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Ano 4 • Número 152

R$ 2,00 São Paulo • De 26 de janeiro a 1º de fevereiro de 2006 Cláudio Silva/Agência Brasil de Fato

MIlhares de ativistas e manifestantes participam da marcha de abertura do 6º Fórum Social Mundial na capital venezuelana, e reafirmam a luta contra o imperialismo e o neoliberalismo

Fórum Social Mundial reflete avanço da esquerda na América Latina Chegada ao poder de governos progressistas estimula a politização do FSM e a integração dos movimentos sociais

M

PSDB insiste em entregar a saúde ao setor privado

sistas na região levará para o encontro a discussão da relação entre movimentos sociais e política institucional. “Esse Fórum é mais político do que o de Porto Alegre” avalia Lander, destacando o fato de o FSM se realizar na

Venezuela. Para os venezuelanos, o contato com milhares de ativistas que se opõem à agenda imperialista impulsiona o processo vivido no país. MALI – O 6º FSM não se limitou a Caracas. Pela primeira

Leonardo Melgarejo

ilhares de pessoas tomaram as ruas de Caracas, dia 24 de janeiro, na marcha que abriu o mais politizado dos Fóruns. Para o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, o aumento de governos progres-

Emperra a CPI que investiga as privatizações Tudo indica que a oportunidade surgida com a CPI criada pela Câmara dos Deputados para investigar as privatizações ocorridas no Brasil durante os governos Collor (1990-1992), Itamar (1992-1994) e Fernando Henrique (1995-2002) será desperdiçada, e com ela, a chance de rediscutir o desmonte do setor público. A CPI parece não estar sendo estimulada nem pelo próprio governo, com medo de que a crise ganhe fôlego justamente agora que ela começa passar. Págs. 2 e 7

Sepé Tiaraju – Milhares de pessoas vão se reunir, em São Gabriel (RS), entre os dias 4 a 7 de fevereiro, para lembrar a luta do povo guarani e resgatar a mística do líder indígena, morto em 1756. Pág. 3

E mais: ENTREVISTA – Altemir Tortorelli, da Fetraf-RS, critica o legalismo da Contag e diz que não haverá mudanças sem enfrentamentos na rua. Pág. 13 ARTE NA BAIXADA – A população de Vila Gilda, comunidade que vive nos mangues de Santos (SP), participa de iniciativa a partir da qual crianças e adolescentes são estimulados a se desenvolver por meio de oficinas culturais. Pág. 16

Santiago

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esteja sob domínio de um grupo muito pequeno. Enfrentamos um sistema colonial que priva as nações pobres do direito de escolher nosso modo de vida”, afirmou o economista Samir Amin. Págs. 9, 10 e 11

Com Evo, Bolívia quer mudar

Falta de vagas, atendimento precário. Os hospitais e ambulatórios administrados por organizações sociais, na cidade de São Paulo, têm os mesmos problemas de toda a rede pública. Comprova-se, de novo, a ineficácia da privatização dos serviços de saúde, advogada pela administração do PSDB na cidade e no Estado de São Paulo. Proliferam críticas à gestão tucana por fugir de suas responsabilidades e defender um Estado mínimo. Pág. 4

Extrativistas são expulsos da Amazônia

vez, o evento foi organizado de forma policêntrica. Na africana Bamako, capital de Mali, o encontro terminou dia 23 e reafirmou a autonomia dos países subdesenvolvidos. “É injusto que 75% da população mundial

“Hoje é um dia de festa , porque ontem foi o último dia de medo na Bolívia”. Assim o escritor uruguaio Eduardo Galeano saudou a posse de Evo Morales Ayma como presidente da Bolívia, diante de 100 mil pessoas, dia 22 de janeiro, em La Paz. Ele é o primeiro presidente aymará

em 180 anos de vida republicana no mais indígena dos países sul-americanos, e sua vitória foi vista como um claro clamor por mudanças. A eleição de Evo foi bem recebida em todo o mundo, com a provável exceção dos Estados Unidos. Pág. 12

A ingerência do Banco Mundial na educação

Embraer: EUA vetam vendas para a Venzuela

Dossiê elaborado pela ONG Ação Educativa denuncia a influência negativa que projetos financiados pela instituição em educação tem sobre as políticas de Estado no Brasil e na América Latina. A estratégia é simples: tratar o bem público como um serviço privado a ser adquirido. Pág. 5

Os EUA não deixam por um minuto sequer de mostrar sua face imperialista. Desta vez, proibiu a brasileira Embraer de vender aviões para a Venezuela. Luiz Alberto Moniz Bandeira, professor titular da UnB, diz que o veto é para impedir o fortalecimento do governo Hugo Chávez. Pág. 3

A integração da América do Sul em marcha Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Hugo Chávez (Venezuela) e Néstor Kirchner (Argentina) se reuniram em Brasília, no dia 19 de janeiro, para debater o aprofundamento na integração sul-americana. Na ocasião, uma agenda de propostas de acordos nas áreas econômica, social e política foi discutida, abrangendo desde assuntos energéticos até o setor de comunicação televisiva. Na declaração final do encontro, os presidentes saudaram a eleição de Evo Morales na Bolívia. Pág. 8


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De 26 de janeiro a 1º de fevereiro de 2006

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Cavalcanti Proença • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro - RJ

NOSSA OPINIÃO

Queremos de volta a Vale do Rio Doce

A

decisão da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal de Brasília de rever a privatização da Companhia Vale do Rio Doce reabre a possibilidade de repararmos um dos maiores crimes cometidos contra a Nação. Como esclarece a decisão judicial “Há que ter presente que as ações populares têm por objetivo, dentre outros, a recomposição do patrimônio lesado. Nesse sentido, as alegações relativas aos critérios de avaliação do patrimônio da Vale ganham relevo, pois, se corretas, eventual subavaliação terá levado a um gigantesco prejuízo ao patrimônio público, dada a enormidade do patrimônio da empresa”. Com um patrimônio incalculável, a Companhia Vale do Rio Doce foi leiloada em 6 de maio de 1997, por R$ 3,3 bilhões, praticamente o equivalente ao lucro líquido da empresa somente no segundo trimestre de 2005 que foi de R$ 3,5 bilhões. Como denunciou a última edição do Brasil de Fato, o lucro total da Vale do Rio Doce apenas no ano passado deve superar os R$ 10 bilhões. E mais, o diretor financeiro da empresa privatizada teve a desfaçatez de comemorar na imprensa o fato de a Vale do Rio Doce se tornar a maior empresa da América Latina, confessando cinicamente que à época da privatização seu patrimônio já valia R$ 92,64 bilhões, isto é, 28 vezes o valor pela qual foi vendida. Estamos diante de uma escandalosa confissão da maior fraude de nossa história. Que outro empreendimento pode ser amortizado em tão pouco tempo? Quanto essa negociata terá engordado o “caixa 2” dos políticos que a possibilitaram? O mais chocante é confirmar o fato

de que, quem fez a avaliação do patrimônio da empresa foi o Banco de Investimentos Merrill Lynch, um dos principais grupos financeiros monopolistas dos Estados Unidos. Ora a Merrill Lynch adquirira, em 1995, a empresa Smith New Court, principal controladora de outra corretora, a SBH (Smith Borkum Hare). Por sua vez, a SBH era corretora da Anglo American, uma das empresas participantes do leilão da Vale. Somente este fato, já justificaria a anulação da privatização. Alguns dados fornecidos pela própria empresa durante o processo judicial acabaram revelando uma parte da farsa que foi o procedimento de avaliação do patrimônio. Por exemplo, em 8 de maio de 1995, a Vale informara à SEC (Securities and Exchange Comission), entidade que fiscaliza o mercado acionário nos EUA, que suas reservas lavráveis de minério de ferro em municípios de Minas Gerais eram de 7,918 bilhões de toneladas. No edital de privatização, foi mencionado só 1,4 bilhão de toneladas. Uma diferença de 6,518 bilhões de toneladas. Outro exemplo: no caso das minas de ferro da Serra de Carajás, a Vale do Rio Doce informou à entidade estadunidense que suas reservas totalizavam 4.970 bilhões de toneladas. Porém, o edital de privatização mencionou um número menor: 1,8 bilhão de toneladas. Uma subestimação de 3,170 bilhões de toneladas. Estes são apenas alguns exemplos confessados pela empresa no curso da ação judicial. Uma perícia técnica poderá apurar fraudes ainda maiores.

Não é exagero reafirmar que se trata de um dos maiores crimes cometidos contra a Nação e o povo brasileiro. Um crime até agora impune. A notícia da decisão judicial aparece quase ao mesmo tempo em que é aprovada a “CPI das Privatizações”, uma oportunidade privilegiada para investigar essas privatizações criminosas. Lamentavelmente, nem bem surgiu a “CPI da Privataria”, PFL e PSDB já articulam um esvaziamento da Comissão temendo o ressurgimento dos escândalos. E mais: contam com a complacência dos partidos do governo, que preferem utilizá-la como moeda de troca na grande “pizza” que estão preparando. Os movimentos sociais devem aproveitar essa oportunidade. É fundamental retomar a bandeira da investigação de todo o processo de desestatização conduzido durante os governos de Fernando Henrique Cardoso. A retomada da Companhia Vale do Rio Doce exerce um importante papel simbólico na luta pela construção de um Projeto Popular. Sem mobilização, sem que o tema esteja presente nos debates e assembléias populares, nada será feito pelos donos do poder. Como aprovou a “Assembléia Popular – Mutirão Por um Novo Brasil” com mais de oito mil lutadores populares, queremos “um país que dê aos bens estratégicos e sociais de destinação universal um caráter público e sem fins lucrativos, com sistema eficaz de controle de saída de matérias-primas”. Queremos de volta a Companhia Vale do Rio Doce.

FALA ZÉ

OHI

CARTA AOS LEITORES Caros companheiros e companheiras do Brasil de Fato, Após três anos de circulação, nosso jornal anuncia mais um passo em nossa caminhada por uma mídia comprometida com os interesses populares. Lançaremos, no dia 25 de março – data em que comemoraremos nosso terceiro aniversário –, a Agência Brasil de Fato (www.brasildefato.com.br). Trata-se de uma agência de notícias com produção diária de conteúdo que dará um impulso à consolidação do projeto Brasil de Fato. Além do conteúdo digital, nossa página na internet colocará à disposição das Rádios Comunitárias um conteúdo exclusivo para ser baixado e retransmitido, a partir das notícias do jornal. Para contemplar esses avanços, a página do jornal está sendo reformulada. Nosso projeto prevê três etapas. Na primeira – que passa a valer desde o início do Fórum Social Mundial em Caracas –, estará acessível apenas a Agência Brasil de Fato e o jornal impresso. Em um momento posterior, entrará no ar a Rede Brasil de Fato,

um espaço voltado à articulação dos comitês de apoio espalhados pelo país, à divulgação de atividades institucionais e ao relacionamento virtual do jornal com os apoiadores. Por fim, próximo ao dia 25 de março, estará concluída a terceira etapa, com ferramentas interativas e um espaço específico para as rádios comunitárias, que poderão baixar todo o conteúdo do jornal e depois retransmitir em sua programação. Esse projeto parte também dos pressupostos da comunidade do software livre. A página do jornal está hospedada em um servidor Linux e desenvolvida em ZOPE, tecnologia de código livre que tem como principal característica a estrutura de banco de dados desenhada para a administração de conteúdo. Todas essas iniciativas convergem para a consolidação de nosso jornal e, sobretudo, para a ampliação da participação daqueles que realmente fazem o Brasil de Fato existir – nossos leitores e colaboradores que acreditam que sonhar só vale a pena quando queremos, de fato, realizar.

ERRAMOS A reportagem “Em 2005, mais manipulação dos números”, da edição 151, página 7, deu a entender que o professor Bernardo Mançano Fernandes concorda com a tese de que o governo Lula manipula os números da reforma agrária. Mançano esclarece que a manipulação de números ocorreu no governo FHC, mas não no governo Lula. Segundo ele, no governo FHC, em 2001, por exemplo, foram apresentados assentamentos criados na década de 1980 como implantados em 2001. Para o professor, o governo Lula está assentando famílias em assentamentos já existentes, mas só está contando as famílias assentadas no referido ano. A crítica que Mançano faz é que esse processo de assentar famílias em assentamentos não atinge a dinâmica da estrutura fundiária. Para o professor, esse procedimento não caracteriza manipulação de dados. Mançano também esclarece que não se inclui entre “os estudiosos do campo” que classificam esse processo do governo Lula como projetos de colonização, mas não de reforma agrária, como havia ficado implícito na reportagem. Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

Quem comanda no mundo? Leonardo Boff Com a autonomização da economia e o enfraquecimento dos estados-nação, é ilusório pensar que os presidentes eleitos sejam os que têm o comando sobre o pais. Quem decide os destinos reais do povo não é o presidente. Ele é refém do ministro da Fazenda e do presidente do Banco Central que por sua vez são reféns do sistema econômico-financeiro mundial a cuja lógica se submetem. Quando o presidente Bush fala à nação muitos seguramente o escutam. Mas quando fala o presidente do Federal Reserve (Fed) a nação inteira pára. O que ele tem a dizer significa a vida ou a morte de muitos empregos e do destino de empresas. Os donos do mundo estão sentados atrás dos bancos, são os que controlam os mercados financeiros, as taxas de juros, as infovias de comunicação, as tecnologias biogenéticas e as indústrias de informação. Imensos conglomerados privados atuam em nível planetário. Sem perguntar a ninguém e sem qualquer controle delapidam o patrimônio comum da humanidade em benefício próprio. Desflorestaram em poucos anos 800 mil hectares das ilhas de Bornéu, Java, Sumatra e Sulawesi. Os incêndios projetaram fumaça do tamanho de meio continente. Esses mesmos gru-

pos mancomunados com os nossos atuam agora na Floresta Amazônica. As leis de proteção ambiental são inoperantes face à fúria de conseguir dólares via exportação para o país fazer frente aos compromissos da dívida externa e interna. O agronegócio implica desflorestar, liquidar a biodiversidade, homogeneizar a produção em escala. Esta lógica funciona no sistema globalizado mundial, criando desigualdades e devastações ecológicas lá onde se implanta. Para 2010 prevê-se que as florestas tenham dimuido em 40%. Em 2040 o aumento dos gases de efeito estufa podem provocar um aquecimento entre 1ºC a 2ºC elevando o nível das águas oceânicas a 0,5 a 1,5 metro, afetando milhares de cidades costeiras. Seis milhões de hectares de terras férteis somem por ano sob o efeito da desertificação. As doenças infecciosas de todo tipo viajam à velocidade dos mercados. A Aids é uma pandemia na África. A expectativa de vida da África subsaariana diminuiu já sete anos e em outros países como Uganda, Zimbábue, Zâmbia recuou dez anos. No ano passado, a produção econômica do Quênia, por causa da Aids, caiu em 14,5%. A África é um continente abandonado à sua própria desgraça, sequer merece ser explorado. O papa faz discursos

irresponsáveis. Se houvesse um pouco de humanidade e compaixão entre os humanos bastaria que se retirasse apenas 4% das 225 maiores fortunas do mundo para dar comida, água, saúde e educação a toda a humanidade. Estes são dados da ONU de 2004. Enquanto isso 30 milhões de pessoas ainda morrem de fome e dois bilhões são anêmicos. Teremos tempo para que a desintegração se mostre criativa? Uma leve esperança se anuncia um pouco em todas as partes do mundo, em Seattle, em Gênova, em Porto Alegre e nos Fóruns Sociais Mundiais. Aí surge um antipoder que pede uma nova justiça planetária, uma taxação significativa dos capitais especulativos, a introdução de uma renda de existência a todos os habitantes da Terra não para subsistirem mas porque simplesmente existem. A aplicação rigorosa da ética da precaução e do cuidado em questões ambientais. Esperanças. Que tenham a força da semente. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É também autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos

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De 26 de janeiro a 1º de fevereiro de 2006

NACIONAL SOBERANIA

EUA impõem a lei imperial ao Brasil U

ma ação imperial dos Estados Unidos encurralou o governo brasileiro. No dia 10 de janeiro, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, revelou que George W. Bush vetou uma negociação entre o país andino e a principal empresa aérea do Brasil, a Embraer. O fato: uma companhia privada sediada no Brasil foi simplesmente proibida pelo maior país capitalista de vender 36 aviões do modelo Super Tucano para os venezuelanos – um negócio de 500 milhões de dólares (algo próximo a R$ 1,215 bilhão). A postura autoritária dos EUA gerou perplexidade e, na opinião de estudiosos e políticos, exige do governo Lula uma resposta à altura da soberania do país. Os Estados Unidos justificaram o veto alegando que, como o modelo a ser negociado possui peças de fabricação estadunidense, podem vetar a transação comercial. Além disso, afirmaram que a operação poderia prejudicar a estabilidade na América Latina.

O ministro Celso Amorim não vê motivo para o veto, e irá seguir com negociações

ATENTADO

dir o fortalecimento do governo de Chávez”. O deputado federal Ivan Valente (P-Sol-SP) compartilha da mesma opinião. Para ele, a atitude do governo do George W. Bush “tem caráter político e ideológico, e é um atentado à soberania do Brasil”. O parlamentar lembra que a Embraer

Para Luiz Alberto Moniz Bandeira, professor titular aposentado de História da Política Exterior do Brasil na Universidade de Brasília (UnB), “o veto é de natureza eminentemente política, embora possa haver o aspecto comercial”. A seu ver, o objetivo maior seria “impe-

Uma proibição arbitrária

DECISÃO INJUSTIFICÁVEL

também foi vetada de vender aviões ao Irã recentemente – e o governo nada fez. Em contraposição, o deputado afirma que os Estados Unidos autorizaram a venda recente de 25 Super Tucanos para a Colômbia. No dia 18 de janeiro, Valente protocolou, em conjunto com a deputada Maninha (P-Sol-DF), um

O ministro Celso Amorim também rejeitou fortemente a posição estadunidense e informou que negocia com a secretária de Estado, Condoleezza Rice. A restrição, afirmou Amorim, não se justifica. “A Venezuela não é um país que está sob sanção internacional,

EDUCAÇÃO POPULAR

Movimentos lembram 250 anos de Sepé Tiaraju

Escola Nacional Florestan Fernandes completa um ano

da Redação Lembrar a luta do povo guarani e resgatar a mística de Sepé Tiaraju. Com esse objetivo, milhares de lutadores e lutadoras do povo vão se encontrar, de 4 a 7 de fevereiro, em São Gabriel (RS), data e local da morte do líder guarani em 1756. Será um evento múltiplo, com apresentações musicais e teatrais, como a encenação do assassinato de Sepé. A Via Campesina reunirá cerca de mil camponeses a partir do dia 4 para um seminário de estudos sobre a história de Sepé. A Consulta Popular também fará um seminário com centenas de jovens. Além disso, a cidade de São Gabriel receberá a Assembléia Continental dos Povos Indígenas, com a presença dos guarani do Cone Sul e lideranças indígenas brasileiras. “Isso significa uma retomada da organização dos índios. A nossa principal reivindicação é a terra”,

Festa de inauguração da ENFF, no dia 23 de janeiro de 2005

Sofia Prestes de Brasília (DF) Democratizar a educação, hoje limitada a uma pequena parcela da população brasileira, é o objetivo principal da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), que completou um ano de existência dia 23 de janeiro. O centro de educação e formação, idealizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foi construído por meio do trabalho voluntário de 1.115 militantes dos movimentos sociais brasileiros. Durante o ano de 2005, a escola promoveu cursos formais e informais voltados para a produção, comércio e gestão dos acampamentos e assentamentos. Além disso foram realizados diversos encontros, seminários e atividades

culturais para assentados e acampados, com a participação de mais de 1,8 mil educadores. Para Maria Gorete Souza, da coordenação político pedagógica da ENFF, esses números apontam para uma importante conquista popular. ”Nós conseguimos dar um passo importante no processo de formação da militância do MST e das outras organizações, possibilitando a elevação do nível cultural e de conhecimento para uma melhor atuação e compreensão da realidade que nós vivemos” A Escola Nacional Florestan Fernandes fica em Guararema, no interior de São Paulo, e homenageia o educador Florestan Fernandes, incentivador do trabalho coletivo e permanente defensor do ensino público, gratuito e de qualidade para todos.

não há nenhuma acusação de que esteja patrocinando o terrorismo ou ações subversivas onde quer que seja”, declarou. De acordo com declaração do presidente da Embraer à imprensa, o avião Super Tucano não tem fins bélicos, e sim é usado no controle de tráfico de armas e drogas. Para Valente, o governo brasileiro deve, se necessário, fazer denúncias nos fóruns internacionais, unir-se a outros países para fazer pressões. Quanto à Embraer, o deputado entende que o governo deve incentivá-la a buscar alternativas para concretizar a venda. Moniz Bandeira acredita que o Brasil não pode e não vai aceitar o veto, uma vez que a posição dos EUA “fere as normas da liberdade de comércio”, e apóia uma possível ida do Brasil à Organização Mundial do Comércio (OMC) para resolver a questão. A Embraer, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que não entrará nas negociações, pois entende que o assunto deve ser resolvido entre os Estados Unidos e Venezuela. Criada pela Força Aérea Brasileira, a Embraer foi privatizada em 1994 e, hoje, é a quarta maior fabricante mundial de aviões de médio e pequeno porte. Desde 1998, é a empresa brasileira que mais realiza exportações. Já o Ministério das Relações Exteriores informou que ainda aguarda um novo retorno do governo estadunidense. (Com informações da Agência Brasil, www.radiobras.gov.br)

INDÍGENAS

Douglas Mansur

O veto imposto pelos Estados Unidos à venda de aviões da Embrer para a Venezuela não tem respaldo legal. É o que argumenta o deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR) que, em moção de repúdio à proibição, declarou que “vetos à transferência de tecnologia ou à venda de quaisquer produtos para um país determinado só são legítimos à luz do Direito Internacional Público, quando esse país é objeto de sanções aprovadas em foros multilaterais apropriados, como o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU)”. Algo que atualmente não consta do currículo do Irã (que também teve uma compra vetada) e tampouco no da Venezuela. Para Luiz Alberto Moniz Bandeira, professor titular aposentado de História da Política Exterior do Brasil na Universidade de Brasília (UnB), os Estados Unidos só obedecem as regras internacionais que estão de acordo com seus interesses. “Eles fazem sempre o que podem e o que não podem. Só respeitam tratados e o Direito Internacional quando lhes convêm”. O professor da UnB também critica a postura dos governos brasileiros anteriores que assinaram com os Estados Unidos “diversos acordos de cooperação lesivos aos interesses nacionais, tais como programas de segurança, ao qual destina recursos. Washington usa essas armas e o fato de ser o principal destino das exportações brasileira, abaixo da União Européia”, diz o estudioso. O deputado Dr. Rosinha afirma que o valor estimado da transação comercial “corresponde a 22% do total de expotação de aeronaves brasileiras em 2005”. O deputado federal Ivan Valente (P-Sol-SP) também destaca a importância comercial da questão. “Levando em conta a operação com Venezuela e Irã, temos um empreendimento de alto porte financeiro. Se não for concretizado, isso interfere no desenvolvimento tecnológico da empresa, na viabilidade de novos projetos, enfraquece a competitividade e ainda prejudica a criação de empregos”, explica o deputado. (DM)

pedido de audiência pública com Celso Amorim e o presidente da Embraer, Maurício Botelho. O deputado também enviou um requerimento à Embraer e ao Ministério das Relações Exteriores para obter detalhes sobre o veto. “Queremos saber quais pressões foram feitas”, diz Valente que qualifica a intervenção de “absurda e sem lógica”. Em um primeiro momento, o governo brasileiro, por meio de seu assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia, afirmou que não entraria na questão. Dia 19, no encontro entre Brasil, Argentina e Venezuela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva garantiu a Chávez que iria negociar com os EUA. “Isso é um exemplo do absurdo da política internacional dos Estados Unidos. É um atropelo ao Brasil, à liberdade de comércio. Os Estados Unidos sempre tiveram a estratégia de debilitar todo o empenho de unidade do Sul”, declarou Chávez, na ocasião (veja mais na página 8). O presidente venezuelano afirmou que, caso a proibição seja mantida, a Venezuela comprará aviões da Rússia, da China, da Índia ou de qualquer outro país.

afirma o cacique guarani Mário Karaí, da reserva do Cantagalo, em Porto Alegre. Sepé Tiaraju, a quem foi atribuída a frase “Alto lá! Esta terra tem dono”, liderou a resistência do povo guarani dos Sete Povos das Missões, no atual território gaúcho, contra o processo de expulsão promovido pelos impérios de Espanha e Portugal, após a assinatura do Tratado de Madri, em 1750. O tratado deu início à chamada Guerra Guaranítica, que durou até 1756 e teve em Sepé Tiaraju o maior líder do povo guarani. No dia 7 de fevereiro de 1756, na região chamada Batovi, atual município de São Gabriel, o lutador foi morto em combate. Três dias depois, cerca de 1,5 mil índios foram massacrados pelas tropas de Espanha e Portugal, na Batalha do Caiboaté. O massacre pôs fim à “terra sem males” representada pelas Missões Jesuíticas, experiência de mais de um século baseada na propriedade coletiva da terra.

Leonardo Melgarejo

Dafne Melo da Redação

Antonio Cruz/ ABr

George W. Bush proíbe empresa brasileira de vender aviões à Venezuela e desafiam a autonomia nacional

Sepé Tiaraju, líder guarani em 1756, tem sua história retomada em fevereiro


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De 26 de janeiro a 1º de fevereiro de 2006

Espelho AGENDA TUCANA

Saúde privatizada vai mal

Cid Benjamin

Tiro pela culatra Na divulgação da última pesquisa do Ibope pela IstoÉ foi estranho a revista não divulgar os resultados sobre o segundo turno. O procedimento foi uma tentativa idiota de tapar o sol com a peneira. Por lei, pesquisas eleitorais divulgadas são registradas na íntegra na Justiça Eleitoral. Assim, era inevitável que fossem conhecidos os números relativos ao segundo turno. A tentativa de escondê-los só fez com que acabassem tendo maior realce. Tucanos preferidos A pesquisa Ibope serviu para que O Globo e a Folha mostrassem com que pré-candidato tucano simpatizam. A informação mais relevante da pesquisa era que Lula tinha voltado a vencer José Serra no primeiro turno. Mas a Folha preferiu destacar que Serra está bem melhor do que Geraldo Alckmin. E O Globo deu ênfase a um levantamento que mostrou a maior simpatia por Alckmin na bancada tucana no Congresso. Dificilmente isso foi gratuito. Guerra particular de Tanure O Jornal do Brasil continua sua guerra particular contra o Estadão e contra o repórter Lourival Sant’Anna. No dia 23 de janeiro, dedicou dois terços de página para lembrar que Sant’Anna cobriu a Guerra do Iraque, há três anos, de um hotel na Jordânia, enquanto um repórter da Folha conseguiu chegar a Bagdá. Os ataques se devem ao fato de Sant’Anna ter escrito recentemente matérias no Estadão mostrando quem é Nelson Tanure, o dono do JB, que tentou comprar a Varig. Em tempo: a cobertura da Guerra do Iraque do JB não foi de Bagdá (como a da Folha), nem da Jordânia (como a do Estadão). Seus repórteres não saíram do Rio de Janeiro. Isto, a matéria não informa. A mãe no meio Semana passada, a Folha publicou na primeira página, abaixo da foto da prisão do advogado Marcus Valérius (que, apesar da semelhança de nome, não é o publicitário amigo do Delúbio), a seguinte legenda: “O advogado Marcus Valérius é preso na CPI dos Correios por desacato, ao sugerir quebra do sigilo da sua mãe”. Dito assim, o jornal acabou botando a mãe dos leitores na história. Certamente a Folha queria dizer: “O advogado Marcus Valério é preso... ao sugerir quebra do sigilo da própria mãe”. Futurologia em destaque Os jornais publicaram matérias sobre o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 2006. O público tomou, então, conhecimento de que o Ministério da Fazenda prevê um crescimento econômico de 5% do PIB, enquanto outros especialistas fazem aposta mais modesta, achando que a economia não crescerá além de 3%. Em praticamente todas as matérias faltou algo essencial: a comparação entre as previsões feitas um ano atrás e o crescimento real da economia. Se isso não é feito, vamos ficar no reino das cartomantes. Internet, arma contra manipulação Cresce nos EUA o número de pessoas que, ao serem entrevistadas por jornais, rádios ou emissoras de TV, gravam suas próprias palavras e as transcrevem na íntegra em blogs pessoais. É a forma de se defender de edições que – às vezes, não por má-fé, mas por falta de espaço – distorcem as declarações. Ou edições que destacam o que mais interessa ao jornalista e não necessariamente o que é mais relevante jornalisticamente. O procedimento é uma salvaguarda contra manipulações e vai exigir maior cuidado dos jornalistas na seleção dos trechos que entram na matéria editada.

Representantes do setor apontam problemas na gestão da Saúde por organizações sociais Tatiana Merlino da Redação

A

recente aprovação na Câmara Municipal de São Paulo do projeto que autoriza a prefeitura a contratar sem licitação instituições privadas, conhecidas como organizações sociais (OS), para gerir a saúde pública municipal, preocupa. Especialistas e sindicatos acusam a gestão tucana de fugir de suas responsabilidades e de aplicar uma filosofia neoliberal, “que persegue o Estado Mínimo”. “A iniciativa privada visa lucros, não está preocupada com políticas sociais”, afirma Cid Carvalhaes, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp). O projeto original pretendia entregar para a iniciativa privada quase todos os serviços sociais da cidade, nas áreas de cultura, educação e esportes. O texto aprovado dia 3 de janeiro, tido como prioridade pelo prefeito José Serra, restringe para a área de saúde a ação das organizações sociais. Entre os muitos problemas que serão gerados pela medida, os especialistas citam a contratação de profissionais sem concursos públicos e a ausência de controle social, ou seja, a falta de participação de profissionais e usuários na fiscalização do uso dos recursos financeiros. “O controle social fica próximo de zero porque tudo passa a ser de responsabilidade das entidades privadas. A contratação de pessoal é precária, terceirizada, sem concurso público e sem continuidade. É impensável um serviço de saúde assim, sem compromisso com a população”, critica a economista Laura Tavares Soares, especialista em políticas sociais que leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) . Outro aspecto considerado preocupante pela professora é a transferência das verbas públicas para as organizações privadas. “São entidades privadas geridas com o dinheiro público”, diz ela. “E ninguém perguntou para a população se ela quer esse tipo de organização”, completa. Quando as OS assumem a prestação de serviços de saúde, o papel do Estado fica diminuído, explica o presidente do Simesp: “Estão seguindo uma filosofia neoliberal, globalizadora, se eximindo da responsabilidade de fazer políticas sociais”.

PORTAS FECHADAS Se, de um lado, os tucanos argumentam que as organizações sociais têm capacidade de atender mais pessoas com menos recursos, os críticos do sistema ressaltam o fato de que essas organizações trabalham de portas fechadas, selecionam os casos a serem atendidos e não realizam procedimentos de alta complexidade. “O acesso deixa de ser universal e passa a utilizar critérios de escolha dos pacientes”, afirma a professora Laura. Para Carvalhaes, o suposto atendimento de mais pessoas com menos dinheiro é uma ‘proposta enganosa’: “Na verdade, os casos mais complexos não são atendidos porque são muito caros, assim como são diminuídos o período de internação e os gastos com os pacientes”. Os prejuízos, explica ele, serão grandes: os doentes graves ficarão sem atendimento ou com muita dificuldade de acesso aos serviços.

PRINCÍPIOS DO SUS De acordo com os críticos, o projeto contraria princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) pois não cria concursos para a contratação de profissionais, desvalorizando e flexibilizando suas atividades. Além disso, descumpre artigos da Constituição Federal que definem a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, com acesso universal, igualitário e atendimento integral. “A

População sofrerá com a entrega do serviço público de saúde às OS; acesso a tratamentos complexos ficará mais difícil

Constituição diz que a iniciativa privada pode atuar na saúde pública, mas de maneira complementar. O que estamos vendo é uma substituição”, ressalta Carvalhaes. O mesmo modelo de organizações sociais presentes na administração de hospitais e ambulatórios também é utilizado pelo governador Geraldo Alckmin no Estado de São Paulo – onde, de acordo com o presidente do Simesp, há exemplos desastrosos, como o Hospital Regional de Cotia e o Hospital Pirajuçara, em Taboão da Serra. No segundo, explica Carvalhaes, nunca há disponibilidade de vagas: “Essa é uma pequena evidência da grandiosidade do perigo que a cidade corre com a aprovação de um projeto dessa natureza”. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, há 23 unidades que trabalham sobre o regime de organizações sociais no Estado.

Os números de leitos públicos mantidos pelo SUS também indicam que a privatização da saúde no Estado não melhorou a qualidade do atendimento. Em 1997, eram 3.082 leitos; em 2003, caíram para 2.099, de acordo com dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade).

ESTADO MÍNIMO Os maus exemplos não estão apenas em São Paulo, lembra Laura, da UFRJ: “Temos evidências em vários países da América Latina de que esse tipo de serviço não gera nem boa qualidade, nem cobertura suficiente, não é eficaz”. Para ela, é inaceitável que, em vez de se financiar melhor o atendimento estatal, opte-se por esse tipo de “solução substitutiva do Estado”. A qualificação de entidades privadas como OS surgiu em um contexto da reforma do aparelho de

Estado, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, proposta pelo então ministro Bresser Pereira (1996) como uma medida que contribuiria com a idéia de Estado Mínimo, ou seja, menor participação do Estado em vários setores. A regulamentação ocorreu em 1998, com a promulgação da Lei Federal nº 9.637, que concedeu ao Estado o direito de reconhecer uma entidade como OS. “As organizações sociais são parte de um modelo de reforma do Estado idealizado e gestado nos anos 1990 pelo governo Fernando Henrique Cardoso”, explica a economista Laura. “Se detona o Estado, desmantela os serviços públicos e colocam no lugar uma coisa que dizem ser melhor”, completa. A professora afirma que esse é o jeito ‘tucano de governar”, e alerta para um possível “aprofundamento da reforma do Estado”, caso seja eleito um presidente do PSDB em 2006.

POVOS INDÍGENAS

Ação desastrosa da PF destrói duas aldeias e deixa nove feridos em Aracruz Cristiano Navarro de Brasília (DF) Os povos Tupiniquim e Guarani do município de Aracruz (ES) foram surpreendidos, dia 20 de janeiro, pela violência da Polícia Federal, que feriu pelo menos nove indígenas, destruiu totalmente duas aldeias e prendeu o líder Paulo Henrique Tupiniquim. A ação foi uma tentativa de reintegração de posse garantida por uma liminar concedida à empresa Aracruz Celulose pelo juiz federal Rogério Moreira Alves, da Vara Federal de Linhares, no dia 7 de dezembro do ano passado. Cerca de 120 policiais, incluindo um destacamento do Comando de Operações Táticas, de Brasília, contaram com apoio da Polícia Militar. Usaram um helicóptero e maquinário da empresa Aracruz Celulose para aterrorizar as famílias indígenas e invadir de forma abrupta as aldeias Córrego D’Ouro e Olho D´Água. Os policiais atiraram contra os indígenas bombas de efeito moral e balas de borracha, além de incendiar as casas. “Assim que a Polícia Federal chegou aqui, a gente foi conversar pra negociar a saída. Na primeira aldeia foi até tranqüilo, mas na segunda eles já chegaram atirando bomba, bala de borracha e destruindo tudo”, afirma o líder Antônio Guarani. A ação surpresa se configura como um ato autoritário e ilegal, pois nem a Comissão de Caciques, nem a Fundação Nacional do Índio (Funai), nem o Ministério Público foram avisados da reintegração, como de-

veriam. Dois funcionários da Funai local tentaram impedir o despejo, mas não foram ouvidos pela polícia. “Da mesma forma que chegaram, saíram, clandestinamente”, conta Arlete Schubert, do apoio à Comissão

de Caciques Tupiniquim e Guarani. Soube-se, mais tarde, que a liminar de reintegração de posse foi cassada. Agora os Tupiniquim e Guarani iniciaram um mutirão para reconstrução de suas aldeias.

Fotos: Vanessa Vilarinho

JN em crise O Jornal Nacional está tendo uma enorme queda de audiência. Historicamente, se coloca em torno de 40%, no Ibope. Agora, está patinando entre 25% e 30%, fustigado pela audiência da novela da TV Record. A situação está abrindo uma crise na Globo, pois menos audiência significa menos publicidade e diminuição dos lucros. Na emissora, há quem explique a queda pelo excessivo número de matérias sobre a crise política, que já estaria cansando os telespectadores.

Fernando Donasci/Folha Imagem

da mídia

NACIONAL

Com maquinários da Aracruz Celulose, a PF aterrorizou famílias indígenas

Vilmar Benedito de Oliveira, índio Tupiniquim, mostra marcas da violência policial


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NACIONAL BANCO MUNDIAL

A educação vira simples mercadoria Igor Ojeda da Redação

O

Banco Mundial (BM) não esconde o que pensa. Para este organismo multilateral que se propõe a ajudar o desenvolvimento dos países pobres, a educação deve ser considerada um serviço como outro qualquer. Ou seja, passível de ser comprado por seus consumidores. E é através de financiamento de projetos em nações periféricas que o BM busca influenciar – com sucesso – os responsáveis pelas políticas públicas do setor. O dossiê Banco Mundial em Foco, elaborado pela Organização Não-Governamental (ONG) Ação Educativa, com apoio da ActionAid Brasil, mostra como isso vem acontecendo no Brasil e em alguns países da América Latina. “No Brasil, os projetos financiados pelo Banco Mundial com impacto na educação continuam a ocorrer, sem um acompanhamento sistemático por parte da sociedade civil”, diz o estudo. Para piorar, tal impacto é negativo.

Arquivo Brasil de Fato

Estudo da Ação Educativa mostra como o Banco Mundial influencia as políticas públicas em educação

Apoio do Banco Mundial às escolas possui visão economicista, com critérios de escolha baseados na força do compromisso que o país tem com o BM e o FMI

uma “sobreposição das medidas associadas aos projetos do Banco e as políticas públicas em vigor em determinado local, com as quais podem estar tanto em sintonia como em divergência, ou até mesmo em oposição”. Quando o caso é de divergência ou oposição, a atuação do BM provoca o desmonte ou enfraquecimento das políticas de Estado. O Fundescola, por exemplo, prevê 15 pontos a serem implementados. Pontos que, segundo o dossiê, poderiam, em conjunto, serem considerados uma reforma educacional local, batendo de frente com as

AÇÃO NO BRASIL Atualmente, existem quatro projetos em educação financiados pelo Banco Mundial no país: O Fundo de Fortalecimento da Escola III (Fundescola III) – que atende às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste; a fase 2 do Programa de Educação da Bahia, o Projeto Escola Novo Milênio, no Ceará, e o Projeto Integrado de Desenvolvimento e Melhoria na Qualidade da Educação de Pernambuco (Eduq). Juçara Dutra, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, cita um exemplo da interferência do BM em entrevista realizada para a elaboração do estudo da Ação Executiva: a instituição das Unidades Executoras (UEx), entidades de caráter jurídico privado que têm a finalidade de receber e aplicar os recursos financeiros transferidos pelo governo federal. “Esta medida colide com a capacidade gestora dos agentes escolares, em especial dos conselhos das escolas, bem como agride a autonomia da gestão pública dentro de um recinto de natureza essencialmente pública”, diz. De fato, aponta a ONG, há

políticas das secretarias e do Ministério da Educação (MEC).

CUSTOS MÍNIMOS “No Ceará, o Banco exerce uma influência sobre o sistema. Exige uma política de reordenamento de toda a rede como forma de diminuir os custos. Aí entra a visão economicista, que não é focada em direito”, conta Salomão Ximenes, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Escolas tradicionais foram fechadas, outras transferidas para a rede municipal.

Outro motivo de preocupação é a falta de democracia na discussão dos projetos. Segundo o texto da Ação, os programas dos governos federal e estaduais que recebem financiamento do Banco “têm sido formulados e negociados com pouca participação, supervisão e interferência das diversas organizações da sociedade civil brasileira”. Nem mesmo os Estados eram consultados, como diz o senador João Capiberibe (PSB-AP), que era governador do Amapá quando o projeto começou a ser implementado. “As normas do programa não eram discutidas com o Estado, mas

As garras sobre a América Latina O dossiê Banco Mundial em Foco, elaborado pela Organização Não-Governamental Ação Educativa trata também da influência do Banco Mundial em países da América Latina através do projeto Iniciativa Via Rápida (IVR). Lançado em abril de 2002, este programa surgiu para viabilizar recursos de cooperação internacional com objetivo de

acelerar o cumprimento das Metas de Desenvolvimento do Milênio, fixadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000. Na América Latina, três nações participam do programa: Nicarágua, Honduras e Guiana. No entanto, para que um país se torne apto a receber recursos, deve passar por uma análise rigorosa sobre os seus compromissos com o próprio Banco Mundial e com o

Fundo Monetário Internacional (FMI). Recursos até o momento limitados e falta de transparência na formulação e execução dos projetos são algumas das críticas, assim como a visão economicista da educação. Exemplo: para o BM, a estrutura da escola e o material didático têm impacto mais positivo na qualidade do ensino do que o aumento salarial dos professores. (IO)

era exigido o seu cumprimento”, aponta Capiberibe, acrescentando que o projeto não levava em conta o saber prévio dos alunos e de sua comunidades

GOVERNO LULA Ainda de acordo com o ensaio, o governo Lula representou uma ruptura com a política educacional da era Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), alinhada às orientações do BM. Um exemplo é a luta pela implantação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) – que abarca a educação básica como um todo – como uma das prioridades. No entanto, o estudo pondera que os investimentos na área continuam muito restritos. “Na gestão do Paulo Renato (ministro da Educação do governo FHC), para além da influência, havia um alinhamento. No governo Lula, a concepção é outra, é a da educação como um direito. E os projetos acabam funcionando em lugares pontuais. Claro que o ideal seria que nesses lugares os projetos fossem discutidos mais abertamente com a sociedade e com as comunidades”, diz Camilla Croso Silva, que participou da elaboração do estudo.

O Banco Mundial concentra todas as suas forças no ensino primário. Ou seja, da 1ª à 4ª séries. O motivo é simples. “Os outros níveis são mais custosos, segundo eles. A lógica é minimalista, extremamente reducionista”, explica Camilla Croso Silva, da Organização Não-Governamental (ONG) Ação Educativa. Segundo ela, na visão do Banco, o retorno do investimento é maior no ensino primário. A maior agressividade no nível primário ganhou um reforço com a definição das Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDMs) adotadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), em junho de 2000. Meses antes, durante a Cúpula Mundial de Educação para Todos, em Dacar, no Senegal, foram definidas seis metas para a área, abrangendo diversos níveis do ensino. Na ocasião, o conceito da educação como um direito foi reafirmado. No entanto, nas MDMs da ONU, apenas duas delas foram utilizadas: as que se referem ao ensino primário e à igualdade entre os sexos no acesso à escola. Mesmo signatário da Cúpula de Dacar, o Banco Mundial continuou a insistir na priorização das duas metas incluídas nas Metas.

Arquivo Brasil de Fato

Priorizar o ensino primário, para privatizar o resto pulsório, primário”. Na “visão” do BM, mostrada também em outros textos, os níveis superiores são voltados para atender apenas às elites. O que permite, portanto, que sejam privatizados. “Os cursos mais concorridos são ocupados por estudantes da classe alta. Isso é um fato. Mas esse problema está relacionado à questão de quem tem acesso ao direito à educação. Isso tem que ser tratado de forma global. O problema é do sistema educacional como um todo, principalmente da educação básica”, afirma Salomão Ximenes, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Na “visão” do BM, o ensino superior está voltado para atender apenas às elites

COM O FMI “Eles estão preocupados com o mínimo, o básico. Não em formar cidadãos. A educação básica acabou virando educação mínima na visão deles”, diz Camilla.

PRÓ-PRIVATIZAÇÃO O pior, diz o estudo Banco Mundial em Foco, da Ação Educativa, é que as diretrizes do BM influenciam enormemente a educação dos países periféricos, tendo “impacto significativo nas políticas educacionais, menos pelo investimento

em projetos específicos, e mais pela influência nas grandes orientações das políticas públicas”. O ensaio cita o documento “Tendências do setor privado em desenvolvimento nos projetos de educação do Banco Mundial”, do próprio organismo, para mostrar suas intenções bem explícitas: “(...) fortalecer o papel do setor privado ao longo do tempo nos níveis não-obrigatórios da educação liberará recursos públicos para serem utilizados no nível com-

Ximenes criticou os dois processos de reformas que o governo está tocando: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e a reforma universitária. Que, segundo ele, não dialogam entre si. “O que o Banco Mundial quer consolidar é uma sociedade onde uma minoria de cidadãos vão ter acesso aos direitos e uma massa de trabalhadores e excluídos vão ser objeto de serviços de assistên-

cia social e a própria educação não será voltada para sua formação para a cidadania, mas uma educação meramente assistencial”, resume. Mas a transformação da educação em mercadoria não é a única estratégia do Banco. A instituição trabalha fortemente em conjunto com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Para começar, é obrigatório que os países-membros do primeiro sejam também membros do segundo. E ambos buscam o “sucesso” da Rodada de Doha, pauta de abertura comercial no âmbito da OMC, em que os países desenvolvidos buscam ferozmente o mercado de bens industriais e de serviços dos países pobres. Terceiro, as condições do BM estão atreladíssimas às do FMI. São as chamadas condicionalidades cruzadas. Ou seja, para receber um empréstimo do Banco, o país tem que cumprir exigências do Fundo em relação ao “ajuste” da economia. No entanto, explica o dossiê, as próprias negociações com o FMI muitas vezes denotam enorme contradição com o objetivo das negociações com o BM, como, por exemplo, o congelamento do salário dos professores como condição para o perdão da dívida externa de Honduras. (IO)


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NACIONAL AMAZÔNIA

A floresta é um bem de todos

Hamilton Octavio de Souza

Sob o modelo de produção capitalista, madeireiros e grande agropecuária levam destruição

Puro fisiologismo Mais uma vez o presidente Lula tenta atrair para uma aliança a ala podre do PMDB, em especial os senadores da bancada nordestina, entre os quais Renan Calheiros, José Sarney e Ney Suassuna. Doce ilusão, já que dificilmente aquele partido vai integrar – unido – a chapa do PT, pois os governadores defendem candidatura própria e uma terceira corrente tende a apoiar o candidato do PSDB. Alguém vai ficar vendo navios. Cota particular O inferno astral do governo Lula diminuiu de dosagem após a cassação do deputado José Dirceu, mas não está totalmente superado. Nos últimos dias, a CPI dos Bingos voltou à carga e decidiu convocar dois personagens da mais estreita relação do presidente, o presidente do Sebrae, Paulo Okamotto, e o advogado Roberto Teixeira, ambos com experiência na administração dos bens pessoais de Lula. Mais tensão no Planalto. Paciência esgotada O vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa, questionado sobre a situação dos povos indígenas e das reservas destinadas a esses povos, não deixou por menos e lascou a seguinte declaração: “O atual governo é o pior dos últimos 40 anos na questão da demarcação das terras”. Na verdade, o balanço do Cimi sobre o ano de 2005 é mesmo de arrepiar. Populismo tucano Tempos atrás, numa de suas campanhas eleitorais, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, chegou a declarar que tinha “um pé na cozinha” para demonstrar uma ligação com negros e pobres. Agora, outro tucano candidato, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, elitista e católico ultraconservador, em visita ao Nordeste, declarou que é “um pouco baiano”. Só falta o tucano José Serra dizer que é tupi-guarani legítimo. Época de eleição, todo mundo é povão. Números enganosos Alguns petistas fundamentalistas estão entupindo a internet de números da economia considerados positivos para a gestão Lula, entre os quais os de exportação e balança comercial, de juros e câmbio e o tal índice de risco. Esses números não revelam quais são as empresas exportadoras que ganham mais com a exportação ou quais setores se beneficiam de transferência e concentração em função dos juros. Ou seja, tem governista comemorando o que o neoliberalismo sempre quis fazer. Nada mais do que isso! Circo federal Depois de mentir escandalosamente na CPI dos Correios, o publicitário Duda Mendonça se propõe a outra visita ao Congresso Nacional para “esclarecer” as novas contas bancárias descobertas no exterior. Para não ficar atrás, o outro publicitário do “mensalão”, Marcos Valério, está propondo revelar novos segredos dos caixas-dois do PSDB e do PT em troca de redução nas punições judiciais. O mar de lama parece que não acaba nunca! Realidade concreta Estudantes brasileiros que viajaram para o Fórum Social Mundial, em Caracas, na Venezuela, nem bem chegaram ao país e já ficaram entusiasmados com as missiones do governo Hugo Chávez, os programas sociais com propostas transformadoras. Em conversas com a população mais pobre, perceberam logo que a ação governamental vai muito além de qualquer campanha de marketing. Essa turma vai voltar com novo referencial de comparação.

Luís Brasilino da Redação

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devastação da Floresta Amazônica aumenta a cada ano. O fenômeno cresce exponencialmente, com secas mais severas, como a dramática seca que assolou a região em 2005. Por isso, o ativista Jean-Pierre Leroy, do Projeto Brasil Sustentável e Democrático, traduz a mensagem do núcleo duro do governo federal – de buscar desenvolvimento e crescimento econômico a qualquer custo – como estímulo aos madeireiros, grandes fazendeiros e pecuaristas, que promovem a devastação da mata. Imbuídos da mentalidade da produção capitalista atual, eles acreditam representar o progresso quando, na verdade, levam pobreza, miséria e violência para a cidade e o campo. Brasil de Fato – Como o senhor avalia o ano de 2005, repleto de desastres naturais, como a forte seca na Amazônia? Jean-Pierre Leroy – Como um aviso. Já tínhamos visto um grande incêndio em Roraima, anos atrás. E pouco antes da seca de 2005, no Acre, também houve grandes incêndios em áreas extrativistas. Esses acontecimentos eram vistos como fatos isolados. Mas, quando chega uma seca inesperada como essa do ano passado, as pessoas começam a refazer suas concepções. No imaginário brasileiro, quando se falava em Amazônia, os elementos que vinham em mente eram floresta e água que não acabam mais e que nunca vão acabar. Portanto, foi um choque colocar que a coisa não é bem assim. BF – Como a situação chegou a esse ponto? Leroy – Há um grande passo entre os fenômenos e o reconhecimento de que as causas são ligadas à ação humana e ao modelo de desenvolvimento dominante. Existem vários elementos para gerar a seca, como mudanças na temperatura das águas no PacífiEl Niño – Fenômeco, associada no de aquecimento ao El Niño, e, anormal das águas superficiais do Ocedessa vez, o ano Pacífico. aquecimento da água do Atlântico na região do Caribe. O mesmo fenômeno que provocou tornados como o Katrina, nos Estados Unidos. Na Amazônia, a conseqüência disso foi a seca. O modelo dominante nos países industrializados já nos atinge diretamente. Outro fator é que, na Amazônia, as chuvas funcionam por evapotransporação – o vapor vem do Atlântico, forma umidade, cai no solo da parte oriental da Amazônia (Pará), a vegetação absorve a água e transpira. A evaporação desse “suor” forma novas nuvens que vão mais adiante, num fenômeno que se repete até os Andes. Na medida em que se acaba com parte da floresta, esse fenômeno fica interrompido. Isso faz a seca aumentar a cada ano, graças à ocupação progressiva. O terceiro motivo é que, no sul da Amazônia, ao longo das cabeceiras dos rios Araguaia, Xingu, entre outros, há uma destruição extremamente intensa. Isso aumenta o assoreamento desses rios, tornando as enchentes mais violentas e as secas maiores, pois o número de nascentes diminui e os igarapés secam com facilidade. BF – Quem são os principais agentes dessa devastação? Leroy – Durante muito tempo dizia-se que eram os posseiros, os pequenos produtores. Mas, se olharmos a longo prazo, o impacto produzido por eles, não é tão grande. Eles têm até interesse em manter uma certa vegetação

Seca na Bacia Amazônica: além da ação de madeireiros, plantadores de soja também contribuem para a devastação

e diversificam sua produção. Com melhores políticas sociais poderia se ter um manejo amigo da natureza, que mantivesse a natureza. Esse não é o caso dos madeireiros que avançaram sobre a floresta praticando o corte raso. Nesse processo, levaram consigo grileiros, pecuaristas e tiraram o melhor da mata. Hoje, eles entram na floresta escolhendo as melhores árvores. Tanto que, se você sobrevoar a Amazônia, não dá para ver nenhuma diferença. Mas, a pé, é possível verificar uma destruição muito grande. Isso contribui para a inflamabilidade da floresta. Quando morei no Pará, acompanhei muitas vezes a queimada da roça e o fogo jamais avançava sobre a mata. Hoje não é diferente. O corte seletivo das árvores faz com que o fogo avance. Além do quê, a situação de miséria a que está reduzido o extrativista sem apoio muitas vezes o leva a vender as árvores. E quando há reservas, os madeireiros invadem. O segundo elemento é o pecuarista. Aqui, inclusive com métodos modernos de corte, como o correntão. Essa máquina vai numa velocidade tremenda e, em poucos dias, pode-se derrubar milhares de hectares. O terceiro é a soja. Os produtores alegam não ser eles que derrubam a floresta mas, na verdade, a soja acelera o processo. No começo, os produtores escolhem áreas já derrubadas e compram do pequeno. Mas este mantém uma pequena mata, árvores frutíferas, o igarapé. O produtor de soja faz tudo isso desaparecer e começam a surgir grandes áreas devastadas. BF – Do outro lado, quem é que mais sofre com esta situação? Leroy – Primeiro é a população rural e florestal da Amazônia. Os ribeirinhos sofrem a mudança do regime das águas (seca) e encontram cada vez menos peixe porque os agrotóxicos da produção de grãos contaminam os rios. As populações agroextrativistas, que se instalaram por lá na época da borracha, sofrem com a falta de áreas demarcadas e de títulos de propriedade. Assim, não conseguem permanecer nas terras quando chegam os plantadores de soja e os pecuaristas. Eles são pressionados a vender seus terrenos e, quando resistem, vem a violência. Então vêem-se ilhados pela produção de soja e os agrotóxicos acabam eliminando a sua produção. Já quem foi para a região no período da colonização, em especial da construção da Transamazônica, não consegue permanecer na região por falta de apoio dos governos. Quando chegam as ofertas dos grandes produtores, não podem resistir. O reflexo de tudo isso é que as cidades, pequenas e médias, estão se enchendo de pessoas que deixam a floresta e a beira dos rios. Aí a cidade entra em colapso. A miséria urbana aumenta assustadoramente.

BF – Isso leva a um quadro de violência? Leroy – É claro. A violência urbana na região é quase tão forte quanto em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Mas, no campo, a violência é resultado da história da ocupação de território no Brasil: na marra e na violência. Como na Amazônia a maior parte das terras é devoluta, quando os setores dominantes chegam, querem ocupar a todo custo. Em Anapu (PA), uma das regiões da Transamazônica ainda muito preservada, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reservou a área para editais que formariam lotes de, pelo menos, 300 hectares na época da colonização. Quem adquiria essas terras só poderia se tornar proprietário se, dentro de um prazo, começasse a beneficiar o terreno. Poucos fizeram isso. A terra tornou-se pública e foi lá que vi o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), apoiado pelo Incra. A área atiçou a cobiça de fazendeiros, grileiros e especuladores. Só que já havia lá posseiros trabalhando em pequenos lotes, que tinham construído com a irmã Dorothy Stang esse PDS. Então se deu o confronto. Os pequenos resolveram resistir, amparados pelo programa. Essa resistência era intolerável e o confronto se acirrou. BF – A atuação do governo mudou, após o assassinato da irmã Dorothy? Leroy – Teve uma ação espalhafatosa e inútil das Forças Armadas. A presença da Polícia Federal (PF) cresceu um pouco mas também não durou muito temo, já que não existe um posto permanente na região. E o Incra acelerou os trabalhos para definir onde o PDS pode se instalar. Mas, paralelamente, o clima de ameaças continuou muito difícil. A solução precisa ser preventiva: uma política permanente de presença do Estado na região. Multiplicando a presença da PF na região, do Incra também. E mais política pública. Isso intimidaria os agressores. Porém, a mensagem que passa o núcleo central do governo – de que a prioridade está no desenvolvimento – é entendida por todos os setores da seguinte forma: “Nós estamos do bom lado”. Os grandes produtores acreditam estar no lado do progresso, da agropecuária moderna. “Nós vamos atrair investimento, atrair emprego”. Só que toda bandidagem vai atrás. Portanto, essa mensagem de crescimento a qualquer custo é também um fator de desequilíbrio. Um fator que leva os extrativistas, os pequenos produtores e os que questionam grandes projetos na Amazônia a ser identificados com o atraso. BF – O Projeto de Lei de Gestão de Florestas Públicas, atualmente aguardando votação no Senado, pode melhorar esse quadro? Leroy – Tenho muitas dúvidas so-

Randau Andrade/ MMA

Ausência oportuna Recém-empossado na Presidência da República, Lula foi muito aplaudido no Fórum Social Mundial de 2003, em Porto Alegre. Em 2004, o FSM foi na Índia, mas em 2005, de novo em Porto Alegre, após completar dois anos de governo, Lula foi vaiado no Ginásio Gigantinho. Agora, o presidente brasileiro arranjou uma desculpa para não comparecer ao Fórum Social de Caracas, onde as estrelas são Hugo Chávez, Néstor Kirchner e Evo Morales.

Greenpeace

Fatos em foco

Quem é Mestre em Educação, JeanPierre Leroy é coordenador do Programa Brasil Sustentável e Democrático. Estuda a Floresta Amazônica há mais de 30 anos e morou no Pará, onde conheceu e tornou-se amigo da irmã Dorothy Stang. Participou da Relatoria para o Direito ao Meio Ambiente e é técnico da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase). bre o projeto. A tese do Ministério do Meio Ambiente é de que a proposta vai tornar mais clara a diferença entre os bandidos e os que querem realmente trabalhar para o progresso e uma gestão sustentável. Oferecendo concessões para os bons madeireiros, os outros terão que deixar a região. Isso é uma aposta arriscada. Como o poder público vai conseguir eliminar quem está na ilegalidade? Fazer uma boa gestão custa mais, a madeira deles custa mais, e eles podem não conseguir se sustentar. O segundo problema é a intenção do governo de criar um sistema florestal. Em tese, esse seria um instrumento indispensável para controlar e fiscalizar. Mas como vão conseguir encontrar no orçamento os meios para aparelhar essa força se não têm recursos para os órgãos que já existem? Terceiro: historicamente, concessões públicas viram propriedade. É só olhar o que aconteceu com as rádios e televisões no Brasil. São concessões públicas mas não passa pela cabeça dos beneficiados prestar contas. O que vai fazer com que essas concessões, que precisarão ser dadas num prazo longo, sejam diferentes? Quarto: está previsto favorecer comunidades locais para que elas também possam explorar a floresta. Isso só pode ser viável se houver um investimento público de fôlego. O pequeno produtor precisaria formar cooperativas, preparar-se tecnicamente, ter capital, enfim uma série de condicionantes que não são fáceis. Não basta colocar no papel. São necessárias políticas públicas fortes e duradouras. Não basta criar concessões florestais. É necessário fazer mudanças na lei sobre manejo florestal. Hoje, é quase impossível um pequeno produtor vender madeira na legalidade. As normas e exigências legais são estúpidas.


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NACIONAL DESMONTE DO ESTADO

Uma política de concentração de renda Lauro Veiga Filho de Goiânia (GO)

A

assinatura do ato de criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as privatizações ocorridas entre 1990 e 2002 abre nova brecha para o país passar a limpo essa fase de sua história recente. Uma oportunidade para o Brasil rediscutir a política de desmonte do setor público, inaugurada no governo Collor e acelerada durante os dois mandatos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Essa política conduziu à liquidação das maiores empresas estatais, vendidas a preços de banana a meia dúzia de grandes grupos econômicos e financeiros, daqui e de fora, como enfatiza o deputado federal José Divino (PMR-RJ), autor do requerimento para criação da CPI. Mais grave, tal prática vem sendo mantida pelo governo atual, como no caso dos bancos estaduais, poços de petróleo e estradas. Como resultado da liquidação do patrimônio público – pertencente a todos os brasileiros –, agravou-se a concentração da renda, diante dos privilégios e benefícios exorbitantes concedidos àqueles grupos. Além disso, foram geradas dívidas para o Tesouro e abertos rombos permanentes nas contas externas do país. Mas, passados 16 anos desde o início das privatizações, não parece ter ficado claro que essa política representou, de fato, uma segunda etapa de um processo de transferência de renda para setores da economia já amplamente privilegiados no Brasil.

INDUSTRIALIZAÇÃO Em uma primeira etapa, usou-se o dinheiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a montagem de grandes grupos de capital nacional, com a sociedade abrindo mão de parte da arrecadação de impostos (e, portanto, de serviços públicos, como educação e saúde) para que o país se industrializasse. Enquanto foi permitido, os recursos do banco também financiaram a instalação e consolidação das principais empresas estatais, fortalecendo a economia, criando meios para que o país também pu-

desse competir no mercado internacional e ampliar suas exportações. A partir da crise da dívida externa, no começo dos anos 1980 – sob pressão de credores, países “amigos” e do Fundo Monetário Internacional (FMI) –, o BNDES foi proibido de financiar estatais. Ou seja, foi proibido de emprestar o dinheiro dos impostos para que o país continuasse a investir em infra-estrutura (estradas, portos, ferrovias, telecomunicações, energia elétrica), vencendo a estagnação que tem marcado a economia desde então. Mesmo assim, o banco continuou irrigando fartamente os cofres dos grandes grupos nacionais (e transnacionais, a partir de 1997, em mais uma decisão equivocada do governo FHC).

REVIRAVOLTA POLÍTICA Quando todo o cenário estava “maduro” para que a sociedade pudesse receber de volta uma parcela do que havia se privado durante os anos de consolidação do parque industrial, uma reviravolta política adiou os planos de redistribuição dos ganhos alcançados com a maior industrialização da economia brasileira. Novamente sob pressão de credores e FMI, às portas de uma crise cambial, provocada pela torra de dólares, o governo acelerou a venda das estatais com o notório objetivo de atrair sócios estrangeiros e seus dólares. Fez isso oferecendo o dinheiro do BNDES, a juros baixos e prazos a perder de vista – o que,

de resto, desmente a “lengalenga” segundo a qual não havia dinheiro para as estatais investirem na ampliação de seus negócios. Ou seja, a sociedade, mais uma vez, se viu obrigada a abrir mão de melhores condições de vida para que grupos nacionais e estrangeiros pudessem comprar as estatais a preços irrisórios e em condições privilegiadas.

Fatia do orçamento das famílias destinada ao pagamento de preços administrados e tarifas públicas, em %

Altas acima da inflação Variação real entre dezembro de 1999 e novembro de 2005 e peso médio no IPCA no período Preço administrado

Peso médio (%)

Variação descontado o IPCA* (%)

Energia elétrica

4,2

43

Ônibus urbano

4,8

23

Gasolina

4,1

24

Telefone fixo

3,1

25

Gás de botijão

1,5

43

Água e esgoto

1,7

26

Ônibus intermunicipal

1,1

17

Óleo diesel

0,1

92

Correio

0,0

60

Período

Peso

Período

Peso

Gás encanado

0,1

25

1994

10,9

2000

16,3

Telefone público

0,2

9

1995

8,9

2001

17,9

Telefone celular

0,2

-4

1996

11,2

2002

18,7

Plano de saúde

2,5

0

1997

13,0

2003

21,8

Total

23,6

23

1998

14,0

2004

23,0

1999

15,5

2005

30,35

(*) Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) reflete a variação do custo de vida para famílias com renda de até 40 salários mínimos e mede a inflação oficial do país Fonte: Ministério da Fazenda

Fonte: Global Invest/Ministério da Fazenda

um valor de Cr$ 1,07 milhão em moeda da época (algo em torno de R$ 35 mil em valores de hoje). Os restantes 70% das ações poderiam ser oferecidas, meio a meio, a empresas nacionais e estrangeiras. O detalhe é que deveria ser obedecido o limite de 5% por comprador. A providência teria evitado a formação de monopólios reais e virtuais, sob controle de grupos locais e transnacionais que hoje esfolam o consumidor e oferecem serviços de qualidade contestável. (LVF)

O julgamento da história Praticamente nenhuma das supostas vantagens apregoadas pelos defensores da privatização concretizou-se. A redução de preços e tarifas dos produtos e serviços antes fornecidos pelas estatais, que já haviam disparado nos meses que precederam os leilões de vendas das ações daquelas empresas, não ocorreu. Pelo contrário, a tão propalada eficiência do setor privado, que trataria de providenciar produtos e serviços mais baratos para a população, produziu uma espiral de alta para aqueles preços, como o Brasil de Fato mostrou na edição 150, incrementando a carestia e achatamento da renda disponível do consumidor, criando obstáculos

As privatizações ocorrem desde 1990. Uma CPI pode ser uma nova brecha para esclarecimentos sobre esse período

O peso dos serviços e produtos administrados

A “traição”, no governo FHC Quando foi criado o Programa Nacional de Desestatização (PND), pela Lei 8.031, ainda no governo Collor, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) havia desenhado um “modelo” que previa a “pulverização” das ações, engavetado sem a menor cerimônia pelo governo FHC. A proposta do BNDES, apresentada em 1990, limitava a venda das ações a 5% por comprador e reservava 30% daqueles títulos exclusivamente a pessoas físicas e pequenos investidores, impondo

Arquivo Brasil de Fato

Criação de CPI abre oportunidade para rediscutir as privatizações e a dilapidação do patrimônio público

ao crescimento da economia. Um trabalho recente do Ministério da Fazenda confirma o descalabro. As tarifas da energia elétrica fornecida às residências registraram um aumento real (quer dizer, acima da inflação) de 43% entre dezembro de 1999 e novembro de 2005. O telefone fixo subiu 25% e o preço das ligações no “orelhão” mais 9%. Parece pouco, mas é preciso lembrar que aquelas altas já “descontam”, a variação observada para todos os demais preços, em média. Isso significa altas de 127% para a energia, quase 100% para os telefones fixos e de mais de 73% para as fichas do telefone público. (LVF)

A quem interessa a CPI das Privatizações? Marcelo Netto Rodrigues da Redação Ao que tudo indica, a CPI das Privatizações vai servir para muita coisa, menos para atingir o seu propósito: investigar as acusações de irregularidades nas vendas de estatais realizadas pelos governos Collor (1990-1992), Itamar (1992-1994) e Fernando Henrique (1995-2002). Como uma criança desejada que nasce fora de hora, esta nova CPI corre o risco de acabar servindo apenas como uma carta na manga do Planalto para barganhar junto à oposição a elaboração dos relatórios das CPI’s dos Correios e dos Bingos. Criada quando o governo começa a respirar um pouco mais aliviado após o sufoco da crise, a CPI “dos sonhos” – como a definiu o líder de Lula na Câmara, Arlindo Chinaglia – chega num momento em que ninguém quer assumir a paternidade da criança. E hajam pais ausentes – para que uma CPI seja requerida são necessárias 171 assinaturas. Neste caso, assinaturas que vieram de 171 deputados de todos os partidos brasileiros que compunham a Câmara à época que o pedido foi feito, em 2003 (excluindo apenas o Partido Social Cristão – PSC). O fato é que o governo não pôde evitar a criação da CPI neste instante. Ela já estava na fila há dois anos

e sete meses, e era a próxima da lista de CPI’s a ser aberta pela Câmara – que de acordo com seu regimento só permite o funcionamento de cinco comissões de inquérito ao mesmo tempo. O governo não pôde nem mesmo contar com a influência do presidente da Casa, o seu aliado Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Pois, mesmo que quisesse, ele não teria meios para postergá-la. Isto porque, com a vaga aberta em dezembro em decorrência dos fins dos trabalhos da CPI que investigava os Grupos de Extermínio no Nordeste, a criação da CPI das Privatizações tornou-se compulsória independentemente de conjunturas políticas. Mas, para a felicidade aparente de ambos, do governo e da oposição, regras não bastam para que uma CPI funcione. Prova disso, é que o prazo regimental de 48 horas dado aos líderes dos partidos para a indicação de nomes para compor a comissão – contado a partir de sua criação – já expirou no dia 18 de janeiro. E, mesmo assim, até o fechamento desta edição, no dia 24, apenas um pouco mais da metade da comissão (que será composta por 24 parlamentares) havia sido indicada. “Não adianta o deputado Aldo Rebelo indicar nomes para a CPI, e depois ela não trabalhar”, res-

pondeu a assessoria de imprensa do presidente da Câmara, quando perguntada por que Rabelo ainda não lançou mão do dispositivo legal que lhe garante tal atitude, nem tampouco fixou outra data-limite para a formação da comissão. Assim, quando do encerramento desta edição, quatro partidos ainda faltavam indicar os seus representantes: PMDB, PP, PL e PV. Enquanto entre os 15 deputados indicados pelo PT, PSDB, PTB, PPS, PSB, PDT, PcdoB e PFL/Prona apenas quatro estão entre os 170 co-autores do pedido de abertura da CPI requerido pelo deputado José Divino (PMR/RJ), em 2003. Único co-autor do pedido entre os quatro indicados pelo PT, o deputado Fernando Ferro, de Pernambuco, defende que a CPI das Privatizações não deve ser usada como forma de retaliação a outras CPI’s. “Se eu sentir algum tipo de negociação neste sentido, me afasto”. O deputado Dr. Rosinha (PT-PR), por sua vez, acredita que os meios de comunicação são os que estão fomentando esta tese da chantagem, pois no fundo, ela é vazia. “No momento, a Câmara não tem gordura moral para queimar com mais uma desmoralização”, diz o petista, que ainda tem esperança que as investigações desvendem o que foi feito com 70% do patrimônio nacional privatizados a preços de banana.


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AMÉRICA LATINA ALIANÇA ESTRATÉGICA

Em pauta, a integração do continente da Redação

O

s presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Hugo Chávez (Venezuela) e Néstor Kirchner (Argentina) deram um importante passo à integração. No dia 19 de janeiro, os líderes dos três maiores países da América do Sul se encontraram em Brasília para discutir uma agenda de propostas com o objetivo de estreitar as relações econômicas, sociais e políticas entre as nações. A imprensa comercial tratou de ocultar ou dedicar pouco espaço para o encontro de cúpula, o que não condiz com a amplitude dos assuntos discutidos (veja quadro ao lado) que vão desde acordos energéticos até compromissos em relação à consolidação de parcerias no âmbito da TeleSul, rede de televisão criada por Argentina, Cuba, Venezuela e Uruguai que tem como missão produzir uma visão dos fatos de nosso continente a partir de seus povos. Na declaração final do encontro, os presidentes saudaram ainda a eleição de Evo Morales na Bolívia (leia reportagem na página 12). “Na reunião, falamos da importância dele para a união sul-americana. Queremos que a Bolívia se incorpore ao Mercosul”, revelou Hugo Chávez, cujo país – a Venezuela – teve seu ingresso aprovado no bloco das nações sul-americanas em dezembro de 2005. Segundo Chávez, seu governo estaria trabalhando com Argentina e Brasil para preparar um apoio urgente à Bolívia. A nota oficial também registra que os presidentes “reconheceram a existência de assimetrias entre os países da região”. Em decorrência disso, os líderes defenderam a busca de mecanismos e soluções para fortalecer a integração com base na complementação das economias e na integração das cadeias produ-

Ricardo Stuckert/ ABr

Lula, Chávez e Kirchner reafirmam agenda para aprofundar laços entre os países da América do Sul

Os presidentes Lula, Hugo Chávez e Néstor Kirchner discutem propostas para aprofundar as relações entre as nações, durante o encontro em Brasília

tivas. Além disso, reafirmaram “a necessidade de apoiar a articulação de redes de atores sociais, como mecanismo de integração, por meio de processos de complemntação horizontal para uma verdadeira transformação econômica”. Tais reconhecimentos são uma tentativa de sanar as principais críticas que os campos progressistas fazem ao Mercosul: a de que mantém a lógica do livre-comércio, privilegiando os interesses dos grandes grupos econômicos; e a da ausência de democracia e diálogo com a sociedade civil na tomada de decisão.

ENERGIA A auto-suficiência energética dos países sul-americanos foi um dos temas prioritários no encontro trilateral. O projeto prevê a construção de um gasoduto para aproveitar

o gás natural na geração de energia, que passaria por Venezuela, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Chile, Argentina e, possivelmente, a Colômbia e o Peru. Apesar de não dar maiores detalhes, Chávez afirmou que a empreitada já é uma realidade. A previsão é de que até julho sejam concluídos os estudos aprofundados sobre o projeto. O programa tem um orçamento previsto em torno de 20 bilhões de dólares, que seriam gastos na construção de tubulações que percorreriam mais de oito mil quilômetros da América do Sul para o transporte do gás. O tempo estimado para a conclusão é de seis anos. Cada país ficará encarregado de conseguir as verbas para o custeio das obras em seu território, seja por financiamento governamental ou por acordo com parcerias privadas.

Segundo Chávez, outro tópico que avançou bastante na conversa foi a criação do chamado Banco do Sul, que garantirá financiamento aos países em desenvolvimento, sem que estes tenham que recorrer às instituições neoliberais (veja análise abaixo). O presidente venezuelano veio para o Brasil exclusivamente para esta reunião. Kirchner chegou antes e se encontrou com Lula para discutir a importância de fortalecer os laços entre os países membros do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Em 10 de março, na cidade de Mendoza (Argentina), os presidentes voltarão a se encontrar para discutir os avanços da agenda definida em Brasília. (Informações da Agência Brasil e da Agência Notícias do Planalto)

ANÁLISE

Avança a união sul-americana Beto Almeida A integração sul-americana – causa sempre combatida pelo imperialismo estadunidense e pelas oligarquias nativas – recebeu um forte impulso no dia 19 de janeiro, quando os presidentes Hugo Chávez, Néstor Kirchner e Lula decidiram colocar em marcha três importantes projetos de grande alcance: a construção do gasoduto sul-americano, a formação de um Banco do Sul e a criação de um Conselho de Defesa Sul-Americano. A reação do império, a exemplo do veto dos Estados Unidos à venda de aviões da Embraer para a Venezuela (leia reportagem na página 3), já se faz sentir por uma maior carga de hostilidade aos três governos no noticiário, seguindo uma clara orientação de Washington, já que a grande mídia capitalista nos três países é controlada por capitais estadunidenses ou associados. Entretanto, a reação midiática também revela um certo desconcerto no campo conservador que sempre operou no sentido de que nenhuma cooperação entre os países do sul possa se realizar. Sempre desdenharam, ironizaram as propostas de integração, a defesa da soberania nacional e as reações dos países do sul ao crescente controle e ingerência dos EUA e das transnacionais sobre os países subdesenvolvidos ou semicoloniais. Assim, quando surgem propostas concretas, que são viáveis e que podem de fato representar algum grau de autonomia mais ampla ante as imposições das po-

líticas imperiais – ou, pelo menos, estimular uma resistência a elas –, a reação dos porta-vozes do grande capital oscila entre a ironia e a irritação, já que suas avaliações se revelam equivocadas. Aliás, o que se verifica, inclusive com a vitória de Evo Morales na Bolívia (veja reportagem na página 12). Seu profundo significado é que há um amadurecimento sócio-político das massas exploradas da América Latina que, de algum modo, incidirá para apoiar, consolidar e aprofundar as propostas que estes governos vêm adotando, ainda que com alguma relutância e irregularidade, dando-lhes um sentido antiimperialista cada vez mais evidente. Inclusive, criando contradições internas quando os governos tentam limitar tais políticas aos níveis do mercado e do comércio, combinando-as com outras políticas de submissão ao mesmo imperialismo, como se verifica no caso do governo Lula. Tais acordos com Chávez e Kirchner levam Lula a enfrentar-se com suas próprias políticas.

dentemente, para o grande capital será sempre extravagante que os países atuem com independência das garras financeiras do Fundo Monetário Internacional (FMI) e, por exemplo, depositem suas reservas, não no sistema financeiro dos EUA, mas num Banco do Sul – uma ação associada dos Estados, com capacidade para financiar os projetos mais importantes da região para ajudar os países mais pobres e, sobretudo, para fazer com que a integração adquira seu aspecto fundamental, uma integração social, combatendo a fome, as doenças sociais, o analfabetismo, o desemprego, a favelização desvairada, como reivindica o presidente Chávez em todos os fóruns.

A reação do império já se faz sentir por uma maior carga no noticiário contra esses três governos

INDEPENDÊNCIA ASSISTIDA O curioso é que o grande capital até admite o gasoduto de quase dez mil quilômetros e estimado em 20 bilhões de dólares, porque sempre imagina que a energia será adaptada ao funcionamento normal do sistema capitalista. Porém, quanto às duas outras propostas, a da criação do Banco do Sul e do Conselho de Defesa Sul-Americano, as críticas são ferozes, taxadas de propostas extravagantes, mirabolantes e desnecessárias. Evi-

Quanto à criação de um Conselho de Defesa Sul-Americano, que inclui ações para fortalecer e integrar as indústrias militares dos três países programando sua produção de modo complementar, isto abre um imenso campo para o desenvolvimento de um nacionalismo revolucionário que envolva os militares dos países da região, como já se verifica no amadurecimento político dos militares venezuelanos. Além disso, da mesma forma

Agenda Resoluções definidas pelo encontro dos presidentes de Argentina, Brasil e Venezuela

ENERGIA E PETRÓLEO

• Convocar a 1ª Reunião do

Conselho Ministerial da Petrosul (aliança regional no segmento do petróleo).

• Encomendar estudos para

a interconexão gasífera sulamericana, incluindo outras nações interessadas.

ÁREA SOCIAL

• Convocar nova reunião para

avaliar, no primeiro trimestre de 2006, iniciativas na área social, com atenção prioritária para a erradicação do analfabetismo.

UNIVERSIDADE DO SUL

que o imperialismo vem expandindo sua produção armamentista, repete intervenções em vários cantos do mundo, espalhando bases militares pela América Latina, onde já existem 22. Nada mais justificável que uma reação programada e coordenada dos países ameaçados, especialmente estes três, possuidores de significativos estoques de riqueza mineral e de estrutura produtiva, com capacidade para sustentar um projeto alternativo de desenvolvimento na modalidade de uma federação de países.

FRENTE ANTIIMPERIALISTA A reunião entre Chávez, Kirchner e Lula é indicativa de um potencial existente na América Latina, aprofundado com as vitórias do povo da Bolívia e do Chile, com a possível vitória popular nas eleições de abril no Peru, para que estes governos se organizem em torno de uma ampla frente antiimperialista mundial, buscando coordenar ações também com outros países, de outros continentes, mas sempre no sentido de priorizar o atendimento das necessidades mais urgentes das massas pobres. Estas condições existem, mas requerem uma maior organização dos movimentos sociais, a participação dos sindicatos, dos intelectuais, dos militares nacionalistas, na discussão e formulação de um projeto alternativo ao neoliberalismo. Há condições para avançar, mas é indispensável que governos e direções não frustrem as aspirações populares. Beto Almeida é jornalista

• Encomendar a elaboração

de um programa de cooperação na área educacional, científica e tecnológica, assim como o exame de formas para estimular a mobilidade de estudantes universitários e pesquisadores entre os três países.

TELESUL

• Determinar estreita coopera-

ção entre a TeleSul e a TVBrasil com vistas ao intercâmbio de conteúdo para melhor conhecimento e divulgação da realidade política, econômica e social da América do Sul entre os povos da região.

ECONOMIA E FAZENDA

• Convocar nova reunião para

avançar na consideração de questões relativas à cooperação financeira, participação nos foros financeiros regionais e internacionais, e financiamento de projetos de integração da infra-estrutura física da América do Sul, inclusive a proposta de um Banco do Sul.

• Solicitar aos presidentes dos

Bancos Centrais que passem a realizar reuniões semestrais para aprofundar a discussão de temas relativos à política monetária, operações de mercado aberto e desenvolvimento de mercados de crédito domésticos que favoreçam especialmente pequenas e médias empresas.


Ano 4 • número 152 • De 26 de janeiro a 1º de fevereiro de 2006 – 9

SEGUNDO CADERNO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL 2006

Em cena, a agenda dos movimentos sociais P

ara quem vai ao Fórum Social Mundial (FSM), a marcha de abertura é sempre um dos momentos mais aguardados. Trata-se da oportunidade de caminhar, lado a lado, com lutadores de causas e lugares dos mais variados. Não foi diferente em Caracas, Venezuela, onde, no dia 24 de janeiro, a segunda das três edições do 6º FSM teve início. A primeira terminou no dia 23 em Bamako, Mali, e a última deve ocorrer dentro de dois meses, em Karachi, Paquistão. Na marcha, a delegação das trabalhadores têxteis do Chile era um dos grupos mais animados. Como se estivessem em um estádio de futebol, não pararam de cantar durante todo o trajeto, das músicas mais lúdicas até as que denunciavam o modelo econômico e os privilégios dos empresários. Uma das marchantes mais animadas era Patricia Coñoman. Ela esclarece que a música é uma tradição da esquerda chilena, mas mostra que também sabe falar sério: “Viemos a Caracas porque se não sairmos pelo mundo e, especialmente, pela América Latina defendendo nossas bandeiras, as transnacionais farão isso em prejuízo dos nossos povos. É necessário promover uma contra-ofensiva ao avanço das política neoliberais”, indica Patricia. A ativista conta que a principal luta da sua organização é por melhor salários, principalmente para as mulheres. Patricia explica que o Chile real não é aquele dos resultados macroeconômicos projetados pela imprensa internacional. “A péssima distribuição de renda impede que o desempenho da economia melhore a vida das pessoas. Assim, a população sofre com a pobreza e a fome”, revela. A chilena admite estar contente com a vitória de uma mulher nas eleições presidenciais, mas tem poucas expectativas com relação ao novo governo. Ela acredita que Michelle Bachelet – eleita pelo Partido Socialista (PS) no dia 15 de janeiro – não vai mudar a política de seu antecessor Ricardo Lagos, também do PS. “Dificilmente alguma coisa vai mudar se a Constituição não for refeita”, protesta, referindo às leis em vigor desde que o ditador Augusto Pinochet exerceu um regime sanguinário no Chile entre 1973 e 1990.

Caracas, uma cidade entre altos e baixos

CUT desfila ao lado de outros movimentos sociais de todo o mundo, na abertura do FSM 2006

Contudo, engana-se quem pensa que a complicada conjuntura esfria os ânimos de Molina. O governo não dialoga, mas ele tem na ponta da língua uma agenda paralela para o país, desenvolvida em conjunto

pelos movimentos sociais salvadorenhos. “Precisamos de uma política de geração de empregos, mas empregos decentes; investimentos na educação para formar melhores acadêmicos e profissionais; um

Wesley Santos/AE

Luís Brasilino enviado especial a Caracas (Venezuela)

Cláudio Silva/Agência Brasil de

Marcha de abertura do FSM toma Caracas e reafirma a luta dos povos contra o imperialismo e o neoliberalismo

DIVERSIDADE O antineoliberalismo e o antiimperialismo devem permear as discussões

A revolução que está nas ruas Tatiana Merlino enviada especial a Caracas (Venezuela) Os olhos negros do jovem Samuel Prieto brilham quando ele fala do processo revolucionário que seu país está vivendo. Sorrindo, o soldado do Exército de 21 anos conta que, no dia da marcha de abertura do Fórum Social Mundial, 24 de janeiro, já conheceu pessoas de vários países, como Cuba, Peru, El Salvador “e agora do Brasil” – diz olhando para o meu crachá. Diferentemente da imagem séria que se espera de um soldado, curiosos, outros jovens militares juntam-se a Samuel e falam, entusiasmados, “do progresso que estamos vivenciando aqui”. Próximo aos soldados, pessoas passeiam pela Avenida Bolívar, no centro da capital venezuelana, fechada especialmente para o Fórum. Num palco montado nessa avenida, grupos musicais se apresentam

Luís Brasilino

A animação dos chilenos contrastava com a seriedade do grupo palestino. Daher Mansur, secretário da federação palestina da Venezuela, intitula seu povo como “o mais oprimido do mundo, mesmo tendo o apoio da maior parte dos povos”. Sobre o grave derrame sofrido por Ariel Sharon, primeiro-ministro israelense que foi substituído do cargo no dia 4 de janeiro, Mansur é seco: “Lamentavelmente, Sharon está morrendo na cama. Ele deveria estar atrás das grades. Isso só não ocorreu porque o mundo encontrase numa profunda crise moral”. A sisudez de Mansur podia ser facilmente reconhecida no rosto de Carlos Molina, sindicalista de El Salvador, país onde a pobreza atinge 80% da população. “Há mais de 15 anos, somos governados por uma ditadura de extrema-direita, joguete dos interesses dos Estados Unidos”, denuncia. Segundo Molina, a situação da população pobre de seu país pode piorar ainda mais a partir de março. Em outubro de 2005, El Salvador recebeu o infeliz título de primeiro país a assinar um Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos. O acordo só deve ser implementado dentro de dois meses. “Os pequenos produtores serão arrasados”, prevê.

ajuste fiscal distributivo; crédito rural; e uma lei trabalhista que seja, de fato, cumprida”, reivindica o salvadorenho. Maria Elena Scequeira, militante da Associação dos Trabalhadores do Campo (ATC) da Nicarágua, conta que a participação de países da América Central cresceu desde a última edição do Fórum e acredita que os principais temas do evento desse ano, como antiimperialismo e antineoliberalismo, vão de encontro com os problemas enfrentados pelos trabalhadores da Nicarágua. “A agenda é a mesma dos movimentos populares”, comemora Maria Elena. O Fórum vai até o dia 29 de janeiro e espera-se que a luta de muitos outros movimentos possam ganhar ressonância e fortalecer-se para os desafios que certamente surgirão.

Caracas é uma metrópole irregular em sua forma de ocupação, habitação e locomoção. O vai-e-vem dos carros antigos e poluentes, entre os inúmeros morros que envolvem a cidade, sufoca os pedestres que se arriscam ao passar pelo sinal vermelho. Por falta de terreno plano, os lares populares se espalham pela cidade materializados em enormes e antigos prédios, muitos deles coloridos. Os morros também são área de escape para a população carente, os chamados “barrios”. Apesar da carência de serviços públicos e da ausência do Estado, estas áreas abrigam na maioria das vezes casas de alvenaria, bem diferentes dos morros de São Paulo ou Rio de Janeiro. Caracas, assim como as demais cidades latino-americanas, é bastante pobre. Ao contrário de São Paulo, onde a população de baixa renda foi expulsa para onde a vista não alcança, é impossível não enxergar algum dos morros que cercam a cidade. Tal como no Rio de Janeiro, são nessas encostas que mora a maioria dos caraquenhos. Essas habitações avançam sobre a estrada que leva a Caracas. Os morros são muito íngrimes e, da estrada, as construções surpreendem pela engenhosidade. Existem casas com cerca de cinco metros de comprimento e, apenas, um metro e meio de largura. Se fossem mais largas, seria impossível se manterem fixas. Nesses “barrios”, o presidente Hugo Chávez leva adiante o processo bolivariano revolucionário. Quem passa pelas largas avenidas não pode imaginar a articulação da base popular que está em curso em torno das missões promovidas pelo governo chavista. Em torno delas, o povo toma consciência de seu protagonismo e de sua importância no processo revolucionário. Toma consciência do seu lugar na resolução dos problemas da cidade e da comunidade. Talvez isto se chame democracia participativa, um aspecto decisivo para o processo revolucionário bolivariano. (LB)

Mesmo quem não conhece as propostas do FSM, acredita na revolução de Chávez

no Festival da Democracia Revolucionária, onde, em seu dia de folga, o caraquenho Antonio Moreno assiste ao espetáculo de salsa. Moreno acredita que o Fórum é “muito importante para fazer intercâmbio de

experiências com países vizinhos”. Camareiro de um hotel no centro da cidade, Moreno acredita que na Venezuela as condições de vida melhoraram especialmente para os pobres. “Somos um exemplo para

outros países que têm muito o que aprender conosco”. Não longe dali, na Praça dos Museus, também no centro da cidade, Marlene Alves vende balas e doces numa barraca, que herdou de sua mãe há quatro anos. Confessa não saber exatamente o que vai acontecer na cidade no período do Fórum, mas acha que a presença de estrangeiros pode ajudá-la a ganhar mais dinheiro no fim do mês. No entanto, ao ser indagada sobre o governo Chávez, ela sorri: “Ele está fazendo uma revolução no país”. Mesmo para uma pessoa que não saiba que o país vive um processo de transformação social, basta caminhar por Caracas para saber que esse processo está nas ruas. Por toda a cidade, slogans expressam o momento que o país vive. Frases como “revolução, um trabalho em equipe”, e “Chávez é o povo” nos muros da cidade não deixam dúvidas do processo que está em curso.


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De 26 de janeiro a 1º de fevereiro de 2006

AMÉRICA LATINA FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Camponeses em luta propõem e protestam Luís Brasilino enviado especial a Caracas (Venezuela)

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Via Campesina chega à capital venezuelana com a clara idéia de que o 6º Fórum Social Mundial (FSM) é um espaço de luta. Segundo os integrantes de diversos movimentos camponeses da América Latina, isso significa protestar e também propor. O nicaragüense Fausto Torres, secretário-geral da Associação de Trabalhadores do Campo (ATC), explica que eventos como o Fórum permitem conhecer diversas estratégias, sensibilizar outras entidades sobre o tema da terra, do território e da soberania alimentar. “Por essa razão é que este é um espaço que nos ajuda. Para poder dividir agendas comuns com outros setores”, completa Torres. Juan Herrero, do Movimento Nacional Campesino e Indígena da Argentina, enfatiza que os movimentos camponeses da América Latina atravessam um período de uma intensa luta, provocada pelos diversos problemas causados pelo neoliberalismo.

MODELO ERRADO O ativista acredita que isto faz do FSM um importante palco para denunciar malefícios como a invasão transgênica em seu país. “A Argentina tem o governo que aceitou mais facilmente as sementes e os produtos transgênicos. Hoje, 100% da nossa soja é geneticamente modificada”. A seu ver, isto acontece devido a um modelo tecnológico que beneficia grandes empresas, sem se preocupar com o meio ambiente ou a vida no campo. “Entre 1990 e 2001, desapareceram 100 mil agricultores familiares, fruto desse modelo econômico baseado na agricultura de exportação”, denuncia. Herrero conta que a Via Campesina lançou uma campanha internacional em defesa da genética crioula. Seu objetivo é resguardar o patrimônio genético dos povos,

Cláudio Silva/Agência Brasil de Fato

Via Campesina chega a Caracas preparada para denunciar neoliberalismo e formular contra-ofensivas

Integrantes de diversos movimentos camponeses fazem do 6º Fórum Social Mundial um espaço de luta contra o imperialismo e os transgênicos

opondo-se ao programa de transnacionais como a estadunidense Monsanto, que fazem fortuna patenteando sementes. Por isso, uma das ações planejadas é fazer manifestações em frente aos prédios daquelas empresas, e denunciar, em suas paredes – com cartazes, cola e tintas – que elas atentam contra a vida dos camponeses e a saúde da população.

MANIFESTAÇÕES Segundo Juan Tiney, da secretaria operativa da Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc) e da direção nacional da Coordenação Nacional Indígena e Campesina (Conic) da Guatemala, a partir de Caracas será organizada a mobilização do 17 de abril, Dia Internacional da Luta Camponesa. Além das ocupações de terra, também haverá inúmeras mani-

festações em defesa da soberania alimentar. “Esta luta se confunde com a da reforma agrária. Primeiro, temos que ser capazes de produzir os alimentos do povo, não permitir que em nossas fronteiras continuem entrando produtos transgênicos”, explica Tiney. O guatemalteco acredita que a reforma agrária implica a ocupação da terra, mas também a participação de todo o povo até a etapa de comercialização dos alimentos. “Por isso, é importante conscientizar a população em geral, principalmente das cidades, onde as pessoas consomem produtos transgênicos, enquanto nós temos produzido alimentos saudáveis”, afirma Tiney. O FSM 2006 também é uma oportunidade para trocar energias e seguir lutando. Para Fausto Torres, a Venezuela tem um governo

muito ativo, bastante de acordo com o que o movimento pensa. “Por um lado, isso facilita as coisas, mas temos que estar atentos. É um momento especial para a Venezuela e também para a América Latina, e com o triunfo de Evo Morales (novo presidente da Bolívia) é um novo despertar da esquerda no continente”, diz o representante da ATC, da Nicarágua. Por isso, reforça, o Fórum é um cenário único para divulgar ainda mais que um outro mundo é, sim, possível.

ENTUSIASMO Já o guatemalteco Tiney acredita que o FSM alimenta os movimentos. “Estamos vivenciando o calor revolucionário das venezuelanas e dos venezuelanos. Já se vê o entusiasmo das pessoas nas ruas. Já se iluminam os rostos. Já se nota um crescimento da aceita-

ção do povo para com as tarefas revolucionárias”, anima-se Tiney, satisfeito com o que considera ser a entrega do poder para o povo. “Todos nós temos um compromisso de escutar esse ator, o povo antes discriminado, e agora protagonista dessa revolução socialista”, observa o guatemalteco. A presença dos movimentos sociais e dos militantes no FSM, em Caracas, também é vista por Juan Herrero, da Argentina, como uma oportunidade de fortalecer a Venezuela no front interno. “O país passa por um período de consolidação de um governo que fez transformações estruturais, e enfrenta uma oposição interna muito forte, financiada e amparada pelos Estados Unidos. Que o FSM dê forças à Venezuela para continuar adiante!”, são os votos de Herrero.

Em 2006, um encontro mais politizado Tatiana Merlino enviada especial a Caracas (Venezuela)

Divulgação

O Fórum Social Mundial deste ano está mais politizado. O crescimento do número de governos progressistas na América Latina nos últimos anos levou para a pauta do FSM a discussão da relação entre movimentos sociais e Estado. A avaliação é do sociólogo e professor da Universidade Central da Venezuela Edgardo Lander que, em entrevista ao Brasil de Fato, afirma que a discussão política de 2006 também será mais intensa, pois o Fórum está sendo realizado na

Quem é O sociólogo Edgardo Lander é professor titular da Universidade Central da Venezuela e integrante do Comitê organizador do Fórum Social Mundial. Publicou, entre outros livros, Modernidade e Universalismo, Pensamento Crítico: um Diálogo InterRegional, Neoliberalismo, Sociedade Civil e Democracia.

Venezuela, “onde a política corresponde exatamente com a prática”. Brasil de Fato – Como o Fórum Social Mundial 2006 pode influenciar a conjuntura política da Venezuela? Edgardo Lander – Creio que há três aspectos importantes. O primeiro, é do ponto de vista das organizações sociais venezuelanas, criadas recentemente, que tem uma experiência internacional muito limitada. Isso é uma limitação, porque aqui há um olhar muito autocentrado sobre o processo político e voltado para a conjuntura imediata. Dessa maneira, há dificuldades de comparação com as lutas de outros povos, o que, com freqüência, leva ao sectarismo e à intolerência. Falta debate sobre a experiência de outras praticas democráticas. Nesse sentido, creio que será muito bom que essas organizações entrem em contato com movimentos de outros países, troquem experiências, conheçam pessoalmente aqueles movimentos e, a partir disso, estabeleçam uma rede de contatos e possam enriquecer o processo social venezuelano. BF – E os demais aspectos? Lander – Outro, vital, é que, de fora da Venezuela, é difícil ter uma visão completa do que acontece no país. Há algumas organizações solidárias à Venezuela, com base numa visão manique-

ísta, pouco analítica. O Fórum vai permitir que essas pessoas tenham um contato mais orgânico e direto com o que acontece no país. Elas terão a oportunidade de falar com os ativistas, com as organizações de base, e poderão ver, de perto, o processo venezuelano, seus problemas e conflitos. Se queremos aprofundar as relações de solidariedade com o povo venezuelano, isso tem que ser feito de maneira transparente, não com apoio incondicional. BF – Só isto? Lander – Não. Em terceiro lugar, também é muito importante que uma gama tão significativa de campanhas e redes conheça a Venezuela com mais profundidade e se sensibilize com a ameaça que a política imperial representa para o país. Assim, acredito que a presença internacional na Venezuela é uma espécie de escudo de proteção à ameaça que o governo Bush representa. BF – Como os participantes do FSM vão sair da Venezuela? O FSM acabará mais politizado? Lander – Quando foi feita a consulta para a elaboração do programa do Fórum, um dos temas que apareceu com mais forca, foi o da política como tal. Por exemplo, qual deve ser a relação dos movimentos na América Latina com os governo de esquerda? Qual é o impacto da crise do governo Lula sobre

os movimentos sociais? Eles devem manter um apoio crítico, ou devem romper com o governo? Quando foram definidos os eixos temáticos do FSM, o primeiro foi a política, a relação entre partido e movimentos, entre movimentos e Estado. E isso não tem a ver só com a Venezuela, mas com um amadurecimento do Fórum, que está crescendo nos debates conceituais. Esse é um Fórum mais político do que o de Porto Alegre. A isso se soma o fato de estar sendo feito na Venezuela, onde a política está culminando expressamente na prática. Aqui, a política será colocada como um tema, de maneira natural, não imposta. BF – Uma das críticas ao Fórum é que há muito debate e, no final, nada é colocado em prática. Lander – Esse é um dos principais debates políticos do FSM. Acho que, se tentarmos impor um ritmo fora da própria dinâmica dos movimentos, o Fórum pode morrer. A questão é que o processo de politização do FSM não é uniforme, não há alguém que fale em nome de tudo isso. Mas a Assembléia Mundial de Movimentos Sociais pode construir uma plataforma e uma declaração única comum. Isso é muito forte, muito importante. Se a campanha contra a Alca conseguir articular seu programa de lutas com a campanha contra a guerra, e a campanha contra os

transgênicos, se os movimentos forem capaz de articular campanhas que tenham elementos comuns de convergência, esse processo está se fortalecendo. Temos de seguir estimulando o processo do FSM, mas ao ritmo dos movimentos, de sua própria dinâmica, e, assim, seguir avançando para surtir efeito sobre o conjunto do Fórum. BF – Como será a discussão sobre o aumento do número de governos de esquerda na América Latina? Lander – No continente, houve mudanças profundas nos últimos tempos. Há seis anos, o panorama político era desolador. Se, de um lado, a política imperial, da guerra e a ameaça militar seguem avançando de maneira muito mais agressiva, por outro, do ponto de vista governamental houve um motor de esquerda. Diante disso, surge uma nova relação dos movimentos com os governos, que não podem seguir atuando como se estivessem lidando com os governos anteriores. Isso não quer dizer que devam entrar para o governo, mas que precisam atuar de outra maneira. Com um governo de direita tem que contê-lo, e num governo com o qual quase se tem empatia, a estratégia é a pressão. Todas essas questões não têm uma solução teórica única, são conjunturais e variam de país a país.


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INTERNACIONAL FÓRUM SOCIAL MUNDIAL

Ativistas pedem revitalização de unidade Joyce Mulama de Bamako (Mali)

Carta Maior

No início da reunião africana, participantes resgatam iniciativa que uniu a luta intergovernamental contra superpotências

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uando começava, dia19 de janeiro, o sexto Fórum Social Mundial (FSM), na capital de Mali, muitos sentiam no ar o espírito da Conferência de Bandung, que em 1955 preparou o terreno para a criação do Movimento dos Não-alinhados (Noal). Na cidade indonésia de Bandung se reuniram, naquela oportunidade, representantes de 29 países da África e da Ásia, preocupados com as tentativas de controle de suas políticas internas pelas superpotências da época – Estados Unidos e União Soviética. Os que participam em Bamako do FSM, conferência anual de organizações da sociedade civil em todo o mundo, que este ano terá três fases, em três capitais distintas, reclamam a reanimação da iniciativa de Bandung. Ativistas consideram que a revitalização do movimento intergovernamental ajudaria a atender às iniqüidades nos países em desenvolvimento, às quais se atribui políticas adotadas pelo Norte industrializado. “Continuamos vivendo formas novas de colonização, pela qual os países em desenvolvimento continuam sofrendo a ditadura dos industrializados”, disse Samir Amin, diretor do Fórum do Terceiro Mundo, rede de centros de estudos da Ásia e da África com sede em Dakar. Amin fez essas declarações durante uma cerimônia em que o FSM comemorou os 50 anos da iniciativa de Bandung, que em 1961 derivou na fundação do Noal. “É injusto que 75% da população mundial esteja sob domínio de um grupo muito pequeno. Enfrentamos um sistema colonial que priva as nações em desenvolvimento do direito de escolher nosso modo de vida”, afirmou Amin. “As privatizações e a liberalização econômica que continuam afligindo o Terceiro Mundo constituem um debate que

Relembrando a Conferência de Bandung, na Indonésia, o Fórum Social Mundial, em Mali, discutiu um novo mundo livre da dominação dos países desenvolvidos

se pode traçar até o espírito de Bandung”, acrescentou. Os Estados representados na conferência de Bandung também procuravam promover a cooperação entre África e Ásia, com vistas a reduzir a dependência das nações ricas.

mental Centro Tricontinental, com sede na Bélgica, considera possível reivindicar o espírito de unidade que prevaleceu em Bandung. “Propomos construir um novo mundo, pôr fim a esta era colonial a que estamos submetidos pela Organização Mundial do Comércio (OMC), pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial”, sentenciou. Houtart considerou que essas instituições “impuseram seus termos, como nos obrigar a privatizar ou criar políticas comerciais injustas”, acrescentou. Os críticos das normas ditadas pela OMC advertem que os países em desenvolvimento são postos em desvantagem ao se ver obrigados a reduzir suas barreiras comerciais mesmo quando a industrialização

RESGATE DE BANDUNG De todo modo, a pressão da Guerra Fria entre Estados Unidos à frente do campo capitalista e a União Soviética liderando o lado comunista minou a eficácia do Noal, cujos membros supostamente neutros se inclinaram para um ou outro grupo. Paradoxalmente, o fim da Guerra Fria também afetou o Movimento, pois o privou de sua razão de ser. François Houtart, diretor-executivo do não-governa-

mantém seus mecanismos de proteção. Ao mesmo tempo, o incentivo às privatizações por parte do FMI e do Banco Mundial deixam serviços básicos, como saúde, educação, eletricidade e água potável, fora do alcance dos mais pobres. “É importante que todos os africanos e asiáticos sejam informados sobre esses assuntos e resistam unidos”, disse o ex-ministro de Turismo de Malí, Aminata Traore. Esses esforços dariam impulso à Aliança Estratégica Asiático-Africana instalada pelos governos na comemoração do cinqüentenário da Conferência de Bandung, no ano passado. Alguns eixos temáticos do FSM policêntrico em Bamako – que este ano acontece simul-

taneamente também em Caracas (Venezuela) e Karachi (Paquistão) são: a guerra, a segurança e a paz, a expansão do liberalismo e o empobrecimento e o apartheid que ocasiona, o direito de fuga e das migrações, a violação dos direitos econômicos, sociais e culturais, e a agressão que sofrem as sociedades camponesas, entre outros. Também será abordada a luta das mulheres, relação entre liberalismo e patriarcado, problemas dos meios de comunicação e informação, destruição dos ecossistemas, direito internacional, a Organização das Nações Unidas, o comércio internacional, dívida externa, avanço da democracia e soberania dos povos. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

PAÍSES DO NORTE

Bia Barbosa de Bamako (Mali) Há dois meses, o jovem Yassouf Sangal voltou para o Mali fugindo da repressão que encontrou no Marrocos. Ao lado de outros colegas, ele tentou atravessar a fronteira e chegar até Ceuta, um enclave espanhol no norte da África. Lá, pretendia conseguir trabalho pra enviar dinheiro para sua família, que vive no interior do país. Sangal ficou seis dias preso no Marrocos. Foi agredido fisicamente pelas autoridades marroquinas e depois expulso de volta para o Mali. “Na prisão, davam somente um pão por dia pra gente comer e não nos deixavam dormir. Mas não queria voltar porque é vergonhoso pra gente chegar em casa com as mãos vazias”, relatou. O Mali tem uma fortíssima tradição de imigração. Enquanto a população do país é de 11 milhões de habitantes, há 6 milhões vivendo fora das fronteiras nacionais. “É cultural que, numa determinada idade, os homens partam para buscar recursos para suas famílias. Eles são obrigados a sair de casa; isso faz parte da vida deles. Não podemos pedir pra essas pessoas ficarem em suas cidades; isso é praticamente impossível. Eles serão imigrantes, não importa onde”, conta Aicha Cissé, que trabalha em uma entidade feminista de Bamako. Nos últimos meses, uma ação violenta do Estado marroquino reacendeu o debate acerca da imigração africana. Cerca de 500 pessoas, que estavam em um campo de refugiados

no Marrocos e decidiram forçar uma passagem na barreira que separa o país dos enclaves de Ceuta e Melilla, foram fortemente reprimidas. Mais de dez africanos morreram assassinados pelos policiais do Marrocos. O governo ordenou então uma expulsão em massa e os imigrantes foram deixados no meio do deserto, de onde tentaram voltar pra casa. Alguns, já tinham saído de seu país de origem há mais de dez anos. Yassouf Sangal é uma dessas pessoas. Hoje, está abrigado com mais 50 compatriotas num terreno ao lado do hipódromo de Bamako – outros ficaram no Marrocos, presos ou internados em hospitais. Sem comida, estão dormindo em cabanas de palha construídas por eles mesmos. Esta semana, no entanto, as cabanas se transformaram em um espaço para os participantes do Fórum Social Mundial (FSM) debaterem os desafios das imigrações no contexto da globalização neoliberal – o assunto é tão corrente na África que um dos eixos de debate da programação do FSM de Bamako trata somente deste assunto.

HISTÓRIA DE VIOLAÇÕES Para simbolizar a divisão entre Europa e África, que impede a livre circulação de pessoas, os repatriados que voltaram do Marrocos estão construindo uma barreira de três metros de altura ao lado das cabanas no hipódromo. O muro original que separa o Marrocos do território espanhol tem, em alguns trechos, seis metros de altura. Os problemas da imigração africana em direção aos países ricos,

Carta Maior

Neoliberalismo endurece políticas de imigração

Repatriados a Mali: dificuldades na África levam à imigração para Europa

no entanto, não são um assunto novo. Em 1996, por exemplo, houve uma grande onda de expulsão de cidadãos do Mali de países como a França e a Arábia Saudita. Até mesmo Estados africanos expulsaram os vizinhos de continente, como aconteceu em Angola. São muito menos um assunto isolado. Há todo um contexto de violações de direitos humanos que estão nas raízes do que provoca as imigrações e no que acontece depois com aqueles que foram atrás de uma vida melhor em outro lugar. “Nossos jovens são obrigados a sair de casa porque o país não oferece condições de sobrevivência”, explica Moussa Tchangari, diretor do grupo Alternatives Niger, que

estuda a relação entre imigração e globalização neoliberal. “A questão da imigração está ligada às políticas impostas aos nossos países há pelo menos 20 anos. Depois que foram aplicadas, o acesso à educação e ao trabalho ficou ainda mais difícil. Sem perspectivas de emprego, sem políticas focalizadas, os jovens são obrigados a ir para o norte procurar seu lugar no mundo”, diz Tchangari. Na opinião de Oumar Mariko, líder do partido Solidariedade Africana pela Democracia, de oposição no Mali, esse tipo de “desenvolvimento” provocado pelo capitalismo neoliberal é ‘ilegal’. “Leva à acumulação de riquezas nos lugares onde os homens vão vender sua

força de trabalho. Gostaríamos de ir para a Europa como os europeus vêm pra cá, para passear, a turismo. Mas para isso precisamos de condições mais igualitárias, precisamos partilhar igualmente as riquezas do mundo. Do contrário, as pessoas farão sempre movimentos em direção à riqueza; será sempre assim”, acredita. Em direção à riqueza, a situação que os imigrantes encontram é outra. As políticas de imigração implementadas, por exemplo, pela Europa, estão longe de fazer o país de destino um lugar de acolhida. Em 1999, a União Européia iniciou um grande programa relacionado às imigrações que passava por monitorar os países estrangeiros e os imigrantes que já estavam na região. Em 2004, um segundo plano foi colocado em prática pela Comissão Européia. Ele aborda pontos como a política de asilo, a política de imigração e a gestão eficaz do fluxo imigratório. “Essa política comum mostra, na verdade, que a Europa não quer se abrir à imigração. O que ela quer é escolher, de acordo com as necessidades das grandes empresas, as pessoas que vão ou não entrar no país. Isso se chama triagem, imigração seletiva”, afirma o francês Emmanuel Blanchard, da organização Migreurop. Ele acredita que a política imigratória em curso na Europa, hoje, tem dois lados: um utilitarista, “resultado do novo imperialismo neoliberal”, e outro repressivo. (Leia a reportagem completa na Agência Carta Maior, www.cartamaior.uol.com.br)


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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA

Após 180 anos, indígena assume o poder “H

oje é um dia de festa, porque ontem foi o último dia de medo na Bolivia!”. Foi com estas palavras que o escritor uruguaio Eduardo Galeano, diante de uma platéia estimada em 100 mil pessoas, saudou a posse de Evo Morales Ayma como presidente da Bolivia. A multidão que tomou conta das praças San Francisco e de Los Heroes, outrora palcos de violentas manifestações como as ocorridas em outubro de 2003 e meados de 2005, protagonizou uma festa sem antecedentes no país, celebrando a posse do primeiro presidente aymará em 180 anos de vida republicana do mais indígena dos países sul-americanos. A inquestionável vitória de Evo Morales, alçado à Presidência após uma surpreendente (mesmo entre os analistas mais otimistas) vitória no primeiro turno da eleição, com 53,7% dos votos, foi recebida pelo país – e inclui-se aí setores da oposição –, como um claro recado por mudanças na política boliviana, o que faz com que o governo Morales assuma em um cenário de nítido otimismo, traduzido por pesquisas de opinião que mostram o apoio de 74% dos bolivianos ao novo governo. O ineditismo da eleição de Morales foi igualmente bem recebido no cenário internacional, com a provável exceção dos Estados Unidos que defendem a erradicação dos plantios de coca. Uma grande

As críticas da esquerda e da direita O cenário extremamente positivo que envolve a posse de Evo Morales, porém, não escondeu o ceticismo existente entre os setores que não o apoiaram tanto à direita quanto à esquerda. Daniel Castro, relações públicas do Comitê Cívico Pró Santa Cruz, entidade empresarial desse departamento (Estado) que reúne a elite econômica do país e que liderou os mais ferozes ataques à candidatura do MAS, declarou-se em expectativa. “É hora de trabalhar pelo país, já se acabou a festa do voto e dos setores indígenas. Agora, os bolivianos esperam o que se fará em matéria econômica, política e social”. Tito Hoz de Vila, senador pelo Podemos, partido do candidato derrotado (o ex-presidente Tuto Quiroga), destacou as palavras do vice Álvaro Garcia, conclamando à unidade nacional. “Esperamos que seja um governo para todo o povo boliviano, sem a ênfase única no indígena”, afirmou. Já as organizações de esquerda que não apoiaram a candidatura do MAS, ainda que expressem orgulho pela eleição de um aymará à Presidência da Bolívia – os aymará e quechuá, duas das principias etnias originárias da Bolivia, representam 55% da população do país – , também se mostraram reticentes quanto ao novo governo. Oscar Coca Untoja, editor do boletim Ayra e um dos principais divulgadores do pensamento aymará, afirmou estar preocupado. “Evo Morales aparentemente fará alianças com setores pouco comprometidos com os movimentos sociais, representantes de uma esquerda tradicional que podem levar ao retorno das forças oligárquicas”, avalia. O jornalista é enfático: “O que o povo deverá vigiar não é como o presidente estará vestido”, referindo-se à polêmica criada entre setores conservadores pelo fato de Evo Morales se recusar a usar gravata na posse, “e sim vigiar para que políticos oportunistas não utilizem o ‘índio’ em seu favor e contra o povo”. (MC)

Posse oficial do presidente boliviano Evo Morales: nas ruas, povo festejava a subida de um aymará ao poder, no mais indígena dos países sul-americanos

quantidade de jornalistas estrangeiros (mais de 1.200 credenciados para a cobertura da posse), além dos principais chefes de Estado do continente, vieram a La paz, numa ceremônia que seguramente entrou para a história do país. A posse teve início no sábado, dia 21 de janeiro, quando Morales recebeu o poder das mãos das autoridades originárias nas ruínas de Tiahuanaco, civilização pré-incaica que habitava o altiplano andino. A cerimônia, que segundo os arqueólogos não se realizava a mais de três séculos, investiu Morales como o

Apu-Mallku, a máxima autoridade originária, governante de todas as nacionalidades do território boliviano. Mais de 20 mil pessoas estiveram presentes nesse ato. No domingo, dia 22, Morales foi empossado constitucionalmente, dando início ao que se definiu como uma nova era para a Bolívia e, talvez, para os povos indígenas de toda a América Latina.

FESTEJO POPULAR As praças de Los Heroes e San Francisco, no centro de La Paz, foram o grande palco de celebra-

ção da posse. Desde as primeiras horas do dia, o local se enchia de representantes da ampla gama de movimentos sociais que compuseram a base de apoio da candidatura do MAS, além de populares das classes médias urbanas que vieram prestar homenagens ao novo mandatário. Eram mineiros, sem-terra, desempregados e pequenos devedores que depositam nesse governo a esperança de novos dias para a Bolívia. Como afirmava Jaime Simón Vicayo, representante dos sindicatos mineiros da província de Caracoles, departamento de La

Paz: “A vitória de Evo Morales é a conclusão de uma luta que iniciamos em outubro de 2003 (renúncia do presidente Gonzalo Sanchez de Lozada na chamada “Guerra do Gás”)”. E concluiu: “Morales já foi pobre e, por isso, saberá governar para os pobres”, resumindo o sentimento latente nas ruas. A festa teve seu ápice nos discursos do novo presidente e do vice, Álvaro Garcia Linera, que reassumiram em público os compromissos pela mudança no país, especialmente na questão da nacionalização dos hidrocarbonetos (gás natural).

“A população já está cansada” Fabio Mallart de El Alto (Bolívia) especial para o Brasil de Fato Os setores populares mais organizados da Bolívia estão depositando as fichas no governo de Evo Morales. Apesar de receber críticas de grupos de esquerda (veja reportagem ao lado), o novo presidente boliviano conta com respaldo dos cocaleros e dos moradores de El Alto, principal reduto rebelde da Bolívia nas proximidades da capital La Paz. Organizado pela Federação de Associações de Bairros (Fejuve, em tradução livre), o povo de El Alto protagonizou mobilizações históricas, como a que definiu a queda do presidente Gonzalo Sanchez de Lozada (em outubro de 2003) e a saída de Carlos Mesa (em 2005). A principal reivindicação da Fejuve é a expulsão da transnacional Suez do país que, desde 1997, monopoliza o fornecimento de água e o saneamento na região, apesar dos péssimos serviços prestados. Os habitantes de El Alto defendem que a transnacional seja substituída por uma empresa pública de cujo controle participem, além do Estado, os conselhos de moradores. Brasil de Fato – A Fejuve teve papel decisivo nas recentes mobilizações do povo boliviano, como na Guerra do Gás (outubro de 2003, queda de Gonzalo Sanchez de Lozada) e nos protestos que resultaram na queda de Carlos Mesa. Como funciona e se organiza a Fejuve? Abel Mamani – A Federação de Associações de Bairros (Fejuve, em tradução livre) de El Alto é uma das instituições mais representativas da Bolívia, tendo capacidade de gerar mobilizações e bloqueios contundentes. Conhecida em nível nacional e internacional, a instituição é composta por conselhos de moradores. Em El Alto, temos cerca de 585 bairros, sendo que cada bairro é representado por um conselho. Estes bairros estão divididos em dez distritos.

Wilson Dias/ABr

Marcelo Câmara de La Paz (Bolívia), especial para o Brasil de Fato

Ricador Stuckert/ABr

Multidão presencia posse de Evo Morales e até mesmo a direita reconhece o clamor nas ruas por mudanças

Morales recebe apoio da população de El Alto, conhecida como reduto de rebeldes

Freqüentemente, realizamos assembléias para discutir e propor soluções para esses distritos, que tambem têm seus representantes, escolhidos a partir de um Congresso. A Fejuve é responsável pelas grandes mobilizações ocorridas nos últimos anos (como as Guerras do Gás e da Água). De certa forma, reconhecemos que os bloqueios prejudicam a economia do país. Porém, são justificados e necessários quando a população tem necessidades básicas que não são atendidas. BF – Qual o perfil dos integrantes da Fejuve? Mamani – A maior força que posso encontrar em qualquer país do mundo, especialmente na Bolívia, são os conselhos de bairro formados por moradores, que conhecem como ninguém as necessidades do local onde vivem. Essa é a principal característica das pessoas que fazem parte da Fejuve, além da luta, porque a grande maioria dos integrantes vem das minas e do campo. BF – Vocês crêem que Evo Morales mudará a Bolívia? Mamani – Pelas propostas que Morales fez ao povo boliviano, acredito que as coisas serão diferentes, principalmente em relação aos recursos naturais bolivianos.

O novo governo tem um grande compromisso com o país. A população já está cansada de ser explorada por grandes empresas estrangeiras. O papel da Fejuve continuará sendo o mesmo, ou seja, vamos defender os direitos da maioria. Ja avisamos ao novo governo que, em 2006, iremos rever o funcionamento da Electropaz, empresa espanhola responsável pelo fornecimento de energia na região. BF – Carlos Mesa havia prometido romper o contrato com a Águas de Illimani, (empresa pertencente à transnacional francesa Suez que controla o fornecimento de água e serviço de saneamento em El Alto). Depois que Mesa caiu, o novo presidente Eduardo Rodriguéz renovou a promessa, mas nada cumpriu. E agora? Mamani – Esperamos a saída da empresa francesa há mais de um ano. Três dias antes das eleições, o governo firmou um contrato com uma empresa boliviana, responsável por fazer uma auditoria na Aguas del Illimani. A intenção é mostrar que o serviço não existe e que a empresa não cumpriu o contrato estabelecido. A auditoria deve durar cerca de três meses. Não sei se a população vai agüentar essa espera. Porém,

em março, vamos saber qual foi o jogo que a empresa francesa fez com a vida dos bolivianos. Em 1997, o governo realizou uma licitação internacional para privatizar o fornecimento de água e tratamento de esgoto das cidades de El Alto e La Paz. Lamentavelmente, tudo ocorreu à revelia da população que até hoje não tem conhecimento do contrato firmado com a francesa Suez. Temos muitas críticas em relação à postura do governo. Os problemas estão nas ruas. Falta por parte das autoridades é querer enxergar as coisas. A empresa polui descaradamente os rios da região, as tarifas são dolarizadas, o serviço é muito ruim, praticamente não existe. Em El Alto e La Paz, há milhares de bolivianos que vivem sem uma gota de água potável. É impressionante, a empresa vem ate o nosso país, monopoliza rios, desrespeita a população e não ocorre nada. BF – Qual o significato de El Alto para a Bolívia? Mamani – A cidade de El Alto tem uma incrível capacidade de mobilização, simplesmente porque somos muito organizados. Aqui, em El Alto, temos problemas somente com alguns empresários da região que constantemente reclamam de nossos bloqueios. Porém, tenho convicção de que eles sabem o que as mobilizações populares significam para o povo boliviano. El Alto é uma cidade que apresenta inúmeras carências. É uma das zonas mais pobres da Bolívia e do mundo. Para se ter uma idéia, mais de 50% do povo alteño está desempregado. Isso é grave e tem que mudar urgentemente.

Quem é Abel Mamani é presidente da Federação de Associações de Bairros (Fejuve, em tradução livre), uma das principais organizações populares da Bolívia.


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NACIONAL UMA PROPOSTA RADICAL

Negociar, sim; radicalizar, também Altemir Tortelli, da Fetraf-Sul, explica, em entrevista, como a entidade vem avançando na luta

A Fetraf surge em flagrante oposição à Contag. O que muda no cenário da agricultura familiar com essa disputa sindical? Altemir Tortelli – Fiz uma aposta nesse processo. Assumi compromisso com a Fetraf-Sul, que unificou treze sindicatos, atuando em 26 municípios. Temos 12 mil sócios. Sou coordenador geral. Assumi há 3 anos, num processo de eleição direta. Este é o modelo que queremos construir para o Brasil. Tenho muita clareza que só vamos mudar a estrutura sindical, o modelo “contaguiano”, se consolidarmos laboratórios que vão servir de referência para o projeto nacional. A Fetraf-Sul está no meio do processo. Unificamos departamentos dos três Estados, e estamos quebrando as barreiras entre eles. Se der certo, é possível fazer para o Brasil também. Construir uma organização que rompa as barreiras do legalismo. E a Contag, o que fará? Tortelli – Na minha avaliação, ela continuará no mesmo lugar em que sempre esteve: perdida. Continuará achando que representa todo mundo. As resoluções da Contag do congresso de um ano atrás são quase as mesmas do congresso de 30 anos atrás. Eles aprovaram que ela é a única entidade que representa os trabalhadores rurais do país. Nesses anos, nasceu o MST, o Movimento dos Trabalhadores Acampados e Assentados, o de Mulheres, dos Atingidos por Barragens, de Pescadores, Indígenas. Nasceram 30 entidades à margem da Contag! A Fetraf é mais um desses movimentos? Tortelli – Estamos nascendo com um tamanho de representação muito menor: 20%, 30%. Só que

Altemir Tortelli tem como foco de luta a agricultura familiar, e sonha com um sistema forte, capaz de enfrentar o agronegócio

hoje, no Sul, sociedade, governos, entidades enxergam na Fetraf-Sul um legítimo representante da agricultura familiar. Por que? Porque nós falamos o dia inteiro em agricultura familiar. Respiramos, organizamos política focada especialmente nisso. Estamos implantando um novo modelo de sindicato, que reivindica, mas intervém no processo produtivo. Não estamos fazendo um mero ajuste no sindicato. Estamos fazendo uma ruptura. E, ao mesmo tempo, não abrimos mão da nossa radicalidade. Nos últimos anos, com a seca no Sul, trancamos todas as rodovias. Houve confronto com as polícias federal e estadual. Temos de ser radicais no momento certo.

combatividade. O MST também é a prova de que a Contag faz um sindicalismo lento, um elefante. É outro modelo de sindicalismo. O MST é sindical também, é reivindicatório. Tem agilidade, habilidade, ousadia nas suas posições, radicalidades para criar crises e forçar situações. Que é o que a Contag não consegue fazer. A Contag tem mais ocupações, mais assentamentos do que o MST. Mas a sociedade sabe que existe a Contag? Que existem assentamentos da Contag? Nossa relação com o MST é de respeito, de solidariedade. Mas temos as nossas posições. O MST faz uma política de alianças que acho muito complicada, meio hegemonista.

sistema muito poderoso, capaz de enfrentar o agronegócio de igual para igual. Vou dar toda a minha vida para construir isso. Imagino um sindicato com muita força política, envolvimento com a base, capacidade de mobilização, porque estou convencido que não haverá mudanças estruturais sem muito poder de mobilização, muito enfrentamento de rua.

Como é isso? Tortelli – Tem de ter capacidade de diálogo e negociação, formulação de política. Quando senta à mesa para negociar, tem cacife, tem respaldo técnico para sentar com governo, empresários, qualquer setor. Temos centro de pesquisa, o Deser, escola de formação de militantes, um conjunto de cooperativas. Estamos formando centenas de milhares de novos quadros, para o embate com o agronegócio.

Hegemonista como? Tortelli – A forma como eles implantaram a Via Campesina no Brasil. Agruparam muitos movimentos pequenos, sob o seu comando. Temos algumas divergências nas estratégias, na concepção de formação que eles têm. No fundo, são visões ideológicas. Por exemplo, organização econômica das entidades. Para eles é questão tática, para nós é estratégico, é poder. Mas temos clareza que não vamos realizar associações, empresas e nos confundir com as empresas tradicionais, capitalistas.

Mas vocês atuam junto com o MST, não? Tortelli – Atuamos juntos em várias frentes: Fórum Nacional pela Reforma Agrária, Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), Rede de Apoio no Mercosul, Fórum Brasileiro contra Transgênicos (há Fetags do Rio Grande que são a favor!), Coordenação de Agroecologia. Nossa relação vai continuar sendo de respeito. Temos nossos próprios posicionamentos, leituras de conjuntura, relações internacionais.

A Contag já se manifestou sobre isso? Tortelli – Acho que a Contag ignora tudo isso. Mas, na minha avaliação, à medida que os agricultores começarem a enxergar isso, vai ser como rastilho de pólvora, como está acontecendo no Sul. Só para ter uma noção: nascemos em dez microrregiões, hoje estamos em 22. Só no Rio Grande do Sul, estamos projetando atuar em mais dez.

As resoluções da Contag de um ano atrás são quase as mesmas de 30 anos atrás Onde o MST entra nisso? Qual a relação entre MST e Contag, e vocês e o MST? Tortelli – Milito no movimento sindical desde 1984. Fizemos muita luta em conjunto. Nascemos no mesmo berço. O sindicalismo cutista saiu do mesmo berço da Igreja e de algumas ONGs que tinham relação com a Igreja. O MST se afirmou como ator de representação numa luta importante. E é reconhecido pela sociedade, pelos governos, em nível internacional. Sua estratégia é correta, porque não é pela quantidade que se ganha espaço, respeito. É pela ousadia, garra,

E como será esta organização econômica? Tortelli – Há dez, doze anos, estamos formulando uma estratégia econômica, porque é muito grande o risco de reproduzir o modelo oficial de cooperativismo, de agroindústria. De formar dirigentes que tenham uma visão política hoje, uma capacitação técnica, associativa, e amanhã assimilem outras leituras do modelo oficial. É uma diferença entre nós e o MST. Para nós, para uma cooperativa dar certo, ter resultado econômico, não pode ser só para arrumar dinheiro para o movimento, para ação política, para mobilização. É isso também. Achamos que os resultados têm de ser solidários com quem não tem ainda. Com o sindicato, com a luta, com a mobilização, para que mais pessoas, mais agricultores tenham acesso a essa conquista. Mas não podemos trabalhar com a lógica de que é mero espaço tático para atingir as lutas. Afinal, qual é o modelo que vocês propõem? Tortelli – Eu sonho que um dia teremos um modelo não-tradicional de planejamento produtivo, que os agricultores sejam donos do processo. É isso que estamos tentando implementar na prática. Sonho que um dia teremos um

Sonho que um dia teremos um sistema capaz de enfrentar o agronegócio de igual para igual

Como são estas relações internacionais? Tortelli – Não vejo a curto prazo possibilidade de nos filiarmos a uma mesma internacional. Há duas grandes centrais. A Federação Internacional dos Produtores Agrícolas (Fipa), e a Via Campesina. A Fipa é representada no Brasil pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a Via Campesina, pelo MST. Nós decidimos debater, ter liberdade de dialogar com todos. Na Europa, a Fipa também está ligada aos patrões ? Tortelli – A Fipa tem uma história de mais de 100 anos. Todos os sindicatos – de centro, esquerda e direita – eram ligados à organização. Há uns 12 anos se criou a Via Campesina. Aqui, teve todo um debate conduzido pelo MST. É uma organização de esquerda, mas jovem. Estamos numa fase de construção, afirmação. Não vamos vender nossos princípios, nossas posições por relações privilegiadas, por apoios a projetos de cooperação. Há muito disso. Você se filia à minha entidade e eu te consigo 1 milhão de euros para os próximos cinco anos. Esse não é o caminho, não nos move. Os R$ 9 bilhões previstos para a safra 2005/2006 não atendem

Como assim? Tortelli – Hoje, o Pronaf é política de crédito. O governo tem poder e poderia condicionar o crédito a um conjunto de outros compromissos do agricultor: além do dinheiro para custeio e investimento, também um projeto de desenvolvimento, calcado em várias políticas complementares. O governo não teve coragem, ou capacidade, de fazer esse tipo de debate. Aumentando a quantia de recursos sem outras políticas, estamos simplesmente reproduzindo o modelo tradicional. O que falta ao Pronaf? Tortelli – O governo tem de compreender que o Pronaf tem de estar associado ao seguro, que avançou; à assistência técnica, que até hoje só teve mudanças paliativas, não houve mudança nos recursos ou na qualificação da política. Se não estiver inserido em um projeto de desenvolvimento, apoiado na educação, para formar o próprio agricultor, e numa política de garantia de renda para o agricultor... E quanto ao PAA? Tortelli – O Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar é outra grande contradição. É um projeto fantástico, que pode fazer a ponte real entre quem produz comida e quem é beneficiado por programa social. Poderíamos fazer uma aliança. Se o recurso que o beneficiado do Fome Zero recebesse fosse comida que viesse da agricultura familiar, seria uma ponte fenomenal. O problema é que eu dou R$ 9 bilhões aqui, e este companheiro vai ao supermercado comprar da transnacional. E temos 4 milhões de famílias que produzem comida e muitas vezes não têm clientes! Não consegui convencer o presidente Lula e o Rossetto a considerar essa potencialidade estratégica. O Plano de Aquisição é uma vergonha. Tu tens R$ 18 bilhões para crédito agrícola que são devolvidos. E R$ 400 milhões para o PAA... A íntegra desta entrevista encontra-se na página da internet da Agência Reporter Social – www.reportersocial.com.br

Arquivo Fetraf-Sul/CUT

O

gaúcho Altemir Antônio Tortelli não é um nome muito conhecido da mídia do Sudeste, como João Pedro Stedile. Mas está para a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), lançada no fim de novembro com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como Stedile para o MST. E seu discurso, em muitos aspectos, é ainda mais radical. A Fetraf surge para “romper as barreiras do legalismo”, afirma Tortelli, defensor de um novo sindicalismo. “Não haverá mudanças estruturais sem muito enfrentamento de rua”, argumenta. Um dos enfrentamentos ocorreu durante a seca no Rio Grande do Sul, em 2004, quando os agricultores familiares fecharam as estradas e acabaram conseguindo a criação do Seguro da Agricultura Familiar. Agricultor de Erechim (RS), onde produz leite, pretende cultivar vinhos e um trio composto por ovelhas, erva-mate e madeira, Tortelli foi secretário da Central Única dos Trabalhadores (CUT), fundou o PT em sua cidade e tem em Lula um velho conhecido. Ele circulava para cima e para baixo com o então candidato a presidente da República, na Caravana da Agricultura Familiar, no início da década. Em cada comício, cada cidade, cada evento, Lula o elogiava. Eleito presidente, Lula convidou Tortelli para o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, mas o amigo declinou. Preferiu a trincheira. Espécie de “presidente de fato” da Fetraf, hoje presidida pela baiana Elisângela Araújo, ele dispara também contra o governo, ainda que preservando o ministro Miguel Rossetto. Abaixo, a entrevista dada à Agência Repórter Social.

às necessidades da agricultura familiar? Tortelli – É inegável que esses recursos são importantíssimos. Foram executados R$ 6,2 bilhões no ano passado, em dois anos triplicaram. Não sei se vão executar R$ 9 bilhões, mas se chegar a R$ 8 bilhões, o aumento é significativo. Entretanto, o governo está tendo dificuldade de transformar o Pronaf numa política de desenvolvimento.

Arquivo Brasil de Fato

Alceu Luís Castilho de Brasília (DF)

Quem é Altemir Tortelli, 41 anos, é coordenador-geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar na Região Sul (Fetraf-Sul/CUT) e coordenador-adjunto para a Região Sul da Fetraf-Brasil/CUT. Já foi secretário de Formação e vicepresidente da CUT Nacional.


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De 26 de janeiro a 1º de fevereiro de 2006

DEBATE NEOLIBERALISMO

Gilberto Maringoni É muito difícil traçarmos cenários pós-neoliberais sem nos referirmos às experiências concretas de tentativas de superação do neoliberalismo. Para nós, da América Latina, essas experiências envolvem a reflexão sobre dinâmicas até agora positivas, como é o caso da Venezuela, sob a direção do presidente Hugo Chávez, e o exame das insuficiências, cujo caso mais extremo acontece no Brasil, após a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência da República. 2. Mas, para além disso, é urgente aprofundarmos nossa análise sobre o que é exatamente o neoliberalismo e como este se insere na história recente do capitalismo mundial. Só assim poderemos tentar iluminar o que seria um mundo vagamente vislumbrado como “pós-neoliberal”. 3. Para a esquerda, a crise que se abateu recentemente sobre o governo Lula e o PT não se dá especialmente por conta das denúncias de corrupção – que precisam ser apuradas e seus responsáveis punidos – mas por evidenciar a inviabilidade da idéia de se conciliar os interesses da maioria da população com os ditames do capital financeiro e do “mercado”. Se dá pela adesão acrítica ao neoliberalismo por parte de um importante setor do movimento popular brasileiro, construido ao longo dos últimos 25 anos. 4. A chegada de Lula à Presidência foi vista, em nosso país e em várias partes do mundo, como uma estimulante tentativa de se iniciar a superação do período neoliberal, projeto condenado pelo voto popular de maneira eloqüente nas eleições de 2002. 5. Qual era o projeto político e econômico do PT e de Lula ao chegar ao poder? É difícil dizer. Houve uma intensa luta interna entre a direita e a esquerda do partido ao longo dos anos 1990. Venceu o setor mais à direita, chefiado por Lula, com um programa reformista e impreciso para a realidade brasileira. Acenava com mudanças para a população, ao mesmo tempo em que garantia continuísmo para os chamados “mercados”.

Maringoni

Cenários pós-neoliberais 1.

O neoliberalismo na arena econômica não corresponde a nenhum desvio, mas é a própria essência da expansão e da dinâmica do capitalismo 6. Para um representane qualificado do governo Lula, o atual presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e ex-ministro do Planejamento, o economista Guido Mantega, a gestão deveria seguir a seguinte linha: “Buscamos o capitalismo mais eficiente, mas humanizado. Não um capitalismo selvagem, com concentração de renda” (revista Exame, 21/11/2002). Ao que parece, Mantega desejava estabelecer no Brasil algo aparentado a um projeto social-democrata, como o vigente na Europa do pósguerra. No entanto, não havia, por parte do governo petista, nenhuma formulação muito clara nesse sentido. 7. Como o governo nunca se assumiu como socialista, é bem possível, pela trajetória do PT dos últimos anos, que o projeto pensado tenha sido o de um reformis-

mo de viés social-democrata, de se “humanizar” o capitalismo.

É urgente aprofundarmos nossa análise sobre o que é exatamente o neoliberalismo e como este se insere na história recente do capitalismo mundial 8. Implícita, neste tipo de teorização, de “humanização do capitalismo”, está a idéia de que o neoliberalismo, com suas práticas de desregulamentação, redução do papel do Estado, retirada de direitos dos trabalhadores, privatização de empresas e serviços públicos, financeirização da economia, etc., etc., seria uma anomalia no desenvolvimento capitalista. Um capitalismo “mau”. Teríamos, em oposição, um capitalismo virtuoso, que possibilitaria o crescimento econômico, a geração de empregos, investimentos e distribuição de renda. Um capitalismo “bom”. 9. De repente, este sistema tomaria um atalho em seu desenvolvimento e descambaria no mau caminho do neoliberalismo. A tarefa atual das forças progressistas, socialistas e de esquerda – uma vez que o socialismo não passaria de uma ficção – seria o de domesticar este monstro e fazê-lo voltar à sua rota civilizada. Ou “humana”. Ou “boa”. 10. Desnecessário dizer que tal caracteristica, ou percurso, não existe em nenhum exemplo concreto no mundo. O neoliberalismo na arena econômica não corresponde a nenhum desvio, mas é a própria essência da expansão e da dinâmica do capitalismo. 11. Após o primeiro choque do petróleo (1973), embora a economia mundial continuasse a crescer e os lucros aumentassem, as taxas de expansão e de lucro começaram a cair de forma nítida. Ou seja, o crescimento passou a declinar. 12. Começaram a ganhar relevância, então, as formulações dos economistas neoliberais – cuja maior expressão foi o austríaco Friedrich von Hayek – de fazer com que o sistema se livrasse de vários custos embutidos em seu funcionamento. As vitórias de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, como é sabido, aliadas à derrota dos países do Leste Europeu, deram legitimidade política a essa orientação, a partir de 1980. 13. Estes custos eram uma série de direitos sociais e trabalhistas, existentes em alguns – poucos – países da Europa Ocidental. Além disso, seria necessário que o capital privado pudesse se

apoderar de tarefas, serviços e empreendimentos antes característicos do Estado, na tentativa de retomar suas taxas de lucro. Com a visão da perda de dinamismo no horizonte e com a derrocada do que seria seu oponente estratégico – as economias de tipo soviético – as transformações neoliberais ganharam legitimidade e foram operadas em diversos países no curto espaço de duas décadas. Assim, o neoliberalismo é o próprio capitalismo contemporâneo. Combater aquele, de forma radical, equivale a questionar este. 14. Muitos vêem a retomada do Estado do Bem-Estar Social, ou políticas desenvolvimentistas de matriz keynesiana como um caminho de superação do neoliberalismo. Vamos nos deter um pouco nisso. 15. Quais eram os propósitos dos partidos social-democratas nos períodos em que tinham força e respeitabilidade? Em síntese eram reformar o capitalismo, sem romper com ele, incorporando benefícios trabalhistas e sociais aos custos permanentes do sistema, construindo sociedades mais equânimes. Em outras palavras, era trocar a bandeira do fim da propriedade privada dos meios de produção pela democracia, pelo acesso à educação, saúde, cultura e lazer. 16. Essas políticas só foram viáveis num período histórico em que a economia norte-americana praticamente quebrou, com a crise de 1929, em que a Europa e parte da Ásia foram destroçadas por dois conflitos mundiais e em que uma profunda revolução social ocorreu na Rússia. Para tentar debelar as causas das crises cíclicas do capitalismo, percebeu-se que não se poderia deixar o sistema funcionar baseado apenas no livre jogo das forças de mercado. Para salvar o próprio sistema, foi preciso que o Estado entrasse em cena como poderoso planejador e indutor do desenvolvimento econômico, jogando por terra as práticas da economia liberal da segunda metade do século 19.

Qualquer saída popular, pela esquerda, só será possível se o conjunto de reformas tentadas tiver como norte a perspectiva anticapitalista 17. Houve uma “humanização do capitalismo” (ainda que considerada tímida por alguns) quando praticamente não restavam opções à sua própria

sobrevivência em vários países e quando havia uma real ameaça a ele por parte da ex-URSS, dos partidos comunistas no próprio mundo capitalista e da força dos movimentos de trabalhadores. Apesar do keynesianismo e a social-democracia serem fenômenos distintos, houve convergência entre eles, especialmente após a 2ª Guerra Mundial.

O neoliberalismo é o próprio capitalismo contemporâneo. Combater aquele, de forma radical, equivale a questionar este 18. Quando este ciclo chegou ao fim, por força de diversas causas, os excedentes minguaram, o ímpeto dos movimentos sociais arrefeceu e o que se vê, desde então, é um avanço de políticas econômicas restritivas nesses países. 19. A social-democracia clássica é, pois, um fenômeno histórico – que obteve sucesso devido a determinadas condições da sua época. Os partidos social-democratas atuais só mantêm a grife dos “anos dourados do capitalismo”. Implementam políticas de restrição fiscal e monetária, de privatizações e de favorecimento do capital financeiro. Deixaram para trás os objetivos do pleno emprego, da consolidação de uma rede de amparo social aos trabalhadores e da distribuição da renda e da riqueza. Assim, a social-democracia real não se constitui em alternativa consistente ao neoliberalismo. 20. A experiência petista no Brasil possivelmente representa a adesão do último partido socialdemocrata do mundo a aderir ao neoliberalismo. Isso, apesar do PT sempre tenha dito não ser nem comunista e nem social-democrata, mas um partido “pós-comunista” e “pós-social-democrata”. 21. A conjuntura atual é extremamente diferente daquela da primeira metade do século 20. Vivemos uma grave crise internacional e uma supremacia imperial nunca verificada, que possibilita uma expansão do comércio e das financas mundiais. No entanto, o sistema mostra-se cada vez mais instável, como mostraram as sucessivas crises dos anos 1990. 22. Mesmo para se começar a sair do neoliberalismo – e, inclusive, permitir um debate mais aberto sobre alternativas – é preciso resistir. É preciso começar a mudar tomando medidas que transfiram poder, renda e a riqueza dos setores capitalistas para os trabalhadores e setores médios.

23. Há, evidentemente, saídas pela direita. Algumas podem até ser vislumbradas. É possível aprofundar o ajuste fiscal até a quebra de países inteiros, como a Argentina, até 2002. 24. Qualquer saída popular, pela esquerda, só será possível se o conjunto de reformas tentadas tiver como norte a perspectiva anticapitalista. Assim, mesmo reformas localizadas deverão obrigatoriamente estar articuladas a essa visão anticapitalista. Pontos como a regulação do sistema financeiro, o controle do câmbio, a definição do caráter público do Estado, uma profunda auditoria no processo das privatizações dos anos 1990, a reforma agrária, etc., deverão estar sincronizadas com aquela perspectiva. 25. Por seu caráter sistêmico, não existem saídas setoriais ou parciais ao neoliberalismo. Mesmo medidas específicas – sobre as questões do endividamento, privatização, reforma agrária, etc. – só terão potencial estruturante se tiverem um nítido viés anticapitalista. 26. Mesmo sabendo que o socialismo não está na ordem do dia na imensa maioria dos países e que a correlação de forças internacional é muito adversa para os setores populares, e necessário colocar na pauta política imediata o debate sobre o socialismo. Por mais que isso seja visto como um delírio, especialmente nos países centrais e na Europa, este debate precisa ressurgir no âmbito das iniciativas antiglobalização, em particular no âmbito do Fórum Social Mundial. 27. Possivelmente o Fórum Social Mundial de Caracas representará uma novidade dentro da excessiva fragmentação vista nas edições anteriores. O caráter nitidamente antiimperialista do governo Chávez contribuirá para isso. 28. O governo de Lula tem mostrado dramaticamente, a nós brasileiros, o elevado custo da capitulação e da adesão ao neoliberalismo por parte da esquerda. Lula pode até se reeleger, mas não deixará marcas na consciência popular. Chávez, ao contrário, que iniciou seu governo sem um projeto político e econômico claro, avança para a esquerda, evidenciando ser possível apontar um rumo para a saída do neoliberalismo e anuncia sua adesão a uma diretriz socializante. Vale frisar que, apesar disso, este rumo não está claro. E não está claro não por conta de insuficiências teóricas, mas por conta do não amadurecimento das condições concretas para esta definição.

Vivemos uma grave crise internacional e uma supremacia imperial nunca verificada, que possibilita uma expansão do comércio e das finanças mundiais 29. O caminho de saída do neoliberalismo precisa assim ser construído com os movimentos sociais, partidos, governo e por todos aqueles ativistas que lutam por outro mundo possível. Esta diretriz vem a ser também um rumo de saída do capitalismo, rumo ao socialismo. Por mais fora de moda que este termo possa parecer. Gilberto Maringoni é jornalista e historiador


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agenda@brasildefato.com.br

AGENDA GUERRA E CINEMA Em um momento em que as imagens bélicas aparecem quase diariamente nos meios de comunicação, a editora Boitempo lança o livro Guerra e Cinema, de Paulo Virilio, que traça um panorama da evolução histórica do cinema e da arte militar no século 20, com ênfase nas duas grandes guerras mundiais e na Guerra Fria. Virilio aborda temas como o aprimoramento da técnica cinematográfica para reconhecimento das áreas de combate, e as relações entre a indústria audiovisual e a indústria bélica. A obra faz parte da coleção Estado de Sítio, coordenada pelo filósofo Paulo Arantes. O livro tem 208 páginas e custa R$ 33. Mais informações: www.boitempoeditorial.com.br

NACIONAL

tuba, em Itapeva, região sudeste de São Paulo, estão promovendo um encontro de viola caipira. O evento tem apoio das secretarias de Cultura das cidades de Bom Sucesso, Itapeva e Itaberá, em continuidade ao projeto cultural desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Local: Agrovila III, Copava, Itapeva Mais informações: (15) 3572-8055

Divulgação

LIVRO

CURSINHO POPULAR Inscrições até 12 de fevereiro As aulas da turma do superextensivo estão previstas para começar em janeiro. A taxa de matrícula é de R$ 50 e as mensalidades variam entre R$ 100 e R$ 130. O cursinho oferece horários matutinos, vespertinos e noturnos. Há inscrições para bolsas de estudo. Local: Rua da Consolação, 1909, São Paulo Mais informações: (11) 3258-1436, 3231-0692 www.cursinhopopular.com.br

CEARÁ ARTICULAÇÃO PARA O GRITO DOS EXCLUÍDOS 2006 28 de janeiro, 8h30 A 12ª Manifestação do Grito dos Excluídos terá a primeira reunião de articulação para a escolha da nova coordenação e discussão das Assembléias Populares. Essas assembléias constituem um movimento nacional que tem como objetivo proporcionar uma nova forma de democracia direta. O Grito dos Excluídos e as Assembléias Populares estão unindo suas bandeiras desde outubro de 2005. Local: Av. Dom Manoel, 3, sala 1 do Seminário da Prainha, Fortaleza Mais informações: (85) 3251-1622, (85) 9972-3021 edjairmorais@yahoo.com.br INTERNET – OVERMUNDO Criada pelo sociólogo Hermano Vianna, a página de internet Overmundo abriga artigos, músicas, vídeos e agendas culturais de todo o país. Está aberta a todos que quiserem participar, e já conta com 27 colaboradores de todas as regiões. O portal também hospedará páginas pessoais ou de grupos. Mais informações: www.overmundo.com.br contato@overmundo.com.br

MINAS GERAIS CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM MOVIMENTOS SOCIAIS, ORGANIZAÇÕES POPULARES E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Inscrições a partir de 15 de fevereiro Promovido pela Cáritas Brasileira, o curso vai abordar temáticas como cidadania, luta por direitos humanos, sociais e culturais; mobilização, controle público e seus limites na perspectiva da radicalização da democracia; cultura política, religiosa e ação pastoral. O curso, com duração de 20 meses, será feito a distância, dividido em três modalidades: especialização, aperfeiçoamento e atualização – para realizar os dois primeiros é necessário ser graduado. O primeiro Encontro Nacional dos participantes acontecerá entre os dias 3 e 5 de maio, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Local: UFMG, Av. Antônio Carlos, 6.627, FAFICH, Belo Horizonte Mais informações: cursodeespeci alizacao@caritasbrasileira.org.br

RIO DE JANEIRO CURSINHO PRÉ-VESTIBULAR COMUNITÁRIO Inscrições abertas até 4 de fevereiro O ProVest Osvaldo Sena, no bairro da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, abriu 50 vagas para quem pretende prestar vestibular em 2007. O custo para cada aluno é de R$ 10 mensais, que serão revertidos em materiais. Para a inscrição é preciso levar um quilo de alimento não perecível. Local: Maré Cheia, Via Seletiva, 102, Vila dos Pinheiros, Maré, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 9776-2217, (21) 9461-2568

PROJETO CANTACUT Inscrições até 10 de março Promovido pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), o projeto foi criado para incentivar e divulgar os novos nomes da música popular brasileira. O festival terá duas etapas: a primeira, classificatória, e a segunda, final, que acontecerá dias 29 e 30 de abril. A classificação será feita por meio das composições gravadas e enviadas em CD de áudio, com nome dos autores e intérpretes na capa. Serão escolhidas duas composições por região (Norte, Nordeste, Sudeste e Sul) além de São Paulo. Os CDs podem ser entregues nos postos ou por correio (Sedex). Para participar, é necessário ser maior de 18 anos. O projeto limita a participação a no máximo duas composições por autor, que não poderão ser em língua estrangeira. As inscrições são gratuitas. Mais Informações: www.cut.org.br

PROJETO UNIVERSIDADE 2006 Inscrições abertas O Projeto consiste em um cursinho pré-universitário, da Faculdade de Extensão e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É administrado pela Fundação Bio-Rio e está no sétimo ano de funcionamento. A mensalidade varia de R$ 65 a R$ 90. Serão distribuídas 20 bolsas integrais para alunos que tenham cursado todo o ensino médio na rede pública, principalmente estadual. As aulas serão ministradas na própria universidade. As inscrições ainda não têm previsão para terminar. Local: UFRJ, Cidade Universitá-

ria, Ilha do Fundão, prédio da Reitoria, 3° andar, sala 304 B, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 3976-5042 www.equipeajac.com.br

SANTA CATARINA CICLO DE PALESTRAS SOBRE MOVIMENTOS SOCIAIS 6 a 23 de fevereiro Com o objetivo de mobilizar a comunidade e disseminar informações sobre questões sociais, as palestras abordarão temas como educação ambiental, desperdício de alimentos, adoção de crianças, comunicação com pessoas

surdas, Alzheimer, Síndrome de Down. Haverá também oficinas de produção de bijuterias, cestarias, plásticos, fios e tramas por meio do reaproveitamento de materiais recicláveis. Cada atividade terá uma taxa de participação de R$ 5, mais um quilo de alimento. Local: Centro Senac de Desenvolvimento Social, R. Adhemar Silva, 415, Kobrasil, São José Mais Informações: (48) 3357-4197 social@sc.senac.br

SÃO PAULO RODA DE VIOLA 27 de fevereiro Os moradores do assentamento Piri-

MILÁGRIMAS Até 5 de março Novo espetáculo do coreógrafo e bailarino Ivaldo Bertazzo, criado para o Grupo Dança Comunidade, com 42 jovens ligados a organizações não-governamentais que atuam na periferia de São Paulo. O espetáculo faz uma ponte entre as culturas sul- africana e brasileira. Bertazzo relaciona uma das mais tradicionais manifestações africanas, a Isicathamiya, com o trabalho de músicos brasileiros como Dorival Caymi, dona Ivone Lara e com a música contemporânea de Itamar Assumpção. Os ingressos variam de R$ 7,50 a R$ 20. Local: Sesc Pinheiros, R. Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo Mais informações: (11) 3095-9400, 0800-118220, www.sescsp.com.br ARTE CUBANA Até abril A mostra, sediada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, receberá obras que permeiam toda a história da arte cubana, desde quadros de vanguarda até as mais contemporâneas. Como resultado de uma parceria entre a Associação Guatanamera e o Museu Nacional de Bellas Artes de Cuba, a exposição abrange 117 peças, de 61 artistas, que exploram em suas obras principalmente questões sociais. A entrada é gratuita. Local: Centro Cultural Banco do Brasil, R. Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3113-3651, 3113-3652


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CULTURA

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ARTE NA COMUNIDADE

O batuque “porreta” da Vila Gilda Alessandro Atanes de Santos (SP)

A

Vila Gilda é uma comunidade onde cerca de 25 mil pessoas vivem em palafitas ou em habitações precárias, nos mangues de Santos, na divisa com São Vicente, litoral de São Paulo. A vila faz parte do Jardim Rádio Clube, bairro da zona noroeste, região de ocupação mais recente da cidade de Santos e onde ainda faltam diversos serviços básicos para os 120 mil habitantes. Um lugar onde as atividades culturais, então, só existem se promovidas pelas escolas. É exatamente nessa comunidade sobre os mangues que o Instituto Arte no Dique promove, desde novembro de 2002, a descoberta de talentos para a arte, a cultura e o entretenimento. O carro-chefe do projeto é a oficina de percussão, ministrada por monitores do grupo baiano Olodum. No total, mais de 150 crianças, adolescentes e adultos participam de aulas de violão, teatro, desenho gráfico, dança, canto e artesanato. As oficinas deram frutos, como a criação da Banda Querô, que já realizou dezenas de apresentações por toda a Baixada Santista e dois espetáculos musicais produzidos pelos alunos – Sem perder a ternura jamais (2004) e Raul Seixas – há dez mil anos na frente (2005). Os envolvidos com as atividades do instituto consideram a participação e o apoio das famílias dos alunos indispensável. Para os especialistas, os laços sociais e afetivos entre os participantes garantem conforto psicológico e emocional para o desenvolvimento cultural, missão principal do Arte no Dique. Uma das formas de estimular esse envolvimento é garantir a participação dos alunos como monitores de turmas mais jovens, ou na própria administração do projeto, bem como na produção de espetáculos, figurinos, cenários. “Abrimos o espaço para qualquer criança ou jovem. Não precisa estar matriculado ou tirar notas boas. Mas, depois que o aluno começa nas oficinas, ele só vai participar dos es-

Fotos: Alessandro Atanes

Criado há três anos, o Instituto Arte no Dique estimula a arte popular em uma região carente da Baixada Santista (a ser organizado por Kiko Barros, filho de Plínio), exposições de artes plásticas e apresentações de teatro e música do circuito regional e nacional. O espaço será administrado como pólo propulsor de cultura na cidade, com o objetivo de gerar empregos. A sede do Arte no Dique funciona em um contêiner adaptado, doado pela Libra Terminais, patrocinador do projeto.

NOVOS HORIZONTES

Ensaio de percussão das crianças do Instituto Arte no Dique: essas aulas são ministradas pelo grupo baiano Olodum

petáculos de música ou de teatro se obtiver um rendimento educacional satisfatório”, explica Sylvia Bari, psicóloga que trabalha para o instituto. A orientação pedagógica das oficinas segue a da Escola Criativa do Olodum, ou seja, procura montar os cursos de acordo com uma identidade cultural, artística e histórica que seja determinada pela própria experiência comunitária.

Uma das metas do Arte no Dique é a construção do Centro Cultural Plínio Marcos da zona noroeste, que vai ampliar suas atividades, oferecendo também cursos de formação profissional. Enquanto isso não acontece, os cursos são realizados no Barracão Cultural Escola de Arte Popular Plínio Marcos, levantado em regime de mutirão pelos moradores,

Nas oficinas, também são oferecidas aulas de violão, dança e artesanato, que visam maior integração entre as crianças com o grupo, com suas famílias e com a escola

Alex Almeida

Gonzaguinha, Plínio Marcos, Che Guevara e Raul Seixas Nesses três anos de vida, o Instituto Arte no Dique já produziu dois espetáculos. Em novembro de 2004, estreava no Teatro do Sesc Santos Sem perder a ternura jamais, musical que reunia o teatro de Plínio Marcos, músicas de Gonzaguinha e pensamentos de Che Guevara. Cada trecho de uma peça de Plínio Marcos foi entrecortado por canções de Gonzaguinha, interpretadas pela Velha Guarda da Escola de Samba X-9 e pela Banda Querô. Outra participação foi do grupo de rap Contrabando de Atitude, também da periferia da cidade do litoral paulista. Em comum entre os três grupos, a música negra dos guetos do Brasil que cantam a urgência de uma vida melhor para seus habitantes. Entre músicos, atores e artistas convidados, foram mais de 80 pessoas dividindo o palco. O conteúdo dramático foi tirado do universo criado pelo dramaturgo Plínio Marcos. Durante o espetáculo, atores do grupo Taetro de Teatro e do Bando do Dique encenaram trechos das obras Navalha na Carne, Homens de Papel e Quando as Máquinas Param, de Plínio Marcos. Em junho, o espetáculo foi apresentado também em São Paulo, no Sesc Pompéia. Em 29 novembro de 2005, foi a vez de misturar o samba-reggae da

em agosto de 2004, para abrigar as aulas e atividades artísticas. A escolha do nome de Plínio Marcos é uma homenagem ao dramaturgo santista, conhecido internacionalmente por retratar a miséria urbana de maneira crua e a partir do ponto de vista dos excluídos. Quando pronto, além das oficinas, o centro cultural abrigará um acervo de textos e objetos do autor

Após três anos de atividades, o Instituto Arte no Dique entra em 2006 abrindo novos horizontes para seus alunos. Escolhido como Ponto de Cultura pelo Ministério da Cultura, o instituto passará a realizar também filmes, documentários e programas. Para isso, os alunos receberão uma câmara digital, uma ilha de edição e computadores com programas de edição de imagens, som e efeitos dentro dos padrões de software livre. O objetivo é distribuir a produção audiovisual entre estações rádio e TV, tanto as comerciais quanto as comunitárias, e entre os demais pontos de cultura, levando para todo o país a produção artística e documental dos jovens. Outra ferramenta de apoio às atividades do Arte no Dique é a página do instituto na internet, www.artenodique.org.br, que em breve entrará no ar, com agenda de apresentações, históricos, material para a imprensa e loja virtual.

Apresentação da Banda Querô, com a Velha Guarda da X-9, no Sesc Santos

Banda Querô com o rock’n’roll. Raul Seixas – há dez mil anos na frente estreou contando a influência das idéias e da obra de Raul nas gerações de brasileiros, desde o seu aparecimento no cenário musical. Essas gerações são representadas por um grupo de amigos do artista e a seqüência de músicas revela as mudanças na vida de cada um deles e de toda a sociedade brasileira nos anos de chumbo da ditadura militar.

Aproveitando a própria receita do baú do Raul, que misturava baião com roque, as músicas tiveram uma nova roupagem, fruto da mistura da batida do samba-reggae com a energia da guitarra elétrica. No repertório, músicas como Mosca na sopa, Let me sing, Sapato 36, Trem das 7, A maçã, Eu nasci há dez mil anos atrás, Cowboy fora da lei, Gita e Sociedade alternativa, e a participação do músico santista José Simonian e sua banda.

O som do Olodum com sotaque santista Formada na oficina de percussão do Instituto Arte no Dique, a Banda Querô já realizou mais de trinta apresentações desde 2003, quando foi formada, levando o samba-reggae do Olodum por toda a Baixada Santista. A banda tem 72 integrantes, todos moradores da Vila Gilda, bairro da periferia de Santos, na divisa com São Vicente, em que boa parte das moradias é construída em palafitas sobre o mangue. O grupo é formado por pessoas de 6 a 48 anos. A Banda Querô já passou a fazer parte do cenário musical da cidade, tendo se apresentado em casas noturnas, festas de réveillon, datas religiosas e em espaços como o Música na XV, em que grupos se apresentam no Centro Histórico de Santos. O grupo já levou o sambareggae também para São Paulo, que teve a chance de conferir as versões em samba-reggae de músicas de Gonzaguinha, feitas especialmente para o espetáculo Sem perder a ternura jamais, um musical produzido pelo Arte no Dique. Para manter o ritmo e a harmonia da percussão, a banda ensaia diariamente, em três grupos: a oficina de percussão; o grupo de crianças de até 12 anos e os que ganham bolsa do Consórcio da Juventude, estrutura do Programa do Primeiro Emprego do Ministério do Trabalho. O instrutor é Ubiratan de Jesus dos Santos, formado nas escolas de

percussão do Olodum, de Salvador: “Depois de dois anos, já começamos a desenvolver nosso próprio som. Descobrimos talentos para os vocais da banda e para serem mestres de percussão”. As vozes do Querô são formadas pelos jovens Yasmin, Guinho e Jackson, enquanto os adolescentes Mosquito e Márcia comandam a variação de ritmos do tambor que vem garantindo o público da banda. O nome Querô é uma homenagem ao personagem principal de Querô, uma reportagem maldita, do dramaturgo santista Plínio Marcos. No romance, Querô é um adolescente da área portuária da cidade que sobrevive de pequenos crimes. O coordenador cultural do projeto, José Virgílio Leal de Figueiredo, avalia que a Banda Querô representa o objetivo do Arte no Dique de preparar talentos para a arte, a cultura e o entretenimento. “Nem todos serão artistas, mas existe uma série de atividades relacionadas a produção cultural, maquiagem, cenários, iluminação, produção de espetáculos, que podem oferecer atividade para as pessoas”. José Virgílio Leal de Figueiredo anuncia que 2006 será o ano da profissionalização da Banda Querô: “Já temos repertório, experiência e um som que mexe com as pessoas, não importa onde a banda toque. Chegou a hora de dar mais um passo nessa caminhada”.


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