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Ano 3 • Número 150

R$ 2,00 São Paulo • De 12 a 18 de janeiro de 2006

Haiti: ONU exigia truculência de general

Reforma agrária só na publicidade do governo

Fome – No dia 6, a Organização das Nações Unidas denunciou que seis milhões de habitantes do leste da África podem morrer de inanição devido a uma severa seca, perda de plantações e diminuição dos rebanhos. De acordo com institutos de meteorologia, a tendência é a situação piorar ainda mais até abril João Zinclar

O

comandante da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), Urano Teixeira da Matta Bacellar, sofria constantes pressões de empresários, grupos políticos e até da ONU para realizar ações mais duras na periferia da capital do país, Porto Príncipe. Encontrado morto no hotel onde morava, no dia 7, o general brasileiro se negava a agir com mais truculência. Na noite anterior a sua morte, Bacellar participou de uma tensa reunião sobre o assunto com representantes da Câmara do Comércio e Indústria do Haiti (CCIH) e com integrantes de um conhecido grupo da sociedade civil, supostamente organizado para desestabilizar o presidente Jean-Bertrand Aristide, deposto em fevereiro de 2004. Os interlocutores de Bacellar exigiam uma linha mais dura sob a justificativa de conter a violência. No entanto, organizações de direitos humanos afirmam que o verdadeiro motivo da pressão sobre o comandante da Minustah era a perseguição política aos grupos pró-Aristide. Págs. 2 e 9

FAO

Nações Unidas, empresários e grupo político local cobravam ações do militar na periferia da capital

Enquanto o governo faz propaganda com as metas de assentados, movimentos discordam dos avanços na reforma agrária e dizem que modelo agrícola segue privilegiando o agronegócio. As organizações contam com o apoio indireto do próprio Ipea, ligado ao Ministério do Planejamento, que em relatório afirma que “o realizado até agora ficou muito aquém das expectativas”. Pág. 3

Com Lula, mais indígenas são assassinados

Água continua privatizada na Bolívia Famílias de indígenas bolivianos sobrevivem sem uma gota d’água potável a menos de 100 metros de uma das bases da Águas de Illimaní, controlada pela transnacional Suez em El Alto. Reportagem exclusiva do Brasil de Fato mostra que, apesar dos protestos, os recursos hídricos continuam sob domínio privado na região da capital do país. Movimentos sociais cobram, agora, que Evo Morales cumpra a promessa – já feita por outros presidentes – de retomar o controle público da água em El Alto. Pág. 10

Esperteza – O governo federal aproveitou o apagar das luzes de 2005 para empenhar R$ 457,3 milhões do orçamento, destinados ao início das obras de transposição do Rio São Francisco. Assim, resta aos empreendedores do projeto conseguir cassar, no Supremo Tribunal Federal, duas liminares concedidas pela Justiça Federal da Bahia para poder começar a construção dos canais

Um milhão vêem Direitos de Resposta Pág. 4

Pobreza e preços altos, legado da privatização Pág. 7

Segurança alimentar sob ameaça Pág. 13

Maringoni

O número de indígenas assassinados no Brasil em 2005 é o mais alto dos últimos 11 anos. Pelas contas do Cimi, foram 38 mortes – o que faz com que os três anos do governo Lula apareçam como os mais violentos do período. A média anual de demarcação de terras indígenas também é a menor dos últimos quatro governos. Pág. 6

E mais: ENTREVISTA – O jornalista Gustavo Gindre alerta para os erros do Brasil em abandonar o projeto de desenvolver uma TV digital com tecnologia nacional. Pág. 5 DIVERSIDADE SEXUAL – Brasil é o campeão mundial em crimes de homofobia. A cada 48 horas, uma pessoa é assassinada por ser gay. Pág. 8


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De 12 a 18 de janeiro de 2006

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Cavalcanti Proença • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Anamárcia Vainsencher, Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, 5555 Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Erro e morte no Haiti

M

istérios cercam a morte do general brasileiro Urano Bacelar, comandante geral da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), cujo corpo foi encontrado no quarto do hotel Montana onde morava, em Porto Príncipe. Fala-se em suicídio, mas não se descarta a hipótese de assassinato. Do ponto de vista da nação brasileira, o problema não deve ser colocado como questão policial, mas sim política. Tão ou mais importante do que saber o autor do suposto crime, é revelar a situação geral que produziu a tragédia. Comecemos pela hipótese de suicídio. O que poderia levar um general a tirar a própria vida, bem no meio de uma missão internacional, obviamente considerada importante pelas autoridades máximas do país? A primeira resposta – depressão causada por conflitos pessoais de natureza psicológica, não relacionados com a missão – parece altamente improvável. Uma recente declaração sua sobre “distúrbios” no Haiti, publicada em 10 de dezembro de 2005, indica um perfil muito firme e decidido: “Nos deram uma missão. Temos tolerância, fazemos ações sociais, mas não estamos aqui para brincadeira.” A outra alternativa hipotética para o suicídio parece ser mais razoável: sensação aguda de solidão e impotên-

cia face a uma crise interminável, sem perspectivas reais de solução. Todos os relatórios produzidos por organizações de defesa de direitos humanos sobre a situação no Haiti, e mesmo as discussões no quadro do Conselho de Segurança (CS) da ONU mostram que a “missão de paz” transformou-se em guerra de baixa intensidade. Os cerca de 7,2 mil “capacetes azuis” da Minustah enfrentam uma batalha incessante entre gangues, incluindo os apoiadores do presidente deposto Jean Bertand Aristide. A situação é tão caótica que impediu sucessivas tentativas de realização de eleições no país. Se não foi suicídio, quem teria assassinado o general Urano? Pistoleiros a serviço de alguma gangue que se sentiu prejudicada pela ação da Minustah? Desafetos internos? Alguém motivado por razões pessoais? Estamos, aí, no reino da mais absoluta especulação. Qualquer que seja a resposta, trata-se uma morte inglória, no quadro de uma causa vã, sem perspectivas nem futuro, e isso deve ser dito, mesmo que soe duro e possa até causar mágoa nos seus familiares. Do ponto de vista estratégico, fracassou o principal ganho ambicionado pelo Brasil ao aceitar a missão no Haiti: obter uma cadeira permanente no CS - ONU. Do pon-

to de vista político mais amplo, a receita de impor a democracia no Haiti, mediante a realização de eleições, está condenada ao mesmo fracasso experimentado pelas tropas estadunidenses que ocupam o Afeganistão e o Iraque. Em circunstâncias obviamente distintas, tentase impor um modelo supostamente democrático que só faz aprofundar a crise. Como se fosse possível, aliás, impor a democracia. O Brasil poderia ter aproveitado a grave e infeliz oportunidade para renunciar à chefia da Minustah e reconhecer a inutilidade da missão, pelo menos nos moldes em que foi concebida. O passo seguinte seria a repatriação dos soldados brasileiros, que poderiam ser substituídos por médicos, enfermeiros, sanitaristas, professores e outros agentes capacitados a oferecer algum conforto a uma população mil vezes atacada, humilhada, injustiçada e sofrida. Isso, pelo menos, daria algum sentido político à morte do general Urano. Mas o Brasil preferiu manter a farsa da paz no Haiti e anunciou imediatamente o nome de um substituto para o general, aprovado mais do que depressa pelo CS. Claro: quem mais toparia assumir um abacaxi desse tamanho? Pior, muito pior do que errar – algo inerente ao ser humano – é o fato de não aprender com os erros.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES PRESENTE DE AMIGO Gostaria de parabenizar este importante projeto e dizer que foi um presente que recebi em 2005, por um amigo, que me apresentou e dividiu comigo, permitindo-me desfrutar durante o ano das maravilhosas reportagens e conteúdo deste jornal. Hoje faço parte dos “ex-petistas”, que continuam defendendo os princípios, a exemplo do Brasil de Fato, de luta por justiça e defesa do socialismo. É triste ver como tanta gente, assim como o governo Lula e o PT, traíram uma trajetória de luta tão importante, construída com suor e sangue, ser jogado às traças por tão pouco. Fui militante do PT, membro do Diretório em minha cidade. Ajudei a construir este partido, dia-a-dia, nas ruas, nas casas, nas comunidades de ba-

se, associações de moradores, tentando fazer avançar este projeto para um dia mudar este país. Mas saí do PT quando vi que, pior do que este governo, era o partido e que não havia mais espaço para contribuir com mais nada. Sai no início de 2004, embora ainda não tenha pedido minha desfiliação por causa da burocracia. Lula possuía todas as condições de fazer um governo de esquerda e de mundanças. Basta ver os ventos de mudança e oposição ao neoliberalismo na América Latina. Tudo sopra a favor para formar um bloco de resistência e proposta alternativa. O PT, o governo e os petistas estão tendo, ou poderão ter a derrota que merecem ou fizeram por merecer. Sebastião Nascimento da Cruz Barra Mansa (RJ)

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CRÔNICA

O mundo ao revés Luiz Ricardo Leitão Um triste espectro ronda a imaginação das crianças nas favelas e bairros populares do Rio de Janeiro. À noite, assustadas, elas mal conseguem dormir. Muitas acordam sobressaltadas, às altas horas da madrugada, com medo da sombria criatura. Quem dera tudo fosse apenas um pesadelo e que na manhã seguinte, na ida para a escola, o mundo voltasse a ser o mesmo lugar injusto e violento de todos os dias, para que ao menos elas estivessem livres daquele monstro, que ameaça sugar suas almas e, a qualquer momento, pode invadir o morro para levar embora alguém que ela tanto ame, sabe-se lá se o pai, a mãe, um amiguinho da sala de aula, um primo que solta pipa na laje, ou até mesmo o irmão mais velho que toma guaraná na birosca da esquina. O “bicho papão”, terror dos moleques que não queriam deitar ou que faziam xixi na cama, já não preocupa mais essas crianças, muito menos as balas perdidas da nossa “guerra particular”, que seguem à procura de algum inocente para o seu estranho ofício de matar. Talvez algum dia os tiros tenham provocado arrepios nos miúdos corações, mas isso são águas passadas, porque agora elas devem enfrentar o sinistro carro blindado da PM carioca, todo pintado de preto, com uma caveira desenhada à frente, que só participa das grandes operações, quando algum acordo com os varejistas do narcotráfico se rompe

ou duas quadrilhas rivais disputam um ponto de venda após a morte do chefão local. Herói da imprensa marrom no Rio, o “monstro” abriu espaço no imaginário infantil não apenas por sua tenebrosa estampa, mas também pelas ameaçadoras mensagens que o veículo propaga pelos becos e vielas da zona de conflito, sobretudo uma que os jornais destacaram em primeira página: O caveirão vai sugar tua alma!!! O mais estarrecedor nessa história é que a frase não brotou por acaso na cabeça de algum soldado ou suboficial da PM. Quem leu as aventuras de Harry Potter, o menino bruxo que virou o maior best-seller da indústria editorial transnacional, decerto se lembrará dos “dementadores”, os terríveis guardiães do presídio de Askaban, que sugavam os sentimentos de suas vítimas e, ao final, selavam sua inconsciência com um beijo mortal. Até mesmo Harry, herói da narrativa, encolhiase de medo perto das criaturas. Pois o absurdo “caveirão”, esse prodígio do fascismo tupiniquim, conseguir converteu o pavor da ficção em uma realidade aterradora para os curumins de Pindorama. Nada de novo no front, dirão alguns leitores. Mas é oportuno refletir, no limiar deste novo e decisivo ano, como as teias do mundo virtual ou ficcional vêm enredando, perversamente, o rico imaginário do nosso povo. Assisto ao “Observatório da

Imprensa”, na TVE, e ouço o jornalista Luiz Gutemberg afirmar que a mídia induziu os parlamentares a transformar as CPIs em uma novela escandalosa e febril, que a cada dia deve exibir uma nova denúncia, o mais das vezes fútil ou inconsistente, para garantir a audiência da próxima sessão. Diante das câmeras, senadores e deputados cumprem o seu papel na bisonha “sociedade do espetáculo” tupiniquim: gesticulam, esbravejam, fazem desafios e caretas teatrais; os mais canastrões até choram ou desmaiam. Quando estive em Cuba, lecionando Literatura Brasileira na Universidade de La Habana, escrevi, a convite dos editores locais, um livro que em português se chamaria “Para onde vai a telenovela brasileira?” O título, para os cubanos, era sempre interpretado em seu sentido literal, isto é, uma história e perspectiva do gênero televisivo no Brasil. Agora, porém, que estou de volta a Pindorama e repito a indagação, só consigo vê-la de forma figurada: “Para onde vai o alucinado folhetim da política brasileira?” Este nosso mundo severino, de fato, parece viver pelo avesso... Luiz Ricardo Leitão é editor, escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura LatinoAmericana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)

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De 12 a 18 de janeiro de 2006

NACIONAL QUESTÃO AGRÁRIA

A polêmica além dos números Dafne Melo e Tatiana Merlino da Redação

Robson Oliveira

Movimentos querem reforma agrária que mude o modelo agrícola do país, enquanto governo prioriza o agronegócio

A

divergência entre movimentos sociais e governo federal sobre os números da reforma agrária deixa claro que os lados envolvidos não falam a mesma língua quando se trata de definir o que é, de fato, a reforma agrária. Em 22 de dezembro de 2005, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) anunciou ter assentado 117.5 mil famílias. Logo depois, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederação Brasileira de Trabalhadores na Agricultura (Contag) e Comissão Pastoral da Terra (CPT) acusaram o MDA de maquiar os números, argumentando que o governo confunde reforma agrária com regularização fundiária (mais informações na reportagem abaixo). Em entrevista coletiva, o ministro Miguel Rossetto afirmou que os dados estão corretos, e que “não há nenhum espaço para discussão da qualidade desses números. Eles traduzem exatamente as famílias que deixam de ser sem-terra e passam a ter terra”. Porém, para os movimentos sociais não basta apenas distribuir terras. De acordo com o secretário de Política Agrária da Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (Contag), Paulo Caralo, o MDA quer considerar como reforma agrária a retomada de lotes e a regularização fundiária. No entanto, segundo Caralo, o governo esquece que fazer reforma agrária significa necessariamente também desapropriar terras improdutivas. “Nós não concordamos. Muitas áreas em que o trabalhador já era posseiro há 10, 20, 30 anos o governo tem regularizado – o que nós achamos importantíssimo –, mas não dá para contar isso como meta para reforma agrária”, disse Caralo à Agência Brasil.

QUAL REFORMA? Roberto Baggio, da coordenação nacional do MST, explica que a re-

Movimentos sociais do campo defendem um modelo agrícola alternativo com produção voltada para as necessidades do mercado interno brasileiro

forma agrária defendida pelos movimentos sociais prevê a alteração na estrutura fundiária do país e uma mudança do modelo agrícola – que, atualmente, privilegia o agronegócio em detrimento da agricultura familiar. Ao seu ver, desde a colonização, o Brasil possui uma estrutura agrícola que prioriza a monocultura, é dependente do mercado externo ao mesmo tempo que se direciona a ele. Além disso, Baggio expõe que esse modelo se caracterizaria por uma super exploração da mão-de-obra”. O agronegócio de hoje seria uma modernização conservadora”, diz o coordenador do MST em referência ao conceito disseminado pelo economista Celso Furtado (1920-2004). Ou seja, ao mesmo tempo em que utiliza tecnologias avançadas, fortalece os laços

de dependência com o mercado internacional. “A nossa agricultura está fragilizada e hegemonizada pelos grandes complexos transnacionais”, explica Baggio. Em contraponto, um modelo agrícola alternativo teria o objetivo de “fortalecer a soberania do país”, com uma produção voltada para as necessidades do mercado interno brasileiro, garantindo a soberania alimentar do país. Outros pontos essenciais seriam o respeito à legislação trabalhista, e ao meio ambiente. Implementar este projeto, entretanto, é travar “uma disputa ideológica”, diz Altacir Bunde, da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). A disputa se dá tanto no governo como entre os próprios camponeses. “Ir contra isso é uma luta muito difícil, pois

A fábula da atualização dos índices de produtividade Alfredo diz também que, para que o índice seja renovado, a portaria deve ser assinada pelos ministérios do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura. Este último, comandado por Roberto Rodrigues, ex-presidente da Associação Brasileira de Agribusiness, seria o maior opositor da mudança. “O agronegócio tem uma força muito grande dentro do governo”, lamenta João Alfredo. Para Plinio Arruda Sampaio, que participou da elaboração do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (projeto que já apresentava a necessidade de renovação do índice), “o governo não publica os novos números porque não tem coragem de enfrentar a bancada ruralista”. Em inúmeras outras ocasiões, como nas negociações da Marcha Nacional, e durante a Jornada de Lutas (setembro de 2005), o governo federal se comprometeu a desengavetar o projeto, mas até hoje os índices continuam ultrapassados. (DM)

Segundo o MST, governo estaria contabilizando reposição de lotes

MODELO ECONÔMICO Se para realizar a reforma agrária é necessário mudar o modelo agrícola, para mudar este último, é necessário também alterar a política econômica. Para Plinio Arruda Sampaio, coordenador do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária, é inviável democratizar o acesso à terra

com a atual política econômica, uma vez que esta “concentra a renda e agrava a desigualdade social, enquanto a reforma agrária é essencialmente distributiva”. Sampaio afirma que, mesmo as exportações agrícolas trazendo vantagens – “como a geração de divisas” –, o balanço é altamente negativo, pois essas receitas são usadas para se pagar uma dívida externa que já foi paga, “e não para desenvolver o país”. Sampaio acredita também que a reforma agrária inclui fundamentalmente uma transformação na estrutura de poder social e político. “Se o centro do poder econômico no campo não for afetado, não haverá mudanças sociais profundas”, argumenta. O MDA e o Incra foram procurados pela reportagem do Brasil de Fato, mas não quiseram se pronunciar.

Pesquisa também diverge de números do governo

Douglas Mansur

Em maio de 2005, a poucas semanas da realização da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, o governo federal anunciou a revisão dos índices de produtividade agrícola. Nove meses depois, os movimentos sociais continuam a cobrar mais uma compromisso não honrado pelo governo. O índices – que exigem uma produtividade mínima de um imóvel rural – utilizados hoje, datam de 1975, embora a Constituição Federal determine que a revisão seja realizada periodicamente. A atualização seria o primeiro passo para que fazendas que se encontram abaixo do índice mínimo exigido pudessem, então, ser desapropriadas para fins de reforma agrária. João Alfredo, deputado federal (Psol-CE), explica que a mudança é necessária, pois “o índice data de uma época em que a tecnologia era pouco avançada e as grandes propriedades produziam muito pouco”. Além disso, João

as elites, a mídia, têm um trabalho de cooptação de camponeses para que eles assimilem o modelo dominante”, analisa. Na esfera governamental, a cooptação se dá com o próprio Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). “Seu objetivo é incluir o pequeno camponês na lógica do agronegócio e não procura viabilizar um modelo alternativo”, avalia Bunde.

O último Boletim de Políticas Sociais publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), divulgado em agosto de 2005 – órgão ligado ao Ministério do Planejamento – vê com preocupação o modo como o governo federal tem encarado a questão da reforma agrária. “Passados 30 meses, todos indicadores mostram que o realizado até agora ficou muito aquém das expectativas e mesmo do prometido”, diz a análise feita pelos pesquisadores do instituto. As informações contidas no documento fortalecem o posicionamento dos movimentos sociais, que rebateram os números preliminares de famílias assentadas em 2005, divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no dia 22 de dezembro. Para o governo, 117.5 mil famílias teriam sido assentadas. No mesmo dia, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) divulgou uma nota alegando que o governo recorre à mesma prática de Fernando Henrique Cardoso: inflacionar os números. Na prática, o governo estaria contabilizando “reposição de lotes em assentamentos antigos, como novos, e assentamentos precários no norte do país em terras públicas”. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Confederação Nacional

dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) também refutaram os números. Para o secretário-geral da entidade, Paulo Caralo, o número não chegou a 60 mil famílias. O governo reagiu, acusou o MST de fazer uma “crítica leviana”, assegurou a autenticidade dos números e aproveitou para alardear o cumprimento da meta, que seria de 115 mil.

BALANÇO Ocorre que os dados analisados pelo Ipea até o primeiro semestre de 2005 fortalecem a teoria de que as famílias assentadas no governo Lula não são fruto da desapropriação de terras ou da reversão do quadro de concentração fundiária – como se espera em uma reforma agrária. “Em 2005, a maior parcela de novas terras para a reforma agrária foi obtida pela via da discriminação e do reconhecimento – cerca de 1,18 milhão de hectares (76,4%) –, sendo que apenas 205,4 mil hectares (12,8%) resultaram de processos de desapropriação”, diz o relatório, que também afirma que as regiões Norte e Nordeste receberam, em conjunto, mais de 80% dos novos assentados, destacando-se os Estados do Pará e do Maranhão. Embora afirme que a maioria dos assentamentos seja de projetos criados por este governo, o estudo aponta que “é significativa a quantidade de novas famílias a ocupa-

rem lotes em projetos anteriores a 2002”, ou seja, em projetos do governo anterior e que, portanto, não deveriam ser contabilizados. Para os movimentos sociais, esse é um dos mecanismos que o governo utiliza para inflar os números, incluindo esses assentamentos como projetos da gestão petista.

MOROSIDADE O estudo afirma também que o preenchimento de lotes vagos em projetos recentes (criados a partir de 2003) ainda estaria sendo feito de forma muito “vagarosa”, não respondendo às demandas sociais por assentamento”. Outro problema identificado pelo Ipea é que a reforma agrária não é tratada como um processo contínuo, mas sim por meio de “ações intermitentes”. Já em agosto, o estudo dizia que a meta programada pelo governo seria difícil de ser alcançada, uma vez que somente 15,9 mil famílias teriam sido assentadas. Boa parte das famílias costumam ser assentadas no último trimestre do ano, pondera o estudo. “Em 2004, quase metade (cerca de 48%) aconteceu no último trimestre”, o que exemplifica a forma fragmentada como o planejamento seria feito, diz o texto. (DM) Para acessar o estudo do Ipea, é só procurar no endereço: http:// www.ipea.gov.br/pub/bps/bps11.pdf


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De 12 a 18 de janeiro de 2006

Espelho Cid Benjamin Bial e Lula Muita gente implica com o jornalista Pedro Bial, seja por não gostar do Big Brother Brasil, seja por ele ter escrito a biografia oficial de Roberto Marinho. Não o conheço pessoalmente. Mas é de justiça reconhecer que foi correto seu comportamento na entrevista com Lula, exibida no Fantástico, no primeiro dia do ano. Sem deixar de ser polido, Bial insistiu nas perguntas nas muitas vezes em que Lula tergiversou. Fez exatamente o que deve fazer um jornalista sério. Dirceu, celebridade? Marcelo Beraba, ombudsman da Folha de S.Paulo, questionou o espaço que ainda é dado ao ex-ministro José Dirceu na imprensa. Segundo ele, Dirceu vem sendo tratado como celebridade, e não como político cassado. Exemplos seriam as reportagens de Mônica Bergamo sobre o réveillon no sul da França, reunindo o ex-ministro e os escritores Paulo Coelho e Fernando Morais. Discordo de Beraba. Dirceu (ainda) é notícia. Suas declarações sobre o PT e o governo Lula têm importância porque, até ontem, ele era figura central tanto num, como em outro. Com o tempo, a poeira vai baixar. Precedente perigoso I Não concordo com as posições de Boris Casoy, nem o admiro como jornalista. Mas é preocupante a notícia de que ele foi demitido da TV Record – onde comandava o mais importante telejornal da emissora – por pressões do anunciante, o Banco do Brasil, devido às críticas ao governo Lula. Essa versão foi amplamente divulgada sem ser desmentida. Se verdadeira, estamos diante de perigoso precedente. Publicidade oficial deve se pautar pela circulação dos jornais ou audiência das rádios e TVs, e não ser usada para influir em posições políticas. Precedente perigoso II A “denúncia” de que a Petrobras veiculou publicidade na revista do MST, feita no artigo de um suposto filósofo gaúcho e, depois, repercutida pelo O Globo numa matéria, não esconde seu reacionarismo. Por que a empresa estatal deveria discriminar a revista do MST? Por que ela é de esquerda? Esse tipo de caça às bruxas, seria um perigoso precedente. No lugar errado O Tribunal de Contas da União (TCU) mostrou que os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) estão sendo desviados para aumentar o superavit primário. Criado em agosto de 2000, o fundo arrecadou mais de R$ 4 bilhões, por meio de um taxa adicional nas contas telefônicas. Por lei, o dinheiro deve ser usado para levar serviços de telecomunicações (inclusive internet) a escolas, universidades, hospitais e em projetos que diminuam o fosso digital. Estranho foi o critério que levou O Globo a publicar esta importante matéria no Caderno de Informática. Mau gosto “Calmo, Bacellar era um excelente atirador.” Este foi o título de matéria coordenada da Folha de S.Paulo, dia 8. A matéria principal era sobre a morte do general que comandava as tropas brasileiras no Haiti, que, vítima de forte depressão, cometeu suicídio com um tiro na boca. Nas circunstâncias, destacar o fato de o general ser bom atirador é, no mínimo, impróprio. Veja Q Porcaria A coluna online Veja Q Porcaria, redigida por José Chrispiniano, voltou a ser editada. Ela se dedica a descer o malho, com toda justiça, na pior revista brasileira: a Veja. O autor anuncia ainda que, em breve, além do boletim, os textos estarão num blog. Enquanto isso, os interessados podem receber por correio eletrônico as edições online. Basta enviar uma mensagem para: vejaqporcaria@yahoo.com. cidben@uol.com.br

DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA

Programa conquista telespectador Direitos de Resposta, veiculado na Rede TV! após decisão judicial, dá visibilidade às lutas sociais Bel Mercês da Redação

Q

uem nunca ouviu a preconceituosa versão de que é o povo que gosta de baixaria na televisão? Todos os dias, cerca de um milhão de telespectadores em todo o Brasil têm assistido ao programa Direitos de Resposta, que vai ao ar das 16 horas às 17 horas e está sendo veiculado na Rede TV! de segunda a sexta-feira. Em São Paulo, o programa tem atingido uma média de dois pontos de audiência, o que significa cerca de 340 mil telespectadores diários só na cidade de São Paulo. Considerado um marco histórico na recente luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil, Direitos de Resposta é o resultado de um acordo firmado após uma ação civil movida pelo Ministério Público Federal e por seis entidades da sociedade civil contra a Rede TV! e o recém-demitido João Kleber. Acusados de promover a homofobia nas pegadinhas do extinto programa Tardes Quentes, emissora e apresentador tiveram de ceder espaço em sua programação para um efetivo direito de resposta, além de se comprometerem a não mais violar os direitos humanos. Com um tema diferente a cada dia, mas sem fugir da linha condutora central – direitos humanos e mídia –, o programa também abre espaço para produções independentes que foram enviadas ao conselho editorial via edital de convocação. Esses vídeos se intercalam ao bate-papo que Anelis Assumpção conduz entre dois convidados e a um quadro apresentado pela vereadora paulistana Soninha (PT-SP) e depoimentos colhidos nas ruas. Segundo Sergio Suiama, procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo e signatário da ação pelo Ministério Público Federal, a repercussão entre a sociedade tem sido muito boa: “Recebemos muitas mensagens de apoio. Agora queremos montar um banco de vídeos com nosso material e usar para outros direitos de resposta, que certamente virão”.

CONVIDADOS O escritor Ferréz foi um dos debatedores do primeiro dia do Direitos de Resposta e tem acompanhado o desenrolar do programa.

Fotos: Márcio Kameoka

da mídia

NACIONAL

O economista Plinio Arruda Sampaio participa de um dos debates durante o Direito de Resposta

“A iniciativa foi mais que válida, pois estamos cansados de ser desrespeitados pela televisão. Cismaram que baixaria dá ibope, mas nesse programa eu tive a abertura para falar o que realmente o povo quer ouvir”, afirmou. Ele contou que as pessoas da sua comunidade – Capão Redondo, em São Paulo – não sabiam do programa e ligaram a TV para assistir ao João Kléber: “Meus amigos queriam ver as pegadinhas e acabaram me encontrando num debate sobre direitos humanos. Eles gostaram muito, esse negócio pegou”. Quando o tema direito ao trabalho foi levado ao programa, Leonardo Sakamoto era um dos convidados. O jornalista da ONG Repórter Brasil (que desenvolve projetos de prevenção ao trabalho

escravo, trabalho degradante e trabalho infantil) acredita que “essa conquista é fundamental para abrir o debate junto a um público que antes via João Kléber. Se conseguir sensibilizar essas pessoas, já valeu a pena”.

CONQUISTA INÉDITA Maria das Graças Vieira, da Central de Movimentos Populares, concorda e defende que os meios de comunicação deveriam promover os direitos humanos e conscientizar as pessoas. “Outros espaços como esse devem ser conquistados. Hoje, o que ocorre é o contrário, os movimentos populares são criminalizados”, diz Maria das Graças, que participou do programa como representante dos movimentos de moradia urbanos.

“Essa conquista inédita deveria ser uma praxe. Pela primeira vez, a Justiça percebeu que a comunicação não está acima do bem e do mal. Existem exigiências na Constituição Federal que devem ser cumpridas”, avalia o jornalista Beto Almeida, que, além de dirigir a TV Comunitária de Brasília, representa a Telesur no Brasil – sistema de televisão alternativo para a América Latina, gerido por quatro países: Venezuela, Cuba, Argentina e Uruguai. Para Almeida, a idéia de que a sociedade não tem direitos nos meios de comunicação começa a ser quebrada. “Eles deveriam ser permeáveis à população. Televisão não pode ter dinâmica de empresa, mas sim atender a fins públicos”, opina.

Na Record, ação contra o preconceito religioso Outro caso bem parecido com o do programa Direitos de Resposta, veículado na Rede TV! após ação do Ministério Público e de entidades civis contra homofobia no programa de João Kleber, está em processo há mais de um ano contra o preconceito religioso verificado nos programas evangélicos da TV Record. O direito de resposta foi pedido em ação civil pública ajuizada pela ex-procuradora Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo Eugênia Fávero e pelas organizações Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert) e Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab). Uma liminar favorável aos direitos humanos foi concedida em 12 de maio de 2005 pela juíza Marisa Cláudia Gonçalves Cucio. A TV Record, no entanto, vem conseguindo liminares no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para não exibir um programa similar ao Direitos de Resposta, que inclusive já foi gravado. A juíza Marisa Cláudia determinou sua veiculação durante uma hora diária por uma semana. Segundo Sergio Suiama, procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, fracassou em dezembro passado uma tentativa de acordo entre as partes. “Estamos sem prazo para julgamento do nosso recurso. Temos que esperar”, explica. Para o procurador, “é inadmissível que uma seita use uma concessão pública de TV para demonizar religiões históricas brasileiras, com o objetivo de arrebanhar fiéis para sua igreja”. Pai Francelino, representante do Intecab, não vê motivos para a causa não estar ganha. “Não tem como negar que há uma afronta às religiões afro-brasileiras na Record”, diz. Segundo Francelino, o programa que produziram foi um diálogo inter-religioso com representantes das mais diversas crenças. “ Nosso direito de resposta não será um bate-boca contra os evangélicos. Nós acreditamos na liberdade religiosa”. (BM)

O que você não vê em outro lugar

Programação das últimas semanas do Direitos de Resposta

Produções independentes que só foram vistas no Direitos de Resposta “Direitos esquecidos: moradia na periferia” Realização: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Brigada de Guerrilha Cultural do Setor Cultura e Formação Política, Nicolau Bruno, Fernanda Masrocolla e Jeff A partir de um olhar sobre a Favela, o documentário se dirige à ocupação Chico Mendes, de Taboão da Serra (SP). O cotidiano dos acampados, a luta política, as atividades de cultura e as reflexões sobre a desigualdade e a construção do poder popular são tratadas nesse filme “Lançamento da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade” Realização:SOF e Marcha Mundial das Mulheres No dia 8 de março de 2005, mais de 30 mil mulheres estiveram nas ruas de São Paulo para o ato nacional de lançamento da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade. O documentário colhe depoimentos de mulheres de variados movimentos e regiões do Brasil sobre esta vitória do Movimento Feminista e da Marcha Mundial das Mulheres “Cruzando o Deserto Verde” Realização:Ricardo Sá Documentário que relata a vida das comunidades impactadas pela monocultura do eucalipto no norte e sul da Bahia. O filme mostra o gigantismo dos plantios de eucaliptos da transnacional Aracruz Celulose que provoca a exploração dos trabalhadores, a expulsão de milhares de descendentes dos escravos de suas terras, e a invasão das terras indígenas

Quinta, 12/01 – IMIGRANTES E REFUGIADOS Convidados: Juan Arturo Plaza Gallegos (Casa do Migrante de São Carlos) e Luis Bassegio (secretário nacional do Serviço Pastoral dos Migrantes) Sexta, 13/01 – DIREITO AO ESPORTE Convidados: Sócrates de Oliveira (médico, ex-jogador, e doutor em futebol) e Juca Kfouri (jornalista e colunista esportivo) Segunda, 16/01 – HUMOR Convidados: Gilberto Maringoni (cartunista e jornalista) e Hugo Possolo (fundador do grupo Parlapatões e coordenador de Circo da Funarte) Terça, 17/01 – ACESSO À JUSTIÇA Convidados: Renato Campos Pinto de Vitto (procurador do Estado de São Paulo) e Kenarik Boujikian Felippe (juíza da 16ª Vara Criminal de São Paulo e vencedora do Prêmio Franz de Castro Holzwarth de Direitos Humanos) Quarta, 18/01 – DIVERSIDADE SEXUAL Convidadas: Maitê Schnneider (presidente da União Brasileira de Transexuais) e Claudia Wonder (coordenadora dos Assuntos da Diversidade Sexual da Prefeitura de São Paulo) Quinta, 19/01 – GÊNERO Convidadas: Jacira Melo (diretora do Instituto Patrícia Galvão) e Edna Roland (Fala Preta!-Organização de Mulheres Negras) Sexta, 20/01 – DIREITOS DOS TELESPECTADORES Convidados: Diogo Moyses ( Coletivo Intervozes) e Sergio Suiama (procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo)


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NACIONAL COMUNICAÇÃO

TV digital brasileira mantém monopólio A

pesar de o Brasil estar prestes a definir seu sistema de televisão digital, ainda é pequeno o número de pessoas que compreendem a importância do assunto. As decisões têm sido acompanhadas, de perto, apenas pelo ministro das Comunicações Hélio Costa e por empresários do setor de telecomunicações. Enquanto isso, movimentos e entidades que defendem a democratização da comunicação brigam para não ser cada vez mais alijados de um debate que já não pode receber tal qualificação – as discussões estão cada vez mais restritas. Integrante do Conselho Consultivo da TV digital e do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social (entidade que atua para transformar a comunicação em um bem público), o jornalista Gustavo Gindre é categórico ao dizer que perderemos uma grande oportunidade de revolucionar a televisão brasileira, se as decisões ficarem nas mãos apenas de Hélio Costa e dos grandes empresários do setor. O calendário de discussões sobre a TV digital foi alterado pelo ministro sem a participação do Conselho Consultivo, formado por representantes da sociedade civil e especialistas. Nessa entrevista, Gindre fala sobre as possibilidades do sistema digital e explica as manobras para encobrir as motivações políticas da adoção de um padrão estrangeiro, reduzindo as escolhas sobre a TV digital a decisões meramente técnicas. Brasil de Fato – Quais são as possibilidades que a implantação de um sistema de TV digital trazem para o país? Gustavo Gindre – A TV digital tem vários caminhos possíveis para serem seguidos, desde os mais limitados, que seriam transmissões com uma definição quase três vezes melhor que a atual, até outras coisas completamente diferentes disso. A alta definição implica que só aparelhos de TV, que hoje custam entre R$15 mil e R$20 mil, receberão essa qualidade de imagem. Essa é a opção da Rede Globo, por um padrão que enfatize a alta definição. BF – Quais são os diferenciais técnicos do sistema de TV digital? Gindre – A TV digital transforma imagem analógica em digital. Ela permite fazer uma coisa que nossos computadores já fazem, que é tratar indistintamente dados. No computador você pode ver um filme, escutar uma rádio ou editar um texto. No computador uma foto, um vídeo ou uma música são a mesma coisa, números. Antes uma coisa era rádio, outra coisa era TV, outra era transmissão de dados. E agora tudo é dígito. BF – E o que mudaria em nossa forma de assistir televisão? Gindre – A TV digital permite que você coloque transmissão de dados na TV, e ela passa a ser interativa se tiver um canal de retorno. Esse canal de retorno pode ser telefone celular, telefone fixo, internet discada, banda larga, cabo. É possível acrescentar serviços como governo eletrônico, acesso a informações de governo. Para nós, é óbvio acessar o sítio do governo, mas se levarmos em consideração que só 15% ou 20% da população brasileira tem computador, essas informações podem chegar aos 90 e poucos por cento de brasileiros que têm um aparelho de TV. BF – Como será feita a transição do sistema analógico para o digital?

Ana Maria Straube

Ana Maria Straube de São Paulo (SP)

Arquivo Brasil de Fato

De um lado, o ministro alinhado aos magnatas da comunicação; do outro, a sociedade alheia a decisões importantes

Quem é Mestre em Comunicação, Gustavo Gindre, 35 anos, é jornalista e coordenador do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indesc). É editor responsável do portal de notícias Prometheus, criado no contexto do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. A política de implantação da TV digital brasileira deve beneficiar o monopólio da Rede Globo

Gindre – Durante o período de transição, cada canal atual ganha mais uma outorga, para continuar transmitindo em analógico e passar a transmitir em digital. Calculam que só é interessante você desligar o sinal analógico quando pelo menos 90% da população já tiver o digital. Por um período, teremos essas duas opções e isso implica em dar mais canal para quem já tem. Só daqui a dez anos, quando você começar a desligar o analógico, mais canais poderão entrar. Aí você tem que pressupor que as emissoras vão devolver os segundos canais delas. O acordo seria esse. Agora, isso também pressupõe que daqui a dez anos o governo vai ter força para pedir os canais de volta. Se o governo não conseguir fazer isso, não entra mais ninguém. BF – A opção por um modelo que enfatize a alta definição prejudicaria a ampliação do número de canais? Gindre – Se não optarmos pela alta definição, mesmo hoje, dando um canal a mais para quem já está, é possível colocar muitos canais a mais, numa relação de quatro para um. Você tem aí dois caminhos. O da alta definição é um caminho elitista, caro. Com um sistema de alta definição não adianta comprar uma caixinha (um dispositivo) nas Casas Bahia por R$ 300 e botar na TV, que você não vai ver em alta definição. A caixinha te dá alguns serviços no campo da interatividade, mas não vai melhorar a imagem da TV. E ele é elitista porque não permite que mais emissoras entrem no dial (freqüência). BF – Isso acabaria com a polêmica de que não há espaço disponível para mais emissoras... Gindre – Cai por terra todo o discurso de que só dá para ficar esse pessoal na TV e no rádio, e não dá para colocar rádio comunitária nem TV pública porque o espaço é limitado. Você introduz dois elementos novos na TV. Primeiro, todos esses serviços que não são uma estação de televisão no sentido estrito do termo e esse é um elemento revolucionário, completamente transformador da televisão brasileira. Há um outro que não é revolucionário no sentido qualitativo, mas é revolucionário no sentido quantitativo e acaba, no final, sendo qualitativo que é ter mais canais. Essa não é uma mudança na forma da televisão, hoje mais canais ou menos não faria diferença. Mas se tivermos uma nova legislação de outorga, podemos pensar em canais co-

munitários, canais públicos, desde redes locais até nacionais. Por que não pensar num canal público de TV da cidade de São Paulo, gerido por ONGs e movimentos sociais? Não tem porque manter esse sistema de outorgas atual. A Constituição diz que o Brasil tem três sistemas de comunicação: o privado, o estatal e o público. Até agora, esse público só aparece no artigo 223 da Constituição. Vamos criá-lo então. BF – Quais são as principais diferenças entre os padrões japonês, europeu e estadunidense? Gindre – O americano é ruim, porque é o primeiro. Ele paga o preço do pioneirismo. É uma evolução do analógico; não um padrão que já surge digital. O europeu e o japonês, por serem mais recentes, já têm mais evoluções tecnológicas. O fato de estarmos saindo depois pode ser uma vantagem, e não uma desvantagem. Vamos ter alguns avanços tecnológicos que o padrão americano não tem, pois eles fizeram isso no início dos anos 90. Tanto com padrão japonês como com o europeu dá para fazer coisas muito legais. Se o Brasil não precisasse produzir ciência e tecnologia, eu não teria nenhum problema em adotar o modelo europeu, que eu acho muito interessante, pois não optou pela alta definição. A questão não é só essa. Se a gente pode gerar empresas e tecnologias brasileiras nas universidades brasileiras, eu prefiro isso a comprar algo feito com tecnologia importada, para ficar o resto da vida pagando a empresas.

Quanto mais sofisticado, mais você exclui as pequenas e médias emissoras privadas e as produtoras independentes de ONGs e movimentos sociais BF – Qual tem sido a postura do governo nesse debate? Gindre – O discurso do governo no início era muito bom. Do ponto de vista tecnológico, não dá para produzir tudo no Brasil. Porque tem coisas que a gente não vai conseguir produzir e tem coisas que não faz sentido a gente produzir. Mas, a gente também não vai poder importar tudo, tem coisas que terão que ser adapta-

das à realidade brasileira. Dessa forma, necessariamente, a TV digital brasileira será um misto de algumas coisas produzidas aqui e outras que serão trazidas de fora. Então, por que não tentar fazer com que esse mix tenha o máximo possível de tecnologia produzida aqui? Gera conhecimento, gera patente, gera tecnologia aqui. Aí o governo pega a TV digital, sob o ponto de vista tecnológico, e divide em vinte e duas partes e resolve fazer uma licitação para o financiamento de cada uma dessas partes. As universidades se inscrevem e cada uma que ganha, recebe um dinheiro para fazer isso. A TV digital brasileira seria uma soma de cada uma dessas partes. Vamos supor que dessas vinte e duas, sete não tenham dado em nada. Aí fica decidido que essas teriam que ser tecnologias importadas. No final das contas, veríamos o que pode ser brasileiro e o que não pode. BF – E a questão da escolha do modelo? Gindre – A TV digital brasileira tem que responder às questões que não são as japonesas, nem as americanas nem as européias. São questões brasileiras: aumentar o número de canais e visar a inclusão digital, a interatividade. O discurso do governo era interessante. Foram criados um conselho do governo para acompanhar isso e um conselho da sociedade civil, que é consultivo e vai acompanhar o processo. E aí acontecem os desdobramentos disso que vão contrariando o discurso. O Conselho Consultivo começa a ser sabotado, principalmente a partir da nomeação de Hélio Costa para o Ministério das Comunicações. Ele começou a enfatizar o modelo japonês, desmerecendo toda a produção de ciência e tecnologia no Brasil. Ele passa a fazer reuniões em separado com os empresários e anuncia que vai dar uma isenção de impostos para a importação de equipamentos no primeiro ano de funcionamento, isso não é política industrial. Desde o ACM (Antonio Carlos Magalhães, então ministro das Comunicações) no governo Sarney, o Hélio Costa é o ministro das Comunicações mais francamente, abertamente a favor da rede Globo. Esse podemos dizer “é da Globo”. A Universidade Mackenzie, em São Paulo, tem engenheiros nessa área que pertencem à Sociedade de Engenharia de Televisão (Sete) – que é umbilicalmente ligada à Globo. Eles pegaram o padrão japonês e botaram uma “cerejinha” brasileira. Isso melhorou o

padrão japonês porque tornou a recepção mais robusta, que é uma demanda brasileira por conta do caos que são as cidades. A partir dessa pequena modificação, ele passa a dizer que esse agora é o padrão brasileiro. Você não tenha dúvida de que na hora em que o Hélio Costa fizer o acordo, ele não vai dizer que está adotando o padrão japonês. BF – Caso o padrão de alta definição seja aprovado, não seria mais difícil para as pequenas emissoras produzirem programas? Gindre – Dentro do mundo digital você tem a possibilidade de ter desde materiais muito mais acessíveis que os analógicos, até equipamentos que são muito mais caros. As emissoras pequenas e médias não atentaram para o fato de que a escolha pela alta definição não é ruim só para quem quer a democratização da comunicação. A Rede TV, a CNT vão ter condições de pagar R$50 mil numa câmera? Porque esse é o valor de uma câmera digital profissional. Tudo terá que ser mudado, os estúdios, a iluminação, as instalações físicas, até maquilagem. O único estúdio de TV no Brasil preparado para a transmissão de alta definição é o Projac (complexo de estúdios da Rede Globo em Jacarepaguá/ RJ). Quanto mais sofisticado, mais você exclui as pequenas e médias emissoras privadas e as produtoras independentes de ONGs e movimentos sociais. Mas aí a Globo diz que não vai conseguir exportar seu material porque o mundo inteiro transmite em alta definição. Isso não é verdade. Você produz em alta definição e para o mercado brasileiro você transmite em definição padrão. BF – O que os movimentos e as entidades que lutam pela democratização da comunicação pretendem fazer diante dessa conjuntura? Gindre – Eu, particularmente, e o Intervozes estamos defendendo a posição de que a política agora é “pára, Hélio Costa”. A proposta dele é definir tudo até o começo de fevereiro. Ele acha que isso pode ser definido por decreto presidencial. Na Copa você tem as transmissões experimentais. De onde ele tirou esse calendário, discutindo com quem? No Conselho Consultivo da sociedade civil do qual eu participo isso não passou. São várias ações com o objetivo de dizer pára, não dá para essa decisão ser tomada nos próximos 40, 50 dias como o Hélio Costa quer. Isso tem que ser discutido com a sociedade.


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NACIONAL POVOS INDÍGENAS

Violência bate recorde

Hamilton Octavio de Souza

Entidades denunciam a relação entre a violência e o desrespeito ao direito à terra

Exclusão garantida Considerado o mais importante programa do Ministério da Educação, o ProUni fornecerá, no primeiro semestre deste ano, 91.100 bolsas integrais e parciais de estudos para estudantes pobres em universidades privadas. O total de beneficiados representa apenas 3% dos três milhões de formandos do ensino médio que fizeram o exame do Enem, que serve de seleção para as bolsas. A grande maioria continua fora do ensino superior. Gastança geral O governo Lula iniciou o ano fazendo a maior gastança em propaganda na mídia. Os ministérios e as empresas estatais – Banco do Brasil, Correios, Caixa Econômica Federal, Petrobras etc – estão torrando adoidado o dinheiro público em anúncios veiculados nos jornais, revistas e emissoras de rádio e TV. O governo tucano de Fernando Henrique Cardoso também fez isso no segundo mandato e não segurou a desaprovação da opinião pública. Velha encenação O presidente Lula está fazendo jogo de cena com a candidatura à reeleição. Promete decidir até o final de fevereiro ou início de março, mas, na verdade, todo mundo sabe que é o único candidato do PT. Só não entrará na disputa se as CPIs do Congresso Nacional ou algum órgão de investigação revelar provas que coloquem a figura presidencial no centro dos esquemas de corrupção. A pizza ainda não está totalmente garantida. Estilo ditatorial A Polícia Militar do governo estadual do PSDB reprimiu com violência, no dia 5, os moradores do acampamento Carlos Lamarca, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em Osasco, na Grande São Paulo, para cumprir uma ordem de despejo de um terreno ocupado há quase três anos, no momento em que se negocia com a prefeitura a construção de casas populares naquele local. Mais uma vez, um problema social é tratado com a violência do Estado. Relação perigosa O Tribunal de Justiça de São Paulo não aceitou o recurso do advogado Roberto Teixeira para impedir o jornal O Estado de S. Paulo de fazer referência a ele como o “compadre” do presidente Lula. A juíza Fernanda de Carvalho Queiroz já havia negado liminar ao advogado por entender que a referência de compadrio não causa “dano irreparável ou de difícil reparação”. Ou seja, o compadre Teixeira vai ter que agüentar o jornal chamá-lo de compadre de Lula. Até prova em contrário. Sonho americano Quem visita a Bolívia nesses dias sente na população a mesma sensação que o povo brasileiro teve após as eleições gerais de 2002: há uma expectativa muito positiva em relação ao presidente eleito Evo Morales. No entanto, há também o temor de que acabe se transformando no Lula boliviano. O trauma da decepção contagiou a América Latina. Talvez por isso mesmo que Morales visitou de cara Fidel Castro, em Cuba, e Hugo Chávez, da Venezuela. Para indicar quem são os seus amigos. Maior dilema Em artigo recente, o professor Emir Sader defendeu a participação dos movimentos sociais no processo eleitoral de 2006. Para ele, “a capacidade de seguir mobilizando o povo nas suas lutas depende sobretudo da capacidade de apontar para alternativas – teóricas e práticas – superadoras do neoliberalismo. Se não podem substituir a ação dos partidos, têm que atuar estreitamente ligados a eles, para construir o pós-neoliberalismo”. A proposta é mais do que polêmica.

Cristiano Navarro de Brasília (DF)

Fotos: CIMI

Fatos em foco

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ristes números rondam as estatísticas sobre a violência contra os povos indígenas no Brasil em 2005. Pelas contas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no ano passado, o número de assassinatos de indígenas chegou ao patamar mais alto dos últimos onze anos. O mórbido recorde de 38 mortes foi alcançado com o assassinato anunciado de Dorvalino Rocha, líder Guarani Kaiowá da terra Nhanderu Marangatu. Dorvalino foi assassinado na véspera do Natal por homens contratados para fazer a segurança da fazenda Fronteira, situada no município de Antonio João, no Mato Grosso do Sul. O número total de assassinatos dos últimos dez anos chega a 241, uma média de mais de 24,1 mortos por ano. Neste período, nos últimos três anos foram registrados os maiores índices – 37 em 2004 e 31 em 2003. O Mato Grosso do Sul é o Estado mais violento, com 28 mortos. Para fazer seus levantamentos sobre violência, o Cimi utiliza informações colhidas por seus missionários nas áreas indígenas e notícias divulgadas na imprensa. Além dos dados sobre a violência, o terceiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva teve números desfavoráveis também no que se refere à demarcação das terras indígenas. Em 2005, apenas cinco terras foram declaradas pelo governo, isto é, tiveram sua Portaria Declaratória publicada pelo Ministério da Justiça no Diário Oficial. O baixo número leva a uma média de seis terras declaradas por ano no governo Lula, o que o coloca abaixo da média anual dos governos Fernando Collor/Itamar Franco (16 terras), Fernando Henrique Cardoso (11 terras) e João Baptista Figueiredo (8 terras). Na avaliação do Cimi,

Guarani Kaiowá prestam homenagem a mais um líder assassinado, na terra Nhanderu Marangatu

a lentidão do Estado nos processos de reconhecimento e proteção das terras indígenas representa uma das principais causas dos assassinatos.

ANISTIA INTERNACIONAL Em nota pública, a organização não-governamental Anistia Internacional afirmou que os números apresentados pelo Cimi demonstram que povos indígenas continuam a sofrer com a violência e a privação econômica grave, resultantes do fato de o governo e o poder judiciário não protegerem seu direito constitucional à terra. A Anistia considera o caso dos indígenas do Mato Grosso do Sul como um exemplo da relação entre a violência e o desrespeito ao direito à terra. “A situação difícil dos Guarani Kaiowá é típica do que ocorre quando o processo de ratificação da terra

é obstruído ou retrocede por ordem do tribunal. Os indígenas são forçados a viver às margens de suas terras ancestrais, com medo constante de represálias dos pistoleiros ou firmas de segurança que agem sem controle”, afirma Patrick Wilcken, integrante da Anistia Internacional. No ano de 1988, a Constituição deu um prazo de cinco anos para que o Estado brasileiro concluísse a demarcação de todas as terras in-

dígenas. Passados 17 anos, somente 40% das terras foram totalmente regularizadas, indicam os dados do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas. Se as demarcações seguirem no ritmo em que caminham hoje, o Estado brasileiro irá demorar pelo menos 45 anos para reconhecer todas as terras indígenas do país e rever os limites daquelas que têm sua extensão questionada pelos povos.

TRANSPORTES

Assassino confesso de líder indígena é solto Priscila Carvalho de Brasília (DF) Encontra-se em liberdade o assassino confesso de Dorvalino Rocha, líder Guarani Kaiowá da terra Nhanderu Marangatu, morto na véspera do Natal no município de Antônio João, Mato Grosso do Sul. Depois de confessar o crime em testemunho prestado à Polícia Federal, o segurança João Carlos Gimenes, da empresa Gaspem, contratado para fazer a vigília da fazenda Fronteira, foi solto pela delegada da Polícia Federal Penélope Automar.

LIBERDADE AO ASSASSINO A delegada concedeu a liberdade ao assassino ao constatar que se tratava de um réu primário, com bons antecedentes, residência fixa e por entender que este não oferecia risco ao curso das investigações. As testemunhas do crime contam que quatro seguranças desceram de um automóvel estacionado à beira da estrada MS 384 e foram em direção ao acampamento onde se encontram as famílias Guarani Kaiowá. Ainda segundo as testemunhas, o assassino teria disparado dois tiros contra a vítima sem lhe dar qualquer oportunidade de reagir. Apesar da apreensão pela qual passam, as famílias Guara-

ni Kaiowá estão determinadas a permanecer em seu acampamento na beira da estrada, como forma de pressionar as autoridades para que devolvam sua terra, homologada por decreto presidencial em março de 2005 e da qual foram expulsos por determinação judicial no início de dezembro passado.

INDÍGENAS PRESOS Em 27 de dezembro de 2005, oito indígenas foram presos em Chapecó, Santa Catarina, por determinação da Justiça Federal. As prisões ocorreram oito dias depois de uma manifestação pela continuidade do processo de retirada dos ocupantes não-índios das terras Toldo Chimbangue e Toldo Pinhal. O cacique Lauri Alves foi liberado em 31 de dezembro por decisão da Justiça Federal, após provar que não estava presente na manifestação. As outras sete pessoas continuam presas, e aguardam a decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o pedido de liberdade para os índios, impetrado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O Tribunal Regional Federal da 4ª Região já negou o habeas corpus. A Funai recorreu também ao Supremo Tribunal Federal (STF), mas, em 3 de janeiro, a ministra Ellen Gracie negou seguimento ao pedido, pois não reconheceu a competência do STF para o caso.

Em Brasília, mais uma ação contra o reajuste de ônibus Motivados pelo aumento da passagem de ônibus em Brasília, 800 manifestantes compareceram a um protesto pacífico convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL), na rodoviária do Plano Piloto em defesa do direito de ir e vir do cidadão brasiliense. No primeiro dia do ano, o governador Joaquim Roriz (PMDB) surpreendeu a população e elevou a tarifa cobrada do transporte coletivo em até 50% para algumas linhas. O reajuste geral foi de 21% e atendeu à pressão dos donos das empresas de ônibus, que inicialmente queriam um aumento médio de 56%. Em Brasília, o preço das passagens varia, agora, de R$ 1,50 a R$ 3 – a mais cara do Brasil. Durante o ato, estudantes, trabalhadores e desempregados conseguiram sensibilizar os passageiros que aguardavam os ônibus nas plataformas. Em pouco tempo, centenas de pessoas aderiram à reivindicação do protesto: a redução da passagem de ônibus mais cara do Brasil. Por volta das 18 horas, sob a alegação de que iriam desobstruir uma das vias de passagem dos ônibus, a polícia passou a agredir de forma violentíssima os manifestantes. A ofensiva desordenada dos 300 policias do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Cavalaria e Ronda Ostensiva Tático Metropolitana (Rotam) causou reação da população e desencadeou um conflito que resultou em mais de 100 pessoas feridas tanto por ação direta da polícia quanto na tentativa de evitar as agressões. O abuso de autoridade resultou ainda

na detenção ilegal de 15 pessoas, encaminhadas para a delegacia e soltas sem qualquer acusação. Um dos casos que mostra o abuso da polícia ocorreu com o funcionário do restaurante Gustatus, Luciano Alves, de 28 anos, que voltava para casa quando foi espancado por cinco policiais na frente da esposa e da filha de dez anos que o acompanhavam. Mas, apesar de terem ficado assustadas com as agressões policiais, trabalhadoras de uma loja de cosméticos da rodoviária que consideraram o protesto como positivo e necessário. Para elas, a culpa dos danos físicos e materiais foi o aumento das tarifas dos ônibus, e não os manifestantes. Impopulares, os aumentos da tarifa do transporte coletivo têm mobilizados protestos liderados por estudantes e trabalhadores em todo o Brasil. Recentes conquistas foram registradas em grandes cidades como Salvador, Florianópolis, Recife, Vitória da Conquista, Belo Horizonte. Organizadas pelo MPL, as manifestações se opõem à lógica mercantilista do transporte público e à pressão do empresariado que querem reajustar as passagens mesmo privando o acesso de parte da população ao direito de ir e vir. Em nota dirigida à população, o MPL explica que o reajuste não vai “melhorar nem a situação de quem usa os transportes nem de quem trabalha neles”, mas sim beneficiaria meia dúzia de empresários, citando “Wagner Canhedo (ex-presidente da falida Vasp), Valmir Amaral e Matsunaga”. (CN)


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NACIONAL INFLAÇÃO

Memórias de uma era de saque Privatização gerou alta da inflação e da dívida do governo, o contrário do que dizia o discurso oficial Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

O PESO DOS SERVIÇOS E PRODUTOS ADMINISTRADOS

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ocê, contribuinte e consumidor, acreditava mesmo que a privatização de empresas estatais traria todas as vantagens alardeadas pelos governantes de plantão? Realizadas “no limite da ilegalidade”, como chegou a definir um ex-ministro tucano, novamente escolhido como principal conselheiro econômico de um dos pré-candidatos do PSDB à Presidência da República nas eleições deste ano, as vendas das empresas antes controladas pelos governos federal e estaduais deveriam “revolucionar” a economia, trazendo maior “eficiência” e “competitividade”. Já os consumidores e usuários seriam favorecidos consumidores e usuários pela melhora dos serviços públicos em geral. A “eficiência”, no caso, deveria ter sido assegurada pela cobrança de tarifas e de preços relativamente Preços adminismais baixos. trados – São tarifas Conversa fiada, fixadas pelo poder como volta a público em contrato demonstrar com as empresas privatizadas. Seus mais um estudo, reajustes variam desta vez realiconforme índices do zado pela insusmercado financeiro e não têm relação peita equipe de com o poder de economistas do compra da popuministro da Falação ou com a variação de oferta zenda, Antônio e demanda. Estão relacionados a servi- Palocci. Divulgado na virada ços coletivos, como telefonia, energia do ano, o trabaelétrica, água. lho mostra que os preços administrados e as tarifas de serviços públicos dispararam já no início da fase mais agressiva das privatizações.

PREÇOS SOB PRESSÃO

PREÇOS ADMINISTRADOS

Variação acumulada, por período, em %

Fatia do orçamento das famílias destinada ao pagamento de preços administrados e tarifas públicas, em % Período

Variáveis IPCA

Mai/1995 a Nov/2005

Jan/2000 a Nov/2005

126

59

93

47

339

95

Preços livres Preços administrados

Peso

Fonte: Ministério da Fazenda

1994

10,9

1995

8,9

1996

11,2

1997

13,0

1998

14,0

1999

15,5

Período

2000

16,3

Dez/2000

397,5

2001

17,9

Dez/2001

477,9

2002

18,7

Dez/2002

532,9

2003

21,8

Dez/2003

679,3

2004

23,0

Dez/2004

768,8

2005

30,35

Nov/2005

929,9

DÍVIDA DO GOVERNO NO MERCADO INTERNO DISPARA Valores em bilhões de reais

Fonte: Banco Central (BC)

Fonte: Global Invest/Ministério da Fazenda

Concretamente, entre maio de 1995 e novembro de 2005, tomando como base o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que afere o custo de vida para famílias com renda de até 40 salários mínimos, os chamados preços administrados subiram nada menos do que 339%. Ou seja, ficaram, na média, mais de quatro vezes mais caros. No mesmo período, o IPCA, refletindo a inflação oficial, sofreu variação de 126%. Os preços ditos “livres”, já que não dependem da autorização de governos ou órgãos regulado-

res, subiram bem menos, algo em torno de 93%.

EMPOBRECIMENTO

Arquivo Brasil de Fato

Leilão de privatização da Eletropaulo, na Bolsa de Valores de São Paulo

Dívida em poder do mercado

Mais claramente, se não fossem os preços administrados e tarifas de serviços de utilidade pública, a inflação do país poderia ter sido muito mais baixa, o que afetaria menos a renda do consumidor. Surgiria a possibilidade de até “sobrar” parte do salário ao final do mês, destinada ao consumo de outros bens e serviços – o que contribuiria para melhorar a qualidade de vida das famílias. A disparada desses preços levou a um comprometimento recorde da renda dos consumidores com o pagamento das contas de água, esgoto, luz, telefone, despesas com combustíveis e gás, passagens de ônibus, pedágios, planos de saúde e remédios. Até janeiro de 1991, como mostra o estudo do ministério, os preços administrados tinham um peso inferior a 15% no orçamento das famílias. Essa fatia mais do que duplicou nas décadas seguintes, ultrapassando os 30% em novembro do ano passado. Em algumas regiões, como no Rio de Janeiro, a fatia da renda engolida pelos preços administrados já representava, então, 33%.

Em um outro estudo do gênero, a Global Invest, empresa de consultoria econômica, mostra que o avanço dessas tarifas ocorreu ao mesmo tempo em que a renda dos trabalhadores murchou, agravando a crise na economia. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rendimento médio real (ou seja, já atualizado com base na inflação) das pessoas ocupadas em outubro do ano passado (R$ 991,69) representava uma queda de praticamente 11% na comparação com igual mês de 2002 (R$ 1.112,14). “O que se observa é uma queda constante do rendimento e elevação dos gastos com essas tarifas públicas (água e esgoto, gás encanado, energia elétrica, ônibus urbano, metrô e telefone fixo) que não têm substitutos ou similares, fato esse que se traduz em menor renda disponível para saciar necessidades básicas como alimentação, saúde e vestuário”, afirma a Global Invest. Serviços como energia não podem ser substituídos pelo consumidor por similares mais baratos, obrigando-o a gastar mais ou a reduzir o consumo, privando-o de outros produtos e bens (televisores, freezers e geladeiras, como ocorreu durante o “apagão”).

E a dívida, senhores? Um dado em geral “esquecido” no debate sobre as privatizações diz respeito à dívida do governo. Em outro pretexto para convencer a opinião pública a aceitar a liquidação do patrimônio público, economistas dentro e fora do governo alegavam que os recursos arrecadados com a venda das estatais seriam usados para abater a dívida do governo, desobrigando-o do pagamento de juros e outros encargos que sangravam o orçamento e impediam que sobrassem recursos para setores prioritários, como saúde pública, educação e segurança. Os anos seguintes mostraram que aqueles argumentos não passavam de deslavada mentira. Não só as despesas com juros dispararam e continuaram a exaurir os cofres públicos, por conta da política de arrocho adotada nas últimas duas décadas, como o endividamento não recuou um centavo sequer. A chamada dívida mobiliária interna saltou de R$ 397,5 bilhões em dezembro de 2000 para R$ 929,9 bilhões em novembro do ano passado, segundo dados do Banco Central (BC), num avanço de 134%. Comparada ao total de riquezas produzidas pelo país, a dívida saiu de 34,4% do Produto Interno Bruto (PIB) para 48,1%. O governo não só não conseguiu se livrar da dívida como ainda perdeu fontes de receita importantes, representadas pelas empresas privatizadas – que, agora, distribuem seus lucros a grandes grupos daqui e de fora. (LV)

O levantamento da Global Invest mostra a mesma tendência: a participação daqueles gastos no orçamento do consumidor saltou de 8,9% em 1995, logo depois do lançamento do real, para 23,1% em 2004. O trabalho do Ministério da Fazenda mostra que o quadro agravou-se desde então, com a participação dos preços administrados nos orçamentos domésticos chegando a 30,35% no final de 2005.

Na verdade, toda a política de privatização foi projetada para atender a interesses de investidores, especialmente os de fora – e jamais levou em consideração os interesses e necessidades reais do país e de seus cidadãos. Tratava-se de assegurar o maior lucro possível aos futuros donos das estatais, por meio de aumento das tarifas que os setores privatizados passariam a cobrar. A política de “ajuste” daqueles preços, na prática, como aponta o estudo do Ministério da Fazenda, antecedeu a venda propriamente dita das estatais e foi realizada, principalmente nos setores de aço, telecomunicações e energia, na primeira metade dos anos 1990. De uma forma ou de outra, o governo Lula e sua equipe econômica têm responsabilidade direta pelos aumentos. Em alguns casos, como no exemplo das empresas concessionárias de serviços de água e esgoto, telefones, energia e também dos Correios, tratou-se de eliminar os subsídios destinados a baratear os custos daquelas tarifas para as famílias de renda mais baixa. A disparada desses custos correspondeu, portanto, a uma decisão de política econômica, que nada teve a ver com aumentos reais de custos das empresas.

Arquivo Brasil de Fato

Uma política contra os interesses do país

Serviços de água, telefone e energia ficaram mais caros devido à política de ajuste de preço implementada pelo governo

Detalhe: ao longo de anos, décadas, praticamente todos os governos tentaram “domar” a inflação impondo prejuízos às estatais, que eram obrigadas a aceitar o congelamento de seus preços e tarifas por períodos prolongados ou a concordar com aumentos irreais, abaixo da variação de seus custos, a pretexto de combater a carestia. Por isso, as empresas públicas

foram literalmente impedidas de investir em seu negócio, registraram prejuízos que, mais tarde, foram utilizados pelos governos para justificar a privatização. As estatais eram ineficientes? Nem sempre. Na maioria dos casos, os “rombos” foram causados por políticas e decisões de governo. Para “facilitar” ainda mais a liquidação das estatais e avançar

em seu projeto de desmonte do Estado, o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu abrir novas concessões em privilégio dos compradores das estatais.

LUCROS INDEVIDOS A política de privatização determinou que os preços e tarifas de telecomunicações e energia elétri-

ca passariam a ser corrigidos todos os anos com base na variação do Índice Geral de Preços (IGP), calculado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). contrariando a Lei 8.880/94, que criou o real. Segundo a legislação, preços e salários deixariam de sofrer correções automáticas, como ocorria no passado, de forma a acelerar a queda da inflação. Abriu-se uma exceção para os setores privatizados que puderam continuar corrigindo suas receitas ano a ano, mesmo que seus custos não sofressem variação. Na prática, foram autorizados a ampliar seus lucros às custas do consumidor/contribuinte. “A sua utilização (do IGP) cria um alto risco de desvios em relação ao comportamento médio dos demais preços da economia e da renda dos consumidores”, como registra o estudo da Fazenda, uma confissão em “economês” da equipe econômica. Numa tradução aproximada, os tecnocratas reconhecem, agora, anos mais tarde, que a correção automática dos preços administrados ajudou a encolher a renda do consumidor e determinou aumentos que não tinham relação direta com os custos das empresas privatizadas, gerando lucros indevidos. (LVF)


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De 12 a 18 de janeiro de 2006

NACIONAL IGUALDADE DE DIREITOS

Pelo fim da discriminação sexual Tatiana Merlino da Redação

Divulgação

Movimento GLBT reivindica políticas públicas que assegurem direitos no país campeão mundial em crimes de homofobia garanta nossos direitos é o maior desafio do movimento”, afirma Toni Reis, secretário-geral da ABGLT. A medida não prevê o “casamento gay, como os conservadores dão a entender”. Trata-se de um contrato civil que iguala os direitos dos casais homossexuais aos dos heterossexuais, garantindo direito à herança, partilha de bens, declaração de renda conjunta, inclusão do parceiro em planos de saúde, financiamento conjunto de imóveis, entre outros.

N

POLÍTICAS PÚBLICAS Lançado dia 25 de maio de 2004 pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), o programa consiste num conjunto de políticas para

LEI DEFASADA

Mesmo promovendo a maior parada gay do mundo, o Brasil ainda é campeão mundial em crimes de homofobia

combater a violência contra gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. Estão previstas 53 ações que abrangem as áreas de educação, saúde, segurança, direitos humanos, juventude, racismo e mulheres. Foram criados grupos de trabalho com a participação da sociedade civil em ministérios ligados ao programa, como Cultura, Educação e Justiça. O assessor especial da Secretaria de Direitos Humanos, Ivair Augusto dos Santos, destaca o trabalho feito junto à “Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, que investe na capacitação de policiais e criação de um banco de dados sobre crimes cometidos

MARCO LEGAL Mesmo tendo a maior parada gay do mundo, que reuniu 2,5 milhões de pessoas em São Paulo, em 2005, (leia quadro), os gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros

Brasil, campeão mundial em crimes de homofobia

Direitos conquistados

escolas. Os resultados preocupam: 27% dos alunos não gostariam de ter homossexuais como colegas de classe; 35% dos pais e mães de alunos não gostariam que seus filhos tivessem homossexuais como colegas de classe e; 15% dos alunos consideram a homossexualidade uma doença.

CORTE DE CLASSE A vivência da homossexualidade fica ainda mais difícil para as camadas pobres da sociedade. Enquanto os homossexuais que têm maior poder aquisitivo são aceitos mais facilmente, pois são “consumidores”, aos pobres resta a “dupla discriminação”, afirma Nelson Matias Pereira, presidente da Associação da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo (APOGLBT-SP). “Queremos ser reconhecidos como cidadãos, e não apenas como consumidores”, ressalta Pereira, ao lembrar que até os crimes de homofobia cometidos contra pessoas “da classe dominante têm um tratamento diferenciado”. Segundo ele, “assim como o negro rico é menos vítima do racismo do que o negro pobre, o mesmo acontece com os gays, lésbicas, travestis e transexuais”. (TM) Divulgação

Enquanto o movimento GLBTS (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgêneros) pressiona o Congresso para a aprovação de uma lei federal que assegure os direitos das minorias sexuais, a cada ano aumenta o número de gays assassinados no país. De acordo com o antropólogo Luiz Mott, o Brasil é o campeão mundial em crimes de homofobia. Nos últimos 25 anos, foram contabilizados 2.600 assassinatos de gays, lésbicas e travestis no Brasil, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, organização da qual Mott é fundador. “Isso significa que há mais de cem assassinatos por ano”, explica o militante. Pelo estudo da organização, foram 169 mortes em 2004 contra 125 registradas em 2003. “O número dos crimes de homofobia vem aumentando, apesar de hoje termos 140 grupos homossexuais em todo o país”, denuncia. A homofobia ainda é responsável por atitudes e comportamentos documentados na pesquisa Juventudes e Sexualidades, realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 14 capitais brasileiras em 2000. Participaram do estudo 16.422 alunos, 3.099 educadores e 4.532 pais e mães de alunos de 241

Nos últimos 25 anos, 2.600 gays, lésbicas e travestis foram assassinados.

brasileiros ainda não têm uma lei federal que assegure seus direitos. O Projeto de Lei 1151/95, de Parceria Civil Entre Pessoas do Mesmo Sexo, de autoria da ex-deputada e ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy, após mais de dez anos tramitando no Congresso Nacional, continua sofrendo resistência da Câmara dos Deputados. Ainda que tenha sido aprovada em todas as comissões pelas quais passou – não sem receber algumas emendas que reduziram os direitos previstos – a proposta está em plenário esperando a sua inserção na pauta para ser votada. “Aprovar uma lei federal que

contra a população homossexual”. Nelson Pereira diz não ser pessimista, “o programa é um divisor de águas para os gays”. No entanto, lamenta que o movimento gay não seja prioridade no orçamento da União. “Continuamos sendo cidadãos de terceira categoria. Temos que pressionar para que o governo implemente o que está previsto no Brasil sem Homofobia”, alerta.

De acordo com Nelson Pereira, se aprovada, a lei já estaria desatualizada em relação a outros países que, de fato, permitem tanto o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com alteração do status civil (Espanha, Canadá, Holanda e Bélgica) quanto, em alguns casos, a possibilidade de adoção de crianças (Espanha e Holanda). “Isso é uma negação de direitos”, indigna-se. Na ausência de uma legislação federal, os grupos gays pressionaram para que centenas de municípios e diversos Estados aprovassem leis que adotassem a punição da discriminação por orientação sexual. Os Estados do Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe e do Distrito Federal passaram a prever punição administrativa para quem discriminar homossexuais. Em junho de 2000, a Justiça do Rio Grande do Sul, pioneira em aprovar medidas que beneficiam gays, obrigou o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) a conceder pensão para parceiros do mesmo sexo de segurados falecidos ou detidos. (Colaborou Paulo Simas)

Uma das maiores conquistas do movimento brasileiro é a Parada do Orgulho Gay, Lésbico, Bissexual e Transgênero (GLBT). Criado em Nova York, Estados Unidos, um ano depois da revolta do Stonewall Inn, um bar gay cujos clientes foram agredidos pela polícia em 1969, esse tipo de evento nasceu para celebrar o Dia Internacional do Orgulho Gay, 28 de junho. Atualmente, as paradas são realizadas em mais de 140 países, sendo que, no Brasil, estão presentes em todos os Estados e no Distrito Federal. A primeira a ser realizada no país foi a do Rio de Janeiro, em 1995. Participantes da 17ª Conferência da International Lesbian and Gay Association (ILGA) decidiram marchar pela Avenida Atlântica pedindo a garantia de direitos dos cidadãos homossexuais. Essa mobilização é considerada também a primeira Parada Gay da América Latina. Em São Paulo, depois de reunir somente duas mil pessoas em 1997, viu-se o número de participantes aumentar, ano a ano, junto com o apoio do empresariado e do governo: do patrocínio de casas noturnas a emissoras de TV a cabo, do apoio logístico da prefeitura ao financiamento do Ministério da Saúde. De modo que, em 2004, reuniu mais de 1,5 milhão de pessoas na Avenida Paulista, tornando-se a maior parada do mundo. Já a edição de 2005 levou entre 1,8 milhão (dados da polícia local) e 2,5 milhões (dados dos organizadores) à Avenida Paulista. Em 2005 o tema da parada foi “Parceria Civil Já: Direitos Iguais Nem Mais Nem Menos”. Este ano, será “Homofobia é crime: direitos sexuais são direitos humanos”.

Divulgação

o Brasil, a cada 48 horas uma pessoa é assassinada por ser gay, lésbica, bissexual ou transgênero. Nos últimos 25 anos, foram contabilizados 2600 crimes de homofobia no país. Passados um ano e 10 meses do lançamento do programa Brasil sem Homofobia, do governo federal, continuam faltando ações efetivas para vencer a violência e o preconceito sexual existentes no país. Essa é a avaliação de Nelson Matias Pereira, presidente da Associação da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo (APOGLBT-SP). “A aprovação do programa foi fantástica, mas sua aplicação um fiasco.” Pereira considera que o Brasil sem Homofobia tem um forte valor simbólico para o movimento gay, já que, pela primeira vez na história no país, foi criado um programa voltado à temática. No entanto, as entidades GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgêneros) acusam o governo de não prever recursos necessários para sua implementação. “Constatamos uma grande incoerência por parte do governo federal ao criar o programa não prevendo dotação no orçamento para a sua execução”, afirma Marcelo Nascimento, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT).

A Parada Gay de 2005 teve como tema a parceria civil com direitos iguais

A 10ª edição da parada deve acontecer em mais de 70 localidades em todo o país, de acordo com Nelson Pereira, presidente da Associação da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo (APOGLBT-SP). “Conseguimos uma visibilidade incrível, é inegável. Não dá mais para negarem nossa existência. Agora, precisamos de ações concretas.” Pereira explica que o tema de 2006 quer chamar atenção para a necessidade de leis que garantam direitos civis para os homossexuais. A década de 1990 também assistiu à fundação, em 1995, da

Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT), que representa as organizações de militância homossexual em nível nacional, de inúmeras ONGs e de políticas públicas de defesa dos direitos homossexuais, como o Disque-Denúncia Homossexual, do Rio de Janeiro. Em 1999, outra vitória importante, similar à da retirada do “homossexualismo” da lista de doenças do Ministério da Saúde: o Conselho Federal de Psicologia aprova resolução proibindo seus profissionais de oferecerem tratamento de “cura” aos homossexuais. (TM e PS)


Ano 3 • número 150 • De 12 a 18 de janeiro de 2006 – 9

SEGUNDO CADERNO MILITARIZAÇÃO

As forças ocultas da missão no Haiti Igor Ojeda da Redação

Agência Brasil

General brasileiro encontrado morto sofria pressões de empresários e da ONU para comandar ação repressora

P

airam muitas dúvidas (algumas bem obscuras) sobre a morte do general Urano Teixeira da Matta Bacellar, comandante militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). Até o fechamento desta edição, na noite do dia 10, não havia uma conclusão se ele tinha sido assassinado ou cometido suicídio. A segunda hipótese, cogitada por integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU) mas não confirmada pelo governo brasileiro, gerou desconfianças entre os movimentos sociais haitianos e pessoas que acompanham a situação de perto. “Temos informações de que ele estava resistindo a comandar uma ação mais dura por parte da Minustah em Cité Soleil. Um companheiro do Haiti disse que as oligarquias estavam pressionando muito para essa atuação mais contundente, mas ele não estava querendo atuar nesse sentido”, afirma Sandra Quintela, do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), que em abril de 2005 visitou o país caribenho como membro de uma delegação de organismos sociais internacionais. “Quando estivemos lá, o próprio general Augusto Heleno Pereira nos disse que estava sofrendo pressões permanentes dos Estados Unidos e da ONU para agir mais duramente”, diz. Informações do semanário Haiti Progres endossam tal tese. Segundo o jornal, na noite anterior de sua morte, o general Bacellar – encontrado morto no dia 7 no hotel onde morava, na capital Porto Príncipe – esteve em uma reunião tensa com representantes da Câmara do Comércio e Indústria do Haiti (CCIH), que exigiram justamente uma ação mais forte contra os bairros da periferia da capital, como Cité Soleil, espécie de quartel-general dos

O general Bacellar em encontro com o ministro do Exterior Celso Amorim, em setembro: pressões freqüentes dos EUA

apoiadores do presidente deposto, Jean Bertrand Aristide, e opositores ao atual regime. Também participaram desse encontro representantes do Grupo 184 – um conhecido grupo da sociedade civil que inicialmente foi organizado para desestabilizar o governo de Jean Bertrand Aristide com supostos recursos financeiros da Estados Unidos, França e Canadá. Segundo a página na internet www.haitiaction.com, o Grupo 184 também pressionava para que o general brasileiro comandasse uma ação repressora em Cité Soleil.

PRESSÃO OFICIAL No dia 9, depois da morte de Bacellar, uma greve patronal convocada pela CCIH paralisou a quase totalidade das atividades comerciais e o transporte da cidade. O protesto do empresariado tinha como objetivo instar a Minustah a adotar medidas para restabelecer a segurança no país.

Tal pressão também teria partido do chefe diplomático da ONU no país, Juan Valdés, cuja justificativa era de que Cité Soleil abriga grupos responsáveis por uma onda crescente de seqüestros. Diversas organizações de direitos humanos, no entanto, afirmam que o verdadeiro motivo da pressão dos empresários e da ONU é a perseguição política. Bacellar vinha se negando seguidamente a agir dessa forma. Não por acaso, na mesma noite da morte do general brasileiro, Valdés anunciou um plano de intervenção nos bairros mais pobres e avisou sobre a possibilidade de baixas de civis durante a ocupação. No dia 15 de novembro de 2005, Organizações Não-Governamentais (ONGs) dos EUA apresentaram uma petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) denunciando que havia, no Haiti, “um modelo sistemático de assassinatos extra-judiciais e mas-

sacres em Porto Príncipe, perpetrados pela Polícia Nacional Haitiana e pelas forças da Minustah sob o comando brasileiro”. Um dos casos que ilustrou a acusação teria acontecido no dia 6 de julho do mesmo ano, quando mais de 300 capacetes azuis fortemente armados invadiram Cité Soleil, matando pelo menos 63 pessoas (inclusive mulheres e crianças) e ferindo outras 30. Em nota à imprensa, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil rejeitou as acusações.

MISSÃO FRACASSADA Assassinato ou suicídio, a morte de Bacellar desnuda simbolicamente a situação de caos que está vivendo o país, além do fracasso da Minustah, opina Sandra Quintela. “As missões de paz e de estabilização da ONU se mostram de fato um fracasso geral na medida que não há interlocução com a sociedade organizada e não se enfrentam os problemas estruturais” (veja quadro). Para o deputado

federal Orlando Fantazzini (Psol-SP), sem política social para o país, os grupos organizados ganham o espaço que deveria ser ocupado pelo Estado. “Sem alocação de recursos por parte da comunidade internacional, as forças brasileiras estão agindo somente na repressão, direta ou indiretamente dando retaguarda a uma polícia extremamente violenta e que desrespeita sistematicamente os direitos humanos”. Camille Chalmers, professor de Economia da Universidade Estatal do Haiti, concorda com a tese do fracasso da missão da ONU. Em entrevista à Agência Brasil, ele disse que o governo brasileiro deveria “tentar resolver os problemas sociais e econômicos muito graves que estamos vivendo aqui”. Para ele, a miséria haitiana é “o miolo da crise social” no país. Por isso mesmo, Chalmers defende que o Brasil substitua a força militar por ajuda nas áreas de saúde e educação. Mesmo após a morte de Bacellar, o Brasil obteve apoio internacional para seguir à frente da Minustah, chegando a indicar à ONU o nome se dois possíveis substitutos. Já as eleições foram adiadas pela quarta vez. A última data era a de 8 de janeiro mas, após o episódio, o pleito foi reprogramada para acontecer no dia 13 de março, e o segundo turno no dia 19 de março. (colaborou Daniel Merli, da Agência Brasil)

O caos social no Haiti • 8,1 milhões de habitantes. • 80% vivem abaixo da linha da pobreza • Desemprego: 66% não têm empregos formais • Analfabetismo: 47,1% da população • Expectativa de vida: 52,9 anos. • Mortalidade infantil: 73,4 mortes para cada mil nascimentos • Aids: 5,6% dos adultos (280 mil infectados e 24 mil mortes em 2003)

ANÁLISE

Antônio Augusto O Chile escolhe no dia 15, no segundo turno, seu próximo presidente, entre Michelle Bachelet, da Concertação (união de partidos dos quais os principais são o Socialista e a Democracia Cristã), e o bilionário Sebastián Piñera, candidato da direita. O fato novo dessa eleição parece ser o fim da “transição (para a democracia) que não acaba”, como dizem os chilenos. O ditador Augusto Pinochet passou o Natal e o réveillon em prisão domiciliar, sem imunidades e identificado criminalmente. Responde a processos por desaparecimento de opositores e corrupção, fonte da sua fortuna de 26 milhões de dólares. E pela primeira vez pós-Pinochet, se destacam no centro da agenda eleitoral os temas da esquerda allendista agrupada na frente Junto Podemos Mais (Podemos) – que uniu Partido Comunista, Partido Humanista, Esquerda Cristã, outros partidos e movimentos sociais . No primeiro turno, Michelle teve 45,9% e Piñera 25,4%. Joaquín Lavín, candidato de passado mais identificado a Pinochet, obteve 23,2%. E Tomás Hirsch, de Junto Podemos Mais (Podemos), 5,4%. Os votos atribuídos a Podemos são essenciais à eleição de Michelle Bachelet, visto que, somados, os candidatos da direita a ultrapassaram no primeiro turno. Lavín dirige agora a campanha de Piñera. Hirsch, do Partido Humanista, considerado por diversos analistas o candidato de melhor desempenho na campa-

Divulgação

Esquerda allendista luta contra a exclusão cada distrito são eleitos, desde que o mais votado não tenha pelo menos o dobro dos votos do outro – caso em que a coligação majoritária asseguraria as duas vagas. É o sistema eleitoral dos sonhos da direita chilena, pois mesmo minoritária em relação à Concertação, assegura assim um mesmo número de cadeiras na Câmara. E até conseguia superioridade numérica no Senado, pois mais de um quinto dos senadores era biônico, com Pinochet de senador vitalício. Os senadores biônicos e vitalícios acabaram e já não integram a próxima legislatura. Michelle Bachelet (à esquerda) se apresenta como alternativa à direita

nha, declarou que votará nulo. Mas o Partido Comunista, a Esquerda Cristã e a grande maioria dos movimentos sociais se esforçam por impedir uma vitória de Piñera, dono da Lan Chile e de uma fortuna de 1,2 bilhão de dólares, alcançada com as privatizações.

RECEITA NEOLIBERAL O voto nulo de Hirsch reflete a falta de credibilidade da Concertação diante da esquerda chilena. Michelle é do Partido Socialista, o mesmo do atual presidente Ricardo Lagos. Allende era do PS, mas entre o partido de Allende e o de Lagos há pouca coisa em comum além do nome. O Partido Socialista, à época de Allende, era um partido revolucionário. Hoje, o PS disputa com a direita mais tradicional a aplicação da receita neoliberal. Lagos se empenhou em ser o

preferido dos estadunidenses na região: assinou com os Estados Unidos um tratado bilateral de livre-comércio, danoso à indústria e à balança comercial chilenas, e deu às costas ao Mercosul. No seu governo, o Chile está entre os dez países com pior distribuição de renda no mundo. O desemprego é endêmico e a previdência social inexiste. Os chilenos receberam grande calote: a previdência privada, instituída por Pinochet, reduziu drasticamente as aposentadorias a pouco mais que um salário mínimo. Há sérias restrições ao sindicalismo e às negociações coletivas de trabalho. Imposta pela ditadura, segue vigente no Chile a Constituição de 1980, base do sistema eleitoral binomial nas eleições parlamentares. Por essa complicada fórmula, os dois candidatos mais votados em

CONTRA A DIREITA Some-se a divisão distrital casuísta. Distritos de três milhões de habitantes elegem o mesmo número de senadores que outros de 90 mil. Na eleição de 1997, por exemplo, Gladys Marín, a expresidenta do PC, com expressivos 175 mil votos, não se elegeu, enquanto candidatos de direita iam para o Senado com 14 mil votos. O sistema binomial acabou com as eleições proporcionais, tradição da política chilena. Mas houve quem, na Concertação, visse virtudes no sistema e teorizasse sobre a “estabilidade democrática assim garantida”. “A Concertação renunciou a avanços, se acomodou muito bem no poder e cooptou também alguns dos seus no mundo dos negócios”, avalia o professor de filosofia, Marcos García de la Huerta, autor do premiado livro Pensar a Política, em entrevista à influente revista Punto Final.

O PC anunciou que será oposição a um eventual governo Bachelet, mas decidiu votar contra a direita, cumpridos cinco pontos mínimos, aos quais Michelle acenou positivamente. O primeiro, o fim do sistema binomial. Lagos, antes mesmo do fim das apurações do primeiro turno, anunciou envio de mensagem ao Parlamento para isso, se dispondo a fazer o que não fizera em seis anos. A votação da matéria ocorre na primeira semana de janeiro, com oposição da direita. As outras reivindicações dizem respeito à efetiva liberdade sindical e de greve, reajuste das aposentadorias, direitos dos povos indígenas e defesa do meio ambiente, além de um assunto capital na política chilena: não permitir a impunidade dos torturadores e assassinos de presos políticos. A questão dos direitos humanos estabelece uma das poucas e importantes diferenças entre a Concertação e a direita. Michelle é filha do general da Força Aérea Alberto Bachelet, militar encarregado por Allende de combater o mercado negro que desestabilizava seu governo. O militar, profissional dedicado e apartidário, levou a tarefa a sério. Pinochet não o perdoou: o general foi barbaramente torturado e assassinado em março de 1974. Já Piñera, associado a Lavín, opõe dificuldades ao estabelecimento da justiça, único modo do Chile superar seu trágico passado recente. Antônio Augusto é jornalista


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De 12 a 18 de janeiro de 2006

INTERNACIONAL BOLÍVIA

E a água segue privatizada R

uas estreitas, uma mistura de terra, pedras e esgoto. Casas minúsculas, erguidas pelo esforço de homens, mulheres e crianças, todos descendentes de indígenas aymará. Nos muros da pequena cidade conhecida como Villa Ingenio, distrito de El Alto – região metropolitana da capital La Paz – , está estampada a indignaçao e o sofrimento pelos anos de exploração estrangeira. “Fora empresas transnacionais. Viva a dignidade e a soberania do povo boliviano. Queremos nossos recursos naturais de volta.” Em meio ao frio intenso do altiplano boliviano, essa é apenas mais uma comunidade indígena que vive sem água e passa fome. Como as cerca de 50 famílias que sobrevivem do lixo produzido por El Alto, hoje com aproximadamente 800 mil habitantes. Com seu trabalho, alimentam a fome de um imenso depósito a céu aberto que contamina rios, lençóis de água e divide espaço com mortos e vacas que descansam no cemitério local. “A prioridade dessas pessoas que vivem aqui é sobreviver”, diz Leonardo Bautista Peralta, com lágrimas nos olhos. Entre as inúmeras montanhas que se aproximam da Cordilheira dos Andes, lhamas famintas compartilham com moscas e hortas totalmente contaminadas o cheiro insuportável de toneladas de lixo.

NEGÓCIOS E POBREZA Na Villa Ingenio, está localizada uma base da empresa Águas del Illimaní, subsidiária da transnacional francesa Suez, responsável pelo fornecimento de água e tratamento de esgoto das cidades de El Alto e La Paz. Responsabilidade que, de fato, só existe no contrato, com suas letras mortas e hipócritas. A menos de 100 metros da empresa, cerca de 20 casas sobrevivem sem uma única gota de água potável. O esgoto corre a céu aberto, contaminando os poucos rios que a empresa francesa deixou para a comunidade sobreviver. “O serviço é inexistente,

Esperança que Evo cumpra a promessa Com a vitória de Evo Morales nas últimas eleições, movimentos sociais, instituições públicas e o povo, de forma geral, acreditam que a Águas del Illimaní, controlada pela transnacional francesa Suez, será finalmente expulsa do país. “A água é um bem que deve ser administrado por organizações coletivas sociais. Vejo a vitória de Evo Morales com grande esperança”, afirma Pablo Mamani, diretor da área de Sociologia da Universidade Pública de El Alto (Upea). Além de não fornecer água potável para grande parte da população de El Alto e La Paz, a empresa francesa monopoliza rios que descem dos Andes. Como se não bastasse, a transnacional despeja grande parte do esgoto das duas cidades – as mais populosas da Bolívia – em pequenos rios da região, que são justamente as únicas fontes de recursos hídricos para grande parte das comunidades indígenas. “Até hoje, a Águas del Illimaní não teve a capacidade de construir uma central de tratamento de esgoto eficiente”, diz Abel Mamani, presidente da Federación de Juntas Vecinales de El Alto (Fejuve). (FM)

Descendentes de indígenas aymará sofrem sem água tratada devido aos altos preços cobrados pelos serviços

as tarifas são dolarizadas (reajustadas e cotadas de acordo com a moeda estadunidense) , o que é proibido por lei, e além de tudo há cláusulas no contrato que garantem uma rentabilidade de 13 % ao ano para a empresa”, denuncia Oscar Olivera, um dos fundadores da Fundação Abril, organização que trabalha com meio ambiente e serviços básicos na cidade de Cochabamba. A empresa francesa está na Bolívia desde 1997, quando a Superintendência de Águas (Ministério) outorgou a concessão dos serviços de maneira pouco transparente e duvidosa. “O processo foi vergonhoso. A Águas del Illimaní apresentou o projeto e, no dia seguinte, a Superintendência o aprovou. O mais grave é que não houve concorrência”, diz Carlos Crespo, diretor da área de meio ambiente da Universidade San Símon, localizada em Cochabamba. Em 2003, Crespo analisou o contrato entre Águas del Illimaní e a Superintendencia junto à Universidade de New Castle (Estados Unidos).

Dias antes da concessão ser outorgada, a empresa francesa e a Superintendência de Águas já começavam a encher os bolsos com o dinheiro do povo alteño. “Antes mesmo de o contrato ser assinado houve um aumento de 30% a 50% das tarifas de água”, completa Crespo.

PROTESTOS As diversas mobilizações e bloqueios realizados nos últimos anos fizeram com que o então presidente Carlos Mesa fosse obrigado a assinar um decreto, em janeiro de 2005, determinando o rompimento do contrato com a Águas del Illimaní. No entanto, o ato entrou para a história como jogo de cena, pois inexplicavelmente a transnacional continuou a responder pelos serviços de água e esgoto. A expulsão da empresa foi uma das reivindicações dos protestos que resultaram na queda de Mesa, em junho de 2005, e na ascensão de Eduardo Rodriguez. O novo presidente reafirmou o compromisso de romper com a

transnacional, mas nada foi feito. E a empresa francesa continua tirando o dinheiro que a população não tem. Uma simples ligação para qualquer casa de El Alto receber água tratada custa 155 dólares (cerca de R$ 350). Vergonhoso, se considerarmos que a média de salário do povo alteño não ultrapassa os 50 dólares (aproximadamente R$ 113). “As pessoas não têm dinheiro para pagar pelos serviços. Por isso, consomem água

contaminada de rios e poços da região”, explica Beatriz Bautista, ativista política do distrito. A cada semana uma criança alteña apresenta problemas de saúde relacionados ao consumo de água contaminada. “E a empresa ainda tem coragem de afirmar que seus serviços atendem a quase 100% da cidade”, argumenta Abel Mamani, presidente da Federación de Juntas Vecinales de El Alto (Fejuve).

Pobreza com corte étnico A questão da água é apenas mais um problema que afeta diretamente os indígenas, maioria no país. Por toda a Bolívia, nota-se a pobreza em que vivem os índios. Espalhados pelas ruas de cidades como Cochabamba, Santa Cruz, El Alto e La Paz, sobrevivem do comércio. O estado em que se encontra a sociedade indígena atual é fruto da exploração histórica de espanhóis, ingleses e estadunidenses, que aqui estiveram e saquearam – e insistem em saquear – os recursos naturais do país, como a água, o gás e a prata. Deixaram mortos, sangue e órfãos. “Na Bolívia, a dignidade tem um preço e o pior é que temos que pagar em dólares. Nossos filhos estão sendo mortos aos poucos. Se as coisas continuarem assim, no futuro não terão água, natureza, vida”, completa o boliviano Leonardo Bautista. (FM)

INTEGRAÇÃO

A agenda externa de Evo Morales Claudia Jardim de Caracas (Venezuela) Antes de assumir o governo, o líder cocaleiro Evo Morales, presidente eleito da Bolívia, traçou uma rota de um giro pelo mundo de forte conteúdo simbólico que pode determinar os passos do país que pretende ser reconstruído a partir da sua posse, marcada para 22 de janeiro. A primeira visita foi à ilha revolucionária governada pelo presidente Fidel Castro. Dia 30 de dezembro de 2005, em Havana, Morales e o líder cubano firmaram 11 acordos de cooperação mútua, definindo como prioridade a alfabetização do povo e o serviço de saúde. A exemplo da Venezuela, a Bolívia contará também com o auxílio médico cubano. Foi definida ainda uma meta de formar, em dois anos, 5 mil médicos bolivianos. Na área da educação, o objetivo é erradicar o analfabetismo no país em 30 meses – cerca de 13% da população boliviana não sabe ler ou escrever em espanhol. Depois da visita a Cuba, Morales regressou ao seu país para comemorar junto com a família e centenas de indígenas camponeses a chegada do ano-novo. Logo após, no dia 3, viajou à Venezuela de onde seguiu para a Espanha, França, Bélgica, Holanda

Marcelo Garcia

Fabio Mallart especial para o Brasil de Fato de El Alto (Bolívia)

Fotos: Fabio Mallart

Atual presidente Rodriguez manteve contrato com a Suez; vitória de Evo alimenta esperança de empresa ser expulsa

Morales, em viagem antes da posse, com o presidente venezuelano Hugo Chávez

e China, onde estava no dia 10, fechamento desta edição. O boliviano ainda visitaria África do Sul e Brasil antes de sua posse.

SOLIDARIEDADE Ao aterrissar na Venezuela, Morales encampou a crítica bolivariana às políticas de Washington. “Estamos aqui nos incorporando a essa luta antineoliberal e antiimperialista”, afirmou. O novo governo boliviano defendeu, ao lado de Hugo Chávez, o que entende ser a única alternativa para os países arrasados pela aplicação das políticas aprego-

adas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial: a priorização da integração social e política no continente. Entre os acordos de cooperação inspirados na proposta da Alternativa Bolivariana para as Americas (Alba), a Venezuela ajudará a Bolivia com tecnologia na área energética e com o todo fornecimento de petróleo hoje importado pelo governo boliviano, o equivalente a 150 mil barris mensais. “Nao aceito que me pague nenhum centavo em troca, se não o equivalente em produtos agrícolas”, afirmou Chávez.

O governo venezuelano, por meio do Fundo do Sul, irá colocar à disposição da Bolívia 30 milhões de dólares em financiamentos de projetos sociais e de desenvolvimento energético. “Vamos apoiar modestamente esses planos para que se torne realidade o que Evo tem chamado de resgate da dignidade da Bolívia”, anunciou Chávez. Tal processo será iniciado com a realização da aguardada Assembléia Constituinte, considerada a base para a construção de um “projeto de país”, “multicultural” e de “inclusão dos povos indígenas”, como definiu o vice-presidente Alvaro Garcia em entrevista à BBC. Trata-se de uma bandeira defendida pelas organizações populares desde a queda dos presidentes Gonzalo Sanchez de Lozada, em 2003, e de Carlos Mesa, em 2005. A tarefa de mudar a realidade do país não será fácil. A Bolívia é o segundo país com maior concentração de renda no continente, superado apenas pelo Brasil. Os 20% dos mais ricos dispõem de uma renda 30 vezes maior do que a dos 20% mais pobres. A mortalidade infantil é de 60 mil por mil nascidos vivos – a média do continente é de 28% – e a expectativa de vida é de 63 anos, enquanto a média na América Latina e Caribe é de 70 anos.


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INTERNACIONAL ATIVISMO

A meditação esclarece e revoluciona Monge pacifista estimula a prática de formas de espiritualidade que fazem pensar sobre as injustiças nar uma pessoa mais forte, com mais força de vontade para lutar. As elites mundiais sabem bem que quando celebramos ao extremo com carnaval e álcool não vai ter revolução. Devemos celebrar sim, devemos brincar o carnaval. Porém, temos que pensar também que os vícios estão matando famílias... violência doméstica, dependência química. Devemos pensar que muitos dos vícios têm um efeito que vai além do físico e do social, reduzem nossa resistência contra a exploração.

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abelos e barba grisalhos e longos, olhar sereno e determinado, falar doce, gestos didáticos. O monge Dada Maheshvarananda é mais que um simples ativista político. Não é pelo seu nome incomum ou seu uniforme laranja – incluído o turbante – que ele se diferencia de qualquer outra pessoa que luta por um mundo melhor. Engajado em projetos sociais ou em meio a uma multidão num protesto de rua, a sua voz é apenas mais uma que sonha e exige mudanças. Conhecido simplesmente como Dada (irmão), esse estadunidense de 52 anos renunciou a tudo para se dedicar à humanidade ensinando meditação e yoga e prestando serviço social. “Com a meditação e o serviço desinteressado eu fui capaz de sentir amor incondicional e felicidade verdadeira”, diz. Brasil de Fato – O senhor se considera um tipo de revolucionário? Dada Maheshvarananda – Revolução significa uma enorme força para transformar. No mundo de hoje, violência e pobreza matam desnecessariamente crianças a cada três segundos e isso é uma coisa que tem de ser mudada o mais rápido possível. Eu me dedico a servir a humanidade encorajando as pessoas a descobrir seus próprios potenciais para atingir essa força que transforma, e por essa razão eu me considero um revolucionário. BF – O mundo precisa de uma revolução? Como ela seria? Dada – Precisamos unir dois pontos: transformação pessoal e social. Um não acontece antes do outro, os dois acontecem simultaneamente. O mundo precisa de novos homens e mulheres e de uma sociedade apropriada para todos os seres humanos. O sistema global capitalista é baseado em lucro, ganância e egoísmo e isso não resolve problema nenhum. Nas escolas elementares nós ensinamos as crianças a compartilhar, mas na prática fazemos o contrário. Precisamos basear esse sistema em cooperação para criar democracia econômica e novas alternativas. Com muita luta conseguimos alcançar democracia política em boa parte do mundo, mas em muitos países isso ainda não funciona e as diferentes formas de violência contra o ser humano continuam existindo e crescendo. BF – O que a meditação tem a ver com economia e alternativas sociais? Dada – Meditação nos ajuda a entender melhor nossa própria realidade. Precisamos de uma transformação total em cada aspecto de nossas vidas. O pior nível de violência é aquele estrutural, a violência de instituições. Eduardo Galeano (escritor uruguaio) explicou que os países que estão falando de paz são os mesmos responsáveis pela mais alta produção e venda indiscriminada de armas: Israel, Estados Unidos, Inglaterra. Essas armas têm um só objetivo, matar gente. Instituições como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional causam pobreza devido a pressões por reformas estruturais em países pobres e subdesenvolvidos. No Brasil, por exemplo, a ordem é privatizar e reduzir gastos ao máximo. A equação é simples: redução de investimentos em educação, saúde etc., dependência do humor do mercado financeiro, menos poder de decisão ao Estado. No final, o bem-estar da população é sempre

Monges budistas participam de ato político contra a globalização durante o Fórum Social Mundial em Bombaim, na Índia

afetado. Meditar nos faz perguntar o por quê dessas coisas, a razão pela qual nos acostumamos a certas injustiças. Você pode responder essa questão? BF – Como foi ensinar meditação e yoga no Brasil? Dada – Eu fui bem aceito, até recebi o apelido de Osama Bin Laden. O brasileiro tem um grande interesse em misticismo, em conhecer a conexão de uma pessoa com o cosmos, o supremo. Mais do que em outros países, o Brasil é fascinado pelo esotérico. O sucesso dos livros de Paulo Coelho e outros títulos do gênero é uma mostra disso. Os mistérios atraem os brasileiros. O universo é sempre misterioso e é estúpido dizer que a ciência saiba tudo sobre o universo. Albert Einstein disse uma vez: “Há dois tipos de pessoas nesse mundo: um não acredita em milagre; o outro acredita que tudo é milagre!” Ele se considerava do segundo tipo. Eu também estou com ele, como grande parte dos brasileiros. Cada ser humano é um milagre da criação por seus potenciais físico, psíquico e espiritual. E a meta da yoga é desenvolver esses potenciais. Talvez seja essa busca em comum que me faz estar bem com a gente brasileira. BF – O senhor também conheceu uma realidade mais crua? Dada – Eu não era capaz de falar dez palavras em português quando cheguei ao Brasil, mas estava feliz em observar pelas ruas de São Paulo a harmonia da grande mistura de raças. Uma semana depois, recebi um convite para falar num evento do Rotary Club International, num grande hotel. Havia 48 pessoas; todas de pele branca. Pensando melhor, entendi que as elites brasileiras são racistas. Talvez a maior parte da população não, mas as elites, sim. Isso prova que existe racismo estrutural no Brasil, explicado pela violência, pela pobreza e pelo analfabetismo e pelo desemprego em maior número entre as pessoas de pele escura. Me aproximei bastante dessa realidade ensinando meditação e yoga em penitenciárias e trabalhando com comunidades e movimentos populares. BF – É difícil imaginar um preso sentado em meditação, considerando as condições das prisões brasileiras. Dada – Fui voluntário no Carandiru por um ano e outros quatro na penitenciária José Maria Alckmin, em Neves, perto de Belo Horizonte. Meu papel era encorajar os presos a utilizar seu tempo de pena na sua transformação pessoal por meio de técnicas

milenares de meditação e yoga. Essas práticas os ajudavam a ser mais positivos e a estudar e lutar para se tornarem exemplos para eles mesmos, para suas famílias e para a sociedade. Não era fácil, mas muitos eram sinceros e alguns realmente mudavam. BF – Qual era a maior dificuldade para um preso aprender a meditação? Dada – Aceitar a mudança, reconhecer a necessidade de transformação. Por exemplo, um detento se interessou em aprender meditação pessoal ao final de um curso de cinco semanas. Conversamos um pouco e ele me disse que estava ali porque tinha matado o assassino de seu irmão. “Essa foi a única pessoa que você matou?”, perguntei. “Não, Dada, foram várias. Tinha que seguir as regras da minha gangue. Se eles matassem um dos nossos, a gente tinha que matar cinco dos deles”, ele respondeu. Tradicionalmente grupos criminosos usam essa perspectiva para eliminar ameaças. Se uma pessoa é perigosa, ela precisa ser eliminada; isso inclui amigos, família, que também acabam entrando nesse círculo vicioso de violência. O meu aluno confessou que sua experiência numa favela de Belo Horizonte era exatamente assim, reconhecendo que o único jeito para sair dessa situação era pela mudança. Eu fui direto: “Não é fácil, mas para aprender meditação você terá que fazer um juramento de não machucar ninguém intencionalmente. Está preparado?” Chorando e tremendo muito, ele disse sim.

O pior nível de violência é aquele estrutural, a violência de instituições BF – Espiritualidade não era o seu único trabalho... Dada – Escrevi meu livro no Brasil. Em Após o Capitalismo eu falo das propostas de Prout (Teoria da Utilização Progressiva), que é um modelo econômico alternativo proposto pelo filósofo indiano P. R. Sarkar, na década de 1960. Prout é baseado em cooperativas, auto-suficiência e desenvolvimento responsável e no valor moral. O livro foi só uma semente do meu trabalho de divulgar esse sistema em todos os setores da sociedade, principalmente naqueles que buscam alternativas, como os movimentos sociais e as comunidades organizadas. Por se tratar de um modelo holístico, eu trabalhei com

vários grupos, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao movimento inter-religioso, de partidos progressistas a organizações de economia solidária. BF – Um dos slogans do modelo econômico Prout é “Globalização da humanidade, localização da economia”. Dada – Por que existe desemprego no Brasil? Não por falta de trabalho necessário, mas por causa de falta de dinheiro. Um exemplo: o Brasil está inundado com produtos chineses, assim como na Europa, onde esse ponto é ainda mais grave. Muitas indústrias e pequenos empreendimentos vão à falência porque não conseguem mais competir em seus próprios mercados. No modelo de Prout, pequenos e médios empreendimentos, organizados em cooperativas, são o pilar do sistema econômico. Por exemplo, o Brasil acaba produzindo menos roupa porque é mais em conta importar. E vestuário, junto com educação, saúde, habitação e energia, é uma necessidade básica e deve ser produzida localmente, criando uma economia auto-sustentável e forte. Por isso, de acordo com o sistema de democracia econômica de Prout, é necessária uma pequena proteção e controle da balança de importações e exportações de certos produtos. Por que os países ricos protegem seus mercados criando barreiras a exportações, com altas tarifas, e pregam o contrário em relação a países pobres? BF – Como é falar dessa alternativa econômica sem que as pessoas o associem a algum grupo religioso? Existe um tabu entre espiritualidade e ação política? Dada – Não é difícil. Antes de me tornar monge eu era ativista contra a guerra do Vietnã. Na universidade, meu curso era Estudos para a Paz, estudava como construir paz no mundo. Quando encontrei essa forma de yoga e meditação com uma perspectiva ativista de Ananda Marga eu tive uma explosão mental. Ou seja, ser o mais pacifista possível internamente e lutar contra injustiças na forma atual externamente. Na verdade, eu estou apenas encorajando as pessoas a pensar de um jeito diferente, com uma visão holística. As idéias que eu tenho sempre existiram, os meus valores éticos são iguais aos de outros progressistas. O problema não é apenas ecológico ou político ou econômico. São todos integrados, ligados a uma causa comum. Paulo Freire insistia tanto nisso. Funciona assim também com a transformação pessoal para tor-

BF – Foi a meditação que o ajudou a chegar a essa conclusão? Dada – A meditação te dá clareza para entender muitas coisas, como as mentiras que a televisão envia. A sociedade e os meios de comunicação nos ensinam que felicidade depende de prazeres, de desejos realizados em troca de certa quantidade de dinheiro. Na verdade, isso é uma mentira porque nossa felicidade não depende de qualquer coisa externa. Essa é a minha revolução. Pela meditação e pelo serviço desinteressado eu fui capaz de sentir amor incondicional e muita felicidade. É por isso que eu uso essa cor laranja, que significa que minha vida é inteiramente dedicada à humanidade, e que eu trabalho apenas para encorajar as pessoas a descobrir a fonte de felicidade dentro de cada coração. BF – Essa é a sua receita para uma vida equilibrada e... feliz? Dada – O ideal seria meditar duas vezes por dia, por um período de 20 minutos. Parece muito, mas esse curto tempo de meditação vai liberar muito mais tempo na sua vida. Você talvez dormirá um poucos menos em troca de mais energia, mais clareza, mais felicidade. Ou seja, você perderá menos tempo com a sua organização, pressões externas ou estresse. É fácil, basta sentar-se sozinho em silêncio, com olhos fechados, imaginando que tudo é amor – significado do mantra universal Baba Nam Kevalam, que pode ser repetido mentalmente na cadência da respiração tranqüila e regular. Outro conselho é a leitura do meu livro, e trazer ação à sua vida. “Pensar globalmente, agir localmente” – é um slogan ecológico. Faça algo, porque sua pequena ação positiva, mesmo que pareça insignificante, pode se unir com outras ações até atingir o ponto da grande revolução. Luciano Máximo

Agência Brasil

Luciano Máximo de Bolonha (Itália)

Quem é Aos 25 anos, o estadunidense Dada Maheshvarananda embarcou para a Índia para se tornar monge. Deixou para trás os protestos contra a guerra do Vietnã. Após treinamento de dois anos na Índia e no Nepal, conduziu projetos humanitários no Sudeste Asiático. Transferido para o Brasil em 1992, trabalhou por 11 anos em favelas, prisões, escolas e universidades em parceria com movimentos populares e intelectuais progressistas, como frei Betto, Paulo Freire, Leonardo Boff e Marcos Arruda.


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De 12 a 18 de janeiro de 2006

INTERNACIONAL MOÇAMBIQUE

Namoro em tempo de Aids Aureliano Biancarelli de Maputo (Moçambique)

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inco da tarde e os alunos da Escola Comercial, na região central de Maputo, comemoram o toque do sinal e o término das aulas da sexta-feira. Os adolescentes saem em turmas, rindo, marcando encontros, namorando de braços dados, outros se beijando na boca. A escola fica no bairro Polana Cimento, de frente para a Avenida 24 de Julho, região de classe média da capital de Moçambique. A cena não é diferente de qualquer porta de escola de qualquer país do mundo. Mas os adolescentes ali vivem a realidade de um paradoxo cruel: numa região cuja cultura estimula o sexo como prazer, e onde a primeira relação se dá entre 13 e 15 anos, a Aids aparece como uma ameaça fatal. Estima-se que em Maputo 17,3% da população esteja com HIV. Entre jovens de 19 e 24 anos, essa porcentagem subiria para cerca de 20%. Em algumas regiões do país, e possivelmente em algumas áreas de Maputo, há três meninas infectadas para cada rapaz com o vírus. No Brasil, a taxa de infectados na população, em geral, é inferior a 0,4%. A proporção entre os sexos, que já foi de uma mulher infectada para 28 homens com HIV no Brasil, agora está se aproximando do empate. Quase em frente à Escola Comercial, no canteiro central da 24 de Julho, há um outdoor onde se vê o retrato em negro de um adolescente e se lê a frase: “Onde está o jovem? Deixou-se levar pela Sida (Aids)”. O cartaz, e dezenas de outros com mensagens semelhantes espalhados por toda a cidade, foi colocado há cerca de três anos. Desbotou e deixou a impressão de que não assusta mais. Os adolescentes na porta da Escola Comercial, brincalhões e abraçados às namoradas, não demonstram sinais de que vivem o amor em tempo de Aids. Um em cada cinco jovens ali pode estar com HIV. Quem será ele, que pode ser o mais charmoso e interessante da turma, mas que obriga as “namoradas” a transarem sem camisinha? Como é esse amor que pode matar? Nem os jovens sabem responder. Nem há estudos que informem se eles têm ou não consciência do risco que correm. O conceito de vulnerabilidade, empregado pelos especialistas, não faz parte do vocabulário e das preocupações desses adolescentes. Alguns dos que foram ouvidos falam vagamente de amigos distantes doentes ou que já morreram de Aids. Mas como a regra é não revelar quem está com a doença, a Aids não mostra a cara nem parece preocupar. Mesmo artistas como a cantora e ídolo Zaida Chongo, ativista da Aids e que morreu em 2004, não revelou que estava com a doença. Moçambique tem 1,5 milhão de pessoas vivendo com HIV/Aids e a cada ano morrem 100 mil vítimas da doença. São 500 novas infecções por dia, principalmente entre os jovens. “Meus pais dizem que no tempo deles não tinha nada disso”, diz Alice, 20 anos, aluna do 3o ano da Escola Comercial. No fim do ano, ela sairá com diploma de contabilista. “Hoje, nem sei se vale a pena se preocupar tanto, mas não dá para confiar em ninguém. Nem mesmo se me apresentassem o atestado de que fez o teste.”

MUITA DESCONFIANÇA Os GATs, Gabinetes de Testagens Anônimas, cerca de 150 no país, ainda são poucos e a maioria deles recebe bem menos jovens do que era esperado. Fernando, 20 anos, acha que um mês de namoro é o bastante para saber se dá ou não para con-

Fotos Aureliano Biancarelli

Como são as relações entre os jovens em um país onde o índice de infectados pelo vírus HIV chega a 20%

Estimativas apontam que 17,3% da população de Maputo esteja infectada com o vírus HIV

fiar. Pensa como muitos jovens de qualquer país do mundo. Mas diz ter amigos que não usam preservativo nunca e que obrigam a namorada ou a amiga a ter relações na hora que querem e como querem. As meninas confirmam: todas conhecem casos de sexo feito à força, mesmo entre os colegas de classe. Entre professores e alunas, o sexo é uma moeda corrente de negociação para garantir nota e passagem de ano. Estima-se que 25% dos professores sejam portadores do HIV. Uma das preocupações do governo e de organizações internacionais é a de que profissionais essenciais para a continuidade da vida no país sejam dizimados pela Aids – professores, policiais, trabalhadores da saúde. As falas dos jovens misturam medo, dúvidas e desinformação. Na rodinha que se forma em frente à escola, há quem diga que o preservativo já vem infectado. “O vírus está na camisinha. Prefiro não usar”, diz Aires, 17 anos. Alana, 19 anos, diz que não confia em ninguém. “Se o vírus é transmitido pelo sangue, então um mosquito que pica alguém doente e depois pica você, também vai passar o vírus.” No grupo, pelo menos três meninas dizem já ter abandonado o namoro desconfiadas do namorado.

Geórgia diz não confiar nem mesmo nela. “Falam que o HIV passa até nos alicates da manicure, então como é que eu vou saber?” Em um país onde há 500 médicos e 72 mil curandeiros, e onde mesmo estudantes de classe média acreditam mais nas tradições e crenças do que nas campanhas oficiais, o HIV ainda encontra um terreno fértil para crescer. As meninas dizem invejar o tempo de seus pais, “quando ninguém ficava encucado, só tinha medo de pegar filho, nada de ficar doente e morrer”, como diz Alana.

Quem ouve, pode pensar que pais e filhos costumam conversar sobre sexualidade. Os que estudam os hábitos familiares moçambicanos discordam: o sexo é bastante praticado, sim, mas nunca comentado em casa.

DESIGUALDADE NO SEXO O drama das adolescentes aumenta em regiões mais afastadas de Maputo. Na capital, convivências mostradas pela televisão – especialmente pelas novelas brasileiras – fazem crer numa suposta igualdade entre os dois sexos.

Projeto Geração Biz: teatro na rua Às terças-feiras, na sala de uma organização não-governamental na rua da Tanzânia, próxima à região central de Maputo, jovens “ativistas” se reúnem para fazer um balanço da atuação nas escolas. Fazem parte do projeto Geração Biz, que tem o apoio de organizações internacionais. Atuam nas ruas e nos mercados, com peças de teatro e pequenos shows, e em cerca de 15 escolas de Maputo. Treinados, há sempre um ativista em um “gabinete” da escola disponível para receber um colega e tirar dúvidas. O balanço quase burocrático cai numa tradição moçambicana

que provoca sempre uma acirrada discussão. Trata-se do “dia do homem”, como a sexta-feira é conhecida. Pela tradição, o homem pode sair na noite da sexta e só voltar no domingo, sem dar satisfação à namorada ou à mulher. “É só um jeito de o homem tirar o estresse”, defende um rapaz. As meninas respondem prontamente: “Nós mulheres também vivemos estressadas”. Lizete, 21 anos, é a mais incisiva. “No dia do homem, os rapazes bebem de cair. Nem pensam em camisinha, querem ter relações à força.” Do lado de fora, terminada a reunião, rapazes e moças continuam

as discussões. “Tem rapaz que nem acredita na Aids”, diz Arone, 16 anos. Manuel, 22 anos, usa uma expressão local para explicar por que os rapazes não querem usar camisinha. “Como é que se pode escrever sem tirar a tampa da caneta?” Sem motéis na cidade, os jovens transam na casa de amigos, nas praças, nas praias, em qualquer lugar escuro. Nas festas, dançam a marrabenta, ritmo tradicional que anima os bailes ao som de grupos como Mabulu e o cantor Antonio Marcos. A cidade tem três salas de cinema. (AB)

Em algumas áreas rurais do sul e do centro do país, as moças ainda são submetidas ao que estudiosos chamam de “sexo terapêutico”: quando um homem pega uma DST, é instruído pelo curandeiro a fazer sexo com uma mulher jovem, sem preservativo. Se for à força, o “remédio” será mais eficaz. No norte do país, onde predomina o islamismo, a poligamia é prática corrente. A religião obriga, no entanto, que o homem seja fiel às suas esposas e que dê a elas bens e tratamento iguais. Na capital e nas grandes cidades, o homem que tem algum poder – econômico ou político – mantém várias amantes e namoradas. Não usa camisinha com elas, nem a esposa. Meninas sem dinheiro se prostituem pelo equivalente a R$ 10 com caminhoneiros que atravessam os corredores que levam aos portos moçambicanos ou trabalhadores que voltam das minas de ouro e diamantes da África do Sul. Órfãos da Aids, desamparadas, entram na prostituição como único meio de garantir a sobrevivência delas e dos irmãos. Aureliano Biancarelli viajou a Moçambique a convite do Programa Nacional de DSTAids. A reportagem foi publicada originalmente no Especial Aids e Juventude, da Revista Viração (www.revistaviracao.com.br)


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De 12 a 18 de janeiro de 2006

NACIONAL TRANSGÊNICO

Governo sem transparência Luís Brasilino da Redação

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odo fim de ano o governo brasileiro aproveita o período de festas para adotar medidas polêmicas e, principalmente, impopulares. Em 2005 não foi diferente. No dia 26 de dezembro, o ministro Sergio Rezende (Ciência e Tecnologia) publicou portaria instalando a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e, já no dia seguinte, a primeira reunião foi realizada. Nela foi escolhido o calendário de reuniões ordinárias de 2006 e agendado para os dias 15 e 16 de fevereiro a votação do regimento interno da comissão e a eleição do seu presidente. Na portaria assinada pelo ministro Rezende, também são designados 24 titulares e 23 suplentes para a CTNBio. Segundo Jean Marc von der Weid, diretor da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), a escolha destes membros foi marcada pela completa falta de transparência. A exceção foram os ministérios do Meio Ambiente (MMA) e do Desenvolvimento Agrário (MDA), que publicaram portaria entregando ao Fórum Brasileiro de Organizações Não-Governamentais e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Fboms) a responsabilidade de formar listas tríplices com seus indicados para a comissão. “Nos outros ministérios não existe nada disso. Não há clareza. Na Saúde foi pior ainda. Fomos atrás para saber como seria a definição dos nomes mas só recebemos evasivas. Até agora não se sabe quem as pessoas designadas representam, nem quem as indicou. E são dois nomes muito ruins”, queixa von der Weid. São eles, o ti-

Valter Campanato/ABR

Ministério da Ciência e Tecnologia define nova composição da CTNBio; uma seleção feita por poucos, para poucos

O que é a CTNBio A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) regula a pesquisa, o cultivo e a comercialização de transgênicos no Brasil e, desde 1996, ela comporta-se como representante do lobby transnacional de engenharia genética. Com a Lei de Biossegurança, sancionada em março de 2005, seus trabalhos foram interrompidos para que sua atuação pudesse ser novamente regulamentada. Ainda não é certo como será seu comportamento de agora em diante mas, graças a nova legislação, seu futuro preocupa. A CTNBio vai dispor de grandes poderes, questionados por ações diretas de inconstitucionalidade que estão paradas há quase um ano no Supremo Tribunal Federal (STF), como dispensar estudos de impacto ambiental e à saúde na liberação comercial de produtos transgênicos. O ministro Sergio Rezende, da Ciência e Tecnologia, aproveitou o fim de ano para instalar a Comissão de Biossegurança

tular, Walter Colli, diretor do Instituto Butantan (Universidade de São Paulo), e a suplente Erna Geessien Kroon, microbióloga da Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo o diretor da AS-PTA, de ministério em ministério as coisas acontecem da mesma maneira. Ele conta que não conseguiu descobrir como foi feita a seleção dos 12 cientistas que irão compor a comissão. “Procuramos o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e eles só dizem que a escolha foi feita ‘por procedimento normal’. E continuam repetindo isso sem dizer o que significa. Perguntamos se publicaram edital, quais comunidades científicas

foram consultadas e a resposta que obtivemos foi sempre a mesma: seguimos o ‘procedimento normal”, denuncia von der Weid. Ele suspeita que todos os escolhidos sejam membros da Associação Nacional de Biossegurança ou do Conselho de Informações sobre Biotecnologia, entidades ligadas ao lobby pró-transgênico e que possuem entre seus sócios transnacionais como Monsanto, Cargill, Bayer Seeds, dentre outras.

ROLO COMPRESSOR Uma outra marca do tratamento dado pelo governo à questão dos transgênicos também se fez presente no final de 2005, a pressa e a supres-

Jean Marc von der Weid também critica o impasse que envolveu a definição da reunião de instalação, que terminou sendo realizada dia 27 de dezembro. “Ficamos sem saber se ia haver reunião ou não. Até o dia 23 não estava confirmada. Por outro lado, soubemos que, no dia 21, as secretárias do MCT estavam procurando os cientistas para convocá-los para o encontro. E deixaram para chamar os representantes do MMA e do MDA só no dia 26”, informa o diretor da AS-PTA. A expectativa é que o rolo compressor continue em março, com a primeira votação de liberação comercial de um produto transgênico.

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Antônio Augusto do Rio de Janeiro (RJ) O diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Márcio Buzanelli, anunciou o carcará como novo símbolo da instituição. Ele próprio desenhou a ave. O resultado dos esforços se encontra na página de abertura da Abin na internet. O diretor se incomodava com a identificação entre agentes da Abin e arapongas. O entusiasmo pelo novo símbolo vai ao ponto de espalhar vários ninhos de carcará nas salas da Abin. As excentricidades de Buzanelli se estendem ao terreno musical. Ele fez uma letra, sofrível, para um hino da Abin (audível na internet), em que se cantam coisas ininteligíveis: “Buscando e analisando em prol da produção de um conhecimento, a arma dos mais fortes, por isso protegê-lo também é missão”. Ao final da disparatada marcha militar, um coral de vozes masculinas se esgoela: In...te-li-gên-cia, A...bin!!! Buzanelli tem 27 anos de carreira, boa parte deles passados no SNI da ditadura. Ele se autodefine “comandante” e atribui títulos de “oficiais” e “comissários” aos funcionários da agência. Tudo cairia apenas no “perigoso terreno da galhofa”, como falava Stanislaw Ponte Preta, se a Abin não ameaçasse as liberdades democráticas, duramente conquistadas. Buzanelli quer licença para a Abin efetuar escutas telefônicas. Tenta conseguir do governo o envio desse projeto ao Congresso.

AMEAÇA ÀS LIBERDADES Dar a agência tal poder é muito mais que discutível. Iara Xavier Pereira, ex-militante da ALN, ao re-

Marcello Casal Jr./ABR

Perigosa palhaçada

Ecologistas e catadores: alternativa para lixão no Rio da Redação

Buzanelli tem 27 anos de carreira, boa parte deles passados no SNI da ditadura

ceber seu habeas data, “triado por agentes”, verificou que teve seus passos acompanhados até 1989, dez anos após a anistia. Os motivos associados à escolha do carcará não mostram crença democrática, ao contrário: “O símbolo americano é uma águia de cabeça branca. A Rússia czarista era representada por uma águia negra. O símbolo do império austro-húngaro era uma águia bicéfala. O carcará é o símbolo que queremos para nossa organização”, diz Buzanelli. A Abin prossegue na lógica de guerra fria e anticomunismo. No concurso de agente, em 2004, o edital ligava a revolução russa ao nazismo e ao fascismo, englobando

fatos históricos antagônicos no tópico regimes totalitários. A agência se mostra muito mais condescendente com a ditadura implantada em 1964. Apresenta o governo João Figueiredo na internet como “um cenário de estabilidade das instituições democráticas”. No Brasil, apenas se identificaram cinco ossadas de desaparecidos políticos. Queimam-se e não se divulgam arquivos referentes à repressão política. Famílias continuam sem receber dados sobre parentes queridos vítimas da ditadura. Diante desse quadro, convém cortar as garras de carcarás, aves que comem dejetos e se alimentam da carniça de animais.

Um Plano de Transição para a desativação de um aterro sanitário em Duque de Caxias (RJ) foi encaminhado no dia 9 ao Ministério Público. A proposta, elaborada por entidades ambientalistas e de catadores, tem como objetivo recuperar do ponto de vista sócioambiental um enorme lixão que recebe cerca de 7,2 mil toneladas de materiais da cidade do Rio de Janeiro, além de um grande volume de outras cidades da Baixada Fluminense. O plano contém sugestões com enfoque econômico e distributivo. Se implementado, pode ser uma alternativa de geração de renda e trabalho para milhares de catadores por meio da implantação de Programas de Reciclagem e de Coleta Seletiva nas cidades do Rio e Caxias e nas principais empresas privadas da região, significativas fontes geradoras de resíduos. Também é sugerida a adoção de um amplo Programa de Educação Ambiental comunitária por meio dos meios de comunicação, rede escolar e nas comunidades. Os ambientalistas e catadores cobram, ainda, a realização de uma auditoria sócio-ambiental independente, conforme prevê a Lei Estadual 1898/91 e as demais leis ambientais brasileiras e internacionais, para estimar e cobrar o Passivo Ambiental das prefeituras e de empresas privadas que, durante 30 anos, jogaram grande volume de lixo no aterro construído em área da União Federal, em cima de um dos manguezais remanescentes da Baía de Guanabara. O documento entregue ao

Anderson Barbosa

ABIN

são dos debates. A portaria do ministro Sergio Rezende foi publicada apenas 35 dias depois do decreto presidencial que regulamentou a Lei de Biossegurança. Sendo assim, a CTNBio foi instalada sem que todos os seus integrantes tivessem sido designados. A legislação prevê 27 membros titulares e 27 suplentes, mas a portaria do MCT só indica 24 titulares e 23 suplentes. Ainda falta escolher titulares e suplentes para os postos de representante da sociedade civil em agricultura familiar e em saúde do trabalhador e os representantes do Ministério das Relações Exteriores, além do suplente do Ministério da Defesa.

promotor Marcus Leal levanta suspeitas sobre irregularidades em relação ao aterro. O texto diz que, com a ausência de políticas públicas responsáveis e consolidadas para a questão, foram observados diversos vícios no processo licitatório e de licenciamento ambiental do Centro de Tratamento de Resíduos (CTR-Rio ) “vencido” pela empresa de transportes Júlio Simões. O processo visava dar destino final ao lixo carioca e centralizou-o em área densamente povoada na zona oeste do Rio (bairro de Paciência), objeto de diversos questionamentos técnicos e embargos judiciais. “Ao invés de perpetuar a cultura de enterramento de grande volume de matérias-primas e energia, as grandes cidades deveriam se empenhar na adoção de sistemas mais modernos e exemplares com enfoque ecológico, econômico e socialmente mais justos”, afirma o ecologista Sérgio Ricardo, que também assina a proposta (Jornal do Meio Ambiente, www. jornaldomeioambiente.com.br)


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DEBATE IMPOSTO TERRITORIAL RURAL

Os latifundiários agradecem, presidente João Pedro Stedile m 30 de novembro de 1964, o então regime militar promulgou, através de decreto, a primeira lei de reforma agrária do Brasil. A Lei 4.554 chamou-se Estatuto da Terra. Muitos analistas agrários da época estranharam a promulgação, pois na sua essência a lei era progressista. De fato, trazia aspectos progressistas na sua concepção, porque foi resultado da proposta de um grupo de técnicos que vinha preparando a lei desde o governo João Goulart e se inspirava nas idéias defendidas pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal): usar a ampla distribuição de terras como forma de distribuição de renda, estímulo ao mercado interno e ao desenvolvimento rural. Entre os aspectos progressistas da lei, estava a criação do mecanismo de desapropriação pelo Estado. Acabava, portanto, com o direito absoluto da propriedade da terra, em vigor até então, e estabelecia o pagamento da terra desapropriada em títulos do tesouro nacional, resgatáveis ao longo de vinte anos.

E

Para manter suas alianças eleitorais, todos os governos que passaram pelo Palácio do Planalto nunca quiseram elevar o imposto e penalizar os grandes proprietários Com o Estatuto da Terra, o governo criou o atual Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), na época chamado de Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA). Instituiu também a possibilidade de organização de cooperativas de produção pelos beneficiários da reforma agrária. Estabeleceu o cadastro de todos os imóveis rurais do país, até então inexistente, e os classificou, por lei, em minifúndios (imóvel com área inferior às necessidades para o

desenvolvimento da família camponesa); empresas rurais (imóvel com área e condições de progresso econômico); e latifúndios (imóvel que era improdutivo em relação ao seu potencial, ou tinha dimensões que por si só era nefasto para a sociedade). Entre outros elementos progressistas, a lei estabeleceu pela primeira vez a cobrança de Imposto Territorial Rural (ITR). E mais: determinava um imposto progressivo, ano a ano, se o seu proprietário não aumentasse a produção. Os recursos seriam recolhidos pela União e deveriam ir diretamente para os cofres do Incra, para ajudar a financiar os custos da reforma agrária.

Trabalhadores (PT), e fundador da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), o velho José Gomes da Silva, falecido em 1996. Ele sempre defendeu o uso rigoroso do ITR como instrumento que contribuiria para pressionar o aumento da produtividade, penalizar o mau uso da terra pelos grandes proprietários e ser uma

PROPAGANDA TUCANA

fonte importante de recursos para financiar a reforma agrária. Ele defendeu sempre, no PT, na ABRA e em todos os fóruns possíveis a agilização desse imposto. E se insurgiu sempre, com fortes argumentos, quando em diversas ocasiões, os governos federais tentaram estadualizar ou municipalizar o imposto. José Gomes defendia o contrário: era necessário mantê-lo como imposto federal, pois isso permitiria à Receita Federal casar as informações dos declarantes, com seu imposto de renda e com outros impostos. E, assim, os latifundiários não poderiam mentir ou usar a propriedade da terra inclusive como forma de se escapulir do imposto de renda. José Gomes defendia também que o governo federal deveria seguir a lei à risca, desapropriar os latifúndios e pagar apenas o valor declarado pelo próprio

Ao longo desses quarenta anos, diversos governos tentaram agilizar o imposto. Já o governo FHC tentou estadualizar. O exministro Raul Jungmann mudou os critérios do ITR anunciando que o novo imposto seria uma verdadeira revolução agrária, como instrumento de correção da concentração da propriedade agrária. Pura propaganda! Na verdade, durante todos esses anos, o ITR nunca foi usado de forma progressiva. Também nunca houve nenhum mecanismo de punição aos proprietários que não pagassem ou mentiam nas declarações. Assim, uniram-se dois fatores, todos os governos que passaram pelo Palácio do Planalto, para manter suas alianças eleitorais, nunca quiseram elevar o imposto e penalizar os grandes proprietários. E a Receita Federal fazia vistas grossas ao recolhimento desse imposto. Em todo esse período, justiça seja feita, houve apenas um caso exemplar da superintendente da Receita Federal do Ceará, durante o governo Itamar Franco (1992-94), que usou a lei e tratou de penalizar e recolher o ITR no seu Estado. Pagou caro pela ousadia. Passado o governo Itamar, amargou até hoje o ostracismo na Receita Federal. Entre os idealizadores do Estatuto da Terra, está um dos maiores especialistas de reforma agrária do país, membro da Secretaria Agrária do Partido dos

fazendeiro ao pagar o ITR. A Receita Federal atualiza o índice sobre os hectares de terra por região, mas o proprietário é que diz quanto vale cada hectare. Desse modo, como para efeito de imposto de renda, as pessoas declaram quanto vale sua casa, seu terreno, seu apartamento. As idéias de José Gomes caíram no

vazio e nenhum dos governos as utilizou. Morreu sonhando que, um dia, Lula chegasse ao poder, e então poderia aplicar o que sempre defendeu nos programas do PT. Como resultado dessa política de todos os governos, o governo recolheu de ITR apenas R$ 280 milhões durante 2004. Isso equivale ao Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana (IPTU) de apenas um bairro da cidade de São Paulo. Pelas regras atuais do ITR, as pequenas propriedades estão isentas do pagamento. Então, se somarmos os imóveis classificados como média e grande propriedade, teremos ao redor de 270 mil proprietários (342 mil imóveis acima de 200 ha – segundo o Incra – e 272 mil estabelecimentos rurais acima de 200 ha, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Esses médios e grandes proprietários controlam 298 milhões de hectares. Estima-se, então, que o atual ITR cobra menos de um real por hectare por ano. E cada fazendeiro paga,

em média, mil reais, por ano, por propriedade, o que é uma ninharia e não representa nenhuma pressão, penalização e, muito menos, mecanismo fiscal corretivo da concentração da propriedade da terra. AO GOSTO DOS LATIFUNDIÁRIOS

A situação é essa. O que fez o atual governo diante desse quadro? Poderia seguir a lei e as idéias de José Gomes da Silva: aumentar o preço do ITR por hectare; aumentá-lo progressivamente, ano a ano; pagar as desapropriações apenas pelo valor declarado pelo latifundiário; e destinar esses recursos para a reforma agrária (uma vez que, nos últimos anos, era destinado ao caixa comum do Tesouro.). O governo Lula esqueceu-se dos conselhos do velho Zé Gomes. E fez o que nenhum outro governo teve coragem: municipalizou a cobrança e o destino do ITR. Foi enviado um Projeto de Lei ao Congresso, que foi aprovado em última instância pelo Senado e de forma quase unânime (estranho?) no dia 15 de dezembro passado. E, no último dia do ano de 2005, para já entrar em vigor no ano fiscal de 2006, o presidente Lula promulgou a nova lei do ITR, que deixa de ser um imposto para a reforma agrária. Agora passa a ser um imposto a ser cobrado, fiscalizado e recolhido pelas Prefeituras Municipais, que poderão usar o dinheiro a seu bel-prazer e como quiserem. O ITR foi morto e sepultado. A Receita Federal vai perder o controle do cadastro e da oportunidade de casar com as declarações do imposto de renda. Os latifundiários estão eufóricos, já pagavam pouco e, agora, basta enrolar seu amigo prefeito e pagarão menos ainda. O Incra perde a receita que lhe vinha sendo negada, mas estava na lei, e perde o poder de desapropriar pelo valor declarado. Perde a reforma agrária. Faz falta o velho Zé Gomes para explicar melhor a gravidade dessa mudança ao seu amigo Luiz Inácio Lula da Silva. João Pedro Stedile é dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem terra (MST) e da Via Campesina - Brasil

ALFABETIZAÇÃO

O bê-á-bá de uma nova cartilha Marcelo Barros e Thania Coimbra ONU estabeleceu o 8 de janeiro como “Dia Mundial da Alfabetização”, o que imediatamente faz recordar as chamadas “metas do milênio”, ou como disse alguém: “Os oito jeitos de mudar o mundo”, proclamados pela assembléia de chefes de Estado no ano 2000 como prioridade para este começo de milênio. A segunda das oito metas do milênio é exatamente “atingir o ensino básico universal”, para superar, em todo o mundo, o drama do analfabetismo. Os dados oficiais de nossos governos dizem que, no mundo inteiro, tem aumentado o número de alfabetizados. No Brasil, o governo garante que toda criança está tendo acesso ao ensino básico. Já com relação à alfabetização de adultos, calcula-se que chegue a 16% o número dos brasileiros ainda analfabetos. O economista mineiro Eduardo Gianetti, ao discutir o conceito de liberdade, distingue a negativa e a positiva. Negativa, segundo ele, seria a mera ausência de restrição e positiva, a liberdade

A

que de fato assegura liberdade de escolha. Diz ele: “A nossa deficiência de ensino fundamental tolhe terrivelmente a liberdade positiva, porque as pessoas não estão capacitadas para fazer escolhas, e muitas vezes nem se dão conta do que estão escolhendo. Têm uma enorme dificuldade, por exemplo, de antecipar conseqüências. Se eu fizer certas coisas agora, algumas conseqüências virão mais à frente. É só a sociedade se organizar minimamente para garantir que todo cidadão que nela existe tenha acesso a oportunidades educacionais que permitam exercer escolhas com um mínimo de competência, de capacitação.” Num exemplo próximo, o da Venezuela, o governo engajou universitários e profissionais em uma campanha massiva de alfabetização de adultos que, além de ter propiciado um fecundo contato entre juventude urbana e o mundo cultural dos lavradores, deu excelentes resultados de inclusão social. Aliás, o objetivo fundamental da alfabetização é a inclusão social. Paulo Freire já nos dizia que analfabeto não é tanto quem não sabe ler e sim quem não pode se pronunciar na sociedade,

portanto quem é excluído da comunicação e da cidadania. A banalização da violência, a ausência de sentido, e o distanciamento da sacralidade da vida, fartamente ilustrados pelos noticiários, mostram a urgência de uma educação, que desde a alfabetização até o ensino universitário, ajude as pessoas a redescobrirem o sentido mais profundo da vida. Se os programas de alfabetização se contentarem em ensinar a juntar letras, vão continuar apenas melhorando a qualificação mínima de operadores de máquinas. Não alcançarão o mais profundo das pessoas. Infelizmente, continuaremos a ler, com perplexidade, que no Rio de Janeiro, uma adolescente de 16 anos, colaborou com bandidos para incendiar um ônibus lotado, impedindo que os passageiros pudessem escapar vivos do coletivo transformado em fogueira. E sequer entenderemos o que isso tem a ver com alfabetização. Educar não deveria se restringir a ensinar letras ou conteúdos. O conhecimento desligado da vida concreta e do permanente desafio de, cotidianamente, refazer nossas opções de humanidade, valores e vínculos com os outros seres huma-

nos é estéril. Letra morta e amontoada na cabeça. Só pode ensinar quem é capaz de ler o mundo. E ler é um exercício diário de coragem e criatividade. É ser capaz do convívio atento e interessado com os demais, É discernir valores e critérios, capazes de ajudar a humanidade a superar a crise que assola a sociedade atual. É no compromisso consigo, com os outros e com o mundo que cada um se alfabetiza na vida. A alfabetização é uma inserção na sociedade. Por isso, desde o início, a verdadeira educação é sempre um processo político. No tempo da escravidão, o maior medo dos senhores de escravos era que estes aprendessem a ler e a escrever... Em todas as sociedades, a Escola é sempre um instrumento de legitimação do sistema vigente. Isso não significa que a escola não possa ser importante instrumento de crescimento para a pessoa formar sua consciência crítica. Para isso, ela é chamada a ir além dos seus muros e a estabelecer uma relação de parceria com a rua e toda a sociedade. A educação deve ser mais do que a mera escolarização. Paulo Freire propunha que o pro-

cesso educativo rompesse com o modelo bancário, de depósito mecânico de dados e aderisse a uma pedagogia libertadora. Nesta, a pessoa que se alfabetiza se engaja em um processo ativo e permanente de cidadania. A educação é sempre transformadora porque rompe com a marginalização e torna a pessoa verdadeiramente cidadã do mundo, capaz de tomar posição diante dos desafios sociais e políticos que vivemos. É importante aprender a ler nas frases de descoberta das letras (A ave voa, o gato mia, o menino anda) o substrato político. É como se cada estrutura social tivesse o seu bê-á-bá e nem sempre a pessoa exerce o direito de optar por qual cartilha quer aprender a ler. Marcelo Barros é monge beneditino. É autor de 27 livros, entre os quais está no prelo A Vida se torna Aliança, (Como orar ecumenicamente os Salmos), Ed. CEBI-Rede da Paz, 2005. Thania Coimbra é jornalista especializada em antropologia. Atuou em produção de rádio e TV e assessoria de comunicação. É coautora do livro Da Magia da Tela ao Encontro do Outro


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA assim como os diversos setores envolvidos no tema; criar espaço para a troca das experiências acumuladas; dimensionar as conquistas alcançadas e os desafios existentes; propor encaminhamentos para o fortalecimento e multiplicação dessas iniciativas e discutir tecnologia/ metodologia de governança pública em rede. O seminário é promovido pela Prefeitura Municipal de Curitiba, com apoio da Área de Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde. Local: Av. João Gualberto, 623, 2º andar, Torre B, Curitiba Mais informações: www.curitiba.pr.gov.br/saude/sms/ seminario/seminario_violencia.htm

Luciney Matins/ BL 45Imagem

NACIONAL

RIO DE JANEIRO

PRÊMIO CULTURA VIVA Até dia 20, estão abertas as inscrições para o Prêmio Cultura Viva. Promovido pelo Ministério da Cultura, com patrocínio da Petrobras e coordenação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), de São Paulo, o concurso pretende estimular e dar destaque a iniciativas culturais. As experiências já devem ter sido iniciadas até 31 de dezembro de 2004, com caráter de continuidade e que envolvam a participação da comunidade. Podem concorrer iniciativas de organizações e grupos de pessoas que tenham histórico de atuação em ações culturais. Elas devem contribuir para: garantia do acesso dos cidadãos aos meios de formação, criação, difusão e fruição cultural; participação ativa dos cidadãos na vida cultural da comunidade e do município; valorização do patrimônio cultural material e imaterial; consolidação de uma política cultural democrática, voltada para a ampliação dos direitos dos indivíduos e para o exercício pleno da cidadania; ampliação da visibilidade da cultura local; ou fortalecimento do sentido de pertencimento e identidade. O projeto conta também com o apoio da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), que faz parte do Conselho Propositivo do Prêmio. Mais informações: www.premioculturaviva.org.br, premioculturaviva@cenpec.org.br

CEARÁ CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2006 28, das 8h às 16h Iniciativa que vem se realizando há mais de quarenta anos, a Igreja Católica lança na Quarta-Feira de Cinzas a Campanha da Fraternidade. A desse ano tem como tema: “A fraternidade e as pessoas com deficiência”. Para ajudar os agentes pastorais e seus fiéis a se prepararem para a ação que se realiza durante quarenta dias, a Arquidiocese de Fortaleza realizará um encontro de animação com os articuladores da CF nas Regiões Episcopais e nas paróquias. A reunião terá participação de integrantes de entidades e instituições que trabalhem com

o tema. Local: Seminário da Prainha, Rua Joaquim Nabuco, 1463, Fortaleza Mais informações: (85) 3231-5882, contato@arquidiocesedefortaleza. org.br

DISTRITO FEDERAL CURSO FORMAÇÃO DE CONSELHEIROS EM DIREITOS HUMANOS De abril a maio Promovido pela Ágere Cooperação em Advocacy, em parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), o curso tem como objetivo capacitar gratuitamente à distância, via internet, quatro mil conselheiros e secretários

executivos preferencialmente nas áreas de direitos do idoso, mulher, portador de deficiência, igualdade racial, combate à discriminação, direitos da criança e do adolescente e direitos humanos. Inscrições até 12 de março. Mais informações: (61) 3248-4742 www.agere.org.br

PARANÁ SEMINÁRIO NACIONAL DE EXPERIÊNCIAS NA ATENÇÃO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEXUAL 24 a 26 de maio O evento tem como objetivos reunir representantes das diversas experiências na atenção e prevenção à violência doméstica e sexual,

SITE NITERÓI COMUNIDADES Lançado em dezembro de 2005, o site www.niteroicomunidades .org.br é desenvolvido por adolescentes do Morro do Preventório, da Grota do Surucucu e da Colônia de Pesca de Jurujuba, dentro do projeto Olho Vivo, da Bem TV - Educação e Comunicação. A princípio, o conteúdo será formado por três jornais mensais, também produzidos por adolescentes nas mesmas comunidades. O objetivo é disseminar informações sobre populações que dificilmente têm acesso à mídia, além de criar um espaço para que a juventude de baixa renda da cidade fluminense se aproprie de tecnologias de comunicação e informação para contar suas próprias histórias.

SÃO PAULO RODA DE VIOLA CAIPIRA 27 Para dar continuidade ao trabalho cultural que vem sendo desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região sudoeste do Estado, os moradores do assentamento Pirituba, em Itapeva, estão promovendo um encontro de viola caipira com o apoio das Secretarias de Cultura de Bom Sucesso, Itapeva e Itaberá. Local: Agrovila III, Copava, Itapeva Mais informações: (15) 3572-8055

CURSO: MELHORES PRÁTICAS DE GESTÃO PARA ORGANIZAÇÕES DO TERCEIRO SETOR 14 a 28 (sábados), 16 a 20 (noturno) , 23 a 27 (noturno) Promovido pela Assessoria e Desenvolvimento para Excelência do Terceiro Setor (ADETS), o curso tem como objetivo oferecer conhecimentos, informações e ferramentas de gestão, que permitam capacitar para o desenvolvimento de uma visão integrada do processo de gerenciamento das atividades em organizações não-governamentais sem fins lucrativos. Local: Colégio Maria Imaculada, Paraíso, São Paulo Mais informações: (11) 5539-0066 www.adets.com.br/ melhorespraticas.html 1º CONGRESSO INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA SOCIAL 8 a 11 de março O congresso pretende realizar um amplo balanço sobre o desenvolvimento da pedagogia social no Brasil e na Europa, analisar os recursos disponíveis para a formação de técnicos e profissionais que atuam nas áreas sociais no país, bem como identificar pesquisas de ponta, centros de formação e experiências em andamento. A iniciativa é da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, do Centro de Cultura e Extensão da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade de Serviço Social do Centro Universitário. Local: Auditório da Faculdade de Educação Universidade de São Paulo, Bloco B da Faculdade, Av. da Universidade, 308 - Cidade Universitária, São Paulo Mais informações: www.usp.br/pedagogiasocial INSTITUTO HENFIL Inscrições abertas O cursinho comunitário do Instituto Henfil, que agora tem mais uma unidade em São Paulo, está com inscrições abertas. Serão 900 vagas, divididas em três turmas. A inscrição custa R$ 30, e as mensalidades, a partir de R$ 60. Mais informações: (11) 3062-8609 www.institutohenfil.org


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CULTURA

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MEMÓRIA REBELDE

John Lennon: “Todo o poder ao povo” E

m 8 de dezembro de 1980, John Lennon, considerado o líder intelectual dos Beatles e o mais influente músico pop da história do rock, era morto por um fã em frente ao edifício Dakota, em Nova York (EUA), onde residia com Yoko Ono e o filho Sean. Duvidamos que muitos leitores leram esta entrevista que Lennon concedeu a Tariq Ali e Robin Blackburn, em 1971. Nos trechos que seguem, Lennon conta como ele e George Harrison se rebelaram contra seus protetores e se pronunciaram contra a Guerra do Vietnã, discute a política classista de modo estimulante, defende a música country and western e o blues, sugere que as melhores canções de Dylan se originam em baladas revolucionárias irlandesas e escocesas. A entrevista, que inspirou Lennon a escrever Power to the people (Todo o poder ao povo), foi divulgada no The Red Mole, jornal publicado pelo Grupo Marxista Internacional, e está sendo publicada na íntegra no livro Streetfighting Years, de Tariq Ali, recentemente publicado pela Editora Verso. Tariq Ali – Seu último disco e suas recentes declarações, especialmente as entrevistas na Rolling Stone, sugerem que seus pontos de vista estão se radicalizando cada vez mais e se tornando mais políticos. Em que momento você diria que isso começou a acontecer? John Lennon – Sempre tive consciência política, sabe, e sempre fui contra o status quo. É bastante básico, quando se aprende desde pequeno, como eu, a odiar e a temer a polícia como seu inimigo natural e a desprezar o Exército. Nunca deixei de ser uma pessoa política, ainda que a religião tendia a eclipsar isso nos meus dias de ácido, lá por 1965 ou 1966. Mas de certo modo, sempre fui político. Nos livros que escrevi, há muitas críticas à religião e há um drama sobre um trabalhador e um capitalista. Tenho satirizado o sistema desde minha infância. Costumava escrever revistas na escola e as distribuía. Tinha muita consciência de classe. Costumavam dizer que eu era um ressentido, porque sabia o que me havia sucedido e sabia da repressão de classe que nos afetava – era um feito maldito, mas que no furacão do mundo dos Beatles, ficou de fora, cada vez me distanciava mais da realidade, durante um certo tempo. TA – Qual foi o motivo para o êxito de seu tipo de música? Lennon – Bom, nessa época se pensava que os trabalhadores haviam se imposto, mas me dou conta em retrospectiva de que é o mesmo trato enganoso como o que deram aos negros: permitiram somente que os negros fossem corredores, boxeadores ou artistas. É a alternativa que te permitem – agora a saída é ser estrela pop, que é na realidade o que digo no álbum Working hero class. Como disse na Rolling Stone, os que têm o poder são os mesmos, o sistema de classes não mudou nem um pouco. Desde então, há muita gente que anda por aí com cabelo comprido e algumas crianças, à moda da classe média, andam em roupas bonitas. Mas nada mudou, com a exceção de que todos nos vestimos um pouco melhor e deixamos que os mesmos filhos-daputa dirijam tudo. Robin Blackburn – É verdade, a classe é algo que os grupos de rock estadunidenses não tocaram ainda.

John Lennon, o lider intelectual dos Beatles, expõe seus pontos de vista políticos, até então desconhecidos

Lennon – Porque todos são de classe média e burgueses, e não querem mostrá-lo. Têm medo dos trabalhadores, na verdade, porque os trabalhadores parecem fundamentalmente de direita nos EUA, aferrados a seus bens. Mas se esses grupos de classe média se dão conta do que acontece, e o que tem feito o sistema de classes; é suficiente para que eles repatriem as pessoas, e saiam de toda essa merda burguesa. TA – Quando você começou a se libertar do papel que lhe foi imposto como Beatle? Lennon – Mesmo durante o apogeu dos Beatles, tratei de me opor, assim como George (Harrison). Fomos umas poucas vezes aos Estados Unidos e Brian (Epstein, produtor dos Beatles) sempre tratou de nos encher de palavras vazias sobre o Vietnã. Um dia chegou o momento em que George e eu dissemos: “Escuta, quando perguntarem da próxima vez, vamos dizer que não gostamos dessa guerra”. Mas é bom lembrar que sempre me senti reprimido. É muito difícil quando você é César e todos dizem o quão maravilhoso você é. É muito dificil escapar disso, dizer: “Bom, não quero ser rei, quero ser real”. Por isso o segundo ato político que fiz foi dizer “Os Beatles são maiores que Jesus Cristo”. Isso realmente fez estourar a cena. Quase me fuzilaram nos EUA. Foi um trauma imenso para todas as crianças que nos seguiam. Até então se manteve essa política tácita de não responder a perguntas delicadas, ainda que eu sempre lia os jornais, as seções de política. Estourei porque já não podia seguir jogando o jogo, simplesmente já era demais. Desde então, os EUA aumentaram a pressão, especialmente porque a guerra acontecia ali. De certo modo éramos um cavalo de Tróia. TA – De certo modo, pensava em política, inclusive quando parecia estar falando mal da revolução? Lennon – Certamente, houve duas versões da canção Revolution, mas a esquerda do underground só escolheu a que dizia “não contem comigo”. A versão original que apareceu no long-play dizia também “contem comigo”. Teve ainda uma terceira versão que foi só abstrata, música concreta, uma espécie de confusão e coisas assim, gente gritando. Pensei que estava pintando com sons um quadro da revolução; mas cometi um erro. O erro é que foi contra-revolucionário. Na versão publicada como single dizia “quando falar de destruição não conte comigo”. Não queria que me matassem. Realmente não sabia muito dos maoístas, só sabia que pareciam ser tão poucos e que, apesar disso, se pintavam de verde e paravam em frente à polícia esperando que os detivessem. Só pensei que era pouco su-

til. Pensei que os revolucionários comunistas originais se coordenavam um pouco melhor e que não andavam gritando a respeito. É o que sentia – realmente formulava uma pergunta. Sendo da classe trabalhadora, sempre me interessaram Rússia e China e tudo o que se relacionava com a classe trabalhadora, ainda que estivesse metido no jogo capitalista. Em um momento estive tão metido em uma merda religiosa que andava por aí me chamando de comunista cristão mas, como disse Janov (o psicólogo Arthur Janov), a religião é a loucura legalizada. A terapia afastou tudo isso e me fez sentir minha própria dor. TA – Que relação tem tudo isso com sua música? Lennon – A arte é apenas uma maneira de expressar a dor. Quero dizer que o motivo pelo qual Yoko faz coisas tão extravagantes, é porque passou por uma dor extravagante. RB – Muitas das canções dos Beatles costumavam ser sobre a infância... Lennon – Sim, era sobre todo o eu... RB – Apesar de muito boas, sempre faltava um elemento... Lennon – Haverá sido a realidade. Porque na verdade nunca me amaram. Porque nunca me amaram realmente. O único motivo porque sou uma estrela é pela minha repressão. Nada me teria impulsionado a tudo isso se tivesse sido “normal”... TA – Você teve um sucesso que vai muito além dos sonhos mais fantásticos da maioria das pessoas... Lennon – Ó, Jesus Cristo, foi uma opressão total. Quero dizer que tive que passar de uma humilhação atrás da outra de parte das classes médias e do negócio do espetáculo, e dos prefeitos e tudo isso. Todos tratavam se aproveitar da gente. No começo, tivemos uma espécie de objetivo: sermos iguais a grandes como Elvis Preslei – avançar foi algo tremendo, mas a conquista foi a grande decepção. Descobri que tinha que agradar permanentemente o tipo de gente que sempre havia odiado quando era pequeno. Isso começou a devolver-me a realidade. Comecei a compreender que todos somos oprimidos, e que queria fazer algo a respeito, ainda que não tenho certeza de qual é meu lugar. RB – Em todo caso, a política e a cultura estão vinculadas, não é? Quero dizer, os trabalhadores são reprimidos pela cultura, não por fuzis, na atualidade… Lennon – Estão dopados... RB – E a cultura é que os está dopando, o artista pode fazer isso ou romper com isso... Lennon – É o que estou tratando

de fazer com meus álbuns e nestas entrevistas. O que estou tratando de fazer é influenciar a todos que posso, a todos que seguem sonhando, e sozinho provocar um grande sinal de interrogação em suas mentes. Já passou o sonho ácido, é o que trato de lhes dizer. RB – Só temos umas poucas canções revolucionárias e foram compostas no século 19. Você encontra algo em nossas tradições musicais que poderia ser utilizado para canções revolucionárias? Lennon – Quando comecei, o próprio rock and roll foi a revolução para as pessoas da minha idade e situação. Precisávamos de algo forte e claro para irromper através de toda a falta de sentimento e a repressão que haviam caído sobre nós quando éramos pequenos. No começo, nos sentíamos um pouco conscientes de sermos estadunidenses por imitação. Mas nos lançamos à música e vimos que era metade country branco e western e metade rhythm and blues negro. A maior parte das canções vinha da Europa e da África e agora volta para nós. Muitas das melhores músicas de Dylan vieram da Escócia, Irlanda ou Inglaterra. Foi uma espécie de intercâmbio cultural. Ainda que devo dizer que para mim as canções mais interessantes foram as negras, porque eram mais simples. Elas te sacodem a bunda e o pênis, o que realmente foi uma inovação. E depois existiam as músicas do campo que expressavam toda a dor que sofriam. Não podiam expressar-se intelectualmente, então tinham que dizer em umas poucas palavras o que estava lhes acontecendo. E depois vieram os blues da cidade, e grande parte deles tratava de sexo e brigas. Muito disso foi auto-expressão, mas somente nos últimos anos se expressaram completamente com o black power, como Edwin Starr quando faz discos sobre a guerra. RB – Você nada contra a corrente da sociedade burguesa, o que é muito mais difícil. Lennon – Sim, possuem todos os jornais e controlam toda a distribuição e promoção. Quando chegamos, apenas a Decca, Philips e a EMI podiam realmente te produzir um disco. Tinha que passar por toda a burocracia para chegar ao estúdio de gravação. Você estava em uma posição tão humilde, não tinha mais de 12 horas para fazer todo um álbum, que foi o que fizemos nos primeiros tempos. Agora é a mesma coisa; se você é um artista desconhecido, tem sorte se consegue uma hora em um estúdio – é uma hierarquia e, se você não tem sucesso, não te gravam de novo e controlam a distribuição. A EMI liquidou nosso álbum Two Virgins porque não gostaram dele. No último disco censuraram as letras das canções impressas na capa. Uma porcaria ridícula e hipócrita.

RB – Mesmo que agora você chegue a menos gente, talvez o efeito possa ser mais concentrado. Lennon – Sim, acho que isso pode ser verdade. No começo, as pessoas da classe trabalhadora reagiram contra nossa franqueza sobre o sexo. Tinham medo da nudez. Talvez pensaram: “Paul (McCartney) é um homem bom, não provoca confusões”. Também quando Yoko e eu nos casamos, recebemos terríveis cartas racistas, advertindo que iam me degolar. Eram, sobretudo, de gente do Exército. Agora, os trabalhadores se mostram mais amistosos com a gente, talvez as coisas estejam mudando. Me parece que os estudantes estão agora suficientemente acordados para despertar seus irmãos trabalhadores. Se você não transmite sua própria consciência, esta volta a se fechar. Daí a necessidade básica de que os estudantes se misturem com os trabalhadores e os convençam de que não estão falando bobagens. E é difícil saber o que pensam realmente os trabalhadores porque em todo caso a imprensa capitalista sempre se limita a citar porta-vozes. Por isso, a única possibilidade é falar a eles diretamente, sobretudo aos trabalhadores jovens. Não se pode tomar o poder sem uma luta... TA – Esse é o aspecto crucial. Lennon – Mesmo depois da revolução você tem o problema de conseguir fazer com que as coisas sigam adiante, de contemplar todos os diferentes pontos de vista. Creio que não seria tão difícil que a juventude se ponha realmente em movimento. E as mulheres também são muito importantes, não podemos ter uma revolução que não inclua e libere as mulheres. Por isso, sempre me interessa saber como tratam as mulheres as pessoas que afirmam ser radicais. Tariq Ali é escritor paquistanês, autor de Confronto de Fundamentalismos e de Bush na Babilônia: a Recolonização do Iraque. Robin Blackburn é colaborador da revista estadunidense CounterPunch, ex-editor do The New Left Review

Divulgação

Tariq Ali e Robin Blackburn de Londres (Inglaterra)

Will McFall 2004

Vinte e cinco anos após a sua morte, resgatamos uma entrevista em que o Beatles defende os ideais revolucionários

Quem é Nascido no dia 9 de outubro de 1940, em Liverpool (Inglaterra), John Lennon foi morar com os tios Mary e George Smith aos cinco anos. Foi na adolescência que formou seu primeiro grupo – Quarry Men. Em 1957, conheceu Paul McCartney, George Harrison e, por último, Richard Starkey, mais conhecido como Ringo Starr. No ano seguinte, Lennon conseguiu ingressar na Faculdade de Arte de Liverpool, onde conheceu sua primeira esposa, Cynthia Powell. Enquanto isso, o Quarry Men estava mudando para The Silver Beetles e, depois, para The Beatles, o grupo cuja popularidade John Lennon comparou com a de Jesus Cristo.


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