graziano (PSDB-SP)
PTB e PPS. Na base dessas agremiações, estão os deputados que apóiam o grupo no Congresso. Para Vigna, a bancada ruralista não é uma organização formalizada dentro do Congresso. “Não tem líderes definidos. Não tem normas de organização. Não tem regimentos de comportamento ou períodos de reunião. Não tem plataforma. Não é um todo orgânico institucionalizado”, explica. Ele define a bancada como um conjunto suprapartidário de deputados que se articulam em defesa de seus interesses localizados, sujeitos a flutuações conjunturais. Segundo o cientista político, a linha da bancada depende de orientações de duas entidades: a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), quando está em pauta a política agrícola, e a União Democrática Ruralista (UDR), em relação à reforma agrária. Luci Choinacki considera as entidades como “a expressão do que há de mais violento na sociedade brasileira, pois são responsáveis pela morte de muitos trabalhadores rurais”. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre janeiro e agosto deste ano, foram assassinadas 28 pessoas em conflitos agrários (leia mais na página 8). A linha dos deputados ruralistas
é negociada e adotada por senadores. Um deles, Alvaro Dias (PSDB-PR), presidiu a CPMI da Terra e, segundo Luci, manobrou para garantir a aprovação do relatório dos senhores da terra na Comissão (veja lista de alguns senadores ruralistas acima, à direita).
CONCENTRAÇÃO Luci avalia que o centro da questão é a estrutura fundiária brasileira. “A concentração de terras no Brasil é desumana e ilegal. A estratégia dos ruralistas é impedir que isso seja debatido e transformado”, explica. De acordo com dados do Incra de 2003, as 32.264 grandes propriedades (com mais de 2 mil hectares) correspondem a menos de 1% do total de imóveis, e controlam 31,6% dos 420 milhões de terras disponíveis. Para Vigna, a bancada se articula quando seus interesses estão em risco, como no caso de crises agrícolas ou de discussões sobre reforma agrária. “Isso faz com que o Congresso Nacional, pilar da democracia, não seja mais do que um hospedeiro para as posições totalitárias dos ruralistas. Ou o governo democratiza a terra, ou setores conservadores vão continuar usando a democracia para impor sua força e o poder do atraso”, conclui.
A bancada ruralista nunca foi tão influente e poderosa quanto no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, desde a redemocratização do país, em 1985. A afirmação é do cientista político Edélcio Vigna, para quem os fazendeiros controlam cargos de grande importância, tanto no Legislativo quanto no Executivo e conseguem pressionar o presidente a se curvar a seus interesses. Indício disso, diz, é que os parlamentares fazendeiros foram mais recebidos na sede do governo – o Palácio do Planalto – do que representantes do núcleo agrário do Partido dos Trabalhadores (PT), agremiação do presidente. O principal cargo à disposição dos senhores do agronegócio é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que Vigna chama de “balcão de negócios da bancada ruralista, tanto para a política interna quanto para a externa”. Ele diz que os senhores da terra também controlam postos-chave no Ministério da Ciência e Tecnologia (que decide sobre transgênicos, entre outras questões). Na Câmara dos Deputados, dominam a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, que define se projetos de lei ligados à questão agrária são mantidos ou arquivados. Preside a Comissão o deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO). Para as articulações no plenário, o vice-presidente da Câmara, José Thomaz Nonô (PFL-AL), defende a posição da bancada. Nessa tarefa, diz Vigna, recebe o apoio do governador do Rio Grande do Sul, Germano Rigotto (PMDB).
CAPACIDADE DE PRESSÃO A bancada ruralista se aproveita da crise política que assola o governo Lula para aumentar sua força, avalia Vigna. Isto porque serve de fiel da balança em votações importantes para o presidente. “Um de seus expoentes diz a Lula que pode votar a favor de seu projeto. Como
a base governista está desmanchada, os ruralistas acabam pesando muito. Assim, conseguem pressionar Lula para que ele assuma a linha que defendem”, explica. O cientista político considera que a bancada vota de modo disciplinado, “não porque haja identidade ideológica ou doutrinária entre os deputados, mas porque têm interesses financeiros em comum”. Segundo ele, os ruralistas usam qualquer meio disponível para atingir seus objetivos, até mesmo a agressão. Deputados ligados ao agronegócio estimularam o tratoraço, como ficou conhecido o protesto de latifundiários que bloquearam vias de acesso a Brasília com tratores, em 26 junho. Organizada pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a mobilização exigia mais investimentos públicos para a produção em grandes propriedades. “Caiado, que defendeu diretamente o tratoraço, é a expressão dessa linha truculenta dos ruralistas. Ele tem como missão e estilo a agressão a seus adversários. Na violência, ele é o mentor do grupo”, define Vigna. Dentre as pressões no governo, os ruralistas conseguiram impor a defesa de seus interesses na estratégia de representantes brasileiros na 6ª Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que vai ocorrer em Hong Kong, na China, entre os dias 13 e 18. Segundo Vigna, a perspectiva do Mapa foi adotada, sem críticas, pelo Ministério das Relações Exteriores, cujos funcionários são responsáveis pelas negociações no encontro (leia mais na página 11). De acordo com a deputada federal Luci Choinacki (PT-SC), que se opõe à política da bancada ruralista na Câmara, a estratégia dos senhores da terra é uma “abertura total e irrestrita do mercado agrícola”. Segundo ela, isso coloca em risco a agricultura familiar, que depende de salvaguardas para se desenvolver. (JAP)
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De 8 a 14 de dezembro de 2005
Espelho
DIREITO À COMUNICAÇÃO
No ar, a voz das minorias
Cid Benjamin
Ninguém deu bola O colunista Diogo Mainardi, de Veja, tenta imitar Paulo Francis – falecido jornalista de direita, cuja inteligência era inegável. Mas Mainardi é a caricatura de Francis. Na última Veja, lista “governistas infiltrados” na mídia e diz que tenta adivinhar “a que corrente do lulismo pertence cada jornalista”. Deve estar se rasgando: ninguém o leva a sério. JB na vanguarda? O outrora respeitado Jornal do Brasil segue ladeira abaixo. Acaba de perder seu nome mais respeitado: o colunista Ricardo Boechat, que pediu a conta. O jornal merece a piada do colunista Tutty Vasques, na página de internet No Mínimo. “Se é verdade que a imprensa de papel vai acabar, pode-se dizer que o JB, sempre à frente de seu tempo, está na vanguarda desse movimento. Essas coisas o Diogo Mainardi não vê!” O Globo dá uma dentro Dia 4, O Globo abordou um problema crucial: a morosidade do Judiciário. Conta que o Conselho Nacional de Justiça deu 60 dias para que seja julgado um processo em Iaciara (GO). Detalhe: o processo tramita há 38 anos. Seria bom que o órgão apressasse também o julgamento de processos trabalhistas que se arrastam, enquanto os patrões aplicam o dinheiro no mercado financeiro. O Globo dá uma fora Com o slogan Ilegal, e daí?, O Globo denuncia que nas favelas não são respeitadas normas urbanísticas. Parece algo encomendado por especuladores imobiliários, interessados na remoção de favelas em áreas valorizadas do Rio de Janeiro. Mas, se a questão é fazer cumprir as leis, duas sugestões, baseadas em determinações da Constituição, para o jornal ampliar a campanha: 1) o valor do salário mínimo não é suficiente para prover o sustento de uma família; 2) é preciso fazer uma auditoria na dívida externa. Preconceito contra Chávez O tratamento da mídia brasileira às eleições venezuelanas deixa clara a ojeriza ao processo revolucionário em curso naquele país. A ampla maioria obtida pelo presidente Hugo Chávez é apontada como ameaça à democracia – como se ele não fosse o governante mais julgado, e aprovado, nas urnas em todo o mundo nos últimos anos. Elio Gaspari foi exceção: em artigo na Folha de S. Paulo e no O Globo, denunciou a estratégia golpista da direita. Milésima execução nos EUA Os Estados Unidos fizeram a milésima execução desde que a pena de morte voltou a vigorar, em 1976. Kenneth Boyd – que matou a mulher e o sogro – foi executado com uma injeção letal na Carolina do Norte. A imprensa brasileira registrou o fato, sem qualquer tom crítico. Muito diferente de quando Cuba executou três condenados à morte em 2003! Estão falando do Arizona? Os jornais informam que o governo estadunidense se prepara para “organizar a transição” em Cuba depois da morte de Fidel Castro. Dizem que os EUA “não estão dispostos a aceitar que o poder seja transferido para Raul Castro”. Meu filho fez uma pergunta pertinente: “Por acaso, eles estão falando do Arizona?” Interessante como a mídia reporta às manifestações abertas de ingerência dos EUA em assuntos de outros países como se fosse algo natural.
Para procurador do Ministério Público, a mídia é um espaço público que foi privatizado Bel Mercês da Redação
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urante um mês, a população brasileira vai constatar que existe uma outra TV possível, além do que lhe está sendo impingido pelas redes comerciais. Um acordo assinado dia 15 de novembro entre a Rede TV!, o Ministério Público Federal (MPF) e seis entidades da sociedade civil – das áreas de direitos humanos, comunicação e do movimento Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros (GLBT) – obriga a emissora a exibir o programa Direitos de Resposta, entre dezembro de 2005 e janeiro de 2006. O programa será a resposta da sociedade civil à violação de direitos humanos, à discriminação contra homossexuais e às manifestações de homofobia veiculadas no quadro de “pegadinhas” do programa Tarde Quente. Apresentado por João Kleber, o programa recentemente foi suspenso da programação da emissora. Em entrevista ao Brasil de Fato, o procurador regional dos direitos do cidadão em São Paulo, Sergio Suiama, que deu início ao processo que resultou na cassação da Rede TV!, contou detalhes do caso que levou uma das maiores emissoras comerciais do Brasil a rever sua grade de programação, falou sobre sua atuação no MPF em questões ligadas ao direito à comunicação, fez críticas ao Ministério das Comunicações e assegurou que seu objetivo é “mostrar que o espaço da mídia pertence ao público e foi privatizado”. Brasil de Fato – O que significou esse acordo com a Rede TV! ? Sergio Suiama – Foi um acordo histórico não no sentido de controlar ou tirar do ar algumas coisas ofensivas, mas no sentido de garantir o direito à comunicação das minorias, de gente que nunca teve espaço nas televisões comerciais pra falar. Isso já vem acontecendo há um tempo no Ministério Público Federal. As primeiras ações foram em Belo Horizonte, por conta do quadro Banheira do Gugu, mas tratavase da questão do sexo em horário impróprio para crianças. Em 2004, constituiu-se o Grupo de Trabalho de Comunicação Social no âmbito da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do qual faço parte. A gente tenta aperfeiçoar os instrumentos, definir a atuação e os casos em que se pede para não exibir determinados programas ou indenização moral por dano coletivo. Mas é a primeira vez que a gente assegura, de fato, esse espaço para as entidades exibirem suas produções. BF – Houve um caso na TV Record, por ofensa às religiões afro-brasileiras? Suiama – Sim, foi um pedido de direito de resposta e a gente ganhou a liminar. Eles recorreram e conseguiram uma definição do Supremo Tribunal de Justiça, dizendo que a exibição estava suspensa até o julgamento do recurso, que começou agora, mas ainda não foi concluído. Nós produzimos um programa lindo no Tuca (Teatro da PUC-SP), um diálogo de religiões. Seria um programa de uma hora, durante uma semana. Estamos aguardando o julgamento do recurso para exibir. BF – Cabe ao MPF fiscalizar o uso indevido de concessões públicas na violação dos direitos humanos ou existe outro órgão institucional que deveria fazer isso?
Homossexuais reivindicam cidadania plena em manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo
Suiama – Na verdade, a fiscalização não deve ser do MPF, mas do Ministério das Comunicações, que criminosamente não faz isso. Eu oficiei a Secretaria de Comunicação Eletrônica, perguntando quantas apurações eles tinham em relação à violação dos direitos humanos. Eles responderam que tinham três, uma no caso do Programa do Ratinho, aquela entrevista do PCC no Gugu e o caso da Record, que também foi instaurado por iniciativa do MPF. No caso do Ratinho, houve aplicação de multa. No caso do Gugu, um parecer que determinava a suspensão, por 24 horas, da programação do SBT. Mas essa sanção foi substituída por uma multa de R$ 1 mil. Mil reais! Eles acham mais relevante fiscalizar rádio comunitária do que verificar se a Globo ou a Record ofendem os direitos humanos. BF – Por que as coisas acontecem dessa maneira? Suiama – Há um interesse claramente político ali, é um órgão inoperante e foi feito pra isso, pra não incomodar nenhuma grande emissora comercial. Eles alegam que ficaram muito prejudicados com a criação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) porque todos os equipamentos que eles tinham foram deslocados para lá. A Anatel não faz fiscalização de conteúdo, só olha questões técnicas, então ficou esse vácuo proposital e contrário à lei. O Código Brasileiro de Telecomunicações exige que a União fiscalize, mas ela não fiscaliza. A nossa ação visa obrigá-los a cumprir sua função de fiscalizar. Se eles não fizerem isso, a gente vai responsabilizá-los por improbidade administrativa. BF – Isso já está em andamento? Suiama – Já, nós propusemos para eles um acordo, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), pelo qual eles se obrigariam a criar um canal para denúncias. Porque o telespectador não tem como denunciar ao órgão fiscalizador, que por excelência deveria ser o ministério. Nesse TAC, também deveriam instaurar obrigatoriamente fiscalizações quando houvesse notícias encaminhas pelo Ministério Público, pela Comissão de Direitos Humanos e pelo Ministério da Justiça. Deveriam justificar todas as decisões, sejam elas favoráveis ou contrárias às emissoras. Enfim, um pacote de medidas que obriga o órgão a
cumprir suas funções. Eles ficaram de estudar e entraram com um argumento jurídico para não fazer. BF – Em relação à ação e ao acordo com a Rede TV!, o Ministério das Comunicações se pronunciou ou procurou o MPF? Suiama – Não, a Rede TV! estava descumprindo a decisão da Justiça, então eu mandei um ofício ao ministério comunicando e pedindo que eles instaurassem um procedimento para apurar esse descumprimento. Mas é realmente impressionante a inoperância e a omissão do Ministério nessa questão de controle social dos meios de comunicação. É como se não existisse um órgão fiscalizador. As pessoas não sabem que elas têm direito e podem reclamar, então o MPF acabou assumindo essa função, de fiscalizar as emissoras junto com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, por meio da Campanha pela Ética na TV e do Ministério da Justiça. Esses três órgãos são os que têm uma atuação mais forte em matéria de comunicação social e controle social. BF – Como o senhor vê a distribuição das concessões pelo Ministério das Comunicações? Suiama – O modelo brasileiro privilegiou completamente as empresas comerciais e se sustenta em dois pilares: o privilégio quase absoluto das emissoras comerciais e o coronelismo eletrônico, a troca de concessões e propriedades de empresas por políticos. Não existe a complementaridade entre os sistemas público, estatal e privado, que está assegurada na Constituição. As emissoras comerciais são maioria e buscam o lucro fácil. Nessa busca vale tudo, vale humilhar, mostrar aberrações de todo o tipo. Fora que o espaço de freqüência é muito limitado, não cabe todo mundo. Então eu acho que a discussão da TV Digital é muito importante para a construção de um sistema público. Mas isso não tem sido feito pelo (ministro das Comunicações) Hélio Costa, que quer privilegiar a restrição da freqüência, continuar com alguns poucos canais. BF – Esse caso da Rede TV! aproximou do tema da comunicação entidades de outras áreas? Suiama – O grande desafio dos movimentos setoriais é perceber
Arquivo Pessoal
Por que dinheiro vivo? Os jornais noticiaram o depósito de R$ 1 milhão feito pelo PT para a Coteminas, empresa do vice-presidente José Alencar. Segundo o PT, foi uma ‘operação não contabilizada’. “Tem a ver com práticas informais da gestão anterior”, informou o tesoureiro Paulo Ferreira. Mas o que ele não explicou – e ninguém perguntou! – foi a razão pela qual o depósito foi em dinheiro vivo. Afinal, não é usual alguém andar com R$ 1 milhão pela rua.
Divulgação
da mídia
NACIONAL
Quem é Advogado formado pela Universidade de São Paulo (USP), Sergio Suiama é procurador do Ministério Público Federal desde 2002. Em fevereiro deste ano, assumiu a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, onde aprofundou sua atuação em questões ligadas ao direito à comunicação. Antes disso, trabalhou na área de defesa criminal, entre 1998 e 2002. a importância do direito à comunicação. O espaço público da televisão, do rádio, dos jornais, é um espaço político. Os movimentos têm que ocupar esses espaços, hoje privatizados. São oito ou nove famílias que detêm o monopólio dos meios de comunicação de massa. A luta política passa por duas vertentes: primeiro garantir que esses monopólios cumpram a Constituição e respeitem os direitos fundamentais, principalmente os direitos das minorais; por outro lado, não é só controlar o que as emissoras dizem, mas também garantir o espaço de quem não tem voz, como um processo de luta política. Fala-se em censura, que a gente está censurando as emissoras, mas quem faz censura são elas, que dizem o que querem e não abrem espaço pra quem não concorda com aquilo. Não é possível a gente imaginar que todos os brasileiros estão ali representados por essas oito ou nove vozes. Aqueles que militam nessa área devem aproximar seu discurso de outros movimentos como as feministas, o movimento negro, os sem –terra. De outro lado, deve haver um discurso para toda a sociedade. O objetivo do programa Direitos de Resposta é mostrar que o espaço da mídia pertence ao público e foi privatizado.
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NACIONAL CRISE POLÍTICA
José Dirceu cai, Inocêncio fica Marcelo Netto Rodrigues da Redação
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or 36 votos além do mínimo necessário, o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, está fora da Câmara dos Deputados e perde os direitos políticos por oito anos. O agora ex-deputado federal amargou, dia 1º, 293 votos a favor da cassação de seu mandato. Durante a sessão, uma cena bastante ilustrativa das contradições que permeiam a crise política: o deputado Inocêncio de Oliveira (PL-PE) integrando a Mesa Diretora da Casa para contabilizar os votos “sim”, pela cassação de um suposto “chefe de esquema de corrupção”. Inocêncio está na Câmara desde 1975, sem nenhuma interrupção de mandato, apesar de recorrentes acusações de desvio de dinheiro público – tendo sido inclusive condenado por trabalho escravo em sua fazenda.
José Cruz/ABR
Julgamento político cassa direitos de ex-ministro, em derrota lamentada por representantes da esquerda é uma derrota para a esquerda, do ponto de vista da biografia do Zé, de sua história. Portanto, não é para se ter alegria”.
EDUARDO AZEREDO
DIREITO DE DEFESA O toque patético da situação fica por conta de um ato falho de Dirceu durante seu depoimento ao Conselho de Ética da Câmara, quando disse “eu sou inocêncio”, em vez de “eu sou inocente”. Ironias à parte, o fato é que Dirceu caiu e Inocêncio continua firme. Para agravar mais o quadro da crise, a mídia voltou a tratar o ex-deputado como o ex-capitão do time, o ex-superministro, o ex-comandante, o ex-homem-mais forte do governo, na tentativa de aumentar o peso político à sua queda. Na opinião do senador Eduardo
José Dirceu discursa durante a sessão que cassou seu mandato de deputado federal por quebra de decoro parlamentar
Suplicy (PT-SP), a cassação de Dirceu foi apressada: “Os integrantes das CPIs agiram precipitadamente”. Nas circunstâncias em que a cassação ocorreu, “acabou prevalecendo mais uma votação de natureza política do que uma avaliação com base em prova cabal dos fatos apontados no relatório”, disse o senador, lembrando que a CPI dos Correios ainda não concluiu seu relatório. Ainda segundo
Suplicy, Dirceu pecou em não manifestar uma eventual “vontade de comparecer” às CPIs para completar com “profundidade” a sua defesa. Para o ex-petista Chico Alencar – agora deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro –, a falta de tempo para defesa não pesou tanto para a cassação de Dirceu. “Ele foi cassado muito mais pelas aproximações e alianças com o
fisiologismo, com o clientelismo, com as forças reacionárias de agora, que o levaram a um beco sem saída. Dirceu foi cassado não pelo o que representou historicamente, mas pelo que deixou de representar”, analisa Alencar. Mesmo tendo votado pela punição de José Dirceu, Alencar considera que a cassação do petista não significa avanço para as forças progressistas do país: “Sempre
TRANSGÊNICOS
Com relação à sugestão do secretário-geral do PT, Raul Pont, de a bancada petista no Senado abrir um processo semelhante ao de Dirceu no Conselho de Ética da Casa, contra o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), Suplicy acha que “não é tanto tarefa do Senado porque não se trata de uma ação cometida durante o mandato do senador Azeredo. Mas é possível que haja uma representação do PT junto ao Ministério Público, se o caso não couber no âmbito da CPI mista dos Correios, cujo relatório ainda não foi concluído”. Alencar é de opinião parecida: “Não só o PT, como o próprio PSOL, já devia ter tomado essa iniciativa. Tenho cobrado do meu próprio partido que leve o caso do Azeredo para ser investigado no Conselho de Ética, assim como nós levamos o caso de um correligionário nosso, o senador Geraldo Mesquita, que até se licenciou do partido até que tudo seja apurado”. A representação petista deverá ser confirmada no dia 10, durante reunião do Diretório Nacional do partido. Ao comentar o desconforto de ver Inocêncio contando os votos a favor da cassação de Dirceu, Alencar foi espirituoso: “Pois é, vivemos num tempo de cartas embaralhadas”.
EMPREGO
Metalúrgicos cobram Contaminação de milho no Rio Grande do Sul chega a 93,5% compromisso do governo da Redação Após ter minimizado a denúncia da venda ilegal de milho transgênico no Rio Grande do Sul, o superintendente do Ministério da Agricultura no Estado, Francisco Signor, confirmou que as amostras analisadas a pedido do ministério indicaram contaminação de 93,5%, mais de três vezes superior ao valor encontrado pelo deputado estadual Frei Sérgio (PT), que fez a denúncia pública do problema. Signor informou que a questão será levada ao Ministério Público Federal e a investigação caberá à Policia Federal. Essas mesmas medidas já haviam sido tomadas pelo deputado, que também integra o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Signor ainda acrescenta: “Já temos a soja transgênica. Com o milho geneticamente modificado, o gado se alimentará desses produtos e o consumidor comerá carne contaminada por transgênicos”. O superintendente também alerta para o fato de que “o
Rio Grande do Sul perderá mercado lá fora”, por conta da disseminação do milho transgênico. A semente que está sendo vendida ilegalmente apresenta genes da variedade GA21, da empresa estadunidense Monsanto. Assim como no caso da soja Roundup Ready (RR), esse milho é resistente ao herbicida Roundup, igualmente da Monsanto. A companhia é responsável ainda pelo algodão transgênico que também entrou de forma ilegal no país e que a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) correu para legalizar. Quando começou a cobrar royalties pelo uso da soja transgênica, a Monsanto demonstrou que, quando quer, pode implementar um amplo e rigoroso sistema de controle sobre a produção obtida a partir de sua propriedade, isto é, as sementes patenteadas. Aqui no Brasil, essa etapa só se deu após a disseminação das sementes RR pelo Rio Grande do Sul, e por outros Estados em menor escala, após o governo aceitar o fato como consumado. Contudo, a
João dos Santos e Silva de Porto Alegre (RS)
empresa não moveu uma palha para evitar a disseminação de sementes não autorizadas para uso, nem no caso da soja, nem no do algodão, nem agora com o milho.
Derli José Calescura é um dos 290 funcionários da Recrusul, metalúrgica localizada no município de Sapucaia do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, que luta para manter o emprego. A empresa suspendeu a produção, deixando os trabalhadores sem perspectivas. Com salários atrasados, sem vale-transporte, sem alimentação e com contas de água, luz e telefone vencidas, dia 5, um grupo de cerca de 70 funcionários saiu de Sapucaia do Sul para protestar em frente à casa do principal dirigente da empresa, na capital. Conseguiram arrancar do empresário a promessa de uma reunião na sede do sindicato patronal, em São Leopoldo, município vizinho de Sapucaia do Sul.
INSTABILIDADE GENÉTICA Estudos já levantaram evidências de que a maioria, senão todos os transgênicos produzidos comercialmente, é geneticamente instável e desuniforme, resultado do próprio processo de manipulação genética. O milho GA21 é um exemplo desse fenômeno. Uma pesquisa conduzida por dois laboratórios franceses mostrou que os genes nele inseridos se rearranjaram e adquiriram estrutura diferente daquela relatada pela própria empresa. Em setembro de 2003, a Monsanto informou à Comissão Européia que estava desistindo de seu pedido para aprovação do milho GA21. Mais tarde, em maio de 2005, foi feita uma nova tentativa de se autorizar a entrada dessa variedade na Europa, mas a Comissão Européia rejeitou o pedido.
APOIO O protesto em Porto Alegre foi apenas mais um. Em 10 de novembro, os trabalhadores interromperam o trânsito na BR 116 nas proximidades da Recrusul, para apresentar o problema à sociedade. O apoio da comunidade sapucaiense tem sido fundamental para o atendimento de necessidades
Assentados conquistam frigorífico de peixe Dirceu Pelegrino Vieira de Chapecó (SC) As 1500 famílias assentadas em Abelardo Luz, no oeste catarinense, comemoraram uma grande conquista. Depois de vários anos de luta, foi assinado, dia 5, um convênio entre a Cooperativa Central de Reforma Agrária de Santa Catarina e a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca para construção de um frigorífico de peixe, obra que custará R$ 1,3 milhão. Além dos assentados, serão bene-
ficiados pequenos agricultores de nove municípios da região, que vão dispor também de capacitação em produção de peixes. Em 1996, um planejamento das linhas produtivas nos assentamentos de Abelardo Luz, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), definiu como prioridades as produções de leite, peixe, mel, pólen e grãos. Foram investidos, na época, mais de R$ 1,5 milhão na construção de açudes. A partir de 1998, seriam implantadas as indústrias de leite, peixe e mel,
mas o governo Fernando Henrique Cardoso não liberou os recursos. O presidente da Cooperativa dos Trabalhadores da Reforma Agrária de Santa Catarina e vereador Joel Tomazi lembrou: “FHC cortou os recursos dos assentados, cortou a assistência técnica e não liberou dinheiro para a agricultura familiar”. Em 2003, foi enviado à Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca o projeto do frigorífico, que terá capacidade para industrializar oito toneladas de peixe por dia.
PMDB OMISSO Os problemas vêm desde 2001, quando os salários começaram a atrasar. O INSS não vê a cor do dinheiro da Recrusul há dois anos, e o FGTS, há um ano. O presidente estadual da CUT, Quintino Severo, questiona a falta de compromisso do governo estadual com o emprego. Informado sobre o problema, o governo Rigotto, do PMDB, não tomou qualquer iniciativa para reverter a situação. Há possibilidade de a empresa ser vendida. Um comprador, cujo nome é mantido em sigilo, pode ficar com as instalações da fábrica e com 70% dos funcionários. Os demais seriam dispensados, assim como os 60 trabalhadores que estão afastados por problemas de saúde. Os que permanecerem terão seus atuais contratos de trabalho rescindidos.
João dos Santos e Silva
AGRICULTURA FAMILIAR
mínimas, como alimentação. “São muitas as manifestações de solidariedade que temos recebido dos moradores da cidade, isso nos tem ajudado muito”, diz João Carlos Brum, funcionário da Recrusul e dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Leopoldo e Região. Apoio também recebido de sindicatos cutistas e da CUT estadual.
Protestos de funcionários: Recrusul suspendeu a produção e pode ser vendida
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NACIONAL LIVRE OPÇÃO SEXUAL
Igreja proíbe padres homossexuais
Hamilton Octavio de Souza
Bento 16 ordena exclusão de gays, enquanto pedofilia avança entre religiosos da Redação
Declaração infeliz A queda do PIB no 3º trimestre do ano foi um banho de água fria no governo, um cala-a- boca na dupla Palocci-Meirelles e decepção generalizada na sociedade – pelo menos nos setores que apostavam no crescimento econômico. Apesar do desastre evidente, o presidente Lula fez discursos e deu declarações de que o fato não preocupa nem um pouco. É inacreditável a insensibilidade e a alienação do cidadão!
A
primeira grande determinação do papa Bento 16 adota uma linha dura sobre o acesso dos homossexuais ao clero. Documento divulgado pelo Vaticano no fim de novembro afirma que a Igreja, “embora respeitando profundamente as pessoas em questão”, não pode aceitar como seminaristas ou padres “aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas ou apóiam a chamada cultura gay”. Por trás dessa medida, o Vaticano visa moralizar a Igreja. A discussão sobre a homossexualidade não é nova, mas a ordem do papa surge em um momento em os escândalos de padres pedófilos explodem. “Os padres que cometem pedofilia com meninos não são homossexuais. São doentes. Adoecem justamente porque têm sua sexualidade reprimida. Trata-se de uma patologia que precisa ser tratada”, ressalta Beto de Jesus, do Instituto Edson Neris (SP) e secretário do ILGA (International Lesbian and Gay Association) para América Latina e Caribe. “Os homossexuais não são os responsáveis pela pedofilia. Grande parte dos casos de abuso, pedofilia e violência é causada por pessoas da própria família da vítima, que não são homossexuais”, avalia o ativista, para quem a medida é uma defensiva da Igreja. “Na verdade, o problema tem a ver com os avanços da comunidade homossexual na conquista de seus direitos”, avalia. “Ela também pressiona os padres e religiosas que são progressivos e apóiam a opção
Sem limites Durante o encontro estadual do PT paulista, dia 4, os delegados aprovaram moção de apoio aos deputados federais ameaçados de cassação, lançaram candidatos ao governo do Estado, aplaudiram de pé o ex-presidente José Genoíno e ainda defenderam a recondução do ex-deputado José Dirceu para a direção partidária. Tudo em clima de muita festa! Sucesso absoluto Cassado por falta de decoro parlamentar na semana passada, o exdeputado e ex-ministro José Dirceu, que já foi o homem forte do governo Lula, não perdeu o apoio político dentro do partido; em declaração para os jornais, o presidente do PT do Distrito Federal, Chico Vigilante, afirmou: “O Zé é um dos maiores estrategistas políticos deste país e uma voz que o PT sempre vai parar para ouvir”. Crise? Qual crise? Cassação premiada Também cassado por falta de decoro parlamentar, o ex-deputado Roberto Jefferson perdeu o direito de concorrer a cargo eletivo por dez anos, mas não perdeu a mordomia dos privilegiados deste país: está recebendo uma aposentadoria mensal de R$ 8.809, quase trinta vezes mais do que ganha um trabalhador honesto aposentado pelo salário mínimo. Não há nenhum protesto de partidos e parlamentares contra essa aberração.
sexual das pessoas. O Vaticano quer mostrar que não tolera esse apoio”, analisa. De acordo com a instrução, reitores e formadores dos seminários são responsáveis por discernir a vocação do seminarista. Se houver dúvidas, não podem admitir a ordenação. Para Beto de Jesus, o documento tem forte cunho repressor: “É uma violência absurda, para os homossexuais que estão em seminários e na igreja, dedicando a sua vida por amor, ter que esconder sua personalidade. É uma violência também do ponto de vista psicológico. Foge à caridade pregada por Jesus, que acolhia a todos que viviam à margem da sociedade”. O documento do Vaticano diz
Homenagem a Médici: uma triste lembrança Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) Apesar de também ser gaúcho, Cilon da Cunha Brum não compareceu à cerimônia em homenagem ao centenário de Emílio Garrastazu Médici, presidente militar entre 1969 e 1974. A solenidade ocorreu dia 5, em Porto Alegre. Em homenagem a Médici, os generais Carlos Alberto Pinto Silva, comandante Militar do Sul, e José Carlos De Nardi, comandante da 6ª Divisão de Exército, leram a biografia do gaúcho de Bagé – Milito, para os íntimos – “que deixou um legado de amor ao Brasil”. Tal legado não se refere apenas às construções da ponte Rio-Niterói, da Transamazônica e da hidrelétrica de Itaipu. Médici também foi exaltado por seus feitos pela “contra-revolução democrática de março de 1964”. Emílio Garrastazu Médici nasceu em 1905, ingressou no Colégio Militar de Porto Alegre em 1918. Aderiu ao golpe de Estado de Getúlio Vargas em 1930. Em 1960, foi designado subcomandante da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), chegando a comandante – cargo que ocupava no dia do golpe militar que
derrubou João Goulart da Presidência da República. Médici tornou-se chefe do Serviço Nacional de Informações, em 1967, no período Costa e Silva. Um ano depois, era instituído o Ato Institucional número 5 (AI-5), pacote de medidas criado para reprimir a mobilização da sociedade contra a ditadura. Médici foi guindado à Presidência da República em 1969, com uma nova Constituição que manteve o AI-5. Gaúcho de São Sepé (RS), o estudante Cilon da Cunha Brum, militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), tinha 28 anos quando desapareceu na guerrilha do Araguaia. Teria 59 anos na data do centenário de Médici. O ex-militar Carlos Lamarca teria 68 anos. O mineiro Lucimar Brandão Guimarães, 57. A professora paulista Iara Iavelberg teria 61 anos. O gaúcho Evaldo Luís de Souza, 63. No entanto, esses – entre tantos – foram mortos no período Médici, que deixou a Presidência em março de 1974 e morreu em 1985, aos 80 anos. Nenhum dos desaparecidos políticos pôde comparecer às comemorações de seu centenário, realizadas com muita pompa num fim de tarde quente na capital gaúcha.
Daniel Cassol
Investida geral Setores empresariais ligados ao capital estrangeiro estão fazendo enorme pressão para o Brasil escancarar ainda mais a economia para o mercado internacional, com o desbloqueio de áreas sob proteção e a redução dos impostos de importação. A imprensa entreguista está produzindo um amplo material para “provar” que o pífio crescimento da economia brasileira resulta da pequena globalização do país. O capital quer muito mais.
Sacanagem pesada Esta coluna publicou meses atrás uma nota denunciando a empresa estadunidense Monsanto de usar para o milho transgênico a mesma estratégia usada para a soja transgênica: facilita a entrega da semente contrabandeada para o agricultor e cria o fato consumado, com conseqüências econômicas e sociais. Agora, autoridades do Rio Grande do Sul confirmaram que o crime existe mesmo. O que vai acontecer com a Monsanto?
Homossexuais católicos reivindicam respeito e mais espaço na Igreja e criticam posição do Vaticano
que as tendências homossexuais podem ser somente “expressão de um problema transitório” e devem ser claramente superadas pelo menos três anos antes da ordenação. “Qual o medidor que eles vão usar?”, questiona Beto de Jesus, que prepara, junto com outras instituições do movimento e nomes que apóiam a livre opção sexual, um documento em protesto à posição do Vaticano.
DEBAIXO DO TAPETE Na opinião do teólogo Alfredo Ligorio Soares, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), a decisão do Vaticano é equivocada. “Aproxima, de forma perigosa e preconceituosa, a idéia de pedofilia à homossexualidade”, destacou. O
teólogo lembra que a pedofilia é uma perversão que tanto pode se manifestar em homossexuais quanto em heterossexuais. “A medida reforça uma idéia pejorativa em relação à homossexualidade, aproximando-a da doença e da perversão”, diz. De acordo com as organizações médicas mundiais, homossexualidade não é considerada patologia. Enquanto a polêmica se acirra, o Vaticano deixa de discutir questões importantes, principalmente para a Igreja latina. “A discussão que precisa ser revista, mas é colocada debaixo do tapete, é a do celibato obrigatório”, destaca Soares, lembrando que essa obrigatoriedade não existe nas igrejas orientais, ligadas ao papa e ao Vaticano.
PORÕES DA DITADURA
Meses depois Se não for adiado, terá início no próximo fim de semana o julgamento dos pistoleiros e mandantes do assassinato da missionária estadunidense Dorothy Stang, de 73 anos, ocorrido dia 12 de fevereiro, em Anapu, no Pará. O crime chocou o mundo e revelou o descaso das autoridades com o desmatamento e com a política de assentamentos rurais. A violência e a impunidade continuam fazendo vítimas no campo.
Educação alienada A venda da Universidade AnhembiMorumbi para um grupo estrangeiro revela bem a falta de compromisso do Ministério da Educação, do governo Lula e do Congresso Nacional com a educação: há muito tempo deveria ter sido aprovado o impedimento legal para a entrada do capital estrangeiro nessa área. Se não houver medida urgente, em pouco tempo todo o sistema privado estará fora do controle nacional. Yes, people!
Arquivo Brasil de Fato
Fatos em foco
Militares prestam homenagem ao ex-presidente Médici, em Porto Alegre
Jogo de cena em nome da governabilidade Tatiana Merlino da Redação “Não vejo nada de importante nessa decisão”. A afirmação é de Victória Grabois, primeira secretária do Grupo Tortura Nunca Mais, referindo-se ao Decreto nº 5584/05, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 18 de novembro. O texto fixa a data-limite de 31 de dezembro para tornar públicos os documentos produzidos durante a ditadura militar, mantidos sob sigilo pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). De acordo com Vitória, esses documentos têm pouco valor para recuperar a história do regime militar: “É uma decisão tímida, que serve para dar satisfação à opinião pública”. Para o Tortura Nunca Mais, a ação é uma “manobra” com o objetivo de dar uma resposta às cobranças da Organização das Nações Unidas (ONU), que, no início de novembro, recomendou ao governo brasileiro que garanta o acesso aos documentos produzidos durante a ditadura. “Mais uma vez, em nome da maldita governabilidade, o governo faz jogo de cena”, diz Victória. Os integrantes de entidades defensoras dos direitos humanos lembram que não seria necessário o decreto, para esclarecer os anos de chumbo. “Bastaria revogar a Lei 11.111, de 5 de maio de 2005, que permite ilimitadas renovações dos prazos de sigilo de documentos oficiais”, acredita Vitória. Conforme a lei, todos os documentos que resultem em ameaça à “soberania, integridade territorial ou às relações exteriores” continuarão sob sigilo, incluindo os que se referem à guerrilha do Araguaia. Além disso, as entidades denunciam que, para divulgar os documentos relativos à ditadura, precisam
passar pela Comissão de Averiguações e Análise de Informações Sigilosas, formada por integrantes de seis ministérios e pela Advocacia Geral da União – apelidada de “comissão dos notáveis” pelas entidades da sociedade civil que não têm representantes na comissão. Victória denuncia que nenhum dos governos federais democráticos pós-ditadura teve vontade política para esclarecer as torturas e assassinatos de militantes. “Lamentavelmente, incluimos o governo Lula”, diz. Se houvesse disposição para isso, afirma Victória, o governo teria cumprido a determinação da sentença 307 de 2003, da juíza Solange Salgado, sobre o combate à guerrilha do Araguaia, que pede “a intimação de todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado de quaisquer das operações, independentemente dos cargos ocupados à época”. Para a secretária do Tortura Nunca Mais, “o governo Lula também tem medo dos militares”.
ABRINDO PORÕES Enquanto o governo brasileiro vacila para abrir os arquivos da ditadura, outros países da América Latina instauraram investigações sobre as atrocidades cometidas pelos governos militares nas décadas de 1970 e 1980. Este ano, uma comissão criada no Chile produziu um dossiê sobre o regime de Augusto Pinochet, que deixou cerca de 3,2 mil mortos. Na Argentina, onde mais de 30 mil foram vítimas dos militares, o Senado anulou as leis do Ponto Final e Obediência Devida, abrindo caminho para a prisão de repressores. No Uruguai, Tabaré Vázquez se empenha em localizar os corpos de presos políticos e cobra das forças armadas informações sobre o que ocorreu nos porões da ditadura.
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De 8 a 14 de dezembro de 2005
NACIONAL ATIVIDADE EM DECLÍNIO
Juros escorchantes derrubam economia E governo parte para a manipulação: equipe econômica manobra para esconder queda do PIB e desmoralizar o IBGE Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
Desempenho da economia
Tendência por setor
Principais resultados do PIB a preços de mercado (Do 3º trimestre de 2004 ao 3º trimestre de 2005)
PIB e setores (com ajuste sazonal) Taxa (%) do trimestre em relação ao trimestre imediatamente anterior
V
amos deixar de lado, por um minuto, a lengalenga dos ministros e de seus assessores, a cantilena cansativa de analistas e consultores bem-pagos, que defendem a manutenção da política de juros altos até a última vítima. É só juntar os dados, e comprovar que nada do que eles dizem bate com o mundo real. Porque, nele, as estatísticas divulgadas nas últimas semanas confirmam o forte desaquecimento – queda mesmo – da economia no terceiro trimestre, confirmando o que o Brasil de Fato antecipou em edições anteriores. No terceiro trimestre de 2005, o Produto Interno Bruto (PIB), que soma todas as riquezas produzidas pelo país em um determinado período de tempo, encolheu 1,2% na comparação com os três meses anteriores (quando havia crescido apenas 1,1%). O desempenho negativo, muito abaixo do que governo e mercado esperavam, obrigou as mais badaladas consultorias a revisar para baixo as previsões de crescimento para o ano, já admitindo que a taxa talvez não chegue sequer aos magros 3% projetados até recentemente. Para atingir aqueles 3%, modestos diante do potencial de crescimento da economia brasileira e do cenário internacional, que tem estimulado taxas duas a três vezes maiores para o PIB de outros países em desenvolvimento (ou “emergentes”), o Brasil terá de crescer, nos cálculos do próprio
3º Trim 2004
4º Trim 2004
1º Trim 2005
2º Trim 2005
3º Trim 2005
Acumulado ao longo do ano/ mesmo período do ano anterior
5,0
4,9
2,8
3,4
2,6
Últimos quatro trimestres/ quatro trimestres imediatamente anteriores
4,0
4,9
4,6
4,4
3,1
Taxas (%)
Trimestre/ mesmo trimestre do ano anterior
5,9
Trimestre/ trimestre imediatamente anterior (com ajuste sazonal)
1,4
Fonte: IBGE
4,7
0,8
2,8
0,2
4,0
1,1
1,0
-1,2
Fonte: IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em torno de 4,3% no último trimestre – “façanha” tida como improvável em função da política de arrocho adotada pela equipe econômica do governo Lula. A consultoria Austin Rating, segundo seu economista-chefe, Alex Agostini, reviu sua projeção para a taxa de crescimento do PIB em 2005, reduzindo-a de 3% a 3,5% para 2,6% – o que significaria retomar os níveis medíocres da “era FHC”. Nos últimos dias, setores do governo, sob comando das equipes do Banco Central, presidido por Henrique Meirelles,
e do Ministério da Fazenda, com o ministro Antônio Palocci à frente, articularam uma campanha para amenizar o impacto político negativo causado pela divulgação dos dados do PIB no terceiro trimestre, e até para desacreditar a pesquisa do IBGE. A campanha inclui atos explícitos de manipulação de informações, com o claro objetivo de confundir a opinião pública e impedir alterações de rumo na política econômica – que não será mesmo alterada a prevalecer o ponto de vista de Meirelles e Palocci. A área econômica do governo alega, agora, que os números dei-
Para refrescar a memória da equipe econômica, os números divulgados sugerem que mesmo o desempenho da economia no último trimestre tende a não confirmar os prognósticos mais otimistas. A despeito da proximidade do fim de ano, quando a economia naturalmente costuma experimentar algum aquecimento em função do pagamento do 13º salário e de contratações temporárias realizadas pelo comércio, o emprego tem registrado baixo desempenho desde o começo do segundo semestre e avançou modestamente em outubro, com abertura de apenas nove mil vagas nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE, enquanto a taxa de desemprego se mantém virtualmente estagnada em 9,6% em quase todo o segundo semestre. A massa real de rendimentos pagos às pessoas ocupadas sofreu baixa de 1,4% também entre setembro e outubro. A produção industrial despencou 6,8% em setembro, na comparação com igual período do ano passado, caindo 1,7% frente a agosto deste ano. A desaceleração na indústria surge com clareza na comparação dos dados trimestrais. Entre julho e setembro, a atividade industrial experimentou um avanço de 1,5% em relação aos mesmos três meses do ano passado, mas deu um salto de 6,1% no segundo trimestre do ano. Uma oscilação “natural”, como tem dito Palocci? Não parece ser o caso.
INDÚSTRIA SENTE Termômetro da economia, já que seus produtos são utilizados por quase todos os setores, a indústria de papel ondulado, utilizado na produção de embalagens, literalmente não cresceu de agosto para setembro: registrou uma oscilação de 0,11%. Em outubro, quando se esperava uma reação, o setor recuou quase 2%, acumulando uma variação positiva de apenas 2%
Agência Brasil
Um fim de ano fraco, também?
Meirelles, do BC, e Palocci, da Fazenda, defensores do arrocho na economia
nos primeiros dez meses de 2005. Também em outubro, a produção de veículos recuou 1,5%. A desaceleração aparece com nitidez igualmente nos dados para períodos mais longos, apurados pelo IBGE (e que não estão sujeitos a oscilações e revisões importantes, ao contrário das taxas trimestrais). Considerando-se sempre a variação acumulada em quatro trimestres (12 meses, portanto), até dezembro do ano passado o PIB crescia 4,9% e recuou para 4,4% em junho deste ano. A taxa observada nos quatro trimestres encerrados em setembro já havia recuado para 3,1%.
CAUSAS DA RETRAÇÃO A crise política, alegam as autoridades, contribuiu para esfriar os ânimos de empresários e consumidores, o que teria se refletido sobre o nível da atividade econômica no terceiro trimestre. O diagnóstico é contestado abertamente pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), no documento “O sol e a peneira” – um título apropriado à manipulação arquitetada desde os gabinetes de Palocci e Meirelles. “Não é correta a associação entre o resultado divulgado pelo
IBGE para o PIB brasileiro (...) e a crise política vivida pelo país nos últimos meses”, assinala o trabalho, chancelado pelo diretor-executivo da instituição, Júlio Sérgio Gomes de Almeida. No texto, o economista reconhece que crises políticas podem, de fato, afetar o comportamento da economia. “Mas não há casos em que isso ocorra sem que, antes, essa mesma turbulência ou crise na política não afete o lado financeiro, elevando a cotação do dólar, determinando queda nos índices da Bolsa de Valores e acelerando o aumento de preços”, comenta o Iedi. E conclui: “Nada disso aconteceu em intensidade e duração que possa se configurar como uma conseqüência da crise política”. As causas reais da queda do PIB? Gomes de Almeida aponta: “Parece evidente que estamos diante de um caso clássico, ou de ‘livro texto’, de retração da economia em decorrência dos juros excessivamente altos, do real excessivamente valorizado (em relação ao dólar) e de investimentos públicos excessivamente retraídos (conseqüência da política de arrocho orçamentário implementada pela equipe econômica)”. (LVF)
xam evidentes os estragos produzidos pela overdose de juros, que os dados do IBGE não podem estar corretos, que o PIB não poderia jamais ter caído 1,2% no terceiro trimestre. Para isso, dizem, os números do segundo trimestre deveriam ter acusado baixa de 0,8%, o que não aconteceu. A tentativa de desmoralizar o IBGE – festejado enquanto seus levantamentos mostravam dados mais positivos – demonstra, mais do que uma manobra política, incapacidade de perceber a realidade e mesmo de leitura dos dados concretos – o que diz muito sobre quem tem o dever de decidir sobre o futuro da economia. Diretores do BC afirmam, num exemplo, que nada indicaria a tendência de queda na economia, nem na indústria, muito menos no comércio. O argumento, numa rotina neste governo, não corresponde à realidade.
COMO OS OUTROS ESTÃO CRESCENDO Taxa acumulada de variação do PIB nos quatro trimestres terminados em setembro, frente aos quatro trimestres anteriores Países
Taxa de variação (%)
China*
9,0
Índia
8,0
Indonésia*
6,0
Rússia*
5,5
Malásia
5,3
Chile
5,2
Estados Unidos
4,3
Taiwan*
4,0
México
3,1
Brasil
3,1
(*) Estimativa Fonte: The Economist, FMI, Global Invest e Folha de S.Paulo
O Brasil está na retaguarda Na verdade, os males que afetam a economia brasileira têm origem e causas internas estreitamente vinculadas à política de juros altos, à valorização do real frente ao dólar (que retira o ânimo das empresas exportadoras para investimentos) e ao achatamento dos investimentos públicos, aponta o Iedi. Não há qualquer indicador que sugira uma influência externa nesse (mau) desempenho. Ao contrário. O dinamismo da conjuntura internacional tem até evitado queda ainda maior da economia brasileira. Assim, por exemplo, na formação do PIB, as exportações saltaram 12% na comparação entre o terceiro trimestre deste ano e o mesmo período de 2004. Ou seja, problemas domésticos têm impedido crescimento mais acelerado da economia. “A demanda externa líquida (exportações menos importações) tem sido, de longe, o principal fator de expansão da demanda agregada (total do consumo das famílias, investimentos de empresas e do setor público e gastos do governo)” no país, escreve o professor Reinaldo Gonçalves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E acrescenta: “O resultado dessa dinâmica de crescimento é a crescente dependência com relação à demanda externa”.
FIM DA LINHA O desempenho do Brasil foi um dos piores de um grupo de países selecionados (veja tabela). O PIB do país cresceu magérrimo 1% entre o terceiro trimestre deste ano e os mesmos três meses do ano passado. No México, a taxa foi mais de três vezes maior, já que o PIB avançou 3,3%. Na Coréia do Sul e no Chile, a evolução do Produto foi de quatro a cinco vezes mais intenso, com avanço, respectivamente, de 4,4% e 5,3%. Na Alemanha, que enfrenta
certa estagnação econômica, o PIB avançou 1,4%. Considerando a variação acumulada em quatro trimestres (até setembro) em relação aos 12 meses imediatamente anteriores, o Brasil segue na rabeira, empatado com o México: apenas 3%.
O FMI AVISA Segundo projeções do Fundo Monetário Internacional, que o governo petista leva a sério, o crescimento médio dos países “emergentes” deverá atingir, neste ano, pouco mais de 6,%. Para o Brasil, a expectativa é de menos de 3%. Detalhe: exceções à parte, quase todas aquelas economias vão crescer com inflação sob controle, sem disparada de preços, a despeito do encarecimento dos custos do petróleo – matéria-prima básica que influencia os preços dos combustíveis utilizados no transporte de cargas e pessoas, no aquecimento de residências em todo o Hemisfério Norte e para movimentar caldeiras, turbinas de empresas geradoras de energia e indústrias em geral. Em resumo, nada justifica o baixo crescimento brasileiro, a não ser uma política econômica adotada a pretexto de conter uma inflação que já não ameaça a estabilidade da economia – muito especialmente numa fase de elevação da capacidade ociosa na indústria. Aos números: a inflação medida na capital paulista pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, da Universidade de São Paulo, que aumentou 0,63% em outubro, sob pressão dos preços administrados (com destaque para os combustíveis), subiu 0,29% em novembro. Ou seja, o pico de alta, causado pela elevação dos preços dos combustíveis já foi absorvido, e a inflação retomou seu curso normal, sem riscos de descontrole – o que, novamente, desautoriza a política de juros escorchantes. (LVF)
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De 8 a 14 de dezembro de 2005
NACIONAL DIREITOS HUMANOS
Violações continuam, na cidade e no campo Tatiana Merlino da Redação
O
governo federal continua decepcionando na apresentação de soluções para violações de direitos fundamentais no país, segundo o Relatório Direitos Humanos no Brasil 2005. Lançado em São Paulo e Rio de Janeiro, dia 6, o documento – elaborado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos com a colaboração de 26 entidades – tem 32 artigos que abordam problemas como violência no campo, questão agrária, concentração de renda, falta de acesso a moradia digna e a situação de povos indígenas e de populações atingidas por barragens. Os casos de tortura e de maus-tratos por parte de policiais, assim como a impunidade, também estão nessa quinta edição do Relatório. Uma das preocupações do levantamento é a violência no campo: de janeiro a agosto de 2005, foram contabilizados 28 assassinatos no meio rural. Só no Pará, nos últimos 33 anos, houve 772 assassinatos – dos quais em apenas três casos os mandantes foram julgados.
João Roberto Ripper/Rede Social
Relatório organizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos aponta falta de políticas públicas
CPT divulga números da violência no Pará
REFORMA AGRÁRIA Enquanto a violência aumenta, os números apontam a morosidade do governo na realização da reforma agrária. O Relatório mostra que as metas estabelecidas para o período 2003/2006 no Plano Nacional de Reforma Agrária não estão sendo cumpridas. Em 2003, foi assentada apenas metade da meta de 60 mil famílias. Em 2004, da meta de 115 mil, apenas 90 mil foram assentadas. Das 115 mil previstas para 2005, de acordo com as expectativas, apenas 60 mil serão contempladas. “O governo não vai cumprir o contrato firmado”, diz Gilmar Mauro, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), referindo-se à meta de assentar 400 mil famílias, de 2003 a 2006. “Eles vêm tratando a reforma agrária como uma política de compensação social. A concentração fundiária do país não foi alterada”, acrescenta.
Segundo relatório da Rede Social, 28 pessoas foram assassinadas no campo, de janeiro a agosto de 2005
ta Missionário (Cimi). O texto cita a morosidade na demarcação dos territórios indígenas e a situação do povo Guarani-Kaiouwá, em Mato Grosso do Sul, onde foram registrados muitos casos de violência. “Existe uma política de aliança das oligarquias locais com o governo”, afirma Paulo Maldos, assessor político do Cimi. Em todo o país foram registradas 44 mortes de crianças de 0 a 3 anos por desnutrição, dos quais 31 no MS. Foram 33 assassinatos de indígenas, 23 no MS, além de 22 casos de tentativas de assassinato e 12 indígenas ameaçados de morte. As condições de exploração a que os trabalhadores que atuam no plantio da cana-de-açúcar são submetidos também estão no livro. Obrigados a cortar cerca de dez toneladas de cana por dia, vi-
QUESTÃO INDÍGENA A situação dos povos indígenas é bastante preocupante, de acordo com o artigo do Conselho Indigenis-
vendo com condições precárias e subalimentados, muitos adoecem e morrem. Na região de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, só em 2004 e 2005 foram registradas 13 mortes decorrentes de excesso de trabalho. Maria Luísa Mendonça, diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, lembra que o setor canavieiro foi o que mais cresceu em 2005: “A expansão foi de 26%. Lucro em cima da exploração do trabalho”.
IMIGRANTES O texto ainda aborda a situação dos imigrantes ilegais bolivianos que trabalham em oficinas de costura, a maioria em São Paulo. Após contrair dívidas para pagar a passagem para o Brasil, são obrigados a trabalhar em condições de insalubridade, cerceados
de liberdade. “Defendemos uma lei dos estrangeiros que garanta os direitos desses trabalhadores”, afirma Luiz Bassegio, secretário nacional do Serviço Pastoral dos Migrantes. De acordo com o relatório, também há muito o que avançar no que se refere à habitação. Segundo Nelson Saule Jr., coordenador Nacional do Fórum de Direito à Moradia, a questão dos despejos é a mais preocupante: “Não existe uma política para lidar com essas situações”. Para Saule Jr. é necessário que o governo federal elabore um plano para combater os despejos. Além disso, Saule Jr. cita que o déficit habitacional piorou – há dois anos, havia 5 milhões de pessoas sem moradia; hoje, há 67 milhões, de acordo com a Fundação João Pinheiro.
A violação dos direitos humanos no Pará atinge níveis alarmantes, o que faz o Estado ostentar o triste título de campeão de conflito de terras e de assassinatos. De 1994 a 2004, foram registrados 173 assassinatos, 837 conflitos de terra e 501 ameaças de morte. Os números estão no relatório “Violação dos Direitos Humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense”, lançado dia 28 de novembro pela organização não-governamental Terra de Direitos, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pela Justiça Global. O relatório aponta que “a violência no Estado do Pará está diretamente associada à concentração da propriedade da terra”, principalmente devido à grilagem de terras públicas. As violações, entretanto, não se limitam à violência contra o trabalhador rural, mas incluem a “negação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, com a extração criminosa dos recursos florestais, até a expulsão violenta e prisões de posseiros, extrativistas, ribeirinhos, indígenas”, conforme aponta o relatório – que acrescenta o trabalho escravo como prática a ser coibida. O relatório foi lançado em livro que será entregue à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, à Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e à Representante Especial das Nações Unidas para Defensores de Direitos Humanos, Hina Jilani, que chegou ao Brasil em missão oficial no dia 5, e inspecionará o Pará de 7 a 9. Hina Jilani ainda passará pela Bahia, Pernambuco, São Paulo e Santa Catarina.
No Brasil, os governos permitiram a institucionalização da violência e um policiamento baseado em violações de direitos humanos, segundo constata um relatório sobre segurança pública divulgado dia 2 pela Anistia Internacional (AI). Intitulado “Eles entram atirando – policiamento de comunidades socialmente excluídas”, o documento enfoca a violência, principalmente a gerada pelas ações policiais, que sofrem os moradores de favelas e de áreas pobres das grandes cidades. O trabalho concluiu que as políticas de segurança pública são discriminatórias, concentram a violência nas comunidades pobres do país e fracassam no combate à criminalidade. A AI acredita em um processo de “criminalização da pobreza”, no qual os cidadãos pobres são excluídos dos planos dos governantes de segurança pública. De um lado, são vítimas da violência das facções criminosas, e, de outro, da truculência policial. Para o pesquisador da Anistia sobre o Brasil, Tim Cahill, o assassinato de 29 pessoas na Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, dia 31 de março de 2005, “é uma das
Fábio Motta/AE
Onde há mais violência, menor é a proteção AI, as pessoas que mais precisam de proteção não recebem o apoio das autoridades.
DISCURSO DE CONFRONTO
Dia 5, na Favela do Morro do Estado, em Niterói, na Grande Rio, quatro jovens e uma criança de 11 anos foram assassinados pela Polícia Civil
conseqüências da estratégia de segurança pública que abandonou os pobres do país e condenou todos os brasileiros ao crime e à violência”.
RICOS E POBRES O documento inclui dados sobre o diferentes riscos de violência a que estão expostos ricos e pobres. A taxa de homicídios nos centros urbanos brasileiros está entre as maiores do mundo, concentradas nas áreas de maior exclusão social
e de menor policiamento. Em 2002, houve um total de 50 mil homicídios no país. Para se ter uma idéia das diferenças de exposição à violência entre cidadãos de diferentes classes sociais, o bairro do Jardim Ângela, em São Paulo, registrou em 2003 uma taxa de 123 homicídios por 100 mil habitantes. Em Moema, bairro de classe média da capital paulista, a taxa foi de 3 homicídios por 100 mil habitantes. Segundo a
De acordo com o documento, outro problema da segurança pública no país é o discurso de confronto utilizado por autoridades federais e estaduais. “Essa maneira de enfrentar a violência resulta em operações policiais militarizadas, com uso de forças do Exército para manter a ordem”, diz Tim Cahill. Segundo ele, esses métodos de repressão são ineficazes e aumentam a exclusão social. O texto cita, por exemplo, a utilização do chamado “Cadeirão”, veículo blindado usado pela Polícia Militar em ações nas favelas cariocas, e a Operação Saturação, da Polícia Militar de São Paulo, para ocupação de favelas com helicópteros, cavalaria e cães. “São práticas que criam suspeita sobre toda uma comunidade, que passa a ser vista como criminosa em potencial, apenas porque vive numa região pobre”. Estatísticas da Anistia mostram que, entre 1999 e 2004, as polícias dos Estados do Rio de Janeiro e de
São Paulo mataram 9889 pessoas em situações oficialmente classificadas como “resistência seguida de morte”. No texto, há inúmeros relatos de agressões, prisões arbitrárias e assassinatos.
EXPERIÊNCIA POSITIVA O relatório da Anistia Internacional elogia a campanha do desarmamento no Brasil, que “contribuiu para a redução da taxa de homicídios no país”. Porém, avalia que o desarmamento não é suficiente para reduzir “os altos níveis de violência no país”. Outras propostas para resolver a questão da criminalidade ainda não foram implementadas, destaca o pesquisador Cahill: “O corte no orçamento nacional de segurança pública anunciado em abril deixa claro o interesse do governo nas reforma da segurança pública”. Em abril deste ano, o governo federal anunciou um corte no orçamento de R$ 412 para R$ 170 milhões. O texto conclui que a única maneira de enfrentar a violência e o crime existentes no país é por meio da elaboração de um novo plano de segurança pública, com enfoque em questões como prevenção dos homicídios. (TM)
Ano 3 • número 145 • De 8 a 14 de dezembro de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO BOLIVARIANAS
Chávez amplia hegemonia política O
que fazer quando uma oposição partidária não é capaz de apresentar um projeto politico alternativo, vem perdendo paulatinamente a cada eleição os principais cargos públicos do país, e para completar, não reservam nenhum apoio popular? Para a oposição venezuelana a alternativa foi entregar os pontos e sair do jogo. Só que dessa vez, não puderam levar a bola para acabar com a partida. Resultado final: domingo, dia 4, os venezuelanos foram às urnas uma vez mais para decidir quem seriam os novos deputados que deveriam compor a Assembléia Nacional, o Parlamento Andino e o Parlamento Latino-Americano. O resultado foi a ampliação da hegemonia política dos partidos aliados do governo Chávez. A expectativa é que o Movimento Quinta República (partido do presidente) fique com 114 das 167 cadeiras da Assembléia Nacional. O restante deverá ser dividido entre outras legendas que apóiam o governo. Antes, a oposição possuía 79 postos. Meses antes das eleições, analistas tanto de grupos opositores como bolivarianos já haviam diagnosticado que as cadeiras dos partidos que apóiam o governo seriam ampliadas na próxima disputa. Um dos termômetros para tal conclusão foi o resultado da última eleição para governadores (outubro de 2004), em que a oposição perdeu cinco dos sete Estados que governava. O novo parlamento que assumiu no dia 7 deverá mudar o esquema de trabalho. A nova roupagem da Assembléia foi nomeada de Parlamento Social – o que, em tese, significa ampliar o poder de participação popular na discussão das leis e elaboração de novos projetos.
OPOSIÇÃO POLEMIZA A uma semana das eleições, parlamentares dos partidos tradicionais Ação Democrática (AD) e Copei se retiraram do pleito alegando falta de transparência no processo eleitoral automatizado. Desde os anos 1958 até 1998, quando Chávez foi eleito, ambos os partidos se alternavam no poder. A oposição acusava o governo de manipulação das urnas eletrônicas. Exigira a retirada da máquina detectora de digitais, caso contrário, não entraria na disputa. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) – que, desde o referendo que ratificou o mandato de Chávez, sofre uma campanha de deslegitimação por parte da oposição – sucumbiu e aceitou a retirada das máquinas das digitais, que seriam utilizadas para evitar que uma pessoa votasse mais de uma vez. Na opinião do observador internacional Guilhermo Reyes Gonzalez, magistrado do Conselho Nacional Eleitoral da Colômbia, a retirada foi um retrocesso. “A Venezuela está na vanguarda do processo de automatização do voto, o que assegura a legitimidade da eleição”, declarou ao Brasil de Fato, ao avaliar que a atitude do CNE foi plausível no que se refere à tentativa de conciliação dos partidos. “Infelizmente, a oposição não aceitou. Voltar ao método manual como desejava a oposição é um retrocesso histórico. É como descer do avião para seguir (a viagem) em burro”, reiterou.
RENÚNCIA LIMITADA Ainda assim, não foi o suficiente para a oposição. AD, Copei e o recém-criado Primeiro Justiça se retiraram da disputa e convocaram todos os eleitores a não participar das eleições. A manobra tinha como objetivo, a curto prazo, adiar o pleito e, principalmente, desconhecer o novo parlamento. Apesar do anúncio de boicote,
Oposição aposta na desestabilização O que para muitos significou um suicídio da oposição a médio prazo pode sinalizar o início da guerra a ser enfrentada pelo governo Chávez nas eleições presidenciais de dezembro de 2006. Às vésperas das eleições legislativas, realizadas no dia 4, o presidente venezuelano acusou que o boicote da oposição, uma vez mais, havia sido arquitetado pelos Estados Unidos com o objetivo de desestabilizar a sua reeleição em 2006. Chávez detém 75% do apoio popular enquanto a oposição ainda não definiu se unificará ou não suas candidaturas. “O que a oposição está fazendo é lançar um novo golpe. Agora, um golpe eleitoral a mando do presidente dos Estados Unidos. Isso é conseqüência da Cúpula de Mar del Plata e dos êxitos que a revolução bolivariana tem conquistado com democracia”, afirmou Chávez. Na referida Cúpula, fracassou o plano estadunidense de reviver a Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
ISOLAMENTO
Presidente Chávez comemora o apoio popular após as eleições para o Parlamento
nos Estados onde a oposição poderia angariar alguns votos, os candidatos se mantiveram na disputa. Apenas 10,08% dos mais de cinco mil candidatos inscritos renunciaram, segundo o CNE. Claudio Fermín, ex-dirigente da AD, hoje líder do movimento opositor Força Popular, condenou a estratégia dos outros opositores. “Fazer um cidadão acreditar que não participar é benéfico se constitui em uma forma de retrocesso histórico”, afirmou. “A abstenção não elege ninguém, e não gera representantes”, criticou Fermín.
“Elite despreza a democracia, o Estado e a soberania” Intelectuais e personalidades de todo o mundo divulgaram um manifesto de apoio à revolução bolivariana. Intitulado “Chamado em Defesa da Democracia na Venezuela”, o texto denuncia a armação das elites do país e acusa os Estados Unidos de agirem contra a vontade do povo venezuelano. Assinaram o documento: o escritor uruguaio Eduardo Galeano, o historiador pasquitanês Tariq Ali, o sociólogo estadunidense James Petras, o jornalista francês Bernard Cassen, a ex-ministra da Cultura de Mali Aminata Traore. Dos brasileiros, manifestaram apoio o sociólogo Emir Sader, o dirigente do MST João Pedro Stedile, o escritor Fernando Morais, entre outros nomes.
“Nos últimos seis anos temos sido testemunhas de como milhões de venezuelanos tomaram em suas mãos seu próprio destino contra toda sorte de adversidade para construir uma sociedade de inclusão e de justiça. Fortalecido pela Constituição Bolivariana – uma das mais democráticas do mundo –, o povo venezuelano ratificou sua vontade fazendo uso do voto em sete oportunidades nos últimos seis anos. No entanto, uma elite minoritária com o apoio do governo dos Estados Unidos e dos meios de comunicação tentou, por várias oportunidades, pôr fim a este processo de transformação. Tentou um golpe de Estado em abril de 2002, que o povo rechaçou saindo às ruas tendo a Constituição como arma. Em dezembro de 2002 tentaram sabotar a principal indústria do país provocando danos profundos à economia nacional. Ambos os atos demonstraram um desprezo pela democracia, pelo estado de direito e pela soberania nacional. A poucos dias das eleições parlamentares, a oposição minoritária da Venezuela, diante de uma segura derrota eleitoral, utiliza o abstencionismo como chantagem e conclamam a retirada de seus candidatos alegando falta de confiança no processo e nas autoridades eleitorais. Apesar das últimas eleições na Venezuela terem se caracterizado por sua transparência, a qual foi respaldada por múltiplos observadores internacionais, a oposição condicionou sua participação a uma série de novas exigências. No entanto, apesar destas exigências terem sido satisfeitas pelas autoridades eleitorais, a oposição cinicamente abandonou seu compromisso retirando-se da disputa. Esta é uma estratégia para deslegitimar as instituições venezuelanas, o que só reflete seu desejo de prejudicar o próprio conceito de democracia, violentando o direito que um povo tem de escolher seu próprio destino. Esta nova tentativa de interromper o processo democrático venezuelano tem sido tacitamente respaldada por funcionários do governo norte-americano que, publicamente, colocaram em dúvida a credibilidade do poder eleitoral venezuelano. Nós, amigos do povo venezuelano, rechaçamos esta nova tentativa de sabotar a democracia e depositamos nossa confiança nas autoridades eleitorais e na vontade do povo de exercer seu direito de vôo, elemento fundamental da democracia, sem intimidação e sem chantagem”.
Marcelo Garcia
Claudia Jardim de Caracas (Venezuela)
Andrew Alvarez/AFP/AE
Prevendo fracasso nas eleições legislativas, oposição renuncia à disputa; chavistas terão 100% do Parlamento
“A oposição se retirou porque não tem apoio do povo. Nós levantamos cedo para votar porque defendemos a revolução e acreditamos nas mudanças que estão ocorrendo em nosso país”, comenta Luis Quiroga, da Associação Bolivariana de Advogados, um dos primeiros da fila em frente ao centro de votação da Escola Luiz Pimentel, em Caracas. Do outro lado da cidade, na área nobre, os centros de votação estavam completamente vazios. A organização opositora Súmate – financiada pelos EUA – convocou os eleitores a trocar as urnas pela igreja para pedir a Deus que velasse pela democracia no país. O número de fiéis, de acordo com a igreja, não aumentou, nem diminuiu. No final, o número de eleitores que compareceram às urnas não ultrapassou os 25%. Para a oposição, um sinal do descontentamento popular. Para o governo, uma constatação dos índices históricos de abstenção. Na Venezuela, o voto não é obrigatório e tradicionalmente há pouco comparecimento às eleições legislativas. Na última eleição, da qual também participou a oposição, a participação atingiu os 27%, apenas dois pontos percentuais de diferença. O clima é tenso. Os venezuelanos sabem que foi dado o tiro de largada para o pleito presidencial. De um lado, a oposição segue absolutamente desorganizada, sem respaldo popular, mas com todo apoio e dinheiro de Washington. De outro, um governo que ganha a 9ª eleição seguida, mantém apoio de 75% da população, controla o Parlamento e tem a oportunidade de aprofundar as medidas transformadoras. Vênus Gúsmaz, uma das tantas venezuelanas inseridas no processo de organização popular, sentencia: “Estamos apenas começando. Vai ser um ano duro, mas estamos prontos para defender este processo e garantir outra vitória.” (CJ)
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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA
Evo Morales segue como favorito da Redação
O
Movimento Al Socialismo (MAS), partido do presidenciável Evo Morales, continua liderando as pesquisas pré-eleitorais, enquanto seus principais adversários contabilizam recuos. Levantamento realizado pela cadeia Usted Elige no final de novembro mostra que o Poder Democrático Social (Podemos) – agremiação de caciques da direita boliviana – registrou queda de um ponto percentual e o Unidad Nacional (UN), de 4,5. O MAS, por sua vez, ganhou mais apoio dos bolivianos e subiu de 30,7% para 32,8% em relação ao levantamento anterior, mantendo-se à frente dos 27,7% do Podemos e dos 9,4% do UN. Ainda de acordo com a pesquisa, cerca de 45% dos bolivianos acreditam que Morales será eleito presidente do país no pleito de 18 de dezembro. Já 33,3% acham que o ex-presidente Jorge Quiroga vencerá a disputa. Em 18 de dezembro, os bolivianos vão escolher presidente, vicepresidente, senadores, deputados e prefeitos. Segundo a legislação local sobre a disputa presidencial, se nenhum candidato tiver mais de 50% dos votos, o Congresso definirá quem será o vencedor. Já para meados de 2006 está agendada uma Assembléia Constituinte e um referendo sobre autonomias regionais.
Marcelo Curia
Às vésperas das eleições presidenciais, nova pesquisa diz que candidato indígena amplia vantagem sobre opositores
As dez propostas do MAS para transformar o país 1. Nacionalização dos hidrocarbonos – que todo o gás e todo o petróleo que saiam de nossos poços sejam propriedade nossa e não das transnacionais. 2. Assembléia Constituinte – para conduzir o país, com apoio de todos os setores sociais, à construção de uma nova pátria. 3. Lei Andrés Ibáñez para as Autonomias – descentralização política e administrativa da República para que os povos indígenas, municípios e regiões tenham poder de decisão política e financeira. 4. Plano de desenvolvimento produtivo – anulação do Decreto Supremo 21060 por ser inconstitucional e revisão da Lei de Inversões.*
Líder nas pesquisas eleitorais, o candidato Evo Morales promete a nacionalização dos hidrocarbonetos
vadores ficaram mais agressivas e passaram a fazer pesados ataques contra Evo Morales, inclusive questionando aspectos de sua vida privada. O ex-presidente Quiroga tem usado os meios de comunicação hegemônicos do país para dizer que o candidato do MAS é uma opção inviável e perigosa para a Bolívia. “Não podemos nos dar ao luxo de perder nossos mercados, milhares de bolivianos perderão seu trabalho se Evo for presidente, isto porque cortará relações com todos os governos que comercializam conosco”, afirmou o direitista, que ocupou interinamente a presidência do país entre 2001 e 2002. Uma outra propaganda do Podemos apresenta uma indígena que se diz abandonada por seu companheiro. “Evo Morales abandonou seus filhos. Se não é responsável com a própria família, como poderá ser com nós?”, pergunta a personagem. Em contrapartida, o líder cocalero conta com apoio da maior parte da população do país, sobretudo
GUERRA SUJA No Parlamento, no entanto, os masistas (como são conhecidos os integrantes do MAS) devem ficar em minoria. As pesquisas mostram o Podemos elegendo 14 senadores e o partido ligado aos cocaleros, com 11 senadores. Diante desse cenário, se Morales for eleito, o MAS já estuda estratégias para enfrentar um parlamento hostil ao poder Executivo. “No caso em que for necessário, faremos uso dos decretos e contaremos ainda com o apoio dos movimentos sociais para obrigar os parlamentares a aprovar leis”, assegurou o candidato a deputado Gustavo Torrico. A poucos dias das eleições, as campanhas dos candidatos conser-
nas classes trabalhadoras, de parte dos movimentos sociais e – recentemente – recebeu votos de apreço de dois governantes da região: o venezuelano Hugo Chávez e o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. As manifestações de apoio foram uma resposta à estratégia da direita de tentar passar a imagem de um Evo isolado no continente.
DOIS MODELOS Apesar da guerra suja, as campanhas apresentam dois modelos para a Bolívia. Um antineoliberal proposto pelo líder indígena Morales e outro encabeçado por Quiroga que consiste em basicamente manter o esquema do mais puro livre-mercado que vigora no país há 20 anos. Apesar de o MAS não propor mudanças estruturas para a Bolívia (veja as dez principais propostas no quadro ao lado), o discurso do partido está sendo melhor aceito sobretudo porque não se resume a seguir os mandamentos do neoliberalismo e das instituições multilaterais, como o Fundo
Monetário Internacional (FMI), definindo uma agenda para o país. Setores afinados à direita boliviana – empresários, transnacionais e donos dos meios de comunicações – temem o crescente descontentamento do povo que tem se convertido em mobilizações permanentes e derrubadas de presidentes (como Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, e Carlos Mesa, em 2004). A pedido de Quiroga, o presidente boliviano Eduardo Rodríguez – que assumiu interinamente após a queda de Mesa – determinou que fosse investigado um suposto plano de golpe de Estado do MAS. O partido classificou que a investida foi motivada por “revanchismo ou sentimento de vingança pelo fato de se ter denunciado a entrega ilegal de 28 mísseis para serem desativados nos Estados Unidos”. Após essa denúncia, Morales havia pedido ao Ministério Público do país que abrisse um processo contra Rodríguez. (Bolpress – www.bolpress.com – e La Jornada, www.jornada.unam.mx)
5. Lei contra a corrupção e a impunidade – investigação de fortunas aplicável a presidentes, vice-presidentes, ministros e políticos que estiveram no governo nos últimos 20 anos. 6. Lei de austeridade fiscal – eliminar os gastos excessivos nas instituições estatais, e a superremuneração de assessores das entidades públicas. 7. Lei da terra produtiva – acabar com o latifúndio e a tendência de uso especulativo da terra. 8. Seguridade cidadã – uma política de seguridade preventiva, com base na inclusão social e investimentos públicos. 9. Soberania social – criar um novo Sistema de Seguridade Social para dar cobertura de saúde em três níveis: medicina familiar, internação e especializações e hospitalar. 10. Educação e cultura – anulação da Lei de Reforma Educativa, com garantia da educação gratuita em um sistema único nacional. * O decreto 21060 foi editado em agosto de 1985 e foi criado, em tese, para pôr fim à hiperinflação. Na prática, impunha uma série de medidas políticoadministrativas que tinham como objetivo criar um marco regulatório para a aplicação de medidas neoliberais, reduzindo a participação do Estado na economia e possibilitando a privatização, entre outras ações.
AMÉRICA CENTRAL
Os pobres as maiores vítimas do furacão Um balanço feito por especialistas um mês depois da passagem do furacão Stan pela América Central mostra que, embora a macroeconomia dos países tenha sido preservada, milhares de pessoas perderam tudo. Indicadores como a inflação anual, o equilíbrio fiscal e os níveis da dívida externa permaneceram estável. Mas a história é outra para as pessoas afetadas cujo futuro imediato anuncia mais pobreza, assim como para o meio ambiente, que sofreu danos gigantescos que podem levar décadas para serem recuperados. Os efeitos do Stan, que cruzou o istmo centro-americano e o sul do México nos primeiros dias de outubro, foram analisados minuciosamente por uma equipe liderada pela Comissão Econômica Para a América Latina (Cepal), nos casos da Guatemala e El Salvador. Entre 26 de outubro e 8 de novembro, mais de 30 especialistas trabalharam na análise coordenados pela Organização das Nações Unidas (ONU). Uma das conclusões do estudo foi que o impacto do Stan será relativamente pequeno no âmbito macroeconômico, mas variará de severo a grave entre as comunidades afetadas, disse Ricardo Zapata,
um dos especialistas da investigação. “Por que essa diferença? É que os afetados, que são os mais pobres, contribuem muito pouco para a economia de seus países”, explicou Zapata. “Isso confirma que, em nossos países, existe um estilo de desenvolvimento injusto e sem igualdade. Permanece o perigo de fome extrema e a situação continua grave, mas a macroeconomia
não tem problemas”, disse Eduardo de León, diretor da Fundação Rigoberta Menchú da Guatemala.
MAIS DEPENDÊNCIA A agência internacional acrescenta que serão restringidas as melhorias nos índices de desenvolvimento humano na Guatemala e em El Salvador e será elevada a dependência de remessas por parte de imi-
Envolverde
Diego Cevallos da Cidade do México (México)
grantes, especialmente dos Estados Unidos. Em matéria ambiental, a Cepal adverte que foram registrados danos severos, com perdas de terra cultivável, que foram acrescentados aos já existentes. E adverte que o Stan e outros fenômenos naturais similares seriam menos danosos se fossem protegidos e aproveitados de maneira melhor os bosques e as coberturas vegetais.
Mas nas finanças macroeconômicas dos governos – tema que realmente interessa aos credores e aos organismos financeiros internacionais – há uma relativa tranqüilidade. Zapata observou que as autoridades desses países preferem não alterar seus equilíbrios fiscais para atender à população afetada pelo furacão Stan. (Envolverde, www.envolverde.com.br)
Crescimento econômico não reduz desigualdades Na América Central, vivem 43,2 milhões de pessoas e mais da metade é pobre. Os piores graus de desenvolvimento social correspondem a El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua, países em que a população que vive abaixo da linha da pobreza (medida sobre a impossibilidade de satisfazer necessidades básicas) flutua entre 30% e 60% do total. Mesmo antes de avaliar o impacto do Stan, a Cepal advertiu que seria improvável que os países centro-americanos cumprissem a projetada redução da pobreza extrema nos prazos previstos nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, acordados em setembro de 2000 pela Organização das Nações Unidas. O primeiro objetivo relacionado à erradicação da pobreza extrema e da fome propõe reduzir à metade, entre 1990 e 2015, o percentual de pessoas cuja renda seja inferior a um dólar por dia e que padeçam de fome. Embora na América Central o PIB tenha crescido desde o final dos anos 1990 em percentuais entre 4,5% em 1999 e 3,8% em 2004, esse ritmo não se traduziu em uma redução na pobreza e em melhorias em matéria de emprego e educação. (DC) (Envolverde, www.envolverde.com.br) Vítimas do furacão Stan não têm perspectivas para o futuro
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INTERNACIONAL OMC
Encontro expõe fracasso nas negociações Igor Ojeda da Redação
de 54% nas tarifas à importação européias, a última oferece apenas 39%. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, propôs inclusive o corte de 50% nas tarifas brasileiras de importação dos bens industriais para desbloquear as negociações. Mas não obteve resposta por parte da UE. Tal oferta mereceu críticas de alguns analistas ouvidos pelo Brasil de Fato. “Essa metodologia de barganha é ruim, porque parece que o Brasil é só agroexportador. Caso aceitem a proposta de Amorim, seria um corte na trajetória mais ou menos ascendente da indústria nacional nesses últimos anos”, analisa Gonzalo Berrón, coordenador da Aliança Social Continental – articulação de movimentos sociais, ONGs e sindicatos do continente americano. Para ele, além das perdas de empregos no setor, os custos serão altos para um projeto de desenvolvimento sustentável e autônomo do país. “Além disso”, diz Berrón, “vamos passar a ser produtor de manufaturas de segunda sem possibilidades de nos aproximarmos dos patamares tecnológicos dos outros países”. Adhemar Mineiro, do Dieese, segue na mesma linha. Segundo ele, a priorização da agricultura de exportação impactará o futuro do país. “Há um retrocesso de 50 anos nesse debate, pois volta a primarização da produção”.
M
ais um ponto para as organizações do mundo todo que lutam contra a globalização neoliberal. Tudo leva a crer que as negociações da rodada de Doha (veja quadro) permanecerão travadas após a 6ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), de 13 a 18, em Hong Kong, na China. Os países desenvolvidos desejam a abertura dos mercados dos países periféricos, principalmente de bens industriais e de serviços. Mas não querem fazer nenhuma concessão como contrapartida. Lê-se: acesso a seus mercados agrícolas. No dia 26 de novembro, o diretor-geral da OMC, o francês Pascal Lamy, divulgou o primeiro rascunho da Declaração Ministerial de Hong Kong – texto que conterá os resultados do encontro. O documento, no entanto, evidencia a falta de perspectiva de avanços, ao refletir as muitas divergências entre os países, nos itens agricultura e indústria. Lança ainda a extensão do prazo de negociações, provavelmente para 2006. “Está muito claro que, para se obter algum resultado, teria que haver uma imposição de perdas grandes no interior dos países negociadores. O mais provável é que nenhum deles tenha hoje força política para tanto”, opina o economista Adhemar Mineiro, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese). Ou seja, tanto a União Européia (UE) quanto os Estados Unidos (EUA) não reúnem as condições necessárias para enfrentar os interesses de seus fortes setores agrícolas.
CMI
Às vésperas da Conferência Ministerial em Hong Kong, países não chegam ao consenso; agricultura emperra discussões
Para entender o jogo do Comércio OMC – A Organização Mundial do Comércio foi criada em 1º de janeiro de 1995 supostamente para promover o “livre-comércio”. Seu raio de atuação, no entanto, vai além do comércio internacional e influi diretamente no modo de vida de milhões de pessoas. Na prática, a OMC se converteu em uma organização supranacional que tenta impor às nações regras nas áreas da saúde, educação, meio ambiente, alimentação. As ações da OMC têm, em comum, a defesa dos interesses das transnacionais. Livre-Comércio – Doutrina econômica impulsionada por economistas conservadores que têm, em sua raiz, os princípios defendidos por Adam Smith (1723-1790). Um desses conceitos é o laissez faire (deixa fazer) que apregoa que os problemas dos povos seriam resolvidos pelo funcionamento do mercado. No entanto, o próprio mentor do liberalismo, Adam Smith, era crítico dos monopólios empresariais – isso em um tempo em que não existiam poderosos conglomerados privados, como as atuais transnacionais. Rodada de Doha – Referência ao compromisso dos países assumidos em dezembro de 2001, em Doha (Qatar), durante a 4ª Conferência Ministerial da OMC. Trata-se de uma nova pauta de negociações de “livre-comércio” para todo o planeta. A conclusão desta rodada foi programada para 2005.
RETÓRICA BRASILEIRA No entanto, o conselheiro Flávio Damico, chefe da Divisão de Agricultura do Ministério das Relações Exteriores, afirma que a avaliação de diversos setores industriais no Brasil é a de que a indústria teria condições de agüentar um corte deste tipo já que, em vários destes setores, as tarifas aplicadas são diferentes das consolidadas na OMC. “Por isso, temos uma boa camada de gordura para queimar. Alguns produtos, sim, podem vir a sofrer, mas aí a gente já negociou um certo percentual de flexibilidade. É mais uma questão de ajuste interno, de
PERDAS PARA A INDÚSTRIA A agricultura é tema central nas conversações da rodada de Doha – seguida de bens industriais e serviços, nessa ordem de importância – e o principal embate se dá entre Brasil e UE. Enquanto o primeiro pede um corte médio
Mexicanos protestam contra o fardo pesado imposto pela OMC aos países pobres
decidir quais setores merecem mais proteção que os outros”, diz. Para o cientista político Theotônio dos Santos, as propostas do governo brasileiro representam mais uma retórica do que uma abertura comercial de fato. “O Brasil assumiu a retórica dos
países dominantes e jogou contra eles. É interessante, porque põe o país em uma posição de exigir o que eles mesmo propõem” diz. “Não vejo grandes resultados práticos, acho muito mais importante do ponto de vista da pressão, de agrupamento de forças”.
G-20 – Grupo de países em desenvolvimento que atua na OMC, liderado por Brasil e Índia e centrado nos temas de agricultura. Dumping – Prática de vender mercadorias temporariamente abaixo do seu preço de custo, com a finalidade de acabar com a concorrência e, assim, dominar o mercado e estabelecer preços e margem de lucros sem limitação pelos concorrentes.
ANÁLISE
Uma arma dos ricos contra os pobres Governos de todo mundo voltarão a se reunir convocados pela Organização Mundial do Comércio (OMC), em Hong-Kong, para tentar firmar e consolidar acordos comerciais. Mas, afinal, o que significa a OMC? Esta organização se transformou apenas na busca de um guarda-chuva institucional e jurídico para defender os interesses de quem domina o comércio mundial. Na OMC, quem dá as cartas é um grupo de países ricos, o G-7, que está aliado aos demais países da comunidade econômica européia. A reunião de Honk Kong não vai discutir a diminuição da pobreza, da fome, do desemprego ou da desigualdade social. A pauta da OMC é outra: como aumentar o volume de mercado a ser dominado pelas empresas transnacionais, formas de quebrar as barreiras dos países pobres, como manter o controle da produção e comércio de produtos alimentícios, ou seja, como garantir as altas taxas de lucros das empresas transnacionais. Perdem sempre os pobres, os trabalhadores e os camponeses dos países periféricos. Não se trata de discurso panfletário, infelizmente é a pura realidade. Por ora, há duas forças que vão se confrontar em Hong
a entrada de produtos agrícolas importados sem nenhum controle, é certo que as grandes empresas transnacionais poderiam manipular preços, o que deixaria as economias pobres totalmente dependentes das importações perdendo a soberania alimentar – o direito de produzir seus alimentos. Um caso dramático, por exemplo, é o enfrentado pelos agricultores da Coréia do Sul e do Japão que recebem proteção dos governos locais para produzir arroz. Se a vontade dos países ricos prevalecer na OMC, milhões de produtores da Ásia irão à falência.
CMI
João Pedro Stedile
Via Campesina defende a valorização das economias camponesas
Kong: de um lado, os países ricos que conseguiram cooptar os governos do Brasil e da Índia para suas propostas; e de outro lado, todos os países periféricos, ou demais países pobres do Hemisfério Sul, maioria em votos e população.
IMPASSE NO CAMPO Os países ricos propõem que se diminua qualquer barreira dos países pobres para proteger os mercados locais de produtos agrícolas, que, em geral, são abastecidos pela economica camponesa local. A contrapartida dos países ricos é reduzir paulatinamente os subsídios dados a seus produtores agrícolas. Esse
acordo gera uma ilusão nas burguesias agrárias de países exportadores de matérias-primas, como o Brasil, de que poderiam ampliar suas vendas para Europa e Estados Unidos. Na verdade, mesmo que os governos desses países reduzam os subsídios, não significa que o mercado de alimentos ou de matérias-primas agrícolas esteja em expansão na Europa. Se esse acordo se consolidasse, certamente levaria à falência milhões de camponeses que hoje produzem em condições adversas, mas que abastecem os mercados locais, gerando emprego e distribuição de renda. E se os governos liberassem
TEATRO DA OPRESSÃO A Via Campesina Internacional acredita que a OMC é uma grande manipulação. Há um palco montado e o que se verá em Hong Kong passa ao largo de um debate de fato. A OMC não tem legitimidade ou poder de decisão sobre o comércio agrícola internacional e muito menos sobre o abastecimento dos mercados alimentícios locais. A Via Campesina defende a soberania alimentar e a valorização das economias camponesas para que os trabalhadores rurais possam continuar a produzir alimentos para sua população, sem que sofram dumping de produtos subsidiados nos países ricos. Defendemos a descentralização
do comércio (e da produção), a democratização da propriedade da terra, a reforma agrária e, por meio dela, a fixação dos camponeses em suas comunidades. Exigimos o imediato cancelamento dos perversos acordos da rodada de Doha. Esperamos que a maioria dos governos dos países pobres se posicione contra todas as hipocrisias, impedindo os avanços pretendidos em Hong Kong e fazendo com que a reunião seja um fracasso. Se alguns países tiverem coragem, isso provavelmente acontecerá. De parte da Via Campesina, milhares de militantes campesinos de todo mundo irão levantar a voz em Hong Kong. Não ficaremos de braços cruzados assistindo aos governos tomarem decisões contra nós. Nossos povos têm direito de produzir seus próprios alimentos, sem ficar dependendo de acordos de importação. Isto está fundamentado em muitas doutrinas econômicas, filosóficas e religiosas da História. É direito universal de todos os povos. João Pedro Stedile é coordenador do MST e da Via Campesina Brasil. Esse artigo foi encomendado pela agência de noticias Inter Press Service (IPS), Itália, e é republicado pelo Brasil de Fato com exclusividade
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INTERNACIONAL SUDÃO
Ativistas exigem sanções da ONU ao país Ulia Spurzem de Nova York (EUA)
E
nquanto o governo do Sudão e rebeldes da região de Darfur iniciam sua sétima rodada de negociações de paz, ativistas reclamam da Organização das Nações Unidas (ONU) sanções efetivas contra o regime árabe e islâmico desse país. As conversações na cidade nigeriana de Abuja foram estendidas até terça-feira, dia 6, para resolver uma disputa pela liderança entre dois dirigentes do principal grupo rebelde, o Exército Sudanês de Libertação (SLA), que concordaram em participar, juntos, das deliberações. As seis rodadas anteriores patrocinadas pela União Africana (UA) concluíram com escassos acordos entre o governo, de caráter islâmico e dominado por árabes, e os insurgentes, também muçulmanos, pertencentes à maioria negra de Darfur. Observadores vêem pouquíssimas possibilidades de acordo nesta ocasião, devido à fratura do SLA. Mas a UA não perde a esperança. O Conselho de Paz e Segurança da organização afirmou que o bloco “considerará futuras medidas, incluindo sanções, a serem tomadas contra qualquer das partes que atrapalhe o processo de paz em Darfur”. No final de novembro, Jan Pronk, representante do secretáriogeral da ONU, Kofi Annan, para o Sudão, visitou o país para se encontrar com representantes de diversos grupos envolvidos no conflito. A prioridade é chegar a um acordo assinado “que signifique algo”, segundo Pronk, que advertiu em mensagem aos dois lados hoje adversários dentro do SLA que “devem se unir para negociar pelo bem de seu povo”. Entretanto, ativistas afirmam que a situação humanitária em Darfur não melhorou no último
Arquivo Brasil de Fato
Governo sudanês é acusado de não desarmar as milícias árabes que hostilizam a população negra de Darfur
Comunidade internacional é indiferente ao sofrimento dos refugiados da região de Darfur
mês, e pediram à ONU urgência em sanções ao governo islâmico do Sudão, que não desarmou as milícias árabes que hostilizam a população negra de Darfur, não pôs fim à impunidade nem protegeu os civis. “A proteção dos civis não melhorou em nada, apesar das muitas resoluções adotadas pelo Conselho de Segurança da ONU”, diz a subdiretora da Divisão África da organização Human Rights Watch, Georgette Gagnon. Ela recorda que, à luz dos acontecimentos, o governo sudanês não deve assumir, em janeiro, a presidência rotativa da UA, como está previsto. “Isto não deve acontecer. Mas a decisão cabe à UA”, acrescentou Georgette em entrevista coletiva na sede da ONU em Nova York junto com Salí Mahmoud Osman, advogado da Organização Sudão contra a Tortura. A situação em Darfur não me-
lhorou porque as resoluções das Nações Unidas não foram implementadas, afirma Osman. Portanto, acrescenta, “a comunidade internacional não é séria a respeito do sofrimento do meu povo”.
OMISSÃO DA ONU Segundo o advogado, os Estados Unidos e outros membros do Conselho de Segurança da ONU deveriam intervir para acabar com o “bloqueio” das sanções, pelo qual responsabilizou três integrantes do organismo, Argélia, China e Rússia. A estes países “não importa muito a situação humanitária em Darfur”, lamenta o ativista. No início de novembro, os diretores da Divisão África e do escritório em Washington da Human Rights Watch divulgaram uma carta aberta ao subsecretário de Estado dos Estados Unidos, Robert Zoellick, que
se reuniu no Quênia com representantes de várias partes do conflito. Na carta, a organização pede urgência a Zoellick para que exija do governo sudanês cooperação plena com as agências de assistência e observação da crise. “O exortamos a ter um papel de liderança no Conselho de Segurança da ONU, produzindo uma resolução para tais efeitos”, diz a carta. A crise em Darfur, reino independente anexado pelo Sudão em 1917, começou nos anos 70 como uma disputa pelas terras de pastagem entre nômades árabes e agricultores negros, ambos de fé islâmica. Mas a tensão se transformou em uma guerra civil em fevereiro de 2003, quando guerrilheiros negros responderam às hostilidades dos Janjaweed (“homens a cavalo”, em árabe), milícias que contam com o apoio do regime islâmico. Os Janjaweed são acusados de
realizar uma campanha de limpeza étnica contra a população negra que apóia as organizações guerrilheiras do Exército para a Libertação do Sudão e Movimento pela Justiça e Igualdade. A violência em Darfur fez com que cerca de dois milhões de pessoas abandonassem suas casas e causou 400 mil mortes desde o começo de 2003. Centenas de milhares de pessoas tiveram de se refugiar no vizinho Chade. A União Africana, criada em julho de 2002, teve um papel-chave nos esforços para pôr fim ao conflito sudanês, tomando a liderança nas negociações entre o governo e os rebeldes e enviando 3.144 soldados para vigiar o cumprimento do cessar-fogo. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
AIDS NA ÁFRICA
Isabel Coello de Nairóbi (Quênia) Metade das crianças soropositivas morre antes de completar dois anos nos países pobres devido à falta de remédios anti-retrovirais especiais para elas e de exames acessíveis para detectar a doença nos recém-nascidos. A denúncia é da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF). “O tratamento dos adultos é fácil, pois há uma dose fixa com uma combinação de três anti-retrovirais tomados duas vezes ao dia. Infelizmente, não temos uma dose para crianças, sendo preciso tomar apenas parte do comprimido, com o risco de não ser ingerida a quantidade correta”, explica Wangari Realmary, enfermeira da MSF no Quênia. “Amasso os comprimidos, mas às vezes cai uma parte no chão e não sei se minha filha recebe a quantidade de remédio que precisa”, conta Catherine Atieno, 31 anos, soropositiva e mãe de Joan, de cinco anos, que também tem Aids. A overdose de anti-retroviral pode ser tóxica para uma criança, enquanto uma dose menor que a necessária pode fazer com que o vírus desenvolva resistência ao remédio. Por ocasião do Dia Mundial de Luta contra a Aids (1º de dezembro), a MSF exige à indústria farmacêutica um maior compromisso para desenvolver tratamentos pediátricos. A eficácia dos laboratórios está comprovada, afirma a organização humanitária, mas quase não há doses de anti-retrovirais para crianças. Além disso, muitos são xaropes que devem ser colocados em refrigeração, o que é quase impossível em lugares como Kibera,
Arquivo Brasil de Fato
Falta de remédios causa tragédia infantil Baixo uso de preservativos faz a doença crescer da Redação
Dia 1º de dezembro, sul-africanos participam da jornada de luta contra a Aids
o maior bairro de favelas da capital queniana e do leste da África. “Em países desenvolvidos, há poucas crianças com Aids porque são aplicados tratamentos para prevenir o contágio do feto pela mãe”, explica Rachel Thomas, coordenadora médica da clínica que a MSF tem em Kibera. Nove em cada 10 crianças infectadas com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) vivem na África. Do total, 95% delas adquiriram a doença ainda na barriga da mãe, no parto ou durante a amamentação. Conseguir tratá-las a tempo “é uma dura batalha”, diz Wangari. “O teste usado no mundo desenvolvido para detectar se um recém-nascido é soropositivo é muito caro, complicado e não se adapta para o uso em clínicas com recursos muito limitados.” Em países como o Quênia, o único teste economicamente acessível só pode ser feito aos 18 meses de idade do bebê. Antes, é impossível saber se os anticorpos
encontrados no sangue pertencem à criança ou à mãe. Caso sejam soropositivas, as crianças têm dificuldades de obter remédios anti-retrovirais se não pesarem pelo menos 25 quilos. Por tudo isso, acrescenta Rachel Thomas, “a metade dos bebês com HIV não chegará aos dois anos”. Esta situação continuará ocorrendo enquanto não houver testes que permitam detectar o vírus antecipadamente e determinar a dose de tratamento para as crianças com Aids, doença que matou 300 mil crianças na África em 2004. No Quênia, há 120 mil crianças infectadas com o HIV, e das 18 mil que precisam de tratamento com anti-retrovirais, apenas 1.300 o estão recebendo. Entre elas, está a pequena Faith Wangari, de dez anos, que explica, sorridente, que nunca se esquece de tomar seu remédio. “Tomo de manhã e de noite. E sei que terei que tomar por toda minha vida”, diz a menina. Mas sua mãe, Esther Nchororo, 39 anos e também so-
A diminuição no uso de preservativos é a principal causa do aumento no ritmo da epidemia de Aids em 2005, quando se rompe a barreira de 40 milhões de infectados com o HIV. “As pessoas se esquecem de usar preservativos”, afirma Jim Kim, chefe do departamento HIV/ Aids da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo o especialista, essa atitude pode estar se alastrando em decorrência do êxito cada vez maior alcançado pelos tratamentos contra a doença. Segundo ele, esses tratamentos médicos podem prolongar a vida do doente “por 10, 20, 30 ou mais anos”, podendo ter causado um “excesso de confiança” nos comportamentos de risco. De acordo com o mais recente relatório sobre a epidemia, divulgado dia 1º , “diminuíram as taxas de infecção entre adultos em alguns países, mas as tendências gerais na transmissão do HIV não pararam de aumentar”. Apesar de a taxa de soropositivos ter caído no Quênia, no Zimbábue e alguns países da região do Caribe, o número de
ropositiva, confessa seus temores. “O que acontecerá se eu morrer, quem cuidará dela? Se estes médicos vão embora, quem nos dará
pessoas que vivem com o HIV continuou aumentando e, em 2005, foram registrados cinco milhões de novos casos. Kim garantiu que esses e outros dados demonstram que as medidas de prevenção “foram um fracasso”, e que é necessário mais dinheiro e maior vontade política dos governos para combater a epidemia. Kim ressaltou que a abstinência “não é a alternativa” à propagação da doença em continentes como a África, onde as mulheres são estupradas, obrigadas por seus maridos a manterem relações sexuais ou “fazem sexo por necessidade econômica”. Segundo o relatório – realizado conjuntamente pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) e pela OMS –, os maiores aumentos de casos de infecções de HIV ocorreram na Europa Oriental e na Ásia Central, onde foi registrado um aumento de 25% e foram registrados 1,6 milhão de doentes. Entretanto, a África Subsaariana continua sendo a região mais afetada, com 64% dos novos casos – mais de três milhões de pessoas. (Com agências internacionais)
os remédios? Nairóbi é muito cara e eu gostaria de viver no campo, mas não sei se há remédios lá”, diz. (Agência EFE, www.efe.com)
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NACIONAL ELEIÇÕES 2006
Ciro e Lula juntos? Só com transposição Projeto leva água até complexo industrial, uma mina de ouro para os parceiros políticos de Ciro no Ceará Luís Brasilino da Redação
A
condição para Ciro Gomes, ministro da Integração Nacional, apoiar a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2006 é clara: o início das obras de transposição do Rio São Francisco. A informação é de fontes do Palácio do Planalto, e evidências não faltam para sustentá-la. Apadrinhado político do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), ex-governador do Ceará (1987-91 e 1995-2002), Gomes (PSB), também ex-chefe do governo cearense (1991-94), defende o fortalecimento e expansão do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, a menina dos olhos tucana no Estado. E, para isso, as águas do Velho Chico são fundamentais. As bases para a criação do Complexo do Pecém, localizado em São Gonçalo do Amarante (a 60 km da capital, Fortaleza), foram lançadas em 1995. Em 2002, a construção do porto, grande e moderno, foi concluída. Atualmente, o Complexo conta também com infra-estrutura rodoviária, ferroviária, elétrica, energética e hídrica. O projeto prevê que toda esta estrutura estará a serviço de um parque industrial metal-mecânico e petroquímico, ancorado em uma siderúrgica, uma refinaria de petróleo e em usinas termoelétricas, duas das quais em operação. No entanto, o pólo industrial ainda não deslanchou. As negociações para levar a refinaria pouco avançaram e a siderúrgica só deve começar a ser construída no dia 15. E funcionar em 2009.
quinto da área de São Paulo-SP). Neste espaço, ao redor da siderúrgica, da refinaria e das termoelétricas, e próximo ao porto, é que a elite urbano-industrial cearense pretende construir um grande pólo de desenvolvimento.
DESTINO: PECÉM
CAPITAL INTERNACIONAL Batizada como Usina Siderúrgica do Ceará (USC), a construção do empreendimento absorveu investimento de 750 milhões de dólares. Dele, participa com 20% o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A siderúrgica Dongkuk Steel, da Coréia do Sul, é a principal acionista da USC, com 38%; a fornecedora de equipamentos Danielli, da Itália, terá 20% e a Companhia Vale do Rio Doce 9%. O restante é do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e do Estado do Ceará. A usina segue a lógica da divisão internacional do trabalho de transferência de indústrias pesadas, com intenso impacto social, ambiental,
energético e hídrico, para os países periféricos do capitalismo. O fenômeno foi denunciado exaustivamente pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
CONSUMO MAIOR Ao entrar em operação, a USC deve produzir cerca de 1,5 milhão de toneladas anuais de aço. Na seção ambiental de seu endereço na internet, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), principal brasileira do ramo, vangloria-se por ter reduzido o consumo de água da Usina Presidente Vargas (Volta Redonda, RJ) para 36,5 m³ por tonelada de aço fabricada.
A nova elite cearense A partir da década de 1980, o Ceará assistiu à derrocada da velha oligarquia coronelista e à ascensão de uma nova elite urbano-industrial. Um de seus líderes era o senador Tasso Jereissati (PSDB). Empresário desde os 15 anos, o tucano fundou e presidiu o Centro Industrial do Ceará (a entidade dos industriais locais). Em 1987, chegou pela primeira vez ao governo do Estado. Quatro anos depois, passou o poder ao seu apadrinhado político, o atual ministro Ciro Gomes (Integração Nacional), eleito, na época, pelo PSDB. Jereissati voltou ao poder em 1995 e, graças à reeleição, lá ficou até 2002. Nesse ano, fez novo sucessor, Lúcio Alcântara. No final deste mandato, em 2006, o PSDB terá completado 20 anos no controle do Estado. Apesar de ter deixado o PSDB para concorrer à Presidência da República em 1998, Ciro Gomes jamais rompeu com o seu padrinho. Nas eleições de 2002, enquanto a propaganda tucana atacava Gomes, Jereissati anunciava que não tinha candidato a presidente. E José Serra, o indicado do PSDB, apoiou um adversário de Jereissati ao governo cearense, o peemedebista Sérgio Machado.
Segundo o geógrafo Luiz Cruz Lima, coordenador do mestrado em Geografia da Universidade Estadual do Ceará, foram contingências geopolíticas recentes que propiciaram o surgimento das novas lideranças políticas locais. “No Ceará, o ímpeto modernizante fica claro desde meados dos anos 80. A partir de um planejamento de Estado, os novos governantes se dedicaram a criar ou modernizar a base produtiva, implantando a infra-estrutura básica necessária – estradas, porto, aeroporto, adequação de recursos hídricos etc.”, explica. Lima avalia que o projeto da transposição foi retomado para se “acoplar a projetos já realizados no Ceará”. Entre eles, a manutenção dos mananciais das represas (como o Açude Castanhão), a garantia da oferta de água aos centros urbanos e às atividades econômicas e o atendimento às comunidades, sobretudo nas estiagens. “É inegável que parte significativa das melhorias espaciais é apropriada pelos que detêm mais recursos e mais poder. Aí entra a luta política, o acirramento entre os de cima e os de baixo”, analisa. (LB)
Já na siderúrgica de Pecém, para efeito de comparação, a estimativa é de utilização de 54,75 milhões de m³ de água por ano, por tonelada produzida, ou 1,73 m³ por segundo (m³/s). Atualmente, o abastecimento do Complexo é feito pelo Sistema Adutor Sítios Novos/Pecém, com capacidade máxima de condução de 2 m³/s de água.
Até aqui, tudo perfeitamente sustentável. Porém, o projeto do Complexo do Pecém não prevê apenas a construção da USC – um chamariz para outros investimentos. Também como indústrias- âncora, constam a refinaria e as termoelétricas. Além disso, o Plano Diretor do Complexo mostra que ele será instalado numa área de 320 km² (pouco mais de um
Caso Pecém prospere, a demanda por água superará de longe a oferta atual. Por isso, a definição do Complexo prevê expansão futura com “a interligação dos açudes Pereira de Miranda e Sítios Novos, através de canal; a construção dos açudes Cauhípe, Anil e Ceará; e a integração com o Sistema Metropolitano de Fortaleza, com a entrada em operação do Açude Castanhão”. A transposição do Rio São Francisco se encaixa nesta etapa. De acordo com o projeto, o Eixo Norte retira água em Cabrobó (PE), levando-a para a Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará (veja mapa). Nesse último, a água chega ao Rio Jaguaribe, de onde segue para o Açude do Castanhão, seu destino final, segundo a proposta do governo federal. Ocorre que, por sua vez, o governo do Ceará está construindo o Canal da Integração, com 255 km de extensão, que levará a água do Castanhão até o Pecém. O primeiro trecho, de 55 km, ficou pronto em 17 de dezembro de 2004. Quando a obra estiver concluída, a última ponta do Canal levará 1,7 m³/s de água até o Complexo Industrial.
Um projeto hipócrita A transposição não serve só para levar água ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém. O problema é que nos demais locais onde o Chico chegará, seu uso tem a mesma destinação. “A transposição faz parte da velha indústria da seca. Grandes obras, uso de muito dinheiro, empreiteiras gigantes, pouca discussão e a nossa visão é a de que não vai democratizar a água no Semi-Árido”, denuncia Roberto Malvezzi, da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Hoje, alerta, existe o que se chama de hidronegócio – a fruti-
cultura e a cana irrigada, a criação de camarão em cativeiro etc. “E os latifundiários estão interessados nesse negócio também”, explica o dirigente da CPT. Marcus Vinícius de Oliveira, diretor técnico da organização não-governamental Esplar, garante que, no Ceará, a água da transposição servirá apenas ao Pecém, para abastecer a população urbana da capital Fortaleza e o agronegócio. “Como o governo não consegue justificar um investimento desta ordem (o projeto prevê R$ 4,5 bilhões) pelos seus objetivos reais, ele diz que vai beneficiar 12
milhões de pessoas. É muita hipocrisia”, argumenta Oliveira. Senhorinha Soares, coordenadora da CPT cearense, pôde comprovar na prática o que afirmam Malvezzi e Oliveira. Em julho, ela percorreu os 55 km do trecho já construído do Canal da Integração. E constatou a inexistência de uma estrutura de distribuição de água para as comunidades ribeirinhas. “As pessoas continuam usando o antigo sistema de abastecimento municipal, ou então, cisternas. Em algumas comunidades, a água é retirada do canal com balde!”, espanta-se. (LB)
Fruticultura, fonte de lucros Ser elite urbana-industrial, não significa que o grupo do senador Tasso Jereissati não está interessado nos lucros do agronegócio, gerados, no Ceará, sobretudo, pela fruticultura. O Estado é o maior exportador de abacaxi e, também, um dos líderes em castanha de caju, banana, manga, melancia e melão. Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em 2004, foram exportados 729 milhões de dólares pelo Porto do Pecém, 30% dos quais em frutas. E 38% das vendas externas de frutas também saem por Pecém. A transnacional estadunidense Del Monte Fresh Produce, uma
das maiores do mundo, foi a principal exportadora pelo Porto do Pecém, em 2004, com 25 milhões de dólares. A empresa cultiva 2,5 mil hectares na Chapada do Apodi, entre os municípios de Quixeré e Limoeiro do Norte, às margens do Rio Jaguaribe. Em junho, a mesma Del Monte assinou termo de ajustamento de conduta com o Ministério Público Estadual de Meio Ambiente comprometendo-se, entre outras obrigações, a “não poluir mais o Rio Piranhas-Açu com agrotóxicos e não destruir mais a mata ciliar”. A transnacional aceitou o acordo para evitar processo na Justiça e ainda doou R$ 50 mil a ONG da região.
Em entrevista ao jornal Gazeta Mercantil, o governador Lúcio Alcântara informa que o Estado investe em fruticultura, “com um plano de recursos hídricos. (...). Há um grande programa de investimentos em recursos hídricos, de interligação de bacias. O Canal da Integração, por exemplo, vai trazer água do Açude do Castanhão ao Complexo Industrial do Pecém e, com isso, assegurar a oferta de água, pois temos irregularidade de chuvas. Os investimentos também dependem da disponibilidade de água. Começamos há pouco tempo a produção de fruticultura irrigada e deveremos exportar este ano cerca de 30 milhões de dólares”, comemorou Alcântara. (LB)
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DEBATE MEMÓRIA
O legado político e moral de Chico Mendes instigados pelas grandes casas aviadoras do complexo de extração de borracha. Aqui, também, o profundo sentido humanístico da ideologia de Chico Mendes ganhava sentido prático.
Carlos Walter Porto-Gonçalves rancisco Alves Mendes Filho nasceu no Seringal Porto Rico no município de Xapuri em 15 de dezembro de 1944, filho de pais nordestinos que migraram para a Amazônia. Desde os 11 anos trabalhava como seringueiro partilhando o destino comum àquelas famílias que em vez de ir à escola trabalham para extrair o látex. Chico Mendes teve a fortuna de encontrar aquele que seria seu grande mestre, Fernando Euclides Távora, que não só lhe ensinou a ler e a escrever, mas o caminho que o levaria a se interessar pelos destinos do planeta e da humanidade. Euclides Távora era um militante comunista que havia participado ativamente no levante comunista de 1935 em sua cidade natal, Fortaleza, e, ainda, na revolução de 1952 na Bolívia. Retornando ao Brasil pelo Acre, Euclides Távora vai morar em Xapuri quando se torna mestre de Chico Mendes. Chico Mendes sempre falava com grande carinho de seu grande mentor político que nunca mais veria desde o golpe militar de 1964. A educação passou a ser uma verdadeira obsessão de Chico Mendes ao que dava um sentido político muito prático, pois, acreditava, que sabendo ler e escrever o seringueiro não mais seria roubado nas contas do barracão do patrão. Em 1975, já militando nas comunidades eclesiais de base – as Cebs – funda o primeiro sindicato de trabalhadores rurais no Acre, em Brasiléia, junto com seu amigo Wilson Pinheiro. Em março de 1976 organiza junto com seus companheiros, o primeiro Empate no Seringal Carmen. O Empate consistia na reunião de homens, mulheres e crianças, sob a liderança dos sindicatos, para impedir o desmatamento da floresta, prática que se tornaria emblemática da luta dos seringueiros. Nos Empates alertavam os ´peões` a serviço dos fazendeiros de gado, geralmente de fora do Acre, que a derrubada da mata significava a expulsão de famílias de trabalhadores, convidava-os a se associar à sua luta oferecendo ‘colocações` e ‘estradas`de seringa para trabalhar e, firm es, expulsava-os dos seus acampamentos de destruição impedindo seu trabalho.
A educação passou a ser uma verdadeira obsessão de Chico Mendes ao que dava um sentido político muito prático, pois, acreditava, que sabendo ler e escrever o seringueiro não mais seria roubado nas contas do barracão do patrão Os Empates tiveram um papel decisivo na consolidação da identidade dos seringueiros e essa forma de resistência acabou por chamar a atenção de todo o Brasil, sobretudo após o assassinato de seu amigo Wilson Pinheiro em 21 de julho de 1980.Chico Mendes insistiu com os Empates mobilizando os seringueiros, mesmo depois que as autoridades governamentais, diante da repercussão da resistência dos seringueiros, começaram a fazer projetos de colonização. Chico Mendes, desde então, mostraria
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uma lúcida compreensão do significado daquela estratégia governamental que, inclusive, encontrava eco entre militantes sindicais, recusando-a, posto que levaria o seringueiro a deixar de ser seringueiro ao torná-lo um colono agricultor confinado a 50 ou 100 hectares de terra. Chico Mendes valorizava o modo de vida seringueiro que usava uma restrita pequena parcela de terra junto à casa para fazer seu roçado e criar pequenos animais e fazendo a coleta de frutos e resinas da floresta. Para os seringueiros o objeto de trabalho não é a terra e, sim, a mata. Assim, mais que hectare de terra, Chico Mendes e os seringueiros lutavam pela floresta e foi essa firme convicção que o levou a gozar de apoio dos seus pares e aproximá-lo dos ecologistas, o que fazia com desconfiança como não se cansou de manifestar a amigos. Como comunista Chico Mendes desconfiava não só dos ecologistas como também de uma série de movimentos sociais que começavam a se destacar naqueles anos (mulheres, negros, homossexuais) que, acreditava, dividiam a luta dos trabalhadores. Todavia, como homem prático e com grande capacidade de subordinar os princípios à vida sem perder o sentido da sua luta, Chico Mendes percebeu que os ecologistas ao defenderem a floresta eram aliados importantes da luta dos seringueiros na prática, além de permitirem que os seringueiros saíssem do isolamento a que estavam confinados. Os ecologistas , por seu lado, reconheceram a importância da luta dos seringueiros e dos seus Empates na preservação da floresta. Chico Mendes percebeu que a luta dos seringueiros era uma luta de interesse da humanidade e, pouco a pouco, foi firmando a convicção de que além da exploração dos trabalhadores, o capitalismo tinha uma voraz força destrutiva que havia de ser combatida. Assim, Chico Mendes vai se tornar um dos maiores próceres do ecossocialismo pela junção da luta contra a devastação com a luta contra a exploração e o capitalismo. Enfim, desenvolvia uma fina
percepção holística, recusando tanto um sindicalismo como um ecologismo restrito.
Como comunista Chico Mendes desconfiava não só dos ecologistas como também de uma série de movimentos sociais que começavam a se destacar naqueles anos (mulheres, negros, homossexuais) que, acreditava, dividiam a luta dos trabalhadores
Assim, Chico Mendes vai se tornar um dos maiores próceres do ecossocialismo pela junção da luta contra a devastação com a luta contra a exploração e o capitalismo. Enfim, desenvolvia uma fina percepção holística, recusando tanto um sindicalismo como um ecologismo restrito Registre-se que a proposta da Reserva Extrativista contemplava, ainda, uma inovadora relação da sociedade com o Estado, na medida que embora a propriedade formal da reserva extrativista seja do Estado, no caso, do Ibama, a gestão da mesma é de responsabilidade da própria comunidade, cabendo ao órgão público supervisionar o cumprimento do contrato de concessão de direito de uso que, nesse sentido, é o pacto que se estabelece entre o Estado e os seringueiros. Em toda sua vida Chico Mendes jamais deixou de se dedicar à construção de instrumentos de lutas sociais e políticas, tendo sido dirigente nacional da Central Única dos Trabalhadores e do Partido dos Trabalhadores, assim como do Conselho Nacional dos Seringueiros. O legado político e moral de Chico Mendes é enor-
* Instrumento que os seringueiros carregam sobre a cabeça para iluminar os caminhos na mata quando saem, ainda de noite, para trabalhar. Carlos Walter PortoGonçalves é geógrafo, professor doutor do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense
DIREITO À VIDA
A festa das cisternas em Pintadas Roberto Malvezzi (Gogó)
Em 1984, num encontro nacional de trabalhadores rurais, Chico Mendes defende uma ousada proposta para a época, a de que a reforma agrária deveria respeitar os contextos sociais e culturais específicos e, um ano depois, ao fundar o Conselho Nacional dos Seringueiros em Brasília, já desenvolve junto com seus companheiros a proposta de Reserva Extrativista, uma verdadeira revolução no conceito de unidade de conservação ambiental que, pela primeira vez, não mais separa o homem da natureza como até então se fazia. Costumava dizer que a Reserva Extrativista era a reforma agrária dos seringueiros. A Reserva Extrativista consagra todos os princípios ideológicos que Chico Mendes propugnava posto que, ao mesmo tempo, cada família detinha a prerrogativa de usufruto da sua colocação com sua casa e com suas estradas de seringa, a terra e a floresta eram de uso comum, podendo mesmo cada um caçar e coletar nos espaços entre as estradas de cada família, idéia comunitária inspirada nas reservas indígenas. Desde então Chico Mendes se empenha, junto com seu amigo Ailton Krenak, na construção da Aliança dos Povos da Floresta unindo índios e seringueiros invertendo a história de massacres que até então protagonizaram
me e pode ser visto tanto pelos intelectuais que reconhecem a originalidade de suas idéias e práticas políticas, como pela(o)s política(o)s que, tanto no seu Estado como no país, têm seus cargos de vereador(a), deputada(o), governador, senador(a) e ministra(o) associados às lutas que protagonizou. Tanto no Brasil como no mundo seu trabalho foi reconhecido: em 1987 recebe, em Londres, o Prêmio Global 500 da ONU e, em Nova York, a Medalha da Sociedade para Um Mundo Melhor e, em 1988, o título de Cidadão Honorário da cidade do Rio de Janeiro concedido pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Sua enorme crença na capacidade humana de superar as contradições do mundo que vive se organizando social e politicamente foi capaz de inspirar todo um conjunto de idéias e práticas hoje em curso no mundo que vê a natureza, com sua produtividade e capacidade de autoorganização (neguentropia), e a criatividade humana na sua diversidade cultural como bases de uma racionalidade ambiental (Enrique Leff) ou, como ele gostava de chamar, de uma sociedade que combinasse socialismo com ecologia. Em 22 de dezembro de 1988 uma bala desferida por assassinos ligados à UDR pensaram calar essa voz cujos ecos continuam a repercutir ainda entre nós. Tal como uma poronga* ela continua iluminando caminhos.
uem acha impossível construir uma cisterna para cada família no semi-árido é porque nunca ouviu falar de Pintadas. Talvez não mesmo. Uma pequena cidade, de onze mil habitantes, encravada no coração da Bahia, próxima à BR que liga Salvador a Brasília. Mas é uma cidade especial. Terceiro mandato consecutivo do PT. Aquele velho, dos tempos dos sonhos, baseado na luta popular. Quando Neuza Cadore, uma agente pastoral vinda do sul, ganhou pela primeira vez a eleição local, ACM eliminou todos os serviços públicos estaduais existentes na cidade. Nem banco ficou. Perseguição pura e simples. Então resistiram. Criaram seu próprio banco – cooperativa de crédito –, fizeram parceria com outros bancos, recriaram os serviços públicos a seu modo e hoje a cidade tem todos os serviços cortados pelo governo estadual. Resultado, é o terceiro mandato consecutivo no quintal de ACM. Desde o início, já baseada nas comunidades eclesiais de base, começaram a construção de cisternas no meio rural. Hoje é o primeiro município do semi-árido brasileiro a construir uma cisterna para cada família. Agora também já começou a construção no meio urbano, onde a água do açude que abastece a cidade é salobra. Por isso, nesse
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final de semana, há uma “festival das águas” em Pintadas. O que faz Pintadas diferente dos demais é que ali está a mão do poder público, que decidiu investir no que o povo necessita. Abastecer famílias com água potável é uma das metas do milênio. No Brasil é perfeitamente factível. Nessa empreitada estiveram as comunidades, a Igreja, a solidariedade nacional e internacional, mas também o poder público municipal. Caso absolutamente ímpar nesse sertão onde as prefeituras são a extensão da propriedade particular dos prefeitos. Nenhuma outra prefeitura petista também se interessou em fazer cisternas para resolver a sede do povo no semiárido. Nos últimos tempos o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) financiou um lote de cisternas em Pintadas. Agora, se quiser, a prefeitura já pode investir na água para produção. Assim, realmente buscar a segurança hídrica e alimentar de seu povo, com seus recursos, com seus esforços, com todo seu mérito. Como muita gente, como muitas entidades – Cáritas, ASA, Sasop, IRPAA, CPT etc – também vou ao “Festival das Águas” de Pintadas, para cantar em festa pública com o povo. Pintadas merece e nós merecemos junto. Roberto Malvezzi (Gogó) é coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA NACIONAL
15º PRÊMIO CRIANÇA Iniciativa da Fundação Abrinq, o prêmio recebe inscrições até 28 de fevereiro de 2006. Podem participar empresas, indivíduos e organizações da sociedade civil sem fins lucrativos que sejam mantidas com até 75% de recursos governamentais e que desenvolvam ações com crianças de até seis anos. O objetivo é estimular e reconhecer experiências bem-sucedidas para crianças nessa faixa etária, fase decisiva para o desenvolvimento do ser humano. Mais informações: www.fundabrinq.org.br/ premiocrianca. 2º CONCURSO “O DIREITO DE PARTICIPAR” As inscrições para o concurso, promovido pelo Programa Infância Adolescência e Juventude da Cáritas Brasileira, em parceria com Unicef e Caixa Econômica Federal, foram prorrogadas até o dia 10. Com base no tema “Escola e comunidade: parceiras na cidadania”, o concurso estimula o desenvolvimento de projetos de ação e intervenção na comunidade, registrados em forma de história em quadrinhos, por alunos das escolas públicas do ensino fundamental e do ensino médio. Mais informações: (85) 3253-6998
NACIONAL
Arquivo Brasil de Fato
DISTRITO FEDERAL PRÊMIO MARGARIDA ALVES DE ESTUDOS RURAIS E GÊNERO Estão abertas até 15 de dezembro as inscrições para o prêmio, que tem como objetivo valorizar pesquisas e estimular a elaboração e a divulgação de novos conhecimentos no campo das ciências humanas e agrárias. Serão selecionados os melhores trabalhos acadêmicos, em âmbito nacional, sobre estudos rurais e de gênero no Brasil, em duas categorias: Apoio à Pesquisa (mestrado e doutorado) e Ensaio Inédito. Mais informações: premiomargarida@unb.br, www.nead.org.br
Direitos de Resposta Estréia no dia 12, na Rede TV!, às 16h, o programa Direitos de Resposta, produzido em conjunto pelo Ministério Público Federal e seis ONGs que atuam em defesa dos Direitos Humanos. Em formato de debate, o programa é resultado de um acordo jurídico em resposta às ofensas a minorias exibidas nas pegadinhas do já suspenso Tarde Quente, apresentado por João Kleber. PROGRAMAÇÃO da primeira semana na Rede TV!: 12/12 - Direitos humanos 6ª CONFERÊNCIA NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 12 a 15 O encontro, realizado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e pela Subsecretaria dos Direitos Humanos da Secretaria-Geral da Presidência da República, terá como tema “Participação, controle social e garantia de direitos - por uma política para a criança e o adolescente”. Local: Centro de Convenções Ulysses Guimarães, SDC Eixo Monumental, 3º andar, Brasília Mais informações: www.mj.gov.br/sedh/ct/conanda/abert_conanda.asp
1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE CULTURA 13 a 16 A conferência pretende consolidar a união entre sociedade civil e governo, na formulação e na execução de políticas públicas de cultura. Estarão em debate o Plano Nacional de Cultura e questões como gestão pública da cultura, direitos e cidadania, economia da cultura e patrimônio da cultura. Local: Brasília
Mais informações: www.cultura.gov.br/foruns_de_ cultura/conferencia_nacional_de_ cultura/index.html
MARANHÃO 1º ENCONTRO NORTE-NORDESTE DE COMUNICAÇÃO E CULTURA 8 a 10 Realizado pela Universidade Federal do Maranhão, o encontro terá
como tema “Articulação local e global: construindo conexões culturais”. O evento, que é promovido pelo Instituto de Comunicação, Educação e Cultura Chamamaré, contará com oficinas, palestras, minicursos, conferências e grupos de trabalho. Local: Universidade Federal do Maranhão, Campus do Bacanga, São Luís Mais informações: www.chamamare.org/encontro.html
13/12 - Direito à comunicação 14/12 - Diversidade sexual 15/12 - Crianças e adolescentes 16/12 - Questão racial Mais informações: www.intervozes.org.br
SÃO PAULO 17 X NELSON - O INFERNO DE TODOS NÓS Até 18 Oito atores da companhia Antikatártika Teatral contarão, em 17 cenas escolhidas (uma de cada peça), em ordem cronológica, a evolução da dramaturgia Rodriguiana, ou seja, da tragédia nacional e do teatro desagradável que o autor propõe em sua obra. A montagem, costurada por coros, se passa no inferno (influência de textos de James Joyce e da Divina Comédia de Dante Aligheri - O inferno), e convida o público a sentar frente às relações limites dos personagens rodriguianos, sem divisão de palco e platéia (assim como pedia Nelson Rodrigues), mas sem perder o distanciamento necessário para a reflexão. Local: Teatro Fábrica São Paulo, R. da Consolação, 1623, São Paulo Mais informações: (11) 3255-5922
CEARÁ 4º FESTIVAL DE TEATRO DE FORTALEZA 9 a 17 O evento promove uma Mostra Especial (categorias adulta e infantil), uma Mostra Repertório e uma Mostra Paralela (lona livre), com apresentações na Praça do Ferreira, e espetáculos de Teatro com Bonecos e Teatro de Rua, nos terminais de ônibus. Serão realizadas 8 oficinas e debates sobre os espetáculos da Mostra Especial. A inclusão de espaços como a Praça do Ferreira e os terminais de ônibus faz parte de uma proposta do festival de dessacralizar os espaços instituídos para o teatro, descentralizar a produção artística teatral e proporcionar oportunidade de acesso a espetáculos teatrais, em um movimento de encontro entre espaços centrais do cotidiano da cidade e a arte cênica. Local: Teatros Antonieta Noronha, Sesc Emiliano Queiroz e São José, Praça do Ferreira e terminais de ônibus, Fortaleza Mais informações: (85) 3253-7879
DISTRITO FEDERAL CAMPANHA AMIGOS DA ÁGUA 11 Com o lançamento do Espaço Água, no dia 16 de novembro, a organização Amigos do Futuro deu início à campanha Amigos da Água, que pretende conscientizar e mobilizar a população do Distrito Federal para o consumo racional da água e para a importância da preservação dos mananciais que abastecem a cidade. A campanha terá encontros mensais no segundo domingo de cada mês. O objetivo é atingir um grande público formador de opinião e multiplicador. Local: Zoológico de Brasília, Avenida das Nações, Via L4 Sul, Brasília Mais informações: www.espacoagua.org.br
1º PRÊMIO COOPERIFA 22 O Prêmio Cooperifa, que completou quatro anos em novembro, será entregue, segundo os organizadores, a todas as pessoas e entidades que direta ou indiretamente “fazem a diferença para o povo da periferia”. Local: Sarau da Cooperifa, R. Bartolomeu dos Santos, 797, São Paulo Mais informações: (11) 5891-7403
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CULTURA
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TEATRO
Sem-terra ocupam palco do Arena Cristiane Gomes de São Paulo (SP)
O
grupo de teatro Filhos da Mãe... Terra, da Brigada de Teatro Patativa do Assaré, que pertence ao Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ocupou o palco do Teatro de Arena, em São Paulo, no dia 3. O grupo apresentou trechos das peças Por estes santos latifúndios, do colombiano Guillermo Maldonato Perez, e Posseiros e fazendeiros, adaptação do texto Horácios e curiácios, do alemão Bertold Brecht. Inédita no Brasil e ganhadora do Prêmio Casa de las Américas, de Cuba (uma das premiações culturais mais importantes da América Latina), Por estes santos latifúndios retrata o violento processo de luta pela terra na Colômbia, no começo da década de 1970, quando o movimento camponês organizado realizou mais de duas mil ocupações no país. A montagem Posseiros e fazendeiros aborda a influência dos meios de comunicação no debate ideológico sobre o processo de reforma agrária no Brasil.
Fotos: Ana Maria Straube
Grupo do MST se apresenta em espaço que é referência política e cultural na história brasileira
LIÇÃO POLÍTICA A presença do grupo teatral do MST no palco do Arena é de uma intensa simbologia. O teatro, localizado em uma estreita rua do centro da capital paulista, foi um espaço significativo de luta e de reflexão política na história recente. Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho (Vianinha) foram alguns dos grandes nomes do teatro brasileiro que surgiram no Arena. Lá, nas décadas de 1950 e 1960, eram discutidas questões que permanecem atuais, como reforma agrária, desemprego, exclusão e injustiça social. “O Arena, fundado em 1953, marcou o início de uma proposta de mudança no país. A apresentação do MST aqui mostra que a discussão permanece, está viva, que o desejo de transformação não se perdeu”, afirmou o jornalista Florestan Fernandes Jr. Escrita há 50 anos, a peça Eles não usam Black-tie, de Guarnieri foi apresentada pela primeira vez no palco do Teatro de Arena, em 1958. A montagem, grande sucesso de público e de crítica, foi a primei-
Artistas sem-terra apresentam cena de Por estes santos latifundios, do colombiano Guillermo Maldonato Perez
Iná Camargo Costa, escritora e pesquisadora de teatro da Universidade de São Paulo. A Brigada de Teatro Patativa do Assaré do MST foi formada em 2001, com o Centro de Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Está organizada em todos os Estados em que o Movimento atua. Vários grupos teatrais de longa trajetória contribuem para a formação da Brigada: Companhia do Latão, Teatro de Narradores, Oi Noiz Aqui Traveiz, entre outros. O grupo Filhos da Mãe... Terra existe desde 2002 e envolve 12 jovens do Assentamento Carlos Lamarca, localizado na região de Sorocaba, interior paulista. Sob a coordenação de Douglas Estevam, do Coletivo Nacional de Cultura do MST, o grupo se reúne duas vezes por mês para os ensaios e
ra obra teatral a retratar uma greve organizada por operários na capital paulista. Nessa época, o Teatro de Arena era uma referência quando se falava em união entre arte e política, com o objetivo de transformação social. A peça Quatro quadras de terra, escrita por Vianinha, e que tratava da questão agrária, também recebeu o Prêmio Casa de las Américas de Cuba, em 1964.
MST EM CENA “O que vimos aqui é uma lição política. Muita gente que sabia do trabalho teatral desenvolvido pelo MST de ouvir falar, viu com seus próprios olhos. O pessoal da cidade que trabalha com teatro precisa saber disso e começar a contribuir da forma que puder. Demos um grande passo. Para mim, foi um dia histórico”, disse, emocionada,
para as discussões sobre produção de peças. O processo de adaptação e escrita dos textos é coletivo. “Pela linguagem teatral, podemos mostrar a realidade do MST de uma forma
diferente do que aparece no jornal. Além disso, a gente aprende muito. O teatro proporciona uma união entre a gente”, diz Geralda Rosa da Silva, jovem atriz do grupo.
CINEMA
Solange Engelmann de Curitiba (PR) Uma amostra dramática de como o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos contra Cuba prejudica a vida do povo cubano foi exibida, dia 29 de novembro, em Curitiba (PR), com a primeira apresentação, no Brasil, do documentário argentino Bloqueio - A guerra contra Cuba. Com as presenças do embaixador de Cuba no Brasil, Pedro Núnez Mosquera, e de uma das produtoras do filme e assessora de Comunicação do governo argentino, Maria Silvína Silvestre, a seção fez parte da programação de Cinema Latino Americano de Curitiba. Segundo Maria Silvína, a idéia do documentário, que tem 70 minutos e uma trilha sonora com músicas cubanas, é trazer a realidade, o outro lado, que os grandes meios de comunicação escondem. O embaixador cubano revelou que esse é o bloqueio mais longo na história da humanidade: “Esse bloqueio de 45 anos tem custado ao nosso povo mais de 82 bilhões de dólares de perdas, de vidas humanas. Afeta todas as esferas da
sociedade, como a saúde, a educação, a cultura e a alimentação”. O filme surgiu a partir de uma investigação jornalística da jornalista argentina Carolina Silvestre. É dirigido por Daniel Desaloms e produzido pela produtora independente Latino Produções, com apoio do Instituto Nacional de Cine e Artes Audiovisuais da Argentina. “Carolina visitou Cuba e se deparou com o problema do bloqueio. A princípio, queria fazer um programa especial sobre o assunto, mas Desaloms a convenceu a produzir um documentário”, conta a produtora Maria Silvína. A jornalista também está escrevendo um livro sobre o assunto, que será lançado em março do próximo ano.
Solange Engelmann
Filme mostra prejuízos de bloqueio contra Cuba
EXIBIÇÕES
A produtora do documentário Maria Silvína e o embaixador Pedro Mosquera
O lançamento oficial do filme Bloqueio – A guerra contra Cuba ocorreu no dia 24 de outubro, em Buenos Aires, na Argentina. Na ocasião, mais de 450 pessoas assistiram ao documentário. Mesmo recente, o trabalho já desperta o interesse de muitos países. “Quando fizemos a divulgação na imprensa internacional vários países se interessaram em exibir o documentá-
rio”, afirma Maria Silvína. Depois do Brasil, o documentário será apresentado em Caracas, na Venezuela. Em seguida vai para Colômbia, Bolívia, Itália, França e Espanha. Também serão realizadas seções durante o 6º Fórum Social Mundial, que acontece na Vezenuela, em 2006. Os produtores argentinos querem colocar o
documentário nas salas de cinema de todo o mundo.
AÇÕES TERRORISTAS Há vários anos o bloqueio a Cuba vem sendo condenado pelas Nações Unidas. A última condenação aconteceu dia 4 de novembro, quando 183 países assinaram uma resolução solicitando o fim do blo-
queio econômico – que continua, porque os países não são obrigados a cumprir as resoluções da Assembléia Geral das Nações Unidas. O embaixador Mosquera diz que esse bloqueio é acompanhado por ações terroristas dos EUA contra Cuba. “Isso tem custado ao país mais de três mil vidas humanas, esses cubanos têm sido assassinados por ações terroristas”, denuncia. Mosquera conta que, apesar do bloqueio, o povo cubano continua resistindo, investindo em seu desenvolvimento. “Este ano a economia cubana vai crescer 9 pontos, a mortalidade infantil é de 5,4 % e a cultura da população continua se fortalecendo”, declara. Atualmente, cerca de 13 mil jovens da América Latina estudam em Cuba como bolsistas, a maioria fazendo faculdade de Medicina – entre eles, 800 brasileiros. Durante a passagem por Curitiba, o embaixador se reuniu com o governador do Paraná, Roberto Requião, para acertar a vinda de uma missão cubana ao Estado com o objetivo de discutir intercâmbios comerciais e aumentar as relações com Cuba.