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Ano 3 • Número 148

R$ 2,00 São Paulo • De 29 de dezembro de 2005 a 4 de janeiro de 2006

Mais um ano sem reforma agrária L

uiz Inácio Lula da Silva, antes de ser eleito presidente, garantiu que faria a reforma agrária no Brasil. Hoje, em discursos por todo o país, diz que está fazendo. No entanto, segundo o professor de Geografia Ariovaldo Umbelino de Oliveira, que participou, em 2003, da elaboração de um projeto de reforma agrária que foi apresentado a Lula, a distribuição de terras está longe de ser uma prioridade do governo. Não chega nem a ser uma política de desenvolvimento econômico. E só ocorre quando há mobilizações populares. Só ocorre quando os funcionários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), instituição responsável pela reforma agrária, conseguem vencer os obstáculos administrativos e políticos que encontram pela frente. Os impedimentos são muitos. O governo não chega a cumprir nem a metade das metas estabelecidas no 2º Plano Nacional de Reforma Agrária. Págs. 2, 4 e 5

Douglas Mansur

O governo diz que está mudando a estrutura fundiária, mas as desapropriações estão muito abaixo das metas oficiais

Os movimentos responsabilizam o governo por não fazer a reforma agrária e não resolver os problemas das famílias camponesas, quilombolas, sem-terra e indígenas

No Zimbábue, terra para os trabalhadores

Vergonha: muro para isolar EUA do México

agrária radical, espoliando fazendeiros brancos. Não se publica uma linha citando que Mugabe se viu forçado a vir a reboque de ocupações de terra que começa-

ram a pipocar pelo país, organizadas por ex-integrantes do governo, veteranos de guerra, que deixaram o poder descontentes com a via neoliberal. O geógrafo

Sam Moyo fala sobre o caráter internacional da reforma agrária de seu país e não deixa dúvidas sobre quem espoliou quem. Pág. 12

Daniel Berehulak/Getty Images

A Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou projeto de lei, apoiado pelo presidente Bush, endurecendo a legislação contra os migrantes. Entre as medidas, estão a construção de um muro na fronteira com o México e a criminalização das pessoas que hoje vivem nos EUA ilegalmente, os indocumentados. Pesquisa aponta que 58% da população desaprova o projeto. Pág. 9

A imprensa mundial faz questão de retratar o presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, como um ditador inconseqüente que decidiu impor uma reforma

Povo nas ruas, saída para a América Latina

Sem crescimento, mais brasileiros vivem na miséria Só crescimento econômico não basta. Mas ajuda. Se o Brasil mantivesse um crescimento da renda per capita de 2,9% ao ano, por quatro anos consecutivos, quase seis milhões de brasileiros sairiam da miséria. E se a economia crescesse 9%, com um avanço anual da renda per capita de 7%, em pouco mais de duas décadas não haveria brasileiros na miséria. Entretanto, em 2005, quase dois milhões de brasileiros vão continuar miseráveis porque a economia não avançará mais do que 2,5%. Pág. 7

Crise humanitária – No Níger, país do centro-oeste do continente africano, a população sofre com a grave crise alimentar causada pela seca prolongada e a destruição de colheitas devido a uma praga de gafanhotos

No Brasil, a saúde não é para os negros Pág. 6

Como será a Bolívia de Evo Morales Pág. 9

Vendedores da revista Ocas” escrevem livro Pág. 16

Santiago

Na luta contra as políticas neoliberais, o papel dos movimentos sociais é acumular forças e mobilizar a sociedade, propondo alternativas. A avaliação é uma síntese do pensamento dos sociólogos Emir Sader e François Houtart. Para Sader, “a esquerda tem sido derrotada no debate das idéias”. Houtart chama atenção para o aumento das resistências ao imperialismo. Págs. 13 e 14

E mais: REFORMA SINDICAL – O jornalista Altamiro Borges diz que a crise sindical não é um fenômeno particular do Brasil, mas mundial. Pág. 8 ZAPATISTAS – O sociólogo mexicano Gerardo Otero avalia a mudança na pauta de reivindicações do movimento zapatista, hoje de caráter classista e não mais exclusivamente indígena. Pág. 10


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De 29 de dezembro de 2005 a 4 de janeiro de 2006

CONSELHO POLÍTICO

NOSSA OPINIÃO

O campo agrário brasileiro em disputa

Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Cavalcanti Proença • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, 5555 Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

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m balanço do ano 2005 mostra o acirramento da luta de classes no campo. De um lado, o avanço do grande capital transnacional e, do outro, a resistência camponesa. O grande capital quer controlar a terra, a produção de alimentos, a água, a madeira, a energia, as sementes, a biodiversidade, as plantas medicinais etc. Para isto expulsa, mata, criminaliza, usa dinheiro público, rola dívidas com bancos públicos, utiliza trabalho escravo, destrói o meio ambiente. Os camponeses querem permanecer na terra e repartir os latifúndios. Produzem alimentos que vão para a mesa do povo e preservam a mãe natureza. Desenvolvem os municípios onde estão e promovem a justiça social. Lutam por educação e qualidade de vida para si e para os outros. As políticas de governo, mesmo sob o comando do presidente Lula, continuam pesando a balança para o lado dos ricos. Para eles, foram abertos os cofres do BNDES, retirados impostos (Lei Kandir), liberados os transgênicos, criadas as condições para ampliar as monoculturas, construir grandes barragens e devastar o cerrado e a Amazônia.

Mártires derramaram sangue ou doaram a vida em praça pública para defender o povo e o ambiente de todos. Para os camponeses, não mais do que uma pequena ampliação das políticas públicas, de caráter compensatório, a custo de intensas lutas. Assim mesmo, a resistência aumentou, na floresta amazônica, na beira do Rio São Francisco, no Pantanal Matogrossense, nos cerrados, no semi-árido nordestino, no sul do Brasil, na beiras dos rios onde a ditadura de grandes empresas impõe o terror para construir barragens, na resistência aos transgênicos, na construção prática de um novo modelo agrícola através do Plano Camponês e das práticas agroecológicas. A disputa que se aprofunda é entre dois modelos de desenvolvimento para o campo: um, centrado no latifúndio, controlado pelos grandes grupos transnacionais, baseado nas monoculturas dependentes dos insumos químicos; outro, centrado nas pequenas e médias unidades de produção agropecuária, organizado em redes de cooperativas, agroindús-

trias locais, empresas nacionais, empresas públicas estratégicas e baseadas na diversificação produtiva e em tecnologias orgânicas e agroecológicas. O primeiro aprofunda nossa dependência externa. O segundo fortalece o projeto nacional: de uma nação livre, soberana e justa, voltada ao bem-estar de seu próprio povo. Uma crise se abateu sobre importantes setores do agronegócio, apesar de todos os favores do Estado brasileiro nos governos FHC e Lula, o que mostra a inviabilidade econômica e social deste modelo. Novos desafios se delineiam no horizonte para os movimentos camponeses. É preciso se preparar para enfrentar o latifúndio e o agronegócio e suas táticas de criminalização e terrorismo associadas à sua estratégia de controle de território com monocultivos extensivos dependentes de insumos químicos. Para isto, formação, organização, controle de território e prática de um novo modelo de produção. E muita luta de massa, para mudar o caráter latifundiário do Estado brasileiro.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES GAROTINHO Ser o povo massa de manobra por esses (des) governantes não é novidade para ninguém. Porém, os políticos superestimam a nossa burrice. A rádio Bandeirantes de São Paulo, além de gostar de falar mal dos sem-terra também gosta de entrevistar ex-autoridades que se tornaram futuros ninguém (Delfim Neto é presença constante). Recentemente, a nulidade entrevistada foi o político de nome ridículo, Garotinho, e esse cara-de-pau não tem vergonha (se tivesse, aliás, não seria esse tipo de político) de se dizer pretendente à Presidência da República e apresentar soluções e caminhos capazes de levar os brasileiros ao bem-estar, como se o Rio de Janeiro que ele governa há oito anos não fosse um caos total. José Mário Ferraz Vitória da Conquista (BA) HERANÇA MALDITA E agora, as dezenas de milhares de funcionários públicos nomeados sem concurso, quem vai demiti-los? Paolo Maranca São Paulo (SP) BRASIL FUTEBOL CLUBE Deixando de lado a pouca-ver-

gonha e o desserviço prestado pela grande maioria dos nossos governantes de ontem e de hoje, o que pode ser constatado pelo fraco desenvolvimento da nossa economia, a qual apresenta um dos PIBs mais fracos de toda a América Latina, passo a um assunto um pouco mais ameno: futebol. Há vários anos, homens como Teixeira, Sveiter e muitos outros não passam de ditadores travestidos de democratas. Se eternizam no poder, locupletando-se às custas do endividamento dos nossos clubes futebolísticos. E no seio dessa verdadeira máfia estão os principais clubes, federações, patrocinadores, empresários de jogadores e boa parte da própria imprensa. Há até dinheiro de fontes duvidosas, sonegação de impostos, evasão de divisas e lavagem de dinheiro. Por interesses de um ou de outro patrocinador, resultados de jogos são forjados ou simplesmente anulados, como ocorreu recentemente. Tudo é feito em total desrespeito àquele que a tudo e a todos paga: o torcedor. Assim caminha o nosso Brasil F.C. José C. Da L. Gomes Porto Alegre (RS)

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CRÔNICA

O que há de novo neste ano-novo Marcelo Barros Entre os animais, só o ser humano é capaz de diferenciar os tempos e construir história. Os povos antigos relacionavam os ciclos dos astros ao caminho humano. Acreditavam que a mudança das estações, principalmente o ano-novo, provocava energias que influenciam a Terra e tudo que a povoa: plantas, animais e humanidade. Por isso, na maioria das culturas, a festa de anonovo significa renovação de vida e esperança. Infelizmente, no mundo atual, muitos ritos de ano-novo, marcados pelo consumismo, reforçam a desigualdade e injustiças sociais. Ainda bem que as famílias se encontram e as pessoas se confraternizam, o que, por mais que se repita, é sempre sinal do novo a que aspiramos. As pessoas, guiadas pela televisão, apagam luzes, abrem garrafas de vinhos borbulhantes e se abraçam. Trocam votos de “Feliz Ano-Novo”, mesmo se sabem que não bastam votos para tornar 2006 um ano melhor ou mais feliz do que 2005.

As perspectivas para este ano indicam que a pobreza aumentará, a relação da humanidade com a natureza continuará agravando a situação de risco do planeta Terra e as relações internacionais, ao que tudo indica, continuarão marcadas pela força das armas e não pela justiça e pelo direito. O que há de novo neste anonovo é uma mobilização cada vez maior da sociedade civil internacional, em favor de novas possibilidades de convivência humana e relação com a Terra. O começo de 2006 será marcado pela realização do 6º Fórum Social, desta vez, acontecendo simultaneamente em vários continentes. Na América Latina, é a vez de Caracas, cidade-símbolo de uma nova unidade continental e libertária. No plano pessoal, a gente pode viver o ano-novo como um tempo passageiro que, hoje, o calendário traz e, amanhã, terá passado. Mas, pode, ao contrário, assumir a mudança de ano como oportunidade para rever o tempo que passou e descobrir o apelo a uma vida nova.

As comunidades antigas entravam nesse espírito através de ritos nos quais jogavam fora algo que significasse o que está “envelhecido” (como o ano que acabou). E peregrinavam a uma montanha ou se banhavam em um rio, no primeiro momento do ano, para acolher o tempo novo dado por Deus. Hoje, mais do que nunca, ninguém terá ano-novo melhor se não se comprometer para que toda a humanidade possa viver novas relações de paz e justiça. Cada pessoa poderá, então, dizer ao seu vizinho uma antiga bênção irlandesa: “Que o caminho seja brando a teus pés, o vento sopre leve em teus ombros. Que o sol brilhe cálido sobre tua face, as chuvas caiam serenas em teus campos. E até que, de novo, eu te veja, que Deus te guarde na palma da sua mão”. Marcelo Barros é monge beneditino. É autor de 27 livros, entre os quais está no prelo A Vida se torna Aliança, (Como orar ecumenicamente os Salmos), Ed. CEBI-Rede da Paz, 2005

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NACIONAL MOEDA DE TROCA

Os interesses que derrubaram Capiberibe C

oincidência ou ironia da história, João Capiberibe perdeu o mandato de senador na noite da terça-feira, 13 de dezembro, aniversário do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que suspendeu direitos e garantias dos cidadãos em 1968 e constituiu o clímax da violência institucional da ditadura de 1964. Em pleno regime de liberdades democráticas, “Capi”, como é conhecido no meio político, eleito senador pelo PSB do Amapá em 2002, enfrentou uma longa e árdua luta com o grupo do senador José Sarney (PMDB-AP), cujo aliado e correligionário Gilvam Borges já assumiu a vaga aberta. Sua mulher, Janete Capiberibe (PSBAP), ré no mesmo processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pode também perder o mandato na Câmara dos Deputados, pela cassação de seu registro de candidatura e do diploma de deputada federal. O ato da mesa diretora do Senado foi lido pelo presidente Renan Calheiros e o documento foi assinado por todos os integrantes da mesa, inclusive pelo primeiro vice-presidente, senador Tião Viana (PT-AC), contrário à punição. “Assinei porque era uma decisão judicial e seria antidemocrático não assinar. Mas discordo. Foi um ato de injustiça, uma armação que infelizmente teve valor de prova”.

DIZ-QUE-DIZ O casal Capiberibe é acusado de ter comprado, por R$ 52, os votos de duas eleitoras, flagradas em boca de urna. O dinheiro, apreendido juntamente com material de propaganda eleitoral, era para a alimentação, mas elas disseram que era pagamento pelos votos – o

José Cruz/ABR

Luiz Augusto Gollo de Brasília (DF)

Agência Brasil

Grupo ligado a José Sarney articula a ação, mas o ex-senador anuncia que é candidato ao governo do Amapá

Figuras importantes do Congresso e do governo, como políticos do grupo do senador José Sarney, estão por trás da perseguição a Capiberibe (à esquerda)

que desmentiram mais tarde, em novo depoimento. O Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Amapá absolveu os candidatos, mas o PMDB local recorreu e eles foram condenados no TSE. Incursos na Lei nº 9.504/97, a chamada “lei da compra de votos”, não tiveram, porém, os mandatos cassados, nem os direitos políticos suspensos. Capiberibe já

ANÁLISE

Ajuste social de longo prazo Roberto Amaral Nenhum dos problemas com os quais o país se depara hoje, nem o problema social, nem o da dívida (seja a econômica, seja a social), nem o problema político, nem a crise urbana, nem a questão rural, nem o problema da educação, nem as carências da ciência e da tecnologia, nada será redimido se este país não retomar o desenvolvimento. Ao contrário: sem ele, sem crescimento econômico associado à distribuição de renda, todos os nossos problemas serão agravados – e estão sendo agravados e serão agravados enquanto o país não retomar uma taxa de crescimento de pelo menos 6% ao ano. Não é querer muito. Nos anos do presidente JK, crescemos acima de 8%. No início da República, com Campos Sales e Epitácio Pessoa, crescemos acima de 7% ao ano. Não somos contra o superavit primário em si, mas somos contra um superavit primário de mais de 6%. Por que 6,3% e não 5%? Por outro lado, pagamos 85 milhões de dólares em juros da dívida, e estamos, este ano, contraindo uma dívida 120 milhões de dólares. Estamos, portanto, fazendo um esforço brutal, em prejuízo da qualidade de vida de nosso povo, comprometendo nosso futuro, mas sem nenhum resultado prático. Trata-se de um esforço inútil, que significa simplesmente enxugar gelo, ou molhar água, ou tentar inundar o mar. A primeira distorção está na política econômica em si, transformada em ente autônomo. A saber, ao invés de termos uma política de

governo, um projeto de governo e um projeto de Nação determinando a política econômica, temos uma política econômica determinando a vida da Nação e de seu povo. Seria aceitável a atual política econômica como tática de curto prazo, como meio subordinado a um determinado objetivo, e não como estratégia – não como fim. Podemos aceitar o arrocho, mas arrocho para quê? Com qual objetivo? Para beneficiar quais setores da sociedade? Ou por outras palavras: quais os setores de nossa sociedade que se estão beneficiando com a atual política? Ela favorece a distribuição de renda ou a concentração de riqueza? Na verdade, em nome do saneamento das finanças estamos aumentando a exclusão social. Por que um superavit tão alto? Por que não negociar sua redução, para dispor de uma pequena folga para investimento? Concordamos que devemos mostrar aos banqueiros internacionais que podemos pagar nossas dívidas e honrar nossos compromissos, mas precisamos também mostrar que somos uma economia viável. Se em vez de um superavit de 6,3%, tivermos um superavit de 5%, continuaremos confiáveis e ganharemos uma folga de quase R$ 20 bilhões de reais para investir no desenvolvimento do país. Roberto Amaral é secretário geral do Partido Socialista Brasileiro, e ex-ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. Publicado no jornal Bafafá On Line (http://www.bafafa.com.br )

se declarou candidato ao governo do Estado nas próximas eleições, cargo que ocupou em dois mandatos seguidos e para o qual é citado por mais da metade do eleitorado, nas sondagens realizadas nos últimos meses.

FOLHETIM O caso Capiberibe é apontado como o mais emblemático das relações interpartidárias no Congresso Nacional, seja pelo envolvimento direto e indireto de personagens de proa da vida pública, seja pelo seu intrincado enredo. Nele figuram como protagonistas e coadjuvantes os senadores Renan Calheiros (PMDB-AL), José Sarney (PMDB-AP), Edison Lobão (PFL-MA), o ministro Marco Aurélio Melo e o advogado paulista Pedro Dallari, além do senador que assume a cadeira, Gilvam Borges (PMDB-AP), derrotado nas urnas em 2002. Correligionários e amigos de Capiberibe dizem que a trama principal tem um só objetivo: afastá-lo do Senado, mesmo à custa do mandato de sua mulher. E é repleta de lances dramáticos e rocambolescos, como folhetim literário de qualidade duvidosa. Ao fim de várias tentativas de reverter a situação adversa, o casal Capiberibe foi, finalmente, condenado a perder o registro e o diploma em meados de outubro de 2005, em ofício encaminhado pelo TSE ao presidente do Senado. Com presteza inusual, Renan Calheiros leu o ofício na sessão plenária do dia 25, determinando a cassação do mandato sem dar ouvidos aos 51 senadores de vários partidos que se revezaram ao microfone pedindo por João Capiberibe.

INEDITISMO Três dias depois, na sexta-feira 28 de outubro, o ministro Marco Aurélio Melo, do STF, acolheu o mandado de segurança impetrado pela defesa e concedeu liminar assegurando-lhe “amplo direito de defesa no cargo de senador” – porque, afinal, “Capi” teve o registro e o diploma cassados já no exercício do mandato, o que pode soar estranho ao leitor leigo, mas é possível pela legislação eleitoral. Como era caso inédito na história do Senado desde os tempos im-

periais, a Comissão Diretora estabeleceu, através da Representação nº 1/05, um rito especial para a defesa e encaminhou a questão à Comissão de Constituição e Justiça. Lá, o presidente Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), ex-ministro do governo Sarney, designou como relator Edison Lobão. Em seu parecer, o senador Lobão, do grupo ligado a Sarney no Maranhão, opinou pela constitucionalidade e regimentalidade do rito especial definido pela mesa diretora do Senado. Na reunião do dia 23 de novembro, depois de quase duas horas de discussão sobre o princípio constitucional da ampla defesa, a CCJ aprovou o parecer estabelecendo o prazo da defesa em cinco dias úteis. A decisão seguiu para a mesa diretora, que a levou ao conhecimento do plenário.

COMO FORAGIDO Internado naquele mesmo dia no Instituto do Coração, em São Paulo, e submetido a uma bateria de exames, inclusive cateterismo e angioplastia, João Capiberibe estava sob licença médica. Seu estado de saúde e a licença médica foram comunicados à tarde ao plenário pelo senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), mas, para sua surpresa, Renan Calheiros anunciou de pronto o propósito de citar Capiberibe por edital, como se fosse foragido, e começar a contar os cinco dias úteis para a “ampla defesa”. No dia 1º de dezembro, o advogado Pedro Dallari deu entrada em novo mandado de segurança com pedido de liminar no Supremo para que a mesa diretora considerasse a licença de saúde para efeito do direito de ampla defesa. O mandado foi encaminhado ao ministro Marco Aurélio Melo, que no dia 7 oficiou à mesa diretora do Senado pedido de informações sobre a licença médica, o edital de sua citação e o amplo direito de defesa do senador socialista. Na manhã do mesmo dia 7, a reunião semanal rotineira da mesa diretora contou com a presença do advogado Pedro Dallari, que requereu a espera da decisão sobre o pedido de liminar do dia primeiro e encareceu ao Senado atender ao ministro Marco Aurélio quanto

às informações solicitadas por ofício. O segundo vice-presidente do Senado, Antero Paes de Barros (PSDB-MT), pediu vistas do processo e com isso o prazo de mais cinco sessões foi vencido.

REAÇÃO Finalmente, no dia 13, Calheiros leu o Ato da Mesa declarando a perda do mandato de João Alberto Rodrigues Capiberibe. Além da sua, o ato teve as assinaturas dos demais membros da mesa, Tião Viana (PT-AC), Efraim de Morais (PFL-PB), Paulo Octavio (PFL-DF), Antero Paes de Barros (PSDB-MT), Eduardo Siqueira Campos (PSDB-TO) e João Alberto de Souza (PMDB-MA). Ao contrário do que ocorrera na cassação do mandato por Renan Calheiros, em outubro, desta vez nenhum senador ocupou o microfone para defendê-lo. O advogado do ex-senador João Capiberibe insistirá junto ao STF, até porque a mesa do Senado ainda não enviou as informações solicitadas pelo ministro Marco Aurélio para embasar a concessão ou não da liminar requerida no mandado do dia 1º de dezembro. Essa premissa, por sua vez, poderá sustentar a tese da falta do amplo direito de defesa que originou e pontuou toda a tramitação do processo contra João e Janete Capiberibe no STF. Entre assessores e amigos do casal Capiberibe, comenta-se que a punição do ex-senador foi “moeda de troca” entre o grupo de José Sarney e o Palácio do Planalto para o apoio do PMDB ao governo, tanto na aprovação do orçamento de 2006, que tramitava no Congresso, quanto na possível campanha eleitoral do presidente Lula. Líder do PT no Senado em 2003, o primeiro vice-presidente Tião Viana rechaçou as insinuações com veemência. “O senador Capiberibe tem uma história de luta contra a ditadura, merece todo o respeito e deve voltar à vida pública nas próximas eleições. Quanto a essa história de ser moeda de troca, acho ingratidão e falta de caráter. Aliás, essa é uma pergunta montada...um abraço”. (Da Agência Carta Maior, www.a genciacartamaior.com.br)


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NACIONAL ETERNOS LATIFÚNDIOS

O governo faz discurso sobre a reforma O

presidente Luiz Inácio Lula da Silva diz que está fazendo reforma agrária. Mas faz pouco. A reforma agrária no Brasil é quase inexistente. Em 2003, o governo anunciou o assentamento de 36 mil famílias. Porém, em áreas onde houve desapropriações de terra, ou seja, reforma agrária, só caberiam nove mil famílias. No ano seguinte, Lula falou em 81 mil famílias beneficiadas, mas menos da metade foi resultado de desapropriações. Em 2005, os números, que ainda não foram divulgados, vão ser piores do que no anterior. Para o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Lula podia ter feito mais, em relação à reforma agrária. Se não fez, segundo ele, só há duas explicações possíveis: ou não teve como fazê-lo ou não quis. O fato é que a reforma agrária não se tornou, no atual governo, e em nenhum outro, uma política pública, como recurso de desenvolvimento econômico. Prevalece o agronegócio e, com ele, assassinatos de camponeses e trabalho escravo. “Se a reforma agrária continua na cena política, é porque há movimentos sociais”, afirma. Brasil de Fato – Em alguns países do Terceiro Mundo, a reforma agrária não gerou enfrentamentos entre setores da sociedade. Foi realizada como uma política de Estado, para desenvolver a agricultura. No Brasil, a redistribuição de terras polariza a sociedade. Por quê? Ariovaldo Umbelino de Oliveira – O Brasil tem uma diferença do ponto de vista estrutural. Ao contrário da maioria dos países, o desenvolvimento do capitalismo juntou, em uma única pessoa, o proprietário de terra e o burguês. Isso ocorre, sobretudo, com o governo militar, quando, por meio de incentivos fiscais, os grupos capitalistas do Centro-Sul se transformaram em proprietários de terra no Norte. Aqui, o capitalismo não precisou eliminar o entrave da grande propriedade privada da terra para se expandir. Além disso, com o Estatuto da Terra, lei de 1964, introduziu-se a punição ao descumprimento da função social da terra. O Estado pode desapropriar a terra, mediante indenização em títulos da dívida agrária (TDAs). Os setores que detêm as propriedades não aceitam essas condições. Nenhum proprietário reage à desapropriação da terra urbana porque é pago em dinheiro, a preço de mercado, à vista. Não há a mesma “punição” que existe para os proprietários rurais. No governo Lula, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem feito uma parte significativa de projetos de reforma agrária por meio da compra de terra. Daí, não há impedimento algum. Os proprietários não criam bloqueios no Judiciário ou na mídia. Interessa aos proprietários a desapropriação, pois convertem a propriedade em dinheiro. BF – A punição é um benefício para o proprietário. Oliveira – Os proprietários saem beneficiados, como no caso da Itamarati Sul, no Mato Grosso do Sul. Pertencia a Olacyr de Moraes, do Banco Itamarati, e era vista como altamente produtiva, mas, mesmo assim, o proprietário aceitou o processo desapropriatório, feito pelo governo. Quem tinha interesse era o Banco Itaú, que era credor do Itamarati e aceitou os TDAs, pois tinha como converter os títulos e esperar o resgate. A propriedade do Bradesco, no sul do Pará, passou pelo mesmo

processo, no segundo mandato do Fernando Henrique Cardoso. Não se pode achar que há, por parte dos proprietários de terra, um ideário formado, contrário à reforma agrária. Por isso, em vários países, houve distribuição de terra. Na Colômbia e no Peru, de forma reduzida. Também ocorreu após conflitos – no Japão, após a Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos, após a Guerra de Secessão, ou México, após a Revolução de 1910. No Brasil, a força contrária à reforma agrária é uma reação ao crescimento dos movimentos sociais no cenário político, especialmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Há uma disputa ideológica em relação ao espaço conquistado pelo MST que é mais branda na bancada ruralista do que no PSDB e no PFL, que estão diretamente interessados em golpear as forças populares. Fernando Henrique é talvez o político brasileiro mais vingativo. Ele constrói, por meio de seu partido, medidas que refletem sua vingança pessoal contra o MST, movimento que o pressionou muito em seu primeiro mandato, após o massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996. No PSDB, até cabe o discurso por reforma agrária. Não cabe movimento social forte.

Douglas Mansur

João Alexandre Peschanski da Redação

Francisco Rojas

O geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira avalia: o processo de redistribuição de

Quem é Professor de Geografia Agrária na Universidade de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira participou da elaboração de um projeto de reforma agrária do governo, o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária, que acabou sendo descartado. Em sua livre-docência, pesquisou a questão fundiária na Amazônia, região sobre a qual escreveu e organizou diversos livros. O último – Amazônia Revelada: os descaminhos ao longo da BR-163 (Editora Câmara Brasileira do Livro, 2005) – narra e analisa uma viagem que fez ao longo da rodovia Cuiabá-Santarém. Marcha pela Reforma Agrária, em 2005: metas do governo não são cumpridas

BF – Sem mobilização popular, não tem reforma agrária. Oliveira – Isso o governo sabe, inclusive o Lula. A reforma agrária é fruto exclusivo da pressão dos movimentos sociais. Nenhum governo, nem o Lula, fez da reforma agrária uma política pública, como meio para o desenvolvimento econômico. Se continua na cena política, é porque há movimentos sociais.

Nenhum governo, nem o Lula, fez da reforma agrária uma política pública, como meio para o desenvolvimento econômico BF – Lula diz que está fazendo reforma agrária. Oliveira – O governo optou pelo caminho menos conflituoso. Coloca famílias em assentamentos onde o número de famílias não foi completado. Quando Fernando Henrique implantava um projeto, contava como assentados o total de famílias que o assentamento comportava. Na medida em que, no governo Lula, se contabiliza, novamente, essas famílias, há dupla ou tripla contagem – um problema para quem estuda. Para mim, reforma agrária só existe quando há processo desapropriatório das terras que não cumprem função social. Fora isso, é regularização fundiária. Os últimos dados, até novembro de 2005, mostram que 53% das famílias que o governo anuncia ter assentado estão na Amazônia Legal, um exemplo inequívoco de que estamos diante de processo de regularização fundiária, mas não de reforma agrária, como pretendia o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (2º PNRA). BF – Quais são os dados de reforma agrária do governo? Oliveira – Em 2003, o governo anunciou pouco mais de 36 mil famílias assentadas. Quando se verificou, pelo Diário Oficial, o número de atos públicos de desapropriação de terra, viu-se que,

nesse ano, a área desapropriada permitiria o assentamento de algo em torno de nove mil famílias. A maioria das ações foi de regularização fundiária, então. Em 2004, o governo anunciou 81 mil famílias e se verificou que, nas terras desapropriadas, caberiam apenas 36 mil famílias. Se levarmos à risca o conceito de reforma agrária, tivemos, no governo Lula, em 2003 e 2004, 45 mil famílias. E não se trata do número de famílias realmente assentadas, mas do que caberia nas terras desapropriadas. Os dados de 2005 não estão fechados. O governo anuncia em torno de 72 mil famílias, até novembro. Parece que esse número não vai mudar, pois, em dezembro, a liberação de recursos para ações desapropriatórias é quase inexistente. Não se sabe ainda a área desapropriada, para calcular o número de famílias que poderiam, em tese, ser assentadas. De qualquer maneira, o cenário de 2005 é pior do que o do ano passado. As metas do 2º PNRA não estão sendo cumpridas. Para 2004 e 2005, a meta era de 115 mil famílias em cada ano. Para 2006, é de 140 mil. É bem possível que o governo termine sem que as metas tenham sido cumpridas. Não cabem mais as desculpas clássicas, dadas para 2003 e 2004, de que era o primeiro ano de governo e de que a greve do Incra criou problemas.

Para mim, reforma agrária só existe quando há processo desapropriatório das terras que não cumprem função social. Fora isso, é regularização fundiária BF – O governo vai dizer que a Justiça gerou bloqueios. Oliveira – De fato, gerou. No Rio Grande do Sul, há um movimento de proprietários que, quando o Incra manda os técnicos vistoriar a produtividade das terras,

faz ações de massa e impedem o acesso às propriedades. No Paraná e em São Paulo, a União Democrática Ruralista (UDR) procura o proprietário e oferece assistência jurídica gratuita para criar embaraços para a reforma agrária. De qualquer maneira, esses impedimentos só duram um tempo definido. Se os juízes demoram demais para fazer um processo avançar, são punidos pelas Corregedorias de Justiça. Em 2003, calculava-se que esse limite de tempo era de 18 meses. Então, mesmo se o Incra tivesse todas as suas ações barradas pelo Judiciário, esse embaraço começaria a desaparecer em dois anos.

Não cabem mais as desculpas clássicas, dadas para 2003 e 2004, de que era o primeiro ano de governo e de que a greve do Incra criou problemas BF – O governo afirma que sua reforma agrária é mais qualitativa do que quantitativa, ou seja, o que interessa é oferecer boas condições de vida e trabalho para as famílias assentadas. Oliveira – Na realidade, o próprio Lula tem anunciado essa perspectiva, da reforma agrária qualitativa. Contrapõe-se, segundo ele, à do segundo mandato de Fernando Henrique, que era apenas quantitativa, baseada na política fundiária, sem atentar para a política agrícola. É preciso tomar cuidado porque toda reforma agrária tem que ser feita com esse caráter qualitativo. É inconcebível opor dois níveis de reforma agrária, como no discurso do governo. O não cumprimento das metas do 2º PNRA mostra que esse governo não criou as condições necessárias para a reforma agrária. Um dos pontos muito discutidos, em 2003, quando se fazia o 2º PNRA, era ter uma política de desapropriação de terras maior do que a meta estabelecida, para ter uma oferta maior do que a necessidade. Os

embaraços não impediriam que se cumprisse as metas, pois haveria excedente. Desde aquele momento, o núcleo duro do Partido dos Trabalhadores (PT) foi impondo restrições à reforma agrária. Por exemplo: diziam que não se poderia fazer desapropriações em áreas de agronegócio. Essa informação chegava por boca, nunca por escrito. As restrições aumentaram, com a política de contenção fiscal, do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que só a implementou porque tinha apoio do presidente. BF – O governo minou uma política do próprio governo? Oliveira – Se a reforma agrária fosse, de fato, uma política de desenvolvimento econômico, político e social do governo Lula, não haveria bloqueio de verbas e outras restrições. Desde 2003, Lula instalou uma política controlada de reforma agrária, em que a maior parte das famílias não será assentada em áreas desapropriadas pelo governo. Ao contrário, teremos a continuidade, como no governo de Fernando Henrique, de assentamentos em áreas de regularização fundiária e retomada de terras públicas. Estes últimos ocorrem principalmente na Amazônia, onde há os Programas de Desenvolvimento Sustentável (PDS) em terras públicas. Deve-se elogiar as ações de retomada das terras públicas, mas é preciso dizer que essas só ocorrem em locais onde o agronegócio não contesta ou onde interessa ao agronegócio, como no Pará, em que se retoma a terra pública, implanta-se o PDS e, por causa da legislação brasileira, se facilita a ação das madeireiras. O próprio governo Lula não tem consciência dos desdobramentos de suas ações. BF – O que aconteceu com o 2º PNRA? Oliveira – Acho que o governo, por meio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), deixou a equipe do professor Plinio Arruda Sampaio trabalhar na elaboração de um plano, mas Lula já sabia que não seria implantado. Dentro do MDA, foise fazendo um documento, que se tornou o oficial, o 2º PNRA.


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NACIONAL

agrária, mas barra sua realização Arquivo Brasil de Fato

terras, na gestão do presidente Lula, está muito abaixo das metas, que já eram tímidas

Agronegócio avança Amazônia adentro e se fortalece em três anos de governo Lula

Quando se analisa os dois textos, vê-se que retiraram do plano da equipe do Plinio apenas trechos, que foram citados no documento oficial. Mas são propostas absolutamente diferentes. Já era decisão do governo Lula que a reforma agrária não deveria ser ampla, geral e massiva, como propunha a equipe do Plinio. A reforma agrária seria então mais contida, tendo como meta prioritária o cumprimento da finalidade social, e não uma política de desenvolvimento econômico e social. O 2º PNRA precisa ser descolado do documento da equipe do Plinio. De acordo com o ministro do MDA, Miguel Rossetto, nas discussões que tivemos em 2003, Lula tomou uma decisão calculando que precisava garantir a governabilidade. Em outras palavras, queria dizer que a desapropriação de terras não ia ser o eixo principal do 2º PNRA.

Passados três anos, temos que avaliar a forma de gestão e, se o administrador não consegue cumprir metas, precisa ser substituído BF – O governo estabeleceu metas de reforma agrária contidas, segundo sua explicação. Mas não consegue cumpri-las. Isso não é um atestado de incapacidade administrativa? Oliveira – Há dois tipos de problemas no governo Lula. O primeiro deriva de um conjunto de pressupostos políticos que cerceiam a ação dos funcionários e dos superintendentes do Incra, no sentido de formular políticas de reforma agrária mais profundas. Poucos superintendentes conseguiram cumprir as metas. Quando se discute o não cumprimento das metas, o discurso é de que a meta era apenas um indicativo e que, na realidade, era preciso uma reforma agrária bem-feita, de qualidade. O segundo problema é, de fato, de capacidade administrativa. Trabalha-se por metas porque é a forma moderna de gerir a coisa pública. Em qualquer manual de administração pública moderna, vai-se encontrar que as metas são o caminho mais racional. Se a equipe de governo não entende assim, há dificuldades no campo gerencial. Isso decorre, em muitos casos, das dificuldades enfrentadas pelos superintendentes do Incra na montagem das equipes para auxiliá-los, e da compreensão do funcionamento da máquina

pública. É comum ouvir de superintendentes que a máquina está emperrada, mas não há discursos sobre como a desentravar. É uma posição cômoda para justificar o não cumprimento das metas. Passados três anos, temos que avaliar a forma de gestão e, se o administrador não consegue cumprir metas, precisa ser substituído. BF – Desde o fim da ditadura, em 1984, nenhum governo considerou a agricultura camponesa como um meio para desenvolver o Brasil. Sempre há uma visão de que é necessário, pois é uma política social, quase como se fosse uma esmola para o atraso. Mas há casos, principalmente na Europa, em que a maior parte da produção agrícola vem dos camponeses e isso gera desenvolvimento econômico e social. Na França e na Holanda, sobretudo, vistas como potências agrícolas. Por que o estímulo à agricultura camponesa nunca fez parte da filosofia dos governos brasileiros? Oliveira – Precisamos analisar os diferentes governos. Quando José Sarney foi presidente, havia mais apoio aos camponeses porque Tancredo Neves se comprometera com a Igreja e com o papa a fazer reforma agrária. Sarney mostra uma tendência a cumprir esse acordo, tanto que o primeiro ministro do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (Mirad) era ligado à Igreja. Mas ficou pouco tempo, não agüentou as pressões políticas de um governo que não estava disposto, de fato, a fazer reforma agrária. Sarney herdou de Tancredo um compromisso e tentou implantar nos limites da correlação de forças que, gradativamente, tendeu contra a reforma agrária. Foi o momento do surgimento da UDR e da elaboração da Constituição Federal, cujo texto é pior do que o do Estatuto da Terra. Os proprietários ganharam a disputa política com os movimentos sociais. A vitória desagua na eleição de Fernando Collor de Mello, que escolhe um representante dos latifundiários para ministro da Agricultura. Desmonta-se a estrutura administrativa do Mirad, criado para fazer a reforma agrária, e volta tudo para o Ministério da Agricultura. As elites do campo sempre desejaram que os setores das pequenas e médias propriedades, que produzem mercadorias para o agronegócio, ficassem sob o controle dessa pasta e sob a influência dos latifundiários. Essa estratégia ocorreu no governo FHC e ocorre com Lula também. BF – Como, de fato, isso ocorre? Oliveira – No governo atual, o Mi-

nistério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) agrega os pequenos produtores com poder aquisitivo alto e médio e deixa para o MDA os setores chamados pobres, a quem interessaria, de forma mais direta, a reforma agrária. Isso divide os camponeses do ponto de vista ideológico e político. Os quadros da UDR no Pontal do Paranapanema (SP) e no Paraná são pequenos e médios produtores, o que mostra que a disputa ideológica do campesinato está sendo feita pelos latifundiários. Não querem fazer a discussão, separando agricultura camponesa e capitalista, pois sabem da força econômica dos produtores camponeses no Brasil. Em algumas esferas do agronegócio, esses setores são majoritários, do ponto de vista produtivo, como no caso da carne suína e de aves. Os integrantes do agronegócio da cana-de-açúcar, do gado e da soja sabem que rachar os produtores pode enfraquecer os latifundiários. Se você pegar o cadastro do Incra e a legislação que define a terra improdutiva, mesmo usando índices de produtividade da década de 1970, com uma base técnica mais baixa, percebe que há mais de 100 milhões de hectares, nas grandes propriedades, que são improdutivos. É a terra como mercadoria, mantida como patrimônio e não como finalidade econômica, se cumprisse a função social. É preciso de muitos apoiadores para evitar que isso se transforme em um escândalo político. BF – Há uma divisão geográfica do tipo de produção: no Sul e no Sudeste, pequenas propriedades e, no Centro-Oeste, no Nordeste e no Norte, grandes latifúndios? Oliveira – A divisão deve ser feita por setores. Na análise da soja, ícone midiático do agronegócio, os produtores do Sul têm sua base na pequena e na média propriedade. No Centro-Oeste, contando com Bahia, Maranhão e Piauí, que são do Nordeste, mas são um prolongamento da ocupação do cerrado, a maior parte da produção é da média e da grande propriedade. Não dá para dizer que a produção do Centro-Oeste e do Nordeste será hegemônica pois, no que diz respeito ao volume da produção, a disputa com o Sul está pau a pau. Em determinados anos, variações climáticas podem pesar pró ou contra uma das regiões. No último ano agrícola, pesou contra o Sul, em virtude da seca. No ano anterior, a chuva excessiva pesou contra o Centro-Oeste. Os únicos setores no Brasil claramente de domínio da grande propriedade são a cana-de-açúcar e o reflorestamento, a silvicultura interessando à pro-

dução de papel e celulose. Os defensores do agronegócio não gostam da análise setorial desagregada, pois mostra os flancos fracos da grande propriedade. BF – A tendência no Brasil ainda é de grande concentração fundiária. Oliveira – Não há sinais de diminuição nos índices de concentração fundiária no Brasil. As terras desapropriadas pelo Incra não levam a variações dos índices. Dá uma oscilação de centésimos. De qualquer maneira, o quadro geral de concentração precisa ser melhor esclarecido, pois, na esquerda, se criou a máxima de que a concentração sempre ocorre na grande propriedade. Isso não é necessariamente verdade. A maior parte da concentração se dá nas chamadas pequenas e, sobretudo, médias propriedades. As grandes têm impedimentos, como a taxação do Imposto Territorial Rural (ITR), e acaba não interessando ao latifundiário uma concentração cada vez maior. É claro que os grandes proprietários usam da estratégia de não fazer agregação e, como o Incra e o Ministério da Fazenda não fazem tributação a partir do CPF, mas das unidades cadastrais, imóvel por imóvel, não há dados que evidenciem a concentração. Onde há cultivo da cana, há concentração em grande propriedade.

Nenhum governo levou a leilão uma propriedade porque o dono não pagou o ITR. Do ponto de vista da legislação trabalhista, nem se fala BF – Os relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam uma contradição. Onde há agronegócio, que usa tecnologias de ponta e se integra ao mercado mundial, há também condições de vida mais precárias para os trabalhadores e maior número de assassinatos de camponeses. Oliveira – Há uma diferença entre o discurso midiático e a realidade concreta nas fazendas. Do ponto de vista do imaginário das elites que produzem no campo, predomina o não cumprimento da lei. É diferente do que se passa na indústria, onde há setores que descumprem a lei, mas o aparato sindical pressiona para que isso não ocorra. Se há um elemento em que ocorre unicidade sindical, é o cumprimento da lei. No campo, predomina o não cumprimento da lei. Todos os governos sabem que a maioria dos proprietários não paga o ITR, e nada é feito. A rigor, se alguém não paga um tributo, ele é acrescido à dívida ativa e a propriedade pode ir a leilão. Nenhum governo levou a leilão uma propriedade porque o dono não pagou o ITR. Do ponto de vista da legislação trabalhista, nem se fala. Em primeiro, porque não se sabe, de fato, qual é a legislação efetiva que se tem de cumprir. Há duplicidade de leis. Há um projeto que tramita no Congresso para a consolidação. Nem os juristas renomados têm controle total da legislação pertinente ao campo. As elites cumprem a lei que julgam correta. Como não há uma ação do Estado no sentido de garantir o cumprimento da legislação, nem uma ação sindical nessa direção, quer pela Confederação Nacional de Trabalhadores na

Agricultura (Contag), quer pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a impunidade impera. BF – Não pagar o ITR é um tipo de crime, manter trabalhadores em regime de escravidão é outro, mais chocante. Oliveira – Há setores do agronegócio que sempre utilizaram trabalho escravo. O que nós conhecemos do trabalho escravo é o que foi desarticulado. O que não foi, não conhecemos. O Estado não tem um sistema gerencial de acompanhamento de todas as propriedades. No processo de transformação do cerrado em terra apropriada para o cultivo da soja, o procedimento se faz por máquinas, com trabalho qualificado e tudo mais. Ou o proprietário usa suas próprias máquinas ou contrata uma empreiteira. No primeiro ano, a terra é cultivada com arroz e, depois, é removida, para fazer a catação das raízes. Não tem uma máquina para fazer isso, é preciso fazer manualmente. Aí surge o trabalho escravo, pela necessidade de uma quantidade grande de trabalhadores. Os fazendeiros subcontratam um gato, um empreiteiro de mãode-obra, que pratica a ação. Há também muito trabalho escravo na silvicultura, principalmente na produção do carvão. Também sempre houve trabalho escravo nas áreas de desmatamento na Amazônia. BF – Por que na Amazônia há mais violência contra os trabalhadores? Oliveira – Na Amazônia ocorre um fenômeno curioso. Os municípios se formam rapidamente, em função do processo de corrida pelas terras. Quem compõe os partidos políticos e os governos municipais são os setores das elites que transgridem a lei. É quem grila a terra pública, é o madeireiro que entra em unidades de conservação para tirar madeira. Quem compõe o poder local, o Estado, é o criminoso, que fica à vontade para descumprir cada vez mais a lei pois se sente protegido sendo parte da estrutura. No imaginário das elites da Amazônia, não há a preocupação em cumprir as leis. A impunidade é a regra. Em um trabalho sobre a rodovia CuiabáSantarém, quando entrevistamos médicos dos pequenos hospitais nos povoados e perguntamos por que, nos atestados de óbito, não vinha a causa real da morte – como a queda de uma árvore que o peão estava cortando, em vez de parada cardíaca. Eles respondiam que só poderiam continuar trabalhando se não contrariassem as elites do local. Os proprietários têm todo o controle sobre quem circula na região. A Amazônia é uma região sem presença do Estado, principalmente da União, ao ponto do Incra, ao ir às terras públicas, na faixa da rodovia, levar o Exército. Só se respeita o Exército. BF – O Incra, além disso, está sucateado. Oliveira – Voltamos à discussão sobre a reforma agrária, que não está acontecendo porque quem é responsável não está sendo eficiente. Não há como não chegar a essa conclusão. Se eu permito que meu número de funcionários seja reduzido, é porque minha gestão é ineficiente ou porque concordo com o sucateamento do Incra. Não quero crer em bloqueio explícito do governo para que o quadro de funcionários do Incra seja recomposto. Se existir, a responsabilidade não é do Incra, mas de quem dita a política, ou seja, do presidente.


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NACIONAL IGUALDADE RACIAL

Quando a cor decide quem vive mais Flávio Carrança de São Paulo (SP)

Q

uem nasce negro no Brasil vive em média seis a sete anos menos que uma pessoa branca. Pretas e pretos do país morrem por Aids quase três vezes mais que os brancos. Mulheres afrodescendentes de 15 a 49 anos morrem por complicações do parto 2,7 vezes mais que as brancas da mesma faixa etária e condição social. Esses dados, extraídos da pesquisa “Saúde da População Negra: Contribuições para a Promoção da Eqüidade”, alertam para a existência de problemas específicos da população negra e a necessidade da implementação de políticas públicas voltadas para solucioná-los. O economista carioca Marcelo Paixão, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do projeto Observatório Afro-Brasileiro, foi um dos pesquisadores que participaram da pesquisa. A partir de dados do Censo Demográfico de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, Paixão calculou que no ano 2000 a esperança de vida da população branca brasileira estava na casa dos 73,99 anos (em média), ao passo que na população negra era de 67,12 anos, ou seja uma diferença de mais de 6 anos a favor dos brancos.

Ricardo Teles/ Agência Reflexo

Pesquisa mostra efeitos da discriminação racial na saúde; negros morrem mais por causas evitáveis do que os brancos

O desamparo na gravidez Um levantamento realizado na cidade do Rio de Janeiro entre mulheres atendidas pelo SUS de 1999 a 2001 confirmou a diferença no atendimento a partir da sua cor. Como relata a médica Jurema Werneck, coordenadora da ONG Criola Organização de Mulheres Negras, apesar de apresentarem proporcionalmente maior incidência de fatores de risco na gravidez – como hipertensão, tabagismo, anemia, sífilis –, as mulheres negras não obtiveram os cuidados necessários da parte do sistema de saúde. Na amostra estudada, 30% das gestantes negras contam que tiveram de recorrer a mais de um hospital até o momento da internação, enquanto as brancas que mencionaram o mesmo problema correspondiam a 18,5%. Além disso, as mulheres negras fizeram 50% menos consultas de pré-natal que as mulheres brancas. Jurema lembra que o SUS tem de estar presente nos lugares onde a comunidade negra vive. “No Rio de Janeiro, por exemplo, o SUS está concentrado na área central e na zona sul da cidade, regiões predominantemente habitadas pela população branca, enquanto nas zonas norte e oeste, onde há maioria de negros, quase não há serviço, ou, quando há, é de pior qualidade.” (FC)

MORTALIDADE Movimento negro defende a inclusão do quesito cor nos formulários do sistema de saúde

Publicada em agosto de 2005 pelo Ministério da Saúde, a pesquisa Saúde da População Negra no Brasil foi coordenada pela bióloga Fernanda Lopes, responsável pelas ações de saúde do Programa de Combate ao Racismo Institucional no Brasil. Fernanda define racismo institucional como a incapacidade coletiva de uma organização em prover um serviço profissional e adequado às pessoas por conta de sua cor, cultura ou origem étnica. E diz que ele se manifesta em atitudes ou condutas discriminatórias ou preconceituosas, na ignorância ou desatenção a determinados grupos, como negros, índios, homossexuais e deficientes.

IGUALDADE Fernanda lembra que ao se falar em justiça na saúde outro conceito básico é o de eqüidade, que significa oferecer mais àqueles que mais

necessitam e de maneira adequada às suas necessidades específicas. Em artigo que abre o livro com os resultados da pesquisa, diz ser impossível deixar de reconhecer no Brasil o avanço da instituição da saúde como direito de todos e dever de Estado. Observa, entretanto, que a garantia legal do acesso universal e igualitário aos serviços de saúde não tem assegurado aos negros e indígenas a mesma qualidade de atenção oferecida aos brancos. E faz questão de ressaltar a importância de os profissionais de saúde terem uma formação que lhes permita reconhecer que o racismo, a discriminação e o preconceito raciais determinam um perfil indesejável de saúde. A bióloga afirma ainda ser necessário informar a população negra sobre as doenças a que está sujeita e lembra que, para existirem

estatísticas com dados sobre essa questão, é preciso incluir o quesito cor em todos os prontuários e formulários do sistema de saúde. “São os dados, em especial os dados publicados pelo governo, as esta-

tísticas oficiais, que vão respaldar a nova orientação de ações, políticas e programas no Sistema Único de Saúde (SUS)”, conclui. (Reportagem publicada originalmente na revista Problemas Brasileiros).

Alderon Costa/ Rede Rua

Outro pesquisador envolvido no estudo é o sociólogo e assessor técnico da Secretaria de Saúde de São Paulo Luís Eduardo Batista, que estudou a mortalidade da população negra adulta no Brasil. Segundo ele, os levantamentos mostraram que existe um diferencial no perfil de mortalidade entre brancos e negros no país. Enquanto a população branca morre mais por causas congênitas – tumores, doenPuerpério – Período que decorre ças do aparelho desde o parto até respiratório ou que os órgãos aparelho digesgenitais e o estado geral da mulher tivo –, entre os voltem às condipretos e pardos, ções anteriores à a mortalidade gestação. tem mais causas evitáveis, associadas às condições de vida, como a gravidez, parto e puerpério (que não são doenças), transtorno mental, doenças infecciosas e parasitárias e causas externas (mortes violentas).

Em média, esperança de vida dos negros é de 67 anos; a dos brancos, 73 anos

Breve radiografia das políticas públicas Ações afirmativas em saúde: A discussão sobre a saúde da população negra chegou oficialmente a Brasília em novembro de 1995. Como resposta à mobilização da comunidade negra, que levou cerca de 30 mil pessoas à capital do país na Primeira Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Igualdade e pela Vida, o então presidente Fernando Henrique Cardoso criou um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), dentro do qual existiu um subgrupo de saúde. Como resulAnemia falciforme tado das discus– Enfermidade de origem hereditária sões desse orque altera os glóbuganismo, foram los vermelhos. Um definidos quatro de seus sintomas é palidez, crises doloblocos de doenrosas, aparecimento ças e agravos de feridas no corpo. que afetam a poDiabetes Mellitus pulação negra – Síndrome de brasileira. O priorigem genética caracterizada por meiro é das doexcesso de glicose enças geneticano sangue. Se não mente determicontrolada, pode causar cegueira, nadas ou assoinsuficiência renal e ciadas à genéamputação, entre outica, como anetras conseqüências. mia falciforme e diabetes mellitus. Existem os pro-

blemas derivados de condições socioeconômicas e educacionais desfavoráveis e da pressão social, como alcoolismo, desnutrição, mortalidade infantil elevada, DST/Aids e transtornos mentais. No terceiro bloco, estão as doenças que se agravam, ou ficam mas difíceis de tratar nas condições negativas já citadas, como hipertensão arterial, cânceres e miomas. Finalmente, existem condições fisiológicas que também são afetadas pelas mesmas condições negativas e evoluem para doenças, como gravidez, parto e envelhecimento. As ações do governo Lula no âmbito da saúde da população negra tiveram origem em iniciativas da Secretaria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A diretora de programas de Ações Afirmativas do governo federal, Maria Inês Barbosa, afirma que o SUS deve responder às necessidades da população, tendo a epidemiologia como base de seu planejamento. Doutora em Saúde Pública, ela explica que o sistema universalista (no sentido de acesso igual para todos) do SUS contempla a população negra, mas não vê as diferenças geradas pelo racismo.

A partir de um seminário nacional sobre o tema, realizado no segundo semestre de 2004 por iniciativa da Seppir, foi criado no Ministério da Saúde um Comitê Técnico de Saúde da População Negra, que possui três linhas básicas de atuação. Uma delas é a informação sobre o tema tanto do público em geral quanto dos gestores dos organismos de atendimento. Outra linha é a atenção à saúde, com ações voltadas para redução das mortalidade precoce, da mortalidade infantil e da mortalidade materna. Dentro dessa linha, há uma preocupação especial com a anemia falciforme e com o atendimento às comunidades remanescentes de quilombos. Existe ainda uma linha de incentivo à produção de conhecimento científico, capacitação e desenvolvimento de recursos humanos para atuação nesse campo. Um levantamento mostrou que, até agosto deste ano, estavam em andamento 66 ações voltadas para a saúde de população negra no âmbito do Ministério da Saúde e do SUS, todas possibilitadas a partir da formação do Comitê Técnico. (FC)

questão ainda controversa Apesar das iniciativas em andamento, a polêmica sobre o acerto da implantação de políticas de ação afirmativa para negros no âmbito da saúde ainda prossegue. Especialista em políticas e organização de serviços de saúde, o professor Paulo Elias, do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), diz que esse tipo de política corrói o conceito de universalidade. Elias reconhece a existência de demandas e necessidades específicas da população negra, mas afirma que, no sistema universal de saúde, as demandas dos grupos devem ser atendidas por se tratar de cidadãos pertencentes ao país – e não pelo fato de serem negros, brancos ou índios. A professora de Epidemiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Myriam Debert, também reconhece que existem especificidades na saúde dos negros. Ela conta que um levantamento que realizou na década de 1980 constatou a maior incidência e maior gravidade dos casos de hipertensão na população negra. “Toda vez que há um grupo mais atingido, é aí que você vai focar sua política, sem deixar de prestar atenção no conjunto”. A bióloga Fernanda Lopes, responsável pelas ações de saúde do Programa de Combate ao Racismo Institucional no Brasil, esclarece que tanto militantes quanto pesquisadores negros não estão falando apenas de influência genética – mas sim do impacto do racismo na vida dessas pessoas, na definição do espaço social que elas ocupam, nas dificuldades diárias de se sentir pertencente a uma sociedade. “Essa dificuldade de se ver como membro da sociedade e, ao mesmo tempo, o desejo de estar incluído, essa pressão social que o racismo impõe a negros e negras é que define condições indesejáveis e evitáveis de saúde”, conclui. (FC)


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De 29 de dezembro de 2005 a 4 de janeiro de 2006

NACIONAL POLÍTICA DE EXCLUSÃO

Baixo crescimento custa caro ao país Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

Q

uase dois milhões de pessoas não terão a chance de romper a barreira da miséria em 2005. Tudo porque a economia vai crescer muito abaixo do esperado, em conseqüência da política de arrocho persistente adotada pelo governo, com juros nas nuvens e investimentos em queda. O atraso é praticamente definitivo porque não será possível repor, mais à frente, o crescimento que não ocorreu agora. Nos próximos anos, se a economia voltar a apresentar índices mais expressivos de crescimento, eles vão resultar de comparações com uma base encolhida, em decorrência do fraco desempenho de 2005. O recém-divulgado trabalho “Miséria em queda”, coordenado pelo economista Marcelo Néri, do Centro de Políticas Sociais do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), pode ajudar a entender a situação. No final de 2004, mostra levantamento da FGV, perto de um quarto da população brasileira se encontrava abaixo da linha de miséria – correspondente a uma renda mensal de R$ 115, valor suficiente para assegurar o consumo diário de 2.288 calorias, mínimo recomendado para a sobrevivência de uma pessoa pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Com base nos dados apurados pela Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pode-se calcular que praticamente 45,7 milhões de brasileiros, em um universo de 182 milhões, ganhavam menos de R$ 115 por mês. O percentual de pessoas na linha de miséria vem caindo desde o começo dos anos 90 e o estudo da FGV correlaciona a queda a políticas sociais de transferência de renda, ao crescimento da economia (quando isso ocorreu) e, especificamente no caso de 2004, a um incremento do total de empregos criados na economia (sem entrar no mérito da qualidade das colocações criadas). A tendência de declínio no batalhão de pessoas miseráveis se deve, ao que parece, não apenas a políticas de transferência de renda, como o programa Bolsa Família, mas também aos aumentos recentes do salário mínimo, que têm impacto positivo sobre os benefícios pagos pela Previdência Social às faixas de renda mais baixa – o que, mais uma vez, demonstra a importância desse tipo de política para o combate à miséria e à concentração da renda. Quanto maior o crescimento da renda per capita (ou seja, do rendimento total recebido, na média, por cada brasileiro), mostra o estudo, maior o número de pessoas que conseguem vencer a barreira da miséria absoluta, e ter uma qualidade de vida um pouco acima dos níveis de sobrevivência. A questão é que o avanço da renda média individual das pessoas e famílias está ligado diretamente ao crescimento da economia. Em outros termos, quanto maior a expansão da atividade econômica, quanto maior a geração de riquezas, mais depressa crescerá a renda per capita, e mais rapidamente o país conseguirá reduzir ou eliminar a miséria. O baixo nível de crescimento projetado para a economia brasileira em 2005, neste caso, custará muito caro, ao impedir que milhões de pessoas possam transpor a linha da miséria.Porque não haverá o crescimento esperado da renda. Inicialmente, o governo con-

EVOLUÇÃO DA MISÉRIA NO BRASIL Percentual de pessoas com renda per capita mensal inferior a R$ 115

Arquivo Brasil de Fato

Política econômica impede avanço da economia, e que 1,9 milhão de pessoas possam escapar da miséria

40

36,57% 35

35,87% 29,30%

30

29,85%

25

28,29%

27,26% 26,23%

25,08%

20 15

1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 Fonte: CPS/Ibre/FGV (sobre dados da PNAD/IBGE)

MELHORA DISTRIBUIÇÃO DA RENDA Participação no total, por faixa de renda domiciliar per capita, em % Período

50% mais pobres

40% intermediários

10% mais ricos

1990

11,5

40,5

48,0

1993

12,1

39,5

48,4

1996

11,9

40,9

47,2

1999

12,6

40,7

46,7

2001

12,4

40,4

47,3

2002

13,2

40,4

46,4

2003

13,5

40,8

45,7

2004

14,1

41,2

44,7 Se a renda per capita aumentasse 3%, 1,4 milhão de brasileiros sairia da miséria

Fonte: CPS/Ibre/FGV (sobre dados da PNAD/IBGE)

tava com um crescimento de até 5%, e os menos otimistas falavam em 4%. No começo de dezembro, a média das previsões do mercado, e mesmo dentro do governo, rondava a faixa entre 2% e 3%. Numa projeção, a FGV estima que o percentual de brasileiros mi-

seráveis poderia cair de 25%, índice de 2004, para 24,3%, se a renda per capita aumentasse apenas 3%, o que ocorreria se a economia crescesse de 4,5% a 5%. Nesse caso, mais de 1,4 milhão de pessoas sairiam da condição de miséria. “Se o crescimento per capita

Em 2005, fica tudo igual Os dados utilizados pela FGV permitem calcular que o contingente total de miseráveis pode se manter no mesmo nível, ou mesmo voltar a crescer em 2005, por conta da frustração do crescimento. Ou seja, a política de juros altos e arrocho dos investimentos públicos condenará à miséria alguns milhões de brasileiros que poderiam melhorar a sua situação se a economia crescesse em ritmo mais forte. As projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI) indicavam que países “emergentes” como Rússia, Malásia, Coréia, Indonésia, Índia, China, e mesmo a Argentina, entre outros, poderiam registrar, em 2005, um crescimento de 6,4%, na média, com alguns crescendo em ritmo bem mais acelerado, como no caso chinês, e outros a taxas menos ambiciosas (como o Brasil). Os brasileiros terão que se contentar com menos da metade daquela taxa. Caso a economia do país evoluísse naquele patamar, seria possível um avanço de pelo menos 4% na renda per capita. Isso significaria que a participação de miseráveis na população seria de 23,78%, alto ainda, sem dúvida, porém pouco mais de 5% abaixo do nível de 2004.

RENDA NA MESMA Ou seja, o número de miseráveis cairia de 45,7 milhões para 43,3 milhões: 2,4 milhões de brasileiros estariam fora da zona da miséria. Entretanto, o PIB deve crescer ao redor de 3% em 2005, o que significará um avanço da renda de menos de 1%. Neste caso, o total de miseráveis, com base nos dados de 2004, vão continuar na casa dos 45,2 milhões em 2005, uma variação mínima em relação ao ano

anterior. Ao invés de beneficiar quase 2,4 milhões de pessoas, o desempenho da economia não vai favorecer mais do que 474 mil pessoas, impedindo, assim, que quase 1,9 milhão de pessoas quebrem a barreira da miséria. Suponha-se, agora, que a economia brasileira, num surto impensável de bom-senso da equipe econômica, pudesse crescer ao ritmo chinês de 9% ao ano. Nessa hipótese, a renda teria espaço para avançar a uma taxa anual de quase 7%, reduzindo o total de miseráveis para menos de 42 milhões em um único ano (8% a menos). Comparando com o desempenho atual, o Brasil poderia tirar da miséria 3,2 milhões de pessoas em 2006.

TODOS GANHARIAM Com uma renda de pelo menos R$ 115 por mês, a entrada daquelas pessoas no mercado representaria uma injeção anual de R$ 4,4 bilhões na economia, sob a forma de consumo de alimentos, roupas, remédios e outros produtos e bens básicos e de primeira necessidade. Esse consumo adicional seria suficiente para irrigar os cofres dos governos com mais R$ 1,1 bilhão em impostos, numa estimativa aproximada, que considera apenas tributos incidentes sobre o consumo. Tomando-se o mesmo nível de renda, o potencial de consumo do universo de pessoas hoje abaixo da linha de miséria estabelecida pela FGV aproxima-se de R$ 63 bilhões, valor bastante próximo de 3,5% do total de riquezas produzidas no país. A previsão de arrecadação atinge pouco mais de R$ 15,3 bilhões, no caso, equivalente a toda a arrecadação anual do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). (LVF)

de 2,9% ao ano se mantivesse por quatro anos consecutivos, a miséria cairia para 21,8%, uma queda de 13,03%”, aponta o Ibre-FGV. Neste caso, quase seis milhões de pessoas conseguiriam cruzar a linha que divide miseráveis e não miseráveis ao final do período.

E, ao final de 22 anos, o Brasil conseguiria extirpar a miséria de milhares de pessoas. Se a renda crescesse a 7% ao ano (o que exigiria um avanço da economia da ordem de 9%), o número de miseráveis poderia ser reduzido a zero em 14 anos.

Distância menor entre os ricos e os pobres O percentual de brasileiros miseráveis chegou a representar 37% da população, em 1993, de acordo com o trabalho do Centro de Políticas Sociais da FGV. A participação recuou para pouco menos de 30% em 1995, conseqüência da redução da carestia, que penaliza mais as famílias de menor renda. Aquele percentual permaneceu estagnado durante a segunda metade dos anos 90, e primeiros anos da década seguinte, ensaiando nova queda apenas a partir de 2001, quando declinou de 28,7% para 27,3% em 2003, e para 25% em 2004. De 1993 a 2003, a taxa anual média de redução do número de miseráveis foi de 2,9%. Em 2004, a retração do total de brasileiros em situação de miséria foi mais acentuada nas regiões metropolitanas (menos 8,3% frente ao ano anterior) e demais áreas urbanas (menos 8,2%). Nas zonas rurais, a redução foi menos pronunciada: 6,5%. Um terço da baixa no percentual da miséria se deveu ao “efeitocrescimento”, estimado em 2,8%, conforme a FGV, um conceito que reflete o avanço da economia em geral, descontada a taxa de crescimento da população.

DESIGUALDADE CAI Os demais dois terços resultaram de uma redução relativa da desigualdade de renda entre as fai-

xas de renda mais alta e as de renda mais baixa. Essa diferença se reflete no índice de Gini (que mede a concentração de riqueza), que saiu de 0,585 para 0,573 (menos 2,1%). Numa escala de um a zero, quanto mais próximo de um, maior a desigualdade e a concentração da renda em determinada economia. O trabalho considera essa predominância do “efeito redistributivo” (ou seja, da redução da desigualdade) sobre a redução da miséria como um “evento raro no histórico das séries sociais brasileiras”. Entre 2001 e 2004, a participação dos 50% mais pobres na renda avançou de 12,4% para 14,1%, contrapondo-se a uma redução na faixa superior. Entre os 10% mais ricos, a fatia encolheu de 47,3% para 44,7%. A categoria intermediária, que representa os 40% com renda média, avançou ligeiramente de 40,4% para 41,2%. A diferença entre a renda média dos 10% mais ricos e dos 50% mais pobres passou de 18,21 vezes para 15,09 vezes também entre 2001 e 2004. Os números parecem retratar uma redução na renda média das famílias mais ricas e, ao mesmo tempo, um avanço proporcionalmente maior para as famílias mais pobres, refletindo, em grande parte, os aumentos reais determinados para o salário mínimo nos anos mais recentes. (LVF)

CAI DIFERENÇA ENTRE RICOS E POBRES Razão entre as rendas domiciliares per capita Faixa de renda familiar per capita

2001

2003

2004

10% mais ricos/20% mais pobres

41,09

32,32

29,53

10% mais ricos/50% mais pobres

18,21

16,16

15,09

Fonte: CPS/Ibre/FGV (sobre dados da PNAD/IBGE)


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De 29 de dezembro de 2005 a 4 de janeiro de 2006

NACIONAL SINDICALISMO

Encruzilhadas das organizações sindicais A ação dos trabalhadores, na visão de Altamiro Borges, precisa se internacionalizar e responder ao projeto neoliberal

O

jornalista Altamiro Borges fala sobre as principais encruzilhadas que o movimento sindical, principalmente o brasileiro, tem pela frente. Borges avalia a viabilidade e as perspectivas do atual formato do sindicalismo e destaca que a crise sindical não é um fenômeno particular do Brasil, mas “mundial”. E constata: “Aqui ainda tivemos uma reserva moral que não permitiu a adesão total ao projeto neoliberal, como aconteceu em outros países”. Uma reserva moral que vem, segundo o jornalista, da tradição anarquista e comunista na criação do sindicalismo brasileiro. Borges observa que os sindicatos perdem quando não entendem que hoje a ação sindical deve ser internacionalista, para fazer frente ao projeto de globalização econômica: “Não entender o que está acontecendo no mundo e os reflexos que esses acontecimentos têm na nossa vida é realmente um problema sério que o movimento sindical precisa resolver”.

Quando o capitalismo está numa fase decadente, decrescente, o sindicalismo tem muita dificuldade para negociar conquistas Brasil de Fato – Quais as encruzilhadas do sindicalismo brasileiro? Altamiro Borges – Acho que o sindicalismo está vivendo uma crise mundial. No mundo todo tem ocorrido queda na taxa de associação (sindicalização), na representatividade (assembléias esvaziadas) e crises nas direções sindicais. Me parece um fenômeno mundial que tem muito de fator objetivo. Não é só um problema das direções sindicais que não estão sabendo responder à crise. Temos de levar em conta que estamos vivendo um período muito negativo do capitalismo. É a fase mais regressiva e destrutiva do sistema capitalista em toda a sua história. Isso representa um brutal aumento do desemprego, da precarização do trabalho, da informalidade. Tudo isso dificulta a ação sindical. O sindicalismo vive fases áureas quando o próprio capitalismo cresce porque aí os sindicatos têm maior poder de barganha. Quando o capitalismo está numa fase decadente, decrescente, o sindicalismo tem muita dificuldade para negociar conquistas. BF – Como assim? Borges – A classe trabalhadora sofreu, nas duas últimas décadas, uma grande desestruturação. Então, uma coisa era você fazer sindicalismo num mundo onde o grosso dos trabalhadores tinha carteira assinada, estava no mercado formal. Outra coisa é você fazer sindicalismo quando, por exemplo, no Brasil, 57% estão na informalidade. Onde você tem, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 10% de desemprego aberto. Segundo o Departamento Intersindical de Estudo e Estatísticas Socioeconômicas (Dieese), se somados desemprego aberto, desemprego oculto e desemprego por desistência, temos 19%. Isso dificulta muito a ação sindical. Volto a dizer, é uma crise mundial e não só das direções sindicais. Tem fatores objetivos. O capita-

Centrais sindicais se unem para defender aumento do salário mínimo

lismo está se transformando para pior. Afora isso, essa fase do capitalismo é muito regressiva. Nós estamos vivendo uma regressão civilizacional. O que se conquistou está sendo retirado. Isso não é um fenômeno brasileiro. Vamos pegar, por exemplo, o patronato na Alemanha, que é o pólo dinâmico da economia européia. Eles estão discutindo aumentar a jornada para 50 horas semanais e reduzir as férias de 36 dias para uma semana. E fazem isso de que forma? Ameaçando: ou vocês aceitam ou vamos transferir, desterritorializar as fábricas. O capitalismo está passando por um processo que alguns chamam, e eu acho que é um bom termo, de uma “terceira revolução”. E uma revolução informacional, com base na microeletrônica e na informática. Hoje, com a automação microeletrônica, as ferramentarias estão desaparecendo. Tudo isso dificulta a ação sindical no Brasil e no mundo. São encruzilhadas grandes. BF – Como estão as direções sindicais nesse cenário? Borges – Alguns setores, diante da ofensiva, se converteram às posições do capital. Existem vários setores do movimento sindical que hoje defendem a conversão da classe, defendem as teses neoliberais. Setores que falaram contra a estabilidade no emprego, contra a redução da jornada de trabalho sem redução salarial, porque isso iria atrapalhar o desenvolvimento das empresas. Ou seja, assimilaram fazer a defesa do Estado mínimo das privatizações, da redução do papel do Estado, da demissão de servidores públicos. Então, você tem setores que se converteram ao neoliberalismo. E você tem setores sindicais que não chegaram ainda ao ponto de se converter, mas que entraram num processo de adaptação, de “possibilitismo”. E levam uma política de conciliação. É menos confronto e mais negociação. Você tem isso com muita força no interior da CUT. São as teses do sindicalismo cidadão, não é mais o sindicalismo de classe. Não é mais um sindicalismo reativo, é um sindicalismo de proposição. BF – O senhor acredita que a atual forma de sindicato vai acabar? Borges – Eu acho que a forma sindicato está em crise, mas não

acho que vai acabar. Não acho que o sindicato perde o seu papel. O sindicato tem um papel fundamental na sociedade, hoje. Pior seria se não houvesse sindicato. A regressão seria muito mais bárbara. O neoliberalismo detesta sindicatos. Então, o sindicato não vai acabar. Mas a forma precisa saber superar todos os ataques que vem sofrendo. Ele tem de inovar.

O sindicalismo que nasce da luta econômica corporativa dentro do capitalismo tem de se politizar BF – O sindicato é um produto do capitalismo? Borges – É. Os sindicatos nascem com o capitalismo. Eles nascem para fazer essa luta econômica imediata e corporativa. Isso é intrínseco ao sindicalismo. O sindicato é um fenômeno do capitalismo. Alguns setores, com base nisso, levantam que o sindicalismo é para fazer isso mesmo. É só para barganhar. Outros setores levantam o seguinte: se o sindicato ficar só barganhando ele só vai atacar os efeitos, nunca vai atacar as causas. Então, o sindicalismo que nasce da luta econômica corporativa dentro do capitalismo tem de se politizar. Precisa ir além dessa luta que é da sua natureza. BF – Qual a solução para enfrentar esse desafio? Borges – Uma das soluções para a crise do sindicalismo hoje é um sindicalismo mais politizado. Ser um sindicalismo não só da luta imediata, mas da ação política. Por exemplo, é preciso refletir muito sobre a reestruturação de classe. O sindicalismo não pode se bastar na corporação. Mas precisa falar para a sociedade, para os movimentos sociais organizados. Aumentar a interlocução com os movimentos. A fatia de trabalhadores formal que o sindicato representa está diminuindo. Mas os trabalhadores estão crescendo. É muita informalidade. É muita precarização. Esses setores estão organizados em outras áreas. Estão organizados em movimentos de jovens, de sem-terra, de

BF – Os sindicatos estão perdendo o trabalhador para outros movimentos, como as organizações não-governamentais (ONGs)? Borges – O Ricardo Antunes, esse grande estudioso da questão sindical, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que, na década de 1980, o movimento sindical brasileiro, junto com o da Coréia e o da África, foram os três únicos que tiveram ascenso. E o sindicalismo já estava em crise no mundo inteiro. Na década de 1990, sofremos um influxo. E também entramos em crise. Mas as contradições de classe continuam. E vão continuar se manifestando. Se não estão conseguindo se manifestar na área sindical, vão se manifestar em outros terrenos. Então, você vai ter outros movimentos ocupando o papel importantíssimo dos sindicatos. O movimento dos sem-terra é um exemplo. E mesmo as ONGs. Lógico que essas ONGs, uma parte bem intencionada, agora aí também tem muitos interesses de desviar o sentido das lutas. Em vez de ter um sentido de luta de classe, ter um sentido de filantropia, assistencialismo. James Petras, grande estudioso estadunidense, mostra que várias dessas ONGs não têm nada de ONG. Dizem que são organizações “não-governamentais”, mas boa parte dos recursos vem dos governos. E os recursos que vêm das empresas são recursos que vêm de isenções de imposto. Então, indiretamente, vêm do governo. São um produto do neoliberalismo no sentido de que quando você tem redução do Estado, o Estado diminui o seu papel, o tal do Estado mínimo do neoliberalismo, isso vai afetar as áreas de saúde, de educação. E aí o capital vai fortalecer as ONGs com a presença da chamada sociedade civil. Ou seja, não é classe, é sociedade civil. BF – O sindicalismo brasileiro está desgastado? Borges – O sindicalismo brasileiro tem características muito interessantes. É um sindicalismo que ainda tem uma dosagem de coisa saudável, por incrível que pareça. Se você pega o sindicalismo em outros países, pega o que é o sindicalismo nos Estados Unidos, a AFL-CIO (American Federation of Labor -- Congress of Industrial Organizations) é um negócio corrompido, totalmente envolvido com o patronato. Só recentemente, em função do aumento da imigração, começou a sentir o baque desse empobrecimento e começou a ter uma postura um pouco mais ativa. Pega o sindicalismo que era da Venezuela, que era totalmente corrompido. Pega o sindicalismo do México, a Confederação dos Trabalhadores Mexicanos. Alguns anos atrás, descobriram que tinha

tráfico de drogas na sede deles. Pega também a CGT da Argentina, também muito corrompida. O sindicalismo brasileiro tem um lado saudável. Com todos os seus problemas, erros, mas na sua história, pelo papel que os anarquistas e comunistas tiveram, tem um lado de valores, uma raiz muito forte. Esse sindicalismo teve um papel importantíssimo. Sofreu um baque violento com o golpe militar. No primeiro ano do golpe foram 430 intervenções em sindicatos. O sindicato ficou totalmente amordaçado, mas foi se recuperando a partir das fábricas. E teve um papel importante na luta pelo fim do regime militar, na luta por avanço nas conquistas sociais, o que se refletiu na Constituição de 1988, e também na resistência ao neoliberalismo. Com as suas nuances, um setor se converteu, na década de 1990. Outro se adaptou. Mas mesmo assim não tivemos o sindicalismo, majoritariamente, se convertendo ao neoliberalismo, diferente do que ocorreu em outros países. Mesmo na CUT, com o debate interno, nunca vingou a tese de conversão total ao neoliberalismo. Só que eu também acho que o sindicalismo não foi capaz de responder ao neoliberalismo. O sindicalismo teve um papel positivo, mas teve muitos problemas. Se burocratizou, se institucionalizou muito. BF – Como estão os sindicatos em relação ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva? Borges – Eu acho que se junta mais um desafio para o movimento sindical: se tinha a crise estrutural, agora, com o governo Lula, tem outra crise, uma crise teórica, de identidade. O movimento sindical não conseguiu decifrar um enigma: onde se situar, como se relacionar com o governo que saiu das suas lutas. No meu entender, o sindicalismo caiu em dois extremos. Por um lado, o extremo da passividade. Um setor mais ou menos dizendo “atingimos o paraíso”. Lula faz tudo. Fiquemos quietos. Qualquer crítica pode desestabilizar. Qualquer pressão pode ser ruim. E o outro extremo: esse governo não é nosso, não é socialista, não é proletário, não resolveu todos os nossos problemas. É um governo burguês, imperialista e neoliberal. Pau nesse governo. Então, o movimento caiu nesses dois extremos: o da passividade e o do voluntarismo. Eu acho que o movimento sindical começa a se assentar um pouco mais. Aí a gente agradece a ofensiva da direita. Evidente que o problema da direita não é o Lula, não é o PT, não é a ética, não é a corrupção, não é nada disso. O problema da direita somos nós. Divulgação

bairro. O movimento sindical tem de ter uma postura mais de classe e menos de corpo. Por exemplo, eu acho que o movimento sindical precisa ter compreensão muito elevada sobre os efeitos da chamada globalização neoliberal. E ter uma ação mais internacionalista, de solidariedade internacional. O movimento sindical, às vezes, está tão voltado para dentro que não compreende os efeitos da guerra no Iraque. Não se mete nessas discussões, não participa. Não compreende, por exemplo, o que significa a ação dos Estados Unidos para derrubar o presidente Hugo Chávez na Venezuela. Outro exemplo: não discutimos o orçamento do ano que vem. Só que o orçamento de um país é o que determina como se arrecada e como se gasta. O orçamento reflete o que são as classes de um país.

Agência Brasil

Rosângela Ribeiro Gil de Santos (SP)

Quem é Altamiro Borges é jornalista, integrante do Comitê Central do PC do B, editor da revista Debate Sindical e autor de vários livros, como Era FHC - A regressão do trabalho (junto com Márcio Pochmann), Venezuela: originalidade e ousadia, Encruzilhadas do Sindicalismo, editados pela Editora Anita Garibaldi.


Ano 3 • número 148 • De 29 de dezembro de 2005 a 4 de janeiro de 2006 – 9

SEGUNDO CADERNO INTOLERÂNCIA

O Muro da Vergonha de Bush da Redação

A

Câmara dos Deputados estadunidense aprovou, no dia 16 de dezembro de 2005, o projeto de lei de controle fronteiriço considerado pelos críticos como o mais “atroz” dos tempos recentes. As medidas ratificadas crimininalizam os 11 milhões de indocumentados (como são chamados os migrantes ilegais) que residem nos Estados Unidos. Será construído ainda um muro de mais de mil quilômetros na fronteira com o México. Foi descartada qualquer hipótese de regularizar a permanência dos trabalhadores em solo estadunidense. A Casa Branca expressou apoio à medida, apesar da intensa oposição da Câmara do Comércio, da Igreja Católica e de agrupações nacionais e organizações de direitos humanos. A proposta precisa ainda ser aprovada pelo Senado, que a discutirá no início de 2006. Os críticos têm a esperança de obter, nessa instância, algum acordo sobre um programa de trabalhadores temporários. No entanto, se não houver consenso e permanecer a polêmica sobre a medida, prevê-se que a discussão seja prorrogada para depois das eleições presidenciais, em novembro. O próprio Partido Republicano está dividido. Há políticos mais moderados que defendem uma regularização temporária para os trabalhadores migrantes e os ultraconservadores que desejam medidas ainda mais duras contra os indocumentados. Mesmo assim, os

Fotos: Indymedia/ Tijuana

Câmara dos Estados Unidos apóia projeto de lei que criminaliza e endurece política contra migrantes

Em Tijuana, fronteira do México com os Estados Unidos, entidades de direitos humanos repudiam projeto de construção do muro de mais de mil quilômetros

grupos antiimigrantes mostraram força e aprovaram o projeto de lei na Câmara por 239 votos a 182.

CRIMINALIZAÇÃO O projeto considera que estar nos Estados Unidos ilegalmente é um “delito” em vez da atual qualificação de “violação civil”, mais amena. Aprovou-se também que serão construídos muros onde houver o maior índice de entrada de migrantes na fronteira com o México. Serão duas paredes elevadas, divididas por uma imensa vala, com câmeras, iluminação e sensores. Se o projeto for aprovado pelo Senado da forma atual, os empresários terão também

a obrigação de verificar o status legal de todos os seus trabalhadores por meio do banco de dados do Seguro Social e do Departamento de Segurança Interna. Também será negada a nacionalidade estadunidense aos filhos de mexicanos que nascerem nos Estados Unidos. Os deputados propuseram ainda uma emenda que permite às forças de sergurança pública atuarem como agentes de migração. As medidas, no entanto, não parecem contar com aval da população. Uma pesquisa feita pela rede de televisão ABC e pelo diário The Washington Post mostrou que 58% dos estadunidenses desaprovam o

BOLÍVIA

projeto de reforma migratória, que conta com apoio de Bush para recrudescer a segurança fronteiriça e o controle dos indocumentados. No México, o presidente Vicente Fox – aliado inconteste de Bush nas questões hemisféricas – analisou que a aprovação das medidas é um “sinal de confiança” de que em 2006 poderá ser negociado um acordo migratório com os Estados Unidos. A postura tímida do mexicano gerou críticas internas. O presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), José Luis Soberanes Fernández, cobrou uma posição mais firme de Fox. “Mais que palavras, ele deve

MEMÓRIA DO SAQUE

Um passeio pela realidade boliviana

Qual os possíveis desdobramentos para o povo boliviano da vitória de Evo Morales nas eleições presidenciais? Como isso repercute nos processos de integração latino-americana? Para o professor Javier Garcia, as perspectivas são boas. O pesquisador prevê que a Bolívia ingressará em um ciclo de transformações sociais e democráticas. Garcia cita também a origem aymará de Morales como um fator que particulariza o processo boliviano na comparação com outras lideranças populares que chegaram ao poder na América Latina, como Hugo Chávez e o próprio Lula. Na Bolívia, os indígenas são mais de 70% da população, mas nunca chegaram à Presidência do país. “É um momento de profundas mudanças qualitativas, de uma nova relação entre os países latino-americanos e as potências mundiais”, avalia Garcia. Brasil de Fato – O que a vitória de Evo Morales significa para o povo boliviano? Javier Garcia – Significa o reconhecimento étnico de um setor historicamente marginalizado e excluído, além de uma enorme vontade de acabar com uma série de governos cujos resultados não foram positivos. BF – Que tipo de mudancas podem ocorrer com a entrada de Morales no governo boliviano? Garcia – Em primeiro lugar, uma mudança econômica, a partir da recuperação dos recursos naturais, geração de empregos e investimentos na industrialização. Em segundo, uma profunda mudança na sociedade boliviana, com a participação de todos os setores sociais na tomada de decisões. E por último, mudanças na política, por meio da recuper-

Fabio Mallart

Um novo ciclo de transformações Fabio Mallart especial de Cochabamba (Bolívia) para o Brasil de Fato

recorrer ao protesto diplomático e à denúncia internacional”, opinou. Para Fernández, é preferível um governo que confronte os Estados Unidos em vez de um que adote a complacência com suas arbitrariedades. “Como país, fomos humilhados e as medidas aprovadas vão nos prejudicar”. Segundo o presidente da CNDH, a migração é um fenômeno econômico para o qual se deve buscar outras saídas que não seja a criminalização, como fazem os Estados Unidos e o próprio México em relação aos centro-americanos. (La Jornada, www.jornada.unam.mx, e Prensa Latina www.prensa-latina.com)

da Redação

Indígenas comemoram vitória de Morales, que promete mudanças na sociedade

ção do Estado, que hoje está totalmente ultrapassado e falido. BF – Qual a principal diferença entre Evo Morales e outros governantes de esquerda da América Latina, como Lula por exemplo? Garcia – Evo traz consigo uma condição étnica para a política. A grande diferenca é que Morales é indígena e possui uma caracteristica marcante, ele representa a grande maioria camponesa do país. BF – O que significa a vitória de Evo Morales para a grande maioría indígena que vive na Bolivia? Garcia –- O principal elemento será a participação dos indígenas nas estruturas de poder do país, na burocracia do Estado. Nesse caso, trata-se de governar com eles, uma verdadeira democracia participativa. BF – Qual o futuro das empresas transnacionais que aqui estão? A petroleira Repsol, por exemplo, já apresentou uma queda em suas ações na bolsa de Madri... Garcia – Isso é produto de uma

desconfiança em relação ao governo de Evo, principalmente porque as empresas e o mercado sabem que os contratos serão revistos. Temos que ver os dois lados da moeda. Os contratos que estão em vigor favorecem única e exclusivamente as empresas estrangeiras. Que seja bom para os dois lados, para a Bolívia e para as empresas. BF – O que pensa sobre o atual momento da América Latina com tantos partidos de esquerda chegando ao poder? Garcia – É um momento de profundas mudanças qualitativas, de uma nova relação entre os países latino-americanos e as potências mundiais. O momento nos diz que, agora, vamos pensar um pouco mais em nós, nos nossos interesses e no povo latino-americano.

Quem é Javier Garcia é cientista político e mestre em Ciências Sociais pela Universidade de San Andrés, em La Paz.

O primeiro presidente indígena da Bolívia recebe um país esquecido e saqueado. Ninguém que defenda a democracia se animaria a dar uma explicação com um mínimo de credibilidade a respeito do fato de que a Bolívia, um país majoritariamente habitado por indígenas, nunca foi governado por algum deles. O triunfo eleitoral de Evo Morales foi contundente, mas vem aí uma etapa delicada porque o cocalero recebe um país socialmente esquecido e economicamente saqueado. Abaixo, segue um passeio pela realidade boliviana feito a partir de dados do Banco Mundial: A população indígena representa a maioria na Bolívia, alcança 62% do total. Nas áreas rurais, 72% da população fala línguas indígenas, contra 36% das zonas urbanas; Entre 1997 e 2002, as taxas de pobreza “diminuíram” levemente tanto para a população indígena como para a não-indígena: de 75% a 74% e de 57% para 53%, respectivamente. Em 2002, as taxas de pobreza rural e urbana eram muito mais altas entre a população indígena do que entre a não-indígena (86% comparado com 74% nas zonas rurais e 59% contra 47% nas zonas urbanas); Nas áreas rurais, a extrema pobreza aumentou entre a população indígena ( de 65% a 72%), mas “diminuiu” levemente entre os não-indígenas (de 53% a 52%); 10% dos bolivianos mais ricos consomem 22 vezes mais que os 10% mais pobre. Quase dois terços da população indígena se encontram entre os 50% mais pobres. Se os ganhos forem distribuídos equitativamente, a po-

pulação indígena da Bolívia teria uma renda per capita equivalente ao dobro da não-indígena; Quase um terço dos indígenas empregados não recebe remuneração por seu trabalho, comparado com 13% dos não-indíegnas. A maioria do trabalho não remunerado é realizado pelas mulheres; A população não-indígena empregada ganha cerca de 140 dólares por mês, enquanto que os indígenas empregados obtém apenas 45% desta quantia (63,5 dólares); A população indígena tem 3,7 anos a menos de escolaridade (5,9) que a não-indígena (9,6). O analfabetismo está particularmente concentrado entre a população indígena feminina e afeta uma em cada quatro mulheres maiores de 35 anos. As taxas de assistência em saúde são baixas em geral, mas os indígenas em particular têm menos acesso a cobertura de saúde pública que os não indíegenas (10% comparado com 14%) assim como menos acesso a cobertura de saúde privada (2% contra 5%). (La Jornada – www.jornada.unam.mx)


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AMÉRICA LATINA MÉXICO

Uma nova estratégia de luta O

movimento zapatista vive uma nova fase. E lança mão de uma nova estratégia. Em junho de 2005, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) divulgou a Sexta Declaração da Selva Lacandona, abandonando a busca do poder pela via eleitoral e apostando na consolidação da sociedade civil para pressionar o Estado, seja qual for o partido no governo. “Isso é muito diferente, porque vai contra toda uma tradição de esquerda, de sempre tomar o poder diretamente”, afirma o economista e sociólogo mexicano Gerardo Otero. Ele avalia também a mudança na pauta de reivindicações dos zapatistas, dessa vez de caráter classista e não mais exclusivamente indígena, e explica os porquês das severas críticas do EZLN ao Partido da Revolução Democrática (PRD) de Andrés Manuel López Obrador, favorito na disputa presidencial. Brasil de Fato – Uma das características mais importantes dos movimentos sociais na contemporaneidade é o impacto internacional, os laços com outros países, com outros povos. Como isso se dá com os zapatistas, qual a capacidade deles de criar esses laços e desenvolver relações de solidariedade? Gerardo Otero – A solidariedade internacional está muito sobrevalorizada. Ou seja, é importante, mas não foi determinante para conquistas específicas dos movimentos sociais em seus países. Apesar de o movimento zapatista possivelmente ser um dos que mais solidariedade recebem, isso não ajudou a obter nenhuma vitória. A luta tem que se dar desde baixo, a partir da localidade. Os zapatistas utilizam o termo “caracol” para caracterizar a luta deles a partir de 2003. Eles partem do centro, da localidade, da comunidade e vão fazendo articulações até a parte exterior do caracol, que é a esfera internacional. É uma imagem do que creio que devam ser os movimentos. Não é a solidariedade internacional que vai determinar o êxito ou o fracasso das lutas. BF – Hoje, no México, como o cidadão comum vê o movimento zapatista? Otero – Com bastante ambivalência. O mexicano comum, se é que existe, tem ainda muita esperança na via eleitoral. As pessoas têm esperanças de que Obrador – considerado pela maioria como de centro-esquerda – ganhe as eleições presidenciais, em julho de 2006. No entanto, os zapatistas desqualificaram todos os partidos e candidatos, considerando-os de direita. O EZLN está lançando a chamada “outra campanha”, em contraposição às que serão realizadas pelos candidatos à Presidência. Em junho de 2006, lançou a Sexta Declaração da Selva Lacandona, onde faz uma reconsideração da conjuntura internacional, uma nova caracterização do capitalismo mundial e se propõe a aglutinar as forças de esquerda. Por isso os zapatistas estão entrando em conflito com muitas forças dentro da esquerda mexicana – como a União Nacional de Trabalhadores (UNT) –, que estão apostando no terreno eleitoral, em Obrador. Como os zapatistas criticaram muito fortemente Obrador e o partido que o representa...

Douglas Mansur

Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski e Marcelo Netto Rodrigues da Redação

latinamericanstudies.org

Os zapatistas deflagram uma campanha para pressionar o Estado, fortalecendo a sociedade civil

Quem é

Integrantes do Exército Zapatista de Libertação Nacional, que buscam construir um grande bloco anticapitalista

BF – Quais as críticas mais severas a Obrador? Otero – As críticas mais severas são na verdade dirigidas ao PRD. E o pior é que muitas são certeiras. Porque o PRD apoiou, pelo menos no Senado, a lei indígena que não satisfez os zapatistas. O mesmo partido foi favorável à chamada Lei Monsanto, que permitiu a liberação de transgênicos no país. O Marcos (subcomandante Marcos, principal porta-voz do EZLN) definiu o PRD como o partido dos erros táticos. Ou seja, por alguma meta estratégica de maior importância, o PRD cometeu esses erros. BF – Essa “outra campanha” significa não apostar no processo eleitoral? Os zapatistas vão apostar nesse processo, apesar das críticas? Otero – Não. Os partidos existentes atualmente os levaram a isso. Houve alguns acordos, pelo menos verbais, entre dirigentes do PRD e os zapatistas, mas na hora das votações no Congresso, os dirigentes do PRD não cumpriram o combinado. Os outros partidos sequer são tão criticados, não porque não são criticáveis, mas porque os zapatistas não esperavam muito deles, e sim do PRD, que era o partido que se dizia de esquerda. Por isso, a aposta dos zapatistas é no sentido de consolidar a sociedade civil, para que haja uma mudança na correlação de forças com o Estado, para que a sociedade imponha sua vontade ao Estado.

Não é a solidariedade internacional que vai determinar o êxito ou o fracasso das lutas BF – A razão não é a crescente repressão do governo do presidente Vicente Fox ao movimento, a militarização das áreas em Chiapas? Isso não criou espaço para a “outra campanha”? Otero – Em parte foi isso, mas também uma coisa que influiu muito foi o tipo de resposta do PRD. Quando Obrador era presidente de partido, reuniuse com Marcos, e falaram da possibilidade de uma aliança tática no terreno eleitoral. Mas, depois disso, ocorreram muitas coisas, incluídas algumas que os zapatistas consideraram traição. Então, não é que os zapatistas sempre estiveram contra a via eleitoral. Na verdade, se alguém ler a primeira declaração do

EZLN, vai ver que os zapatistas eram atores institucionais. Eles consideravam o presidente Ernesto Zedillo Ponce de Leon (1994-2000) um usurpador, porque havia chegado ao poder via uma eleição roubada, ilegítima. Por isso pediam ao poder legislativo e ao poder judicial que o tirassem do poder. Nesse momento, pelo menos, eles estavam apelando a essas duas outras instituições principais de uma República que fizessem seu papel. BF – Quem é Marcos? Otero – Não sei quem é Marcos, mas o ex-presidente Zedillo disse que Marcos era o filósofo Rafael Sebastián Guillén Vicente, exprofessor da Universidad Autónoma Metropolitana, da Cidade do México. Mas Marcos nunca admitiu. Inclusive, quando viu o retrato que apresentaram a ele, disse: “Eu sou mais bonito”. BF – Suponhamos que Marcos seja Rafael. Sua atitude foi correta de abandonar a academia e partir para a prática? Otero – Aí depende do ponto de vista. Marcos, como os outros revolucionários, chegou a Chiapas com uma ideologia que, depois de conviver com os indígenas, foi alterada. Tinha uma concepção leninista bastante ortodoxa, vanguardista, da revolução. Inclusive, Marcos disse em uma entrevista que fez com um jornalista francês, Yvon Le Bot, que está publicada em livro... BF – O Sonho Zapatista? Otero – O Sonho Zapatista, sim. Marcos disse que eles chegaram do Norte e foram derrotados ideologicamente porque aceitaram os modos de tomada de decisões das comunidades indígenas. Essa é uma questão bastante singular, porque agora o Exército Zapatista é um tipo de organização não-vanguardista, que não está lutando diretamente pelo poder estatal, e sim apostando na consolidação da sociedade civil. Isso é muito diferente, vai contra toda uma tradição de esquerda, de sempre tomar o poder diretamente. BF – A princípio, parecia que a prioridade de Marcos e dos zapatistas era o território onde estavam. Mas hoje parece que a questão transcendeu para o México como um todo. Otero – Aí se vê um dos paradoxos do EZLN. Na primeira declaração, o discurso era classista, ou seja, havia reivindicações classistas e não se mencionava a questão indígena. No entanto, nos primeiros dias depois da

insurreição, eles ganharam um grande apoio das organizações indígenas. A partir desse apoio, e sobretudo a partir de um Fórum Nacional Indígena que o EZLN convocou em janeiro de 1996, o interlocutor principal dos zapatistas passou a ser o povo indígena. O primeiro grande tema das negociações entre Estado e zapatistas foi o direito e a cultura indígena. Essa é a novidade da Sexta Declaração da Selva Lacandona. Por terem ficado ilhados regional e culturalmente no tema indígena, em junho de 2005 eles retomam as reivindicações classistas e convocam a formação de um grande bloco popular democrático classista, decididamente anticapitalista. Então, aí há uma mudança muito importante.

Eles apostam em consolidar a sociedade civil, para mudar a correlação de forças com o Estado BF – Como foi o processo de mudança das reivindicações indígenas para as classistas novamente? Por que essa mudança? Otero – Aconteceram dois momentos anteriores importantes. Um foi em 2001, quando os zapatistas passaram por todos os Estados indígenas para chegar à Cidade do México e falar ante o Congresso da União (Câmara dos Deputados) em favor da lei indígena que, desafortunadamente, foi aprovada sem os componentes principais. O outro momento importante foi o silêncio quase absoluto de 2001 até agosto de 2003, quando lançam os “caracóis”, e as Juntas de Bom Governo, que são como as administrações regionais dos municípios autônomos em rebeldia. Aí, houve um comunicado muito importante em que Marcos disse que os zapatistas estavam decepcionados com a comunicação com a sociedade civil porque, em vez desta escutar o que os zapatistas necessitavam, mandava, em solidariedade, o que já não precisavam mais. Então, de agosto de 2003 a junho de 2005, eles desenvolveram muito fortemente sua organização a nível municipal e também um programa de educação, tanto primária, quanto para adultos. Ou seja, uma posição muito clara de formar quadros zapatistas. BF – Desde junho, quais vêm sendo, na prática, as atividades

Economista e sociólogo mexicano, Gerardo Otero vive há 15 anos em Vancouver, no Canadá, onde trabalha como professor de sociologia e diretor do Programa de Estudos Norte-Americanos da Simon Fraser University. Há 25 anos estuda a questão agrária na América Latina, especialmente no México, e desde 1994 acompanha o movimento dos zapatistas mexicanos.

para a nacionalização da luta? Otero – Até o momento, e até onde sei, as atividades têm sido principalmente propagandísticas, com chamados, mas ainda não há uma campanha, propriamente. Supõe-se que a “outra campanha” vá começar mais ou menos junto com as campanhas eleitorais já mais abertas dos candidatos à presidência. BF – Quais são os objetivos do bloco democrático? É, nesse ponto, um objetivo estatal? Passa por uma mudança de estratégia? Otero – O que pretendem os zapatistas é consolidar o bloco popular democrático para que haja uma sociedade civil muito mais forte, que possa pressionar a qualquer dos três partidos que fique no poder. Independentemente de qual deles fique, existirá uma sociedade civil muito mais consolidada para levar adiante um programa reivindicado por eles. BF – Está muito longe disso? Otero – O único problema é o que mencionei há pouco. O terreno da sociedade civil está ocupado por outras forças, como a UNT, outros movimentos sociais. A esperança é de que todos se unam para lançar um programa mais avançado do que o de qualquer partido. BF – No Canadá, a sociedade conhece os zapatistas, ou eles são conhecidos só nos círculos acadêmicos? Otero – Só nos círculos acadêmicos. Aconteceram várias manifestações quando o Estado mexicano se lançou à ofensiva contra os zapatistas, em janeiro de 1995, mas não éramos mais do que umas cem pessoas. Não há tanta consciência. BF – Há uma articulação dos movimentos sobre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca)? Otero – Há várias organizações que se opõem ao livre-comércio, fundamentalmente os sindicatos e algumas ONGs. Mas o Canadá vem enfrentando o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) muito melhor do que o México. Inclusive ganhou muitos empregos. E quando a economia dos Estados Unidos entrou em declínio, em 2001, o Canadá seguiu crescendo em um ritmo maior do que o de todos do G7 (grupo dos sete países mais ricos do mundo). Aí se vê o enorme contraste entre o Canadá e o México.


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INTERNACIONAL ÁFRICA

Reforma agrária radical do Zimbábue Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski e Marcelo Netto Rodrigues da Redação

Arquivo Brasil de Fato

A alteração da estrutura fundiária do país só foi possível por meio da radicalização das ocupações de terra

A

Brasil de Fato – Quais os números mais recentes da reforma agrária no Zimbábue? Sam Moyo – O número de pessoas que receberam terra, até o momento, está na faixa de 155 mil famílias. Cerca de 140 mil eram originalmente famílias semterra; as outras 15 mil são beneficiárias das chamadas “novas fazendas voltadas ao comércio” – áreas muito menores do que as ocupadas pelos latifúndios. Antes da independência do Zimbábue, em 1980, os latifundiários detinham 15 milhões de hectares das melhores terras, enquanto os camponeses detinham 15 milhões de hectares das piores terras. Os grandes proprietários também tinham nas mãos as principais infra-estruturas – eletricidade, estradas e barragens. BF – Como era dividida a população do Zimbábue à época da independência? Moyo – Havia 8 milhões de habitantes, sendo 6 milhões de camponeses. Tínhamos, de um lado, 1 milhão de famílias camponesas vivendo nos piores 15 milhões de hectares e, do outro, 3.500 latifundiários com o controle de 4 mil latifúndios nos melhores 15 milhões de hectares. Todos eram brancos, 80% ingleses com cidadania dupla, uns 200 alemães, uns cem italianos, uns cem espanhóis, uns 50 holandeses, uns 30 franceses e algumas centenas de sul-africanos. Isso define o caráter internacional da reforma agrária no Zimbábue. Ainda mais levando-se em conta que temos os britânicos como os principais atores desse conflito. BF – Qual era o tamanho dos latifúndios em comparação com as terras dos camponeses? Moyo – Os latifúndios tinham em média 2 mil hectares, enquanto uma família camponesa possuía 3 hectares para cultivo individual, podendo chegar a 12 hectares se o cultivo fosse coletivo. É importante notar que existiam 30 grandes corporações de agronegócio. Juntas, detinham 500 fazendas, com tamanhos variáveis entre 5 mil e 30 mil hectares. BF – Qual o tamanho do Zimbábue em hectares? Moyo – São 39 milhões, sendo 9 milhões de hectares não agricultáveis, espalhados em áreas de conservação, como parques e florestas controladas pelo Estado. BF – O que motivou a radicalização da reforma agrária? Moyo – É importante entender que a reforma agrária no Zimbábue é a confluência de um processo de radicalização, inflamado, primeiro, pelas táticas de confronto usa-

REPÚBLICA DO ZIMBÁBUE Superfície: 390.760 km² Capital: Harare Nacionalidade: zimbabuana População: 12,6 milhões Governo: república presidencialista Presidente: Robert Mugabe Línguas: inglês (oficial), shona, ndébélé Religiões: católica, protestante, anglicana, tradicionais Moeda: dólar do Zimbábue Com a reforma agrária promovida por Robert Mugabe, os negros têm acesso às terras antes dominadas pelos brancos

das pelos latifundiários frente a um legado de conflitos raciais. Depois, pela resposta negativa do governo britânico – dada definitivamente em 1997. com a chegada ao poder do senhor (primeiro-ministro Tony) Blair e do seu New Labour (novo Partido Trabalhista britânico), de direita – à demanda do movimento nacionalista. Esse movimento sempre considerou como princípio que o colonizador era o responsável original pela expropriação da terra e que, portanto, se houvesse algum tipo de compensação monetária aos latifundiários, eles também teriam que ser os responsáveis. O terceiro fator da radicalização foi uma rebelião interna dentro do partido que está no poder no Zimbábue, impulsionada pelos veteranos da guerra da independência, que decidiram criar sua própria associação por uma independência de fato, um tipo de movimento social. BF – Contra o que eles se rebelaram se oficialmente a independência frente ao jugo britânico já havia se dado em 1980? Moyo – Eles se rebelaram contra o processo neoliberal que começou a tomar conta do Estado e do partido – do qual eles próprios haviam feito parte durante a guerra pela independência nos anos 1970 – quando suas demandas por mais terra e por alteração nas políticas neoliberais foram negadas. O governo e o partido se sentiram pressionados e se viram obrigados a radicalizar o processo de reforma agrária em resposta tanto à demanda dos veteranos de guerra quanto ao antagonismo dos latifundiários e do governo britânico – o qual se recusou a pagar qualquer quantia ao governo federal. BF – Qual foi a reação dos latifundiários às expropriações? Moyo – Uma vez que a radicalização começa, deixando de lado a política de “mercado de terras”, a mídia e os latifundiários se aliam. Em um curto espaço de tempo, emerge, do nada, um novo partido de oposição financiado por “ONGs internacionais” e por esses “Fundos que apóiam a democracia”. Mas esse partido também é apoiado pelos latifundiários. Essa era a dinâmica operada pelos latifundiários no início da radicalização: apoiavam financeiramente esse partido e tentavam mobilizar trabalhadores rurais para que votassem nele. BF – Hoje, quantos fazendeiros brancos ainda têm terra? Moyo – Em torno de 600, 700. BF – Como o governo decide quais fazendas expropriar? Moyo – Há várias formas: se são

latifúndios, se são terras que não estão produzindo, se são fazendas nas mãos de fazendeiros ausentes, em nome de múltiplos proprietários, ou se são terras próximas a áreas que estejam abarrotadas de famílias sem-terra. Antes desses critérios, somente as piores terras eram postas à venda no “mercado” – que, ao longo de 15 anos, só habilitou 3 milhões de hectares para a reforma agrária. Mas a questão principal é que o movimento de ocupações de terra tomou conta do processo e os critérios formais acabaram em segundo plano. O processo agora combina ocupações e expropriações de terra, num cenário em que o Estado tem de acompanhar as ocupações de terra para formalizar as expropriações. Foi essa pressão crescente, durante cinco anos, que fez o governo expandir as expropriações. BF – Como os sem-terra sabem quais fazendas devem ocupar? Moyo – Em 1997, o Estado fez uma lista com 1.500 fazendas para ser expropriadas, num total de 4 milhões de hectares. Sessenta e cinco por cento delas se encaixavam nos critérios de expropriação. Mas, nesse mesmo ano, houve um grande fracasso político: uma mobilização da oposição contra essa política foi encampada pelo governo que, apesar da demanda dos veteranos de guerra, resolveu revisar o plano, propondo que cinco milhões de hectares fossem redistribuídos ao longo de cinco anos. Enquanto isso, de 1997 até 2000, os veteranos de guerra iniciaram a primeira fase das ocupações. Por isso, ocorreram confrontos diretos em algumas fazendas, houve morte de seis fazendeiros e de dez empregados de fazendas. Esse fato acabou superdimensionado, com o grande barulho feito pela mídia e pela comunidade internacional, transformando-se numa gigantesca batalha política-ideológica. BF – Como reagiu o governo do presidente Robert Mugabe? Moyo – Dentro do governo existiam radicais que diziam: “Vamos encorajar as ocupações de terra e ajudá-las, mesmo que indiretamente”. Mas o movimento de ocupações de terra pegou o governo de surpresa. Atingiu uma extensão que ninguém podia imaginar: mobilizou camponeses, operários, sem-terra, pessoas sem salário e até uma parte da classe média, que à sua maneira também apoiava a retomada da terra. Ou seja, a mobilização transcendeu os limites de classe. O governo estava disposto a radicalizar, mas não pensava ir tão longe quanto a pressão social foi capaz de exigir.

BF – Qual o papel do movimento organizado pelos veteranos de guerra nesse processo? Moyo – Na prática, esse movimento ganhou poder sobre o poder local, em algumas áreas. Essas pessoas foram soldados anteriormente, lutaram nessas áreas, o que lhes dava uma capacidade de mobilização social para desafiar o poder do Estado, dizendo: “Isso é muito burocrático e colonial. Nós não vamos seguir essas regras”. BF – E o Exército? Moyo – O governo suspeitava de que a oposição, junto com os fazendeiros, tentasse uma mobilização militar. Então mandou o Exército conter quaisquer aspirações nesse sentido. O Exército é muito leal ao Estado. Os soldados não são simples soldados, mas homens politicamente treinados durante a luta de guerrilha pela independência. Por outro ângulo, alguns dos que foram líderes também estão se tornando classe média ao se transformar em beneficiários das “novas fazendas voltadas ao comércio”, assim como outras pessoas de classe média. De certa forma, está sendo criada uma nova estrutura para fazendas de porte médio, contra os camponeses. BF – O Exército dava proteção às ocupações, ao lado dos trabalhadores rurais? Moyo – Não. As ocupações aconteciam ou lideradas diretamente pelos veteranos de guerra – que iam a uma comunidade, conversavam com o líder tradicional, que, por sua vez, convocava seus militantes para mobilizar famílias semterra da região para participar de reuniões de base, e realizavam a ocupação. Ou por outros grupos que, depois do sucesso dessa experiência, começaram a ocupar sem os veteranos de guerra, agregando até pessoas pobres das áreas urbanas. Não há um movimento nacional unificado como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil. BF – Existe alguma ajuda financeira para as famílias assentadas? Moyo – Quando o processo se inicia, em 1997, há um colapso nas relações entre o Zimbábue, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. O Zimbábue é espremido por todos os lados. Em três, quatro anos, o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 30%, o que teve um impacto nos salários, sem citar outras áreas. Além disso, nós estamos passando por um período de seca de três anos. Então, a ajuda não tem sido suficiente. BF – Quantos camponeses ainda não receberam seu pedaço de terra? Moyo – Em torno de 15%.

BF – Qual o impacto da reforma agrária do Zimbábue em países vizinhos, em especial na África do Sul, que decidiu implantar um novo plano de reforma agrária com devolução de terras aos negros até 2010? Moyo – A idéia de criar um movimento sem terra na África do Sul, de fato, se consolidou nos anos 2000, 2001, no ápice das ocupações de terra no Zimbábue. Os latifundiários da África do Sul têm laços estreitos com os latifundiários do Zimbábue, assim como com os de outros países, porque os grupos de colonizadores vieram ao mesmo tempo. O governo da África do Sul foi despertado pelos fatos no Zimbábue, mas a pressão interna de cidadãos comuns sul-africanos tem sido decisiva para fazer o governo olhar para o problema. Tem ocorrido uma radicalização no pensamento: “Nós não temos que fazer exatamente como o Zimbábue fez, temos que fazer mais”. Hoje, na África do Sul, há um debate intenso de como introduzir a idéia de expropriação de terra na sociedade. É um fato importante, uma vez que a palavra “expropriação”, nos países ao sul da África, assim como no Brasil, sempre foi encarada como um palavrão. Os primeiros passos também começam a ser dados na Namíbia. E no Quênia, onde os massai começam a dizer: “Vamos tomar nossa terra de volta das mãos dessas grandes companhias que vão ter seus contratos vencidos agora, após 99 anos de exploração”, e tocam o seu gado para entrar nessas áreas. Douglas Mansur

imprensa mundial faz questão de retratar o presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, como um ditador inconseqüente que, por vontade própria, decidiu impor uma reforma agrária radical a seu país. O expediente é parecido com o utilizado para atingir o presidente de Cuba, Fidel Castro. Nem uma linha esclarecendo que, na realidade, o Estado e o próprio Mugabe se viram forçados a vir a reboque de ocupações de terra organizadas por ex-integrantes do governo – que deixaram o poder descontentes com a via neoliberal que este começava a trilhar. O geógrafo Sam Moyo, que esteve no Brasil para um ciclo de palestras, aprofunda os detalhes sobre essa reforma agrária que, em suas palavras, tem ido tão longe “quanto a pressão social é capaz de exigir”.

Quem é O geógrafo Sam Moyo é diretor-executivo do Instituto Africano para Estudos Agrários, com sede em Harare, capital do Zimbábue. Seus escritos sobre a radicalização da reforma agrária nesse país ao sul do continente africano têm servido como “retrato real” de um processo exemplar – que nas páginas dos jornais do mundo propositadamente vem sendo tratado como uma aberração contra “coitados latifundiários brancos”.


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INTERNACIONAL ORGANIZAÇÃO POPULAR

Estamos em plena acumulação de forças Nilton Viana da Redação

U

m religioso que há muito volta sua vocação na direção do combate às injustiças geradas pelo capitalismo, o sociólogo belga François Houtart se declara “marxista por convicção, contestador por necessidade”. Em sua recente visita ao Brasil, acompanhou de perto a luta das populações oprimidas – como os povos indígenas que disputam a posse de suas terras com transnacionais – e avaliou o papel do Brasil junto a nações latino-americanas como importante peça de resistência ao domínio estadunidense no continente.

Douglas Mansur

Brasil de Fato – Como o senhor avalia a atual conjuntura internacional? François Houtart – A conjuntura internacional segue dominada pelos interesses do capital. O neoliberalismo, apesar dos fracassos cada vez mais visíveis, continua a se impor. E em certa medida, justamente porque está vivendo muitas crises, tem a tendência de impor mais medidas jurídicas de limitação dos direitos civis, às vezes humanos, e também de utilizar meios militares. Ao mesmo tempo, percebe-se que as resistências aumentam no mundo inteiro. Isso é uma coisa interessante. Evidentemente não significa que todas essas resistências são conscientes das questões profundas, muitas estão ligadas aos problemas cotidianos das pessoas. Chamoume a atenção, por exemplo, uma ocupação de indígenas, aqui no Brasil, a propósito da atuação de uma grande empresa. Interessante, também, é ver os argumentos que utilizam essas empresas para justificar a sua atuação, argumentos totalmente neoliberais. Falam em competência, que a indústria nacional tem que competir com outras indústrias no mundo e por isso não importa que a natureza seja destruída. Com isso, destroem grupos humanos inteiros. É a ditadura da competência. A gente vê no mundo todo. Acabo de dar um curso na Universidade Nacional do México sobre as guerras na África Central, que resultaram em mais de 3,5 milhões de mortos. É uma coisa incrível quando se pensa no que isso significa e no silêncio do mundo. Em grande parte é uma guerra para se apropriarem das riquezas e dos recursos naturais. No centro da África se encontram certos metais importantes hoje,

Quem é O belga François Houtart é sacerdote, professor emérito da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, diretor do Centro Tricontinental de Documentação e Investigações sobre questões econômicas, sociais, políticas e culturais da África, da América Latina e da Ásia, secretário executivo do Fórum Mundial de Alternativas, integrante do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial de Porto Alegre e presidente da Liga Internacional pelo Direito e pela Liberdade dos Povos.

Paulo Pereira Lima

Para o sociólogo belga Houtart, as resistências aumentam, indicando que é hora de unir ações contra o imperialismo

Fórum Social de Porto Alegre: resistência ao neoliberalismo em várias partes do mundo

necessários para a indústria espacial, ou para os telefones celulares e para a indústria eletrônica. Isso é uma realidade. No entanto, como disse anteriormente, as resistências começam a se multiplicar por muitas partes e muitos grupos sociais. Vimos o que aconteceu em Paris recentemente, a greve geral na França e a rejeição ao pacto constitucional europeu, em parte porque fixava uma orientação neoliberal da economia. Mas essa multiplicação de resistências não significa que exista uma acumulação de forças suficiente para construir um pólo de força que poderia realmente mudar as coisas. Ainda estamos num processo de conscientização, por uma parte, e, por outra, de uma certa acumulação de forças que, felizmente, tem algumas vitórias concretas. Penso, por exemplo, que toda a luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) obteve um resultado absolutamente claro e que foi o resultado de, justamente, um acúmulo de forças.

mentos Sociais no Fórum, em uma reunião em Genebra, propôs quatro linhas de ação comum – por exemplo, sobre a reunião do G8 em São Petersburgo ou sobre as decisões da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou sobre as reuniões que vão se realizar em 2006 do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Mas me parece importante criar um grupo para atuar em campanhas de solidariedade e, também, em concordância com um programa mínimo sobre o que não podemos aceitar ou o que devemos. Há várias iniciativas desse tipo, em particular na América Latina. Por exemplo, a campanha contra a Alca, ou o que acaba de ser formado agora no México, que se chama “a promotora”, isto é, 50 organizações que acordaram um programa mínimo comum. E a idéia é de não entrar, no momento, em grandes considerações que a princípio provocariam divisões entre as correntes.

BF – O Fórum Social Mundial é também um catalisador dessas resistências? Houtart – Sim, exatamente. É importante saber que os Fóruns são pontos de encontro e não órgãos de decisão. E não devem ser órgãos de decisão. Se mudarem para isso vão explodir. Porque há correntes diferentes, porque há agentes diferentes, prioridades diferentes. Todos concordarem sobre uma orientação em particular é praticamente impossível. Mas já são mais de cinco anos que os Fóruns se reúnem internacionalmente, continentalmente, nacionalmente. Há uma certa impaciência de muitos movimentos e organizações que fazem parte dos Fóruns e em particular dos de fora. As pessoas que não participam dos Fóruns dizem: “Bom, já faz cinco, seis anos que vocês se reúnem, falam, discutem, cantam, dançam, mas o que acontece? O mundo não muda!” (risos). Existe essa preocupação dentro do Fórum e também dentro do Conselho Internacional do Fórum. E já há vários ensaios para tratar de ver como ir além, respeitando o caráter de encontro, o caráter de diálogo, mas tentando chegar a uma coalizão de forças sobre metas políticas muito precisas e concretas. Por isso, já houve uma discussão no Conselho Internacional de que algumas organizações poderiam propor campanhas conjuntas sobre temas fundamentais como a água, como a privatização dos serviços públicos, a dívida do Terceiro Mundo etc.

Se o Brasil duvidar da necessidade de uma frente sólida frente às ameaças dos EUA, teremos um atraso de dezenas de anos

BF – Os fóruns têm sido muito importantes para as articulações das lutas, principalmente dos movimentos sociais... Houtart – A Assembléia dos Movi-

BF – Como o senhor tem visto as mobilizações na América Latina? Houtart – Há um mês, estive na Argentina, no México, em Cuba e agora no Brasil. Várias coisas chamaram minha atenção. Primeiro, o fato que há uma possibilidade política de resistir à imposição dos Estados Unidos, e eu não falaria de uma frente, mas de uma certa aliança entre países como Brasil, Argentina, talvez Uruguai, Venezuela e Cuba. Isso é muito importante porque pelo outro lado tem gente como (Álvaro) Uribe, na Colômbia, ou (Vicente) Fox, no México, ou (Nicanor) Duarte, no Paraguai, totalmente alienados ao poder dos Estados Unidos. Por isso é importante que o Brasil não mude. Se o Brasil expressa uma certa fraqueza nessa aliança, é o fim. O peso do Brasil é enorme e se o Brasil duvidar da necessidade de uma frente sólida, que não deve se enfraquecer frente às ameaças dos Estados Unidos, teremos um atraso de dezenas de anos. Uma segunda consideração é que alguns desses governos têm políticas exteriores interessantes, por exemplo, na OMC. Mas no interior têm, de fato, políticas neoliberais. É o caso da Argentina, onde (Néstor) Kirchner tem uma política interessante a nível internacional, tenta fortalecer a indústria ou a

produção local mas, seguiºndo a tradição dos peronistas, está fazendo uma política parcialmente populista – favorecendo os grandes grupos de latifundiários. No Brasil tínhamos esperado uma mudança de política e vemos que a lógica fundamental segue como antes. Isso é grave porque significa uma destruição no interior do projeto, já que havia uma grande esperança de construir uma frente no Sul – que tem conseguido, em organismos internacionais, aliarse com a China, com a Índia, com a África do Sul para contrapor-se a algumas das políticas do neoliberalismo. Por dentro, esses países continuam a aplicar essa mesma lógica, sob o pretexto de que não podem fazer outras coisas, ou sob o pretexto ainda mais ilusório, eu até diria estúpido, de dizer que antes de repartir o bolo temos que fazer o bolo crescer, mas tentando fazer o bolo crescer com métodos neoliberais que estão destruindo mais a natureza e destruindo mais ainda os pobres. Finalmente, há uma interrogação muito interessante que vem, particularmente, dos zapatistas. Eles tomaram uma atitude que parece estranha à primeira vista, de desacreditar os três grandes partidos no México (PRI, PAN e PRD), dizendo que nenhum dos três representa os interesses reais do povo e que o PRD está construindo um poder da mesma forma como os outros partidos fizeram no passado. Portanto, votar pelo PRD significa votar de novo por um partido que se constrói baseado na corrupção, que tem como meta o poder e não o serviço, e que reproduz uma classe política que passa de um partido ao outro. BF – Como o senhor avalia as organizações e partidos que têm a via institucional como estratégia para mudar a sociedade? Isso é possível? Houtart – Evidentemente, não é fácil. A via política continua e não podemos estar totalmente ausentes, mas eu acredito que estamos vivendo na América Latina uma fase de reflexão profunda. Porque a experiência, por exemplo, da Nicarágua ou de El Salvador, aqui do Brasil ou do Equador nos faz pensar o que significa transformar uma sociedade. Nesse sentido, é interessante a mensagem dos zapatistas que não dizem, como muitos acham, que não se deve tomar o poder. Não defendem isso. Dizem: sim, se deve exercer o poder, mas de outra forma. E não é com uma política a curto prazo, reconstruindo um partido somente – o que estamos experimentando no Brasil agora, onde se descobre que o PT não é um partido diferente dos outros. A cultura política, fundamentalmente, não tem mudado. Então, a idéia dos zapatistas – evidentemente

influenciados também pelo pensamento dos indígenas, que têm a eternidade frente a eles – é de que o poder se constrói desde baixo e que deve ser democrático, ético, transparente etc. São transformações que levam tempo. É inútil tentar conquistar o poder tal e qual está organizado porque entramos na máquina como existia antes e, dessa forma, não há possibilidade de mudar. Esse pensamento tem algum perigo. O perigo é uma certa desmobilização. O perigo é pensar que “temos a eternidade frente a nós”, enquanto milhões de pessoas morrem de fome. Por outro lado, vemos o exemplo da Venezuela, onde felizmente um movimento tomou o poder para realizar reformas – a alfabetização, a reforma agrária etc. Significa também a irrupção de uma força política fora dos partidos tradicionais. Assim, eu diria que há na América Latina um laboratório extremamente interessante.

Sobre uma força política fora dos partidos tradicionais, eu diria que há na América Latina um laboratório extremamente interessante BF – Mas não corremos o risco de uma apatia da população? Houtart – Efetivamente, o grande dano dessa evolução política é o desânimo, é o desinteresse pela ação política. Frente a essa situação e ao que significa a estrutura do poder como existe hoje, não vejo mais que um caminho, pelo menos um, que é o de se espelhar na ação dos movimentos sociais, que já são um fato político em si mesmos. Por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em relação à reforma agrária, os sindicatos em alguns aspectos salariais, o movimento feminista etc. E evidentemente recriar ou continuar as iniciativas em relação a metas muito concretas, como a Alca. Refazer a política fora das estruturas políticas existentes. Não desanimando as pessoas que estão nessas estruturas, porque podem ajudar de uma maneira ou outra. Ou também construir esse poder a partir do poder local, dos municípios etc. Depois tentar ver como podemos reagrupar protestos e resistências espontâneas mas que não se traduzem em movimentos. Isso acontece em todo o mundo. As pessoas estão prontas para se mobilizar, por exemplo, contra um projeto de privatização da água em determinada cidade ou contra uma barragem em outra, mas não para participar ativamente de um movimento organizado. Então, como obter dessas formas de resistência espontâneas certa acumulação de forças? Eu vejo isso no Sri Lanka, onde há uma espécie de cúpula das organizações camponesas que agrupa mais de cem pequenos grupos, pequenas iniciativas espontâneas. Existe uma representação nacional e se aproveita todas essas forças locais sem forçá-las a entrar num movimento. Finalmente, como redefinir um poder político? A experiência dos zapatistas é interessante. Não digo que têm todas as soluções, mas pelo momento têm colocado uma interrogação. E tentam, também, experimentar uma forma local de reorganização de um poder que vem de baixo, sem ser totalmente ilusório, achando que se pode transformar a sociedade sem tocar o poder de uma forma ou outra.


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DEBATE AMÉRICA LATINA

Emir Sader s movimentos sociais latino-americanos foram os principais protagonistas das lutas de resistência ao neoliberalismo. No México, no Brasil, na Bolívia, no Equador, entre outros países, coube a esses movimentos – diante da renúncia a resistir ou a dificuldades de mobilização por parte dos partidos – o papel principal nas lutas anti-neoliberais. Na primeira fase de aplicação do neoliberalismo, a correlação era muito desfavorável às forças populares. A estabilização financeira obtida imediatamente pela aplicação drástica de planos de ajuste fiscal – que no Brasil teve o nome de Plano Real – deu legitimidade aos governos neoliberais – como os de Carlos Menem, Fernando Henrique Cardoso, Alberto Fujimori, Salinas de Gortari, entre outros –, isolando relativamente os movimentos sociais e a oposição política. Os protestos reuniam setores relativamente limitados – trabalhadores do setor público, movimentos camponeses e indígenas, movimento estudantil –, ainda isolados, pelos efeitos propagandísticos dos plano de ajuste. Isso se deu especialmente ao longo da primeira metade da década de 1990. Na segunda metade, as crises começavam a demonstrar mais claramente os efeitos negativos desses planos – a crise mexicana se deu em 1994, a brasileira em 1999 – e o descontentamento passou a possibilitar maiores manifestações de protesto. A crise argentina de 2001 e as derrotas eleitorais dos principais implantadores dos planos de ajuste fiscal – Menem, o PRI, Fujimori, FHC – marcaram uma virada no consenso existente até então, que encontrou nos Fóruns Sociais Mundiais sua expressão mais clara da necessidade um outro projeto de sociedade. Começou a se impor o ponto de vista dos movimentos sociais, de que a grande maioria não recebe benefícios da globalização liberal, de que se impõe a necessidade da substituição de metas econômico-financeiras por metas sociais. Começaram a ser eleitos governos apoiados na oposição aos planos de ajuste – Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, Néstor Kirchner em 2003, Lucio Gutiérrez em 2003, Tabaré Vázquez em 2004. Parecia que as lutas de resistência dos movimentos sociais permitiriam a superação do modelo neoliberal. Passados alguns anos, nenhum desses governos rompeu com esse modelo, mantendo a prioridade de metas econômicofinanceiras. Um deles – Gutiérrez – foi até derrubado pelos mesmos movimentos sociais que o haviam elegido. Qual a particularidade do ano de 2005 nessa longa caminhada dos movimentos sociais, das forças políticas e do movimento popular na luta contra o neoliberalismo?

Kipper

Desafios políticos para os movimentos O

HORA DAS ALTERNATIVAS

Depois de ter protagonizado a resistência aos governos neoliberais, os movimentos sociais tiveram que enfrentar desafios políticos, isto é, possibilidades de colocar em prática alternativas ou fazer parte de frentes políticas antineoliberais. Esses desafios já vêm de algum tempo. Primeiro, foi a eleição de Lula à Presidência, no Brasil. Depois, a eleição de Gutiérrez, no Equador, de Kirchner, na Argentina e de Vázquez, no Uruguai. A luta dos movimentos sociais é uma luta pela defesa dos direitos da massa da população, atacadas

pelas políticas neoliberais. Não se deveria exigir desses movimentos substituir as forças políticas. Mas na prática os movimentos sociais personificam alternativas, lutaram por elas e não podem se encerrar nas lutas sociais, terminam sendo responsáveis, diretos ou indiretos, pela luta política.

No Brasil e no Uruguai, os movimentos sociais guardam distâncias e desenvolvem críticas – mais ou menos profundas, conforme o movimento –, sem porém romper com o governo No caso de países como o Brasil, o Equador, o Uruguai e, em certa medida, a Argentina, os movimentos sociais tiveram que se defrontar com governos que, apoiados por eles ou por uma parte deles, assumiram com posições antineoliberais.O balanço desses governos, desse ponto de vista, é decepcionante e, no caso do Equador, levou, já no começo do governo de Gutiérrez, à ruptura de uma parte dos movimentos camponeses e indígenas com o governo, embora como uma de suas conseqüências negativas, esses movimentos tenham se dividido, uma parte permanecendo no governo. Nos outros casos, os movimentos sociais mantêm posições críticas aos governos eleitos pela esquerda. Na Argentina, o movimento piqueteiro também se dividiu, uma parte apóia o governo Kirchner, outra se coloca na oposição. No Brasil e no Uruguai, os movimentos sociais guardam distâncias e desenvolvem críticas – mais ou menos profundas, conforme o movimento –, sem porém romper com o governo. Permanecem com a consciência que os avanços possíveis se darão no marco desses governos e que as alternativas serão de retorno da direita tradicional, no marco atual da relação de forças. A comprovação de que os projetos políticos é que são decisivos e que os movimentos sociais têm que tomar posições em relação a eles está dado pelas experiências – negativas e positivas – dos governos da região. Do destino destes depende o dos movimentos sociais e a situação geral do povo de cada país.

No caso do Brasil, por exemplo, a manutenção de políticas herdadas do governo FHC foi determinante para os destinos do governo Lula e para a situação do povo brasileiro. Não apenas pela continuidade nos processo de concentração de renda, de transferência de renda para o capital especulativo, de desemprego e precariedade do trabalho, de expropriação de direitos – começando pelo direito à carteira de trabalho – etc. Mas também pela decepção que causa no movimento popular, pela derrota que significa para a esquerda, pela falta da prioridade do social – prometida anteriormente. O mesmo se pode dizer, de maneira ainda mais aguda, para os movimentos sociais e para o povo equatoriano. O apoio dado à candidatura de Gutiérrez e a participação direta no seu governo não apenas não melhoraram as condições de vida da população como levaram à divisão dos movimentos sociais, piorando bastante as suas condições de luta. Dilemas similares passaram a viver os movimentos sociais uruguaios, diante das orientações prevalecentes no governo de Tabaré Vázquez, enquanto os movimentos sociais bolivianos se prepararam para enfrentar – em melhores condições que os dos outros países – as eleições que podem levar o seu candidato – Evo Morales – à Presidência da República. Em melhores condições se encontram os movimentos sociais venezuelanos, pela evolução ideológica e política do governo de Hugo Chávez, que promove efetivamente a prioridade do social, utilizando substanciais recursos do petróleo para programas sociais, que incluíram neste ano o fim do analfabetismo no país. OS DESAFIOS ATUAIS

Depois de terem protagonizado os principais combates de resistência ao neoliberalismo, os movimentos sociais passaram a enfrentar dificuldades, seja pelos efeitos desmobilizadores dessas políticas, incluído o desemprego que produzem, seja pelas dificuldades da esquerda no seu conjunto para superar os programas neoliberais. Em países como o Brasil, o Uruguai e a Argentina, existe a consciência de que, apesar da timidez das políticas governamentais, as transformações propostas pelos movimentos sociais serão possíveis nesses governos ou, dandose sua substituição por governos

da direita tradicional, elas serão postergadas por longo período. Daí uma espécie de apoio crítico, que tem caracterizado, em distintos graus, movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a CUT, que não seguiram o caminho de setores políticos que optaram pela ruptura com o governo Lula e se isolaram socialmente. Já outros movimentos, como os zapatistas, promoveram uma virada drástica nas suas políticas, revelando como suas diretrizes anteriores se chocavam com suas condições reais de efetivação. Diante de uma ofensiva militar das Forças Armadas, alegando pretextos de plantações de coca em Chiapas, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) decidiu não resistir militarmente e desmobilizou suas Juntas de Bom Governo. O ano de 2005 não foi diferente. Os movimentos sociais tiveram que se enfrentar com governos cujas políticas reproduzem os modelos existentes, embora tivessem pregado, em muitos casos, sua superação. Resistem, criticam, tentam mobilizações, revelam insatisfações com os partidos de esquerda, mas se chocam com a falta de alternativas. Esse é o seu limite. Ou conseguem participar de um processo comum – de forças sociais, políticas, intelectuais – que formule um projeto alternativo ao neoliberalismo e se empenham, com sucesso, na mobilização popular para construir uma força capaz de romper com o modelo e inaugurar o pós-neoliberalismo, ou seguirão um processo de resistência, fragmentada, sendo vítimas de um modelo diante do qual apresentam pouca capacidade de reversão.

Os movimentos sociais tiveram que se enfrentar com governos cujas políticas reproduzem os modelos existentes, embora tivessem pregado, em muitos casos, sua superação 2006 é ano eleitoral em muitos países da região. Um calendário que se iniciou já no final de 2005, com as eleições na Bolívia e no Chile, mas que se estende

pelas da Costa Rica, em fevereiro de 2006; da Colômbia, em maio; do México, em julho; do Brasil, em outubro e da Venezuela, em dezembro. O quadro político pode se alterar, especialmente no Brasil, a maior incógnita de todas essas eleições. As melhores novidades podem provir da Bolívia. Pouco ou quase nada se pode esperar da Colômbia, por enquanto, nem da Costa Rica. Do México, uma vitória da esquerda, ainda que moderada, pode consolidar um marco latino-americano ainda mais favorável à saída do modelo neoliberal.

O quadro político pode se alterar, especialmente no Brasil, a maior incógnita de todas essas eleições Os movimentos sociais têm que participar desse processo, politicamente, constituindo força, articulando alianças, promovendo debates e formulação de alternativas, se não querem permanecer ainda por longo tempo na defensiva. A disputa decisiva se dá no campo político, mas o fundamental é a hegemonia ideológica neoliberal, que penetra inclusive na esquerda. A esquerda tem sido derrotada, principalmente, no campo do debate das idéias. Não que as idéias da direita sejam melhores, mas esta soube se valer dos erros da esquerda – me refiro aqui desde as do campo socialista, passando pela social democracia, pelas guerrilhas, pelas múltiplas versões da ultraesquerda até chegar à esquerda – e ultra-esquerda – atualmente existente entre nós. A capacidade de seguir mobilizando o povo nas suas lutas depende, atualmente, sobretudo da capacidade de apontar para alternativas – teóricas e práticas – políticas superadoras do neoliberalismo.Este é o maior desafio dos movimentos sociais na atualidade. Se não podem substituir a ação dos partidos, têm que atuar estreitamente ligados a estes, para construir o pós-neoliberalismo. Emir Sader é professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É também coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ e autor, entre outros, de A vingança da História


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De 29 de dezembro de 2005 a 4 de janeiro de 2006

HUMOR RETROSPECTIVA 2005

Essa é boa! Em tempos de resistência e mobilização para mudanças, uma dose de bom humor ajuda a relaxar para juntar forças

agenda@brasildefato.com.br


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CULTURA

De 29 de dezembro de 2005 a 4 de janeiro de 2006

LITERATURA POPULAR

As lições da vida, (sobre)vivida na rua Marcelo Netto Rodrigues da Redação

Divulgação

Vendedores da revista Ocas”, que estão em situação de rua, transformam sua luta em livro

Ocas” pelo mundo

N

JOGOS DRAMÁTICOS Mas Marcos nem sempre pensou assim. Em grande parte, essa sua postura é resultado de um trabalho que está sendo desenvolvido há quase três anos pela psicóloga Maria Alice Vassimon, do Grupo de Estudos e Trabalhos Psicodramáticos (Getep), com vendedores da revista Ocas” – que acaba de resultar no livro Terapia de todos nós – vida e rua, escrito por Marcos e mais 13 ex-moradores de rua. Todas as segundas-feiras, durante uma hora e meia, Maria Alice se reúne com os vendedores, na sede da revista, para que as suas histórias de vida e as situações que enfrentam no dia-a-dia sejam transportadas para a psicoterapia, por meio de jogos dramáticos, e para a vegetoterapia, que trabalha com exercícios corporais. O livro, lançado dia 29 de novembro de 2005, no Sesc Pompéia, apresenta relatos impressos em sua forma original, conforme as falas dos autores. As frases, espontâneas, não foram editadas para que a estrutura do pensamento no contexto em que foram ditas não sofresse nenhum tipo de interferência – o que faz com que o livro acabe “se parecendo com a vida, sem um fio necessariamente lógico”, de acordo com a avaliação da coordenadora da publicação, a psicóloga. Nas reuniões, Cláudio Bon-

“Não dá para assinar nem para comprar nas bancas. Se fosse só por isso, já seria uma revista diferente. A revista Ocas” é vendida exclusivamente por pessoas que não têm onde morar. Com o dinheiro arrecadado com a venda da revista, cada uma dessas pessoas pode tentar reconstruir sua vida. Para cada revista vendida, o sem-teto fica com ¾ do valor e pode começar a sonhar em sair das ruas. E você pode começar a sonhar com um mundo melhor. Não dê esmolas, dê trabalho. Compre Ocas”. Tudo o que pedimos é que você leia mais”, é a mensagem de um cartaz promocional da revista giovani, outro vendedor também co-autor do livro, divide com seus colegas a sua capacidade de distinguir o leitor em potencial da Ocas”, em meio a curiosos do tipo “bicão” –aqueles que, segundo ele, “não estão interessados no assunto, mas são apenas os que sempre acabam servindo de testemunha para a polícia”.

Alderon Costa/Rede Rua

a Avenida Paulista, parado no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o vendedor Marcos José Dias lança mão do seu inglês para chamar a atenção de um estrangeiro que passa pela calçada: “Homeless street paper here. Ocas” magazine” (Olha a revista vendida por semteto. Revista Ocas”). A tática de Marcos surte efeito. Ele sabe que publicações semelhantes a Ocas” estão espalhadas em 28 países (leia matéria ao lado). O estrangeiro, que carrega o filho pendurado nas costas dentro de um suporte que lembra uma mochila, dá meia-volta, abre um sorriso, e se aproxima – uma reação, segundo Marcos, bem diferente da de tantos brasileiros que por ali passam e apenas “associam pessoas em situação de rua a mendigos”. Quando Marcos descobre que o estrangeiro vem da Escócia, começa a elogiar a beleza dos castelos que visitou naquele país, contando que, por coincidência, esteve lá este ano, em sua segunda viagem internacional. O escocês fica surpreso – assim como ficaria a maioria das pessoas que passa por ali, que por sua vez nunca saiu do Brasil, mas olha para Marcos com desdém. O conhecimento básico de inglês vem daí. Uma viagem à Suécia, em 2004, e outra à Escócia, este ano. Nas duas ocasiões, Marcos representou a revista Ocas” e o Brasil na Copa do Mundo de Futebol de vendedores de revistas de rua. O esforço de Marcos para se fazer ouvir, se necessário até em outra língua, demonstra algo notável: apesar de estar “em situação de rua”, a sua auto-estima, para se comunicar com quem quer que seja, sem se sentir inferiorizado, está em alta. “Se eu pensar: ‘Aquele cara não vai comprar a minha revista’, eu próprio já estarei me discriminando”, diz Marcos, de cabeça erguida, referindo-se às centenas de pessoas com as quais faz contato diariamente. “Dar uma de ‘coitadinho’ não ajuda em nada. O ‘não’ faz parte da vida”, arremata ele, que é um dos mais antigos vendedores de Ocas” na ativa, na capital, desde setembro de 2002.

PRETINHO BÁSICO “Eu digo que o nosso leitor é de outro tipo. Anda com atenção e tem um estilo alternativo. Nada a ver com o tipo ‘pretinho básico’ engravatado e de pastinha na mão, que na verdade é só fachada, está atrás de emprego, distribuindo currículo, e às vezes não tem nem um passe de metrô no bolso”, avalia Cláudio. Porém, existem também aqueles que apenas se disfarçam de alternativos. Como mostra o desabafo publicado no livro por um vendedor que se refere aos freqüentadores do Espaço Unibanco de Cinema (a Meca dos “descolados” em São Paulo): “Temos que discutir as relações de poder. O Espaço Unibanco. As pessoas pagam o cinema. Tem pessoas que nem olham para nós. A relação de poder existe. A revista é um produto que tem uma visão diferente das pessoas. Se fosse a revista Veja, seria diferente. Se nós caímos quando não olham para nós, nós estamos aceitando esse poder. Eu canso no Espaço Unibanco. Eu falo: ‘Revista Ocas”, inclusão social’. Essas relações de poder nos desanimam, mas de repente pode acontecer um encontro entre pessoas”.

HISTÓRIAS DE VIDA Os depoimentos do livro estão divididos em capítulos: a história de cada um, a rua e as drogas, o itinerário de um dependente químico, a relação com a realidade – discriminação; a solidariedade; o desenvolvimento pessoal – relacionamento; a vida no presente; e nossos encontros (veja alguns trechos selecionados nesta página). São relatos que impressionam pela lucidez, vindos de pessoas como Cláudio, que entre outras coisas aprenderam a não se submeter a rótulos impostos pela sociedade: “Não devemos ser chamados de moradores de rua. Com a venda da revista, temos como pagar um lugar para morar. Vivemos apenas ‘em situação de rua’ porque dependemos da Ocas” para arrumar um outro emprego. Somente se a revista deixasse de existir da noite para o dia é que voltaríamos às ruas por falta de escolha”.

Marcos José Dias é um dos co-autores do livro que retrata sessões de psicodrama

Como os vendedores vêem o mundo “Eu estava na Avenida Paulista, um menino queria um cata-vento, a mulher só tinha R$ 1 e era R$ 2,50. Eu fui comprar pra ele. Ele ficou tão feliz” “Aborrecido. A gente se mata, se mata, se mata e não consegue nada. Os milionários, fico puto com eles, desumanos, é um despropósito. Aborrecido com as injustiças. O equilíbrio do capitalismo é a miséria”

Semelhantes à revista Ocas”, existem outras 55 publicações do gênero distribuídas por 28 países. Esses jornais ou revistas – chamados de street papers por serem vendidos ou elaborados por pessoas em situação de rua – atingem uma tiragem de 26 milhões de exemplares por ano. Associados a uma Rede Internacional de Publicações de Rua (INSP, em inglês), com sede em Glasgow, na Escócia, esses jornais e revistas trilham o mesmo caminho aberto em 1991 pela bem-sucedida revista inglesa The Big Issue (um trocadilho que significa ao mesmo tempo A Grande Questão e A Grande Edição) – quando seus idealizadores decidiram transplantar para Londres uma idéia empreendida pelo Street Journal, de Nova York, que era vendido pelos homeless (sem-teto) de lá. No Brasil, além da Ocas”, que vai completar quatro anos em julho de 2006, também faz parte da INSP o jornal Boca de Rua, de Porto Alegre, lançado em 2000. A Ocas”, que tem pretensões de atingir Belo Horizonte num futuro próximo, conta hoje com 40 vendedores na capital de São Paulo e 25 na cidade do Rio de Janeiro. Assim como The Big Issue, Ocas” também tem um duplo significado. Ao mesmo tempo que é a sigla para Organização Civil de Ação Social – entidade que produz a revista – Ocas” é uma alusão à palavra “oca”, que na língua tupi-guarani, é o equivalente para casa. De acordo com o que está estampado na página 3 da revista: “O objetivo da organização é fornecer instrumentos de resgate da auto-estima dos vendedores, criando mecanismos para que o indivíduo se torne seu próprio agente de transformação, de forma que Ocas” seja um ponto de passagem, e não o destino definitivo”. Como anuncia o nome inteiro da revista: Ocas” saindo das ruas Divulgação

“Eu estou vendendo a revista, elas passam vinte vezes diante de mim e nem sequer me olham. De repente o cobrador do ônibus, o trânsito parado, me chamou e comprou a minha revista. Ele se aproximou e houve encontro entre nós e troca” “Uma mulher deu R$ 10 para um menino e não comprou a revista. Ela limpou a culpa, ficou no status dela e não quis comprar a revista, um projeto cultural” “Uma cena na rua: uma senhora chorando, ela me disse: ‘Você não vai poder me ajudar!’ Eu disse: ‘Eu sou morador de rua!’. Ela foi assaltada com um caco de vidro, e eu fiquei mal. Ela saiu, pegou um ônibus, eu saí correndo. Eu achei a bolsa da mulher no chão, eu telefonei pra ela porque achei um cartão na bolsa. Falei com ela que eu morava em albergue e ela assustou. Mas eu fiquei com a bolsa pra entregar, e dei a ela. Ela veio com a mãe, o primo dela pegou a bolsa, mas não disse nem ‘obrigado’”

Como comprar Terapia de todos nós – vida e rua, da Event Editora, de autoria de Antônio César Andrade, Cláudio Bongiovani, Celso Possidônio, Dario Bertolucci, Eduardo de Oliveira Pinto, Irany Francisco dos Reis, Jesuel Araújo, José Fernandes Júnior, Marcos José Dias, Maria Alice Vassimon, Maria Aparecida Ruthe, Ricardo Aníbal Cunha, Sérgio Borges, Tula Pilar Ferreira e Waldir Moreira está sendo vendido preferencialmente pelos 40 vendedores da Revista Ocas” que ficam nas ruas de São Paulo. Custa R$ 30. Também pode ser encomendado na sede do Grupo de Estudos e Trabalhos Psicodramáticos, pelo endereço eletrônico, getep@terra.com.br ou pelo telefone (11) 3872-0750.


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