Ano 3 • Número 149
R$ 2,00 São Paulo • De 5 a 11 de janeiro de 2006 João Zinclar
O
C CIS
Resina, povoado na foz do Rio São Francisco, em Sergipe: modernização do campo empurrou os antigos camponeses meeiros para a pesca e a miséria
AN
R OF
RIO
SÃ
Lula decepciona e pobreza continua
Às margens do Velho Chico, a água que nem chega à casa do povo será desviada para abastecer o agronegócio
Brasil padece por erros de seus governos O país perdeu a chance de construir, à época da Constituição de 1988, um sistema semelhante ao Estado de Bem-Estar Social, implementado por países europeus após a 2ª Guerra Mundial. Esse é o cerne da tese defendida pelo economista Eduardo Fagnani, da Universidade de Campinas, para quem, como resultado da escolha de seus governantes, o país só vive para pagar os juros de sua dívida. O que o Brasil paga de juros, em três dias, é o mesmo que gasta em um ano com reforma agrária. Pág. 8
Dívida externa: ilegal, injusta e impagável
Maringoni
E
le confessa sua decepção, dois meses depois de passar 11 dias em jejum total, só tomando a água do Rio São Francisco. Frei Luiz Flávio Cappio, bispo da Diocese da Barra (BA), chamou a atenção do país, em outubro de 2005, contra a transposição do rio. O bispo interrompeu a greve de fome sob a promessa do presidente Lula, reiterada em encontro que tiveram no dia 15 de dezembro, de realizar um amplo debate sobre o projeto – o que não está acontecendo. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, frei Luiz diz que a transposição das águas do Velho Chico não levarão desenvolvimento para a população pobre do Semi-Árido. Nesta edição, um ensaio fotográfico de João Zinclar feito ao longo do rio comprova que, mesmo onde há abundância de água, são péssimas as condições econômicas e sociais dos ribeirinhos. Na região da foz, a população não tem água encanada nem energia elétrica. Págs. 3, 4 e 5
A dívida externa dos países do Terceiro Mundo é um instrumento de dominação política dos países ricos. Para o ativista francês Damien Millet, os governos dos países pobres devem parar de pagar os credores internacionais. Pág. 11
Relatora da ONU aponta repressão a movimentos Em visita ao Brasil, a relatora das Nações Unidas para Defensores de Direitos Humanos, Hina Jilani, criticou o crescente processo de criminalização dos militantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Pág. 6
Independência da Argélia, uma lição atual Pág. 12
Avança diálogo entre bascos e espanhóis Pág. 13
Chico César inaugura nova fase Pág. 16
Alienação dos estadunidenses fortalece Bush Os Estados Unidos estão cada vez mais próximos de se tornarem uma ditadura, pois seguem tomando medidas restritivas às liberdades civis, como a proibição de manifestações a menos de cinco quilômetros do presidente. A política fascista do governo Bush se mantém devido à alienação de seus cidadãos, que preferem ver esporte na televisão a discutir os rumos do país. Os autores de tal análise são dois estadunidenses, o advogado Jeffrey Frank e o geógrafo Richard Peet. Págs. 9 e 10
E mais: IMPERIALISMO – Escândalos envolvendo o governo dos Estados Unidos reforçam a sensação de esgotamento do prestígio de George W. Bush e aumentam o poder dos movimentos sociais. Pág. 14 LITERATURA – Novas escritoras rompem o esquema machista que marca a literatura brasileira. Pág. 15
Capital externo avança sobre o setor bancário Nos últimos 15 anos, a abertura do mercado financeiro nacional e a política de liquidação dos principais bancos estaduais estão promovendo uma desnacionalização do setor no Brasil. Nesse período, a participação de instituições estrangeiras no total de ativos bancários subiu de 6% para 27%. São R$ 107 bilhões, o equivalente a 18% do PIB brasileiro. O prometido investimento no mercado local nunca chega e, em geral, esse processo resulta no fechamento de agências e demissão de pessoal. Pág. 7
2
De 5 a 11de janeiro de 2006
NOSSA OPINIÃO
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Cavalcanti Proença • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, 5555 Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ
Em 2006, enfrentar os desafios que interessam ao povo
E
stamos iniciando um novo ano. 2006 promete muitas novidades, certamente, para o povo brasileiro. Afinal teremos eleições, copa do mundo e a necessidade de debater um novo projeto para o país. Já tínhamos experimentado 15 anos de neoliberalismo, que só agravaram as condicões de vida do povo. Agora tivemos mais quatro anos de uma política econômica neoliberal, que não tirou o país da crise. Portanto, mais do que nunca, precisamos debater um projeto de mudanças. Da parte das elites, a pauta já esta dada.: querem, apenas falar de eleições e dentro da campanha, colocar apenas duas opções Lula desgastado X tucanos revigorados. Assim, irão atuar de todas as formas para que o neoliberalismo volte com novo fôlego e na sua versão original. Mas os movimentos sociais e o povo brasileiro, embora desanimado e desmobilizado, não podem se restringir a essa pauta eleitoreira das elites, nem ficar refém de falsas saídas. Nos últimos meses de 2005, os movimentos sociais realizaram muitas reuniões, debates e avaliações. Foram difundidas várias análises da atual conjuntura e sobre a necessidade das mudanças. Houve uma unida-
de muito grande em todos os movimentos sociais sobre a urgência de um novo projeto. A Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), o Fórum Nacional de Reforma Agrária e a Assembléia Popular, todos querem mudanças. Até o Diretório Nacional do PT pediu mudanças. E todos defendem que o verdadeiro debate que precisa ser feito este ano deve ser pautado em torno da construção de um novo projeto para o país. Um projeto que seja antineoliberal, antiimperialista, e, portanto, nacional e popular. O jornal Brasil de Fato, seguirá se somando a esse esforço dos movimentos sociais para enfrentarmos juntos os verdadeiros desafios que cercam a esquerda brasileira, os movimentos sociais, as organizações populares e as pastorais sociais. Nossos desafios estão relacionados com a necessidade de fazermos um permanente trabalho de base, de formiguinha, de casa em casa, de sindicato em sindicato, de comunidade em comunidade, de bairro a bairro, para elevar o nível de consciência do povo brasileiro. Nosso desafio é estimular todas as formas de lutas sociais, para que
o povo, lutando, conquiste melhorias nas suas condições de vida. Nosso desafio é construir meios de comunicação dirigidos pelas organizações do povo, com autonomia e independência para defender nossas idéias e ir gerando uma nova hegemonia ideológica. Para isso, é preciso democratizar o acesso à informação. É nosso desafio também contribuir para a formação permanente de militantes sociais e quadros políticos. E nessa conjugação de esforços, enfrentando os vários desafios estratégicos ao mesmo tempo, vamos criar as condições para um novo ascenso do movimento de massas, única forma de alterar a correlação de forças com a classe dominante e impor outra agenda para o país. Nem tucanos, nem neoliberalismo, nem política econômica neoliberal. Precisamos de um novo projeto de desenvolvimento, popular e nacional. E se a esquerda tiver um mínimo de unidade entre as mais diferentes forças populares, certamente poderemos avançar muito em 2006, e assim criarmos as condições para as necessárias mudanças.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES SÃO FRANCISCO Como estudioso do Rio São Francisco e preocupado com o destino desta gente do semi-árido brasileiro, do qual faço parte, foi a mais cabal e clara matéria jornalística que diz respeito á usurpação das águas do Chico e as ambições venais de inescrupulosos políticos nordestinos, denunciadas ao povo, que já li. Parabéns Brasil de Fato. Não me surpreende que o ministro da Integração (ou desintegração regional?), também conhecido como ministro 25 mil, um sujeito maquiavélico, que nos perdoe o florentino Niccolò Maquiavel, pois, este falso cearense, não mede nem o
sacrifício do quarto mais importante rio da superfície do planeta, para sagazmente satisfazer sua arrogância criminosa e dizer que o sacrifício dos ribeirinhos são franciscanos é para salvar 12 milhões de nordestinos cearenses. Não nos surpreende porque, se ele em plena campanha presidencial teve o descalabro de dizer que as mulheres só servem para a cama, esqueceu-se de sua própria progenitora, faltando com respeito as nossas. Como entregar, meu povo brasileiro, R$ 4,5 bilhões a este sujeito? Claudio Vianna Por correio eletrônico
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
CRÔNICA
“Faz escuro mas eu canto” Leonardo Boff Começamos o ano 2005 que acaba de findar com a revolta da natureza, o tsunami na Ásia que ceifou milhares de vidas. Continuou com o tufão Catrina no sul dos Estados Unidos que destruiu Nova Orleans. E culminou com o aterrador terremoto na Cachemira e no Paquistão que fez chorar a humanidade pela quantidade de vítimas inocentes. No Brasil assistimos ao vendaval das Comissões Parlamentares de Inquérito que devastaram o PT e tragaram seus principais dirigentes envoltos em práticas de alta corrupção política. Frustração e raiva atingiram milhões de pessoas especialmente entre os mais pobres. Vai mal o mundo, vai mal o Brasil, vai mal grande parte da humanidade sofredora. O que podemos ainda esperar? Como continuar? De que fonte beber sentido para este ano que começa? Ousamos dizer como o poeta que em meio à bárbara repressão política tinha a coragem inaudita de proclamar: “Faz escuro mas eu canto” Que cantamos nós? Não uma ridente realidade, nem um horizonte novo de esperança. Cantamos baixinho pequenos sinais de bondade que nos permitem ainda esperar e que não nos deixam sucumbir. Sinais que se-
gundo a Bíblia impedem que Deus nos destrua totalmente. Os sinais é a onda de solidariedade que irrompeu para ajudar as milhares de vítimas. São aqueles centenas de “médicos sem fronteiras” que se embrenharam nos lugares mais inóspitos para salvar vidas destroçadas. E tantos outros sinais. Mas houve um sinal que ocorreu há tempos atrás que mostrou ser ainda possível um outro tipo de humanidade geradora de familiaridade e de paz. Vale a pena conhecê-la. Mazen Julani era um farmacêutico palestino, de 32 anos, pai de três filhos, que vivia na parte árabe de Jerusalém. Certo dia quando estava tomando café com amigos foi vítima de um disparo fatal vindo de um colono judeu. Era expressão de vingança de um israelense por causa de um atentado terrorista, ocorrido naquele dia e que vitimara dezenas de pessoas. O projétil entrou pelo pescoço e lhe estourou o cérebro. Levado para o hospital israelense chegou já morto. O clã dos Julani, decidiu aí mesmo nos corredores do hospital, entregar todos os órgãos do falecido para transplantes a doentes que precisassem. O chefe do clã esclareceu que este gesto não possuía nenhuma conotação política. Era um gesto estritamente humanitário.
Segundo a religião muçulmana, dizia, todos formamos uma única família humana e somos todos iguais, israelenses e palestinos. Pouco importa em quem os órgãos vão ser transplantados. Eles ficarão bem em algum de nossos irmãos israelenses. Com efeito, no isralense Ygal Cohen bate agora um coração palestino. A esposa de Mazen Julani não sabe como explicar à filha de quatro anos a morte do pai. Ela lhe diz que ele foi viajar e que na volta lhe trará um belo presente. Aos que estavam próximos, sussurou entre lágrimas: daqui a algum tempo eu e meus filhos vamos visitar Ygal Cohen na parte israelense de Jerusalém porque ele vive com o coração de meu marido e do pai de meus filhos. E auscultaremos as batidas de seu coração. E isso nos será de grande consolação. São tais sinais que nos permitem olhar para 2006 com alguma esperança. O canto iluminará todo o escuro por vir. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos
Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores. • Como participar: Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. • Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br. • Quanto custa: O jornal Brasil de Fato custa R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00. Você também pode fazer uma assinatura semestral, com direito a 26 exemplares, por R$ 50,00. • Reportagens: As reportagens publicadas no jornal podem ser reproduzidas em outros veículos - jornais, revistas, e páginas da internet, sem qualquer custo, desde que citada a fonte. • Comitês de apoio: Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilidade a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jornal ficaria restrito ao chamado eixo Rio-São Paulo, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato. • Acesse a nossa página na Internet: www.brasildefato.com.br • Endereços eletrônicos: AL:brasil-al@brasildefato.com.br•BA:brasil-ba@brasildefato.com.br•CE: brasil-ce@brasildefato.com.br•DF:brasil-df@brasildefato.com.br•ES:brasil-es@brasildefato.com.br•GO:brasil-go@brasildefato.com.br•MA:brasil-ma@brasildefato.com.br•MG:brasil-mg@brasildefato.com.br•MS:brasil-ms@brasildefato.com.br•MT:brasilmt@brasildefato.com.br•PA:brasil-pa@brasildefato.com.br•PB:brasil-pb@brasildefato.com.br•PE:brasil-pe@brasildefato.com.br•PI:brasil-pi@brasildefato.com.br•PR:brasil-pr@brasildefato.com.br•RJ:brasil-rj@brasildefato.com.br•RN:brasil-rn@brasildefat o.com.br•RO:brasil-ro@brasildefato.com.br•RS:brasil-rs@brasildefato.com.br•SC:brasil-sc@brasildefato.com.br•SE:brasil-se@brasildefato.com.br•SP:brasil-sp@brasildefato.com.br
3
De 5 a 11de janeiro de 2006
NACIONAL TRANSPOSIÇÃO
O governo Lula foi uma decepção O
ano de 2005 será lembrado como aquele em que uma greve de fome conseguiu frear um projeto do governo federal apoiado por diversas oligarquias e pelo capital internacional. Nos 11 dias de jejum, frei Luiz Flávio Cappio, bispo da Diocese de Barra (BA), atraiu a atenção do Brasil para a sua causa: impedir o início das obras de transposição do Rio São Francisco. Passados três meses do protesto e uma audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o projeto está paralisado e o governo prometeu realizar um amplo debate sobre o tema. Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, frei Luiz explica que não aceita a megaobra porque ela não vai beneficiar os pobres e sim grandes empresários e latifundiários. Para ele, faz-se necessário promover o desenvolvimento do Nordeste brasileiro por meio de políticas de convivência com o clima local. Por outro lado, a população que vive às margens do Rio São Francisco vê a sua sobrevivência ameaçada pela falta de consciência do poder público e irresponsabilidade das grandes empresas que poluem as águas. Ao não interferir neste quadro, o presidente Lula frustrou a esperança de frei Luiz. Pior, trouxe decepção com a retomada do projeto de transposição, uma proposta colocada na pauta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Brasil de Fato – Como começou sua história com o Rio São Francisco? Frei Luiz Flávio Cappio – Minha ligação começou quando vim para o sertão da Bahia, há 32 anos. Devagarinho fui percebendo como o São Francisco é importante para a vida do povo que depende, para a sua sobrevivência, da vida do rio. A vida do rio foi ganhando importância na medida em que para o povo ele passou a ser uma questão de vida e de morte. Dessa forma, lutar pelo rio era lutar pelo povo. E fomos percebendo que o São Francisco estava ficando cada vez mais doente e que isso seria fatal para a população. Sendo assim, assumimos a causa pela vida do rio e pela vida do povo. BF – O que o senhor pode contar da caminhada que fez da nascente até a foz do Velho Chico? Frei Luiz – Levamos dois anos nos preparando. O projeto era fazer um trabalho realmente bem-feito. A caminhada começou no dia 4 de outubro de 1992, na nascente, e terminou em 4 de outubro de 1993 na foz. O cronograma já tinha sido feito. Sabíamos onde estaríamos todos os dias daquele ano e obedecemos à risca essa programação. Foram atividades muito intensas nos colégios, nas igrejas, comunidades e associações. Tivemos contato com crianças, jovens, adultos, com o poder público, com meios de comunicação... Foi um ano de missão ecológica e religiosa muito intensa e que tinha por objetivo conscientizar a população sobre a importância do rio e a necessidade de preservá-lo. BF – E quais foram as suas impressões desse período? Frei Luiz – Por um lado, reforçamos a consciência do valor do rio para a vida do povo. De outro, ficamos estarrecidos diante do processo de morte em que o São Francisco se encontra. BF – O que aconteceu com o rio nesses 32 anos? Frei Luiz – As condições físicas
Agência Brasil
Luís Brasilino da Redação
Marcello Casal Jr/ABR
Frei Luiz mantém esperança no debate mas admite que se decepcionou com a retomada da proposta de transposição
Quem é
Ribeirinhos na região do Baixo São Franscisco protestam contra a transposição que o governo quer impor a todo custo
pioraram muito. No entanto, o nível de consciência da população melhorou bastante. Hoje vemos que existe uma preocupação generalizada com suas águas. A criança na escola já estuda isso, o povo do interior sabe... enfim todos se preocupam com o São Francisco. Infelizmente, o poder público não acompanhou essa mentalidade. As grandes empresas também não. Falta de consciência do poder público e sobra irresponsabilidade das indústrias que jogam toneladas de dejetos químicos na água, causando graves transtornos na vida do rio. Contudo, por parte do povo isso mudou muito. Ele tem outra concepção, tem amor pelo rio e luta por ele. BF – A vitória de Lula nas eleições presidenciais mudou esta postura “inconsciente” do poder público? Frei Luiz – A grande esperança era que a chegada do Lula ao governo federal representasse uma mudança. Tínhamos essa esperança porque o projeto de transposição já vinha sendo cogitado desde o mandato do Fernando Henrique. Mas qual não foi nossa surpresa quando no primeiro semestre do governo Lula o projeto se tornou prioridade. A decepção foi muito grande.
Foi isso que levou ao jejum e a oração: dar um grito em defesa do rio porque os argumentos da razão não tinham sido suficientes BF – E quando foi que o senhor optou pela greve de fome? Frei Luiz – Quando vimos que toda a nossa contribuição não foi levada em conta. Não apenas nossa contribuição mas também a sociedade como um todo foi ignorada. Quem sabe, um grito de desespero poderia sensibilizar as autoridades. Foi isso que levou ao jejum e a oração. Dar um grito em defesa do rio porque os argumentos da razão não tinham sido suficientes. BF – Como o senhor enxerga, hoje, aqueles dias de greve de fome? Frei Luiz – Foi muito doloroso mas muito bonito. Conseguimos unir todos aqueles que têm amor ao rio e ao seu povo. E todos que são contrários a transposição e que almejam o bem e o desenvolvimento do Nordeste
brasileiro. Portanto, apesar da dor, o protesto teve um lado muito profícuo e fértil pois gerou toda essa luta que agora estamos travando. Luta que não é apenas minha, é de todos que amam o Nordeste
Só água não é suficiente, é preciso terra. Uma reforma agrária. Só a terra não é suficiente, são necessários meios de produção. Os meios de produção exigem educação. Para que se tenha educação, é preciso saúde . BF – Por que a transposição? Frei Luiz – Esse projeto é absurdo. Somos totalmente contrários a transposição porque a água não será para os pequenos. Além disso, o rio não tem condições de fornecer essa água. Se fosse para os pequenos, para dessedentação do povo e animal, poderíamos até pensar duas vezes. Mas o destino das águas são as grandes empresas, é o capital e o hidronegócio. Por isso, não podemos aceitar de maneira alguma. BF – O que deveria ser feito em oposição à transposição? Frei Luiz – Fundamentalmente, a proposta é levar água para o povo. O povo e os animais devem estar em primeiro lugar no caminho das águas. Mas só água não é suficiente, é preciso terra. Uma reforma agrária. Só a terra não é suficiente, são necessários meios de produção. Os meios de produção exigem educação. Para que se tenha educação, é preciso saúde. Sendo assim, apresentamos um projeto abrangente, contemplando todas as dimensões humanas. Ele é muito rico já que abrange o ser humano como um todo. A água é fundamental mas é apenas um dos elementos. Ela é necessária mas ao lado de outras medidas igualmente importantes e que realmente gerem um projeto de desenvolvimento. BF – Para que o senhor convocou um seminário nos dias que antecederam sua audiência, do dia 15 de dezembro, com o presidente Lula? Frei Luiz – Não quisemos fazer da visita ao Lula apenas um encontro social ou formal. A gente
quis ter uma reunião de trabalho e apresentar algo de concreto para o presidente. Tinha que ser algo com sustentabilidade, com força, que tivesse massa e consistência. Por isso, achamos por bem reunir aproximadamente 50 autoridades do São Francisco e do Semi-Árido para opinar e dar sua contribuição. E alcançamos este objetivos. Os documentos que elaboramos estão muito densos e ao mesmo tempo são simples. Tanto é que eles satisfazem os especialistas ao mesmo tempo em que são compreensíveis para os leigos. Por isso, estamos felizes com o trabalho realizado e acredito que os documentos e as informações apresentadas tenham sido muito elucidativos para o presidente Lula. Acho que ele não sabe dessas coisas. Ele só sabe o que lhe dizem. E nós fomos lá para explicar uma visão totalmente contrária daquela que ele sempre escuta. Dessa forma, percebemos que a conversa gerou muita curiosidade no presidente Lula. Tanto é que a nossa entrevista durou duas horas e meia, o que não é comum. Percebemos o interesse dele em saber mais. Embora o presidente estivesse do outro lado, ele queria aprender a nossa concepção uma vez que apresentamos dados com os quais acredito que ele não está familiarizado – não lhe dizem. Portanto, fazse necessário que alguém lhe diga, “não, Lula, é assim, assim e assim...”, para que ele saiba o outro lado da questão. BF – Dessa audiência também participou o ministro Ciro Gomes (Integração Nacional), o principal interessado na transposição. Qual sua opinião sobre ele? Frei Luiz – Depois que eu expus os nossos documentos, o Ciro interveio querendo defender a transposição. Ele falou bastante e quando terminou eu disse: “Olha presidente Lula, com todo respeito ao ministro, nós não viemos aqui para discutir a transposição. Não é esse o objetivo da nossa vinda. Estamos aqui para discutir alternativas de convivência com o Semi-Árido. Nesse estágio do debate, nós descartamos de ante mão a transposição. Não viemos aqui para discuti-la. Os dados que Ciro Gomes apresenta todos nós conhecemos, aliás, estamos cansados de conhecer. Não queremos perder tempo com isso. A intenção é ir direto ao objetivo do nosso encontro que é estudar as possibilidades de convivência com o Semi-Árido, independentemente da transposição”.
Frei Luiz Flávio Cappio nasceu em 1946 no dia de São Francisco de Assis, 4 de outubro. Paulista de Guaratinguetá, ele foi ordenado frade franciscano em 1971 e trabalhou por três anos na periferia de São Paulo (SP) pela Pastoral Operária. Há mais de três décadas, frei Luiz foi para o sertão nordestino apenas com a roupa do corpo. No dia de seu aniversário de 48 anos, iniciou uma peregrinação de seis mil quilômetros da nascente até a foz do Rio São Francisco, onde chegou exatamente no dia 4 de outubro de 1993. A experiência está retratada no livro O Rio São Francisco - Uma Caminhada entre Vida e Morte. Tornou-se bispo da Diocese de Barra (BA) em 1997, escolhido por não ter outro que se dispusesse a viver na região. BF – Com isso, Lula prometeu realizar um amplo debate. A palavra do presidente o animou? Frei Luiz – Para eles (do governo), esse nosso encontro encerraria o debate. Porém, para nós foi a inauguração. Escrevi uma carta para todos aqueles que participaram do seminário em Brasília, onde explico as três conquistas da reunião. Primeiro, ela representou o início dos debates. Segundo, o projeto de transposição foi paralisado. E terceiro, devemos formular uma agenda de convocação dos vários setores da sociedade brasileira para discutir o assunto. BF – Quais serão os próximos passos? Frei Luiz – O governo deve nos convocar e espero que, ao lado dele, possamos formular uma agenda para vários encontros de discussão. Queremos confrontar nossas idéias. Na reunião, o presidente Lula disse “eu quero que vocês me convençam. Na hora em que fizerem isso, vou aderir ao lado de vocês”. Então, pelo menos, ele deu demonstração que está aberto para conversar. BF – No entanto, o professor João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, acha muito difícil haver esse debate. Para ele, o governo não tem como discutir a transposição pois toda a sua argumentação em defesa do projeto está baseada em mentiras. O senhor concorda? Frei Luiz – A posição deles é essa mesmo. Mas nós vamos com a nossa. E a gente vai se reunir, discutir e conversar. Não quero deixar morrer a esperança. Quero alimentar a chama que fumega. E quero usar de todos os meios possíveis para mostrar a verdade dos fatos. Agora, que eles estão firmes no pensamento deles, isso estão. E nós estamos firmes no nosso. De todo modo, eu acredito que vão honrar as propostas que fizeram porque, afinal de contas, foram eles mesmos que as apresentaram. Se não atenderem ao que propuseram, a gente verá o que fazer
6
De 5 a 11de janeiro de 2006
NACIONAL ATINGIDOS POR BARRAGENS
Relatora da ONU visita Campos Novos Alexania Rossato de Brasília (DF)
N
Atingidos por barragens denunciam à relatora da ONU, Hina Jilani, prisões e perseguição aos militantes do movimento
Durante a visita, o MAB entregou a Hina um relatório com denúncias – contra as empresas construtoras de barragens, o sistema judiciário e o Estado brasileiro – que levaram a um processo de criminalização dos atingidos pelas barragens da Bacia do Rio Uruguai, na divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O relatório apresenta uma lista de 107 pessoas que estão sendo processadas por lutar pelos direitos do povo atingido na região. Além disso, são relatados casos de prisões arbitrárias, violência policial, difamação e perseguição política nos últimos dez anos. Segundo o relatório, “ao crimiAlexania Rossato
o ano de 2001, Érico Fonseca ajudou a organizar agricultores que seriam atingidos pela hidrelétrica de Barra Grande, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina. A partir da lista de presença de uma das reuniões, ele acabou indiciado pela polícia, junto com crianças de cinco a 12 anos, que acompanhavam os pais no encontro. O caso de Érico é semelhante aos de outros 106 militantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) da bacia do Rio Uruguai, que respondem processos na Justiça. Uma amostra da violência, do uso de força policial e da total desconsideração, por parte das empresas, pelas famílias atingidas, foi apresentada à relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para Defensores de Direitos Humanos, Hina Jilani. Preocupada com as violações sistemáticas dos direitos das famílias atingidas pela Usina Hidrelétrica (UHE) de Campos Novos e com o crescente processo de criminalização dos militantes do MAB, a relatora visitou Santa Catarina, nos dias 16 e 17 de dezembro de 2005. Integrante da Suprema Corte do Paquistão, em agosto de 2000 Hina foi nomeada representante do secretário geral da ONU. O caso UHE Campos Novos está chamando a atenção de inúmeras organizações nacionais e internacionais. As empresas construtoras de barragens são as responsáveis diretas pela violação dos direitos humanos (perda da terra, da moradia, privação de água, de trabalho, de cultura) na região.
Alexania Rossato
Hina Jilani diz que movimentos sociais merecem apoio político sem reservas do governo brasileiro
Acampamento de atingidos por barragens próximo à hidrelétrica Campos Novos
nalizar os defensores de direitos das populações atingidas por barragens, o Estado e as empresas construtoras pretendem atingir o MAB. Na avaliação das empresas, a organização do MAB é vista e tratada como subversiva à ordem estabelecida e um risco à sustentação do modelo energético como ele está constituído hoje”. Isso é evidente quando as principais lideranças da região respondem a mais de 15 processos cada uma. Mas a situação se tornou extrema com a prisão de dez militantes do MAB, em março. As prisões ocorreram dias antes do Dia Internacional de Luta Contra as Barragens e tiveram claras motivações políticas, como inibir e impedir manifestações em toda a região, principalmente em Campos Novos, onde os agricultores denunciam a situação em que vivem. As lideranças permaneceram na cadeia durante 25 dias, enquanto a Justiça local e as empresas donas da barragem negavam o direito de 310 famílias reconhecidas como atingidas, pela Fundação de Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina. A ONU enviou a relatora para inspeção em Campos Novos, pois essa é uma das barragens que agrega casos emblemáticos contra a violação dos direitos humanos. O casamento entre o poder econômico das empresas e o Poder do Judiciário
configura uma ditadura que se materializa na expropriação dos meios de vida das populações afetadas pelas obras, na negação sistemática dos direitos humanos, econômicos, sociais e ambientais dessas populações, na incapacidade do Ministério Público e do Judiciário em garantir esses direitos, na violência policial para guarnecer os canteiros de obras e dispersar manifestações. O Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos conceitua como tal “todos os indivíduos, grupos ou órgãos da sociedade que promovem e protegem os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidos” mas frente ao conflito social instalado em Campos Novos e à mobilização da população as empresas construtoras da barragem e o Judiciário têm respondido com processos que pedem prisões – que vão de um a 30 anos para 36 lideranças.
PARECER DA RELATORA O acampamento montado próximo à barragem de Campos Novos teve a presença de mais de mil militantes ligados ao MAB, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Depois de visitar o acampamento, a relatora teve uma reunião com as lideranças que estão sendo proces-
sadas e com os dez militantes que foram presos. Um momento que comoveu a todos foi o relato do menino de sete anos levado para a delegacia junto com o pai. A criança contou com detalhes como a polícia foi até a roça onde estavam trabalhando, como algemaram seu pai e os levaram numa viatura até a delegacia, onde o garoto permaneceu sozinho por mais de três horas. A relatora também participou de uma audiência pública na cidade de Campos Novos (SC), com a presença de mais de 1.500 pessoas. Várias organizações e movimentos sociais deram seu testemunho e também entregaram documentos com denúncias de violações dos direitos humanos. Segunda a relatora da ONU, “a Constituição federal está bem fundamentada quando se refere aos direitos humanos, mas as mudanças não são aparentes na vida real das pessoas. Esses movimentos sociais que estou visitando no Brasil são os agentes da mudança. E uma forma de apressar a realização dessas mudanças é dar total apoio a esses movimentos. Eles merecem o apoio político sem reservas do governo”, afirmou. Ela acrescenta: “Está ficando bem claro para mim que a privação dos direitos sociais e econômicos está se tornando um fator que leva à privação dos direitos cívicos e políticos. A luta pela obtenção de direitos tem sido violada e isso leva a privação dos direitos à vida, de liberdade e de segurança pessoal”. Ao retornar à Suíça, Hina Jilani fará um relatório para apresentar à Comissão dos Direitros Humanos e à Assembléia Geral da ONU. “Vou apresentá-lo já com recomendações a serem adotadas. Eu vou fazer um acompanhamento disso”. Ela diz ainda que os direitos sociais, econômicos e culturais constam na declaração dos direitos humanos da ONU, que os movimentos sociais têm um papel fundamental e todos aqueles que se envolvem nos movimentos, sejam eles líderes ou apoiadores, também estão protegidos por essa declaração. “Agora nós temos que ir um pouco além do reconhecimento da ONU e fazer com que esses direitos sejam realmente aplicados. A declaração das Nações Unidas para os defensores dos direitos humanos reforça a legitimidade do trabalho que essas pessoas desempenham na proteção dos direitos”, finaliza a relatora.
Depois de quatro ocupações da obra, desde 2001, e cansados de serem criminalizados e vítimas da polícia, os agricultores encararam a visita da relatora da Organização das Nações Unidas (ONU), Hina Jilani, com esperança. Segundo André Sartori, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e liderança local, o acampamento e as demais atividades da visita foram marcados pela unificação dos movimentos sociais da região. “A região precisava dessa força. As famílias tiveram uma esperança imensa, pois voltaram a sonhar em continuar na roça, produzindo alimento e lutando para ter, em primeiro lugar, o direito a trabalhar. Uma representante da ONU na região trouxe mais legitimidade à organização, ao movimento, que conseguiu expor toda sua luta e história para a região e para o Brasil”, afirmou Sartori. O MAB solicitou intervenção da relatora em três pontos: fim de todos os processos políticos contra lideranças do movimento, criação de uma normatização que evite crimes sociais nas construções de barragens e reassentamento de todas as famílias expulsas das suas
Fotos: Alexania Rossato
Uma força para a resistência
Movimentos do campo pedem leis para evitar crimes sociais nas construção de barragens e reassentamento das famílias expulsas das suas terras
terras em conseqüência das barragens construídas. Além disso, todo o processo de mobilização dos últimos dias reforçou a organização do MAB na região, como diz o coordenador: “Temos clareza de que deveremos continuar lutando e não vamos dar nenhum passo atrás. Levar as denúncias ao nível internacional é levar esperança para que o povo não desista. Estaremos aguardando
o relatório para que intervenha no poder público, pois não dá para admitir que uma pessoa de 70 ou 80 anos seja processada por lutar para ter direito a trabalhar”. O processo de criminalização não ocorre somente em Campos Novos, mas em todas as barragens onde o povo se organiza para garantir seus direitos, a exemplo do que aconteceu quando o Estado colocou o Exército dentro da bar-
ragem de Tucuruí, no Pará, dias antes das mobilizações do dia 14 de março de 2005. Ou quando a Polícia Militar destruiu uma comunidade inteira com tratores e máquinas pesadas, em Minas Gerais, na barragem de Candonga. Considerando que essa situação se intensificou em 2005, representantes do MAB de todos Estados também estiveram em Santa Catarina fazendo denúncias e en-
tregando documentos para Hina. Roquevan Alves da Silva relatou que sua casa já foi queimada duas vezes por organizar o povo na região e que grande parte da energia produzida por Tucuruí é exportada em forma de alumínio, ou seja, utilizada por indústrias do alumínio para exportação, as chamadas eletrointensivas. “É o sangue do nosso povo que está sendo exportado”, afirma. (AR)
7
De 5 a 11de janeiro de 2006
NACIONAL DESNACIONALIZAÇÃO EM MARCHA
Presença de bancos estrangeiros aumenta Sua participação no setor financeiro do país cresce 4,5 vezes de 1990 a 2004; seus ativos equivalem a 18% do PIB res, depois de atingir 51,5 bilhões de dólares de 1996 a 2000. Aqueles recursos, que representavam 13% dos investimentos totais realizados pelo setor financeiro entre 1991 e 1995, passaram a 28% entre 1996 e 2000, e subiram para 35% de 2001 a outubro de 2005.
Agência Brasil
Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)
A
participação de bancos estrangeiros no mercado financeiro nacional disparou nos últimos anos, com a abertura do setor ao capital internacional e a política de liquidação dos principais bancos estaduais do país. Até 1990, de acordo com relatório anual do Banco de Compensações Internacionais (BIS), as instituições estrangeiras detinham apenas 6% do total de ativos bancários no Brasil. Sua fatia cresceu quatro vezes e meia até 2004, saltando para 27%, num total de 107 bilhões de dólares – o equivalente a 18% de todas as riquezas produzidas pelo país (Produto Interno Bruto – PIB) naquele ano. Com sede em Basiléia, na Suíça, o BIS funciona como uma espécie de “banco central dos bancos centrais” do mundo. A instituição define padrões para examinar a saúde financeira dos bancos ao redor do planeta e estabelece normas de segurança para as operações de instituições financeiras, de forma a preservar depositantes e clientes. Os ativos de um banco (ou empresa) englobam desde prédios, terrenos e outros imóveis, até ações, títulos e dinheiro vivo de sua propriedade.
GOVERNOS AJUDAM No Brasil, o avanço dos banqueiros internacionais tem sido facilitado por uma mudança adotada no governo Fernando Henrique Cardoso, e mantida pelo atual: a entrada de bancos internacionais passou a ser autorizada por um simples decreto presidencial, sem consulta ao Congresso ou à sociedade. Mas a chegada desses bancos não precisa significar, necessariamente, investimentos em redes de agência ou a criação de novas riquezas, via aumento da oferta de créditos para financiar o crescimento da economia, por exemplo. Como regra, informa o BIS, os estrangeiros têm escolhido a compra de bancos existentes (como no
DEPENDÊNCIA
Avanço dos banqueiros internacionais é facilitado pela política adotada pelo governo Lula
caso do espanhol Santander, que comprou o Banespa). Na maioria das vezes, os investimentos são substituídos pelo fechamento de agências e demissão de pessoal. Desde os anos 1990, diz o relatório do BIS, os investimentos de bancos estrangeiros em mercados
“emergentes” vem sendo estimulados pela possibilidade de obter lucros cada vez maiores naqueles mercados. No caso brasileiro, os estímulos são particularmente atraentes, face à política de juros altos, que tem gerado lucros recordes para os estabelecimentos bancários.
Assim, os investimentos de bancos estrangeiros na compra de instituições financeiras nos países “emergentes”, Brasil incluído, cresceram 27 vezes desde o período 1991-1995 até 2001-outubro de 2005, saltando de 2,5 bilhões de dólares para 67,5 bilhões de dóla-
Festejado pelos defensores intransigentes do livre fluxo de capitais, esse tipo de investimento, de acordo com o próprio BIS, carrega dois inconvenientes (ou “desafios”, para ser fiel ao relatório): deixa a economia local mais exposta aos riscos de crise e às mudanças nas condições do mercado internacional; e transfere o centro de decisões para as matrizes dos bancos estrangeiros. Este segundo “desafio” significa que os governos locais – e o brasileiro não foge à regra – perdem independência para tomar decisões relativas ao setor financeiro. Tais decisões, explica o BIS, podem incluir até mesmo a saída do país inicialmente escolhido pelo dono da instituição estrangeira, que simplesmente leva embora os recursos aplicados.
Capital externo também domina supermercados da Redação Sem alarde, e firmemente, a desnacionalização da economia brasileira avança. E, pelo visto, não é apenas o setor financeiro, atraído pelas estratosféricas taxas de juros, que experimenta o aumento de participação do capital estrangeiro. A área de supermercados também vem sendo alvo de aquisições. Dia 15 de dezembro, anúncio de página inteira da estadunidense Wal Mart informa que, em uma década de Brasil, comprou, entre empresas de capital nacional e estrangeiro, a rede de supermercados Bom Preço e Hipermercado Bompreço (nacionais, Norte e Nordeste), Sam’s Club, Hipermercado Big, Nacional, Mercadorama, Maxxi Atacado, e a rede Sonae (do RS). Considerada a maior empresa do mundo no segmento do comércio em volume de vendas e lucro, a Wal-Mart também freqüenta a mídia por não cumprir as leis trabalhistas.
Com esse processo acelerado de desnacionalização e oligopolização do setor de comércio atacadista e supermercados, o quadro, hoje, é o seguinte: Apenas as três maiores cadeias controladas pelo capital estrangeiro dominam quase metade do mercado brasileiro – exatos 39%. Empresa/Grupo Rede Pão de Açúcar
Faturamento Participação de (R$ bilhões) mercado (%)
Capital França e Portugal
15,4
15,8
Carrefour
França
12,1
12,4
Wal-Mart
EUA
10,4
10,6
Grupo Zaffari
Brasil
1,2
1,3
DMA Distribuidora
Brasil
1,1
1,2
Juros altos são atração irresistível “O Banco Central insiste na política monetária ruim”. Assim começa a análise da Global Invest, empresa de consultoria econômica, sobre a última reunião do Conselho de Política Monetária, que decidiu continuar na sua política de corte a conta-gotas da taxa básica de juros (a Selic), agora fixada em 18%. Esse ritmo de queda, aponta a consultoria, indica que os juros reais vão permanecer elevados até o fim do primeiro semestre de 2006, pelo
menos. “Mesmo com todos os indicadores de atividade mostrando que a economia está em ritmo lento, e os de preços indicando que a inflação está se desacelerando, o Banco Central preferiu considerar seu próprio diagnóstico, errado, de que a economia está em plena recuperação”, conclui a Global Invest. Mesmo a conta-gotas, os juros nominais (não corrigidos pela inflação) começaram a baixar em setembro, trajetória que, em tese,
deve se manter até junho de 2006, a menos que fatores externos fortes obriguem a uma mudança de percurso, ou a inflação volte a causar dores de cabeça à equipe econômica que, aparentemente, só consegue usar um instrumento para segurar os preços – a taxa de juros. De acordo com a Global Invest, com 12,9% de juros reais hoje, o Brasil ainda segue na liderança invicta. A diferença entre esse primeiro lugar e o segundo colocado
(veja tabela) é de aproximadamente 112%, ou seja, a taxa vigente no país é 112% maior do que a do segundo colocado. Esta posição ainda está longe de ser ameaçada e o declínio para juros reais de 10% não deve se concretizar antes de junho ou julho de 2006. “Assim, é factível que as expectativas de inflação para 2006 fiquem acima da projeção oficial, pois vale lembrar a incoerência da manutenção de metas de inflação descenden-
tes num cenário onde aumentam as expectativas de crescimento econômico, com juros mais baixos, e uma relação dívida/PIB ainda pouco alterada”, avalia a consultoria. Por isso, para 2006, a Global Invest projeta juros nominais de 15% ao ano, e juros reais anuais entre 9% e 10%. Com isso, o país mantém a atratividade ao capital financeiro, e o Brasil continua na liderança mundial no ranking dos juros. (LVF)
Investir em P&D, longe daqui Anamárcia Vainsencher, da Redação
Fonte: GRCVisão
Nos últimos dez anos, o Brasil nunca deixou de aparecer entre os quinze maiores receptores de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) no mundo. Recentemente, a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) divulgou o Relatório Mundial de Investimentos 2005, com resultados de pesquisa feita com analistas, empresas transnacionais (ETN’s) e agências de promoção de investimento sobre suas expectativas relativas ao desempenho dos fluxos de IDE no curto prazo. E, no mesmo documento, constam dados sobre investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Parte dos dados do relatório foi divulgado no boletim da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica (Sobeet). No quesito IDE, pela freqüência
de respostas dos analistas entrevistados, o Brasil seria o quarto país preferido para investimento (24% das menções), bem longe da China, a preferida (85%). Já para as transnacionais, enquanto a China mantém a preferência (87%), o Brasil cai para o quinto lugar na freqüência das respostas (20%) – atrás de Índia e Rússia. Em termos regionais, os grupos de países mais atraentes para o IDE são a Europa Central e a Ásia. A América Latina aparece em posição intermediária, ou seja, a recente recuperação dos fluxos para a região deve se manter, porém, é provável que se verifique uma perda de dinamismo em termos relativos, avalia a Sobeet. Dessa forma, a América Latina poderia no curto prazo perder a posição de segunda região com maior ingresso de IDE, depois da Ásia, para a Europa Central e do Leste, segundo a Unctad. Quanto à pesquisa respondida por 68 transnacionais a respeito das
decisões futuras de destinação de recursos para atividades de P&D no período 2005-2009, o Brasil é citado como provável localização de centros de P&D por apenas uma empresa. Situação bem pior do que em 2004, com 13% das respostas – 11º lugar numa lista de doze países. Na análise da Sobeet, estes resultados indicam que, se de um lado a economia brasileira está bem situada para o investimento direto estrangeiro de maneira geral, de outro lado, do ponto de vista da internacionalização das atividades de P&D, o país visivelmente perde espaço para as economias asiáticas. Entre uma dúzia de países, no período 2005-2009 a preferência indiscutível para direcionamento de investimentos em P&D é a China (61,8% das citações), que deslocou os EUA do primeiro para o segundo posto de 2004 para o período seguinte. Em terceiro lugar vem a Índia e, ainda antes do Brasil, Rússia e Cingapura.
8
De 5 a 11de janeiro de 2006
NACIONAL PAÍS SEM PROJETO
Um Brasil que só paga juros da dívida Marcelo Netto Rodrigues da Redação
O
Brasil que o professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Unicamp, estuda é um país que, com o pagamento dos juros da dívida (interna e externa) de apenas três dias, gasta o mesmo do que em um ano na reforma agrária. Que em 20 dias de juros, gasta o mesmo que foi investido durante dez anos em habitação popular. Gasta o mesmo dinheiro que foi investido em dez anos com saneamento básico. Este é o retrato de um Brasil que, segundo Fagnani, perdeu a chance de construir um sistema de proteção social universal e igualitário à época da Constituição de 1988. Um sistema semelhante ao Estado de Bem-Estar Social (welfare state) implementado por países europeus nos “30 anos de Ouro”, seguintes à 2ª Guerra Mundial. Este é o cerne da tese de doutorado defendida por Fagnani, que abrange um período de quase 40 anos: “Política Social do Brasil (1964-2002): Entre a Cidadania e a Caridade”, que permeia a entrevista a seguir. Brasil de Fato – Por que as políticas sociais universais, inicialmente garantidas pela Constituição de 1988, sofreram um revés? Eduardo Fagnani – Porque a Constituição de 88 surge na hora errada. Há um movimento que tem início nos anos 1970, e culmina com a Constituição de 88, caminhando em direção a um projeto de Estado de Bem-Estar Social. Mas, a partir dos anos 90, temos um outro movimento que vai no sentido da negação deste projeto, em favor de políticas de fundo mais assistencialista. O neoliberalismo já vinha sendo aplicado pela primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher, em 1979, e a partir de 1981, pelo presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, quando o Brasil, em 1990, também acaba aderindo. A privatização da Previdência no Chile, por exemplo, data dos anos 80, assim como iniciativas similares na Argentina. Os dois países já tinham começado a fazer reformas neoliberais.
Ao invés do Estado de Bem-Estar Social, o que a agenda neoliberal prega é o Estado mínimo BF – O Brasil, então, foi dos últimos a aderir ao neoliberalismo? Fagnani – De fato, o país só passou a privatizar a partir dos anos 1990, com o Collor e, depois, com o FHC. Só que quando eles disseram: “nós vamos aplicar esta agenda”, a Constituição de 1988 vinha na contramão disso. Tanto é que, em 1993, haveria reforma constitucional – a Carta estipula que, após cinco anos, ela poderia ser revista. Eles iam enterrar a Constituição de vez, em 1993, iam jogá-la na lata do lixo. Só que em outubro de 1992, houve o processo de impeachment do Collor, aquele caos todo. E o clima político para a revisão se perdeu. A partir daí, ela começou a ser feita a conta-gotas: a reforma trabalhista do FHC, a da Previdência... BF – Como a agenda neoliberal tem destruído os princípios da Constituição de 88? Fagnani – Esta agenda prega a focalização de políticas sociais, enquanto a Constituição de 88 falava em direito social universal. A agenda neoliberal prega o seguro social – a idéia de que só tem direito quem contribui – ao invés
Luciney Martins/ BL 45Imagem
Eduardo Fagnani, da Unicamp, mostra por que o país perdeu a chance de ter uma política de bem-estar social em 1988
Segundo Fagnani, em 20 dias de juros, o Brasil gasta o mesmo que foi investido durante dez anos em habitação popular
da proposta inicial de seguridade social garantida pela Constituição. A agenda neoliberal prega a flexibilização do mercado de trabalho, ao invés dos direitos trabalhistas. Ou seja, ao invés do Estado de Bem-Estar Social, o que a agenda neoliberal prega é o Estado mínimo. Com a implementação do Plano Real, a exclusão aumenta e a capacidade de intervenção do Estado se desorganiza porque os recursos de que dispõe são para pagar juros. BF – A inclusão na Constituição do termo “latifúndio improdutivo”, em cima da hora, pela bancada ruralista, quando o texto final deveria apenas trazer palavra latifúndio, pode ser visto como um indício do que ia acontecer? Fagnani – A reforma agrária é um exemplo extraordinário de como houve um pacto conservador na transição para a democracia. Por força do movimento social no final dos anos 1970, o compromisso de realizar a reforma agrária entra na agenda do governo da Nova República, é criado o Ministério da Reforma Agrária, é lançada a primeira proposta de um plano nacional. A partir daí, ocorre uma reação dos latifundiários, com o apoio da chamada grande imprensa. A reforma agrária volta a ser uma questão militar, passa a ser tratada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), pelo Conselho de Segurança Nacional e nos deparamos com uma série de retrocessos, entre os quais, eu destacaria a tentativa de extinção do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 87, depois, a formação da União Democrática Ruralista (UDR), o Centrão patrocinado pelo governo, até a extinção do Ministério da Reforma Agrária. O mesmo governo que cria este ministério e coloca a reforma agrária na agenda, em seguida, o extingue. E neste longo processo, o Centrão e a UDR acabam criando um conceito muito impreciso de “latifúndio improdutivo”, que acabou inviabilizando juridicamente a reforma agrária – talvez na maior derrota das forças progressistas na Constituição de 88. BF – Como analisa a criação do Sistema Único de Saúde? Fagnani – O SUS é um dos maiores programas públicos gratuitos de saúde do mundo. Ele rompe com a política de saúde do regime militar, que era centralizada no governo federal, no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social – Inamps, cujo modelo era a compra de serviços junto ao setor privado, o que dava origem a várias distorções. Como só tinha acesso à assistência quem estava no mercado formal de
trabalho, o setor privado contratado se concentrava nas regiões economicamente mais ricas. Portanto, era um sistema de saúde onde estava o capital, e não onde estava a doença. Também não havia controle. E existiam sete mil hospitais privados mandando as faturas para o Inamps. Nem computador havia, era tudo conferido manualmente. Por tudo isso, o SUS representa uma ruptura extraordinária construída pelos médicos sanitaristas, que durante a ditadura criticavam o modelo de saúde vigente, e tiveram um papel importante na Assembléia Nacional Constituinte. Apesar disso, nós escutamos que o SUS não funciona. O que é verdade, mas não porque o modelo seja ruim, mas porque, a partir de 1990, temos restrições macroeconômicas impedindo novos investimentos. Com isso, poucos hospitais ficam superlotados. BF – Quais são as críticas mais comuns ao sistema de política social universal? Fagnani – No pensamento conservador, existe uma série de mitos, que, como tais, são falsos. Por exemplo, que as políticas universais “beneficiam” os ricos, o topo da pirâmide de renda do Brasil. Eu pergunto: Como assim, se os 20% mais ricos do Brasil são aqueles que possuem uma renda per capita a partir de R$ 450, e os 10% mais ricos, a partir de R$ 750? Quem ganha R$ 750 tem condições de pagar escola particular, plano privado de saúde, plano de previdência privada? Sem contar o fato que vivemos num país em que 70% da população ganha até um salário mínimo, e 15% ganham até ¼ desse salário.
Os 20% mais ricos do Brasil são aqueles que possuem uma renda per capita a partir de R$ 450, e os 10% mais ricos, a partir de R$ 750 BF – Que outros mitos os conservadores defendem? Fagnani – Como dizem que políticas universais só atendem aos ricos, eles chegam a uma conclusão muito simples: basta transferir estes recursos para os programas focalizados – que atenderiam aos mais pobres entre os pobres. Nessa perspectiva, por exemplo, uma pessoa que esteja no mercado formal de trabalho é privilegiada. Portanto, na cabeça dos conservadores, não faz sentido ter um programa como o seguro
desemprego – que estaria, na visão deles, beneficiando a elite da classe trabalhadora. Quanto mais pensar em um ensino superior público gratuito! Também dizem que a Previdência Social atende aos velhos, quando, deveria, na verdade, estar investindo nas crianças. O que é outro mito, porque em uma família que recebe recursos da Previdência, há jovens cuja educação acaba sendo custeada por estes recursos.
O que se paga em três dias de juros é o mesmo que o Brasil gasta em um ano com a reforma agrária; o que se paga de juros em 20 dias, é o que se gasta em dez anos com habitação popular
desenvolvimento social sem isso, sem os efeitos do crescimento sobre a renda e sobre a oferta de emprego. Esta é a verdadeira política social que o Brasil precisa. Em segundo lugar, não podemos prescindir de políticas sociais universais clássicas no enfrentamento da questão social: Previdência Social, assistência social, educação, saúde e seguro-desemprego. Depois, precisamos de políticas sociais para resolver problemas que os países desenvolvidos já resolveram: habitação popular, transporte público, saneamento básico e reforma agrária. Os países ricos já fizeram tudo isso. Por fim, precisamos de algumas políticas focalizadas para combater situações mais trágicas, que afetam as pessoas que estão totalmente fora do sistema, como o BolsaFamília. Portanto, está se criando no Brasil um falso problema: ou política universal ou política focalizada. Precisamos das duas, além do crescimento econômico. Só que na contramão disso, estão falando em déficit nominal zero. BF – Quais seriam os principais estragos da proposta de déficit nominal zero? Fagnani – Está em curso uma discussão – que acabou gerando polêmica entre a Dilma Rousseff e o Palocci – da implementação de um programa de dez anos para reduzir a relação dívida/PIB de 52% para 30%. Pode-se reduzir esta dívida de duas formas. Primeiro, aumentando o PIB, fazendo a economia crescer – o que não passa pela cabeça deles. Ou, reduzindo despesas. Só que para diminuir a dívida, é preciso aumentar o superavit primário. Além dos 4,2%, teremos de chegar a quase 7% para cobrir os gastos correntes do governo, mais os juros. Durante dez anos. E já que querem pagar o juros, onde vão cortar? Nas políticas sociais. Prolongar tal política por dez anos implica, entre outras coisas, manter o arrocho salarial do funcionalismo e restringir o aumento do salário mínimo.
BF – Há mais? Fagnani – Mais um é que o gasto social no Brasil é alto mesmo em relação ao dos países capitalistas centrais. A questão é que no Brasil, até mesmo os subsídios que a classe média tem no imposto de renda com saúde e com previdência privada são computados como gastos sociais. Outra coisa: quando se compara o gasto social em relação ao PIB, e não em relação ao PIB per capita dos países – comparado dessa forma, veremos que o Brasil gasta pouco em relação aos ricos. Portanto, em última instância, há uma série de mitos que procuram justificar um conjunto de reformas que visam acabar com os direitos que restaram da Constituição de 88. Um sacrifício que é compensado exclusivamente com os programas focalizados tipo Bolsa-Família. Programas deste tipo são muito baratos. O orçamento do Ministério do Desenvolvimento Social para o ano de 2006 é de R$ 8,2 bilhões. Com este dinheiro, você “beneficia” 40 milhões de pessoas.
BF – O que deixa de ser feito com o dinheiro usado para pagar os juros da dívida? Fagnani – Pagamos R$ 500 milhões de juros da dívida (interna e externa) por dia. Ou seja, o que pagamos em três dias de juros é o mesmo que o Brasil gasta em um ano com a reforma agrária – que trabalha com um orçamento em torno de R$ 1,5 bilhão. Com habitação popular, de 1994 a 2002, o governo federal gastou cerca de R$ 900 milhões por ano, cerca de R$ 9 bilhões. Ou seja, o que nós gastamos em 20 dias de juros é o que nós gastamos em dez anos com habitação popular. Com saneamento básico, a mesma coisa. Em dez anos, o governo federal gastou cerca de R$ 10 bilhões, que são apenas 20 dias de juros num país em que metade da população não tem rede pública de esgoto, e que 90% do esgoto coletado não é tratado.
BF – Apesar de ser barato, qual a sua avaliação sobre o BolsaFamília? Fagnani – Os programas de transferência de renda são extremamente positivos e necessários numa estratégia de enfrentamento da pobreza e da desigualdade num país como o nosso. O equívoco é querer transformar estes programas na própria estratégia. Para enfrentar problemas como pobreza e desigualdade, em primeiro lugar, o Brasil precisa crescer. Não dá para pensar em
Eduardo Fagnani é professor de Economia Social e do Trabalho do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Participou, como pesquisador, das fases inaugurais do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas e do Centro de Estudos da Conjuntura e Política Econômica, em meados dos anos 1980. Mais recentemente, passou a integrar a equipe do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho.
Quem é
Ano 3 • número 149 • De 5 a 11 de janeiro de 2006 – 9
SEGUNDO CADERNO ESTADOS UNIDOS
Potência caminha em direção à ditadura Luís Brasilino da Redação
N
o dia 16 de dezembro, o jornal estadunidense The New York Times publicou denúncias de funcionários do governo de que George W. Bush, presidente dos Estados Unidos, teria dado ordens para a Agência de Segurança Nacional espionar ilegalmente cidadãos de seu país. Segundo o diário, a espionagem vem acontecendo desde 2002 e a publicação das denúncias foi adiada por um ano, a pedido da Casa Branca. O estadunidense Jeffrey Frank, da National Lawyers Guild, uma associação de advogados progressistas, revela ao Brasil de Fato o que ele chama de processo de perda de direitos humanos, que está levando a maior potência mundial a se aproximar de uma ditadura. Para ele, o governo dos Estados Unidos foi seqüestrado por corporações transnacionais. Brasil de Fato – O que o senhor diz sobre os efeitos do Ato Patriota? Jeffrey Frank – Podemos falar sobre o que sabemos, porque muitas coisas são mantidas em segredo. De modo geral, o Ato Patriota é usado para três finalidades: construir bancos de dados, processar pessoas por crimes sem relação com terrorismo e intimidar opositores do governo. Temos descoberto que é usado muito mais amplamente do que tinham nos dito. Por exemplo, o Ato permite o uso de um dispositivo chamado administrator of sapinas sem aprovação da Justiça. Teoricamente, esse é um dispositivo exclusivo do FBI (a polícia federal estadunidense), para obter determinada informação, como um sigilo telefônico. Com o Ato Patriota, o que eles querem fazer é, a partir do histórico telefônico de um alvo, construir uma lista de todos que ligaram ou receberam ligações dele. Depois, quebram o sigilo das pessoas dessa lista e montam uma pirâmide. Após o Ato Patriota, os pedidos de administrator of sapinas aumentaram em cem vezes. Outra coisa que sabemos é que o Ato Patriota está sendo usado em casos sem qualquer relação com segurança ou terrorismo. Além disso, há uma expansão do poder do grand jury (convocado por um promotor, esse júri é formado por cidadãos e serve para recolher informações que subsidiem decisões sobre processar ou não alguém de crime), que está sendo usado para investigar quem protesta contra a guerra no Iraque.
O presidente Bush terá poder para indiciar qualquer pessoa por terrorismo, estadunidense ou não, e prendê-la para a vida toda BF – Quais direitos civis estão sendo tolhidos? Frank – Os direitos nos Estados Unidos vêm de duas fontes. A Constituição, que garante liberdade de assembléia, expressão, imprensa, religião, o direito de não ter sua casa vasculhada sem um mandado de busca bem fundamentado, o direito de não se incriminar, entre outros. E a English Common Law, que vem da Carta Magna de 1215, e prevê o direito de habeas corpus. Esse é o direito de, quando estiver preso, o cidadão poder identificar seus acusadores e descobrir por que está na prisão. Ou seja, para permanecer
João Alexandre Peschanki
Enquanto condições de vida da população pioram, governo cria dispositivos para reprimir pensamento independente Douglas Mansur
Quem é Advogado há 25 anos e mestre em Direito pela Universidade de Nova York, Jeffrey Frank, 52 anos, é diretor da seção de Chicago da National Lawyers Guild, rede de advogados progressistas estadunidense que reúne cerca de seis mil integrantes. Cidadãos estadunidenses sofrem com medidas ditatoriais do governo Bush que colocam em risco direitos civis
preso é necessário ser formalmente acusado de um crime. Esses direitos foram severamente cerceados. Um caso emblemático dessa situação é o de Jose Padilla, cidadão estadunidense há quatro anos em prisão militar na Carolina do Sul. Ele foi preso em Chicago sem acusação formal e fez um pedido de habeas corpus baseado numa sentença: me soltem ou me acusem. O caso está na Suprema Corte. Se Padilla perder, o presidente Bush terá poder exclusivo para indiciar qualquer pessoa, estadunidense ou não, por terrorismo e prendêla para a vida toda, sem fazer nenhuma acusação formal. BF – Os Estados Unidos se aproximam de se tornar ditatoriais? Frank – Está em curso um processo no qual perdemos direitos e nos aproximamos de uma ditadura. Um indicativo disso são as modificações na 4ª emenda da Constituição, que exige provas de que uma pessoa está no caminho de cometer ou de que cometeu um crime, para se obter um mandado de busca na casa de alguém. Quando usado de forma apropriado, esse dispositivo funciona bem. Em 1978, foi aprovada o Foreign Intelligence Surveillance Act (Fisa - Ato para Vigilância e Inteligência Estrangeira), criando uma corte secreta, a Corte Fisa. É nessa instância que se deve requisitar uma ordem para conduzir uma vigília sobre alguém suspeito de ser espião. A função era especificamente contra espionagem estrangeira e as informações recolhidas não podiam ser usadas num tribunal criminal dos Estados Unidos. Com o Ato Patriota, não só as informações podem ser usadas nesses tribunais, como também servem para processar um cidadão estadunidense. O sentido da 4ª emenda desapareceu. Outro indício desse caminho que os Estados Unidos percorrem são restrições à 1ª emenda, que garante o direito de fazer assembléias e manifestações contra o presidente, governadores, qualquer um. Mas se o presidente estiver fazendo um discurso, você tem o direito de se reunir a cinco quilômetros de distância, em uma área cercada, e protestar. Não próximo ao presidente, então ele não sabe que você está lá. Quer dizer, você tem o direito mas não pode usá-lo de forma efetiva. Nos poucos casos em que pessoas se aproximaram segurando cartazes contrários ao presidente, elas foram presas. E não precisa ser só o presidente. Na minha cidade, Chicago, o prefeito indica onde quer que os manifestantes fiquem. BF – Esses dispositivos podem ser ampliados? Frank – É o que estão fazendo
agora no Congresso. Havia oito dispositivos no Ato Patriota que por ser polêmicos tinham um prazo de validade e expiraram. Eles permitiam, por exemplo, busca em arquivos onde existem certos contratos de silêncio. Ou seja, abertura de arquivos de bibliotecas, hospitais e lojas de livros.
compras ou dizer “coisas feias” sobre o presidente sem ser presos. Acontece que o governo não se preocupa com isso. De acordo com pesquisas, Bush tem apenas 35% de apoio e 70% das pessoas acham que as tropas devem deixar o Iraque. Contudo, o Estado foi seqüestrado por corporações internacionais.
que matar outra pessoa”, dizem. Há também um tipo de subversão silenciosa. As bibliotecárias destroem os arquivos assim que os livros são devolvidos. Então, quando o governo lhes pede para verificar quais livros tal pessoa retirou, elas informam “bom, ele está com este livro agora. Mas não temos mais os arquivos”.
Temos liberdade de imprensa mas toda a grande mídia é controlada por seis ou sete corporações internacionais que apóiam o governo
BF – Quando isso começou? Frank – Desde o fim da 2ª Guerra Mundial, tem havido um processo de erosão dos direitos humanos em favor dos corporativos. Uma empresa pode dar milhões de dólares para um candidato. Nas eleições passadas, 99% dos parlamentares se reelegeram. O sistema foi roubado. Um exemplo é Cynthia McKinney, congressista da Geórgia que assumiu posições fortes em favor do povo palestino. Nas últimas eleições, foram levados milhares e milhares de dólares de fora de seu Estado para seu oponente e ela perdeu seu posto.
BF – E os movimentos conservadores? Frank – Não acho que Bush dá a mínima para questões como o casamento homossexual, o aborto. Ele toma essas posições para a sua base, grupos fundamentalistas conservadores que são fortes nos Estados Unidos. Quando o reverendo Pat Robertson pede publicamente o assassinato de Hugo Chávez, nada acontece. Se eu defendo o assassinato de um líder mundial nos Estados Unidos, o mínimo que preciso fazer é prestar um depoimento. Essas são pequenas coisas que comprovam um processo de formação de uma ditadura. Olhando as fotos das prisões de Abu Ghraib e Guantánamo você vai achar que está vendo imagens de campos de concentração nazistas. Mas eles não são nazistas. Os Nazis são um grupo muito específico. Temos diferentes leis, tradições e culturas das que tinham os alemães. Uma comparação muito melhor é com Benito Mussolini e o fascismo italiano, este era claramente um fascismo da elite corporativa.
BF – Seria diferente se John Kerry tivesse vencido as eleições? Frank – Infelizmente, não. Todos querem ter mais poder e Kerry não é diferente, ele votou a favor do Ato Patriota. Aliás, apenas um senador foi contra. Daqueles oito dispositivos provisórios, alguns serão aprovados para sempre e os demais serão prorrogados por mais oito anos. Um deles proíbe “apoiar materialmente” organizações terroristas em qualquer lugar do mundo. Aqui existem dois problemas. “Apoio material” é um termo muito amplo. Inclui escrever cartas, fazer pronunciamentos, atuar como advogado etc. Não é só dar dinheiro. O outro ponto é que o Departamento de Estado dos Estados Unidos é quem elabora a lista de pessoas e organizações terroristas. E é uma escolha muito política. O Exército Republicano Irlandês (IRA), por exemplo, nunca foi classificado como organização terrorista pelo governo estadunidense pois muitos descendentes de irlandeses moram nos Estados Unidos e são integrantes do Congresso. Existem pessoas presas nos Estados Unidos por ter dado esse “apoio material”, mas o que eles queriam era que esse crime implicasse pena de morte. Ou seja, o governo poderia matar alguém por atuar como advogado em favor de alguma dessas organizações. BF – Se o voto na oposição, Kerry, não significa mudança, de que democracia estamos falando? Frank – Temos liberdade de imprensa mas toda a grande mídia é controlada por seis ou sete corporações internacionais que apóiam o governo. A mídia não cobre 10% do que se passa no mundo. Na cobertura do Oriente Médio, não há nada sobre o que Israel faz. E que diferença faz liberdade de assembléia se a sua voz não é ouvida? Mas os estadunidenses se acham livres se podem ir fazer
BF – Sendo os EUA a principal potência mundial, quais os riscos para o restante do mundo de as corporações passarem a controlar completamente o governo? Frank – Existem muitos riscos. O principal é que as pessoas nos Estados Unidos não podem evitar o uso do poder militar em outros lugares do mundo. Por exemplo, por mais que as coisas estejam indo mal no Iraque, as tropas continuam lá. Isso apesar das tais armas de destruição em massa usadas para justificar o ataque não terem sido encontradas. Os Estados Unidos têm um vasto histórico de intervenções militares – o que deve se intensificar se os interesses das corporações exigirem isso. BF – E a mobilização nos Estados Unidos para evitar isso? Frank – A oposição nacional é o partido democrata mas, localmente, existem milhares de organizações dos mais diferentes tipos. Há um grande movimento contra a pena de morte, a privatização da seguridade social, o recrutamento. As forças armadas são formados por voluntários e o Exército está tendo muita dificuldade para recrutar porque os garotos não estão dispostos a morrer no deserto. Por sua vez, o governo corta os fundos universitários que possui. Portanto, se você for ambicioso, a única perspectiva para subir na vida é se tornar um militar. É o que chamamos de recrutamento pela pobreza. Mas há um esforço de contra-recrutamento. Enquanto os militares entram nas escolas do ensino secundário para recrutar, existem pessoas indo explicar aos alunos que estão mentindo para eles. “Você irá ao Iraque e pode morrer ou, pior que isso, pode ter
Localmente, existem milhares de organizações dos mais diferentes tipos. Há um grande movimento contra a pena de morte, a privatização da Previdência, o recrutamento BF – Onde esse processo vai dar? Frank – A situação econômica está se deteriorando para a população média e a desigualdade de renda está aumentando. Nas partes frias do país, as casas são aquecidas com óleo e, principalmente, gás natural. Neste inverno, o preço desses insumos pode até triplicar e as pessoas terão que optar entre se esquentar ou comer. Isso vai chegar num limite. O governo será levado a usar os dispositivos do Ato Patriota para reprimir a indignação do povo. Por outro lado, temos um movimento muito descentralizado e é um mistério como ele se unirá para liderar uma revolução.
10
De 5 a 11de janeiro de 2006
INTERNACIONAL GOVERNO BUSH
A alienação é a base social do império Arquivo pessoal
Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski e Marcelo Netto Rodrigues da Redação
Paulo Pereira Lima
Para o geógrafo Richard Peet, os estadunidenses perderam a capacidade de criticar políticas do governo
O
s Estados Unidos estão descontrolados. O presidente do país, George W. Bush, governa sem levar em conta os interesses de seu povo. Suas decisões beneficiam apenas as grandes corporações, que investem “rios de dinheiro” para garantir a eleição de seus candidatos. A população estadunidense está à margem das decisões do governo e, o que é mais dramático, não quer participar da política de seu país. O geógrafo Richard Peet considera que a alienação do povo dos Estados Unidos permitiu ao “grupo fascista”, liderado por Bush, chegar ao poder. “As pessoas não concordam com (a política do governo), mas seu protesto não é mais do que ir para casa ligar a televisão e se desligar da política”, diz. Peet esteve em São Paulo (SP) participando de seminários sobre a política externa estadunidense. Ele afirma que a orientação do governo Bush tem duas influências: o neoconservadorismo e o neoliberalismo. O primeiro é um conjunto de valores, de acordo com os quais os Estados Unidos são um modelo de democracia, que deve ser imitado, mesmo à força, por todos os países. O segundo é uma política que visa a abrir as economias do mundo para a voracidade dos investidores estadunidenses.
Os estadunidenses não se preocupam se cem iraquianos foram assassinados ou dez soldados de seu próprio país morreram Brasil de Fato – Na Argentina, em novembro, Bush foi alvo de manifestações. No Brasil, em escala menor, também houve protestos. Essas situações têm sido recorrentes, por onde quer que ele vá. Qual o efeito disso na opinião pública estadunidense? Richard Peet – Nos Estados Unidos, a maioria se opõe à guerra do Iraque, de acordo com pesquisas de opinião que medem de modo bastante superficial as atitudes da população. De qualquer modo, a superficialidade é um bom modo de analisar os estadunidenses. Estão tão consumidos pelo consumo que não têm mais do que o mínimo em sentimentos políticos. Se você perguntar o que pensam, vão dizer que se opõem à guerra. Se quiser saber o que vão fazer em relação a isso, responderão: “Quero ir para casa assistir a jogos de futebol americano”. Essa é a natureza das pessoas consumistas. São rasas, não têm pensamentos profundos. Suas opiniões lhes foram impostas – nunca realmente pensaram sobre elas. Os EUA são um país de pessoas alienadas, que nunca fazem nada em relação ao que pensam. Isso facilita a ação do grupo fascista que atualmente governa. A filosofia dos governantes é a dominação neoconservadora. As pessoas não concordam com isso, mas seu protesto não é mais do que ir para casa ligar a televisão e se desligar da política. As notícias importantes sobre o Iraque são postergadas para não atrapalhar os jogos de futebol americano, muitas vezes nem são veiculadas. E ninguém protesta, pois os estadunidenses não se preocupam se cem iraquianos foram assassinados ou dez soldados de seu próprio país
Quem é
Movimentos sociais pressionam os governos do Sul a rejeitar o pagamento da dívida e a submissão ao FMI
morreram. Se estiver passando um boletim de notícias sobre mortes no Iraque, o telespectador vai mudar de canal, vai preferir assistir a desenhos animados. BF – Quando um intelectual, como o senhor, fala aos estadunidenses que em todo o mundo o país deles é chamado de império ou potência imperialista, qual a reação? Peet – Isso não acontece. É impossível. Os estadunidenses pensam que todas as pessoas no mundo querem ser como eles. Para eles, falar que os Estados Unidos são um Império é discurso dos invejosos. “Se não fosse assim, por que tantos mexicanos e latino-americanos se arriscam para entrar no país?”, dizem. Os Estados Unidos são vistos como o paraíso. BF – Como se define o imperialismo de Bush? Peet – Tem dois lados. Em primeiro, o neoconservadorismo, que é uma corrente de pensamento segundo a qual os Estados Unidos são a expressão máxima da liberdade, da democracia e da felicidade. Guerras são defendidas como um meio solidário para que outros países tenham acesso ao sonho estadunidense. É uma reversão teórica em todos os sentidos, pois se justifica o inaceitável como se fosse o bem para todos. Mas é preciso dizer: os Estados Unidos não são uma democracia. Eleições são vendidas e compradas. Cada pleito custa 4 bilhões de dólares, principalmente gastos em propaganda. As corporações financiam os dois partidos do país, o Republicano e o Democrata. Nosso sistema político não é uma democracia, é um grande mercado para os ricos. Em segundo, tem o lado do neoliberalismo, que defende que a economia estadunidense, perfeita e livre, deve ser expandida para todos os países. O mercado deve dominar a sociedade, o Estado tem que cair fora, privatizar as empresas públicas e garantir o funcionamento de instituições financeiras. Tudo isso, no fundo, é para garantir a entrada de investidores internacionais nos países, para que acumulem quanto dinheiro quiserem. Na lógica do governo dos Estados Unidos, o Brasil não passa de uma oportunidade para fazer dinheiro. O governo estadunidense não liga para o povo brasileiro. O mundo é visto como um conjunto de oportunidades para conseguir mais lucro. BF – E a militarização? Peet – Os Estados Unidos têm meio milhão de soldados, que são enviados para diversos países, com a justificativa de fazer exercícios militares ou caçar grupos terroristas. O governo estadunidense não descarta intervenções militares em qualquer região do mundo, incluindo a América do Sul. Primeiro, ameaça por meios diplomáticos. O
Departamento de Estado diz que vai cortar ajudas financeiras ou faz programas de propaganda contra o país que não os agrada. É o que está ocorrendo com Hugo Chávez, presidente da Venezuela, que é descrito como um louco na mídia dos Estados Unidos. O governo faz isso porque não quer, em um primeiro momento, gastar bilhões de dólares invadindo a Venezuela ou outro país. Além disso, não há soldados suficientes. Ninguém mais está entrando no Exército, pois não quer ir ao Iraque, morrer por uma causa na qual não acredita. Se a diplomacia não funciona, então a estratégia pode ser qualquer uma. No caso da Venezuela, o risco é maior pois esse país tem algo que os Estados Unidos querem muito: petróleo. BF – É verdade que o petróleo dos Estados Unidos vai acabar em três anos? Peet – Não. É difícil calcular, mas está, lentamente, acabando. Em 20 anos, talvez os Estados Unidos estejam com pouco mais do que 10% de suas reservas. Em 50 anos, talvez esteja a 5%. Mas o governo estadunidense, que está diretamente ligado às questões do petróleo – a família de Bush é financiada por corporações do petróleo – está pensando em abrir áreas ecologicamente vulneráveis para a exploração, principalmente no Ártico, onde pessoas e animais serão aniquilados pelas corporações do petróleo. O discurso do governo é: “Estamos sem petróleo. Não faz mal que alguns animais morram para mantermos nosso modo de vida”. E isso também justifica o aumento da agressividade dos Estados Unidos na política externa, caçando países onde há reservas de petróleo. BF – A Agência Central de Inteligência (CIA) continua ativa? Peet – Sim. Espiões espalhados pelo mundo encaminham informações que são centralizadas nos Estados Unidos. No momento, por incrível que pareça, a CIA é o setor mais liberal da política externa. Critica a estratégia de Bush, que considera insana. Diz que os neoconservadores são um bando de loucos que chegaram ao poder e tomam decisões sem considerar as informações da CIA. Bush ouve o menor rumor e invade. A CIA pensa que é preciso usar poderosos canais de informação antes de definir uma estratégia ou ação militar. Para não ter confrontos, o Departamento de Defesa, liderado por um neoconservador, Donald Rumsfeld, tem sua própria organização de inteligência, que não presta contas à CIA. BF – Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 foram usados por Bush para justificar ações militares contra Afega-
nistão e Iraque. Ele se valeu do medo das pessoas para impor sua política belicista. Hoje, os estadunidenses continuam com esse medo de terrorismo? Peet – Os estadunidenses pensam que, apesar de serem bons e representar o futuro da humanidade, há muitas pessoas, especialmente muçulmanas, que os odeiam, sem muita explicação. Esse medo poderia ser usado para mudar a política dos Estados Unidos, mas acaba sendo manipulado, muito facilmente, por governantes com respostas fáceis e prontas, como os neoconservadores. Apáticos, os estadunidenses, com medo, voltam para sua casa, para assistir televisão. BF – Bush não pode mais ser reeleito, pois já está em seu segundo mandato. Vai surgir uma nova liderança neoconservadora? Ou uma alternativa? Peet – Há pessoas muito piores do que Bush, esperando para chegar ao poder, como o vice-presidente, Dick Cheney. Ele representa as grandes corporações no governo. Se Cheney ganhar, será muito pior. Bush tem uma inteligência limitada, mas tem os valores de um estadunidense conservador. Ele acredita em Deus, na tradição do país, e coisas assim. Cheney não tem nada: só vontade de poder e dinheiro. Antes de ser vice-presidente, ele era presidente de Halliburton, empresa que reconstrói países devastados por bombas e se tornou uma das principais parceiras do governo de Bush na guerra do Iraque. Cheney estimula o surgimento de cenários, ou seja, guerras, para Halliburton lucrar.
Há pessoas muito piores do que Bush, esperando para chegar ao poder, como o vice-presidente, Dick Cheney BF – Cheney é o mais cotado? Peet – Se não for ele, vai escolher um idiota qualquer, bem aparentado, que se tornará seu marionete no poder. E vai manter a linha da política: ameaçar ou invadir países, como Coréia do Norte, Cuba, Irã e Venezuela. Preferem ameaçar, mas, se invadirem, Halliburton fará rios de dinheiro. BF – Como é possível os estadunidenses, que em outros tempos lutaram por direitos civis e democracia, aceitarem esse cenário? Peet – É um processo longo, no qual a mídia, como construtora ou destruidora de consciência, tem um papel fundamental. Os estadunidenses perderam o interesse em
Richard Peet é professor de Geografia na Universidade Clark, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Trabalhou em estudos sobre a globalização com o geógrafo brasileiro Milton Santos, com quem escreveu o livro O Novo Mapa do Mundo (Hucitec, 1993). Também é autor de A Trindade profana: o FMI, o Banco Mundial e a OMC (2003) e de O Capitalismo Global (1991), não traduzidos para o português. conversar com outras pessoas. Não há discussões em bar ou diálogos entre amigos. À noite, os estadunidenses foram domesticados para ir a suas casas assistir televisão. Nos Estados Unidos, isso quer dizer: sentar-se em frente a uma enorme tela, que toma toda a parede, e ser bombardeado por imagens, rasas em conteúdo e belas em aparência. Essas pessoas, sentadas, são facilmente manipuláveis e, por isso, aceitam a loucura de Bush. BF – Qual a estratégia, a longo prazo, das pessoas que governam os Estados Unidos? Peet – Sou dos que acreditam que o que está em jogo no Oriente Médio não é somente o petróleo. É, obviamente, um elemento importante, mas não o único. Os Estados Unidos são governados por pessoas que defendem a expansão do império estadunidense, para ter um controle sobre o máximo de países possíveis. Não defendem colonialismo ou intervenções militares contínuas – aliás, querem tirar as tropas do Iraque, mas querem criar as condições necessárias para manter sua influência sobre o mundo. Acreditam, de modo convicto, que representam o melhor futuro para a humanidade. Querem fazer do mundo imitações dos Estados Unidos. São arrogantes e acreditam que as populações do mundo querem isso também. Querem o mesmo estilo de consumo, os mesmos programas de televisão, as mesmas roupas. BF – Os intelectuais estadunidenses estão aceitando essa visão do mundo? Peet – Depende da universidade. Onde leciono, os acadêmicos têm consciência. Mas é uma exceção. Os estudantes, mais críticos, são oriundos de famílias de classe média alta. E isso é um dado da situação dos Estados Unidos: é mais fácil convencer e mobilizar pessoas da classe média alta do que trabalhadores. BF – Como mudar isso? Peet – Eu queria ter uma resposta. Queria ter uma boa resposta, mas não há. Sou apenas um cara normal, com certa idade, marxista, com dois filhos, que vai para grandes salas de aula, com adolescentes estadunidenses. Alguém que tenta estimular uma visão diferente do mundo. Tento criar uma alternativa, mesmo que seja mental ou teórica, ao neoconservadorismo. Isso é algo solitário e, infelizmente, muito perigoso.
11
De 5 a 11de janeiro de 2006
INTERNACIONAL SOBERANIA
Dívida, doença crônica das nações A
dívida externa é um instrumento de dominação, imposto pelos países ricos aos pobres. Por um lado, institucionaliza a transferência de capital dos povos do Terceiro Mundo para os credores do Norte. Por outro, cria canais de pressão política, mantidos por instituições financeiras internacionais, que coagem governantes a se submeter ao esquema. A análise é de Damien Millet, presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), da França. Em entrevista por correio eletrônico, ele informa que a dívida brasileira aumentou 42 vezes entre 1964 e 1985, passando de 2,5 bilhões de dólares para 104 bilhões de dólares. Esta dívida, diz Millet, foi contraída de modo ilegal, geralmente repassada, diretamente, para os cofres dos ditadores que governaram o país durante o período. Para alterar esse cenário, analisa, é preciso reverter a correlação de forças entre os beneficiários da dívida e os que são sujeitos a ela. Brasil de Fato – O Brasil é o país em desenvolvimento mais endividado. Sua dívida externa é superior a 230 bilhões de dólares. Como isso é possível? Damien Millet – A ditadura militar, que vigorou entre 1964 e 1984, teve grande impacto no endividamento do país. Aliada estratégica do bloco ocidental em plena Guerra Fria, ela recebeu amplos benefícios dos grandes credores e a dívida do Brasil passou de 2,5 bilhões de dólares em 1964 a 104 bilhões de dólares em 1985 – aumentou 42 vezes, em 20 anos. Sobretudo, a dívida serviu para reforçar a junta militar que estava no poder, para reprimir a oposição, para engordar certas contas bancárias no estrangeiro ou para financiar megaprojetos – barragens, termoelétricas, a Transamazônica etc. – inadequadas às necessidades da população, mas reclamados pela transnacionais instaladas no país. Em vez de rejeitar essa dívida odiosa, os governantes que chegaram ao poder depois de 1984 a assumiram. Mais do que isso: fizeram novos empréstimos, desencadeando uma espiral infernal, que levou a dívida a crescer. Ela mais do que dobrou, em vinte anos. BF – Quais são os países mais endividados? Millet – Entre os países em desenvolvimento, cuja dívida externa ultrapassa os 100 bilhões de dólares, o Brasil está à frente da China, Rússia, Argentina, Turquia, México, Indonésia e Índia. Mas não devemos esquecer os ricos: Estados Unidos, países da União Européia e Japão têm, cada um, uma dívida pública superior a 7,5 trilhões de dólares. A dívida pública de todos os países ricos é da ordem de 25 trilhões de dólares, 14 vezes mais do que a soma da dívida externa pública dos 165 países em desenvolvimento. BF – Por que o impacto é mais negativo nos países pobres? Millet – A dívida dos países do Norte é sobretudo interna. Essas dívidas são, em geral, contraídas nas moedas locais. Assim, para pagá-la, podem recorrer a certos mecanismos (impostos, aumento das taxas de juro, emissão de títulos etc.). Os países do Sul, cujas dívidas são sobretudo externas, precisam exportar para captar as divisas necessárias aos pagamentos. Tornam-se dependentes de suas exportações, cujos parâmetros são fixados pelo Norte. A situação é mais difícil de administrar e a soberania desses países é abalada.
Arquivo Pessoal
João Alexandre Peschanski da Redação
Paulo Pereira Lima
O Brasil é o país em desenvolvimento mais endividado, e a causa disso foram as medidas ilegais durante a ditadura
Quem é
Movimentos sociais pressionam os governos do Sul a rejeitar o pagamento da dívida e a submissão ao FMI
BF – Qual é o total das dívidas do mundo? Millet – Somadas as dívidas dos Estados, das empresas e das famílias, passa de 60 trilhões de dólares. Só nos Estados Unidos, as dívidas passam os 36 trilhões de dólares. É claro que o montante das dívidas dos países em desenvolvimento, pesadas em relação às suas economias, é modesto em comparação com os fluxos financeiros internacionais. A anulação da dívida do Terceiro Mundo seria, então, um mecanismo usado pelos credores para preservar a dominação que exercem sobre os países do Sul.
A dívida mundial de Estados, empresas e famílias passa de 60 trilhões de dólares. Só nos EUA, supera os 36 trilhões de dólares BF – Quais são os principais credores dos países do Sul? Millet – No que concerne à dívida externa pública, 42% dos credores são privados, principalmente investidores dos mercados financeiros. Seguem-se 31% de dívidas junto a instituições multilaterais, em especial o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, e 27% são bilaterais. BF – Diz-se que o pior não é a dívida, mas os juros. Qual a sua opinião? Millet – Os juros representam os lucros dos credores. Ainda que as taxas de juros tenham estado baixas nos anos 1960 e 1970, o que beneficiou os países do Sul, elas triplicaram em poucos meses no início dos anos 1980, impulsionadas por políticas dos Estados Unidos, gerando a crise da dívida. A armadilha se fechou. Quando um país pobre deseja um empréstimo, o credor lhe impõe uma taxa de risco, por conta de sua fragilidade e da possibilidade do não reembolso. Durante a crise brasileira de 1999, as taxas subiram mais de 40%, o que tornou o crédito praticamente inviável. Além disso, as políticas impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial, por solicitação dos países do Norte, implicam taxas de juros elevadas nos países do Sul para atrair os capitais estrangeiros. BF – Por que os governantes são contrários a uma auditoria da dívida?
Millet – A exemplo do Brasil, numerosos países conheceram regimes ditatoriais e corruptos, que contraíram dívidas em seus próprios interesses, sem qualquer benefício para a população. A idéia da auditoria é central para demonstrar o caráter odioso dessas dívidas, assim como daquelas que foram contraídas posteriormente para pagá-las. Nessa perspectiva, não há argumento para não anular as dívidas. Um governo realmente preocupado com os interesses do povo tem como seguir essa linha. Isso está previsto na Constituição brasileira, mas, de modo injustificado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se manifestou sobre a questão. BF – Qual o papel das dívidas na dinâmica do sistema financeiro? Millet – A dívida é um mecanismo de transferência de riqueza dos povos do Sul para os credores do Norte. Seu fluxo é garantido pelos potentados locais, que ganham comissão no processo. A diferença entre os novos empréstimos e o total de reembolso em um dado período, é negativa para os países em desenvolvimento: em média, menos 81 bilhões de dólares, nos últimos seis anos. Em 2003, foi de menos 8 bilhões para o Brasil, o que mostra a hemorragia de capitais que representa a dívida. Por meio da dívida, a finança mundial aspira as riquezas produzidas pelas populações, jogando-as em uma miséria que não para de crescer. BF – Que retorno recebem os países que pagam suas dívidas? Millet – Não há retorno. A ajuda pública dos países ricos ao desenvolvimento é um dinheiro que acaba indo, quase integralmente, para o pagamento da dívida. BF – A dívida internacional atinge a soberania dos países e os impede de controlar sua economia. Por que a pagam? Millet – Diferentemente do que se costuma dizer, a dívida não é uma questão das relações Norte-Sul. Há os que lucram com a dívida e os que se beneficiam dela. Os poderosos do Sul, prisioneiros do molde neoliberal, são cúmplices dos credores, a quem servem sem pestanejar, até mesmo porque têm os mesmos interesses. No geral, as elites do Sul colocam suas fortunas no exterior, e com elas compram títulos da dívida de seu próprio país. Por isso, os governantes do Terceiro Mundo pagam a dívida sem hesitar, e se preocupam mais em seduzir os mercados financeiros do que em garantir as necessidades fundamentais de seus países.
BF – O que acontece se um país do Sul não pagar sua dívida? Millet – Do lado dos credores, um vento de pânico, pois vão perder um instrumento muito sutil de dominação, que lhes permite impor aos países do Sul decisões tomadas em Washington, Londres, Bruxelas, Paris ou Tóquio. Do lado das populações, um vento de esperança, pois a colonização econômica poderá, enfim, acabar. A mobilização dos povos poderá abolir a lógica neoliberal reinante. Um outro mundo estará ao alcance da mão – tudo terá que ser construído, mas tudo será, mais uma vez, possível. BF – Quais os mecanismos usados pelos credores para obrigar os países a pagar sua dívida? Millet – Muitas vezes, os governos do Sul são marionetes dos credores, que têm meios financeiros e midiáticos para favorecer a chegada ao poder dos que atendem seus interesses. A corrupção é a mesada que oferecem para recompensá-los. Se um desses governantes tenta sair dessa tutela, ou escolhe uma via alternativa, sofre intensas pressões diplomáticas e comerciais, como aconteceu com Néstor Kirchner, da Argentina. Se insiste, pode ser considerado um pária. Por isso, Cuba sofre um duro embargo há 40 anos. Thomas Sankara, presidente do Burkina Faso, foi assassinado em 1987. Verdadeiras resistências, como a de Hugo Chávez, na Venezuela, são poucas. Para chegar ao poder, os políticos do Sul, como Lula, tiveram que se comprometer com aquele sistema. BF – Qual o papel das instituições financeiras internacionais? Millet – As duas principais, o FMI e o Banco Mundial, se revezam para garantir os interesses dos países ricos e das grandes empresas. Obrigam as nações do Sul a aceitar reformas de ajuste estrutural de cunho neoliberal: redução de investimentos sociais, extinção de subsídios para produtos de consumo básico, desenvolvimento de exportações e redução da produção de subsistência, privatizações desenfreadas, liberalização da economia... Tudo para atrair capitais estrangeiros e reduzir as despesas do Estado para que possa pagar a dívida. Aquelas reformas geram pauperização e aumento das desiguldades em todas as regiões onde são feitas. Joseph Stiglitz, antigo economista do Banco Mundial e Prêmio Nobel de Economia, explica por que medidas tão nefastas foram impostas: “Se examinarmos o FMI como se seu objetivo fosse servir aos interesses da comunidade
Matemático de formação, Damien Millet é presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) da França. A entidade pressiona governos de países ricos para cancelar a dívida dos pobres, argumentando que ela aumenta a crise social no Terceiro Mundo. Millet integra a organização internacional Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos (Attac). É autor de Os tsunamis da dívida, de 2005, e 50 perguntas e 50 respostas sobre a dívida, o FMI e o Banco Mundial, de 2002, ambos em co-autoria com Eric Toussaint, presidente do CADTM da Bélgica. financeira, encontraremos sentido em suas ações. Sem isso, estas parecerão contraditórias e intelectualmente incoerentes”. BF – Nesse contexto, parar de pagar a dívida parece não depender só da decisão de um governante. O que mais é necessário? Millet – É preciso reverter a correlação de forças entre os que se beneficiam da dívida e os que estão sujeitos a ela. As lutas sociais devem conscientizar os povos sobre as conseqüências nefastas da dívida, mas também pressionar os governos do Sul a rejeitar o pagamento da dívida. Uma auditoria da dívida pode ser um instrumento fantástico para colocar essa luta no campo do direito internacional.
As lutas sociais devem conscientizar os povos sobre as conseqüências nefastas da dívida, e pressionar os governos a rejeitar seu pagamento BF – Há casos em que a dívida realmente foi anulada? Millet – Nos anos 1930, o Brasil e outros 13 países latino-americanos suspenderam, por um tempo, os pagamentos. Quando o Brasil negociou a solução do litígio com o cartel dos credores estrangeiros, em 1943, obteve uma redução de algo como a metade do estoque da dívida. À época, para apoiar sua decisão unilateral, o governo brasileiro criou uma auditoria, que revelou a existência de várias irregularidades nos contratos. Antes disso, em Cuba, em 1898, ou Costa Rica, em 1923, a dívida fora qualificada de odiosa, e anulada. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) repudiou sua dívida em 1917. Mas, no período recente, a não ser algumas dívidas anuladas pela Rússia nos anos 1990 e a firmeza da Argentina em não se deixar pilhar, os credores tem se mantido em vantagem. Os movimentos precisam estimular mais mobilizações para fazer essa correlação de forças mudar.
12
De 5 a 11de janeiro de 2006
INTERNACIONAL ARGÉLIA
Uma guerra, muitas lições ao mundo Impor fórmulas importadas a povos de diferentes culturas é um bom fermento para movimentos de libertação nacional
I
mortalizada no filme A Batalha de Argel (veja box), a guerra de independência da Argélia (1954 – 1962), ensina importantes lições sobre a natureza dos imperialismos, e das implicações, para todos os envolvidos, da imposição de valores da cultura ocidental branca e cristã a sociedades islamizadas. Em entrevista a este jornal, a professora Leila Leite Hernandez, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), analisa a guerra de libertação da Argélia, colonizada pelos franceses. Brasil de Fato – Quando os franceses chegaram à Argélia? Leila Leite Hernandez – Em 1830, a França se torna metrópole da Argélia. Nesse país, os franceses vão encontrar uma organização social e uma estrutura política complexa ligada ao Império Otomano. Isso significa dizer que questões de administração e jurisdição – que são núcleos de poder político – estavam diretamente assentados no Al Corão, seja ele lido de uma forma mais sunita ou mais xiita. No Alcorão, está a idéia da sharia: o homem islamizado não pode ser submisso ao branco, ao cristão. Isto vai além da questão religiosa, porque a estrutura jurídico-política dessa sociedade é fundada num entrelaçamento muito grande das questões religiosas, administrativas e políticas. BF – Houve resistência à ocupação francesa? Leila – Sim. Eles chegam em 1830 e impõem valores próprios de uma civilização ocidental, cristã, com outra lógica jurídico-política, a povos bastante organizados. Logo depois da conquista efetiva, estoura o primeiro movimento de resistência, liderado por ‘Ab-del Kadir (1834 a 1847), abatido pelos franceses que vão “pacificar” o país. Pacificar ou domesticar (isso vale para a África de uma forma geral), significa abafar, terminar, pôr fim a qualquer resistência com o uso da força física, da violência. Paralelo a isso, são confiscadas as terras mais produtivas e férteis, e a população local é empurrada para perto das montanhas. Veja quantos elementos vão atuar aí, violentando a cosmogonia desses povos. BF – Como essa violência se traduz na imposição de uma cultura branca e européia? Leila – A Argélia foi uma colônia de povoamento. Ou seja, para lá foi um número muito grande de colonos europeus. Não por acaso, vamos notar que sempre que temos uma colônia de povoamento, o colonialismo vai ser muito mais violento e opressor, recorrendo com intensidade ao uso da violência física como da violência simbólica. Os efeitos dessa última são mais complexos, pois se enraizam nas relações pessoais do cotidiano das pessoas. Em determinado momento, pode-se até acabar com a violência física, mas a simbólica permanece por muito mais tempo. BF – Havia um projeto de assimilação inserido na pretensa missão civilizatória? Leila – Apesar de não sistematizado, a França tinha um projeto cultural de assimilação, o que também se observa no colonialismo português. Isso significava que o homem africano, seja ele bérbere, no caso argelino, árabe, ou de outros grupos étnicos culturais, tinha que se assemelhar o mais possível ao homem branco, civilizado, ocidental,
Arquivo pessoal Fotos: Divulgação
Dafne Melo da Redação
Quem é Leila Leite Hernandez é mestre e doutora em sociologia política pela Universidade de São Paulo, onde leciona no Departamento de História. Autora do livro “A África na Sala de Aula – Visita à História Contemporânea”, lançada pela Selo Negro Edições.
No clássico, toda a violência da dominação Quase 40 anos depois de seu lançamento, o filme do cineasta italiano Gillo Pontecorvo, A Batalha de Argel (1966) conserva intacta a sua atualidade. Prova disso foi a sua exibição secreta no Pentágono para militares estadunidenses, no ano passado, na tentativa de fazê-los entender um pouco a natureza da resistência no Iraque (o fato foi noticiado no jornal The New York Times). Filmado apenas quatro anos após a independência da Argélia, o filme, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, retrata um período da guerra de independência na Argélia, abordando suas motivações políticas, táticas e estratégias, tanto dos franceses, como dos guerrilheiros argelinos.
francês. Um exemplo disto é que nos países ao sul do Saara, de população negra, os colonizados tiveram que aprender a língua, a história, a geografia da França, e aprendiam, nas poucas escolas que tinham, que eles eram descendentes de gauleses. Então imagine como fica a identidade de uma criança negra que é obrigada a se colocar como descendente do Asterix. É uma violência. BF – Quando os movimentos por independência começam a tomar corpo? Leila – Eles se intensificam quando os africanos são incorporados à lógica das duas grandes guerras. Isso ocorre seja com a presença de europeus nos territórios africanos, seja pelo fato de africanos serem agregados aos exércitos europeus. Cria-se, então, uma expectativa muito grande de que no final da guerra se alargassem direitos e liberdades, mas isso não ocorre. A partir daí, há um encadeamento de ações administrativas que vão, cada vez mais, reforçar o caráter assimétrico da
Em visita ao Festival de Cinema do Rio de Janeiro, em 2004, Saadi Yassef, dirigente na Frente de Libertação Nacional (FLN), e que atua no filme (Pontecorvo optou por usar atores não profissionais), declarou que a guerra do Iraque “ressuscitou” o filme. Lá, como na Argélia, uma resistência se organiza para acabar com a ocupação imperialista. Se, antes, a França alegava uma missão civilizatória, hoje, os Estados Unidos usam a “democracia” para justificar a ocupação.
TORTURA Outro ponto onde o Exército francês na Argélia se iguala às forças estadunidenses é na prática da tortura que, nesse último caso, foram provadas com as fotos tiradas na
sociedade argelina. Os europeus que ainda estão nas colônias de povoamento são a minoria que controla as terras férteis e domina a política. Ao término da Segunda Guerra, estas contradições são postas claramente pelas elites culturais africanas. BF – Quem integrava as elites culturais africanas? Leila – Africanos que iam completar os estudos nas metrópoles. Lá, eles vão trocar informações a respeito da natureza do colonialismo. No caso específico dos colonizados pelo império francês, uma vez em Paris, são acolhidos por artistas e políticos dos partidos de esquerda – socialista e comunista. Isso permite que o grupo se politize, e passe a negar o colonialismo como parte do imperialismo, e esse como parte do capitalismo. Tudo na lógica leninista de que o imperialismo seria a última fase do capitalismo. É importante dizer que, para Hanna Arendt, este novo imperialismo do fim do século 19, ao contrário do que diz Lênin, não é
prisão de Abu-Ghraib. Entretanto, se hoje se tem a figura de Donald Rumsfeld alegando surpresa diante da descoberta de tortura, prometendo punir culpados, no filme de Pontecorvo, a situação é colocada de forma muito mais verdadeira, como apontou a escritora Naomi Klein, em artigo publicado no jornal LA Times, em junho deste ano. Em uma das cenas, o coronel Mathieu (na vida real, o coronel Jacques Massu), em uma coletiva de imprensa, é questionado por jornalistas franceses sobre o uso da tortura em presos argelinos. A resposta: “A tortura não é o problema, o problema é que a FLN quer nos expulsar da Argélia, e nós queremos ficar. É a minha vez de fazer a pergunta: a França deveria ficar na Argélia? Se a resposta for sim, então devemos aceitar as conseqüências”. E Naomi Klein completa, mostrando que a violência e a tortura são extensão do colonialismo: “Sua observação, tão relevante no Iraque de hoje quanto foi na Argélia de 1957, é de que não há um modo amável e humanitário para se ocupar uma nação, contra a vontade de seu povo. Aqueles que apóiam tal ocupação, não têm o direito de se separarem moralmente da brutalidade que a empreitada exige”. (DM) a última fase do capitalismo, mas a primeira fase expansionista da burguesia, expansionismo que entrelaça aspectos econômicos e políticos. Junto, vem também os racismos para justificar a missão colonizadora. BF – Por que a Argélia opta pela guerrilha para conquistar a independência? Leila – Na década de 1950, fica claro que, com alguns territórios, a França não vai negociar. As colônias percebem que as medidas que esperam ver implementadas são cada vez mais colocadas em segundo plano, adiadas. Portanto, o alargamento de direitos, sobretudo nas colônias de povoamento, não vai ocorrer. Alguns territórios colonizados pela França vão conseguir a independência de forma negociada, em etapas, o que não quer dizer que não houve movimentos de contestação. A mobilização sempre está sustentando a idéia da independência. No caso da Argélia, chega um momento em que a população local percebe
que é quase impossível romper com as cadeias todas que a ligam à França, e sente necessidade de radicalizar o processo. E opta pela guerra de guerrilhas que é retratada n’ A Batalha de Argel. No filme, vemos uma série de violências, de todos os lados, incluindo práticas de tortura pelo Exército francês, técnicas depois que foram exportadas para os regimes militares da América do Sul, com a intermediação dos estadunidenses. BF – Como se organizou a resistência na Argélia na época da guerra de guerrilhas? Leila – Há luta no campo, mas ela se concentra nos centros urbanos e nas suas imediações. A guerra de guerrilhas precisa de uma rede de solidariedade muito grande da própria população local, sem esse apoio, a guerrilha é impossível. Em Argel, os colonos europeus formaram praticamente uma nação própria, por isso a violência foi maior na capital. Na Argélia é a Frente de Libertação Nacional (FLN) que vai colocar em prática esta estratégia. A FLN foi formada em 1954, com o apoio das elites culturais e políticas. A guerrilha – onde a violência é usada também como forma de libertação, inclusive espiritual – vai num crescendo, e por mais que o general De Gaulle tente negociar, além de reprimir fortemente, a guerra de guerrilhas não cede. Então, o governo francês é obrigado a recompor uma negociação com os guerrilheiros, o que desemboca no reconhecimento da independência da Argélia pela França, em 1963. BF – Como foi essa nova etapa na história da Argélia? Leila – O Estado que se forma num regime de partido único, e seu governo, vai herdar uma série de problemas econômicos, sociais e políticos. A orientação do partido era marxista, predominando o marxismo-leninismo, muitas vezes com leitura stalinista. O modelo será o da revolução russa, com um projeto de desenvolvimento da indústria argelina, que alavancaria um desenvolvimento autônomo e economicamente auto-sustentável. Um projeto que, nos primeiros anos, parecia bem sucedido. Até a metade da década de 1970, o crescimento do país é contínuo. Mas, a partir de então, cessa, e uma série de pressões internacionais, somadas a problemas internos, fermentam levantes sociais de orientação político-ideológica contraditória, que acabam por convulsionar a Argélia.
13
De 5 a 11de janeiro de 2006
INTERNACIONAL SOBERANIA
A história sob o olhar dos bascos Arquivo Pessoal
Igor Ojeda da Redação
Indymedia
Militante da esquerda basca denuncia a ação repressiva do governo espanhol, mas prevê que paz está próxima
O
País Basco, ou Euskal Herria, vive hoje um momento de esperança. Depois de décadas de conflito com o Estado espanhol, com mortes de todos os lados, cada vez mais se avizinha um processo de paz. Em novembro de 2004, a Esquerda Independentista Basca, organização que reúne forças de esquerda, apresentou uma metodologia para se chegar a um acordo. E, na opinião de Israel Arkonada, militante da organização, 2006 será um ano-chave para uma solução. “Talvez haja um processo negociador”, diz. Segundo ele, foi iniciado um diálogo promissor entre as partes envolvidas. Nesta entrevista, Arkonada denunciou a forte repressão do governo espanhol contra os militantes bascos. Torturas, assassinatos, seqüestros, entre outros tipos de violações. Tudo que não sai na mídia, que noticia apenas a violência por parte do ETA (Euskadi Ta Askatasuna, ou Pátria Basca e Liberdade), grupo armado que luta pela independência do País Basco. Até a tática, muito em voga hoje em dia, de considerar adversários como terrorista é usada. Jornais são fechados, partidos ilegalizados. Brasil de Fato – Como está a situação do País Basco hoje? Israel Arkonada – Há uma situação de esperança desde novembro de 2004, quando uma proposta de paz, uma metodologia para alcançar a paz foi apresentada pela Esquerda Independentista Basca e um grande número de agentes políticos, sindicais e sociais assinou um acordo. Em maio de 2005, o primeiro-ministro da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero, propôs uma moção ao parlamento espanhol pedindo autorização para abrir negociações com o ETA. Todas as partes estão começando a falar entre si, o que antes não faziam. Pensamos que o ano de 2006 será um ano-chave, pois não vai haver eleições de nenhum tipo no País Basco. Talvez haja algum tipo de processo negociador. Estamos às portas de um processo de paz. No momento, é hipotético, mas creio que poderá haver avanços. BF – Mudou a relação do governo espanhol com o País Basco depois da eleição de Zapatero (abril de 2004)? Arkonada – Sem nenhuma dúvida. Há algumas objeções, mas sua eleição é uma conquista. Com o governo anterior, de José Maria Aznar (1996-2004), do Partido Popular (PP), de direita, não foi possível um acordo, apesar de haver negociações. Mas se em princípio acreditamos que Zapatero poderia ter ânimo de empreender um processo de mudança no Estado espanhol, até agora não há nada real.
Queremos um modelo justo de sociedade, é por isso que lutamos. Temos dois âmbitos de atuações. Para nós, é muito importante conseguir a libertação nacional do povo basco para, a partir da soberania, conseguir a libertação social BF – O que quer a Esquerda Patriótica Basca? Arkonada – Basicamente que-
Quem é
Bascos esperam mais avanços no processo de paz e nas negociações com o governo de Zapatero em 2006
remos um modelo justo de sociedade, é por isso que lutamos. Temos dois âmbitos de atuações. Consideramos muito importante para o povo basco tanto a libertação nacional como a libertação social. São duas caras de uma mesma moeda. Para nós, é muito importante conseguir a libertação nacional do povo basco para, a partir da soberania, conseguir a libertação social.
O mais importante é o direito de decidir. O direito de determinação. Ou seja, o que defendemos é que a cidadania basca possa decidir soberanamente o que seja BF – Soberania quer dizer independência ou autonomia? Arkonada – Dentro de nosso projeto político, a independência. Mas, de qualquer forma, para nós, não é a meta fundamental. O mais importante é o direito de decidir. O direito de determinação. Ou seja, o que defendemos é que a cidadania basca possa decidir soberanamente o que seja. Esse é o primeiro passo. Depois, consideramos que deve se chegar ao ponto de que todos os outros temas de nosso projeto sociopolítico possam ser defendidos. A independência, o socialismo... o importante é o espaço onde todos os projetos possam ser defendidos em uma mesa. BF – Qual sua opinião a respeito da situação do Batasuna (partido da Esquerda Independentista Basca posto na ilegalidade pela Suprema Corte Espanhola, em março de 2003, acusado de ligações com o ETA)? Arkonada – Não somos um partido político usual, e sim um conjunto de movimentos sociais que, para conseguirmos uma representação institucional, nos articulamos em torno dele. Não é um partido ao estilo clássico. Tem uma história de 25 anos e historicamente seu âmbito sempre foi o de defender um modelo social, um socialismo adaptado à Europa. O governo de Aznar criou a lei de partidos para colocar o Batasuna juridicamente na ilegalidade. Com base nessa lei, dizem que todos são terroristas. Um partido que tem aproximadamente entre 15% e 20% de respaldo popular. Fomos ao Tribunal de Direitos Humanos, à Corte Suprema Européia. Mas não adiantou.
No entanto, o partido continua trabalhando de maneira normal, convocando manifestações e trabalhando em todos os âmbitos da sociedade basca. Depois de três anos de ilegalidade, não conseguiram acabar com o respaldo popular que temos. Em abril de 2005, a Esquerda Independentista voltou a concorrer nas eleições, com outro nome (o Partido Comunista das Terras Bascas ofereceu sua legenda) e se aproximou dos 13% dos votos, ficando com dez parlamentares. Então, está outra vez de maneira legal no âmbito institucional. BF – Como é a relação da Esquerda Independentista Basca com o ETA? Arkonada – O ETA é uma organização soberana, independente e, claro, ilegal. No País Basco, as lutas sociais sempre foram muito importantes, muito fortes, de grande contestação ao sistema. O movimento social tem sua própria dinâmica que não tem nada a ver com a luta armada. Nós trabalhamos o âmbito social, o que muitas vezes coincide ideologicamente com algumas idéias deles. BF – Mas o que pensam do método do ETA? Arkonada – Desde nossa Constituição, temos trabalhado em favor de uma solução dialogada do conflito basco. Evidentemente, a luta armada traz uma série de problemas ao ETA, mas por outro lado, tiram-lhes direitos culturais, lingüísticos, e os reprimem duramente, com detenções e torturas. Pensamos que se deve acabar de uma vez por todas com qualquer expressão de violência, de todas as partes. Aí sempre dizemos: o ato de condenar não vale para nada. O importante é trabalhar. Não gostamos de palavras estéreis que muita gente costuma dizer para chegar tranqüilo em casa. BF – Acredita que o ETA quer a paz? Arkonada – Não tenho nenhuma dúvida de que trabalham firmemente também e que estão desejando construir a paz. O ETA está há dois anos sem cometer nenhum ato de violência. BF – Qual é o comportamento da esquerda espanhola em relação à luta basca? Arkonada – Na primeira eleição pós-Franco, em 1982, ganhou o Partido Socialista Obreiro Espanhol (Psoe), com Felipe González, e ficaram 14 anos no poder. Decidiram não resolver o problema. Depois disso, inclusive, o Psoe e muitos outros foram condenados por criarem o terrorismo de Estado. Criaram grupos paramilitares para matarem militantes do ETA. Foram condenados por tortura
e por assassinatos de militantes bascos. A opção que tomaram foi a da confrontação. Temos trabalhos em comum com muitas organizações, partidos políticos, sindicatos e organizações sociais da esquerda espanhola. Há uma certa esquerda que tem adotado posições mais beligerantes, mais contrárias, e há outra esquerda que entende o problema e que, de fato, é solidária ao povo basco defendendo, principalmente, o direito de o povo basco decidir se quer ser espanhol ou não. BF – As notícias que chegam ao Brasil é que a violência parte apenas do ETA. Como é a violência por parte do Estado espanhol? Arkonada – Sabemos como funciona um meio de comunicação e os diferentes interesses econômicos e políticos que estão por trás dele. A visão é sempre a que o governo espanhol tem: nós somos bons; eles, os bascos, são maus. O que muitas vezes se oculta é que, neste momento, a Esquerda Independentista tem 700 presos e presas. Quando uma pessoa está presa, geralmente, entendese que fique em um lugar perto a seu entorno, ou seja, que o castigo seja para o preso, não para a sua família. O governo espanhol pôs em prática sua política de dispersão, separando os detidos por todas as cadeias da Espanha. Há presos que estão até mais de mil quilômetros de casa. Houve casos de acidentes, de mortes nas estradas, pois as famílias, para visitarem seu parente, saem de noite, para poder chegar na hora da visita. Além disso, em praticamente todos os anos 80, e no começo dos anos 90, o Estado espanhol pôs em prática a guerra suja, ou seja, financiou com os fundos reservados do Ministério do Interior grupos paramilitares que seqüestravam, torturaravam e assassinavam militantes do ETA e, muitas vezes por equívoco, militantes de movimentos sociais, sindicais e outros. Calcula-se que, aproximadamente, ao longo de todos os anos de conflito, duas mil pessoas tiveram que abandonar o país por causa da repressão. E houve mais de 500 mortos por diversos motivos: repressão, acidentes de carro etc. As vítimas fatais do ETA são mais ou menos 800, 900 pessoas. BF – E o discurso antiterrorista? Arkonada – Há uma lei antiterrorista, que praticamente já aprovaram, que dá poder para a polícia fazer absolutamente tudo. Uma pessoa pode ficar seqüestrada durante três dias, detida de dois a cinco dias, sem notificação de onde está ou como está. Isso permite total imunidade aos corpos policiais. As torturas são
Israel Arkonada, o Katu, tem 27 anos e é formado em Ciências Econômicas. Desde os 16 anos se dedica à política, militando na Esquerda Independentista Basca, grupo que reúne movimentos sociais, sindicais e políticos que lutam por um País Basco independente e socialista. Nos últimos anos, dedica sua militância no plano internacional, sendo o responsável pela Organização Internacionalista Basca, ou Askapena, entidade de solidariedade com os povos de todo o mundo, ocupando-se principalmente de sua representação no Fórum Social Mundial e Europeu. constantes. Continua até hoje. E há também uma contínua repressão, mais sutil, contra a cultura basca. O Egunkaria, único jornal totalmente em língua basca (euskera) foi fechado porque um juiz disse que ele também era terrorista. E, quatro anos depois, segue sem haver um julgamento, sem haver uma sentença que diga nada. Então, a repressão muitas vezes se ampara nessa coisa que estamos vivendo em nível mundial com a escalada da “luta contra o terrorismo”. Encontramos isso também na Espanha, um Estado supostamente democrático que continua torturando, fechando jornais, partidos políticos, sem nenhum tipo de provas. Esse é o outro lado que não se vê.
Encontramos isso também na Espanha, um Estado supostamente democrático que continua torturando, fechando jornais, partidos políticos, sem nenhum tipo de provas. Esse é o outro lado que não se vê BF – A justiça espanhola também... Arkonada – O poder judicial está subordinado ao poder político e econômico. No Conselho Geral do Poder Judicial, órgão máximo, os juízes que o compõem são nomeados pelos partidos políticos. Evidentemente, há pouca independência judicial. BF – O que pensa de Baltasar Garzón (juiz que ordenou o fechamento do jornal Egunkaria e pôs o Batasuna na ilegalidade) nesse processo? Arkonada – É um juiz que tem mania de grandeza. Queria ser o superjuiz. Para ele, são todos terroristas. Quando o PP ganhou as eleições, ele passou a seguir as teses do governo Aznar. Numerosas organizações internacionais de juristas estudaram os autos processuais e afirmaram que não têm nenhum tipo de argumentação, de lógica jurídica.
14
De 5 a 11de janeiro de 2006
DEBATE CRISE DO NEOLIBERALISMO
Brechas para o movimento de massas verbas destinadas aos sistemas previdenciário, de saúde e educação pública, introdução da “previdência complementar” privada, flexibilização das leis que regulamentam as relações entre o capital e o trabalho etc.). O “não” europeu, de certa forma, foi o corolário de um processo de resistência contra as reformas neoliberais que se verificou na Europa ao longo dos anos 1990. Na França, no final de 1995, uma greve geral de 25 dias barrou as reformas pretendidas pelo governo e oficializou a semana de 35 horas. Desde então, eclodiram várias greves e movimentos em praticamente todos os países europeus, com intensidades e durações variadas. Mas eles se tornaram mais significativos após a criação da UE, quando foram intensificados os processos econômicos e políticos no âmbito da aliança.
José Arbex Jr.
1. O número de soldados estadunidenses mortos no Iraque excede os 2100. A conta macabra agita o fantasma do Vietnã. Não se trata de mera especulação, nem de retórica. Em 17 de novembro de 2005, o deputado John Murtha, do Partido Democrata, veterano da Guerra do Vietnã, declarou que era o momento de os Estados Unidos retirarem as suas tropas do Iraque. Foi o suficiente para causar uma tremenda comoção nacional. Mesmo os aliados de Bush reconhecem ser impossível obter uma clara vitória no Iraque. Resultado da equação: Bush não pode ficar naquele país, pois isso implicará mais perdas de vidas estadunidenses, e a situação tende a ficar insuportável junto à opinião pública. Mas Bush não pode se retirar, pois corre o risco de ver o país cair nas mãos de grupos islâmicos fundamentalistas, totalmente avessos a qualquer compromisso com a Casa Branca. Considerando que as reservas de petróleo dos Estados Unidos dão para mais quatro ou cinco anos, esse é um risco que Washington não pode correr. Em resumo: se ficar o bicho come; se correr o bicho pega. Esse é o preço pela arrogância de quem achava que podia invadir um país habitado por um povo com mais de cinco mil anos de história, ainda mais com base numa grande mentira (as tais “armas de destruição em massa” que Sadam Hussein teria em seu arsenal). 2. A sociedade civil dos Estados Unidos reage, finalmente, às restrições às liberdades democráticas impostas pelo Ato Patriótico, aprovado a toque de caixa pelo Congresso, logo após o atentado de 11 de setembro de 2001. O decreto, que dá ampla liberdade à polícia para espionar e invadir a privacidade dos cidadãos, vence no fim de 2005, e mesmo integrantes do Partido Republicano (de Bush) já se declararam contra a sua renovação. A causa para o descontentamento: uma reportagem publicada pelo jornal The New York Times, no começo de dezembro, informava que a CIA (serviço secreto) e o FBI (Polícia Federal) grampearam “centenas, talvez milhares” de telefones dentro dos Estados Unidos. Bush tentou negar, defendeu-se dizendo que apenas os “suspeitos de terrorismo” foram vigiados, mas não convenceu ninguém. Mesmo deixando de lado o fato de que fora dos Estados Unidos a CIA pode agir à vontade fora dos Estados Unidos, trata-se de uma inequívoca derrota política para Bush. Some-se a isso o fato de que o senador republicano John McCain propôs uma emenda que torna ilegal o tratamento desumano e a tortura de prisioneiros dos Estados Unidos. Bush declarou que iria usar o seu poder presidencial para vetar a emenda, mas teve que voltar atrás. Partidários de Bush alegam que “métodos especiais” de interrogatório podem extrair informações de terroristas, com objetivo de salvar vidas. McCain, que foi torturado no Vietnã, alega que tal prática torna os Estados Unidos semelhantes aos terroristas que pretende combater. 3. A revelação, feita pelo jornal The Washington Post, em novembro, de que a CIA fez pelo menos 400 pousos clandestinos
É inegável que o neoliberalismo dá sinais de esgotamento. Para sabê-lo, basta lembrar as recentes revoltas de jovens franceses pobres
Kipper
A
administração Bush termina 2005 mais desmoralizada do que nunca. Eis os fatos:
em solo europeu, com o objetivo de transportar prisioneiros para serem interrogados e torturados por policiais de países aliados, causou novo escândalo internacional. Vários países europeus, incluindo Alemanha, Itália, Holanda, Suécia, Noruega, Áustria, Espanha e Portugal investigam denúncias de que a CIA promoveu seqüestros ilegais em seus territórios, utilizou indevidamente o seu espaço aéreo e entregou prisioneiros acusados de terrorismo para serem interrogados e torturados em países da Europa do Leste. O escândalo atingiu tal proporção que o Conselho da Europa invocou o Artigo 52 da Convenção Européia de Direitos Humanos, com o objetivo de exigir que todos os 45 países membros informem sobre atividades suspeitas da CIA. A secretária de Estado Condoleezza Rice teve que fazer uma viagem às pressas para a Europa, no começo de dezembro, para tentar apagar
Vários países europeus, incluindo Alemanha, Itália, Holanda, Suécia, Noruega, Áustria, Espanha e Portugal investigam denúncias de que a CIA promoveu seqüestros ilegais o incêndio. 4. Dentro de casa, os principais assessores de Bush e do seu sinistro vice, Dick Cheney (acusado de manter um serviço secreto particular, uma espécie de CIA privada), foram implicados em escândalos envolvendo tráfico de influência e mentira. Comprovou-se que Lewis Libby, braço direito de Cheney, foi o responsável pelo “vazamento” proposital para a imprensa da identidade de uma agente da CIA, por represália política. O escândalo também envolve Karl Rove, o principal conselheiro de Bush Júnior. O escândalo, mais uma vez, reitera o que o mundo já sabe: Bush comanda um governo de mentirosos, uma gangue de bandidos sem princípios
nem caráter. Outros escândalos menores reforçam a sensação de esgotamento do prestígio que Bush conquistou logo após o atentado de 11 de setembro de 2001. Isso é reconhecido e lamentado pela revista The Economist, espécie de intelectual orgânico do capital financeiro internacional, cuja grande preocupação é saber o que virá depois de Bush. A pergunta não admite uma resposta fácil. O que ainda mantém Bush respirando é o comportamento relativamente estável da economia, que apenas se mantém graças à sangria contínua dos recursos mundiais assegurada pelo sistema de mercado dos Estados Unidos (cobrança dos juros das dívidas externas, taxas protecionistas, práticas monopolistas nos mercados internacionais, especulação financeira desenfreada do grande capital etc.). Mas a farra financeira tem os dias contados. É inegável que o neoliberalismo dá sinais de esgotamento. Para sabê-lo, não é necessário ser nenhum grande especialista em economia internacional. Basta lembrar as recentes revoltas de jovens franceses pobres que vivem nos guetos destinados aos descendentes de imigrantes árabes e islâmicos nas grandes cidades francesas. As revoltas, ainda timidamente, transbordaram as fronteiras da França e ameaçaram incendiar a Bélgica e a Alemanha, assim como colocaram em alerta as polícias de Itália, Portugal e Espanha. Todos sabem que a eclosão da revolta naqueles países é só uma questão de tempo. O apito da panela de pressão foi claramente dado por França e Holanda, respectivamente em 29 de junho e 1 de julho de 2005, com a derrota da Constituição Européia. Foi uma espetacular derrota de um projeto que pretendia completar o processo de destruição das maiores conquistas sociais do proletariado europeu ao longo das seis últimas décadas de história. A contínua resistência ao neoliberalismo por parte dos europeus provocou uma reação irada do primeiro-ministro britânico Tony Blair, em 23 de junho, pouco antes de assumir a presidência rotativa da União Européia (UE). Segundo o cãozinho amestrado de Bush, a
Europa deveria “promover um encontro com a realidade” e apostar mais na economia do mercado, investir mais nas pesquisas para a produção de tecnologia de ponta e em medidas que assegurassem o aumento da produtividade de sua indústria. Caso contrário, afirmou, a Europa corre o risco de perder espaço para a China e a Índia.
O que ainda mantém Bush respirando é o comportamento relativamente estável da economia, que apenas se mantém graças à sangria contínua dos recursos mundiais Na ocasião, Blair atacava diretamente o presidente francês Jacques Chirac e o então primeiro-ministro alemão Gerhard Schröder, acusados como incapazes de enterrar o modelo de bem-estar social franco-germânico e adotar o neoliberalismo anglo-estadunidense. O impacto do “não”, uma semana após o discurso de Blair, agravou a sensação de impotência dos líderes europeus, que acabavam de concluir uma fracassada rodada de negociações destinadas a aprovar um orçamento para o período 2007 - 2013. Como conseqüência de graves divergências quanto aos rumos econômicos e sociais que a aliança deverá assumir nos próximos anos, eles não chegaram a um acordo. A questão do bem-estar social é um dos grandes “nós”. Boa parte dos franceses e holandeses que votaram “não” pensavam na defesa de seus direitos sociais e trabalhistas. Tais direitos, já bastante golpeados após as medidas de “reengenharia econômico-financeira” adotada com o objetivo de introduzir o euro, seriam ainda mais afetados, caso a Constituição fosse aprovada, aproximando-se do modelo em vigor nos Estados Unidos e Inglaterra (cortes radicais nas
Assim, pela primeira vez em vinte anos, em 16 de abril de 2002, 13 milhões de trabalhadores italianos – isto é, 90% do total – fizeram uma greve geral em defesa do artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores, que impede a demissão sem justa causa, cuja abolição era defendida pelo primeiro-ministro Silvio Berlusconi. Em agosto, mais de um milhão de funcionários públicos britânicos paralisaram suas atividades, num das maiores manifestações do tipo após a derrota da histórica greve dos mineiros (1983 - 1984), imposta por Margaret Thatcher. Na Alemanha, os sindicatos impediram medidas propostas pelo então primeiro-ministro Gerhard Schröeder, que, além de atacar as aposentadorias, atingiam o salário-desemprego e flexibilizavam as condições para demissões. Em 2003, novamente a França foi completamente paralisada por uma greve geral e grandes manifestações (em 13 de abril). Em outubro, foi a vez de os trabalhadores italianos realizarem outra greve geral com adesão de praticamente 100%. A resistência, de fato, é incessante e está na base das crises enfrentadas por sucessivos governos nacionais. Explica também, por exemplo, a sagrada aliança entre os social-democratas e a democracia cristã da Alemanha. Seu objetivo é compor as bases políticas para novos e monumentais ataques aos trabalhadores. Num sentido geral, portanto, o mundo caminha para um quadro de crise e de grandes batalhas entre os senhores do mercado neoliberal (que não conseguem unificar uma estratégia, como demonstram os impasses no âmbito da Organização Mundial do Comércio) e os movimentos sociais e políticos dos trabalhadores e da juventude, incluindo nos países centrais do capitalismo. Claro que nada está resolvido. Mas os dias gloriosos do neoliberalismo se foram. Estão abertas as brechas para um novo ascenso mundial dos movimentos de massa, segundo ritmos e prazos que ninguém ainda ousa prever. José Arbex Jr. é jornalista e professor universitário
15
De 5 a 11de janeiro de 2006
CULTURA LEITURA
Escritoras no Brasil do século 21 Alípio Freire de Campinas (SP)
Agência Brasil
Rompendo o preconceito, espaço aberto para três mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira
L
uiz Ruffato, na apresentação do livro que organizou, 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Editora Record – 2004), adverte: “Quando pensei em organizar uma antologia de contos de mulheres (...), não fazia idéia do mundo que se abriria à minha frente. O que me motivou inicialmente foi um incômodo, ou antes, uma intuição: as páginas dos jornais dedicavam-se a exaltar a explosão de uma geração de talentosos escritores, mas os nomes subscritos, em geral, eram masculinos. Acompanhando de perto esse fenômeno (...), sabia haver várias mulheres que por direito pertencem a essa ‘nova geração’ e não eram citadas, talvez por um inconsciente machismo, esse mal que nos persegue a todos, homens e mulheres”. Da pesquisa de Ruffato surgiu, pela mesma editora, em 2004, o 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira e, já no ano seguinte, o 30 mulheres ... que, segundo o autor, poderiam ser 35, 40 ou 50. E embora a maioria das autoras se concentre na Região Sudeste do país (onde por sinal se concentram quase “60% do PIB nacional e 42%” da população), temos mulheres escrevendo em todo o país. É na trilha aberta por Ruffato que segue este texto. Trataremos de três autoras – Maria José Silveira, Maria Guimarães Sampaio e Márcia Camargos.
GENEALOGIAS FEMININAS PARA A HISTÓRIA DO BRASIL Na constelação de mulheres escritoras, um paralelo é forçoso entre os livros A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas (Editora Globo, 2002), de Maria José Silveira, e Estrela de Ana Brasila (Editora Record, 2004), de Maria Guimarães Sampaio.
Comemoração do Dia Internacional da Mulher, em São Paulo: nova geração de escritoras trata do universo feminino, negligenciado pela literatura machista brasileira
Ainda com o risco de algum reducionismo, podemos dizer que esse livro, ao traçar as histórias de suas mulheres, o faz a partir de um viés fortemente antropológico, com uma atenção especial para as relações que se estabelecem no cotidiano, os costumes, construindo o que José Miguel Wisnik, na orelha de apresentação da obra, classifica de “um quase quilombo polimorfo, intimamente dentro e à margem do Brasil Colônia, em que negros índios mestiços, só escapados da lógica férrea do mundo escravista pela lógica milagrosa da ficção, constituem um mundo à parte cujas sociabilidades, sensualidades e sexualidades são intuídas com linguagem muito própria”. Toda essa preocupação se manifesta literariamente com brilhantes registros de falares – vocabulário, gramática e sintaxe – dos estratos mais populares dos diversos tempos Sem dúvida, Maria Sampaio – embora de seus ancestrais se diferencie, sobretudo pelo enfoque – é herdeira de uma tradição construída por um conjunto de artistas plásticos e literatos baianos ao longo (fundamentalmente) dos anos 1940 e 1950, entre os quais, seu próprio pai, o artista plástico Mirabeau Sampaio, que foram buscar na tradição popular seus temas, seus assuntos e suas linguagens.
de ser mulher e de amar através dos tempos”. Mas, se esta foi sua estréia, além de uma série de trabalhos na área da literatura infanto-juvenil e contos como “Felizes e poucos”, que consta do 30 mulheres... organizado por Ruffato, Maria José desde então publicou dois outros romances: Eleanor Marx, filha de Karl (W11 Editores, 2002) e O fantasma de Luis Buñuel (W11 Editores, 2004). Em ambos, como no seu romance de estréia, os personagens se fundem singulares com a história do seu tempo, com a qual interagem. Mas, aqui, o foco já transborda para além dos limites do Brasil: seja a Alemanha e a Inglaterra do século 19 (Eleanor Marx...), seja a Nova York da segunda metade do século 20 (O fantasma de...). Eleanor Marx, a filha de Karl é a história romance da filha caçula de Marx, tendo como eixo sua infelicidade conjugal. Fernando Nuno, na orelha de apresentação do livro, comenta: “Durante os dez meses em que decorre a história narrada do livro até seu desfecho trágico, Eleanor Marx relembra os principais fatos de um momento capital para a compreensão do nosso mundo: a organização dos movimentos operários e socialistas do século 19”.
O MUNDO É O TERRITÓRIO E A HISTÓRIA POLÍTICA SUA MATRIZ
Maria José Silveira é uma goiana radicada em São Paulo e Maria Guimarães Sampaio é de SalvadorBA, onde permanece. Maria José não conhecia o trabalho de Maria Sampaio e vice-versa até 2005. Em ambos os livros, acompanhamos a saga de linhagens femininas que se iniciam nas malocas indígenas e nas senzalas brasileiras para desembocarem no terceiro milênio, miscigenadas com os mil povos que aqui aportaram desde 1500. As personagens de uma são, pelo menos, primas de primeiro grau – se não irmãs – das personagens da outra. E as duas escritoras concordam com isto. Maria Sampaio, formada em Economia, é fotógrafa e o Estrela de Ana Brasila – que tem como subtítulo “Estória sem compromisso com verdade nenhuma, nem bicho, nem planta, nem gente, nem lugar, nem tempo – nem falares” – marca sua estréia na literatura. Uma bela estréia. O território que demarca para seus personagens é uma ampla região em torno da cidade de Salvador e Recôncavo.
Já Maria José Silveira – embora antropóloga – construirá seu trabalho A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas, também sua obra de estréia (2002), desenrolando o novelo da história política do país. Suas mulheres retratam a trajetória da dominação e da acomodação ou rebeldia femininas ao longo do tempo. Baseadas em ampla pesquisa (cuja bibliografia consta ao final do livro), as mulheres de Maria José interagem com os diversos momentos da nossa história, que constroem e pelos quais são construídas, na medida das diversas possibilidades e suas escolhas. Trabalho de fôlego, tem como território todo o Brasil, sem perder o que há de particular ou específico a cada tempo. Como afirma Maria Odila Leite da Silva Dias na orelha que apresenta o trabalho, “a autora persegue com imaginação e sutileza os meandros dramáticos de ciclos vitais de mulheres que emergem de conjunturas históricas específicas sem nenhuma sombra preconceituosa de estereótipos femininos, dotadas cada uma a seu modo de personalidades fortes. (...) Com arguta sensibilidade histórica, a autora explora as maneiras diferentes
O fantasma de Luís Buñuel trata da interferência do golpe civil-militar de 1964 na vida de um grupo de jovens estudantes em Brasília provocando, de um lado, a diáspora mundo afora e, de outro, consolidando laços que os acompanharão para o resto de suas vidas, tendo como pano de fundo as migrações do final dos anos 1950 rumo à nova capital federal que se construía, e o movimento inverso decorrente das escolhas que seriam feitas a partir da ditadura. Os narradores são aqueles estudantes da Universidade de Brasília dos anos 1960, que se
revezam a cada dez anos para nos dar conta dos acontecimentos, de suas trajetórias. Em todos os seus livros, destaca-se um texto fluente e com humor, mesmo que aqui e ali esse humor possa ter um leve travo amargo. Mas essa fluência se manifesta diversificada: desde o tom íntimo e coloquial das cartas que a autora cria para Eleanor, até momentos de força e grandeza épica, como na descrição do massacre dos operários no refeitório da construtora da nova capital, ou da terra vermelha escavada para a construção de Brasília e dos seus trabalhadores, ambos em O fantasma... A força desta última descrição é comparável, em nossa literatura, à grandeza de Euclides da Cunha, em sua obra Os sertões.
perar a mediocridade que a cerca. É como se distingue: levando o que lhe é apresentado às últimas conseqüências da própria lógica com que lhe apresentam o mundo. É esgotando todas as possibilidades das verdades que lhe são oferecidas, no interior da própria lógica com que são apresentadas (e das contradições que encerram), e da comparação (diálogo) das conclusões que tira de tal mecanismo lógico com a dinâmica da objetividade factual que a cerca, que ela destrói essas verdades.
UM COMBATE A CARGO DA FILOSOFIA Micróbios na cruz (Companhia Das Letras, 2005) é a primeira ficção de Márcia Camargos. Nascida em Minas Gerais e radicada em São Paulo, Marcia é historiadora, pesquisadora, publicou diversos trabalhos na área da literatura infantil, e é autora do Villa Kyrial – Crônica da Belle Époque paulistana – que resultou da sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo. O personagem de Micróbios... é uma menina, a “Formiguinha” – que cresce nas décadas de 1950 e 1960, numa família medíocre, relativamente abastada e que professa o culto a valores e verdades fundados nos mais sólidos alicerces do senso comum. O livro, em primeira pessoa, é narrado pela “Formiguinha”. De fato, “não é fácil viver numa casa onde se leva beliscão por qualquer coisa, mau humor de criança ‘é falta de couro’, é preciso economizar em tudo porque ‘ninguém é sócio da Light’ e não se grita porque ‘não moramos em cortiço, o que os vizinhos vão pensar?’. Pois é, num mundo assim, cheio de ‘não pode’, que cresce ‘Formiguinha’ (...), menina levada e esperta que traça um retrato ao mesmo tempo infantil e crítico do mundo dos adultos”, como afirma a orelha de apresentação do livro. E esse retrato ao mesmo tempo infantil e crítico do mundo dos adultos é o recurso da autora para, através do espanto, demolir um a um os diversos clichês que conformam uma certa pedagogia doméstica hoje transfigurada em discursos presidenciais. É desse espanto da menina – quase perplexidade – que se tece todo o seu raciocínio, sua lógica, única maneira de sobreviver e su-
Sendo outra coisa, e sendo, portanto, ela mesma, a “Formiguinha” tem parentesco com alguns importantes personagens da nossa literatura, pela sua inquietação com o mundo, seu espanto com os disparates e absurdos do mundo adulto e/ou “civilizado”: Emília (Monteiro Lobato) e Macunaíma (Mário de Andrade). Ao mesmo tempo, esse livro, cujo viés central se coloca fundamentalmente na área da filosofia – a crítica à ideologia dominante que tem no senso comum e nos clichês duas das suas armas, e a formação do conhecimento na criança –, nos remete à Simone de Beauvoir do Memórias de uma moça bem comportada, ainda que a escolha da narrativa literária seja diametralmente oposta. Aliás, diga-se de passagem, ler as obras das três autoras aqui apresentadas nos faz sempre lembrar de Simone quando, em O segundo sexo, nos adverte: “Ninguém nasce mulher, torna-se”. E não poderia ser diferente pois, sem sombra de dúvida, direta ou indiretamente, as gerações pós-Segunda Guerra – às quais pertencem as três autoras – foram fortemente influenciadas por seu pensamento. Quanto a nós, homens, cabe-nos parafrasear e refletir: ninguém nasce homem, torna-se.
16
CULTURA
De 5 a 11de janeiro de 2006
ENTREVISTA
O novo tempo de Chico César Divulgação
Tatiana Merlino da Redação
Divulgação
Artista comemora dez anos de carreira com novo álbum, de tendência intimista, e livro de poesias
P
ara comemorar dez anos de indústria fonográfica e mais de 20 de carreira, o compositor Chico César lança o álbum De uns tempos para cá, com selo da gravadora Biscoito Fino e produzido por Chico e Lenine. “Esse é meu disco mais intimista”, diz o artista paraibano, que juntou nessa coletânea músicas compostas ao longo de 20 anos de carreira. Diferentemente de seu álbum anterior, Respeitem meus cabelos brancos, o novo disco, acompanhado em quase todas as faixas pelo Quinteto de Cordas da Paraíba, fala sobre encontros amorosos. Quase simultaneamente ao lançamento de De uns tempos para cá, o artista autografa seu primeiro livro de poesias, Cantáteis – Cantos elegíacos de amozade, também sobre amor e amizade. Em entrevista exclusiva Chico César conta sobre o processo de criação do seu último disco e explica como é a sua relação com a indústria cultural: “Eu digo para os caras da gravadora: não matem o meu jeito diferente de construir músicas. Se querem ganhar dinheiro comigo, me deixem ser livre porque é isso que eu vendo”. Brasil de Fato – Como foi o processo de composição do seu novo álbum? Chico César – Esse disco começou a ser feito há mais de 20 anos, por isso ele se chama De uns temos para cá. A música Utopia, por exemplo, tem mais de 20 anos, eu fiz na época das eleições diretas. Hoje eu percebo que essas músicas têm uma atualidade muito grande. Foi essa atualidade dentro de mim que me fez juntar essas canções. Muitas delas ficaram fora de discos anteriores. As faixas Por que você não vem morar comigo? e De uns tempos para cá são mais recentes, compus há uns dois anos, quando eu já estava pensando em fazer um disco com canções sobre o amor, não necessariamente com canções de amor. Se prestar bem atenção, a única música que não é exatamente sobre o amor é Cálice, que entrou no disco. Eu queria fazer um disco em que o violão estivesse em primeiro plano e que fugisse dessa coisa do grove, da batida, porque a música brasileira foi muito para esse lado, deixando de escanteio as melodias, as harmonias. E mesmo quando as pessoas pensam em harmonia na música brasileira lembram da Bossa Nova. A minha música não tem nada a ver com a Bossa Nova, é um outro tipo de harmonia, que tem a ver com a música de Geraldo Azevedo, de Elomar. Esse meu lado mais intimista também estava um pouco de escanteio, por minha culpa. Todos os meus discos tinham umas nove, dez músicas animadinhas que falavam mais para o ouvinte de rádio, e umas três dessas mais sutis. Esse disco é ao contrário: tem umas dez desse time intimista e umas duas do outro, da comunicação mais imediata. BF – Como foi juntar canções compostas há muitos anos com outras feitas recentemente? Essa composição tem a ver com o seu processo de amadurecimento como artista? Chico César – Acho que chega uma hora na vida da pessoa que ela pensa assim: vou fazer o balanço. No meu caso, são dez anos dentro da indústria fonográfica e 20 anos de São Paulo. Eu pensei: quero fazer um disco que traduza esse tempo, essa sedimentação. Às vezes o movi-
Quem é Nascido em Catolé do Rocha, na Paraíba, Chico César estudou Comunicação Social em João Pessoa. Em 1985 mudou-se para São Paulo. Durante dez anos o artista se apresentou no circuito alternativo, e em 1995 lançou seu primeiro disco, Aos vivos. Em 1996, consagrou-se com o lançamento de Cuscuz Clã (Polygram): ganhou o Prêmio Sharp na categoria revelação e o de melhor compositor pela APCA. Em 1997, depois de tournée pela Europa e pelo Japão, lançou seu terceiro disco, Beleza, mano, com participações especiais de Dominguinhos, Arnaldo Antunes, Arrigo Barnabé e outros.
“MPB é uma música brasileira que bebe das raízes do povo”, defende o cantor e compositor paraibano
mento é de progressão e agora eu percebo um momento de lançar luzes sobre as bases, de onde você é, o que você é e tal. Eu fui juntando as músicas que diziam mais disso, dos 20 anos. Sabe essa coisa do cara que saiu do interior da Paraíba, depois estudou Comunicação em João Pessoa? Daí vim para São Paulo, fiz shows para dez, 16 pessoas e pouco a pouco fui construindo meu público. Eu fui construindo uma história passo a passo. Esse disco conta, de certa forma, a minha história e a história da minha geração. O disco guarda uma melancolia porque ele olha para essa história que vai até os dias de hoje. Uma canção como Cálice é super atual, por exemplo. BF – Qual o balanço desses dez anos de indústria fonográfica? Chico César – Na verdade, os dez anos ganharam muito, foram beneficiados pelos dez anos anteriores de São Paulo e quatro anos de João Pessoa. Quando eu gravei meu primeiro disco, eu tinha 31 anos. Então o fato de eu ter entrado com mais de 30 anos (como toda a minha geração) me deu uma espécie de estofo de uma vida vivida e de uma obra construída no silêncio, no underground. Só quem começou artisticamente na independência pode fazer esses movimentos, porque há muitas pessoas que já nasceram dentro da indústria, então elas não sabem viver outra coisa. Inclusive eu tenho consciência de que é a minha independência que me torna atrativo comercialmente. Eu digo para os caras da gravadora: “Não matem isso porque se matarem o meu jeito diferente de construir músicas, vocês vão perder dinheiro comigo. Se querem ganhar dinheiro comigo, me deixem ser livre porque é isso que eu vendo”. Eu sou grato a esses anos dentro da indústria, porque
por meio dela eu me tornei um artista nacional. Havia um risco de eu me tornar um artista cultuado por uma pequena elite da zona oeste, que é uma elite cultural bastante novidadeira. Um ano é Chico César, o outro é Zeca Baleiro, o outro é Otto, e nem sempre essa pseudo-elite tem consciência profunda do produto cultural que consome. Esse formador de opinião vai procurar o que está na moda. É legal você ter essa trajetória e ir fazendo suas opções, buscar uma coerência interna que não está no manual do partido, está dentro de você.
Eu tenho consciência de que é a minha independência que me torna atrativo comercialmente BF – Você acha que conseguiu manter essa independência em relação à indústria cultural por ter passado dez anos sem ser conhecido da grande mídia? Chico César – Acho que sim, porque você consegue contraargumentar. O fato de eu ser irmão do Gegê (ativista ligado ao movimento de moradia popular), de ter militado no movimento estudantil em João Pessoa, no movimento secundarista, isso compõe uma personalidade. BF – Como foi a repercussão do novo disco? Chico César – Acho que esse é meu disco mais bem aceito pela crítica. Isso revela que as pessoas estão querendo outras coisas. A sensibilidade do povo brasileiro tem sido menosprezada, a indústria tem dado sempre do mesmo, e você vê, pela aceitação de um selo como o Biscoito Fino, que tem público, as pessoas querem coi-
sas diferentes. Às vezes eu acho que nós, os próprios artistas, nos acomodamos em dar sempre da mesma coisa. Com esse disco vamos dar do diferente, vamos arriscar. BF – O seu livro de poesias que fala de amor e amizade faz parte desse processo de amadurecimento como artista? Chico César – O livro foi escrito em 1993, com a função de fazer uma declaração de amor. Depois, eu tive vontade de musicar o livro. Achava que tudo que eu dissesse para o público tinha que ser com música. Mas acabei perdendo o pudor. E, de uma certa maneira, o livro tem a ver com o disco De uns tempos para cá. Eu falo muito sobre amor nesse disco, que é uma coisas que as pessoas resistem muito, como se o amor fosse um tema morto, brega, piegas e tal. E eu não concordo, só acho que a gente tem que procurar novas formas de falar sobre isso. BF – Como você classifica seu trabalho dentro da música brasileira? Chico César – É o que eu chamo de MPB. Muitos colegas meus não gostam desse rótulo, mas a MPB é muito vasta, vai de Sepultura até Teresa Cristina. Por que MPB? Porque é uma música brasileira que bebe nas raízes do povo. Não o povo como uma coisa idealizada. Ah!, os camponeses, os operários... O povo é uma coisa bastante complexa. A classe média que tem dois carros e uma garagem onde os meninos vão ensaiar é povo. Então esse rock é MPB, os Paralamas do Sucesso, os Titãs. O Brasil é um país curioso porque se apropria do que vem de fora. O que eu faço é MPB, mas MPB é um rótulo muito generoso, cabe tudo. E a minha música tem influências do Nordeste, do lugar que eu venho. Mas nem por isso eu acho
que é música regional. Acho que é preconceituoso se dar um prêmio para Daniela Mercury como melhor cantora regional do ano. O que ela faz é internacional desde o começo. Parece que o que vem de fora do circuito de São Paulo e Rio de Janeiro é regional: Almir Sater, Cleiton e Cledir. Isso está errado. Eu acho que a música que vem do Norte do país não pode ser tratada como música regional.
A música brasileira está muito ligada ao social porque desde seu nascedouro é feita para o povo BF – Como a arte deve (e se deve) tratar questões políticas e sociais? Qual a relação entre arte e política? Chico César – Inevitavelmente a arte do Brasil passa pelo social o tempo inteiro. Se você pega lá atrás a música Três apitos, do Noel Rosa, por exemplo, fala de muitas coisas poeticamente e essa é uma característica da música do Brasil. E esses exemplos se repetem em tudo. A música de diversão do Brasil já politiza, ela já traz as questões importantes, situa os personagens, fala de um tempo, de uma época. A música brasileira está muito ligada ao social porque desde seu nascedouro é feita para o povo. Às vezes funciona um pouco como religião. No entanto, às vezes a indústria quer reduzir tudo isso a mero entretenimento, que é uma forma de manter o cara ocupado quando ele não está trabalhando. Ele trabalha oito horas por dia e depois fica entretido, não fica se divertindo. Tudo foi se transformando em entretenimento, o desejo maior da indústria é esse, transformar o cinema em entretenimento, e também a literatura, a música. Isso significaria a morte da arte porque as pessoas vão ver o concerto de Vivaldi com a mesma sensibilidade ou mesma insensibilidade que elas vão para um show do É o Tchan.