Ano 3 • Número 147
R$ 2,00 São Paulo • De 22 a 28 de dezembro de 2005
Na Bolívia, vitória dos excluídos C
om uma votação expressiva, o aymará Evo Morales foi aclamado pelo povo presidente da Bolívia, amparado em um programa de caráter social e nacionalista. O candidato do Movimiento Al Socialismo (MAS) contou com apoio das mesmas organizações populares que derrubaram dois presidentes nos últimos anos (Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, e Carlos Mesa, em 2005). Morales foi, também, o preferido dos indígenas, que representam 60% da população, mas nunca tiveram um presidente de sua etnia. Reportagem exclusiva do Brasil de Fato mostra que a plataforma do MAS promete um ciclo de transformações na Bolívia, com a valorização do indígena e o uso das reservas de gás para a industrialização do país. Para Emir Sader, a vitória de Morales pode “representar uma alternativa fundamental para a luta antineoliberal na América Latina”. Págs. 2 e 9
Fotos Fabio Mallart
Primeiro presidente indígena, Evo Morales é eleito com uma plataforma social, nacionalista e antineoliberal
Milhares de integrantes do Movimento Al Socialismo (MAS) e indígenas comemoram, dia 20, vitória de Evo Morales para Presidência da Bolívia
Temendo fiasco, OMC costura acordo vago Para evitar mais um fracasso, os participantes da 6ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Hong Kong, de 13 a 18, articularam a confecção de um acordo de fachada para destravar as negociações. A declaração final mostrou-se bastante vaga em relação aos interesses
dos países em desenvolvimento (ou seja, a agricultura), enquanto os países ricos conseguiram arrancar compromissos dos mais pobres em bens industriais e serviços. Nas ruas, milhares de pessoas protestaram durante o encontro. Foram tratados com violência pela polícia local. Pág. 11
Greve de fome em frente à casa de Lula
Semi-Árido não precisa da água do Velho Chico
Política caolha: parque industrial está encolhendo
Sete integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) fazem greve de fome em frente à casa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em São Bernardo do Campo, para exigir a desapropriação de um terreno, onde 800 famílias estão acampadas. Na véspera de uma agendada reintegração de posse do acampamento Chico Mendes, a coordenação do MTST se reuniu com a secretária Nacional de Habitação, mas saiu com poucas garantias. Pág. 3
No dia 15, frei Luiz Flavio Cappio foi armado de argumentos para audiência em que discutiu a transposição do Rio São Francisco com o presidente Lula. O religioso explicou que as regiões supostamente beneficiadas pela obra não precisam de mais água, e que esta serviria apenas para indústrias e o agronegócio. Mais: que a superação dos problemas do Semi-Árido passa pela convivência com o clima local. Lula prometeu abrir um amplo debate. Pág. 13
Juros escorchantes, dólar barato, barateamento das importações, impostos elevados, corte de investimentos, empurraram a indústria de volta ao final dos anos 1950, início da industrialização. A participação do setor industrial no PIB, de 24% em 1958, chegou a 32% em 1986 e recuou para 23% em 2004. Motor do desenvolvimento, da criação de tecnologia e da geração de empregos de qualidade, a desindustrialização é danosa para o país. Pág. 7
Operários lutam para defender fábricas ocupada
Prisões da CIA espalhadas pelo mundo
Artistas de todo o país discutem rumos da cultura
Para Dallari, governo não garante direitos Mesmo acreditando que os partidos políticos representam apenas um “instrumento de obtenção de poder”, o jurista Dalmo Dallari esperava que o governo do presidente Lula fosse garantir os direitos fundamentais dos brasileiros. Hoje, decepcionado, afirma que pouco foi feito para que as condições fossem alteradas “porque o governo se esqueceu da militância de base”. Pág. 8
Pág. 10
Pág. 16
E mais:
Daniel Cassol
Pág. 5
MEMÓRIA - Livro em homenagem ao intelectual palestino Edward Said tem contribuições de Aziz Ab’Saber, Marilena Chauí e outros. Pág. 4 LULA- O Ibase analisou relação governo e sociedade e concluiu: demandas sociais foram deixadas de lado. Pág. 6
No bairro de Três Figueiras, em Porto Alegre (RS), quilombolas comemoram regularização das terras.
Pag. 6
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De 22 a 28 de dezembro de 2005
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Cavalcanti Proença • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, 5555 Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
CARTAS DOS LEITORES INDIGNAÇÃO Espero que esta minha manifestação seja publicada na próxima edição. Isso se, a independência editorial que vocês dizem prezar, de fato existir. Como assinante e, principalmente, leitor, quero manifestar minha indignação com o conselho editorial do jornal. Acredito que imprensa de verdade deve ser feita com respeito ao leitor e, acima de tudo, respeito pela verdade, independência e imparcialidade. Adjetivos pouco encontrados neste veículo. Como católico praticante, fico abismado com as matérias de cunho anticlero publicado recentemente no jornal. Primeiro com a defesa escancarada do aborto. Depois com a união civil homossexual e, como se não bastasse, criticam o Vaticano por proibir o ingresso de gays nos seminários. Ora bolas, vocês se acham os donos da verdade e detentores da sabedoria milenar? Como ousam palpitar sobre a esfera particular? A Igreja é estritamente direcionada para o clero e leigos engajados na mesma. Portanto, ela ganha cunho particular. Não cabe, por exemplo, os protestantes e, principalmente a imprensa, criticar a atuação da Igreja no que diz respeito ao seu interior, ao seu particular. A Igreja tem o direito de formar o clero da maneira que julgar convincente com a sua doutrina. Se o papa – o líder da nossa Igreja – diz que assim deve ser, quem são vocês
para dizer o contrário? Acredito que o jornal têm muitos pontos relevantes e de extrema importância para a nação, mas, sinceramente, sinto nojo desse veículo quando leio “análises” relacionadas a espitirualidade e fé. Quanto ao “monge” que integra o conselho editorial, confesso que gosto muito dos seus escritos, mas, sobre política e esquerda. Peça para ele, por favor, não entrar em aspectos religiosos... certamente ele é o mais despreparado para fazer análises desse cunho. Pedro Baizi Por correio eletrônico MARCA DO SERRA A marca do prefeito Serra em seu primeiro ano de gestão foi a perseguição sem trégua aos ambulantes, vendedores de produtos baratos à população, a transferência das contas bancárias dos funcionários da Prefeitura para o Banco Itaú, um dos financiadores de suas campanhas, restrições ao uso do bilhete único, ao invés da ampliação prometida, recriação do PAS de Maluf, agora com outra denominação e, finalmente, um refresco: promessa de construção de seis CEUS, objetos de duras críticas durante sua última campanha. Antônio Rodrigues de Souza São Paulo (SP)
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NOSSA OPINIÃO
Na Bolívia, vitória dos explorados
A
eleição de Evo Morales na Bolívia confirma uma linha de elevação nas lutas das massas na América Latina e expõe o agravamento da crise do neoliberalismo mundialmente. Nesta eleição expressou-se também a consciência histórica do povo boliviano, um povo que já fez uma revolução em 1952, quando se estatizou as minas, se fez a reforma agrária, criou-se as milícias populares, a Central Operária fez parte do governo, processo mais tarde abortado pelas manobras do imperialismo, com a colaboração das direções burguesas nativas. Mas, a experiência se realizou, e esta consciência não se perde totalmente, volta se expressar em novas condições, exigindo sempre um programa de transformações para retomar as mais elevadas experiências e construir outro país, outra sociedade. O posicionamento político-eleitoral das massas exploradas, dos indígenas e campesinos, dos estudantes e intelectuais, bem como de setores nacionalistas que também pesaram neste processo, é o resultado de uma resistência heróica do povo boliviano aos planos criminosos do neoliberalismo e das oligarquias locais. O voto em Evo Morales está cheio da disposição de luta deste povo, carrega o compromisso com centenas e centenas de mortos nos repetidos levantes populares contra os vários governos conservadores, que não puderam se estabilizar nem esmagar decisão transformadora deste povo. O resultado eleitoral também
indica como todos estes levantes contra o neoliberalismo, seja na forma de rebelião como na própria Bolívia, no Equador, na Argentina, ou através de processos eleitorais que tendem a dar sustentação para criar governos de mudanças, como no caso da eleição de Lula, no Brasil, e de Tabaré Vázquez, no Uruguai, indicam um certo grau de descoordenação do imperialismo, de agravamento de suas contradições, uma crise concreta das políticas neoliberais. Apesar de todas as tentativas para impor governos de direita, os EUA não têm conseguido controlar processos como fez no passado. Muitas outras conclusões podem ser extraídas da vitória eleitoral de Evo Morales, especialmente a partir do reconhecimento de um processo de elevação de uma cultura política de mudanças nas massas mais pobres da Bolívia. Um país em que os indígenas ficaram marginalizados durante séculos e jamais foram incorporados como cidadãos de pleno direito numa democracia sempre falsa, precária, hipócrita. Apesar de todos estas formas de repressão, de exclusão, as massas indígenas demonstram capacidade enorme de superação das condições de miséria e intervir de modo inteligente na política institucional, mas com objetivos transformadores. Por isso, é tão importante que Evo Morales defenda programaticamente a nacionalização das riquezas minerais, a reforma agrária, que enfrente
a Coca-Cola e todas as demais empresas estrangeiras que impõem contratos de rapina ao povo boliviano. Por isso, também é importante que Evo queira rediscutir os contratos com a Petrobras. A vitória de Evo fortalece uma frente ampla contra o imperialismo, porque o novo presidente da Bolívia já deixou clara sua posição solidária com Cuba, com a Venezuela, contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a favor da Alternativa Bolivariana para a América (Alba). Criam-se condições para uma maior e efetiva cooperação e uma política mais concreta para a integração latino-americana. A influência revolucionária de Cuba e da Venezuela encontrará novas possibilidades para expansão, ampliando a comunicação dos processos, interagindo, entre si, estimulando as massas de outros países a novas iniciativas para garantir mudanças políticas e barrar o imperialismo. Caso se confirme a proposta de Evo de governar com os movimentos sociais, dialogando com eles, com um programa de urgentes medidas socioeconômicas que a imensa maioria de bolivianos pobres tem direito e exige, será o início do atendimento das reivindicações históricas do povo boliviano. E isso deverá ser feito alterando as estruturas velhas, corruptas e incorrigíveis da sociedade capitalista atrasada da Bolívia. O corajoso voto em Evo foi para dar início a estas mudanças!
FALA ZÉ
OHI
CRÔNICA
Ninguém merece Luiz Ricardo Leitão O conturbado 2005 se despede sem deixar saudade, irremediavelmente marcado como o ano do “mensalão”. Afinal de contas, o câncer que se evidenciara de forma mais crônica na esfera política nacional revelou novos tumores em outras áreas da vida pública de Pindorama, até mesmo no futebol, esse eterno nicho do conservadorismo tupiniquim. De fato, a Série “A” do Brasileirão realizou o mais vergonhoso campeonato de sua história, com direito a lavagem de dólares da máfia transnacional no segundo maior time do país e uma bizarra – e até agora muito mal explicada – história de suborno da arbitragem, cujo desfecho, decerto, lançou uma terrível sombra de suspeição sobre o resultado final do torneio. Se esse é o sentimento geral dos nativos, imagine o leitor como se sente um carioca, após os hediondos crimes que selaram o fim de 2005 na outrora Cidade Maravilhosa. A explosão do ônibus 350, em um subúrbio do Rio, iniciativa gélida e cruel de um grupo de “varejistas” do tráfico local, em retaliação a um recente confronto com a PM na área, além de indiciar uma nova e imprevisível etapa da nossa “guerra particular”, também acusou o completo abandono a que a capital e o Estado
estão relegados pelas ditas “autoridades” que o povo ingenuamente elegeu. O prefeito, por exemplo, geralmente bastante loquaz quando se trata de anunciar sua candidatura à Presidência da República pelo PFL, ou as mirabolantes obras (todas atrasadas) do Pan 2007, não deu sequer um único pio: por certo, deve estar até hoje entretido a escrever o seu blog (diário virtual) na internet. A governadora, por sua vez, refugiou-se pela enésima vez na ilha de Brocoió, uma bucólica estância em meio à mui graciosa e poluída baía de Guanabara. É sempre assim: quando o clima esquenta na caótica vida social da província, Little Rose (que, na língua vernácula, se traduz como Rosinha) pede licença médica e se recolhe à residência campestre, para tomar banhos de sais e orar pela paz no povoado. Nessas horas, ela costuma apelar para o galante Little Boy (Garotinho, na língua dos tapuias), à espera de alguma luz divina. Como diria o saudoso Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada...” Nas mãos do príncipe consorte, ainda não faz muito tempo, a Segurança Pública do Rio presenciou espetáculos lamentáveis, como a grotesca “investigação” do assassinato de um executivo ianque na Barra, em que
o garboso Little Boy convocou a imprensa para apresentar um doente mental como autor do crime, sem ao menos concluir os ritos elementares de uma diligência policial e dos próprios trâmites judiciais. Ninguém merece! – resume com um misto de ironia e desalento o povo carioca, sem perder o espírito coloquial e irreverente com o qual resistimos a tantos desatinos. E o pior é que em 2006 eles voltarão à carga, de olho no Planalto, ao lado de gente como José Serra, o velho morcegão tucano, e do próprio Lula, outro que ainda crê que a realidade pode ser travestida sob o condão de uma oratória pífia e burlesca. Todavia, nem tudo está perdido em Pindorama. Nossa gente possui uma fibra invejável e ainda é capaz de reações fantásticas nos momentos mais adversos. Feliz Ano Novo, amigo leitor! E que 2006 seja o início da virada para todos nós... Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-Americana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)
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De 22 a 28 de dezembro de 2005
NACIONAL HABITAÇÃO
Sem-teto passam fome, por moradia Tatiana Merlino da Redação
Fotos: CMI
Em greve de fome em frente à residência do presidente, militantes do MTST exigem desapropriação de terreno
C
om forte sotaque nordestino, o baiano Nivaldo Chico explica a razão de ter iniciado uma greve de fome em frente à residência do também nordestino presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no município de São Bernardo: “Conseguir um teto”. Depois de esgotadas as vias de negociação com os governos municipal e estadual, sete integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), moradores do acampamento Chico Mendes deflagraram uma greve de fome, dia 19, para exigir a desapropriação de um terreno particular na cidade de Taboão da Serra (Grande São Paulo) onde há 800 famílias acampadas. “Essa foi a nossa alternativa final, e estamos dispostos a ir até às últimas conseqüências”, diz o grevista, com voz firme, porém calma. De acordo com o MTST, os acampados não têm para onde ir. “Nada será pior do que ver as mulheres do Chico Mendes embaixo de viadutos no dia de Natal”, afirma Nivaldo. A carência do pedreiro é a mesma de milhares de brasileiros. No país, faltam sete milhões de casas, e, apenas no Estado de São Paulo, faltam 1,4 milhão de moradias – 20% do déficit total do país.
OU COMIDA, OU CASA O baiano de 30 anos, natural de Itaberaba vive em Taboão da Serra desde fevereiro de 2005. Com os cerca de R$ 300 que ganha por mês em bicos como pedreiro e pintor, consegue “ou comer, ou pagar o aluguel”. No dia 3 de outubro, caminhando de volta para casa, viu o acampamento, entrou e ficou. “Agora, para onde o pessoal do movimento for, eu vou junto”, garante. Confiante, Nivaldo diz acreditar que o presidente da República irá atender ao seu apelo, “porque, além ter vindo da mesma região, o presidente também é da classe pobre”, argumenta.
Sete militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) prometem só voltar a comer quando acontecer a desapropriação de um terreno em Taboão da Serra
Os militantes escolheram protestar em frente à residência do presidente porque não conseguiram chegar a nenhum acordo com o município de Taboão da Serra e com o governo do Estado. “Além disso, o Lula parece ter mais sensibilidade para resolver a situação”, afirma Guilherme Boulos, da coordenação do movimento. A reivindicação dos grevistas é a desapropriação da área que ocupam e a construção de moradias populares para as 800 famílias. A área onde se encontra o acampamento, estava abandonada há 25
anos, e, de acordo com relatos de moradores da região, era um lugar onde ocorriam estupros, tráfico de drogas e desova de carros. Além disso, o proprietário da área, Paulo Colombo, tem dívidas com o município referentes a impostos que somam mais de R$ 500 mil. No entanto, parece que não será nada fácil para Nivaldo conseguir seu teto. Na véspera de uma prevista reintegração de posse do acampamento Chico Mendes, a coordenação do MTST reuniu-se com a secretária Nacional de Habitação,
Segundo a militante, a secretária Nacional de Habitação se comprometeu a garantir junto à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo o adiamento da reintegração de posse da área. “Ela também disse que a
Ao longo dos cerca de 80 dias, os moradores do Acampamento Chico Mendes reivindicaram o direito à moradia com muita criatividade: por meio de mobilizações, marchas, atos e vigílias em frente a prefeituras, além dos recursos judiciais. Mas acampados não se limitaram a manifestações políticas. Também promoveram atividades culturais, como dois festivais de hip-hop e festas para comemorar o aniversário do primeiro e do segundo mês do acampamento. Houve, ainda, apresentações de sete grupos de teatro, sendo um deles infantil. Um grupo de acampados preparou um filme, intitulado Direitos Esquecidos: a moradia na periferia, que foi enviado para ser exibido na Rede TV!, durante o horário reservado ao programa Direitos de Resposta, concedido aos movimentos em defesa dos direitos humanos. “Nesse período, nós fizemos muitas atividades culturais e estruturamos uma nova comunidade”, diz Nicolau Bruno, integrante do setor de formação de política e cultura do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). As crianças também tiveram seu espaço garantido com a inauguração de um centro de educação infantil. Batizado de “Ciranda Chiquinho Mendes”, o centro atende cerca de 200 crianças acampadas. A causa dos sem-teto vem recebendo apoio de intelectuais e artistas, que assinam um manifesto em solidariedade ao acampamento Chico Mendes. Três universidades – Mackenzie, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade de São Paulo – montaram um Comitê Universitário de apoio ao MTST. Os militantes sem-teto receberam solidariedade de organizações e partidos de muitos países, como dos partidos socialistas de Austrália, Irlanda, Israel, Grécia. Há ainda uma petição na internet contra o despejo da Chico Mendes, que pode ser acessada na página www.mtst.info (TM).
A divina Criança
Somente em Pelotas, cerca de 300 pessoas aguardam, em frente ao edifício do Sine, uma resposta concreta, como afirma Maria Odete Falcão, da Direção Estadual do MTD. “O governo do Estado é muito fala frouxa. Cada convênio é uma briga sem tamanho. No ano passado, nós fizemos 18 mobilizações para receber 250 vagas em Pelotas, e um total de 600 vagas no Estado. Muita luta nossa e pouca resposta do governo”, diz Odete. No ano de 2003, o Movimento realizou a Marcha por Trabalho, que garantiu cerca de 1,2 mil vagas em frentes de trabalho no Estado. Porém, segundo o MTD, alguns convênios assinados na ocasião não têm sido cumpridos. (Agência Notícias do Planalto)
Integrantes do Movimento dos Trabalhadores Desempregados exigem seus direitos
desapropriação da Chico Mendes é impossível, mas prometeu pesquisar junto ao Ministério das Cidades áreas que possam ser desapropriadas na região”, afirma Helena. Procurada pela reportagem do Brasil de Fato, Inês da Silva Magalhães disse, por meio de sua assessoria, que não poderia dar entrevista. Também participou da reunião com os sem-teto a secretária de Habitação de Taboão da Serra, Ângela Amaral, que, desde os primeiros contatos teve dificuldades de diálogo com os acampados. “Ela só atrapalhou”, diz Helena. “Disse que não ia atender a nossas reivindicações, porque há uma grande fila para conseguir moradia na cidade de Taboão”. Apesar de desapontados, os integrantes da direção do MTST acreditam que, se os compromissos firmados pela secretária Nacional de Habitação forem levados a cabo, “já será alguma coisa”. Chamados pelos representantes do governo de “inflexíveis”, os sem-teto dizem aceitar uma outra área na mesma região, desde que ela seja desapropriada. “Como sabemos que esse processo é lento, também concordamos em ficar por um tempo numa área provisória”. Enquanto aguardam uma próxima reunião ser marcada, Nivaldo e seus seis companheiros continuam sem comer, por tempo indeterminado, na frente da casa do presidente.
ANÁLISE
Leonardo Boff
Daniel Cassol
O Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) ocupou, dia 20, quatro sedes do Sistema Nacional de Emprego (Sine). Em Caxias do Sul, Pelotas, região metropolitana de Porto Alegre e Bagé, aproximadamente 2.500 famílias estão mobilizadas. As reivindicações são o cumprimento do repasse das bolsas-auxílio da Frente Emergencial do Trabalho no Rio Grande do Sul, que já está há quase três meses atrasada, para as 251 vagas. Além de exigir a qualificação em áreas como costura, confeitaria e artesanato, que consta do convênio de cinco meses assinado entre o Movimento e o governo do Estado.
COMPROMISSOS
Atividades culturais agitam ocupação Chico Mendes
MTD ocupa sedes do Sistema Nacional de Emprego no RS Marina Mendes de Brasília (DF)
Inês da Silva Magalhães. Apesar de terem conseguido “reabrir o canal de negociação”, os sem-teto saíram do encontro com poucas garantias. “Foi muito menos do que esperávamos”, diz Helena Silvestre, da coordenação do movimento.
No subsolo do Museu Nacional de Munique, na Alemanha, há uma das maiores e mais belas coleções de presépios do mundo. Como estudante, muitas vezes visitava esses presépios, especialmente quando precisava realimentar meus anjos interiores. Ao sair, tinha a impressão de ter passado por um pedaço do paraiso preservado tal era a harmonia e a integração que se irradiava daqueles presépios. Os mais impressionantes eram os grandes presépios de Nápoles. Neles se representava toda a realidade assim como é: agricultores cegando trigo, açougueiros cortando carnes, bancas de venda, crianças lançando pipas, duas mulheres brigando, soldados limpando armas, um padre abençoando, palhaços fazendo suas artes e de baixo da ponte um enforcado. No centro desse mundo contraditório jazia entre palhas a divina Criança. Jesus, José, Maria, a estrela no céu, os anjos, os pastores, os reis magos, o sanguinário rei Herodes, os escribas maliciosos são mais que figuras concretas. São símbolos e energias poderosas que vivem e agitam nosso mundo interior. Revelam dimensões de nossa psique, marcada por buscas, por contradições e por um imenso desejo de totalidade. É partindo desta visão mais ampla do que aquela objetiva e convencional que se revela a importância da divina Criança. Ao redor dela se cria uma ordem
mágica, um centro luminoso que irradia sobre todas as coisas constituindo um todo coerente e significativo. A vida com suas contradições incluindo as crianças assassinadas por Herodes bem como o enforcado do presépio de Nápoles, não escapam da luz que se irradia do Presépio. A partir da presença da divina Criança surge a esperança de que tudo pode ser diferente, de que o Novo pode irromper. Eis o significado maior da Natal que não pode ser perdido pelas visões meramente piedosas e por sua utilização cultural e comercial. Que signfica, numa experiência interior, a divina Criança? Ela representa a nova vida que quer nascer em nós. Mais concretamente ela simboliza a vida que pode sempre recomeçar desde o seu início, apesar das constradições e negações a que ela no submete. No dia de Natal por causa da divina Criança nos é permitido esquecer as culpas e os erros cometidos para sentirmo-nos livres e para começar de novo. Os desejos escondidos e nunca realizados podem vir à tona e serem de novo alimentados. Podemos hoje, olvidar os hábitos cotidianos e as convenções que nos aprisionam e tentar mais uma vez abrir um caminho. Pelo menos cabe tentar. Não dizemos tantas vezes: ah se pudesse começar tudo de novo? No dia de Natal inspirados pela divina Criança que está dentro de nós podemos arriscar o primeiro passo de um novo caminho ou inaugurar um outro olhar sobre
o caminho já andado para descobrir nele novas significações existenciais. A festa do Natal, tão íntima e familiar, nos convida a superar, ao menos nesta noite mágica, o uso da razão analítica e calculatória, sempre a serviço dos interesses. Hoje é dia de esquecer os interesses, de dar lugar à razão emocional que não quer comprar nem vender nada, apenas sentir o outro e conviver com ele na alegria de estarmos juntos, em família, trocando presentes e amabilidades. Então emergem valores que sempre estamos buscando, sonhos de vida transparente, simples e livre, de ter sua casa, seu pedaço de terra, seu salário digno, sonhos que tanto agitam nosso imaginário. Sabemos quem é essa eterna Criança. Fernando Pessoa, o poeta maior de nossa lingua, no-la revelou:”Ele é o Deus que faltava. Ele é o humano que é natural. Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza que ele é o Menino Jesus verdadeiro”. Se pudermos despertar a divina Criança que dorme em nós, teremos descoberto o espírito do Natal e o alegre advento de Deus dentro de nossa atribulada existência. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos
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Espelho Lula e a imprensa I O presidente Lula tem reclamado do “denuncismo” da imprensa. Não tem razão. Na maioria das vezes, jornais e revistas só repercutiram denúncias feitas por aliados do PT e do governo. E, para dissabor dos que um dia acreditaram (e dos que ainda acreditam) no governo, a maior parte delas se confirmou. Houve, sim, compra de deputados. Houve, sim, desvio de recursos públicos. Lula e a imprensa II Também erra Lula quando compara a imprensa brasileira à venezuelana. A mídia no Brasil é reacionária? Sim (como a grande burguesia). É neoliberal? É (por isso, aliás, a blindagem a Palocci por tanto tempo). É preconceituosa em relação às lutas do povo? Sem dúvida (basta ver como trata o MST). Mas é exagero dizer que integra um esquema golpista, como na Venezuela. Lula e a imprensa III Se, em vez de generalizar, Lula apontasse suas baterias contra determinados veículos – entre os quais se destaca a Veja – teria razão. É clara a decadência dessa revista que, se nunca foi progressista, pelo menos já foi mais séria. Hoje é exemplo de antijornalismo. Patriotismo futebolístico Quem assistiu pela TV Globo a vitória do São Paulo sobre o Liverpool, na decisão do Mundial Interclubes, pôde constatar que o “patriotismo futebolístico” de Galvão Bueno está cada vez mais ridículo. Num jogo em que o time brasileiro só se defendeu a maior parte do tempo, o narrador não se cansou de buscar supostas virtudes no São Paulo. Galvão sempre foi chato. Com o tempo, está patético. Jornalões se rendem aos blogs Uma das críticas mais freqüentes aos grandes jornais é a falta de interlocução com os leitores. Ditam regras, mas ouvem muito pouco o que têm a dizer aqueles que os lêem. Agora, dois dos maiores jornais do mundo – o The New York Times e o The Washington Post – depois de muito resistir, acabam de jogar a toalha e aderir à moda dos blogs. Não deixa de ser positivo. Riscos de suborno nos EUA O jornal americano USA Today informou que o Pentágono vai usar 300 milhões de dólares para subornar veículos de comunicação nos EUA e no exterior. O objetivo é fazer com que divulguem matérias supostamente jornalísticas, exaltando a invasão estadunidense ao Iraque. Não houve reação da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Cuba fora do quadro O Globo do dia 16 publica um quadro com dados da Cepal sobre a previsão do crescimento econômico na América Latina e no Caribe, em 2005. Entre 30 países, o Brasil ocupa o 26º lugar, com previsão de crescimento equivalente a 2,5% do PIB. Na liderança estão Venezuela e Granada, com 9% do PIB, seguidas da Argentina, com 8,6%. Cuba não aparece. Há apenas uma observação minúscula, ao pé do quadro: “Cuba cresceria 11,8% em 2005, mas os dados estão sujeitos a revisão”. Estranho. Preconceito contra Evo Morales A imprensa não escondeu o preconceito contra o vencedor das eleições da Bolívia, Evo Morales. Sua origem cocalera foi apresentada de forma a produzir sutil identificação com o narcotráfico. Dia 18, a Folha de S. Paulo publicou o editorial “Riscos bolivianos” prevendo “dias turbulentos” para a Bolívia, classificando Morales como “desastrado líder populista” e afirmando que seu partido “defende teses da esquerda à moda antiga”. Como se não bastasse, diz que sua eleição vai desagradar Washington – como se isso devesse ser levado em conta.
Uma homenagem a Edward Said Brasileiros analisam obra de palestino-estadunidense que se dedicou ao estudo do imperialismo Divulgação
Cid Benjamin
CULTURA ÁRABE
Arturo Hartmann de São Paulo (SP)
N
o dia 13, foi lançado no Museu da Casa Brasileira o livro Edward Said: trabalho intelectual e crítica social, uma parceria entre o Instituto da Cultura Árabe e a Editora Casa Amarela. A obra, uma homenagem ao intelectual palestino-estadunidense, nasceu de um movimento que ocorreu no final de 2003, em resposta a um artigo do articulista Nelson Ascher, da Folha de S. Paulo, escrito por ocasião da morte de Edward Said, em 25 de setembro de 2003. No texto, o articulista apenas repetiu críticas que normalmente vêm da extremadireita dos Estados Unidos – a de que o intelectual não era palestino, de que sua obra é confusa e raivosa e, ainda, que a única solução vista por Said para o fim do conflito na região da Palestina, um Estado binacional, era um “eufemismo para eliminar Israel do mapa”. A resposta de intelectuais brasileiros ficou conhecida como o Manifesto dos 187. Além de enviar um texto à Folha, o movimento realizou uma reunião de homenagem ao intelectual no Club Homs, em São Paulo. O livro lançado contém os discursos da ocasião, além de outros textos produzidos especialmente para a edição. Entre os autores estão Aziz Ab’Saber, Ali El-Khatib, Emir Sader, Marilena Chauí, José Arbex Jr., Francisco de Oliveira, entre outros.
HUMANISTA RARO O trabalho do intelectual palestino, que também tinha cidadania estadunidense por herança do pai, alcançava uma série de campos do conhecimento, desde a política até a literatura e a música. Para Milton Hatoum – escritor e autor de Relato de um certo Oriente que colabora no livro –, Said era uma espécie de humanista raro na segunda metade do século 20. “Ele teve importância em todas as áreas, nas ciências humanas, nas artes, era pianista, e construiu, a partir de 1967, sua militância na causa palestina com uma perspectiva de paz igual para os dois lados”, disse. O que incomoda detratores e atrai admiradores na obra de Said é seu incessante esforço em destruir consensos e em rejeitar o poder, não importa a forma em que este se constitua. Ele, professor na Universidade de Columbia desde 1963, ficou conhecido por seus estudos em literatura – seu doutorado foi sobre Joseph Conrad –, mas a grande influência sobre o mundo acadêmico veio com Orientalismo, obra de 1978 que deu início ao que se convencionou chamar de estudos coloniais e pós-coloniais. O ponto de partida do intelectual era a cisão entre sua origem árabe e a educação ocidental a que foi submetido durante toda a sua vida. Said nasceu na Palestina em 1935, mas foi educado no Egito dominado pela Inglaterra. Lá sente pela primeira vez o desconforto de que está fora de lugar, sensação que acompanharia toda a sua obra e que ganharia forma nas reflexões que faria sobre a identidade dos povos e a relação entre elas. Depois, em 1951, vai para os Estados Unidos e lá – com o apoio dado a Israel logo após 1948 – ser um árabe, ainda mais palestino, trazia uma sensação de desconforto. Mariam Said, esposa do intelectual falecido, afirma, em texto enviado por e-mail, que o desafio para ele foi reeducar-se. E no processo de inventariar a sua origem árabe, ele se aproximou de escritores radicais, entre eles Franz Fanon, que testemunhou a guerra de independência na Argélia, Aime Cesaire, C.L.R. James, autor de “Black Jacobins”, e do lingüista Noam Chomsky.
Edward Said : Trabalho intelectual e crítica social, vários colaboradores; organização Arlene Clemesha. Editora Casa Amarela, 2005. Preço: R$ 20, 88 páginas
Said deu uma nova dimensão para o problema não só da Palestina, mas das contradições no interior do próprio mundo árabe. “Ele consegue trazer para o Ocidente o que viveu e sentiu de uma maneira a ser entendida com toda facilidade. É diferente de um árabe que vive no Oriente Médio e escreve uma obra que é traduzida para uma língua ocidental. Ele viveu as duas realidades e absorveu a cultura de duas realidades”, avalia Mohamed Habib, autor de um dos artigos do livro.
Edward Said, crítico ferrenho das políticas de Israel e seus aliados
dades e as ‘desidentidades’, as lutas nos espaços do país, do continente e do mundo”. Para Said, a percepção que os dois povos têm de si é essencial no conflito entre palestinos e israelenses. A luta se dá basicamente por causa de território, de águas e controle geopolítico, mas está consolidada pela narrativa que um lado constrói em relação ao outro. “Do lado palestino, os israelenses são fonte de destruição e para os árabes é difícil ver que foram vítimas de perseguição. Do lado israelense, os palestinos são inferiores”, disse o intelectual em 2002. “O que eu queria fazer como intelectual era tornar a narrativa mais complexa para ambos os lados, e não aceitar que o problema seja visto através de uma linha cujo fim está a exterminação de um deles”.
REFLEXÃO GLOBAL Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, explica que a obra do palestino ajuda a entender as atuais relações de disputa entre os Estados Unidos e outras nações periféricas. “Ele ajuda a pensar a complexidade nação e mundo, e na Palestina talvez essa seja a demonstração mais explosiva do problema. No Brasil, Argentina, México, Peru, Bolívia e na Venezuela, que está à frente nesse processo na América Latina, existem lutas que se dão num espaço amplo, com as identi-
Ferrenho crítico das políticas de Israel e, principalmente, do apoio sionista que vinha dos Estados Unidos, ele foi atacado pela extrema-direita estadunidense. Por outro lado, não poupava o lado palestino e era um grande crítico da atitude da Autoridade Palestina (AP) e da conduta dos governos autoritários do mundo árabe em geral. “Oslo provou ser um fracasso, não falava de assentamentos, do fim da ocupação, de soberania, da questão das águas, pois a maioria da água de Israel sai da Cisjordânia. Para mim, ali se provou que um Estado palestino autônomo é uma impossibilidade geográfica. O Estado binacional é a única solução”, defendeu certa vez Said. (Leia o artigo de Nelson Ascher no link, http://obse rvatorio.ultimosegundo.ig.com.br/ artigos/asp07102003991.htm )
Para geógrafo, intelectual se destaca por independência O geógrafo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e presidente de honra do Instituto da Cultura Árabe, Aziz Ab´Saber, considera que a importância da obra do intelectual Edward Said está no fato de seus estudos se manterem independente do poder político e não servirem de sustento para legitimar qualquer forma de poder. “Por exemplo, eles dizem ‘nós vamos transpor as águas do São Francisco, nós vamos fazer porque os outros não puderam fazer’, e eu não concordo com essas coisas. Gosto da independência, da independência baseada na cultura, e é isso que eu proponho no momento em que homenageamos um dos homens mais cultos do mundo árabe. Na pessoa de Edward Said, temos um rumo para eliminar conflitos, fazer a paz entre os grupos humanos independentemente de onde nasceram ou da religião que tenham adotado”, afirma Aziz, um dos articulistas do livro sobre Edward Said. Por outro lado, a importância do intelectual palestino está nas suas reflexões sobre as formas de colonização. O geógrafo explica que, em primeiro lugar, existem as colônias de enraizamento, como o que ocorreu no Brasil no século 16. O segundo tipo é o das colônias estratégicas, com o qual o mundo europeu, depois da era das grandes navegações, colonizou regiões como o Canal
Arturo Hartamann
da mídia
NACIONAL
Estudos de Said não servem de apoio para legitimar qualquer forma de poder
de Suez. O terceiro tipo – para Aziz o mais importante – são as colônias de enquadramento, como o caso da Índia, pelos ingleses. O geógrafo afirma que outras áreas sofreram esse tipo de influência, inclusive países latino-americanos, como Cuba. Hoje, Aziz identifica um outro tipo de colônia, por enquadramento financeiro e burocrático. “Criou-se esse sistema por causa das diferenças econômicas entre países, no século 20, e agora segue no século 21. Muitos países estão hoje assim, através de bancos e negociações, em um enquadramento muito delicado e perigoso. Basta ver no caso da América Latina, o esforço que o governo estadunidense faz pela Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Esse acordo define um protótipo de colônia de enquadramento financeiro, burocrático, e com possibilidades de
grandes prejuízos para os países da região”. Para Aziz, essas formas de colonização se entrelaçam no percurso histórico. No Oriente Médio, o geógrafo lembra que, em certo momento, o domínio colonial era feito pelos turcos sobre o Líbano e a Síria. Após a Segunda Guerra, houve uma divisão das influências dos países externos e Inglaterra e França enquadraram a região cultural e economicamente – processo estudado em detalhes por Said em Orientalismo. “Hoje, o inglês enquadra a lingüística regional do Líbano e da Síria”, afirma Aziz. Desse modo, para o geógrafo, o estudo das culturas não como trincheiras que dividem, mas como conjuntos que se relacionam, é onde reside a importância do pensamento de Edward Said. (AH)
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NACIONAL OCUPAÇÃO DE FÁBRICAS
Trabalhadores têm apoio internacional Antônio Hélio Pereira e Sílvia Agostini de Joinville (SC)
“E
les fecham, nós abrimos as fábricas. Eles roubam as terras e nós ocupamos. Eles fazem guerras e destroem nações, nós defendemos a paz e a integração soberana dos povos. Eles dividem e nós unimos. Porque somos a classe trabalhadora. Porque somos o presente e o futuro da humanidade”. Sob essa declaração, trezentos trabalhadores de seis Estados brasileiros e cinco países latinos realizaram a 3ª Conferência Nacional em Defesa do Emprego, dos Direitos, da Reforma Agrária e do Parque Fabril, de 16 a 18, em Joinville (SC). A atividade foi convocada pelos Conselhos das Fábricas Ocupadas Cipla/ Interfibra (SC), Flaskô e Flakepet (SP), pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e pelo Centro de Direitos Humanos (CDH) de Joinville. O objetivo foi reafirmar a organização e a luta dos trabalhadores da cidade e do campo por suas reivindicações. A abertura contou com a presença de mil pessoas. Na mesa, representantes dos Conselhos das Fábricas, do MST, do CDH, da CUT Nacional, da CUT-PE, CUTSC, CUT-DF, dos Sindicatos dos Têxteis de Blumenau (SC) e Paulista (PE), das Fábricas Ocupadas. Também estiveram presentes representantes do Ministério do Trabalho da Venezuela, das centrais sindicais uruguaia (PIT-CNT) e boliviana (COB), o Movimento de Empresas Recuperadas e da Corrente Classista e Combativa, da Argentina. No plenário, delegações de sindicatos, associações de bairros, movimentos populares, juventude, trabalhadores do campo e de fábricas de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Além de operários de três empresas recém-estatizadas pelo governo venezuelano, mineiros e metalúrgicos da Bolívia. “Este encontro é realizado em um momento em que o imperialismo ataca com guerras nossos direitos e a soberania das nações. Mas, com determinação e unidade, vamos dar um passo à frente na construção de um novo mundo”, disse Serge Goulart, coordenador dos Conselhos, no início do evento. Resultados de plenárias, reuniões e grupos de trabalho, em três dias de atividades se estabeleceram metas e campanhas sobre diversos temas: reestatização das ferrovias e serviços públicos privatizados; defesa da Companhia Brasileira de Transporte Urbano; contra a privatização da água; direitos da mulher trabalhadora; defesa da reforma agrária; defesa das fábricas ocupadas e dos postos de trabalho e articulação internacional das fábricas ocupadas.
MARCHA A BRASÍLIA Uma marcha a Brasília para exigir de Lula a garantia de todos os empregos e a manutenção do parque fabril sob controle operário é convocada na declaração final dessa 3ª Conferência. Devem participar milhares de trabalhadores da cidade e do campo. Uma máquina das empresas ocupadas deve acompanhar a caravana como um símbolo do parque fabril. O documento também propõe uma campanha nacional para que sejam interrompidas essas ações da Justiça e dos ministérios que ameaçam com o fechamento dessas empresas e com a prisão de dirigentes dos movimentos operário e popular. Casos como as ameaças de prisão a dirigentes da Cipla/Interfibra por conta de dívidas milionárias com o governo, deixadas pelos antigos patrões; como a prisão de lideranças sem-terra no Pontal do Paranapanema e como o mandado de prisão
Fotos: Sílvia Agostini
Operários mobilizados realizam terceira conferência nacional e pedem reestatização para garantir emprego
Contra o desemprego, movimentos sociais defendem a organização da produção industrial pelos trabalhadores
União latino-americana Entre 27 e 29 de outubro, 28 delegados das Fábricas Ocupadas do Brasil, da CUT, sindicalistas e integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) participaram do 1º Encontro Latino-Americano de Fábricas Recuperadas pelos Trabalhadores, em Caracas, Venezuela. Mais de 500 trabalhadores estiveram representando 235 empresas e 20 centrais sindicais. Foi a primeira vez que operários de fábricas ocupadas de diferentes países se reuniram. Na abertura, diante de mil pessoas, o presidente venezuelano Hugo Chávez colocou o boné das Fábricas Ocupadas brasileiras e declarou que as empresas que o capitalismo quer fechar, os trabalhadores devem tomar e recuperar. Ao final do encontro, sob as palavras de ordem “Aqui estão, estes são, os operários sem patrão”, os participantes aprovaram o Compromisso de
a Luís Gonzaga da Silva, o Gegê, do Movimento por Moradia e Sem Teto de São Paulo. A participação das delegações internacionais no encontro ampliou e reforçou o movimento pela estatização das empresas e a luta pela reforma agrária. Eduardo Murúa, presidente do Movimento Nacional de Empresas Recuperadas da Argentina, afirmou que “os trabalhadores não devem somente ocupar as empresas quebradas pelos patrões, mas também as que estão em atividade e não pagam bem os salários. Assim, é necessário que o
Caracas. No documento, são citadas medidas de luta da classe operária contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), contra a invasão militar no Haiti, pela reforma agrária e em defesa do emprego, do parque fabril e da soberania dos povos. A estatização entrou na pauta do encontro tanto pela presença das fábricas brasileiras quanto pelas ações do próprio Chávez. O presidente da Venezuela anunciou duas novas expropriações no país: da Siderúrgica Sideroca e do Centro Açucareiro Cumanacoa. Para ele, a idéia não é os trabalhadores ficarem ricos da noite para o dia, e sim a produção beneficiar as comunidades no conjunto. “Estamos a favor da estatização, mas a estatização sob controle dos trabalhadores, para impedir o surgimento de uma nova burocracia”, disse Serge Goulart, coordenador dos Conselhos de Fábricas. (AHP e SA)
governo as exproprie e as entregue aos trabalhadores”. Roberto Chávez, secretário geral da Federação dos Mineiros da Bolívia, declarou total apoio à atitude revolucionária dos operários das Fábricas Ocupadas brasileiras quando dizem que “fábrica quebrada é fábrica ocupada e que fábrica ocupada deve ser estatizada. Essa é uma atitude que reforça e internacionaliza a idéia de que nós, trabalhadores, podemos, sim, produzir e criar nossas fontes de trabalho”. Os tratados de livre-comércio, que destroem empregos e direitos tra-
balhistas em massa no continente, deixando a soberania das nações à mercê das transnacionais, também foram repudiados pelos participantes.
GARANTIA DE EMPREGO Há três anos, os trabalhadores das Fábricas Ocupadas se organizam e mobilizam apoiadores em todo o país, e também internacionalmente, na defesa de seus postos de trabalho. A partir de uma greve de oito dias, em outubro de 2002, os funcionários da Cipla/Interfibra tomaram o controle das empresas dos patrões – que desviavam dinheiro de impostos e descumpriam direitos trabalhistas e previdenciários. Com uma dívida de mais de R$ 700 milhões (85% dela com o poder público), pedem que o governo assuma o controle dessas fábricas. “A estatização é a única maneira de garantir todos os postos de trabalho e direitos”, alega Evandro Luiz, da Comissão de Fábrica da Interfibra. Os trabalhadores já foram três vezes em caravana à capital federal. Se somaram ao movimento companheiros de duas outras fábricas paulistas: a Flaskô, do mesmo grupo empresarial, situada em Sumaré, e a Flakepet, financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), localizada em Itapevi. Em junho de 2003, em audiência com os operários, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu uma solução. Promessa reafirmada um ano depois (junho de 2004) também em audiência, em Brasília, pelo secretário geral da Presidência, Luís Dulci. Um estudo concluído em janeiro, feito pelos bancos BNDES, Banco de Desenvolvimento Econômico de Santa Catarina e Banco Regional de Desenvolvimento Econômico do Extremo Sul, revela: “As empresas
são viáveis”. Ao mesmo tempo, propõe que, frente ao passivo, “seus créditos sejam transformados em ações, como capitalização do BNDES e de um dos agentes de Desenvolvimento Estadual, BRDE ou Badesc”. Em maio, junto aos trabalhadores sem-terra, os trabalhadores das fábricas participaram da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, exigindo terra e emprego. Mas, até o momento, nenhuma solução foi dada pelo governo brasileiro. Avaliada como vitoriosa, essa foi a terceira Conferência anual. A primeira aconteceu em Joinville, e a segunda, na sede nacional da CUT, em São Paulo.
Cronologia da luta 2002 24/10 - Greve na Cipla e Interfibra pelo pagamento dos salários atrasados e direitos 31/10 - Trabalhadores ocupam e assumem o controle das empresas 2003 11/06 - 1ª caravana a Brasília, de 350 trabalhadores. Lula promete uma solução 12/06 - Flaskô em Sumaré (SP) é ocupada pelos trabalhadores 3/10 - 1ª Conferência Nacional em Defesa do Emprego, da Terra e do Parque Fabril, com 500 delegados e 60 entidades 9/12 - Em Itapevi (SP), os 140 trabalhadores da Flakepet ocupam a fábrica 2004 21/06 - 2ª caravana a Brasília. Governo reafirma promessa de solução 24/07 - 2ª Conferência Nacional em Defesa do Emprego, Terra e Parque Fabril 2005 16/04 - Os 150 trabalhadores da Profiplast-Joinville assumem o controle da empresa 17/05 - Operários das fábricas participam da Marcha Nacional pela Reforma Agrária e fazem a 3ª Caravana a Brasília 04/09 - Encontro Nacional dos Trabalhadores do Campo e da Cidade reúne 700 representantes em SP 27/10 - Operários das Fábricas Ocupadas participam, na Venezuela, do 1º Encontro Latino-Americano de Empresas Recuperadas 16/12 - 3ª Conferência Nacional em Defesa do Emprego, da Terra e do Parque Fabril
Estatização é viável e deve tornar-se política do governo
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NACIONAL GOVERNO LULA
Sociedade civil em segundo plano
Hamilton Octavio de Souza
Política econômica do PT deixou de lado demandas sociais, aponta Ibase
Confronto agrícola No encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Hong Kong, a posição da Via Campesina – contra as propostas que favorecem o agronegócio – ganhou apoio nas manifestações populares e na opinião pública. A luta em defesa do pequeno agricultor e do fortalecimento do mercado interno de alimentos sensibiliza cidadãos de todos os países e continentes. Do outro lado estão as grandes empresas transnacionais de exportação. Moradia já Mais de 900 famílias sem moradia, com 1.300 crianças, resistiram mais de 80 dias na ocupação de um terreno em Taboão da Serra, município grudado em São Paulo, sem que os poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – fossem capazes de resolver o grave problema social. Com despejo ou não, a questão permanece: quando o Brasil oficial vai perder o cinismo, parar de enrolação e fazer o que precisa ser feito rapidamente? Projeto Lula O presidente Lula, com a máquina estatal nas mãos e ainda considerado por muitos o menos pior, tem toda condição de ser forte candidato à reeleição em 2006; mas a aprovação do seu governo caiu de 45% em dezembro de 2004 para 28% em dezembro de 2005, o que significa que terá de correr atrás do prejuízo. O que não se sabe é o estrago que as CPIs ainda podem fazer e o que restará de alianças para o PT. Tudo está em aberto.
Dafne Melo da Redação
O
Agência Brasil
Fatos em foco
governo Lula prometeu, em alguns casos até ouviu, mas pouco fez para efetivar as demandas de setores da sociedade civil que atuam em torno de alguns dos principais conflitos no Brasil. “Há um desencontro entre as demandas das entidades e o que o governo faz”, resume Cândido Grzybowski, diretor-geral do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), entidade que monitorou – de 2003 a 2005 – os espaços de participação da sociedade civil no governo federal. O resultado final foi o relatório Mapas – Monitoramento Ativo da Participação da Sociedade Civil (*), apresentado dia 12, em seminário no Rio de Janeiro. Entre os presentes no evento, o economista Carlos Lessa, Plínio de Arruda Sampaio (P-Sol), Luiza Erundina (PSB-SP) e representantes do governo federal. De acordo com Grzybowski, “o seminário criou um clima de diálogo entre a esquerda. Nas nossas divergências, temos que achar uma plataforma comum, pois todos concordamos que estamos em um impasse”. Outro ponto de concordância é de que o modelo de desenvolvimento adotado limita o avanço da democracia. “Precisamos, antes de tudo, de um modelo que coloque os direitos humanos e a ética no centro do projeto”, diz Grzybowski.
Índios protestam em Brasília; dialogar com o governo Lula é como dialogar com surdos, avalia diretor do Ibase
No início de 2005, constatouse que estes canais eram pouco efetivos. “O governo Lula é uma experiência traumática para setores da sociedade civil. Ele até estabeleceu diálogo, mas não há comprometimento, é como dialogar com surdos”, avalia o diretorgeral do Ibase. As razões para o descompasso, a seu ver, foram as opções feitas pelo governo Lula. “As alianças comprometeram a capacidade de fazer um governo diferente, transformador”, avalia Grzybowski. Decorrente desta escolha, está a atual política econômica, que acabou submetendo o governo federal “à lógica do superavit primário, o que não contribuiu para a construção anunciada de um projeto de desenvolvimento nacional, fundamentado em um novo pacto social includente”, afirma o Mapas. Segundo Grzybowski, o que se
Massacre total O novo recorde do superavit primário em 2005, perto de 4,8% do Produto Interno Bruto, foi comemorado pelos banqueiros e credores internacionais da dívida brasileira; internamente significou falta de investimentos em áreas carentes – como educação, saúde, moradia, transportes e reforma agrária – e falta de geração de empregos, arrocho salarial e redução da qualidade de vida para amplos setores da sociedade. É só conferir com o povo.
DIÁLOGO DE SURDOS
Registro eleitoral Após votar, o novo presidente da Bolívia, Evo Morales, do Movimento ao Socialismo, pediu ao presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, que retire as tropas militares do Iraque e da América Latina. Morales prometeu manter o diálogo com o governo Bush, “mas sem subordinação”. A submissão aos Estados Unidos provocou a queda dos dois últimos presidentes bolivianos.
RIO GRANDE DO SUL
Atraso geral De acordo com dados atuais do Ministério do Trabalho, a população economicamente ativa de trabalhadores adultos, no Brasil, chega a 85 milhões de pessoas, mas apenas 31,4 milhões (37%) têm emprego formal com registro na carteira e direitos trabalhistas assegurados. Ou seja, o neoliberalismo ampliou a informalidade e a falta de proteção ao trabalhador. E o governo Lula até agora não alterou em nada essa situação. Dívida inexistente Sob a denominação “A vida antes que a dívida”, várias personalidades da Argentina e do Brasil divulgaram um manifesto, em Buenos Aires, contra o pagamento da dívida reclamada pelo FMI, conforme foi anunciado recentemente pelos governos Kirchner e Lula. Assinam o documento o Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Perez Esquivel, e representantes de entidades civis e religiosas. Registro histórico Logo após o assassinato de Ernesto Che Guevara, há mais de 30 anos, o presidente de Cuba, Fidel Castro, afirmou: “El Che no murió en vano en Bolivia, su muerte es un mensaje de vida para los sumergidos bolivianos, para los indígenas que no comen, el Che no murió en vano”. A realidade acaba de confirmar que o sonho de Che floresceu na Bolívia.
Em um primeiro momento, o projeto se preocupou em monitorar espaços de interlocução entre governo e sociedade civil, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), de Meio Ambiente, Cidades, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, além do processo de elaboração do Plano Plurianual de Investimentos (PPA).
tem é um governo que se recusa a discutir e negociar em torno de algumas questões, criando contradições que não são respondidas pelo governo. “Eles chamam para discutir o meio ambiente, mas não querem discutir a formação do deserto verde no Espírito Santo, resultante da ação da agroindústria de eucaliptos”, exemplifica. Em outros casos, o governo federal nem ouviu entidades ligadas aos conflitos, como no caso da transposição do Rio São Francisco. “As entidades sequer se sentem consultadas, mas o projeto avança”, conclui o diretor do Ibase.
CONFLITOS Ao se constatar que os canais de participação eram poucos efetivos, o projeto foi redirecionado, em abril de 2005, para a análise de onze conflitos sociais em áreas onde a sociedade civil possui mais
demandas e, por vezes, quase nenhum canal de negociação. Entre os conflitos incluem-se a demarcação de terras indígenas na Raposa Serra do Sol, a reforma universitária, expansão da soja no Mato Grosso, a disputa por recursos públicos entre o agronegócio e a agricultura familiar, e questões de segurança pública e moradia. Grande parte destes conflitos, diz o relatório, é decorrente da exploração de recursos naturais em um modelo de “desenvolvimento selvagem”, e da disputa em torno de bens coletivos – em especial a terra e o meio ambiente. “Conflitos que expressam não apenas a persistência da profunda desigualdade social no país, mas também as opções de desenvolvimento, associadas exclusivamente a crescimento”, registra o Mapas. *(O relatório completo pode ser visto na página www.ibase.org.br)
da Redação Depois de 30 anos de luta pela regularização fundiária, o Quilombo da Família Silva foi reconhecido legalmente, dia 18, tornando-se a primeira área urbana de remanescentes de quilombo no Brasil. Situado no bairro Três Figueiras, área nobre de Porto Alegre (RS), o terreno era muito cobiçado por empresas de construção civil. A pressão exercida pela iniciativa privada sobre diversos governos municipais a favor do despejo das famílias foi o principal motivo para que o processo de reconhecimento demorasse tanto. Em uma solenidade marcada pela emoção, o presidente substituto do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Roberto Kiel, assinou a portaria de reconhecimento e delimitação do território. Resta agora o decreto de desapropriação da área em favor da família e, depois, a titulação. Apesar de não haver data definida para a sua concretização, Kiel afirma que o processo será rápido: “Essas famílias receberão seus títulos muito brevemente porque essa portaria assinada hoje é um ato irrevogável”. Para ele, esse momento é único na história do país e do próprio Incra. “É um momento em que conseguimos encontrar a tradição ainda viva desse Estado, que é representado também por este quilombo. E, acima de tudo, é um momento de construção do conceito de raça negra”, disse. Em junho de 2004, o Incra-RS
Daniel Cassol
Reconhecido primeiro quilombo urbano
Sessenta pessoas vivem no local; ainda existem mais duas áreas no RS
iniciou o processo de identificação, delimitação, demarcação e reconhecimento do território, que culminou com a assinatura da portaria. Cerca de 12 famílias vivem no local, totalizando cerca de 60 pessoas. Para a vice-presidente da Associação Comunitária Remanescente do Quilombo Família Silva, Rita da Silva, a conquista da área de 4 mil metros quadrados representa a concretização de um sonho. “Esse ato representa vida”, enfatizou, esperançosa de que em breve a família obtenha a titulação. A família Silva luta pela regularização fundiária desde 1970. Estiveram presentes ao ato, além dos moradores do local, entidades ligadas ao movimento negro e aos movimentos sociais parceiros, imprensa e autoridades, entre elas, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, e o supe-
rintendente do Incra no Rio Grande do Sul, Ângelo Menegat.
AMEAÇAS CONSTANTES As promessas de despejo das 12 famílias da área no bairro Três Figueiras foram ameaças constantes. A última foi em junho, quando o juiz Luís Gustavo Pedroso Lacerda, da 17ª Vara Cível de Porto Alegre, determinou a reintegração de posse do terreno ao seu suposto proprietário, Emílio Rothfachs. Durante duas semanas seguidas, entidades e militantes montaram um acampamento no local, a fim de impedir a ação de despejo. Parlamentares gaúchos, juntamente com a sociedade civil, o Ministério da Cultura e de Desenvolvimento Agrário, realizaram uma audiência pública em Porto Alegre, com o objetivo de sensibilizar o judiciário para derrubar a ação de despejo, o que foi conseguido.
O reconhecimento da área e a abertura de processo para seu registro definitivo só foi possível após a realização de laudos antropológicos e da certificação de auto-reconhecimento aos quilombolas, concedido em setembro de 2004 pela Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura. As famílias vivem no local há mais de 60 anos. De acordo com dados do coordenador estadual do Movimento Negro Unificado, Onir de Araújo, o Brasil tem 5.200 áreas de quilombos para ser reconhecidas. Em Porto Alegre, além da área da família Silva, estudos demonstram que há mais duas áreas quilombolas urbanas: o dos Alpes, no bairro Glória, zona leste, e outro no bairro Serraria, na zona sul. Resultado da luta da comunidade negra gaúcha, a Lei 11.731 de 2002, do deputado estadual do PT Edson Portilho, coloca em questão a regularização fundiária de áreas ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos no Estado. Essa foi a primeira lei, em todo o Rio Grande do Sul, a tratar do assunto. A partir dela, o governo estadual passou a reservar verba do orçamento para as comunidades remanescentes de quilombolas. No Rio Grande do Sul, existem mais de 27 comunidades quilombolas legalmente identificadas, ou seja, com reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, as quais não têm títulos de terra. No entanto, uma pesquisa realizada durante o governo de Olívio Dutra (1998-2002) constatou que existem mais de cem quilombos no Estado.
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NACIONAL BRASIL NA CONTRAMÃO
A indústria está andando para trás Política econômica leva à desindustrialização, com desperdício de tecnologia e baixo crescimento
CONTRA-ARGUMENTOS
Segundo o Iedi, em 2004, participação da indústria no PIB é menor que em 1958
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A recuperação, no entanto, não foi suficiente para repor o atraso, já que a fatia do setor industrial continua menor do que em 1958. Tomando os dados do IBGE para 2004, quando o valor do PIB foi estimado em R$ 1,767 bilhão, em números arredondados, a indústria ainda amarga uma perda de quase R$ 160 bilhões. Se tivesse preservado o mesmo percentual de 1986, quando respondeu por 32% das riquezas criadas pela economia como um todo, o PIB da indústria teria alcançado algo próximo a R$ 567 bilhões no ano passado, cerca de R$ 159 bilhões acima dos R$ 408 bilhões efetivamente registrados.
RECUO Desde então, com a disparada do dólar em 1999, o que encareceu as importações e favoreceu as empresas exportadoras, houve alguma recuperação. A participação da indústria no PIB chegou até 23% em 2004, segundo estima o Iedi, com base em dados do Instituto Bra-
PERDAS Ao pé da letra, desindustrialização significa perder indústrias, ou segmentos inteiros do setor in-
dustrial, desmobilizados por falta de condições objetivas de enfrentar a concorrência com produtos importados, ou de sobreviver a uma combinação explosiva de juros nas nuvens, impostos pesados, crédito escasso e caro, e importações baratas. Como é a indústria que, na maioria dos casos, produz e utiliza tecnologia, gerando avanços em cadeia para toda a economia, além de assegurar uma remuneração mais elevada aos trabalhadores, o que se tem é um empobrecimento relativo do país, com perda de tecnologia e criação de empregos de baixa qualidade. Na verdade, diz o Iedi, a desindustrialização deve ser vista como um processo natural em economias maduras, que atingiram níveis de desenvolvimento e qualidade de vida elevados, como os países mais ricos do globo. Trata-se de um “de-
Eles continuam crescendo mais. E mais rápido... O baixo crescimento da indústria no Brasil não foi compensado “pelos setores que substituíram” o industrial como “líderes do crescimento do PIB total”. Sem o mesmo dinamismo e a capacidade de gerar riquezas que a indústria, aqueles setores “não abriram caminho senão para um crescimento econômico apenas modesto para a economia brasileira como um todo”.
Desde que os juros altos viraram uma espécie de “mania” entre os economistas, especialmente quando assumem o comando da política econômica, a indústria de transformação conseguiu crescer à esquálida marca de apenas 1,6% ao ano, de acordo com o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). O Instituto toma como referência o período entre 1990 e 2003. Mas ressalva que, mesmo se incluída a estimativa de crescimento de 7,7% para a indústria, em 2004, a média do período subiria para meros 2%. Com estratégias de crescimento desenvolvidas para o longo prazo, China, Coréia do Sul e Índia conseguiram fazer com que suas indústrias crescessem, naquele mesmo período, pela ordem, quase 12%, mais de 7% e 6,5%. Ao ano.
“O desempenho brasileiro não foi capaz de acompanhar nem mesmo os países de renda alta (aumento anual médio de 2,5%), muito menos os países de renda média e baixa (6%). A constatação de que em países do leste da Ásia e Pacífico a evolução industrial, no mesmo período, subiu a 10% ao ano, e que os países da América Latina e Caribe cresceram apenas 2% ao ano, bem resume para onde se moveu o mapa da industrialização dos países emergentes na última década e meia”, resume o Iedi. Em outras palavras, o Brasil, assim como a Argentina e o Chile, que tiveram suas indústrias crescendo, respectivamente, 0,7% e 3,6% ao ano em igual período, ficou para trás, perdeu terreno em relação aos seus principais concorrentes no mercado internacional, hoje.
Enquanto a indústria de transformação (automóveis e aviões, petróleo e petroquímica, papel e celulose, alimentos e bebidas, vestuário e calçados, móveis, máquinas e equipamentos e outras) viu sua fatia no PIB declinar, encolheu também a capacidade de geração de empregos de qualidade. Arquivo Brasil de Fato
PERDA DE TERRENO
PRECARIZAÇÃO
A participação da indústria manufatureira no emprego total diminuiu de quase 15%, em 1991, para perto de 13%, em 2003, enquanto a maioria dos novos empregos criados foi para o setor de serviços (cuja participação saltou de 52% para 62%). Os dados confirmam o padrão de crescimento do emprego no Brasil, nos últimos anos, marcado por uma tendência de precarização apenas parcialmente revertida numa fase mais recente. Os números parciais para 2005 sugerem que teria se agravado o processo de desindustrialização, já que o total de riquezas acumulava, entre janeiro e setembro, um incremento de 2,6% em relação a igual período de 2004, enquanto a indústria de transformação havia avançado somente 2,2%. (LVF)
Novos empregos estão no setor de serviços
clínio da produção ou do emprego industrial em termos absolutos (com fechamento de empresas e de empregos, como conseqüência), ou como proporção do produto ou do emprego nacional”. A indústria, nestes casos, é substituída por outros setores como motores do crescimento econômico e da geração de empregos de qualidade (na área de tecnologia, por exemplo).
PRECOCE No caso brasileiro, o que ocorre é uma “desindustrialização negativa” e precoce, porque acontece antes que a indústria tenha atingido seu mais avançado estágio de modernização. Há uma “redução da importância do setor industrial no produto (ou seja, na criação de riquezas) e no emprego, num contexto de desaceleração generalizada do crescimento econômico como resultado de processos de abertura
Gomes de Almeida classifica a desindustrialização brasileira como relativa, porque restou espaço para reparar o atraso e recuperar terreno. Para isso, no entanto, a política econômica teria que ser outra, mais favorável aos investimentos públicos e privados, com foco, portanto, no crescimento equilibrado da economia. De seu lado, o economista Antônio Barros de Castro, diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), pondera que a tendência de desindustrialização no Brasil “deve ser qualificada”. A despeito da perda de substância, Castro afirma que a indústria manufatureira conseguiu quase dobrar a produtividade do trabalho entre 1993 e 2004, num salto de 94%, superando os 86% registrados pelos tigres asiáticos (Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura). Para o economista, a indústria brasileira demonstra capacidade incomum de reação, retomando o crescimento sempre que há um ambiente favorável para isso – exatamente o que falta hoje para o setor, acrescenta voltar a crescer.
Arquivo Brasil de Fato
O
Brasil segue na contramão dos países que conseguiram ser bem-sucedidos, modernizando sua indústria e atingindo índices expressivos de crescimento econômico ao longo de décadas. A política econômica em vigor há pelo menos dez anos, com juros escorchantes, dólar barato, impostos elevados e corte de investimentos vem empurrando a economia brasileira para uma traumática experiência de “desindustrialização patológica”, na definição do ex-ministro da Fazenda e embaixador Rubens Ricupero. O barateamento das importações, que penaliza a produção local, e a política de arrocho empurraram a indústria para níveis semelhantes aos observados no final dos anos 1950, quando o país iniciava o processo de industrialização, mostra o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). A participação do setor industrial no Produto Interno Bruto (PIB), que soma o total de riquezas produzidas em um ano no país, saiu de 24% em 1958, para 32% em 1986. Em 1998, a fatia da indústria havia murchado para 20%. A política econômica vigente nos últimos 12 anos, simplesmente jogou no lixo o esforço realizado pelo país ao longo de quase 30 anos para construir um parque industrial diversificado e moderno.
(do setor a importações) realizados equivocadamente”. A tendência tem sido agravada pela adoção de políticas econômicas hostis ao crescimento. A despeito de todos esses fatores, aponta o diretor-executivo do Iedi, o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, “a indústria manteve uma significativa diversificação e, mesmo tendo perdido segmentos e elos de cadeias decisivas para a industrialização contemporânea, preservou setores de ponta tecnológica, com capacidade para ampliar sua produtividade e capacidade de exportação”.
Arquivo Brasil de Fato
Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
Desindustrialização gera perda tecnológica e queda na qualidade dos empregos
Tecnologia, um ganho ilusório A abertura da economia a importações deveria trazer ganhos para o consumidor, com barateamento de produtos e entrada de bens mais sofisticados, e para a economia como um todo, via modernização do parque industrial e produção de tecnologia. Mas o Iedi mostra que os ganhos foram, em larga medida, meramente ilusórios. A participação do setor de alta intensidade tecnológica (que, em tese, gera e utiliza tecnologia de ponta em larga escala) no total de riquezas produzidas pelo conjunto da indústria, de fato, evoluiu de 25%, em 1996, para 32%, em 2000, recuando ligeiramente para 31% em 2003. De outro lado, contudo, a sua contribuição para a geração de empregos industriais diminuiu de 17%, em 1996, para 15%, sete anos depois. Porém, o avanço do uso da tecnologia pela indústria foi aparente, já que só resultou do crescimento da indústria de refino de petróleo. Mais diretamente, uma única empresa – a estatal Petrobras – explica quase todo o ganho registrado, porque a sua fatia no valor da produção industrial passou de 5,5%, em 1996, para 14%, em 2003. De outro lado, o setor de máquinas e equipamentos teve sua participação reduzida de 7% para 6%. A outra exceção foi o segmento de “outros equipamentos de transporte” (leia-se aviões da Embraer, ex-estatal), que passou de menos de 1% para quase 2%. Sem o petróleo, a participação da indústria de alto nível tecnológico diminuiu de 20% para 18,5% entre 1996 e 2000, caindo ainda mais, para 16% em 2003. O governo escancarou o mercado brasileiro aos estrangeiros, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e governos ricos exigiram, e nada recebeu em troca. Nem investimentos, nem tecnologia de ponta. (LVF)
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NACIONAL DIREITOS HUMANOS
O governo é controlado por conservadores
Brasil de Fato – Qual é a sua avaliação do governo Lula e como o senhor vê a atual conjuntura política? Dalmo Dallari – Eu tinha uma grande expectativa em relação ao governo Lula no sentido de dar prioridade aos direitos sociais. Mas isso não está acontecendo. Há uma certa decepção, mas, com base na minha experiência de direito público, não posso deixar de levar em conta que o Lula é um presidente constitucional, ele não é ditador do Brasil. Com isso, eu reconheço que há muitas limitações institucionais e legais. Uma das fortes limitações é o Congresso Nacional, que tem maioria conservadora e retrógrada. O Senado Federal é um reduto de oligarcas, que impedem qualquer avanço em termos de legislação, de destinação de recursos. E, além disso, o Lula se aliou ao José Sarney, que é um dos grandes oligarcas, um retrógrado chique e um tremendo corrupto. Eu sempre achei esse acordo um retrocesso. Mas ainda continuo acreditando no presidente como uma pessoa preocupada com a justiça social. Porém, não deixo de achar que ele deveria ser mais corajoso, mais firme, ter mais liderança para conduzir o governo para o lado social. Embora se diga que na Venezuela há uma situação especial por causa do petróleo, porque o país tem um poder econômico que o Brasil não tem, e por isso pode investir em transformações sociais, aqui, nenhum capitalista pode brigar com um mercado consumidor de 180 milhões de pessoas. Além disso, os investimentos estadunidenses no Brasil são muito grandes. Se o governo quisesse tomar uma postura firme contra o Fundo Monetário Internacional (FMI), teria espaço para isso. O grande erro de Lula foi esquecer a base popular que tinha. Se no começo do governo ele tomasse iniciativas no sentido de correção das injustiças sociais, apoio não iria faltar. BF – Na sua opinião, o que aconteceu, na prática? Dallari – O Lula não quis romper com o figurino do FMI. Já em relação ao PT, eu tenho uma posição muito tranqüila porque fui convidado para ser fundador do partido e não quis pois eu não acredito em partidos políticos. Sempre, em qualquer circunstância, qual for o partido, representa um instrumento de obtenção de poder no sentido formal, que significa ocupar o governo. Seja o partido comunista, socialista, ele luta para chegar ao governo e, ao chegar, vai utilizar os instrumentos formais do poder, e vai ser obrigado a fazer concessões, negociações. Pessoas que nunca tiveram posição de poder, quando chegam lá, correm o risco de desvios. E corrupção não é só obter dinheiro, é a corrupção institucional, como utilizar o serviço público para favorecer
Arquivo JST
E
le revela que nunca apostou em partidos políticos como forma de solução para suprir as necessidades da população, mas confessa: pensava que, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, a garantia dos direitos fundamentais dos brasileiros fosse ter prioridade. Hoje, apesar de ainda acreditar que o presidente da República “é uma pessoa preocupada com a justiça social”, o jurista Dalmo Dallari diz que pouco se investiu para mudar as condições reais. Em especial os direitos humanos, em sua opinião, continuam a ser “o primo pobre do governo”.
Quem é
Em ato na Praça da Sé, no centro de São Paulo, moradores de rua denunciam crimes cometidos por policiais militares
elites, grupos econômicos. Eu fui do governo Luiza Erundina, que era PT, e eu tive uma experiência curiosa. Na época se estabelecia que todo secretário de governo deveria contribuir para o caixa do partido. Eu me neguei. Eu não sou filiado e jamais contribuí. O PT tem problemas que existem em todos os outros partidos, mas que aparecem muito mais e se tornam muito mais agudos quando o partido assume o governo. No momento que o partido se torna governo, isso passa a ser um grande problema, como está sendo. BF – Muitos críticos do PT afirmam que houve uma descaracterização do partido ao longo da década de 1990, com o abandono dos trabalhos de base e uma supervalorização da corrida eleitoral. O senhor concorda? Dallari – Eu acho que em parte isso aconteceu, sim. Até essa particularidade de o Lula não ter recorrido nem se apoiado na militância no início do governo foi um desvio. Não é essa a história do PT. A base do PT sempre foi a militância. Mas o que fizeram, na prática, foi esquecer que isso existia e procurar apoio nos acordos entre partidos, entre políticos.
Se usarmos os instrumentos de ação popular previstos na Constituição, vamos democratizar o Brasil BF – Qual é a saída para a rearticulação das forças da esquerda brasileira diante da crise política e da falência das alternativas institucionais? Dallari – Eu acho que a saída é estimular os movimentos populares a partir da Constituição. Se usarmos os instrumentos de ação popular previstos na Constituição, vamos democratizar o Brasil. Não podemos nem devemos ficar esperando a solução governamental. Se esperarmos isso, estamos perdidos. Os governos ainda são controlados pelos conservadores, retrógrados e egoístas. O que aconteceu com a vitória do Lula foi uma ilusão de tomada do poder. É como se fosse assim: então, pronto, já temos o governo. O PT está governando, os movimentos populares já não são mais necessários. Mas, por outro lado, estou otimista. Estão ocorrendo mudanças dentro do Judiciário, que sempre foi muito fechado, elitista e absolutamente
subserviente ao Executivo. Um dos exemplos é a criação de uma associação chamada Associação Juízes pela Democracia – malvista pelos juízes conservadores e tratada quase como subversiva. Em muitos Estados nem existe associação porque a velha magistratura tem domínio absoluto e o juiz que adere à associação não progride na carreira, é marginalizado, vai para os piores lugares e praticamente se anula como juiz. No entanto, a associação está se firmando. Essa inovação dos juízes é muito importante porque esse é um dos setores mais fechados da sociedade brasileira.
aceito uma proposta feita por um dos mais iminentes constitucionalistas brasileiros, o Paulo Bonavides. A proposta dele é de que em lugar de uma federação de Estados nós tenhamos uma federação de regiões. Isso significaria que o Nordeste, em vez de ter, por exemplo, quinze, dezoito senadores, teria seis. Então isso representaria um peso muito menor da oligarquia. Isso é indispensável para que a gente modernize o Brasil. Quando se fala em reforma política, as pessoas falam em partidos, em sistema eleitoral, e se esquecem desses pontos institucionais que são determinantes.
BF – Como o senhor acha que os direitos humanos vêm sendo tratados durante o governo Lula? Dallari – Durante o governo Fernando Henrique Cardoso eu fui um cobrador persistente. Foram feitos planos muito bonitos que nunca se realizaram. Eu dizia que os direitos humanos eram como um primo pobre do governo brasileiro. Nesse ponto, não houve grandes mudanças, os planos não saíram do papel. Apesar de haver um Ministério de Direitos Humanos, não tem recursos financeiros nem apoio para enfrentar as oligarquias. Em relação ao trabalho escravo, a atuação do governo ainda está muito fraca. A violência no campo e a impunidade continuam à espera de uma ação mais firme do governo. Esse setor foi muito prejudicado pelos acordos políticos feitos com as oligarquias. Veja que o Pará é o Estado onde existe maior registro de trabalho escravo e assassinatos de líderes de trabalhadores. Se eu for ao Maranhão, encontro o maior índice de analfabetismo do Brasil, de mortalidade infantil, de hanseníase. Se eu vou ao Estado de Roraima, vou verificar que há um grupo oligárquico destruindo florestas, liquidando os índios. Tudo isso está muito ligado à estrutura federativa do Brasil. BF – O que está faltando para que haja a garantia de direitos humanos no país? Dallari – Há uma questão fundamental que é como a estrutura federativa pesa, dando excessiva autonomia aos Estados. O governo federal pode interferir até certo ponto porque a segurança pública é função básica dos governos estaduais. E o que se deveria perguntar é: onde estão as polícias estaduais? Essas polícias agem quase como cúmplices dos oligarcas, latifundiários, que são grandes invasores de áreas indígenas e de áreas públicas. Eu sou a favor de um novo tipo de federação. Nesse tema,
As polícias estaduais agem quase como cúmplices dos oligarcas, latifundiários, que são invasores de áreas indígenas e de áreas públicas BF – O senhor também defende a federalização dos crimes contra os direitos humanos? Dallari – A federalização de todos os crimes contra direitos humanos poderia permitir inclusive que os policiais estaduais fossem processados por cometer violência. Desde o começo da República as polícias militares são utilizadas como verdadeiros exércitos dos governos estaduais. E o que está sendo feito por essas polícias de São Paulo, Minas Gerais é exatamente isso, tratar o povo como inimigo. Um dos pontos fundamentais para que a gente mude isso é desmilitarizar a polícia. O fato de serem militares dificulta extremamente a punição dos responsáveis. Eles têm uma legislação e tribunal próprios, o policial se refugia dentro do quartel. Esse é um fa-
Dalmo de Abreu Dallari é professor titular e orientador de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). É vice-presidente da Comissão Internacional de Juristas, organização nãogovernamental com estatuto consultivo junto à Organização das Nações Unidas (ONU). É professor visitante da Universidade de Paris XI Nanterre e integrante do Advisory Committee do Brazil Center – Universidade do Texas. Também atua como vice-coordenador da Cátedra Unesco/USP de Direitos Humanos. tor importante de manutenção e estímulo à violência, que garante a impunidade. Há um preconceito contra as populações pobres, um pressuposto de que pobre é criminoso. BF – Uma reforma das corregedorias e ouvidorias de polícia ajudaria a melhorar a situação? Dallari – Essa medida tem um efeito limitado porque se um policial comete violência e se refugia dentro do quartel, a polícia civil não pode pegá-lo lá. Por mais que a corregedoria receba denúncias e queira investigar, haverá sempre uma barreira de impunidade. Mas é claro que pode melhorar. BF – Como o senhor avalia a posição do governo Lula em relação à abertura dos arquivos da ditadura? Dallari – Eu achei errada a orientação do governo, não ostensivamente impedindo, mas deixando de tomar a iniciativa no sentido da ampla abertura dos arquivos da ditadura. Nesse ponto, estamos atrasados em relação aos outros países do Cone Sul. Foi uma área onde eu atuei bastante como presidente da Comissão de Justiça e Paz e integrando a Comissão Internacional de Juristas. Argentina e Chile estão punindo os agentes da ditadura. Recentemente, li um artigo no jornal francês Le Monde que dizia que a Argentina e o Chile estão acertando suas contas com a história e perguntava: e o Brasil? Na verdade, estamos impedindo essa abertura, que é necessária. O governo fraquejou, não deu apoio necessário.
Arquivo JST
Tatiana Merlino da Redação
Luciney Martins/ Rede Rua
Para Dalmo Dallari, não podemos ficar esperando a solução governamental; a saída são os movimentos populares
Em seu governo, “Lula não prioriza os direitos sociais nem rompe com o FMI”
Ano 3 • número 147 • De 22 a 28 de dezembro de 2005 – 9
SEGUNDO CADERNO BOLÍVIA
A hora e a vez dos indígenas Fabio Mallart especial para o Brasil de Fato de Cochabamba (Bolívia)
Fabio Mallart
Com expressivo apoio popular, o aymará Evo Morales vence eleições com projeto antineoliberal e nacionalista
A
Respaldados pela pesquisa boca de urna, simpatizantes e camponeses reuniram-se para comemorar a vitória de Evo Morales em frente à sede do MAS
votações, Evo realizou um discurso reafirmando o seu projeto antineoliberal. “Lutar contra o modelo econômico existente significa combater as desigualdades socias e as injustiças praticadas contra o povo latino-americano”, explicou. O cocalero disse também que a luta está apenas comecando e que conta com o apoio de todo o povo boliviano para construir um país digno e soberano.
Uma política soberana para o gás Uma das bandeiras da campanha do cocalero Evo Morales foi a proposta de nacionalizar os hidrocarburetos. A proposta tem respaldo popular e consta das reivindicações dos movimentos sociais que derrubaram dois presidentes desde 2003. A Bolívia possui a segunda maior reserva de gás natural da América do Sul. “Há muito tempo os estrangeiros vêm aqui e levam nossas riquezas. Todos os contratos com as transnacionais serão revistos”, prometeu Evo, em coletiva à imprensa. O virtual presidente disse também que os recursos naturais bolivianos devem ser utilizados para gerar riquezas para o país e impulsionar a industrialização. O mercado financeiro parece que pressionará o cocalero a rever sua posição. Um dia após as eleições, as ações da transnacional espanhola Repsol já apresentou queda em suas ações, na bolsa de Madri. No ano passado, a petroleira extraiu 10,6 milhões de barris da Bolívia e obteve uma produção de gás de 39,3 milhões de barris equivalentes. Assim como outras empresas instaladas na Bolívia, a Repsol funciona com um contrato que não foi aprovado pelo Congresso, como manda a Constituição boliviana. Os movimentos sociais denunciam que as transnacionais exploram os hidrocarburetos por um custo baixo (um dólar o barril do petróleo, no caso da Repsol) e conseguem lucros elevados na exportação dos recursos. Evo defende que, prioritariamente, o gás seja usada na industrialização do país cuja principal atividade econômica hoje é a agricultura. (FM)
A defesa do cultivo de coca Durante a campanha eleitoral de Evo Morales, as folhas de coca foram tema de debate e questionamentos por parte de seus adversários políticos. No Brasil, inclusive, a mídia comercial tratou de caracterizar pejorativamente Morales como “um plantador de coca”, inclusive em editoriais, como fez a Folha de S. Paulo, alertando para os “riscos” que sua vitória pode representar. Fato é que a trajetória de Evo – como a de milhares de bolivianos – está completamente ligada à cultura da folha. Líder político, o virtual presidente enfrentou no passado governos que quiseram erradicar o cultivo da planta típica dos Andes e sempre esteve ligado aos sindicatos e produtores da região do Chapare, local conhecido pelo cultivo das folhas. “O narcotráfico deve ser combatido, mas os camponeses que cultivam as folhas não. A coca faz parte da cultura boliviana”, defende Morales. O governo estadunidense pressiona a Bolívia a devastar suas plantações, pois Washington afirma que a maioria da produção de coca é transformada em cocaína. Os jovens estadunidenses são os maiores consumidores da droga. No entanto, o consumo da coca para os bolivianos possui um outro significado. Mastigar as folhas é um hábito milenar, além de combater a fome e diminuir o mal-estar provocado pelas elevadas altitudes andinas. “Usamos a coca para trabalhar e também como alimento. Não produzimos cocaína, afirma Clero Rodrigues, que trabalha com o cultivo das folhas na região do Chapare. George W. Bush pretende continuar a pressão pela erradicação do cultivo da coca. Alguns programas estadunidenses oferecem ao povo do altiplano, em troca, alternativas incompatíveis com a cultura local, como projetos de cultivos de bananas. Washington já deixou claro que as relações entre os dois países dependerá do compromisso que a Bolívia assumir em relação à luta contra as drogas. (FM)
entre os países latino-americanos e mostrou que pode-se esperar um aprofundamento da inserção da Bolívia nos processos regionais de integração. “O Mercado Comum do Sul (Mercosul) tem que fortalecer os pequenos e médios produtores. Temos que nos unir e lutar contra o modelo neoliberal. Na minha opinião, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) deveria se chamar Alga, Acuerdo de Libre Ganancia
Durante o pronunciamento, Morales destacou que está disposto a dialogar com todos os setores: organizações camponesas, indígenas, sindicatos, intelectuais, empresários e artistas. Também se referiu às acusações sofridas por ele e pelo MAS nas últimas semanas da campanha eleitoral. “Antes nos matavam com bala. Agora querem nos matar com mentiras”. Evo reafirmou a importância da união
(Lucros) de las Américas”. Durante a campanha, o MAS contou com o apoio da maioria dos sindicatos e movimentos sociais bolivianos que estiveram ao lado do presidente em comicios e discursos. “Os recursos e as riquezas serão distribuídos igualitariamente entre todos. Sem a ajuda dos movimentos sociais, fica muito difícil modificar a realidade das maiorias oprimidas”, afirmou Evo.
ANÁLISE
A vitória do MAS e a luta antineoliberal Emir Sader Para o pensamento único, tudo o que se oponha a seu modelo supostamente universal, surge como anomalia e costuma ser chamado de “populismo”. Assim, a vitória do Movimento Al Socialismo (MAS) e de Evo Morales na Bolívia lhes aparece como outro sinal dessa “doença”, contágio do que acontece na Venezuela. Já se prevê que o mesmo diagnóstico se aplicará ao Peru *. Somente sua mente congelada pode não se dar conta da particularidade do que acontece na Bolívia. Não que não possa se estender a outros países, mas comparar o processo político e histórico da Venezuela com o da Bolívia só pode ser produto de suas mentes incapazes de pensar o movimento concreto das lutas dos povos. A Bolívia desperta muita esperança não apenas porque mais um presidente eleito diz que superará o modelo neoliberal. Outros já o fizeram, sem que tenham colocado isso em prática. A luta antineoliberal se encontra diante de obstáculos. Os movimentos sociais protagonizaram essas lutas, mas não se pode pedir-lhes que se encarreguem de ser os responsáveis pela efetivação de um novo modelo, dado que isto passa por políticas de Estado – universalização de direitos, substituição de objetivos econômico-financeiros por objetivos sociais, recuperação do papel regulador do Estado, da soberania nacional, extensão dos direitos de cidadania para todos, etc. –, isto é, por forças políticas que têm características distintas dos movimentos sociais. O caso do Equador revelou o fracasso de situações em que os movimentos sociais delegam a outras forças políticas a superação do
Fabio Mallart
inda era domingo, dia 18, logo após as eleições, quando duas mil pessoas agitavam bandeiras em frente à sede do Movimiento Al Socialismo (MAS), em Cochabamba. Entre elas, a estudante Inilmar Rodrigues, que não escondia a esperança sobre o que está por vir. “Tenho orgulho de ter um indígena na Presidência do meu país. Evo vai reconstruir a Bolivia e acabar com os interesses das minorias privilegiadas e das transnacionais”, afirmou. O entusiamo dos militantes, simpatizantes e camponeses estava respaldado pelas pesquisas de boca de urna que apontam uma incontestável vitória do indígena cocalero Evo Morales nas eleições presidenciais. Até o dia 20, fechamento desta edição, a expectativa era que o apoio ao programa proposto pelo MAS superasse os 50% dos votos válidos – o que daria a vitória para Evo ainda no primeiro turno. Se tivesse menos votos, o candidato teria de ser confirmado presidente pelo Congresso. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) boliviano tinha apurado pouco mais da metade dos votos e Evo liderava com 50,9% contra 32% do conservador Jorge “Tuto” Quiroga, do Podemos (Poder Democrático Social) . Mas, como faltavam para ser contabilizados justamente os votos das províncias, onde o cocalero tem amplo apoio popular, até Quiroga e os outros candidatos reconheciam a vitória de Morales. Logo após o encerramento das
Bolívia: articulação equilibrada entre movimentos sociais e partido político
neoliberalismo. Depois, sentem-se frustrados e pagam um preço caro por isso, inclusive com sua divisão. No caso dos zapatistas, de forma distinta, houve a reconversão da tentativa de construir governos locais para o trabalho pela formação de frentes de massa nacionais, abandonando-se a idéia de que fosse possível a emancipação dos índios de Chiapas sem uma solução política global para o México. No caso de governos como os do Brasil e do Uruguai, direções políticas e governos de esquerda se autonomizaram em relação aos movimentos sociais, abandonando as plataformas que tinham em comum com estes. Diante desses impasses, a Bolívia aparece como uma articulação mais equilibrada entre movimentos sociais e um partido político – o MAS. Esta é uma força política diretamente apoiada por movimentos sociais de diferentes características – indígenas, de associações de bairro, de sindicatos, entre outros –, que assume um projeto político antineoliberal e de emancipação das etnias
e outras minorias postergadas na histórica boliviana durante séculos. Os movimentos sociais tendo incorporado reivindicações como a nacionalização dos hidrocarburetos e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte que refunde o Estado boliviano em termos democráticos, supera limitações corporativas e setoriais. O MAS é um partido muito recente, será submetido a uma dura prova, tendo que administrar o Estado boliviano praticamente sozinho, tendo ainda que construirse como partido. Mas se joga na piscina com boas perspectivas de representar uma alternativa fundamental para a luta antineoliberal na América Latina. O sociólogo Emir Sader escreveu este artigo exclusivo para o Brasil de Fato, de La Paz (Bolívia) *O Peru terá eleições em abril de 2006 e as pesquisas apontam o fortalecimento da candidatura do militar progressista Ollanta Humala
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De 22 a 28 de dezembro de 2005
INTERNACIONAL IMPERIALISMO
Guantánamos secretas pelo mundo João Alexandre Peschanski da Redação
Arquivo AI
A CIA, agência de inteligência dos EUA, viola leis internacionais e instala centros de tortura em oito países
O estopim da crise
O
rganizações de direitos humanos européias, como a inglesa Anistia Internacional, denunciam as agressões e as torturas que ocorrem na base naval estadunidense Guantánamo, localizada no extremo-leste de Cuba, desde que esta se tornou uma prisão para supostos terroristas, em 2002. Afirmam que o governo dos Estados Unidos viola leis internacionais, como a Convenção de Genebra, elaborada entre 1864 e 1949, que determina que prisioneiros sejam tratados com humanidade, proibindo atentados a sua dignidade física e mental. Se uma Guantánamo já escandaliza as organizações européias, agora estas estão estarrecidas. Os jornais estadunidenses The New York Times e The Washington Post e a revista alemã Der Spiegel, em reportagens veiculadas desde o dia 5, acusam a Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos de manter prisões secretas em oito países, no Leste da Europa, no Oriente Médio, no Sudeste Asiático e no Norte da África. Os prisioneiros – geralmente vindos do Afeganistão e do Iraque, países ocupados pelo governo estadunidense – eram transportados em vôos não identificados e, nas detenções, eram torturados. Segundo relatório da entidade Human Rights Watch (do inglês, Observatório de Direitos Humanos), divulgado no dia 15, há, pelo menos, 26 prisioneiros da CIA em prisões secretas. Os aviões da Agência, de acordo com as reportagens, deixaram prisioneiros em cárceres na Arábia Saudita, Egito, Indonésia, Marrocos, Polônia, Romênia, Síria e Tailândia. As aeronaves fizeram escalas, em segredo, em vários países, sem informar seus destinos e quem transportavam. Durante o governo de George W. Bush,
Prisioneiros são torturados em prisões do Leste Europeu, Oriente Médio, Sudeste Asiático e Norte da África
pousaram, de forma clandestina, 200 vezes na Inglaterra, 59 em Portugal, dez na Espanha, duas na França. De acordo com a Anistia Internacional, os aviões fizeram 427 vôos na Europa, principalmente na região oriental do continente.
INJUSTIFICÁVEL No dia em que as reportagens foram publicadas, a secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, viajou para a Europa. Defendeu a política do governo Bush em relação a prisioneiros, dizendo que a obtenção de informações se tornou fundamental para lutar contra o terrorismo. Em outras palavras, qualquer método é válido, incluindo a tortura, desde que o objetivo seja alcançado.
Cinco dias após o 11 de setembro de 2001, quando ataques terroristas atingiram os Estados Unidos, Bush ordenou a criação de um centro de formação de “coletadores de informações”, na linguagem oficial, ou, nas palavras de entidades de direitos humanos, torturadores. Foi instalado na maior base militar do país, Fort Bragg, na Califórnia. A institucionalização da tortura e a espionagem de pessoas em todo o mundo fazem parte da prática política de Bush. E ele não nega. Em declarações, no dia 19, disse que os Estados Unidos estão em guerra e precisam vencer seus inimigos do modo que for necessário. Pesquisas de opinião pública, divulgadas pelo The New
York Times, indicam que 61% dos estadunidenses repudiam a tortura de prisioneiros.
PROJETO GLOBAL Centros de tortura espalhados pelo mundo, vôos secretos com prisioneiros sem respeito a seus direitos, desrespeito às leis internacionais. As recentes revelações chocam, mas eram esperadas. Já estavam delineadas no Projeto por um Novo Século Americano (PNAC, na sigla em inglês), texto que define a estratégia da política externa estadunidense. Foi escrito pelo vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, e divulgado em 2 de agosto de 2002. O PNAC defende que o país deve intervir, diplomática e mi-
Khaled El Masri está processando a Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos. Acusa a instituição de tê-lo seqüestrado e mantido, durante cinco meses, em uma prisão secreta, no Afeganistão. A denúncia de Masri, cidadão alemão, gerou as repercussões na mídia, estadunidense e européia, das prisões secretas da CIA. No final de 2003, Masri foi seqüestrado na fronteira entre a Sérbia e a Macedônia, onde estava em viagem de férias. Soldados, que não se identificaram, confiscaram seu passaporte. Vinte e três dias depois, após ficar detido em um local secreto, foi transportado para uma prisão no Afeganistão, onde foi submetido a interrogatórios. Os perquiridores o acusaram de ser terrorista. Após quatro meses de prisão, Masri foi solto, na Albânia. Chegou na Alemanha em maio de 2004, onde sua família, sem notícias dele, se mudou para o Líbano. Apoiado por entidades de direitos humanos, desde então, processa a CIA. (JAP)
litarmente, em áreas que possam colocar em risco a segurança dos estadunidenses. É a lógica da guerra preventiva, que foi usada como justificativa para as invasões do Afeganistão, em 2002, e do Iraque, um ano depois. De acordo com o texto, os Estados Unidos devem assumir seu papel de líder global. Em relação à tortura, afirma que interrogatórios devem ser realizados, de modo eficiente, para coletar informações. Foi a mesma justificativa de Condolezza, na Europa, que disse que “interrogatórios agressivos não são feitos com o objetivo de gerar sofrimento, mas para obter informações”.
O legado das transnacionais Igor Ojeda da Redação Assassinato, tortura, seqüestro, degradação ambiental, repressão violenta de direitos políticos, liberação de produtos tóxicos no
meio ambiente e danos à saúde. A lista de violações dos direitos humanos é grande. E inaceitável. Principalmente se for levado em conta que tais crimes são cometidos pelas empresas mais lucrativas do planeta. A organização interna-
Há anos, a corporação estadunidense fornece escavadeiras mecânicas usadas para destruir casas palestinas, algumas vezes matando civis e ativistas pela paz. Apesar da condenação internacional a esse tipo de ação, a empresa se nega a cortar suas vendas ao Exército de Israel. No Equador, a ação da transnacional dos Estados Unidos provoca câncer, lesões de pele, defeitos de nascimento e abortos espontâneos. De 1964 a 1992, a Texaco (da Chevron desde 2001) lançou água e petróleo cru tóxicos nos rios e solos subterrâneos. Na Nigéria, a empresa colabora com a polícia e o Exército local, que abre fogo contra manifestantes pacíficos que se opõem à extração de petróleo no delta do Níger. Na Colômbia, sindicalistas que interferem em seus interesses são mortos, seqüestrados, torturados e detidos por paramilitares. Na Turquia, em 2005, motoristas de caminhão da empresa e suas famílias foram surrados severamente pela polícia turca contratada pela transnacional estadunidense enquanto protestavam contra a demissão temporária de mil trabalhadores. Conhecida como a inventora do Agente Laranja e do Napalm, armas químicas usadas durante a Guerra do Vietnã contra a população local, a empresa estadunidense produz produtos químicos e lança seu lixo tóxico em campos agriculturáveis no mundo todo, deixando camponeses estéreis. Esta empresa privada de segurança atua a serviço do governo estadunidense em diversos países. Por exemplo, na erradicação de plantações de coca na Colômbia, causando mortes e doenças nos agricultores locais, além de graves danos ao ambiente. Em 2001, um ex-funcionário denunciou que empregados da
cional Global Exchange listou as 14 transnacionais “mais procuradas” de 2005, enfatizando o fato de que “as corporações carregam consigo alguns dos mais horríveis abusos de direitos humanos dos tempos modernos, mas está cada
vez mais difícil fazê-las pagar por isso”. Ted Lewis, diretor de Programas de Direitos Humanos da entidade, diz que “o mais grave é que estes violadores corporativos estão ficando mais fortes em comparação com nossas instituições
transnacional na Bósnia estupraram e traficaram meninas de 12 anos, transformando-as em escravas sexuais. Desde 1999, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA classifica os caminhões e jipes urbanos da empresa como os menos econômicos de todas as montadoras do país. Se fosse um país, a Ford estaria no 10º lugar entre os que mais contribuem para o aquecimento global, através da poluição do ar. Ao mesmo tempo, a empresa faz lobby contra leis que melhoram o padrão de economia de combustível.
políticas e civis”. E sentencia: “Os tipos mais cruéis de crimes corporativos são normalmente cometidos em aliança com atores estatais”. Veja a lista no quadro abaixo e os crimes cometidos por cada empresa.
pela Costa do Marfim, onde estima-se que aproximadamente 109 mil crianças trabalham sob tais condições. A suíça Nestlé é a terceira maior compradora deste produto do país africano. A maior empresa tabagista do mundo, produtora da marca Marlboro, engana seus consumidores sobre os riscos à saúde causados por seus cigarros. Um documento revelado durante um processo mostrou que a companhia suíça sabia dos efeitos nocivos, mas segue negando tal realidade.
KBR
Entre seus mais novos abusos, a empresa está contratando operários de países subdesenvolvidos para reconstruir o Iraque pós-invasão e a cidade de Nova Orleans atingida pelo furacão Katrina. Os novos trabalhadores são submetidos às condições subhumanas, como por exemplo falta de assistência médica e má alimentação.
Como a maioria das empresas farmacêuticas, a Pfizer vende seus remédios a preços que as pessoas pobres não podem pagar e luta agressivamente contra os esforços feitos para a entrada de medicamentos genéricos no mercado.
A maior empreiteira militar do mundo faturou em 2003, ano da invasão do Iraque pelos EUA, 21,9 bilhões de dólares através de contratos com o Pentágono. Desde 2000, quando George W.Bush foi eleito, a empresa triplicou seu valor na bolsa.
Através da privatização da água de muitos países subdesenvolvidos, a empresa francesa Suez-Lyonnaise Des Eaux causa escassez de água potável e o aumento extorsivo do preço deste bem. A companhia costuma cortar o fornecimento de quem não consegue pagar suas altíssimas contas e recusa-se a estender seus serviços às periferias.
Ao promover a monocultura, a empresa atinge seriamente a soberania alimentar, o acesso à terra e as condições dos solos nos países onde atua. Além disso, a transnacional também se utiliza de trabalho infantil. . Muito do chocolate comido em todo o mundo são feitos de cacau colhido por trabalho infantil ilegal e escravo. Mais de 40% do cacau mundial é fornecido
A maior corporação do mundo, por seu enorme poder de pressão, exige preços baixíssimos de seus fornecedores que, para atingirem tal demanda, abusam dos direitos de seus operários, inclusive com trabalho semi-escravo. Assim, a companhia estadunidense segue oferendo preços extremamente acessíveis em suas lojas, causando a quebra de supermercados e pequenas vendas locais.
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INTERNACIONAL LIVRE-COMÉRCIO
Em Hong Kong, uma saída de fachada Igor Ojeda da Redação
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Na conferência da OMC, pouco de concreto para a agricultura, sinais de esgotamento da agenda neoliberal
“A
gente falava que era melhor um não-acordo do que um mau acordo. Esse é um mau acordo”, analisa Gonzalo Berrón, coordenador da Aliança Social Continental (ASC), que esteve em Hong Kong acompanhando a 6ª Conferência Ministerial da Organização Mundial OMC – A Organido Comércio zação Mundial do (OMC), que Comércio foi criada terminou no dia em 1º de janeiro de 1995, supostamente 18. para promover o Após duas livre-comércio. Seu c o n ferências raio de atuação, no entanto, vai além do ministeriais comércio interna(Seattle 1999 e cional e influi diretaCancún 2003) mente no modo de vida de milhões de sem nenhum pessoas. Na prática, tipo de texto a OMC se converteu final, o enconem uma organização supranacional tro desse ano se que tenta impor às livrou de mais nações regras nas um completo áreas da saúde, educação, meio amfracasso com biente, alimentação. uma declaração cosmética. Ou seja, a intenção era mostrar ao mundo algum tipo de resultado. “O que os governos estavam tentando era qualquer saída de fachada, para não ficarem sem nenhuma texto nas mãos. Isso abriria uma crise estrutural na OMC”, avalia Fátima Mello, da Rede Brasileira Para a Integração dos Povos (Rebrip). Na chamada Carta de Hong Kong, após muita resistência da União Européia (UE), fixou-se o ano de 2013 como a data-limite para a eliminação total dos subsídios às exportações agrícolas, sendo que parte substancial deles devem ser suprimidos até 2010. A discussão de outros temas referentes à agricultura (pauta central em Hong Kong), como redução do apoio doméstico e acesso a mercados via redução de tarifas foi adiada para abril de 2006, assim como a abertura de mercados para bens industriais e serviços. A roda-
Enquantos os governantes decidiam o futuro dos povos de todo o mundo no Centro de Convenções, manifestantes mostravam seu repúdio às políticas da OMC
da de Doha ganha uma sobrevida. Rodada de Doha – Referência ao compromisso dos países assumidos em dezembro de 2001, em Doha (Qatar), durante a 4ª Conferência Ministerial da OMC. Trata-se de uma nova pauta de negociações de livre-comércio para todo o planeta. A conclusão desta rodada foi programada para 2005.
RISCOS
“O fato é que esse acordo é extremamente vago com relação ao que queriam os países em desenvolvimento e, em troca, os países desenvolvidos conseguiram compromissos daqueles em serviços e bens industriais. Compromissos que representam riscos muito concretos e reais”, alerta Fátima. Segundo ela, a inclusão das compras governamentais no tema
serviços, por exemplo, é “uma derrota horrível” Compras goverpara os povos namentais – Habitualmente em grandas nações mais des volumes, via pobres e o corte aquisições, leasing, de tarifas de arrendamentos ou bens industriais contratações, são importantes para as causará grande indústrias locais e impacto sobre objeto de cobiça das o emprego e na transnacionais e de seus países sede. capacidade dos Subsídios – Benefípaíses de estacios governamentais belecer políticas concedidos como incentivo à produção para o setor. e/ou exportação Além disso, de um produto. Podem ser diretos ou mesmo a elimiindiretos, e têm a nação dos subfinalidade de tornar o produto mais com- sídios agrícolas petitivo no comércio está atrelada a internacional. uma série de condicionamentos. Por exemplo,
às negociações das demais modalidades em agricultura em 2006. “Se eles não conseguirem negociar estas modalidades, a data cai”, avalia Fátima.
ATUAÇÃO DO G20 Ainda segundo ela, o encontro da OMC revelou dois fatos políticos G-20 – Grupo de significantes: países em deseno esgotamento volvimento que atua da agenda de na OMC, liderado por Brasil e Índia e liberalização centrado nos temas comercial da ende agricultura. tidade, ao ficar claro que “o ambiente pró-neoliberalismo já não é tão forte como era nos anos 90”, e a criação do G110, união do G20 com os países mais pobres. Gonzalo Berrón não concorda com a formação do grupão. Para
ele, a constituição do G110 “foi um jogo de cena”, uma vez que não influiu nos resultados das negociações. “Foi só para dizer que se estava fazendo alguma coisa”. O coordenador da ASC critica também a atuação do Brasil e da Índia que, ao contrário do que afirmam, não defendem os interesses dos países mais periféricos, porque se tornaram hegemônicos dentro do próprio G20 e exercem um grande poder de pressão sobre as demais nações. “Os dois agora têm compromisso com o sucesso da OMC e da rodada de Doha. Quando se entra no jogo, deve-se cuidar de sua regra”. Por isso mesmo, trabalharam forte por um acordo, “para não sair dessa elite que decide o comércio mundial”.
DIÁRIO DE MOBILIZAÇÃO
Anuradha Mittal de Hong Kong (China) “Hong Kong: uma cidade sob cerco” foi a manchete de um jornal, dia 18, da reunião da (Organização Mundial do Comércio), descrevendo as mobilizações de massa nas ruas da cidade, o que forçou o fechamento do Centro de Convenções. Jane Kelsey, da rede Nosso Mundo Não Está À Venda (Owinfs), descreveu o acontecimento: “Finalmente se encontraram ontem à noite os mundos paralelos das pessoas denunciando que a OMC está destruindo as vidas dos povos no Norte e no Sul e o mundo dos ministros do comércio, que buscam desesperadamente um acordo cosmético para manter a OMC viva”. Os protestos contra a OMC não se referem ao cerco de uma cidade, mas sim desafiam o cerco à nossa democracia, soberania, direitos humanos e dignidade. Por muito tempo da reunião da OMC, os negociadores trabalharam para se esconderem nas Salas Verdes dos Centros de Convenções transformadas em fortalezas, tomando decisões que afetam o cotidiano de milhões de pessoas. Isso mudou quando a mobilização de massa deixou claro a todos o que é realmente democracia. Milhares de representantes de agricultores, pescadores, operários, migrantes, estudantes mulheres e outras organizações da sociedade civil iniciaram sua marcha entre
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Uma cidade sob cerco? pacificamente na Gloucester Road, cantando e dançando, mas foram cercados por todos os lados pela polícia por mais de dez horas. Às três e meia da manhã, a polícia começou a prender os manifestantes e as prisões continuaram. Relatos dos grupos de apoio legal e dos que foram presos revelam que para alguns presos não foram permitidos comida, água ou banheiro, enquanto muitos foram forçados com algema e outros foram obrigados a tirar as roupas para serem revistados. Entre os presos estão o secretário-geral da Via Campesina para a África e o secretário-geral da Via Campesina para o País Basco.
SEM INFORMAÇÃO Na Conferência da OMC, centenas de presos. O crime? Protestar
cantos de “abaixo a OMC”. Foram ao Centro de Convenções de Hong Kong para protestarem contra as políticas destrutivas da OMC. Liderando a marcha estavam integrantes da Liga Camponesa da Coréia do Sul, a Organização Camponesa de Moçambique (UNAC) e outros representantes da Via Campesina juntos com representantes de outras organizações internacionais do Canadá, Índia, Tailândia, EUA, Austrália, Alemanha e de outras partes do mundo. Por volta das cinco da tarde, fomos parados pela polícia. Mas a determinação das pessoas de ter suas vozes ouvidas superou todas
as barreiras. Criando distrações, lutando contra as fileiras policiais, pulando sobre as barricadas, conseguimos chegar muito perto do Centro de Convenções. O povo de Hong Kong fez um cordão de isolamento e muitos nos saudaram... aplaudindo, com seus punhos levantados. Assim que chegamos perto do Centro de Convenções, a polícia jogou gás de pimenta e lacrimogêneo e usou mangueiras d’água para nos dispersar. Segurando uns nas mãos dos outros, nos mantivemos firmes. Muitos ficaram feridos e alguns foram hospitalizados. Depois, pelo menos 900 manifestantes sentaram
Um porta-voz do Conselho dos Sindicatos do Comércio da Coréia do Sul disse que a polícia não iria fornecer informações sobre o número das pessoas detidas, mas eles acreditam que 71 sindicalistas foram presos, incluindo o presidente e o vice do Conselho. Disseram ao porta-voz que a polícia levou algumas pessoas do hospital para o centro de detenção antes de elas serem completamente tratadas. Houve quem teve também tratamento médico negado na delegacia. Todos os que foram presos foram algemados com algemas de plástico; aqueles que as quebraram foram surrados com mãos ou paus. Uma apelo está sendo feito ao consulado sul-coreano para que seja mediador em nome de seus
cidadãos. Movimentos sociais, sindicatos do comércio e redes de todo o mundo, incluindo Via Campesina e Owinfs estão reivindicando a soltura dos presos. Jose Bove, o agricultor francês, falando em uma coletiva de imprensa, disse: “Não somos terroristas ou criminosos. Somos agricultores e operários que estamos lutando por nossa vida. Por isso viemos para este prédio, para abrir as portas e dizer aos delegados que venham e ouçam o que temos a dizer. Esta é uma resistência legítima contra o que chamamos a violência institucional da OMC, que está matando agricultores, causando suicídios em muitos países, com muitos agricultores sendo forçados a deixaram suas fazendas. ”. Os protestos foram sensacionalizados pela mídia como uma baderna de cinco mil produtores de arroz sul-coreanos quando lá havia pessoas de todas as profissões e de todos os países do mundo. E à noite Hong Kong não foi uma cidade sob o cerco dos manifestantes. O povo na verdade, teve uma oportunidade de testemunhar a coragem de nossos defensores dos direitos humanos, dos trabalhadores e imigrantes, dos agricultores que são os guardiões da humanidade e de tudo que seja rico e verdadeiro na vida. Anuradha Mittal é presidente do Instituto Oakland, com sede em Washington
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INTERNACIONAL QUÊNIA
Falta de comida piora o panorama da Aids Unaids
Joyce Mulama de Nairóbi (Quênia)
Unaids
Portadores da doença exigem do governo alimentação adequada, além de medicamentos anti-retrovirais
O
governo do Quênia pretende estender as terapias a mais quenianos com Aids, para manter sob controle um conjunto de enfermidades relacionadas com esta epidemia. Mas segundo a Rede de Pessoas Africanas que vivem com HIV/Aids (NAP), não existe um entusiasmo semelhante – especialmente por parte do governo – para garantir que aqueles que recebem anti-retrovirais contem com uma alimentação adequada, imprescindível para que a medicação tenha efeito. As terapias com anti-retrovirais reduzem a carga do vírus da deficiência imunológica humana (HIV, causador da Aids) no organismo. Assim, é freado o avanço da doença e os riscos de contrair outras infecções, e a vida é prolongada. Mas há muitos efeitos secundários, e sua aplicação exige hábitos rigorosos e uma combinação adequada de descanso e atividade física. “O governo não nos apóia. Não existe nenhuma iniciativa governamental que cuide de uma adequada nutrição”, diz o coordenador nacional da NAP, Michael Angaga. “Os esforços do governo para enfrentar a epidemia limitam-se, fundamentalmente, ao fornecimento de anti-retrovirais”, acrescenta. Medina Yahya certamente concordaria com esta afirmação. Moradora em Kibera, o bairro mais extenso de Nairóbi e possivelmente de toda a África, com cerca de 700 mil habitantes, Medina agora sofre de várias doenças, incluindo diversas úlceras, por receber anti-retrovirais com o estômago constantemente vazio. “Comecei a tomar os remédios no início de 2004 e por muito tempo tomava sem ter me alimentado, porque não tinha nada para comer”, conta. Para Medina, 30 anos, foi recomendado interromper o tratamento até que se fortalecesse um pouco. Mas isto depende de conseguir comida para ela e seus três filhos. No momento, depende das doações do Centro de Resgate Stara, uma escola informal que alimenta os filhos de portadores de HIV e que também fornece alimentação toda semana aos adultos.
Mais da metade dos quenianos sobrevive com menos de um dólar por dia
Susan Asiko, 35 anos, que faz trabalhos domésticos para Medina, conta uma situação semelhante. Ela mesma está sob tratamento anti-retroviral desde 2004, quando a Aids foi diagnosticada. “No começo, os remédios me afetaram porque era difícil conseguir comida suficiente. Fiquei de cama algum tempo, mas quando consegui me alimentar regularmente minha saúde melhorou”, diz. “Conseguir alimento é o principal desafio aqui, especialmente se a pessoa não está trabalhando.”
As tentativas do Centro de Resgate Stara para que o governo forneça alimentos não têm resultado, lamenta Josephine. Atualmente, a escola recebe provisões de entidades beneficentes. Organizações não-governamentais também trabalham nesse sentido. A NAP embarcou em um projeto-piloto para fornecer Nutropath, um complemento alimentício em pó para pessoas com Aids. O projeto é dirigido por dois centros em Nairóbi e na cidade de Kisumu, e já atende 150 adultos e 50 crianças. “O produto pode ser misturado com água, leite ou suco, e os que estão tomando apresentaram grandes mudanças em sua saúde”, diz Angaga. “Quem perdeu peso voltou a ganhar. A maioria diz que pode deixar de fazer uma refeição e ainda sentir-se forte”. O governo insiste em que o panorama da nutrição não é tão sombrio quanto NAP e outros alegam. “O governo tem um orçamento para apoiar a alimentação através do Fundo Global (para a Luta contra a Aids, a Tuberculose e a Malária)”, conta Patrick Orege, diretor do Conselho Nacional de Controle da Aids, encarregado de coordenar o combate à epidemia no Quênia. O Fundo foi criado em 2002 como uma sociedade internacional para
ÓRFÃOS DA AIDS Mais da metade dos quenianos sobrevive com menos de um dólar por dia, segundo estatísticas governamentais. Em última instância, o preço de um prato de comida, maior do que os remédios anti-retrovirais, pode se interpor no caminho das pessoas que vivem com HIV/Aids. “Aqui, os pais interrompem sua medicação por causa dos efeitos secundários que sofreram quando tomaram medicamentos fortes com o estômago vazio”, afirma Josephine Mumo, diretora e co-fundadora do Centro de Resgate Stara. “Estão debilitados e ficam de cama em casa, incapazes de cuidarem dos filhos. Depois morrem, deixando-os órfãos”, acrescenta.
No Quênia, 2,2 milhões dos 32,8 milhões de habitantes têm o HIV
financiar esforços para conter essas doenças. Além do bem-vindo dinheiro do Fundo Global, a pergunta é se o governo não deveria dispor de recursos econômicos próprios para os programas de alimentação destinados às pessoas com Aids, especialmente depois de ter adotado a Declaração de Compromisso das Nações Unidas com o HIV/Aids.
PROMESSAS Esse documento estabelece que os países deveriam “aumentar e priorizar orçamentos nacionais para os programas do HIV/Aids, e se assegurar que o dinheiro chegue a todos os ministérios responsáveis” e outras entidades relevantes. O lema do Dia Mundial da Aids (celebrado no dia 1º de dezembro) foi “Detenha a Aids. Mantenha a promessa”, adotado com a finalidade de os governos cumprirem os
compromissos assumidos na declaração da Organização das Nações Unidas. Os programas alimentares não recebem muita atenção no orçamento nacional, ao contrário dos gastos com entretenimento dos parlamentares, sem mencionar os automóveis presenteados. A cada ministro e parlamentar do Quênia cabe uma subvenção de 44.600 dólares para comprar um automóvel, e uma quantia mensal para entretenimento, não inferior a mil dólares. Isso significa que o governo gasta cerca de 200 mil dólares por mês para “entreter” os parlamentares. A mesma quantia dá para comprar 17 mil sacas de milho, que sem dúvida ajudariam a melhorar a nutrição dos pacientes de Aids mergulhados na pobreza. No momento, 2,2 milhões dos 32,8 milhões de habitantes do Quênia têm o HIV. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
ANÁLISE
Mary Robinson “Enfrentar a pobreza é um assunto complexo.” Por que tenho ouvido dizer isto tão freqüentemente, sobretudo agora quando o tema da pobreza volta a estar no primeiro lugar da agenda mundial? A pobreza está na base dos maiores problemas que o planeta enfrenta atualmente, da degradação ambiental até a insegurança e os conflitos armados. De modo que seria justo reconhecê-la como prioridade da Cúpula do Grupo dos Oito, em julho, da Cúpula Mundial sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio, em setembro, e da decisiva conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Hong Kong. Porém, a pergunta continua sem resposta: é tão complexo enfrentar a pobreza? Acredito que esta afirmação é feita por políticos e economistas que não querem admitir o vínculo entre a extrema pobreza em países em desenvolvimento e as ações empreendidas em países ricos. Se o fizessem, veriam que as soluções são óbvias. Em dezembro de 2004, em Mali, estive em uma plantação de algodão, sufocando-me de calor debaixo do sol do meio-dia. As mulheres à minha volta se curvavam até o so-
lo e enchiam cestos com o algodão que recolhiam com as mãos nuas; um bebê estava estendido em uma valeta próxima, sendo cuidado por outras crianças pequenas. Não vi nenhum abrigo, nenhum serviço de higiene, nem água potável ou mesmo um lugar com uma sombra decente. Só via pobres e orgulhosas famílias que lutavam para sobreviver em um ambiente hostil. Seu problema não era tão complexo. A pobreza estava negando a essas mulheres seus direitos fundamentais, de ter acesso a um adequado nível de vida. A culpa é, simplesmente, de certas políticas adotadas nos Estados Unidos. No passado, os africanos chamavam o algodão de “ouro branco” porque fornecia a renda essencial para comprar alimentos, remédios e enviar os filhos à escola. Mas os preços do algodão começaram a cair desde meados dos anos 90, sobretudo por causa da política agrícola estadunidense. O governo desta potência gasta mais de 3 bilhões de dólares anuais para subsidiar sua produção de algodão, que inundou os mercados mundiais e, em conseqüência, jogou para baixo os preços do produto e reduziu drasticamente a renda de dez milhões de africanos que dependem
Arquivo Brasil de Fato
A miséria do “ouro branco”
Subsídios agrícolas dos países ricos deixam a África cada vez mais pobre
dele. São os produtores mais pobres do mundo.
DIREITOS HUMANOS Enquanto em 2002 os algodoeiros dos EUA recebiam, em média, contribuições governamentais no valor de 331 mil dólares ao ano, os produtores em países como Mali, Benin e Burkina Faso ficam felizes se obtêm uma renda anual de 440 dólares. Os subsídios agrícolas dos Estados Unidos estão levando as famílias da África Ocidental à misé-
ria e são diretamente responsáveis por uma grave negação de direitos humanos básicos em matéria de alimentação, água potável, serviços de saneamento, saúde e educação. O drama que presenciei em Mali está se repetindo de diferentes formas em comunidades pobres de todo o mundo, e não se deve culpar apenas os Estados Unidos. Os produtores de açúcar e leite na África, América do Sul e Ásia também sofrem por causa dos subsídios da União Européia.
O prejuízo provocado por estas políticas é exacerbado pelos programas de ajuste estrutural impostos pelo Fundo Monetário Internacional e apoiados pelo Banco Mundial, que levam muitos governos de países em desenvolvimento a realizar cortes nos serviços sociais, o que torna mais difícil para os pobres educar, nutrir e dar abrigo aos seus filhos. Além disso, as normas de propriedade intelectual tornam mais difícil o acesso a medicamentos contra doenças como HIV/ Aids, que mata 6,5 mil africanos a cada dia. É hora de o mundo rico aceitar não só as vantagens, como também as responsabilidades da era da globalização. Nossos impostos minam seus meios de vida, as patentes e os lucros de nossas empresas são protegidos às custas da saúde das crianças desses “estranhos”. Os ministros de Comércio fazem parte de governos que aceitam responsabilidades ao assinarem tratados internacionais de direitos humanos. Menos palavras e mais ação, essa é a maneira mais simples de enfrentar a pobreza. Mary Robinson preside a Iniciativa por uma Globalização Ética. Foi presidente da Irlanda e Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos
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De 22 a 28 de dezembro de 2005
NACIONAL TRANSPOSIÇÃO
Sociedade se arma para amplo debate Luís Brasilino enviado a Brasília (DF)
João Zinclar
Em audiência com Lula, frei Luiz ouve nova promessa de debate enquanto sociedade reúne argumentos contra projeto comprometeu a realmente abrir um amplo debate com a sociedade. Essas foram palavras textuais do presidente”, garantiu frei Luiz ao deixar a audiência. Contudo, Jaques Wagner, ministro de Relações Institucionais, que também participou da audiência, falou com a imprensa cerca de dez minutos depois de frei Luiz. E deixou escapar que 2006 continua sendo um ano “razoável” para iniciar as obras de transposição.
N
A AUDIÊNCIA Frei Luiz foi para a reunião com Lula, dia 15, acompanhado de Ruben Siqueira e dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do sociólogo Adriano Martins, de Luciana Khoury, promotora de Justiça da Bahia, e do jornalista Henrique Cortez, coordenador do Portal
PRESSA
Seminário produziu documentos contra a transposição, e com propostas alternativas de convivência com o Semi-Árido
EcoDebate. A audiência durou duas horas, o dobro do programado, e começou com a exposição de argumentos de frei Luiz contra a transposição. “Não é verdade que essa obra levará água para quem tem sede. Isso, por si só, já é um impedimento ético para justificar a
transposição não é mais um passeio no parque. Ciro tentou fazer sua palestra, seu discurso, mas não tinha platéia. Todos lá conheciam muito bem o projeto”, analisou Martins. “A proposta do presidente era tudo o que desejávamos. Ele se
A imprensa pode ajudar, mas... Os participantes do seminário contam com a contribuição da mídia para que o debate em torno da transposição do Rio São Francisco dê frutos. Para João Abner, hidrólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a única saída para conter o “rolo compressor” do governo é informar a
Seca é invenção da elite Uma análise do documento com argumentos contrários à transposição, formulado no seminário convocado por frei Luiz Cappio, em Brasília (veja o texto nesta página), permite uma constatação: o governo mente, e mente muito. Toda a propaganda oficial gira em torno da redenção do povo sertanejo. Os 12 milhões de pessoas espalhadas pelo Semi-Árido, que sofrem os efeitos da seca, seriam beneficiadas pela água do Rio São Francisco. No entanto, o documento denuncia que o próprio relatório de impacto ambiental (Rima) da obra informa que a abrangência do projeto é de uma área de, no máximo, 7% do Semi-Árido. “90% do território continuara na mesma situação”, prevê o texto. Além disso, as regiões supostamente beneficiadas pela transposição têm água suficiente para atender com segurança às demandas urbanas e agrícolas atuais. “O Ceará tem potencial para atender em até quatro vezes às demandas atuais por água para todos os seus usos; o Rio Grande do Norte, mais de duas vezes; e a Paraíba, uma vez e meia. Portanto, não existe déficit hídrico nos Estados beneficiados”, decreta o documento. Sendo assim, para que serve a transposição? Se a água não é para abastecimento humano e animal, ela só pode destinar-se a atividades econômicas, tais como irrigação, criação de camarão e usos industriais. O governo reconhece isso.
oposição ao projeto”, foi o destaque inicial de Cappio. Segundo Adriano Martins, assessor do bispo, durante a reunião o ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional e principal interessado na obra, entendeu que está numa situação desconfortável. “A
Ciro Gomes também parece não levar muito a sério a promessa de Lula. “Nós temos pressa e eu acho que chegou a hora de encerrarmos a discussão e passarmos à execução”, afirmou para reportagem da Agência Brasil, dia 9, durante seminário que discutiu a obra. João Abner, hidrólogo e professor da Universidade Federal do Rio Grande Norte, se cansou de tentar debater o projeto com o governo nos últimos três anos e está cético com relação à promessa de Lula. “O governo não tem condições de sustentar um debate porque toda a sua argumentação está baseada em mentiras”, desabafou ainda no Palácio do Planalto. O temor do movimento contra a transposição é de que o governo aproveite a desmobilização social, comum durante as festas de fim de ano, para cassar no Superior Tribunal Federal as duas liminares que impedem o prosseguimento das obras.
Na página de internet do Ministério da Integração Nacional, principal empreendedor do projeto, lê-se o seguinte texto: “Embora o abastecimento doméstico possa ser, em princípio, suprido com os açudes existentes, o fato é que, em algumas bacias, o nível de comprometimento com os usos múltiplos da água vão se tornando críticos, com a prioridade dada aos usos urbanos interferindo com as atividades produtivas da população rural e até do consumo industrial. A inibição de atividades produtivas já aparece clara, por falta de planejamento de médio prazo ou por inviabilidade de novas outorgas d´água, na medida em que usuários já estabelecidos pressionam por manter seus direitos de uso, mesmo quando não prioritários para consumo humano. Os conflitos tendem a se agravar, tornando a gestão da água complexa e afastando o investimento privado, em face dos riscos envolvidos”. Segundo a interpretação feita pelos signatários do documento, o texto do ministério admite “que há água para o abastecimento doméstico na região”. Ou seja, o problema é a “inibição de atividades produtivas”, pois os “usuários já estabelecidos pressionam por manter seus direitos de uso, mesmo quando não prioritários para consumo humano”. Além disso, a obra está orçada em R$ 4,5 bilhões. As empreiteiras da região, acostumadas às regalias da indústria da seca, esperam, ansiosas. (LB)
população. “Só assim os brasileiros descobrirão que esse projeto consumirá, por muitos anos, grande parte dos recursos que irão para a Região Nordeste e que esse investimento não vai alterar o quadro atual de pobreza e miséria”, avalia Abner. Mas, a menos que haja uma reviravolta no trabalho da grande imprensa, dificilmente a população
ficará bem informada. O engenheiro agrônomo João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco de Pernambuco, conta que foi procurado pela revista Veja durante a greve de fome de frei Luiz Cappio. “Conversamos por três dias consecutivos para uma grande reportagem sobre a transposição. Só que a matéria não saiu. O mes-
mo aconteceu com a revista Isto é. Dei entrevista por escrito, cinco perguntas sobre as quais me debrucei todo um fim de semana. Também não publicaram nada. Infelizmente, existe uma pressão do governo federal que faz com que esses órgãos da imprensa não publiquem suas matérias”, denuncia Suassuna. (LB)
Alternativas não faltam Na audiência que teve com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dia 15, frei Luiz Cappio não se limitou a criticar a transposição do Rio São Francisco. Ele levou consigo um documento elaborado por cerca de 50 militantes, opositores do projeto, contendo propostas alternativas de desenvolvimento e convivência com o Semi-Árido. De acordo com os especialistas, os problemas da região têm origem na grande concentração de terras, na exploração do trabalhador rural e no uso predatório dos recursos naturais. Elementos essenciais da indústria da seca. Para eles, a superação desses pontos por meio de uma cultura de convivência com o Semi-Árido é a resposta para os problemas da população sertaneja. A primeira proposta nesse sentido é a realização de uma reforma hídrica que democratize as águas estocadas nos 70 mil açudes da região, o abastecimento da população que habita a Bacia do São Francisco, o aproveitamento das águas superficiais e subterrâneas, uma redução nas perdas com distribuição e uso, o reuso da água e uma minuciosa captação da água da chuva.
INDÚSTRIA DA SECA Dada a alta concentração fundiária da região, o segundo ponto para enfrentar a indústria da seca passa a ser a reforma agrária. Também é necessário demarcar e titular territórios indígenas, quilombolas
João Zinclar
os dias 14 e 15, os mais engajados críticos da transposição do Rio São Francisco reuniram-se em um seminário, em Brasília (DF). Eram cerca de 50 representantes de movimentos sociais, organizações não-governamentais (ONGs), intelectuais, indígenas, religiosos e juristas fazendo um esforço coletivo para subsidiar com argumentos frei Luiz Flávio Cappio, bispo da diocese de Barra (BA), que, ao final do seminário, se encontraria com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No início de outubro, frei Luiz ganhou a atenção internacional após 11 dias de greve de fome contra a transposição. O protesto entrou no centro do noticiário e só se encerrou com a promessa do governo de iniciar uma discussão em torno da megaobra. Para isso, no início dessa etapa de debates, frei Luiz queria dar visibilidade a sua causa, não mais à sua pessoa. “Mais importante que a audiência com o presidente é informar a população sobre o que está se passando”, destacou o religioso, no seminário. Sendo assim, os participantes dedicaram-se por cerca de 40 horas praticamente ininterruptas a uma oficina de trabalho de onde saíram dois documentos. Um explicando detalhadamente por que são contra a transposição. E outro com propostas para abastecer uma agenda positiva de desenvolvimento do Semi-Árido brasileiro. Ao final dos trabalhos, os militantes se abraçaram e rezaram. Saíram juntos em direção ao Palácio do Planalto, convictos de terem feito tudo o que podiam em benefício do povo sertanejo.
Ciro Gomes e João Abner debatem depois da audiência
e de comunidades tradicionais ribeirinhas e regularizar as terras da União e devolutas, aumentando a oferta territorial. O documento apresenta propostas socioculturais, para valorizar a identidade da população e facilitar o entendimento da concepção de convivência com o clima: fortalecimento das identidades culturais da população local por meio da sua inclusão na formulação de políticas públicas, divulgação de técnicas de convivência com o Semi-Árido (cisternas, barragens subterrâneas,
cacimbões, entre outras), fomento a projetos de educação ambiental e valorização da expressão artística regional. O texto enfatiza ainda a importância do controle social sobre o Estado. Por fim, frei Luiz sugeriu a Lula políticas de conservação e utilização sustentável da biodiversidade e da agrobiodiversidade, fontes mais limpas e renováveis para oferecer segurança energética à região, e reivindicou a recuperação de áreas degradadas e desertificadas. (LB)
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DEBATE NOBEL DE LITERATURA
Arte, Verdade e Política posava o tempo todo como força que deseja o bem universal. Foi um ato brilhante, e até mesmo sutil, de hipnotismo, que obteve imenso sucesso.
Harold Pinter
E
IRAQUE
A justificativa para a invasão do Iraque era o fato de que Sadam Hussein possuía um perigoso arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais podiam ser disparadas em prazo de apenas 45 minutos, e seriam capazes de causar chocante devastação. Garantiramnos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque tinha um relacionamento com a rede Al Qaeda e era co-responsável pela atrocidade de 11 de setembro de 2001 em Nova York. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. A verdade é algo inteiramente diferente. A verdade se relaciona à maneira pela qual os Estados Unidos compreendem seu papel no mundo, e escolhem personificá-lo. (...) A invasão do Iraque foi um ato de banditismo, um ato de gritante terrorismo de Estado, e demonstrou completo desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma ação militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras e mais mentiras, por absurda manipulação da mídia, e portanto do público; um ato cujo objetivo é consolidar o controle econômico e militar norte-americano sobre o Oriente Médio, disfarçado de ação de último recurso, já que todas as demais justificativas não conseguiram defender a idéia de que se trataria de um ato de libertação. Uma formidável afirmação de poderio militar, responsável pela morte e mutilação de milhares e mais milhares de pessoas inocentes. INDICIAMENTO
Nós levamos tortura, projéteis de urânio, inumeráveis atos de homicídio aleatório, miséria, degradação e morte ao povo iraquiano, e a isso chamamos “levar liberdade e democracia ao Oriente Médio”. Quantas pessoas será preciso matar antes que o líder possa ser qualificado como assassino em massa ou criminoso de guerra? Cem mil? Mais que o suficiente, é o que eu imaginaria. Portanto, é justo que Bush e Blair sejam indiciados diante do Tribunal Internacional de Justiça. MORTE
A morte nesse contexto é irrelevante. Tanto Bush quanto Blair dão importância muito pequena à morte. Pelo menos cem mil iraquianos foram mortos por bombas e mísseis estadunidenses antes que a insurgência do Iraque começasse. Essas pessoas
No dia 7 de dezembro, o dramaturgo e poeta inglês Harold Pinter não pôde comparecer à Academia Sueca para receber o Prêmio Nobel de Literatura de 2005. Nem por isso as suas palavras deixaram de ser uma das marcas da cerimônia. Aos 79 anos, Pinter se recupera de um câncer no esôfago e, ainda convalescente, gravou um contundente depoimento para ser divulgado no anúncio do prêmio. Trata-se de uma reflexão sobre o imperialismo em que o literato britânico pede o indiciamento do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e do premiê britânico, Tony Blair, ao Tribunal Internacional de Justiça. Pinter é um crítico feroz da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos e mostra nessa luta o mesmo vigor com que militou contra a primeiraministra britânica e Margaret Thatcher (1979-1990) e o presidente estadunidense Ronald Reagan (1981-1989). Em 2003, o dramartugo publicou um livro de poemas contra a ação militar no Iraque intitulado War (guerra) e, recentemente, revelou que estava abandonando o teatro para se concentrar na política e na poesia. O Brasil de Fato publica, abaixo, trechos da reflexão feita pelo literato britânico que pode ser lida na íntegra, em inglês, em sua página na internet: http://www.haroldpinter.org
não importam. As mortes delas não existem. São um vazio. Não estão sequer sendo registradas como vítimas fatais. “Não contamos cadáveres”, disse o general estadunidense Tommy Franks. PÓS-GUERRA
Todos sabem o que aconteceu na União Soviética em toda a Europa Oriental no período do pós-guerra: a brutalidade sistemática, as atrocidades generalizadas, a supressão impiedosa do pensamento independente. Tudo isso foi amplamente documentado e comprovado. Mas o que se pretende defender aqui é que os crimes dos Estados Unidos no mesmo período só foram registrados de maneira superficial, quanto menos documentados, e ainda menos reconhecidos como crimes de qualquer ordem. Acredito que isso precise ser encarado, e que a verdade a esse respeito tenha considerável importância para a situação em que o mundo agora se encontra. Ainda que restringidas, em certa medida, pela existência da União Soviética, as ações dos Estados Unidos em todo o mundo deixavam claro que o país concluíra dispor de carta branca para fazer o que desejasse. CONFLITOS DE BAIXA INTENSIDADE
A invasão direta de um Estado soberano jamais foi o método predileto dos Estados Unidos, na realidade. No geral, os estadunidenses preferem o que costuma ser descrito como “conflitos de baixa intensidade”. Um conflito de baixa intensidade significa que milhares de pessoas morrem, mas de maneira mais lenta do que se você lançasse uma bomba contra elas em uma ação rápida. Significa que você infecta o coração do país, estabelece um tumor maligno e assiste enquanto a gangrena se espalha. Quando a população foi subjugada ou espancada até a morte, e seus amigos – os militares e
SENSIBILIDADE MORAL
Kipper
m 1958, escrevi isso: “Não há diferenças entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não tem por que ser necessariamente verdade ou mentira: pode ser verdade e mentira”. Creio que essas proposições têm sentido e ainda podem se aplicar à exploração da realidade com a arte. Como escritor estou de acordo com essa proposição, mas como cidadão devo me perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?(...) A maioria dos políticos, se acreditamos nas provas que dispomos, não está interessada na verdade, e sim no poder e na manutenção desse poder. Para reter esse poder, é essencial que as pessoas permaneçam na ignorância da verdade, mesmo da verdade das suas próprias vidas. O que nos envolve é um amplo tecido de mentiras, do que nos alimentamos.(...)
O que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Será que um dia ela existiu? O que quer dizer essa expressão? Refere-se a um termo raramente empregado nos nossos dias, a consciência? Uma consciência que se relaciona não apenas aos nosso atos mas à responsabilidade de que compartilhamos pelos atos alheios? Será que isso tudo morreu? Pensem na baía de Guantánamo. Centenas de pessoas detidas sem acusação por mais de três anos, sem direito a representação legal, sem direito a processos justos, tecnicamente detidas para sempre. Essa estrutura totalmente ilegítima é mantida em flagrante desafio à Convenção de Genebra. Não somente tolerada, mas raramente comentada pelo que costumamos designar como “comunidade internacional”. Será que nós pensamos sobre os habitantes da baía de Guantánamo? O que a imprensa tem a dizer sobre eles? (...) MILITARIZAÇÃO
as grandes empresas – ocupam o poder confortavelmente, você convoca as câmeras e anuncia que a democracia prevaleceu. NICARÁGUA
A tragédia da Nicarágua é um caso altamente significativo. (...) Os Estados Unidos apoiaram a brutal ditadura de Somoza na Nicarágua por mais de 40 anos. O povo nicaragüense, liderado pelos sandinistas, derrubou esse regime em 1979, em uma inspiradora revolução popular. Os sandinistas não eram perfeitos. Eram dotados de dose considerável de arrogância, e sua filosofia política continha dose considerável de elementos contraditórios. Mas eram pessoas inteligentes, racionais e civilizadas. Decidiram estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses vítimas da pobreza foram resgatados, à beira da morte. Mais de cem mil famílias receberam terras. Duas mil escolas foram construídas. Uma notável campanha de alfabetização reduziu o analfabetismo no país a menos de 15%. A educação gratuita foi estabelecida, bem como um serviço gratuito de saúde. A mortalidade infantil foi reduzida em um terço. Os Estados Unidos denunciaram essas realizações como subversão marxista/leninista. Na opinião do governo estadunidense, um exemplo perigoso estava sendo estabelecido. Se fosse permitido que a Nicarágua estabelecesse normas básicas de justiça social e econômica, os países vizinhos talvez começassem a fazer as mesmas perguntas e a agir da mesma maneira. (...) Os Estados Unidos por fim conseguiram derrubar o governo sandinista. Demoraram alguns anos, mas a perseguição econômica incansável e as 30 mil mortes acabaram por solapar o espírito do povo nicaragüense.
Eles estavam exaustos, e a pobreza voltou a atacar. Os cassinos se reinstalaram no país. A saúde e a educação gratuitas não mais existiam. As grandes empresas voltaram a todo vapor. A “democracia” havia triunfado. Mas essa “política” de forma alguma estava restrita à América Central. Foi aplicada em todo o mundo. (...) Por que foram mortos? Foram mortos porque acreditavam que uma vida melhor era possível e devia ser conquistada. Essa crença as qualificava imediatamente como comunistas. Morreram porque ousaram se opor ao status quo, ao infinito platô de pobreza, doença, degradação e opressão que lhes cabia desde o nascimento. (...) DITADURAS
Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras de direita surgidas no mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Basta citar Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, evidentemente, o Chile. Os horrores infligidos pelos Estados Unidos ao Chile em 1973 jamais poderão ser purgados, e não serão perdoados nunca. Centenas de milhares de mortes aconteceram nesses países. Elas realmente aconteceram? E podem ser atribuídas, em todos os casos, à política externa estadunidense? A resposta é que sim, aconteceram, e podem ser atribuídas à política externa estadunidense. Mas é como se não tivessem ocorrido. Jamais aconteceram. Nada aconteceu, em tempo algum. Mesmo quando estavam acontecendo, essas coisas não estavam acontecendo. Os crimes dos Estados Unidos foram sistemáticos, constantes, cruéis, impiedosos, mas pouca gente fala sobre eles. Temos de reconhecer o talento estadunidense. O país exerceu uma manipulação clínica do poder em todo o mundo, enquanto
Os Estados Unidos mantêm hoje 702 operações militares em todo o mundo, em 132 países, com a honrosa exceção da Suécia, evidentemente. Não sabemos exatamente como eles chegaram lá, mas lá estão, sem dúvida. Os Estados Unidos possuem oito mil ogivas nucleares ativas e operacionais. Duas mil delas estão em alerta imediato, prontas para lançamento em 15 minutos. O país está desenvolvendo novos sistemas de força nuclear, conhecidos como “arrasa-bunkers”. Os britânicos, sempre cooperativos, planejam substituir o míssil nuclear que empregam, o Trident. Contra quem, imagino, eles estão apontados? Osama bin Laden? Você? Eu? China? Paris? Quem sabe? O que sabemos é que essa infantil insanidade, a posse e ameaça do uso de armas nucleares, é o cerne da filosofia política atual dos Estados Unidos. DISCURSO
Sei que o presidente Bush dispõe de muitos redatores de discursos extremamente competentes, mas eu gostaria de me oferecer como voluntário para o posto. Proponho o seguinte discurso, curto, a ser feito ao país em rede de televisão. Eu o vejo sério, com o cabelo cuidadosamente penteado, convincente, sincero, quase sedutor, ocasionalmente empregando um sorriso sardônico, estranhamente atraente, um homem másculo. “Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. Meu Deus é bom. O Deus de Bin Laden é ruim. O Deus dele é ruim. O Deus de Saddam era ruim, mas ele não tinha Deus. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Não arrancamos a cabeça das pessoas. Acreditamos na liberdade. Deus também. Não sou um bárbaro. Sou o líder democraticamente eleito de uma democracia que ama a liberdade. Somos uma sociedade compassiva. Nós usamos eletrocuções compassivas e injeções letais compassivas. Somos uma grande nação. Não sou um ditador. Ele é. Não sou bárbaro. Ele é. E ele é. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Está vendo esse punho? Ele é minha autoridade moral. E não se esqueça disso”. Porque, onde estiver o teu tesouro, ali estará também o teu coração. Harold Pinter é dramaturgo inglês e ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2005
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA NACIONAL
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CURSINHO PRÉ-VESTIBULAR A Eschola.com é a primeira instituição a oferecer cursinho prévestibular a distância no país para alunos da 1ª, 2ª e 3ª série do ensino médio, de colégios das redes pública e privada. Os estudantes das instituições inscritas no programa terão acesso gratuito a todo o conteúdo do cursinho por dez dias. Depois, vão participar de um simulado que irá contemplar os cinco melhores colocados de cada série com uma bolsa de estudo integral para o pré-vestibular pela internet da Eschola.com. O Instituto Galois de Brasília será a primeira instituição a participar do programa. Colégios e cursos pré-vestibulares interessados em se inscrever devem entrar em contato com a Eschola.com pelo correio eletrônico: promocoes@eschola.com Mais informações: www.eschola.com
PUBLICAÇÕES FEMINISTAS A organização não-governamental Sempreviva Organização Feminista lança duas novas publicações com o objetivo de formar e mobilizar mulheres. Feminismo e a luta das mulheres – análises e debates reúne artigos de Nalu Faria, Miriam Nobre e Maria Lúcia Silveira, com textos que abordam a questão do corpo, a violência sexista, as políticas públicas, a agricultura familiar, os transgênicos e a história do 8 de março. Mulheres em luta por uma vida sem violência tem como proposta apoiar as discussões em grupos, potencializandoos para que se multipliquem e que cada vez mais mulheres participem, discutam e estejam preparadas para combater o machismo e a violência no cotidiano. Mais informações: www.sof.org.br SITUAÇÃO DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES Com o objetivo de chamar a atenção de governos e sociedade civil para a situação de crianças e adolescentes que vivem na região da Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) lançou, dia 12, o relatório “Situação das crianças e dos adolescentes”. O estudo, que aborda questões como saúde, educação, proteção e HIV/Aids, analisou 62 municípios da região, onde vivem cerca de 880 mil meninos e meni-
Arquivo Brasil de Fato
LIVRO
MANUAL DA MÍDIA LEGAL 4 A organização não-governamental Escola de Gente lançou, dia 12, a quarta edição do seu Manual da Mídia Legal. A publicação é parte de uma série iniciada em 2002, que é utilizada como fonte de pesquisa e consulta por estudantes, comunicadores e formadores de opinião. Esta quarta edição, patrocinada pela Petrobras, sai com cinco mil exemplares em tinta, braile e meio digital, contendo análise de mídia, terminologia, comentários da Escola de Gente e do Ministério Público sobre a violação de direitos e processos de comunicação. A obra, tal como nas edições anteriores, é resultado de estudos e análises de universitários, representantes do Ministério Público, especialistas e jornalistas reunidos nos vários Encontros da Mídia Legal realizados pela entidade. Mais informações: www.escoladegente.org.br
FLORESTAN: A INTELIGÊNCIA MILITANTE Com esse livro, da série Perfis, a coleção Paulicéia presta uma homenagem a um dos mais importantes intelectuais brasileiros: Florestan Fernandes, que talvez seja quem mais teve sua história pessoal entrelaçada ao desenvolvimento da reflexão crítica paulistana. O autor, jornalista Haroldo Ceravolo Sereza, percorre os principais pontos da vida intelectual e política de Florestan, da vida pessoal, da evolução da sua obra acadêmica e da militância do fundador da Escola Paulista de Sociologia. Ao longo dessa trajetória, o autor trata das relações de Florestan com Oswald de Andrade, Roger Bastide, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Lula, o PT, de seu exílio no Canadá, e da amizade com Antônio Candido. O livro, editado pela Boitempo Editorial, tem 240 páginas e custa R$ 35. Mais informações: www.boitempoeditorial.com.br
nas que representam, em média, 45% da população na região de fronteira entre os três países. Mais informações: (61) 3035-1900, rmello@unicef.org FAVELA, ALEGRIA E DOR NA CIDADE Livro escrito por Jailson Souza e Silva, ex-morador da Maré e doutor em Sociologia da Educação pela PUC-Rio, e por Jorge Luiz Barbosa, doutor em Geografia pela USP, coordenadores do Observatório de Favelas. A obra mostra, por dados e fatos históricos, que as favelas são elementos constituintes
da sociedade e dessa maneira devem ser encaradas pelos moradores e pelo poder público. A publicação traça um histórico das favelas do Rio de Janeiro, apontando as representações que essas comunidades sempre tiveram na sociedade, como locais de “ausência” – de condições de moradia, de infra-estrutura, de sentidos humanos, por exemplo. A obra ainda faz críticas à mídia, dá estatísticas e se apóia em fatos históricos para mostrar que a “moradia nos morros” sempre fez parte da constituição da cidade. O livro, editado pela parceria entre as Editoras X Brasil e Senac,
DIVERSIDADE ÉTNICA
Ativistas discutem em seminário a prática de racismo ambiental Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ) Racismo Ambiental foi tema de um seminário. O 1º Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, ocorrido recentemente em Niterói, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro. Mas, o que é racismo ambiental? Tânia Pacheco, consultora do Projeto Brasil Sustentável e Democrático, que participou da promoção do evento, explica que os casos de racismo ambiental são aqueles que se encontram entre os de injustiça ambiental, com fortes traços étnicos. “Muitas vezes não existe a intenção de preconceito, mas se o efeito da ação prejudica um grupo etnicamente definido, e que seja frágil do ponto de vista socioeconômico, já é racismo ambiental”, diz Tânia. Os furacões ocorridos no sul dos Estados Unidos são lembrados pela consultora: “Não foi nenhum jornal de esquerda, mas o The New York Times que publicou, em reportagem sobre o Katrina, a afirmação de que “raça e classe social foram os fatores não verbalizados que definiram quem conseguiu escapar e quem fi-
cou preso no caos”. E acrescentou: “O impacto do desastre ressalta a conjunção de raça e classe social numa cidade onde dois terços dos moradores são negros e mais de um quarto da população vive na pobreza. No bairro de Lower Ninth Ward, que foi inundado, mais de 98% dos moradores são negros, e mais de um terço é pobre”. E provêm dos próprios negros estadunidenses as primeiras denúncias de racismo ambiental.
HISTÓRIA Na década de 1970, os negros dos Estados Unidos criaram o movimento pela Justiça Ambiental “em resposta às iniqüidades ambientais, ameaças à saúde pública, proteção desigual, constrangimentos diferenciados e mau tratamento recebido pelos pobres e pessoas de cor”, segundo o livro Justiça Ambiental e Cidadania, de Henri Acserad. Tudo começou em Warren County, Carolina do Norte, onde um aterro de resíduos tóxicos levou a população negra local a mobilizarse. Devido à maior parte dos aterros de resíduos tóxicos registrarem uma coincidência, na medida em que es-
tavam todos localizados em bairros habitados por negros, nasceu lá, em 1978, o termo “racismo ambiental”, cunhado por Benjamim Chavez. A raça dos moradores era a grande determinante de onde se depositava o lixo tóxico no país. Em 2001, o professor estadunidense Roberto Bullard, ao afirmar que as indústrias poluidoras se mostram cada vez mais ansiosas para explorar quaisquer vulnerabilidades envolvendo os trabalhadores latinos, afro-americanos, afrocaribenhos e asiáticos, acrescentou: “O racismo é um potente fator de distribuição seletiva das pessoas no seu ambiente físico; influencia o uso do solo, os padrões de habitação e o desenvolvimento de infra-estrutura”, citando as favelas brasileiras, com suas casas frágeis e sujeitas a deslizamentos, como um exemplo visível. “Por que algumas comunidades são transformadas em depósitos de lixo enquanto outras escapam?”, pergunta o professor. Já está em preparação um mapa do racismo ambiental no Brasil, que deverá ser utilizado pelos participantes do 2º Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental, a ser realizado em 2006.
BOM COMBATE Na publicação da Editora Contraponto estão reunidos 35 artigos e cinco intervenções em seminários do sociólogo César Benjamin. O autor percorre grande parte da agenda contemporânea do Brasil e do mundo: política macroeconômica, cotas raciais, agricultura e alimentos transgênicos, política externa do governo George W. Bush, economia e sociedade brasileiras, meios de comunicação de massa, educação e desenvolvimento, crise do socialismo e situação da América Latina. Por trás da variedade de assuntos, um fio condutor: a crítica ao modelo de economia política a que estamos submetidos. O livro tem 224 páginas e custa R$ 30. Mais informações: www.contrapontoeditora.com.br
CEARÁ BANDA DE LATA DE TODAS AS CORES 30 Lançamento do CD resultante de cinco anos de uma oficina educativa que, por meio da música, desenvolve as potencialidades e as competências de crianças e adolescentes dos bairros do Grande Mucuripe – que perderam parte da infância no trabalho precoce. Os instrumentos da banda são construídos de sucatas como: garrafas de vidro, garrafinhas de iogurte e latas de alumínio. O CD traz alguns ritmos populares como: boi, maracatu, xote e baião. Local: Teatro do Centro Cultural Dragão do Mar, R. Dragão do Mar, 81, Fortaleza Mais informações: (85) 3263-2172
PARANÁ SEMINÁRIO NACIONAL DE EXPERIÊNCIAS NA ATENÇÃO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEXUAL 24 a 26 de maio de 2006 Promovido pela Prefeitura Municipal de Curitiba, com apoio do Ministério da Saúde, o seminário tem como objetivo reunir representantes das diversas experiências na atenção e prevenção à violência doméstica e sexual, assim como os diversos setores envolvidos nessa atenção; criar espaço para a troca das experiên-
cias acumuladas; dimensionar as conquistas alcançadas e os desafios existentes; propor encaminhamentos para o fortalecimento e multiplicação dessas iniciativas e discutir tecnologia e metodologia de governança pública em rede. Local: Av. João Gualberto, 623, 2º andar, Curitiba Mais informações: www.curitiba.pr.gov.br/saude/sms/ seminario/seminario_violencia.htm
SÃO PAULO EXPOSIÇÃO - NÓS Até 15 de janeiro de 2006 O corpo e suas nuances é o tema de “Nós”, exposição de Vincenzo Scarpellini que apresenta 56 obras do artista plástico: 42 desenhos em carvão, nove pratos de cerâmica e cinco óleos sobre tela. Italiano radicado no Brasil, Scarpellini vem se dedicando sistematicamente à produção de desenhos, óleos sobre telas e cerâmicas com o tema do nu. Se os meios são tradicionais, o tema é ainda mais tradicional, embora permaneça atualíssimo: o corpo. Local: Edifício Sé, Pça. da Sé, 111, Espaço octogonal, 1º andar Mais informações: www.visc.com.br EXPOSIÇÃO - HENFIL DO BRASIL Até 15 de janeiro A mostra reúne mais de 400 desenhos, livros, revistas e impressos do desenhista, jornalista e escritor Henrique de Souza Filho, o Henfil, símbolo da resistência inteligente e bem-humorada à ditadura militar. A exposição promove uma viagem pela cultura brasileira por meio do perfil de cada um dos 27 personagens criados pelo cartunista. Entre eles estão a Turma da Caatinga, o Fradinho, o Cumprido e o Baixim, os desenhos de Ubaldo e o Paranóico. Depois de observar e discutir os trabalhos de Henfil, os participantes são convidados para uma atividade prática na oficina Rabisco Falante. Além de ensinar como fazer um cartum, os arte-educadores analisam trabalhos de artistas como Ziraldo, Fernando Gonzáles, Mauricio de Souza e seus personagens mais significativos. Local: Centro Cultural Banco do Brasil, R. Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3113-3651, www.bb.com.br/cultura 1º CONGRESSO INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA SOCIAL 8 a 11 de março de 2006 O objetivo do congresso é realizar um amplo balanço sobre o desenvolvimento da pedagogia social no Brasil e na Europa, analisar os recursos disponíveis para a formação de técnicos e profissionais que atuam nas áreas sociais no país, bem como identificar pesquisas de ponta, centros de formação e experiências em andamento. A iniciativa é da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, do Centro de Cultura e Extensão da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade de Serviço Social do Centro Universitário. Local: Auditório da Faculdade de Educação Universidade de São Paulo, Bloco B, Av. da Universidade, 308, Cidade Universitária, São Paulo Mais informações: www.usp.br/pedagogiasocial
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO TEORIA E PRÁTICA DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA Inscrições abertas Início do curso em fevereiro de 2006 Organização: Núcleo José Reis de Divulgação Científica da ECA/USP www.eca.usp.br/nucleos/njr/curso Tel.: (11) 3091-4021/4270
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CULTURA
De 22 a 28 de dezembro de 2005
POLÍTICAS PÚBLICAS
Sociedade quer cultura como prioridade Bel Mercês enviada a Brasília (DF)
Bel Mercês
Reunidos em Brasília, cerca de 1300 militantes apresentam suas demandas na 1ª Conferência Nacional de Cultura
O
ônibus saiu do aeroporto a caminho da Academia de Tênis de Brasília (DF). Nele, um homem com traços de índio mestiço declama sorrindo uma poesia do maranhense Ferreira Gullar, Homem Comum, escrita em 1963. O último verso citado pelo professor amazonense Alfredo Rocha diz “... somos muitos milhões de homens comuns e podemos formar uma muralha com nossos corpos de sonho e margaridas”. Todos aplaudem, as pessoas se apresentam umas para as outras. Um cantor de Tocantins, um circense de São Paulo, uma poetisa do Amazonas, um mestre-popular do Piauí. Como eles, tantos outros, homens e mulheres comuns, de quase todos os Estados e regiões do país, reuniram-se entre os dias 13 e 16 no planalto central para a 1ª Conferência Nacional de Cultura. O evento foi organizado pelo Ministério da Cultura (Minc) com o propósito de, junto à sociedade civil, traçar as diretrizes do Plano Nacional de Cultura (PNC). O plano, já previsto na Constituição Federal por uma emenda aprovada este ano – de autoria do deputado Gilmar Machado – vai sustentar a operação de um Sistema Nacional de Cultura.
Participantes da Conferência reivindicam aumento do orçamento do Ministério da Cultura, um dos menores do governo
processo de consulta popular que começou em julho, organizado primeiramente em 700 municípios e 23 Estados, com a participação de cerca de trinta mil militantes de todo o país. A cerimônia de abertura do evento foi também o momento de encerramento da 2ª Conferência Nacional do Meio Ambiente. Juntos, os ministros Gilberto Gil (Minc) e Marina Silva (Ministério do Meio Ambiente – MMA) assinaram acordos de integração e cooperação entre suas pastas, pelos programas Sala Verde e Pontos de Cultura. Marina declarou que um povo, para crescer, precisa “entender o seu mandato cultural”. “Fazemos uma aliança de princípios e propósitos”, acrescentou a ministra.
PRIORIDADE As 63 diretrizes para políticas públicas de cultura, elaboradas e validadas por delegados durante a Conferência, serão cumpridas pelo Conselho Nacional de Políticas Culturais, órgão recém-criado e responsável por compor a proposta do PNC, que deve ser enviado para aprovação do Congresso Nacional em meados de 2006. Com caráter consultivo, a Conferência foi o resultado de um
Gil afirmou que a cultura ainda não é uma área de prioridade para o Estado brasileiro, apesar de impactar o crescimento econômico, criar cerca de 5% dos empregos formais e contribuir com 5% do Produto Interno Bruto (PIB) anualmente. “Quando teremos ao menos 1% de verba do governo?”, perguntou Gil, fazendo referência ao orçamento de seu ministério, um dos menores da União, contingenciado esse ano em mais de 40%. Imediatamente a platéia respondeu, levantando os braços e mostrando dois dedos, para exigir um mínimo de 2%. “É necessário que essa questão entre na agenda da sociedade brasileira. O desejo de tornar cultura prioridade vem se realizando pouco a pouco. Vamos elaborar de modo
participativo o Plano Nacional de Cultura. Temos muito a celebrar, mas ainda temos muito o que fazer”, argumentou o ministro, antes de encerrar a cerimônia e convidar o músico Hermeto Pascoal e sua banda para o show em homenagem a Luiz Gonzaga, uma comemoração do Dia Nacional do Forró.
DEMANDAS Durante os quatro dias de Conferência, os cerca de 1.300 participantes (delegados, convidados e observadores) assistiram palestras sobre políticas públicas no Brasil e na América Latina e oficinas, distribuídas em cinco eixos temáticos: Gestão Pública e Cultura, Cultura é Direito e Cidadania, Economia da Cultura, Patri-
mônio Cultural e Comunicação é Cultura. Depois, dividiram-se em grupos de discussão e, baseados nos documentos das conferências municipais e estaduais, definiram as demandas do PNC conforme os temas dos cinco eixos. Sérgio Sá Leitão, secretário de políticas culturais do Minc , explicou que o Plano Nacional será montado a partir das diretrizes traçadas pela sociedade, que serão colocadas à disposição para consulta pública junto com outros materiais, como estudos e textos de especialistas da área. “Vamos ampliar o processo para movimentos sociais, sindicatos e fóruns. A discussão deve se multiplicar”, previu. Quanto ao Sistema Nacional de Cultura, Márcio Meira, secretário de articulação institucional do Minc, afirmou: “Deve ser um sistema de políticas públicas transparente e democrático, construído por todos e para todos, e que trate a cultura como um direito. O Plano Nacional será fundamental para a sua implementação, onde estarão estabelecidos os seus mecanismos e metas”. No documento final do evento, a Carta de Brasília, os participantes da Conferência reivindicaram a adoção de quatro medidas fundamentais: a aprovação pelo Congresso Nacional da PEC 150/ 2003, que inscreve na Constituição Federal brasileira mecanismos de financiamento à cultura; a efetiva implementação do Sistema Nacional de Cultura; a elaboração coletiva e ampla do Plano Nacional de Cultura e a articulação e o fortalecimento de um sistema público de comunicação democrático e com participação social. “Seguiremos atuando e aglutinando a sociedade brasileira para que as questões aqui expressas, do interesse de todo o país e do seu futuro, tenham lugar”, diz o texto.
Durante a 1ª Conferência Nacional de Cultura, realizada entre os dias 13 e 16 de dezembro em Brasília (DF), a Academia de Tênis foi ocupada por artistas, produtores culturais, comunicadores e militantes da área. Não era difícil encontrar grupos declamando poesias, músicos em rodinhas cantando e tocando, pessoas vestidas com trajes típicos ou fantasiadas. Pelos rostos, era possível reconhecer homens e mulheres de diversas etnias: negros, brancos, índios, mestiços. Os coletivos regionais ou de partidos políticos reuniam-se para discutir posicionamentos. Durante a noite, quase todos lotavam um pequeno salão reservado para o sarau, onde, em meio a mais arte e debate, descobriam-se pessoas diferentes com um desejo em comum: modificar para melhor – as políticas públicas de cultura do país. Essas mulheres e esses homens, que deslocaram-se de todos os cantos do país até Brasília, foram os verdadeiros protagonistas da Conferência. Vindo do Acre, o índio Bane Kaxinawa estava no evento representando sua tribo, os Kaxinawa. “A gente tem que resgatar a cultura dos índios, discutir isso com toda a nação. Vim negociar políticas para o meu povo”, disse, em um português carregado com o sotaque de sua língua nativa, a pano.
CONTINUIDADE E PROTESTOS De outro lado do Brasil, Camaçari, cidade na região metropolitana de Salvador (BA), o músico e ator Marcelo Ricardo procurava na Conferência uma contrapartida social para a arte: “Queremos ser vistos como trabalhadores, com mais respeito e valorização da cultura” afirmou reticente. A atriz e diretora de teatro Cláu-
Fotos: Bel Mercês
A Conferência, por seus protagonistas
Evento reuniu artistas, produtores culturais, comunicadores e militantes de diversas regiões do Brasil índigena, negro e popular
dia Ribeiro, de Foz do Iguaçu (PR), ficou satisfeita ao ver contempladas algumas propostas trazidas de seu município. “Foi muito bom, mas tenho medo que amanhã ou depois isso não vá pra frente. Senti que outros também têm essa preocupação. Se acontecer, as pessoas que participaram do processo não vão se calar”, rebateu. Egeu Laos, coordenador da Rede Social de Música, do Rio de Janeiro (RJ), acredita que o processo, para prosseguir, necessita de uma
mobilização permanente: “Temos de construir canais e estabelecer redes de contatos, que são grandes ferramentas”. Enquanto alguns participantes preocupavam-se com a continuidade da mobilização e especulavam pelos corredores sobre a proximidade de envio do Plano Nacional de Cultura ao Congresso com as eleições presidenciais de 2006, outros protestavam sobre o desenrolar da própria Conferência. O professor universitário, drama-
turgo e escritor Wilson Coelho Pinto, de Vitória (ES), avaliou que os participantes não foram ao evento com a pretensão de propor mudanças, mas de reafirmar uma determinada situação: “Existe uma ordem onde o capitalismo vendeu a idéia de mundo ideal e as pessoas compraram. É muito mais fácil adaptar-se do que romper. O retrato que faço é de um desdobramento que está acontecendo no mundo. Não vi aqui propostas diferentes. Há muitos paliativos ao invés de
política cultural”, expôs. Para ele, “o mais importante da Conferência foi o encontro das pessoas”. Também protestando, militantes de Goiânia distribuíram uma carta aberta aos participantes alegando terem sido excluídos do processo de debate e construção. Segundo eles, a Conferência Municipal foi realizada sem ter sido devidamente divulgada à população e seus delegados foram eleitos de forma arbitrária. “O Minc vai legitimar uma ilegalidade?”, questionaram. (BM)