Ano 4 • Número 157
R$ 2,00
A folia dos bancos continua
Marcio Baraldi
São Paulo • De 2 e 8 de março de 2006
Banqueiros obtêm lucros recordes com política do governo Lula que pune trabalhador e favorece monopólios
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exemplo do que fez Fernando Henrique Cardoso, a política econômica do governo Lula continua a transferir renda dos trabalhadores para o setor financeiro. Em 2005, o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil cresceu apenas 2,3%. Enquanto isso, os cinco bancos mais rentáveis faturaram, juntos, R$ 18,8 bilhões – o maior lucro da história do sistema bancário brasileiro. Para o economista Reinaldo Gonçalves, tal resultado explica-se, entre outras coisas, pela
cartelização do setor – responsável por definir, por exemplo, os altos preços das tarifas – e pelos ganhos com a aplicação em títulos públicos. “Esse lucro não é explicado pela eficiência. E sim pelo abuso do poder econômico e por uma frágil institucionalidade”, diz. Para completar, no dia 16 de fevereiro, o presidente Lula publicou medida provisória eliminando o Imposto de Renda para investidores estrangeiros que comprarem títulos públicos. Pág. 3
Potências rejeitam democracia palestina O Hamas venceu as eleições da Palestina, em 25 de janeiro. Democraticamente, ganhou o direito de formar o governo do país. As grandes potências, entretanto, não concordam. Paulo Araújo/ O Dia/AE
O fracasso de Serra e Alckmin na habitação
Ameaçam cortar o fluxo de ajuda financeira, indispensável para a sobrevivência da população. Governos árabes reagem e criam rede de solidariedade. Pág. 9
Os movimentos de moradia de São Paulo reivindicaram soluções da prefeitura e do governo estadual, dia 15 de fevereiro, no Centro da capital paulista. Para dar conta do déficit habitacional da cidade, os moradores de favelas, cortiços e sem-teto exigem do prefeito José Serra mais do que o “cheque-despejo” de R$ 5 mil ou a remoção para bairros distantes. Do governador Geraldo Alckimin, cobram transparência e participação popular nas decisões sobre habitação. Pág. 8
Biossegurança ou não? Decisão é brasileira Pág. 6
Na Venezuela, missões vencem a burocracia Para viabilizar programas sociais frente à lentidão da burocracia estatal, o governo bolivariano da Venezuela tem lançado mão das chamadas misiones (missões, em português) para fazer com que o Estado chegue aos chamados barrios – regiões desamparadas de políticas e serviços públicos. Com elas, médicos, dentistas e professores voluntários, que não estão subordinados às estruturas tradicionais dos ministérios, têm promovido a participação popular na resolução de suas próprias carências. Pág. 10
Em protesto pelas ruas do Rio de Janeiro, professores da rede estadual de educação cobram melhores salários da governadora Rosinha Garotinho
E mais: MAOMÉ – O cientista social Renato Ortiz afirma que, para além dos conflitos causados pelas caricaturas do profeta, é importante prestar atenção no uso que os grupos fazem das charges. Pág. 12 CARNAVAL – Luiz Leitão fala do processo de mercantilização a que vem sendo submetida a maior festa popular brasileira, ao longo das últimas décadas. Pág. 14
A crise argentina, 8 de março, dia Movimentos pelas lentes da dignidade ampliam frente de Solanas feminina contra a OMC Pág. 11
Pág. 16
Sociedade regride e fica à mercê das elites Ao atravessar uma das mais graves crises do padrão capitalista, o Brasil regride social e economicamente. Esse diagnóstico foi feito pelo economista da Unicamp, Márcio Pochmann, que alerta: “O atual quadro social pode colocar abaixo a democracia, considerando que
somos um país de baixa cultura democrática”. O economista aponta o domínio das elites brasileiras, que privilegiam a “financeirização da riqueza”, em detrimento da política do pleno emprego, da produção e do trabalho. Págs. 4 e 5
Para celebrar o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, os movimentos feministas brasileiros vão sair às ruas exigindo um salário mínimo justo e igualdade na remuneração de homens e mulheres – entre outras reivindicações focadas em problemas sociais de cada Estado do país. Uma campanha da Marcha Mundial das Mulheres, que vai até 1º de maio, Dia do Trabalhador, pedirá que o governo Lula cumpra a promessa de dobrar o salário mínimo, ou que esse valor seja atingido em quatro anos. Págs. 2 e 7
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De 2 a 8 de março de 2006
NOSSA OPINIÃO
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Cavalcanti Proença • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Áurea Lopes, Jorge Pereira Filho, Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55
Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus
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5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins,
Mulheres: grandes estrategistas
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alternativa é que a Presidência da República dobre o salário mínimo, conforme promessa anunciada. Isto pode ser feito este ano, ou em aumentos de 19% a cada ano do próximo quadriênio. É o que propõem as mulheres brasileiras neste Dia Internacional da Mulher. Esta é sua bandeira nacional, que unificou os diversos movimentos femininos e feministas em torno de jornadas que começam no 8 de março e se estenderão até o 1° de Maio, quando cerrarão fileiras com todos os trabalhadores, em torno desta e outras reivindicações. O que há de específico – do ponto de vista de gênero – nessa reivindicação que, à primeira vista, é uma reivindicação dos trabalhadores em geral, independentemente de se tratar de mulheres ou homens? A resposta é simples, embora a realidade apareça escamoteada: de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o contingente de mulheres assalariadas no país soma 16 milhões. Destas, 49% (cerca de 7,85 milhões) estão na faixa dos que recebem um (ou menos de um) salário mínimo por mês. Entre os homens, são 32% aqueles cujos salários se encontram nessa faixa. A escolha dessa bandeira envolve,
sem dúvida, uma grande e brilhante estratégia política, pois foi capaz de reunir em torno desse ponto específico, o apoio de grandes contingentes de trabalhadores homens que também se beneficiarão dessa conquista. Ou seja, além de unificar as mulheres e seus movimentos, a estratégia aglutinará outras forças, sobretudo quando a tática pressupõe jornadas que se estenderão até o Dia do Trabalhador. De qualquer modo, para um governo de talhe democrático e popular, como o atual, que paga criteriosa e até antecipadamente sua dívida externa aos mais ricos do mundo, esta não deve ser uma reivindicação tão difícil de ser atendida. Sobretudo se levarmos em conta o prestígio que o faz – de acordo com as mais recentes pesquisas – candidato à reeleição. Mais ainda, se pegamos cada um dos responsáveis por esse governo, veremos que não será difícil a adesão a tal proposta. O presidente, filho de uma família de trabalhadores cujo arrimo foi a mãe, conhece na própria pele o problema. Além do mais, contará com o estímulo da primeira-dama que, operária como ele, começou muito cedo no trabalho, na condição de empregada doméstica. O vice-presidente, batalhador
dos interesses do capital nacional, sabe bem da importância do fortalecimento do mercado interno para o consumo dos seus produtos. Além disto, certamente os movimentos de mulheres devem ter o apoio das suas companheiras que compõem os diversos níveis do governo federal, especialmente as do primeiro escalão: ministras mulheres e trabalhadoras. Por fim, no que diz respeito ao Congresso Nacional, tendo em vista os exemplares empenho e combatividade demonstrados pelas bancadas da base de sustentação do Executivo frente às calúnias e investidas da direita nos mais recentes episódios iniciados com a CPI dos Correios, não esperamos outra coisa que não a formação de uma estrondosa maioria para a aprovação da mensagem presidencial atendendo à reivindicação das mulheres. Aliás, uma maioria que contará, sem dúvida, com a adesão de muitas senadoras e deputadas de partidos de oposição (pela direita e pela esquerda ao atual governo), mas feministas de primeira hora. Ou seja, marchemos lado a lado, homens e mulheres, unificados em torno da bandeira desfraldada pelas companheiras. E ... até a vitória pois, apesar de tudo, venceremos!
FALA ZÉ
OHI
Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dirce Helena Salles • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Assistente de redação: Bel Mercês 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos - CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 - São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia
CRÔNICA
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Frei Betto
CARTAS DOS LEITORES INDIGNAÇÃO Gostaria de expressar minha indignação em ver a nossa Bandeira brasileira ser usada ao lado da bandeira americana no velório de um brasileiro mercenário, morto no Iraque em uma guerra que fomos contra. Não podemos esquecer que os mesmos julgaram, como traidor, um cidadão estadunidense, preso no Afeganistão. Para nós brasileiros, estariámos enterrando um herói? Sou assinante do jornal Brasil de Fato, e parabenizo a equipe pelas excelentes matérias publicadas. João Batista dos Santos São José dos Campos (SP) Por correio eletrônico A DOMA POR ENFORCAMENTO A Policia Militar do Rio Grande do Sul é uma das mais civilizadas e seus comandantes estão entre os mais inteligentes do Brasil. Tão racionais e inteligentes são que permitem o ritual da doma por enforcamento de cães, aplicado não só aos da corporação mas também aos cães das namoradas dos filhos de seus coronéis. Isto numa época em que os animais são adestrados através de recompensas (como nossos filhos nas escolas), sendo ultrapassado o conceito de doma e
seu princípio básico: a tortura. Sem rituais o poder não poderia se estabelecer, e o da doma é simples: torturase o “bicho” com um enforcador no pescoço. No segundo dia de tortura já confessa crimes que nunca praticou. No terceiro obedece a ordens simples como “anda junto”, “senta” e com uma semana obedece a ordens mais complexas como “sentido” e “descansar”. No primeiro enforcamento o cão se desespera, tropeça nas patas e olha para o homem sem entender por que lhe faz aquilo se nunca o atacou. Bem sabe que sua mordida é poderosa mas “por que me faz isso se nunca lhe mordi?” – pensa. Pode parecer ingênuo preocupar-se com a doma dos cães da Brigada, mas a partir do que a mesma significa pode se compreender a agressão violenta a torcedores do Internacional durante um jogo, o assassinato de um sindicalista durante uma manifestação e o tratamento dispensado aos sem-terra nos despejos de ocupações (estes, com tratamento pior que o dispensado aos cães). Todos que já foram tratados como cães pela Brigada entendem o que eu digo. Leandro Gaspar Scalabrin Passo Fundo (RS) Por correio eletrônico
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
Sim, quero ver a tua vida em detalhes, minuto a minuto, e ouvir as palavras que jorram de tua boca, rir o teu riso e enraivecer-me com o teu rancor, assistir à tua paquera, ao teu namoro, ao teu gesto de carinho, à tua transa, espelhando tua beleza em minha pobreza. Quero abandonar amizades, trabalhos, livros e lazer e, de olhos pregados em tua magia, absorver a tua arte de movimentar-se no labirinto da quimera, livre de dores e afazeres, mergulhado na fama e na fortuna. Venerarei o teu ócio na vitrine, exibindo-se sem pudor a milhões de olhos, despido por infinitas imaginações, liberto das grades odiosas dessa existência de penúria, anônima, escrava da rotina atroz de quem jamais aprendeu a voar. Abrirei em meu monitor a porta da tua casa mágica e, sob o peso de minhas carências, ingressarei virtualmente em tua liberdade, no teu gozo, no teu charme, como quem toca com os olhos os veneráveis ícones que nos fazem transcender da mediocridade cotidiana. Minha fidelidade ao teu exibicionismo será a chancela que proclamará a tua vida como real e, do lado de cá, buscarei a alforria de minha indigência em tuas loucuras, em teus jogos e em tuas danças. Quero decifrar em ti a minha própria intimidade, rasgar a minha alma em tuas mãos e deixar a minha mente impregnar-se dessa ilusão que faz de mim teu pequeno irmão.
Recobrirei a minha realidade com a tua fantasia e farei de teu espetáculo o brilho de meus olhos vazados, nessa permuta hipnótica de quem busca a complacência com seus próprios limites para tentar encobrir a mesquinhez que me corrói. Ficarei atento ao teu banho, ao teu sexo, à tua ira e às tuas refeições, fiel à exposição perene deste teu ser desprovido de preocupações e conteúdos, entregue a esta liberdade que faz de ti o que não sou, e me permite projetar em teu vigor as minhas fraquezas e em teu esplendor o sabor amargo de meu anonimato. Verei em tua janela, que se abre para a minha casa, a subversão de todos os valores, como se nos cômodos que te abrigam findassem todos os princípios, escorrendo pelo ralo tudo aquilo que num lar soa como sinônimo de família. Ampliados pela eletrônica, meus olhos contemplarão as tuas intimidades mais ousadas. Sentirei os teus odores e beberei o teu suor, ouvirei tuas queixas e amarguras, acolherei tuas frustrações e vitórias. Esticarei o meu olhar até os limites proibitivos do escárnio e, quem sabe, verei o teu rancor extirpar toda a agressividade que jaz em meu peito e a tua voracidade explodir em taras que haverão de suprir os meus desejos mais ignóbeis e saciar as minhas pulsões mais abjetas. Deste lado da tela, sentirei os teus sentimentos e comungarei as tuas emoções, vendo-te virar pelo avesso nesse zoológico de luxo,
exposto à multidão como carne no açougue, a engordar no balcão do voyeurismo a fabulosa soma dos teus patrocinadores em tua ânsia de embolsar um milhão e enterrar o teu passado nessa árida mesquinhez de meu presente. Em ti livrar-me-ei de todo ideal que não seja fazer da vida um jogo de entretenimentos, a sedução epidérmica como sucedâneo de quem não atinge as profundezas do amor, vendo-te representar a ti mesmo sob os aplausos invejosos de meu olhar sequioso, preso ao teu desempenho huit-clos. Aprisionarei a tua vida em meu olhar, torna-me-ei teu carcereiro eletrônico, decidindo o teu presente e o teu futuro, absolvendo-te ou condenando-te, juiz supremo que se ignora refém do próprio equívoco. Inebriado com as tuas loucuras, te elegerei objeto supremo de minha admiração, de minha cupidez, de minha inveja, deixando-me devorar pelo teu sucesso, do qual farei tema de todas as minhas conversas. À espera de que os corvos venham devorar o meu coração, quero ser consumido e consumado por ti, arrancando de meus olhos todas as escamas, até que eu possa ver também o marido espancar a mulher, o filho estuprar a mãe, o pai assassinar a filha, enfim, o horror, o horror, o horror, pois sei que o show não pode parar e que o seu limite é não ter limites. Frei Beto é dominicano e escritor
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De 2 a 8 de março de 2006
NACIONAL TRANSFERÊNCIA DE RENDA
Os bancos, como sempre, agradecem Igor Ojeda da Redação
Marcio Baraldi
Governo Lula suga dinheiro da população, por meio de impostos, e enriquece instituições financeiras privadas
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CARTELIZAÇÃO O economista Reinaldo Gonçalves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atribui valores tão estratosféricos a basicamente três fatores: a estrutura oligopólica e cartelizada do setor bancário, os altíssimos ganhos com títulos públicos e à ausência quase total de um sistema de proteção ao consumidor por parte do Banco Central (BC). “O que é interessante é que esse lucro não é explicado pela eficiência. E sim pelo abuso do poder econômico e por uma frágil institucionalidade”, diz. De acordo com Gonçalves, três grandes bancos privados (Bradesco, Itaú e Unibanco, chamado por ele de G3) dominam o setor no Brasil e definem em conjunto as taxas a serem cobradas pelos seus serviços e os spreads (diferença entre os juros que as instituições pagam para captar dinheiro e os que cobram nas operações de empréstimos) na concessão de empréstimos. Ambos, nem seria preciso falar, são fixados nas alturas. Para Gonçalves, um dos instrumentos que o governo deveria utilizar para quebrar tal dominação seria os bancos estatais, como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, que poderiam lançar mão de medidas para puxar para baixo taxas, tarifas bancárias e o spread bancário, por exemplo. “Só que o governo Lula não tem coragem por causa das contribuições de campanha”, diz, referindo-se ao provável apoio das instituições financeiras privadas para a reeleição. Além disso, explica o economista da UFRJ, “há aqui uma captura do BC pelo setor bancário. Num país desenvolvido, várias forças atuam na decisão do Banco Central, há um certo equilíbrio. No Brasil, O BC é influenciado pelo governo federal e pelo G3. A política econômica fica ao sabor desse jogo de interesses”.
TRANSFERÊNCIA DE RENDA Entre tais interesses, claro, está a manutenção das altas taxas de juros pelo Banco Central, beneficiando diretamente os detentores de títulos públicos da dívida. Segundo o deputado federal Sérgio Miranda (PDT-MG), grande parte do lucro dos bancos no últimos anos vem das aplicações nesses títulos. “Em torno de 35% deles estão nas mãos dos bancos. É uma brutal transferência de renda da sociedade para o setor financeiro. O poder político do setor financeiro aumentou no período mais recente em função desse monopólio”, denuncia. Mas a política econômica do governo federal não beneficia apenas
as instituições financeiras. Empresas do chamado setor produtivo também passaram a obter altos lucros com ela. De acordo com Miranda, “todas as empresas que têm muita sobra de caixa utiliza-a para aplicar em títulos públicos”. O que, como conseqüência, elimina o conceito de se separar em campos opostos os setores produtivo e financeiro. Quem sai perdendo com tudo isso? A maior parte da população brasileira, principal prejudicada por tamanha transferência de recursos. “Quando a gente ouve esse discurso de ‘menos Estado’, na verdade
é menos Estado na área social, na área de fomento ao desenvolvimento e mais Estado na área financeira, de arrecadação de impostos e transferência de renda para o setor financeiro”, explica o parlamentar. Segundo dados do Unafisco, o governo federal gastou nada menos que R$ 139 bilhões (R$ 117,8 bi com a dívida interna, R$ 21,3 bi com a externa) para pagar os serviços da dívida, ou seja, as amortizações mais os juros. Esse número representa cerca de 23% – ou quase um quarto – do orçamento da União de 2005, de R$ 606,9 bilhões.
Um Robin Wood às avessas No dia 16 de fevereiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou uma medida provisória zerando a alíquota de Imposto de Renda para investidores estrangeiros que comprarem títulos públicos no Brasil. Antes, a tributação era de 15% sobre os ganhos. Na opinião do economista Reinaldo Gonçalves, tal isenção causará uma maior vulnerabilidade do Brasil na esfera monetária-financeira “na medida em que se estimula a entrada de um capital não-produtivo. Parte deste é um capital claramente de natureza especulativa”. O deputado federal Sérgio Miranda (PDT-MG) concorda: “A principal vulnerabilidade da economia brasileira é a capacidade de quem tem ativo em real transformá-lo em ativo em dólar”. Segundo ele, esse tipo de capital é utilizado como forma de pressão pelos especuladores: se estes não obtêm a taxa de juros que desejam, vão embora. Isenção de impostos para uns, tributação pesada para outros. Enquanto os bancos batem recordes e recordes de lucro, na hora de retribuir tanta generosidade aos cofres públicos a história é outra. No final de janeiro, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) divulgou dados que constatavam que, em 2005, os trabalhadores pagaram três vezes mais impostos que os bancos. Enquanto os primeiros recolheram R$ 52 bilhões, os últimos contribuíram com apenas R$ 18 bilhões. A explicação é simples: a enorme distorção provocada pelo sistema tributário brasileiro, que faz com que 52% da arrecadação da Receita Federal venha das taxações sobre o consumo, segundo a Unafisco. Ou seja, todos que compram um determinado produto pagam o mesmo valor em impostos, independentemente de quanto ganha por mês. Isso faz com que os contribuintes de menor poder aquisitivo desembolsem relativamente mais do que os mais abonados. (IO)
VALE DO RIO DOCE
A retomada do “Reage Brasil” Bruno Terribas de Redação Reage Brasil. O chamado do movimento iniciado em 1997– e ressurgido no final de 2005 – tem impulsionado novas atividades este ano pela reversão da privatização da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). A campanha foi reanimada em outubro, quando uma sentença do Tribunal Regional Federal (TRF), da 1ª Região de Brasília, reabriu o processo sobre a legalidade da venda da então estatal brasileira. No dia 24 de fevereiro, no Paraná, um ato público reuniu mais de 40 entidades. Estiveram presentes organizações populares, como o Sindicato dos Petroleiros, União Nacional dos Estudantes (UNE), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Assembléia Popular, Con-
gestão de Fernando Henrique: uma empresa que vale, segundo estimativas do próprio diretor financeira da empresa, 40 bilhões de dólares foi vendida por R$ 3,3 bilhões”.
Marcos Guimarães
tempo passa, o tempo voa, e a poupança – dos bancos – continua numa boa. Enquanto no dia 24 de fevereiro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciou que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil cresceu no ano passado 2,3% e ficou em penúltimo lugar na América Latina (à frente apenas da previsão de crescimento do Haiti), as instituições financeiras divulgam lucros recordes em 2005. Juntos, os cinco bancos mais rentáveis em 2005 faturaram R$ 18,8 bilhões. Bradesco (R$ 5,5 bilhões), Itaú (R$ 5,25 bi), Banco do Brasil (R$ 4,15 bi), Caixa Econômica Federal (R$ 2,07 bi) e Unibanco (R$ 1,84 bi) foram os responsáveis pelo maior lucro da história do sistema bancário no Brasil. Mas tal façanha não surpreendeu ninguém. Desde 2002 (último ano do governo Fernando Henrique Cardoso), os bancos lideram o ranking dos setores mais lucrativos da economia brasileira, superando, por exemplo, o de telecomunicações e o de petróleo e gás.
FRENTE PARLAMENTAR
Entidades cobram empenho do judiciário na reabertura do processo da venda da Vale
sulta Popular, Pastorais Sociais e a Central de Movimentos Populares (CMP). Também esteve presente a deputada federal Dra. Clair (PT-PR), integrante da Frente Parlamentar pela Defesa do Patrimônio Públi-
co e da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Privatizações. A parlamentar cobrou empenho do judiciário na manutenção da disposição de reabrir o processo: “Pedimos o ressarcimento da Nação do crime de lesa-pátria cometido pela
Desrespeito ao meio ambiente A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi obrigada a suspender os trabalhos por 27 horas em uma mina subterrânea no Sergipe, entre os dias 22 e 23 de fevereiro. Uma decisão judicial determinou que a empresa resolvesse o problema do calor excessivo na mina Taquari-Vassouras, constatado por um laudo do Ministério do Trabalho. A empresa teria 30 dias de prazo, mas o desembargador João Bosco Santana de Moraes aceitou mandado de segurança da Vale no Tribunal Regional do Trabalho de Sergipe e autorizou a retomada dos trabalhos. A ação impetrada pelo Sindimina (sindicato dos mineradores de Alagoas, Pernambuco e Piauí) denunciou as condições de trabalho a que os 370 trabalhadores do local eram expostos durante os turnos de serviço de seis horas. A temperatura nas minas é de aproximadamente 30º, sem ventilação adequada. Durante o serviço, os funcionários tinham apenas 15 minutos de descanso, infringindo a Norma Regulamentar nº 15 do Ministério do Trabalho, que determina 15 minutos de intervalo para cada 45 minutos trabalhados a essa temperatura. (BT)
Em Belém, no dia 20 de fevereiro, parlamentares, organizações da sociedade civil e órgãos públicos do Estado do Pará se reuniram na Assembléia Legislativa, para discutir encaminhamento de ações frente à continuidade do processo. Agora, conforme a decisão do TRF de Brasília, cabe à Justiça do Pará julgar o mérito das ações populares impetradas na década de 1990 contra a privatização da Vale. Deputados estaduais e vereadores do Pará decidiram constituir uma Frente Parlamentar na Assembléia Legislativa para atuar em defesa da decisão do TRF de Brasília. Foi decidida também a criação de um comitê com a participação de entidades civis para realizar discussões e angariar apoio da sociedade para que a Justiça do Pará acelere o julgamento dos processos. Já em São Paulo, também no dia 20, ocorreu uma reunião na Assembléia Legislativa com a presença de sindicalistas, representantes de movimentos populares e parlamentares para traçar as estratégias de lançamento do Comitê do Movimento em Defesa do Patrimônio Público e da Vale do Rio Doce, previsto para o fim de março. A próxima reunião está marcada para o dia 3.
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Espelho da mídia
NACIONAL ENTREVISTA
País é prisioneiro
Cid Benjamin Folha fora do clipping oficial Um serviço da Radiobrás que reúne reportagens e artigos dos principais jornais diários começou a circular, desde o dia 24 de fevereiro, sem o material da Folha de S. Paulo – o jornal de maior circulação do país. A justificativa é que a Folha suspendeu a impressão do seu primeiro clichê, que era rodado na noite anterior. Seria aceitável se a versão eletrônica do jornal não entrasse no ar no meio da madrugada. Bom humor contra ameaça Profissionais da imprensa de Rondônia fizeram um protesto bem-humorado contra a ameaça de agressão física do deputado petista Anselmo de Jesus ao jornalista Everaldo Fogaça, que publicara matéria que o desagradou. Em solidariedade ao colega, jornalistas posaram para fotos ao lado de flechas, tacapes e até de um canhão desativado do século 19. A manifestação funcionou: o deputado desistiu de cumprir a ameaça. Ainda a demissão de Casoy A demissão de Boris Casoy, que era âncora do principal telejornal da TV Record, continua dando o que falar. O portal da internet Comunique-se traz matéria em que Casoy diz que a direção da emissora o informou das pressões que recebia do governo federal em virtude do telejornal. Três assuntos seriam particularmente sensíveis: o assassinato do prefeito Celso Daniel; os negócios do compadre do presidente Lula, Roberto Teixeira, e o caso Banestado. Novo jornal popular em Brasília Os Diários Associados vão lançar em Brasília a segunda edição regional do Aqui, jornal popular que já circula em Minas Gerais. O projeto prevê o lançamento do Aqui em mais cinco Estados nos próximos meses: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Maranhão e Rio de Janeiro. Meia Hora no Rio O mercado de jornais populares do Rio deu uma chacoalhada com o lançamento do Meia Hora pelo mesmo grupo de O Dia. Desde dezembro de 2005, o Meia Hora está entre os dez jornais de maior circulação no país nos dias úteis, com mais de cem mil exemplares vendidos. A entrada do jornal afetou a circulação do Extra, o jornal popular do grupo de O Globo, cuja circulação caiu em mais de 30 mil jornais por dia. Não por coincidência, o Meia Hora parece uma versão tablóide do Extra. Projeto cria cadastro de internautas Os usuários de internet no Brasil deverão ser cadastrados, e os registros das correspondências eletrônicas armazenadas durante um período pelos provedores. É o que prevê o projeto do senador Delcídio Amaral (PT-MS). Segundo Delcídio, a proposta tem o objetivo de estabelecer algum controle sobre o que é veiculado na internet e facilitar a apuração de crimes cometidos na rede mundial de computadores. Internet cresce nos EUA O jornal estadunidense The New York Times trouxe, no início de fevereiro, um quadro com a evolução do mercado publicitário em cada meio da mídia nos Estados Unidos. Os anúncios na internet tiveram um crescimento de 21,4%, passando de 4,2 bilhões de dólares em 2004 para 5,1 bilhões de dólares em 2005 (dados até novembro de cada ano). A tendência é de que cresçam ainda mais nos próximos tempos. Assista à TeleSur Quem quiser ver os programas da TeleSur – emissora de televisão criada pelo presidente Hugo Chávez, da Venezuela, com a participação de governos de outros países latino-americanos – pode fazê-lo por computador. Basta ir ao endereço www.telesurtv.net. Blog do Cid Benjamin: http://blog docidbenjamin.zip.net/
O professor e pesquisador Márcio Pochmann, da Unicamp, deixa claro que Igor Felippe Santos de São Paulo (SP)
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Brasil vive a crise mais grave do padrão de desenvolvimento do capitalismo da sua história, afirma o economista Márcio Pochmann, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele acredita que a sociedade brasileira passou por um processo de regressão social e econômica, que coloca o país cada vez mais distante do seu potencial de desenvolvimento. Em 1980, a renda per capita do brasileiro era um terço da renda do morador dos Estados Unidos. Hoje, está em um quinto. No mesmo período, diminuiu bastante também a porcentagem do Trabalho no Produto Interno Bruto (PIB). “O quadro social pode colocar abaixo a democracia, considerando que somos um país de baixa cultura democrática”, prevê o economista. Para ele, o país não está condenado ao desemprego nem à exclusão social, conseqüências das políticas de sucessivos governos. “Estamos prisioneiros pela opção da elite nacional, que praticamente abandonou a política do pleno emprego, da produção e do trabalho, em nome da financeirização da riqueza”, afirma. Pochmann questiona estudos produzidos a partir dos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), elaborada a partir de entrevistas com 400 mil pessoas e de visitas a cerca de 140 mil domicílios em todo o país, realizada em 2004, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A pesquisa indica que a desigualdade caiu sistematicamente, desde 1993. O índice Gini, que mede a concentração de renda, passou de 0,571, em 1993, para 0,535, em 2004 (quanto mais perto de zero, maior a igualdade). Pochmann avalia que o índice Gini trabalha com uma base de dados restrita ao centro da distribuição da renda e apresenta apenas informações de parte dos estratos sociais. Os números dos mais pobres e ricos ficam de fora. Independentemente disso, a Pnad não significa elevação da qualidade de vida dos pobres. Quais as principais conseqüências da política econômica e social para a população brasileira nas últimas duas décadas? Márcio Pochmann – Estamos diante da mais grave crise do padrão de desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A evolução da renda por habitante mostra um quadro de estagnação. Cresce levemente acima da média nos últimos 25 anos, em comparação à evolução da população economicamente ativa. No conjunto do país, há indicadores de regressão social e econômica. Estamos nos distanciando daquilo que poderíamos ser. Em 1980, tínhamos cerca de um terço da renda per capita dos Estados Unidos. Em 2004, o Brasil caiu para um quinto. Temos uma regressão na distribuição funcional da renda, que permite separar trabalho e capital. Qual o tamanho da regressão? Pochmann – Em 1980, o Brasil tinha uma renda do trabalho de metade do PIB. Em 2003, a renda do trabalho era de 36% do PIB. Nos países desenvolvidos, a renda do trabalho representa mais de 60% dos produtos internos. Os indicadores de violência e desemprego também regrediram. Não existe possibilidade de se manter por mais tempo nessa situação, que não aponta para perspectivas de um país. O quadro pode colocar abaixo a
A sociedade brasileira em números Dívida Social: R$ 7,2 trilhões Riqueza Nacional: 5 mil clãs de famílias controlam 40%, 10% da população rica se apropria de 75% e 90% do povo brasileiro fica apenas com 25% Títulos da Dívida Pública: R$120 bilhões no pagamento dos títulos repassados para 20 mil clãs de famílias (cerca de R$ 6 milhões por família ao ano) Previdência Social: R$ 140 bilhões no atendimento de 21 milhões de famílias de aposentados (cerca de R$ 6 mil por família ao ano) Bolsa Família: R$ 7 bilhões na assistência de 8 milhões de famílias (cerca de R$ 72 por mês por família) Trabalho: Em 1980, a renda do trabalho era 50% do PIB. Agora representa 36%. 4 milhões de famílias vivem sem remuneração (350 mil famílias na cidade de São Paulo) Novos Empregos: De três novos postos abertos, dois estão na faixa de um a um e meio salário mínimo (até R$ 450) Educação e Juventude: De duas pessoas desempregadas, uma tem menos de 25 anos 4 milhões e 300 mil de jovens desempregados 1 milhão e 350 mil jovens qualificados saíram do país na década de 1990 em busca de oportunidades A cada 10 alunos matriculados no primeiro ano do ensino fundamental, apenas 1 conclui a universidade Enquanto o Brasil tem 35% dos jovens de 15 a 17 anos matriculados nas escolas, o Chile apresenta 85%. Para chegar nesse nível, o Brasil teria que incorporar 4,9 milhões de jovens, o que implica a construção de 50 mil salas de aulas e a contratação de 500 mil professores
democracia, considerando que somos um país de baixa cultura democrática, lamentavelmente. O país não tem 50 anos de democracia, tratada tão-somente pelo sufrágio universal e pelo voto direto. Os órgãos internacionais vêm para o Brasil e identificam que metade da população aceita mudanças de sistema político, porque a democracia no Brasil não possibilitou mudanças concretas para melhor condições de vida. Precisamos considerar até onde conseguiremos levar um quadro econômico tão desfavorável para o conjunto da população. Cerca de 10% da população está desempregada e 25%, na informalidade, enquanto ocorre um processo de desindustrialização. Como ficou o mundo do trabalho? Pochmann – Há algumas interpretações da desestruturação do mundo do trabalho. Uma delas sustenta que foi decorrente das grandes transformações tecnológicas. O avanço causaria o desemprego, que deveria estar associado ao aumento da produtividade. Com isso, não haveria do que reclamar, uma vez que cresceríamos tecnologicamente. Seria o custo do progresso. Para outra interpretação, as empresas estariam ávidas a contratar mais trabalhadores, que não estariam preparados para ocupar as vagas ofertadas. As duas explicações tiram a responsabilidade da política econômica e dos governos pelo desemprego. Foram levadas à exaustão e perderam a validade. Não somos um país condenado ao desemprego nem à exclusão social, que resultam das opções dos governos. A Pnad de 2004 mostrou que quando há crescimento econômico, ampliase o nível de emprego, inclusive assalariado com carteira assinada, o melhor emprego gerado pelo capitalismo brasileiro. Por que estamos nessa situação? Pochmann – Estamos prisioneiros pela opção da elite nacional, que praticamente abandonou a política do pleno emprego, da produção e do trabalho em nome da financeirização da riqueza. O Estado, nas últimas duas décadas, financia organismos financeiros concentrados em pequenas famílias. Isso não é produtivo para a geração de postos de trabalho. O nível de desemprego é um caso sem paralelo. Desestrutura famílias e leva a uma grave dificuldade de inserção dos jovens. Esse é um dos principais problemas nacionais.
Quais as maiores dificuldades da juventude? Pochmann – Temos a quinta maior população juvenil do mundo. A cada duas pessoas desempregadas, uma tem menos de 25 anos. Em nenhuma geração a juventude viveu uma situação tão grave, que requer uma ação muito mais contundente enquanto prioridade nacional. Temos uma geração que infelizmente não conhece o trabalho sério e bem remunerado. Isso não apenas compromete as próximas gerações como reforça as contradições do país. Embora sejamos um país de baixa escolaridade, com a média do brasileiro de seis anos e seis meses de estudo, nossos jovens com maior escolaridade não encontram postos de trabalho decentes e estamos exportando mão-de-obra qualificada para outros países porque aqui não são geradas as vagas necessárias.
Há indicadores de regressão social e econômica. Estamos nos distanciando daquilo que poderíamos ser Em 20 anos, como ficou a qualidade de vida da maioria da população? Pochmann – Depende da lente que usamos para analisar. Tomando como referência o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que é uma tentativa de síntese, teria havido uma melhora aparente. Precisamos discutir com mais profundidade o conceito de desenvolvimento humano, sustentado sobre três indicadores gerados em um ambiente neoliberal, que permite países regredirem econômica e socialmente – como é o caso do Brasil – e melhorarem no IDH. Isso mostra a contradição dos indicadores. Qual a sua avaliação das transformações sociais tendo como base o IDH? Pochmann – Do ponto de vista do balanço das duas últimas décadas, a expectativa média de vida aumentou. O que representa deixar de viver 60 anos na pobreza para viver 70 anos na pobreza extrema? Viver mais é um ganho, sem dúvida. No entanto, viver dez anos a mais na extrema pobreza é desenvolvimento humano? A pessoa continua pobre durante mais tempo.
Apresenta-se isso como melhoria humana. Eu concordo, mas o indicador precisa ser mais bem qualificado. O outro indicador aponta que caiu a taxa de fecundidade de forma substancial, especialmente nas famílias pobres, reduzindo inclusive a mortalidade infantil de forma expressiva. Parte da explicação pela queda da mortalidade infantil é que as mulheres pobres deixaram de ter filhos. O filho que não nasceu não pode morrer. Houve avanços importantes no saneamento básico. Mesmo assim, estamos longe de estar bem, especialmente na coleta de lixo. Houve melhoras em determinadas cidades, com a urbanização de favelas. Todos os indicadores nos colocam ainda procurando vencer problemas que outros países resolveram 60 anos atrás. No balanço geral, é muito pouco, considerando o potencial do Brasil, se não tivesse abandonado o compromisso com o crescimento econômico desde a década de 1980. Hoje existe uma diversidade de formas de contratação de trabalhadores. Qual influência dessa tendência na estrutura social brasileira? Pochmann – O quadro de semiparalisia econômica vem acompanhado de mudanças profundas na sociedade brasileira, que é muito diferente da de 25 anos atrás. Por exemplo, a classe operária dos anos 1980 é diferente da de agora. Algumas mudanças estão associadas à profunda reforma trabalhista que tivemos nos anos 1990. Do ponto de vista legal, os avanços foram relativamente pequenos, comparando-se inclusive com outros países. No entanto, houve no Brasil uma reforma trabalhista branca feita pelo mercado. Tínhamos nos anos 1980 cerca de cinco tipos de contrato de trabalho. Hoje temos algo como 18. Houve uma flexibilização enorme, que trouxe impactos não apenas na remuneração, mas também na identificação daqueles que trabalham. Foram introduzidos novos métodos de gestão, junto com novas formas de contratação, que tornaram parte importante dos trabalhadores não mais companheiros, mas competidores por metas de produção e venda, que faz com que a renda do trabalho fique cada vez mais variável. Isso torna muito mais insegura a vida daqueles que dependem do trabalho porque não há garantia de que amanhã ou no ano que vem terá renda suficiente para viver de forma digna.
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NACIONAL
da elite nacional
Pochmann: Brasil não está condenado ao desemprego e à exclusão social; ambos são conseqüências das escolhas do governo
Com essas transformações, quais as novas características dos estratos sociais? Pochmann – Houve um desaburguesamento da classe média brasileira, em relação ao padrão de vida, financiamento, crédito e consumo durante seu auge, nos anos 1970 e 1980. Isso está diretamente associado a alterações na estrutura sócio-ocupacional da classe média. Com relação à classe operária, que dependia fundamentalmente de sua força de trabalho física e mental para financiar a sobrevivência, há sinais de desproletarização. Percebemos hoje, no Brasil, cerca de quatro milhões de famílias sem remuneração. A cidade de São Paulo, de acordo com o senso demográfico de 2000, tinha 350 mil famílias sem renda. Isso caracteriza um processo de desproletarização. São dois sinais que mostram uma crescente heterogeneidade no interior das classes, com impactos importantes na organização do trabalho e na representação em sindicatos e partidos políticos. No pensamento de esquerda clássico, o trabalho forjava a resistência ao capital. Como fazer a luta política agora, com grande parte da população desempregada e na informalidade? Pochmann – A resistência não é forjada simplesmente porque aqueles que estão submetidos à opressão tendem a se conscientizar, mas também pelas próprias contradições geradas pelo desenvolvimento capitalista. Inclusive acredito que a forma de desestruturação da sociedade está constituindo uma oportunidade de resistência em melhores condições das que tivemos no passado recente. Com o desaburguesamento da classe média, temos pela primeira vez a possibilidade da união do que seriam a classe operária e a classe média. A classe média no Brasil nunca constituiu uma aliança com os trabalhadores. A eleição do presidente Lula em 2002 foi uma oportunidade inédita, porque parte importante da classe média direcionou seu voto para o PT em função da avassaladora crise que vive em termos de reprodução social. A oportunidade não foi aproveitada, mas isso não significa que novas alianças não possam ser construídas. Os dados da Pnad indicam que a desigualdade cai sistematicamente no Brasil desde 1993 e o índice Gini melhorou. Por outro lado, a renda dos lares caiu 16%. Como o senhor avalia esses números?
Pochmann – Os dados devem ser compreendidos dentro daquilo que representam. A Pnad é uma informação por amostra, por domicílio, que se refere muita mais à renda do trabalho do que a outras formas, como o capital, juros, lucro, renda da terra, aluguel de imóveis, etc. A renda do trabalho representa 36%, ou seja, temos boas informações sobre parte da renda nacional. Os ricos, de maneira geral, não fazem parte da pesquisa. São representados, mas há uma subestimação da renda. A Pnad representa 60% da renda pessoal disponível na contabilidade nacional. Há uma subdeclaração. Isso não retira o reconhecimento de que houve uma redução da desigualdade. Não porque todas as rendas cresceram. Por exemplo, a renda do trabalho ficou congelada em 2004. Mas houve melhorias porque a renda do segmento com melhor remuneração na pesquisa, com cerca de R$ 9 mil mensais, perdeu poder aquisitivo.
referência no centro da distribuição da renda. Não é um bom indicador de desigualdade nas pontas. Está acontecendo um desaburguesamento da classe média, que está derretendo. Por isso, o índice dá impressões que não são as mais concretas. O país vive com tantos dados negativos, mas os positivos foram muito bem realçados. Isso não é necessariamente um compromisso com a verdade. Pode ser muita ideologia. Em alguns aspectos, o que nós tivemos na interpretação da Pnad foi muito mais ideológico do que uma análise séria. O grande destaque aos números da pobreza e da redução da desigualdade foi muito mais conivência com o modelo econômico do que uma posição de cientista social comprometido com a verdade.
O que isso significa? Pochmann – A redução da desigualdade se deve não à melhoria de todas as rendas, sendo que a dos mais pobres teria crescido mais que a dos mais ricos. Foi decorrente da queda, em termos reais, da renda dos mais ricos. Isso não aponta para uma redução da desigualdade que indique uma melhora social de forma generalizada. Temos que reconhecer que as mudanças no mercado de trabalho trazem dificuldades para medir a renda. Os dados mostram uma redução da desigualdade e da taxa de pobreza extrema. Mesmo assim, devemos reconhecer que a desigualdade é extremamente alta no Brasil e precisamos de uma ação de longo prazo que fortaleça a sua diminuição.
O governo divulgou também que foram criados mais de 3,5 milhões de empregos com carteira assinada, em três anos. Quais as características dos novos postos? Pochmann – A expansão aconteceu por causa do aumento do nível de emprego e pela formalização de informais, que foram registrados. Em parte, isso se deve à posição mais rígida da Justiça do Trabalho, do Ministério Público e pela fiscalização do Ministério do Trabalho. Os dois movimentos resultaram em dados positivos. O emprego formal aumentou mais quando a economia cresceu, como em 2004 e agora em 2005. Com crescimento, o país terá mais emprego. Por outro lado, o emprego com carteira assinada tem um perfil de remuneração muito baixo. Em 2005, de 1 milhão e 500 mil postos de trabalho abertos até outubro, 90% são com remuneração até dois salários mínimos – cerca de R$ 600. De cada três postos abertos, dois estão na faixa de um a um e meio salário mínimo – até R$ 450. Não são salários dos melhores. O país teve problemas grandes para gerar empregos. Agora geramos em número não suficiente e sem qualidade. A questão é como melhorar a qualidade do emprego em termos de remuneração. É um bom problema quando comparado a um período que nem emprego existia.
A grande imprensa e o governo deram bastante destaque aos números, mas não foi a renda dos pobres que melhorou significativamente. Houve uma proletarização da classe média? Pochmann – Exatamente. É isso que indica o índice Gini, que tem
No entanto, os empregos de remuneração baixa não contribuem para o aumento da renda do trabalho no PIB. Pochmann – Isso ainda é algo a ser considerado. O país apresenta ganhos financeiros bastante significativos. Entre 7%
O país teve problemas grandes para gerar empregos. Agora geramos em número não suficiente e sem qualidade
e 8% do PIB são transferidos para poucas famílias, detentoras dos títulos públicos. O emprego precisa crescer mais rapidamente com melhores salários, com a diminuição substancial da taxa de juros e a renegociação da dívida, para evitar a transferência de ganhos financeiros para famílias muito ricas.
permaneceu esquecida, inclusive porque a área não tem coordenação. Não existe o reconhecimento da dívida social, metas e cronogramas. Só aparece como tragédia. É traduzida pelos meios de comunicação quando há um assassinato ou uma chacina. A temática não é politizada, a despeito de ser o problema mais grave do país.
A reforma trabalhista poderia desonerar a produção e gerar empregos? Pochmann – Os dados de 2004 mostram que o emprego formal cresceu tanto nas micro e pequenas empresas como nas grandes empresas. É mais uma argumentação que foi utilizada de forma ideológica, na tentativa de destruição dos direitos dos trabalhadores. No capitalismo, o emprego não é determinado pelo custo do trabalho. Se houver demanda e renda para consumir, aumentará a produção e, por conseqüência, o emprego. Fora disso, temos uma visão distorcida que levou a questão para o lado da oferta, ou seja, quanto menor o custo de trabalho, maior o emprego. É um equívoco que não se mostrou correto.
O senhor trabalha com uma dívida social em torno de R$ 7,2 trilhões para promover a cidadania a todos os brasileiros. Como foi composto esse número? Pochmann – O objetivo do estudo foi mostrar que os governos brasileiros estão gastando muito pouco na área social. Para reverter o quadro, precisamos de investimentos muito maiores. É possível, em um período relativamente curto de tempo, superar as nossas mazelas. Para isso, precisamos reconhecer o tamanho da dívida, seja em educação, saúde, habitação, transporte, saneamento, pobreza e questão agrária. O esforço que fizemos foi identificar em oito complexos da intervenção pública a distância que separa o Brasil de hoje do país da inclusão. Também dimensionamos o custo que representaria os investimentos nessas áreas. A estimativa da dívida social, dez vezes maior que a dívida financeira pública, é para chamar atenção que precisamos de uma mudança cultural no entendimento dos principais problemas da sociedade. Também para levar a uma conscientização da inversão de prioridades que precisamos fazer. Não dá para gastar mais a quantidade de recursos em transações financeiras e deixar a área social exposta à escassez de recursos.
No período da democratização do país, na década de 1980, houve um consenso sobre o pagamento da dívida pública. Depois disso, o Estado brasileiro passou a ser estruturado para servir aos interesses dos credores financeiros. Como isso aconteceu? Pochmann – Tivemos o ciclo da industrialização, que começou em 1930 e foi até 1980. Desde então, vivemos o ciclo da financeirização. Os principais mecanismos de valorização do capital são financeiros, fictícios. Não são operacionais, produtivos e concretos como anteriormente. O financiamento desse ciclo vem sendo sustentado no setor público. Tivemos nos anos 1980 um forte crescimento da dívida pública, em parte associada ao problema da dívida externa. Com isso, alguns segmentos específicos, especialmente os exportadores, foram os principais privilegiados pela política de financeirização. O sobrefôlego da financeirização foi possível a partir da entrada de recursos externos no Brasil. Dessa forma, o Brasil colocou em marcha políticas neoliberais? Pochmann – O país teve que fazer as privatizações e a regulamentação financeira, que deu aos ricos maior poder para a condução da política econômica. Isso faz com que a economia seja conduzida hoje de acordo com os interesses de 20 mil clãs de famílias, que respondem por 80% da totalidade dos títulos da dívida pública. Esse segmento tem um poder tão grande, capaz de orientar a política econômica. Eles não deixam cair a taxa de juros, senão pegam o dinheiro, deixam de financiar a dívida e vão embora. A economia brasileira foi organizada para atender cada vez mais esses interesses. Foi criada uma Secretaria do Tesouro, que controla o gasto público no país, com o objetivo de canalizar recursos para o pagamento do serviço da dívida pública. A área econômica tem uma coordenação e a equipe tem metas e cronogramas, discutidos diariamente pelos analistas econômicos e pelos jornais. Diferentemente da área social, que não recebe o mesmo tratamento... Pochmann – A questão social
Como pagar a dívida social? Pochmann – É possível pagar com o compromisso com o crescimento econômico. Se o país crescer entre 5% e 6% ao ano, podemos ter em dez anos, por meio da carga tributária, uma quantidade três vezes maior de recursos para financiar a área social. Enfrentaríamos as mazelas sociais crescendo e alterando o padrão das políticas públicas, que precisam operar de maneira convergente, integrada e articulada. Não dá mais para continuar tendo políticas que tratem dos pobres da saúde, da educação, do trabalho. O pobre é um só e precisa de uma interferência pública multidimensional. Neldo Cantanti
Anderson Barbosa
o modelo econômico não permite a adoção das políticas sociais universais de que o país precisa
Quem é O economista Márcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy) e coordenou o Atlas da Exclusão Social no Brasil, série de estudos com uma radiografia da exclusão social.
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NACIONAL BIODIVERSIDADE
A decisão nas mãos do Brasil
Hamilton Octavio de Souza
Está em discussão a identificação das cargas transgênicas internacionais
Monopólio protegido Proibido pela Constituição Federal, o monopólio da comunicação social não está apenas na concentração das emissoras de TV aberta nas mãos de alguns poucos grupos empresariais; a fusão da Sky e da DirecTV deram para a nova empresa o controle de 97% do mercado de TV por satélite. O Ministério das Comunicações, a Anatel e o Ministério Público dormem em berço esplêndido! Pior: a Sky e a DirecTV pertencem a um grupo dos Estados Unidos. São estrangeiras. Paraíso financeiro Parece brincadeira, mas é muito sério: no mês de janeiro as empresas estrangeiras, principalmente do setor financeiro, remeteram lucros para suas matrizes no valor de 1,5 bilhão de dólares, 314% a mais do que em janeiro de 2005. Está claro que a mão-de-obra barata e o juro alto proporcionam lucros jamais vistos no capitalismo brasileiro. Graças à gestão do Lula-PT. Realidade reveladora No dia 23 de fevereiro, o jornal O Estado de S. Paulo, representante do capital financeiro e das oligarquias paulistas, deu a seguinte manchete: “Em três anos de Lula, bancos já lucram mais que nos oito de FHC”. Não se sabe se o jornal decidiu entrar na campanha pela reeleição de Lula ou se está fornecendo munição para os adversários. A constatação desmente todo o discurso oficial sobre o compromisso com os mais pobres. Máfia antinacional Conhecidos por suas malandragens seculares (subsídios públicos, empréstimos não pagos, sonegação fiscal etc.), os usineiros continuam causando prejuízos ao país e ao povo brasileiro, agora com aumento extorsivo no preço do álcool combustível. Se o Brasil tivesse um governo nacional e popular sério, com certeza já teria encampado as usinas de álcool para assegurar o abastecimento da frota de veículos a preços sem exploração. Lugar de usineiro é na cadeia. Reserva ameaçada Movimentos ambientalistas de Minas Gerais estão empenhados numa enorme batalha para consolidar os limites e a proteção do Parque Nacional da Serra da Canastra, que vem sendo invadido e destruído por fazendeiros e empresas mineradoras. O governo federal criou uma comissão de estudos, mas não adotou medidas efetivas para a preservação ambiental do parque. A mobilização é urgente. Salada geral No dia 22 de fevereiro, o senador Antonio Carlos Magalhães, do PFLBA, também conhecido como Toninho Malvadeza por sua trajetória de truculência, publicou no jornal Folha de S. Paulo um artigo denominado “O fim da roubalheira”, desancando o governo Lula e o PT. À noite, no mesmo dia, o hipócrita coronel baiano jantou com o ex-deputado petista José Dirceu num luxuoso restaurante de São Paulo. Dá para entender? Megalomania Enquanto o governo Lula entope os meios de comunicação – TVs, rádios, jornais e revistas – de propaganda oficial, e o presidente Lula percorre o Brasil fazendo discursos demagógicos, o noticiário da imprensa nos últimos dias registra o aumento do desemprego nas principais capitais, a queda da renda e o aumento da inadimplência, três indicadores da situação real dos trabalhadores. Alguém anda por fora da realidade.
Luís Brasilino da Redação
O
tal “pacto social” proposto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na campanha de 2002 será colocado mais uma vez a prova este mês, em Curitiba (PR). Depois de aprovar uma Lei de Biossegurança (março de 2005) ao gosto do agronegócio e das transnacionais produtoras de sementes e produtos transgênicos, novamente o governo terá a responsabilidade de se posicionar em relação ao ambiente e à saúde da população, desta vez no âmbito internacional. A capital paranaense será sede de dois eventos da Organização das Nações Unidas (ONU). Primeiro, entre os dias 13 e 17, a 3ª Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP3). Logo depois, entre 20 e 31, será realizada a 8ª Conferência das Partes da Convenção de Diversidade Biológica (COP8). Já no primeiro encontro, a delegação brasileira enfrentará uma grande polêmica. Entre os dias 30 de maio e 3 de junho de 2005, em Montreal (Canadá), o Brasil prestou um grande serviço para latifundiários e transnacionais. Era a MOP2, e a postura do governo foi de barrar as negociações para a identificação de cargas transIdentificação e portadas interRotulagem – Na identificação, as nacionalmente, cargas devem ser o artigo 18, especificadas com parágrafo 2(a) relação à espécie de organismo gedo Protocolo de neticamente modifiCartagena. cado e às medidas A discussão de biossegurança que devem orientar central desse o transporte. A rodocumento gira tulagem se refere em torno de exclusivamente ao rótulo dos produas propostas dutos. Um grande para esse ponto. “T” determinando Uma sustenta que certo alimento que, no comértem ingredientes transgênicos, por cio exterior, a exemplo. identificação da carga seja feita por meio da palavra “contém”; incluídas aí todas as especificações sobre o que exatamente está no conteiner. A outra posição, defendida por países que não ratificaram o Protocolo, como é o caso da Argentina e dos Estados Unidos, sugere a expressão “pode conter”. “Ora, essa expressão é absolutamente genérica e insuficiente do ponto de vista da biossegurança. Simplesmente demonstra uma incerteza, não possibilita que o país adote nenhuma política para resguardar o ambiente e a saúde da população contra os possíveis riscos de produtos transgênicos”, contesta a advogada Maria Rita Reis, assessora jurídica da organização civil Terra de Direitos. Uma boa amostra da argumentação contrária à de Maria Rita pôde ser vista em reportagem publicada no dia 23 de fevereiro, pelo jornal Folha de S. Paulo. O título é “Acordo internacional eleva o custo Brasil” e o subtítulo “Protocolo de Cartagena gera adicionais, afeta produção de commodities e reduz margem de ganho do setor”. De um lado, ambiente e saúde; de outro, o comércio e a indústria.
MAU EXEMPLO Os grandes exportadores de transgênicos – Argentina, Canadá e Estados Unidos – são também os defensores do “pode conter”. No entanto, por não ter assinado o Protocolo não podem falar nas reuniões. Assim, lançam mão de porta-vozes. Na MOP2, em Montreal, estes países foram o Brasil e a Nova Zelândia, que nem produz transgênicos. Ao todo 127 países participaram. Na época, o Ministério das Relações Exteriores informou que, dada a falta de consenso dentro da delegação brasileira, a Casa Civil
Sem apoio brasileiro, países importadores nunca saberão se o milho transgênico está entrando em seu território
foi consultada e instruiu o Itamaraty a impedir o progresso do artigo 18, parágrafo 2(a). Sendo assim, o Brasil não tomou nenhuma das duas posições e obstruiu as negociações – como no Protocolo as decisões devem ser tomadas por consenso, não houve avanço. Por isso, todas as atenções em Curitiba estarão voltadas para a posição do Brasil. “Nova posição brasileira contra o ‘contém’ será uma negação ao próprio Protocolo que o país já assinou e ratificou, há um compromisso internacional nesse sentido”, observa Maria Rita. A socióloga Marijane Lisboa, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e integrante da Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos, acredita que será difícil o Brasil fazer em Curitiba o que fez em Montreal. “Agora o governo está mais exposto, não dá para permanecer em cima do muro e não se posicionar. A conferência acontece no Brasil, não num local longínquo; no Paraná, Estado do único governador (Roberto Requião – PMDB) que batalha para manter seu território livre de transgênicos; em ano eleitoral; e na presença de diversos movimentos sociais”, avalia Marijane. Ela lembra também que esta é a primeira grande reunião de ambiente que acontece no país, desde a Eco 92.
Outro fator de pressão sobre o governo é o calendário. Apenas três dias separam a MOP3 da COP8. Gabriel Fernandes, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), acredita que, caso as negociações em torno do artigo 18, parágrafo 2(a), fracassem de novo por causa do Brasil, o segundo encontro pode ser afetado. “A chance de todo o resto ir para o espaço é grande. É extremamente complicado para o governo, primeiro porque vai sediar os eventos, depois porque ele já melou a MOP2 e, a partir da COP8 passará a presidir a Conversão de Diversidade Biológica por dois anos. Seria muito ruim para o país assumir a presidência já com posições tão ruins”, alerta Fernandes.
FIEL DA BALANÇA Diferentemente de outras esferas internacionais, o Brasil tem um peso muito grande na MOP. Marijane sustenta que, se o Brasil passar para o lado do “contém”, essa posição sairia vitoriosa porque a Nova Zelândia não tem coragem de sustentar sozinha esse papel. O país só o fez em Montreal pois tinha o Brasil ao lado. “Logo após a MOP2, o ministro do Meio Ambiente neozelandês foi chamado a prestar esclarecimentos em uma audiência pública no Congresso.
Foi uma situação bastante constrangedora e, provavelmente, eles ficarão discretos em Curitiba”, avalia a socióloga. No entanto, até o momento, poucos arriscam uma previsão. Nas reuniões que o Itamaraty promoveu com a sociedade civil, pôde-se observar uma clara divisão. De um lado, os ministérios do Meio Ambiente, da Saúde, do Desenvolvimento Agrário e da Justiça. De outro, Agricultura, Ciência e Tecnologia e Indústria, Comércio de Desenvolvimento. Por sua vez, a Casa Civil, de acordo com Marijane, comparece aos encontros mas não se pronuncia: “Aparentemente, não está fazendo sequer o seu papel de produzir consenso dentro do governo. Quem tem feito isso é o Itamaraty, mas não sabemos com que grau de sucesso”. Para Gabriel Fernandes, contudo, o governo tem dado sinais preocupantes. O último foi a reunião entre secretários executivos do Conselho Nacional de Biossegurança, realizada no final de fevereiro e presidida pela Casa Civil. “Baixaram a lei da mordaça. Até onde conseguimos nos informar as pessoas que estiveram na reunião estão proibidas de fazer qualquer comentário sobre o que foi conversado ali. Coisa boa não deve ser”, suspeita, Fernandes.
O que está em jogo “O Brasil é o país com a maior biodiversidade do planeta e deveria ter como preocupação principal preservá-la. O Brasil deveria pensar antes de tudo em defender o interesse coletivo: a diversidade biológica, a agricultura familiar e a saúde do seu povo. Os interesses econômicos de meia dúzia de agricultores – que plantaram transgênicos ilegalmente e agora querem vender transgênicos como se não fossem – e das grandes empresas
de biotecnologia devem ser colocados em segundo plano”. Assim, a socióloga Marijane Lisboa explica a questão dentro do Protocolo de Cartagena. Esse tratado entrou em vigor apenas em 2004, sendo que as assinaturas dos países foram abertas em 2003. Funciona como uma lei, mas é ainda muito genérico. As reuniões das partes, como a MOP3, servem para discutir detalhes e formular regras mais
João Paulo Barbosa/ Greenpeace
Comparação numérica Os bancos Itaú e Bradesco acabam de anunciar um lucro líquido histórico de quase R$ 6 bilhões em 2005, cada um, graças às taxas de juros fixadas pelo governo. Cerca de 600 fazendeiros nordestinos estão pedindo o perdão de suas dívidas bancárias no valor total de R$ 6 bilhões. Coincidentemente o governo gasta pouco mais de R$ 6 bilhões com o programa bolsa-família, que atende cerca de 38 milhões de pessoas. Vejam a parte de cada um.
Greenpeace
Fatos em foco
Superávit ou saúde da população: governo vai decidir o que lhe é mais importante
específicas e, portanto, práticas. Marijane explica que, no âmbito do Protocolo, a divisão não pode ser “a favor” ou “contra” transgênicos. O foco central é discutir e implementar medidas para garantir que não haja danos ambientais e à saúde. Para isso, o mais importante é que o país importador de organismos geneticamente modificados seja devidamente informado sobre qual o conteúdo da carga que está entrando em seu território. Esses grãos e sementes, mesmo que destinados à alimentação, podem cair no solo e germinar. Com a Lei de Biossegurança que o Brasil aprovou, o Protocolo ganha ainda mais importância. “O objetivo da legislação vigente no país é facilitar o mecanismo de liberação de transgênicos e retirar qualquer medida de biossegurança. Como a maior parte do que produzimos é para exportação, a definição de regras claras internacionalmente vai obrigar o sistema produtivo local a se organizar de modo a impedir a mistura das sementes transgênicas com as convencionais, estabelecendo um padrão de segregação e rastreabilidade. Isso é importante inclusive para garantir a existência da produção convencional”, esclarece Maria Rita Reis, da Terra de Direitos. (LB)
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NACIONAL DIREITOS IGUAIS
Mulheres querem salário digno Heloísa Negrão da Redação
A
Agência Brasil
No Dia Internacional da Mulher, brasileiras se mobilizam por aumento real do mínimo e pelo fim da desigualdade
valorização do salário mínimo será a principal bandeira de mobilização nacional e das manifestações regionais que este ano vão celebrar, no Brasil, o 8 de março – Dia Internacional da Mulher. A escolha do tema foi uma estratégia para levar às ruas a reflexão não apenas sobre o poder aquisitivo da população, como também sobre as diferenças históricas nas remunerações de mulheres e homens. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, dos trabalhadores que recebem salário mínimo, o número de mulheres – 16 milhões – é muito maior do que o número de homens, e mais ainda quando se trata de mulheres negras. Em 2003, de cada cem mulheres com rendimentos do trabalho, quase 49 estavam na faixa até o mínimo, enquanto havia 32 homens na mesma situação. Entre as mulheres que têm renda de seu trabalho, cerca de 20% – 4 milhões – são empregadas domésticas, das quais 58% são negras. A relação direta que o salário mínimo tem com o combate à pobreza foi um dos motivos que levou as organizações feministas a optar pelo tema deste ano, segundo Mirian Nobre, integrante da Sempreviva Organização Feminista e da coor-
No Dia Internacional da Mulher, movimentos feministas defendem a valorização do salário mínimo para combater a pobreza
denação Nacional e Internacional da Marcha Mundial das Mulheres (MMM). Uma das reivindicações específicas das ativistas é de que o mínimo deixe de ser reajustado somente pela reposição da inflação do período, que saia do trâmite burocrático orçamentário do governo e passe a ter reajuste real. Em uma campanha que se inicia dia 8 de
março e vai até 1º de maio, Dia do Trabalhador, a Marcha Mundial das Mulheres vai exigir que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumpra a promessa de dobrar o salário mínimo, ou que esse valor seja atingido em quatro anos, com aumento de 19% ao ano. Além da bandeira nacional, os movimentos feministas vão apon-
tar as problemáticas locais, em cada Estado.
PELO BRASIL Na cidade amazonense de Paritins, haverá discussões sobre a organização das empregadas domésticas, muito discriminadas na região, segundo Maria de Fátima Guedes Araújo, coordenadora do movimen-
POLITIZAÇÃO
EDUCAÇÃO
PUC pode entrar em greve contra mercantilização
Vinte anos preparando mulheres para mudar o mundo
Salários atrasados, contratos trabalhistas violados e o início das aulas adiado em quase um mês. O quadro crítico da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) é resultado de anos de má administração financeira, chegando a um déficit mensal de R$ 4 milhões. Para tentar sanar a dívida de R$ 82 milhões da instituição, a reitoria adotou uma política de ajuste fiscal que prevê o corte de 30% dos professores e funcionários. Desde dezembro do ano passado já foram mais de 400 desligamentos. No início da crise, cada departamento das faculdades discutiu e decidiu quais seriam os professores e funcionários que seriam demitidos. Porém, na segunda lista de cortes, a reitoria e a Fundação São Paulo, mantenedora da universidade, é que deram as cartas. “Uma vez que aceitamos as demissões iniciais, abrimos o caminho para a Fundação São Paulo não aceitar nossos limites”, lamentou Erson Martins de Oliveira, diretor da Associação de Professores da PUC (Apropuc). “Cerca de 20% dos professores foram e ainda estão sendo demitidos. Alguns critérios consideram prioritariamente a idade e o salário, desconsiderando a qualificação e a contribuição acadêmica que esses profissionais dão a excelência desta
Alunas de Economia e Mulheres, “o curso falou minha língua”, diz uma delas
aparece na mídia. Descobrimos que Duque de Caxias é o município que arrecada mais impostos no Rio de Janeiro e, mesmo assim, nos faltam escolas e postos médicos”, desabafa Maria do Carmo, que garante ter, hoje, base para lutar pelos seus direitos. “Antes eu ouvia coisas na TV que eu não entendia, mas o curso falou a minha língua”, diz.
ALÉM DA CASA Leila Souza Neto, de Pedra de Guaratiba (RJ), fez o curso porque sentia vontade de discutir economia, dívida e violência doméstica. Por meio dela, outras mulheres da sua comunidade estão fazendo o curso. “Precisamos discutir o dia-adia do nosso país, apesar de cuidarmos da casa e dos filhos”, afirma. Leila passou a debater questões de economia solidária com o seu grupo “Mulheres de Pedra”, que gera renda com bordados, crochê, tricô e material reciclado. Sandra Quintela explica que, com o curso “Economia e Mulheres”, as pessoas começam a ver o mundo com outros olhos. “Têm o sentimento de terem sido enganadas por muito tempo e entendem as causas das desigualdades sociais, da miséria e da pobreza em que vivem, e isso causa vontade de mudar. Aceitamos, inclusive, uma analfabeta. Não podemos discrimi-
nar, descobriremos outras formas de linguagem”, afirma. Na mesma perspectiva de construir outros valores, o Pacs plantou, em 1999, a semente da “Rede de Trocas Solidárias”, na qual são trocados produtos e serviços sem o uso de moeda (real). Hoje, a rede se multiplica, tem diversos núcleos e faz reflexões sobre as práticas do sistema capitalista, trocando os impulsos de egoísmo, individualismo e concorrência por sentimentos de solidariedade e valorização do outro. Outro importante estudo do Pacs começou há dois anos e discute os impactos sociais dos jogos Pan Americanos, que em nenhum país foi bom. “Estão tirando saúde e educação para colocar nos jogos Pan Americanos, além de quererem remover algumas favelas como o Engenhão e a Vila Autódromo”, diz Sandra. Com o apoio da instituição, essas comunidades estão se organizando e resistindo. “A gente sempre prioriza o trabalho coletivo”, afirma Sandra. O Pacs acredita que o desenvolvimento só pode ocorrer por meio de um movimento que vai da pessoa para a coletividade, ou seja, um processo que se desdobra de dentro para fora. O instituto não pretende, apenas, que os oprimidos resistam às injustiças, mas que inovem no avanço do desenvolvimento.
universidade”, criticou a estudante de Ciências Econômicas Christiane Liberatori, vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE-SP).
MOBILIZAÇÃO Dia 22 de fevereiro, o Conselho Universitário decidiu revogar as demissões. No entanto, com a intervenção da instituição mantenedora, o espaço perdeu peso político. Dom Cláudio Hummes, da Arquidiocese da São Paulo, negou a responsabilidade total da Igreja pelos ajustes e colocou a reitora Maura Véras como uma das integrantes da reestruturação financeira. Para Oliveira, a reitora é tão responsável quanto os padres da Fundação São Paulo. Segundo ele, trata-se de um remodelamento mercatil da PUC. Nas novas regras impostas pela administração, os novos contratados terão salários menores e serão considerados permanentemente como funcionários provisórios, como ocorre na maior parte das universidades particulares. No caso dos professores, até o final do ano é possível que o plano de carreira se reduza a contratos por hora/aula. Na última assembléia, os funcionários e professores disseram que não assumirão nenhuma disciplina ou atividade dos colegas demitidos. Eles já tiraram um iniciativo de greve e debatem a viabilidade de iniciar uma campanha pela estatização da PUC.
Agência Brasil
O Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) completa 20 anos com um histórico de ações destinadas a mudar o mundo. Segundo a economista da instituição, Sandra Quintela, o objetivo é esse mesmo: “Esse instituto de desenvolvimento solidário ainda acredita que amanhã há de ser outro dia”. Com esse propósito, o Pacs trabalha no sentido de denunciar o modelo econômico atual e de propor alternativas sustentáveis. Com sede no Rio de Janeiro, o Pacs tem atuação diversificada. Na área de formação, ministra cursos e seminários abertos à participação gratuita. Na área de informação, se dedica à produção de livros, CDs, cartazes e vídeos. E, na articulação social, fortalece a conexão entre diversas iniciativas, no Brasil e no mundo, firmando inúmeras parcerias. Em um dos cursos mais recentes realizados pelo Pacs, “Economia e Mulheres”, a proposta é formar uma opinião pública diferenciada, desconstruindo o discurso da grande imprensa. Uma das coordenadoras do curso, Sandra explica que, durante os estudos, as mulheres, na maioria negras e de baixa renda, passam a entender a conexão entre a precarização da vida cotidiana e os organismos financeiros internacionais. “Elas compreendem o que tem a ver o Jornal Nacional com a vida delas e como transformar isso”, diz a economista. Em alguns casos, essas mulheres se tornam multiplicadoras, isto é, repassam os ensinamentos para as comunidades onde vivem. É o caso de Maria do Carmo da Silva Miranda. Moradora de Saracuruna, em Duque de Caxias (RJ), ela formou o grupo de mulheres “Chocobim”, que trabalha na formação de adolescentes, com o objetivo de auxiliar os jovens a ampliar seus horizontes. “A partir do curso, começamos a prestar atenção no que
Maíra Kubík Mano de São Paulo (SP)
Arquivo PACS
Júlia Gaspar do Rio de Janeiro (RJ)
to feminista na cidade. Além disso, as mobilizações vão incluir o resgate das mulheres que trabalham com medicina natural, como as parteiras, benzedeiras e as pegadoras de ossos (tratam de deslocamento ósseo, ou muscular), marginalizadas tanto pela Igreja, quanto pela medicina. Uma das reivindicações é incluir essas mulheres no Sistema Único de Saúde – proposta que já tem o apoio da Secretaria Municipal de Saúde. Em São Paulo, sob o lema “Somos todas feministas! Mulheres em movimento mudam o mundo”, mulheres de diversos movimentos marcharão pela Avenida Paulista marcando presença com o uso da cor lilás. As moradoras do Centro da cidade terão um bloco para denunciar a política higienista do prefeito José Serra. Em Porto Alegre, acontecerão duas caminhadas num dia de luta e reflexão contra a violência, por terra, trabalho, saúde e educação. Pela tarde mulheres caminharão com as camponesas, ligadas aos movimentos sociais do campo. Em Brasília, cerca de cinco mil mulheres marcharão pela regulamentação do projeto de lei, aprovado em 2005, que regulamenta a aposentadoria para as donas de casa. Está prevista uma “orquestra de panelas” em frente ao Palácio do Planalto, além da entrega de abaixos-assinados a representantes do Executivo.
Crise na PUC: mais de 400 professores e funcionários demitidos
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NACIONAL HABITAÇÃO
A solução de Serra: expulsar os pobres Bruno Terribas da Redação
Bruno Terribas
Prefeito tucano “combate” a falta de moradia mandando cidadãos para a periferia ou para fora de São Paulo
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s números do déficit habitacional de São Paulo dão a dimensão dos problemas gerados pelo processo de urbanização descontrolado ocorrido no país no século 20. De acordo com estimativa do Centro de Estudos da Metrópole, há 1,1 milhão de moradores em favelas, mais 1,6 milhão vivendo em loteamentos irregulares e 600 mil em cortiços. No dia 15 de fevereiro, no Centro da cidade, centenas de manifestantes se reuniram no “Ato das Favelas” para denunciar à sociedade a grave situação e exigir do poder público a resolução do problema. As organizações criticaram também aquilo que o prefeito José Serra (PSDB) apresenta como “solução” para o problema habitacional. Como, por exemplo, a oferta de até R$ 5 mil para estimular o retorno das famílias – despejadas de prédios ocupados ou vítimas de incêndios em favelas – às suas regiões de origem. Às vezes, os moradores de favelas removidas têm também a “opção” de se mudar para conjuntos habitacionais em bairros distantes, o que altera consideravelmente a rotina das famílias – mais tempo e dinheiro gasto para a locomoção na cidade, além da perda do ano letivo dos filhos, que ficam longe da escola em que estavam matriculados. Em novembro de 2005, mais de 400 famílias foram transferidas da favela Miltom Tavares, da zona norte da cidade, onde as famílias estavam mais próximas do centro,
No “Ato das Favelas”, manifestantes protestam contra os despejos promovidos pelo governo tucano no Centro da cidade de São Paulo
para um conjunto habitacional do Jardim Lajeado da zona leste, distante 30 quilômetros da região central, um bairro de IDH (0,397) similar ao de países como Zâmbia (0,394) e Congo (0,385). É a política habitacional IDH – Índice de que amplia a Desenvolvmento Humano, medido pobreza, em vez pela ONU. de combatê-la.
e associações de moradores de cerca de 30 favelas de todas as regiões da capital e da Grande São Paulo. Na pauta de reivindicações, constam a retomada do Programa de Urbanização e Regularização Fundiária, a suspensão de todos os despejos com a abertura de um canal de negociação com as famílias ameaçadas, além da instituição de tarifas sociais nas cobranças de água e luz. “O governo Serra gasta mais com o serviço de coleta de lixo do que com a política habitacional”, denuncia a coordenadora
REIVINDICAÇÕES O ato foi organizado pela União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), Movimento de Defesa das Favelas (MDF)
O desafio do Estatuto das Cidades O Estatuto das Cidades foi uma importante conquista na luta dos setores organizados da sociedade civil para o desenvolvimento de uma política urbana com a aplicação de instrumentos de reforma urbana voltados a promover a inclusão social e territorial nas cidades brasileiras. Entretanto, sua implantação está seriamente ameaçada. Parte dos mais de 1.700 municípios com população acima de 20 mil habitantes ou integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas precisam elaborar ou rever o Plano Diretor até outubro de 2006. O Ministério das Cidades tem trabalhado com o programa “Plano Diretor Participativo” para ajudar os municípios a concluir o processo. A formação de Comitês Estaduais, em parceria com ONGs e universidades, e a distribuição de kits-campanha são alguns dos meios de divulgação do programa. “A campanha chegou a todo Brasil”, conta a diretora do Departamento de Apoio a Gestão Municipal Territorial, Otile Pinheiro.
AVANÇOS ESSENCIAIS
diretores para que cada um dos instrumentos previstos na “revolução” representada pelo Estatuto esteja presente na edição específica dos municípios. Um dos problemas na implementação dos planos diretores é que, por ter sido aprovado em 2001, a responsabilidade do processo passou por duas administrações municipais. Além disso, “muitos municípios deixaram para a última hora a elaboração, o que dificulta termos planos diretores mais completos”, diz Paula Santoro, arquiteta-urbanista do Instituto Pólis. Os movimentos populares têm lutado pela aplicação da função social da propriedade, que precisa ser aplicada por meio do plano diretor e lei específica. “Desde a Constituição de 1988, já se passaram 18 anos e, se for feito um balanço, ainda não houve conquista prática”, afirmou Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares (CMP). Para o dirigente, “é imprescindível que a sociedade atue para que seja vencida a pressão do setor imobiliário, que faz lobby junto às prefeituras na aprovação das leis específicas. Os movimentos têm cobrado e participado neste sentido, para evitar que o Estatuto se torne uma ‘letra morta’” (BT).
Movimentos sociais tentam evitar que Estatuto das Cidades vire “letra morta”
tro paulistano e a ausência da intermediação da prefeitura nos conflitos – caso dos diversos despejos de prédios públicos ocupados – são apontadas pelo vereador como outras deficiências da gestão tucana na área da habitação. O atual secretário, Orlando de Almeida Filho, é corretor de imóveis há mais de 30 anos e dono de imobiliária na cidade. Em uma entrevista, afirmou que não concorda com a idéia de “querer trazer para a região central a população de baixa renda”, uma das políticas incentivadas pela gestão petista.
No Estado de SP, 12 anos de descaso com a moradia Com três mandatos da dupla Geraldo Alckmin e Mário Covas, o PSDB completa, em 2006, 12 anos de administração do Estado de São Paulo, sem que tenha conseguido implantar um plano habitacional efetivo para a diminuição do déficit habitacional, de aproximadamente 1 milhão de moradias. A maior crítica dos movimentos ligados ao setor é a falta de participação popular nas decisões do governo. “Tudo fica centralizado na Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), não se sabe quais são os critérios, o porquê se decide implantar um programa neste e não naquele município, o número de famílias a serem atendidas”, critica o deputado estadual Simão Pedro (PT), presidente da comissão de Obras e Serviços da Assembléia Legislativa do Estado. “É uma política clientelista com fins eleitorais, pois o governo faz acordos com deputados e prefeitos das regiões das obras para que as inaugurações gerem dividendos políticos no futuro”.
Bruno Terribas
Rodrigo Pagani, da Sociedade Brasileira de Direito Público, ressalta a importância de uma criteriosa elaboração legal dos planos
do Fórum de Cortiços, Verônica Kroll. O vereador Paulo Teixeira (PT), ex-secretário de Habitação da gestão de Marta Suplicy, relata que o atual prefeito “parou o programa de reformas dos prédios do Centro para moradia popular e os programas de locação social, que já estavam acertados em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)”. Teixeira é integrante da Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara de Vereadores. A expulsão dos pobres do Cen-
A criação de um Conselho e de um Fundo Estadual de Habitação são reivindicações antigas do movimento de moradia que, em 1995, reuniu 180 mil assinaturas e apresentou projeto de Lei de Iniciativa Popular. Mesmo assim, até hoje nenhum deles foi implantado. Atualmente, o projeto está em tramitação na Assembléia Legislativa.
PARTICIPAÇÃO POPULAR Segundo o advogado Benedito Barbosa, da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP), a falta de recursos não pode ser usada como desculpa para a falta de política habitacional. “O Estado não tem investido todo o recurso destinado para a habitação popular, que é de 1% do ICMS (cerca de R$ 700 milhões)”, denuncia. A CDHU é, ainda, alvo de diversas denúncias de corrupção e irregularidades. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) apontou 380 contratos irregulares na empresa e existem outros 706 processos em andamento sobre outras irregularidades. A bancada
governista da Assembléia Legislativa tem “abafado” os pedidos de Comissão Parlamentar de Inquéritos (CPIs) – que não são instauradas na Casa há três anos –, mesmo com denúncias públicas. A Secretaria de Habitação se defende, afirmando que em 11 anos de governo foram entregues 222.701 unidades habitacionais em São Paulo. Quanto ao atendimento dos prefeitos, alega que cabe a eles a decisão das prioridades. Para o governo, o Fundo e o Conselho Estadual da Habitação impediriam que “a União e o Estado investissem recursos nas mesmas áreas”. A CDHU nega que não invista todo o recurso destinado ao setor, tampouco que exerça influência no poder legislativo para barrar CPIs. A assessoria de imprensa diz, ainda, que “críticas disparadas pelos movimentos geralmente vêm de entidades que comandam ‘invasões’ de áreas públicas e privadas”. Neste caso, não haveria “o que negociar com pessoas físicas e jurídicas que agem à margem da lei”. (BT)
Críticas também ao ministro das Cidades Os pouco mais de 200 dias da gestão de Márcio Fortes no Ministério das Cidades já foram o suficiente para que os movimentos populares ligados à área da habitação acumulassem descontentamentos. O coordenador do Fórum Nacional de Reforma Urbana, Ubiratan Félix, diz que na antiga gestão, a liberação de recursos obedecia a critérios técnicos, o que não tem ocorrido com Márcio Fortes. “O ministro tem uma maior preocupação em flexibilizar estes critérios, abrindo brechas para a atuação dos deputados que procuram conseguir emendas visando às eleições”,
alerta. Integrante do Conselho das Cidades, o baiano acredita que o Conselho seja o instrumento de fiscalização dessa política, como forma de evitar uma centralização excessiva por parte do ministro.
CONTATO A relação entre os movimentos urbanos e o ministério ficou também mais distante do que na gestão anterior, de Olívio Dutra. O diagnóstico é de Maria José Lopes da Silva, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). “Com o Olívio, havia um contato constante, éramos recebidos
pessoalmente por ele em Brasília. Atualmente, não há uma conversa de igual pra igual”, relata Maria José. Da biografia do atual ministro, consta uma longa lista de cargos públicos exercidos em 40 anos, tendo ocupado inclusive a Chefia de Gabinete de um dos ministros do governo Médici. Sua indicação para o cargo foi uma oferta do governo para o PP de Severino Cavalcanti, cujo partido Fortes se aproximou quando foi secretário-executivo do Ministério da Agricultura do governo Fernando Henrique Cardoso. (BT)
Ano 4 • número 157 • De 2 a 8 de março de 2006 – 9
SEGUNDO CADERNO PALESTINA
Potências unidas contra a democracia João Alexandre Peschanski da Redação
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or meio de eleições livres e sem fraudes, os palestinos elegeram, em 25 de janeiro, 132 parlamentares, responsáveis pela formação de um novo governo. A votação, certamente aplaudida se ocorresse em outro país, resultou em críticas e ataques por parte de países ricos como Estados Unidos e Israel, da União Européia e da Organização das Nações Unidas (ONU). O motivo: não gostaram do resultado do pleito. Venceu o movimento político Hamas, que conquistou 76 deputados e indicou os integrantes do governo, incluindo o primeiro-ministro, Ismail Haniyeh. Os grandes meios de comunicação, incluindo os brasileiros, se apressaram em dizer que um grupo terrorista havia vencido as eleições palestinas. Pura desinformação, avalia, para o Brasil de Fato, o ativista Michel Warshawski, do Centro de Informação Alternativa (AIC), entidade israelopalestina que promove campanhas pela paz no Oriente Médio. “O Hamas é um movimento político extremamente racional e pragmático. A longo prazo, a islamização do mundo árabe é seu objetivo. Está pronto a aceitar uma situação de coexistência com Israel, negociando com seus dirigentes e respeitando os acordos já assinados. Aceitou o jogo democrático e as relações dentro do poder, desde que decidiu participar das eleições”, afirma Warshawski.
SANÇÕES E ATAQUES Para o governo israelense, o Hamas não passa de um grupo terrorista. Com base nessa premissa, o primeiro-ministro interino isralense, Ehud Olmert, decidiu, em 21 de fevereiro, aplicar sanções econômicas e políticas contra a Palestina. Em março, vai acabar com a transferência mensal de 50 milhões de dólares, correspondentes ao reembolso de direitos alfandegários que Israel
Denis Van Praet/ ECHO
Estados Unidos, Israel, ONU e União Européia pressionam para desestabilizar o governo formado pelo Hamas
População palestina depende de ajuda internacional para sobreviver, pois a economia do país está devastada, resultado de quase 40 anos de ocupação israelense
cobra de produtos que vão para a Palestina. Os recursos representam 30% do orçamento palestino e garantem o pagamento dos 140 mil funcionários do país, incluindo policiais e integrantes das forças de segurança. Olmert também ordenou
a proibição de trânsito, entre Gaza e Cisjordânia, territórios desconexos que formam a Palestina, de pessoas ligadas ao Hamas, mesmo que façam parte do governo. Estados Unidos, União Européia e ONU ameaçam cortar a ajuda
Jazeera, o porta-voz do Hamas, Sami Abou Zouhri, afirmou que a organização “rejeita negociações com o ocupante, enquanto a ocupação e a agressão continuarem. A resistência é um direito natural de nosso povo”.
DIÁLOGO E UNIÃO
Quem é o novo premiê palestino Responsável pela formação do governo da Palestina, o primeiro-ministro, Ismail Haniyeh, é considerado um moderado, dentro do Hamas. Defende o diálogo entre os diferentes grupos que compõem o cenário político palestino, mas não aceita o fim da luta armada contra o Exército israelense, enquanto este ocupar a Palestina – ocupação que se iniciou em 1967. Haniyeh, de 43 anos, nasceu em Chatti, campo de refugiados em Gaza, onde ainda vive. Tem 11 filhos. Cursou Educação na Universidade Islâmica, onde se envolveu com o movimento estudantil, lutando contra a ocupação da Palestina. É chamado de sheikh, título concedido a conhecedores da doutrina do islamismo. Recebeu parte de sua educação religiosa e política do sheikh Ahmed Yassin, principal líder e fundador do Hamas, assassinado pelo Exército israelense em 2004. De 1999 ao assassinato de Yassin, Haniyeh foi chefe do gabinete do Hamas, em Gaza. Apesar de seu perfil moderado, Haniyeh é considerado um terrorista, pelo governo israelense. Foi preso diversas vezes por soldados de Israel, principalmente durante a primeira Intifada, levante palestino contra a ocupação do país, no final dos anos 1980. Em 2003, foi alvo de um ataque israelense que pretendia assassiná-lo. No Hamas, é visto como um político íntegro e incorruptível. Imagem que o afasta da elite política palestina, principalmente do Fatah, sobre quem pesam denúncias de desvio de recursos destinados a ajuda humanitária. (JAP)
Solidariedade de povos e governos árabes
Violência mata o sonho de unidade
no Oriente Médio, como a Irmandade Islâmica (Egito) e o Hizbollah (Líbano), prometeram enviar ajuda financeira ao governo palestino. Em nota veículada pela Al-Jazeera, em 22 de fevereiro, Mohammed Mahdi Akef, da Irmandade, pediu aos integrantes e simpatizantes da organização que doassem parte de sua renda à causa palestina. Maior movimento islâmico da região, a Irmande tem representantes em 70 países.
Mohammed A. Salih de Arbil (Iraque) O atentado contra uma mesquita xiita no Iraque e a conseqüente onda de assassinatos e ataques contra lugares sagrados sunitas acabaram jogando por terra os sonhos de reconciliação nacional sob um governo que represente todos os setores. Mais de 130 pessoas morreram, dia 23 de fevereiro, em ataques e enfrentamentos em todo o território, apesar dos desesperados apelos à calma por parte das autoridades, que limitaram a ação da polícia e do Exército para impedir desmandos e evitar que o país caia em uma guerra civil. A onda de violência, desatada após um atentado com bomba, dia
RESISTÊNCIA AOS EUA A secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, esteve no Oriente Médio, entre 20 e 24 de fevereiro, para barrar a rede de apoio ao governo palestino. No primeiro dia, encontrou-se com o presidente egípcio, Hosni Mubarak, a quem pediu que não ajudasse o primeiro-ministro palestino, Ismail Haniyeh, integrante do Hamas. Após a passagem de Rice, o governo divulgou uma nota dizendo que não aceitava a interferência estadunidense na região pois ia contra a soberania dos países árabes. O mesmo tipo de recepção Rice recebeu nos outros países que visitou – Arábia Saudita, Líbano e Emirados Árabes Unidos. O líder do governo saudita, o príncipe Saud al Faisal, disse, em pronunciamento divulgado pela Al-Jazeera, que “vai continuar a ajudar os palestinos, pois vivem em condições difíceis e dependem da ajuda humanitária”. (JAP)
Em 22 de fevereiro, Haniyeh se reuniu com o Fatah, grupo político que controlava o governo, do qual participa o presidente palestino, Mahmoud Abbas, para expressar a disposição do Hamas em criar um gabinete de coalizão. Azzam al-Ahmad, líder da bancada parlamentar do Fatah, anunciou, no final da reunião, que havia acertado um compromisso com o primeiro-ministro, mas que um programa mais detalhado ainda devia ser discutido. Segundo Haniyeh, o objetivo do governo de coalizão é unir os grupos palestinos em defesa da soberania do país. O primeiro-ministro deve encontrar-se com outros movimentos para discutir a união das forças palestinas.
IRAQUE
22 de fevereiro, contra uma mesquita xiita na cidade de Samarra, acabou prejudicando as negociações entre os diferentes setores para a formação de um governo de coalizão, paralisadas há três meses. Nas eleições realizadas no dia 15 de dezembro de 2005, a xiita Aliança Iraquiana Unida (AIU) obteve 129 cadeiras, os partidos curdos ficaram com 53, a Frente para o Acordo Iraquino (FAI), formada pelos principais partidos sunitas, com 44, e a lista secular do ex-primeiro-ministro Ayad Allawi, com 25. Os resultados tornam impossível que qualquer partido por si só forme um governo, por isso a imperiosa busca de acordos para obter uma maioria de dois terços no parlamento.
Dia Hamid/ AFP/AE
O governo palestino, alvo de pressões internacionais, recebe o apoio de líderes religiosos e políticos do Oriente Médio. O primeiro a se manifestar foi o aiatolá Ali Khamenei, o principal chefe religioso do Irã, que em 20 de fevereiro conclamou as nações muçulmanas a apoiar financeiramente o novo governo palestino. Em pronunciamento à televisão iraniana, reproduzido pelo canal de notícias Al-Jazeera, Khamenei afirmou que a ajuda financeira “vai criar laços importantes entre os muçulmanos do mundo e a causa palestina”. O apelo do líder religioso foi ecoado pelo presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que ofereceu ajuda financeira ao novo governo palestino, se as grandes potências mundiais, principalmente Estados Unidos e Israel, bloquearem o envio de recursos internacionais à Palestina. Em entrevista coletiva, veiculada pelo jornal francês L´Humanité, o primeiro-ministro interino isralense, Ehud Olmer, afirmou que tentará bloquear a ajuda financeira enviada pelo governo iraniano, por ser este um “pária internacional”. Encontro da Liga Árabe, marcaLiga Árabe – Organização fundo para março, dada em 1945, no deve oficializar Egito, que reúne e sistematizar os Estados árabes, com o objetivo de a ajuda dos goproteger a integrivernos árabes dade dos paísesmembros e articular aos palestinos. ações políticas Organizacomuns. ções que atuam
financeira que enviam à Palestina, caso o Hamas não mude sua linha política. O movimento político mantém uma luta armada contra o Exército israelense, que ocupa a Palestina desde 1967. Em resposta, veiculada pelo canal de notícias Al-
Conflito entre xiitas e sunitas causa mortes e destruição de templos sagrados
A maioria dos 26 milhões de iraquianos é xiita (62%), a população hegemônica do sul, enquanto no centro predominam os sunitas (35%), ramo islâmico dominante no mundo árabe e que constituiu a elite do regime de Sadam Hussein. Quanto à composição étnica da população, os árabes constituem três quartos, enquanto os curdos – a maioria dos quais professa o Islã sunita – somam 20%. A comunidade curda é majoritária no norte, apesar da campanha de limpeza étnica realizada por Sadam. Na semana passada, a AIU apresentou oficialmente o primeiro-ministro Ibrahim Al Jafari para um segundo mandato, uma notícia que causou impacto em todo o espectro político. Al Jafari foi acusado de ineficiência em mais de uma ocasião por outros partidos e por observadores internacionais. “No último ano, Al Jafari não respeitou muito a Constituição interina e não teve bom desempenho. Por isso, os xiitas deverão escolher alguém mais popular”, afirmou o analista Sarhang Hamid Barzinji, professor no Colégio de Direito e Ciência Política da cidade de Arbil. No começo de fevereiro, o embaixador dos Estados Unidos no Iraque, Zalmay Khalilzad, advertiu o bloco xiita que, se escolhesse um líder muito próximo ao Irã, Washington poderia suspender sua ajuda. Al Jafari é conhecido por seus estreitos vínculos com clérigos de Teerã. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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AMÉRICA LATINA BOLIVARIANAS
O novo Estado venezuelano Renata Bessi e Mariana Tamari de Caracas (Venezuela)
Mariana Tamari
Frente a um aparelho estatal lento e sucateado, governo usa as misiones para viabilizar programas sociais
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MAIS EDUCAÇÃO A primeira missão – a Robinson –, de alfabetização maciça de adul-
A parceria com Cuba na saúde Antes da missão Barrio Adentro, o panorama da saúde na Venezuela era muito parecido ao de qualquer outro país na América Latina. Segundo dados oficiais, mais de 17 milhões de pessoas estavam excluídas do sistema de atenção básica de saúde e mesmo a classe média sofria com a privatização e comercialização destes serviços. Em abril de 2003, 58 médicos cubanos chegaram à Venezuela e estabeleceram-se nos barrios mais carentes de Caracas. A partir desse momento, o cenário da saúde pública mudou. Esses primeiros profissionais foram capazes de fornecer cuidados básicos à maioria da população da cidade. Com o êxito desse projeto piloto, a partir de julho daquele mesmo ano, o programa foi ampliado a todo o país. A segunda fase da missão Barrio Adentro começou em setembro de 2004, quando foram estabelecidos 84 centros de diagnósticos, com serviços gratuitos de eletrocardiograma, endoscopia, ultrassonografia, radiologia e de diagnóstico laboratorial. Está em andamento a elaboração de uma terceira fase, na qual unidades hospitalares completas serão construídas nas regiões menos favorecidas do país. De acordo com dados da embaixada de Cuba na Venezuela, os médicos da ilha caribenha fazem por volta de 6,4 milhões de consultas por mês. Além disso, visitam aproximadamente 1,2 milhão de famílias e salvam cerca de mil vidas mensalmente. Com o programa Barrio Adentro foram feitas 76 milhões de consultas apenas em 2004, enquanto em um período de cinco anos, entre 1994 e 1998, foram registradas pouco mais de 70 milhões de consultas executadas por todo o sistema público da Venezuela. (RB e MT)
Programas sociais chegam, de fato e sem burocracias, às regiões desamparadas de políticas e serviços públicos
tos, começou em julho de 2003. Em três anos, conseguiu livrar o território venezuelano do analfabetismo. A declaração foi feita pelo governo no final de outubro de 2005, com o aval da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (Unesco). Tal feito pressupõe a existência de menos de 1% de analfabetos. “O programa foi criado para burlar a burocracia do maior corpo de funcionários públicos entre os ministérios bolivarianos, o próprio Ministério da Educação, com meio milhão de funcionários”, diz Pedro Alvarez, diretor do Instituto Nacio-
nal de Cooperação Educativa (Ince) no Estado de Mérida, órgão responsável pela implantação da missão. Um dos resultados da missão foi a alfabetização de cerca de 1,5 milhão de venezuelanos.
OPOSIÇÃO Pacheco explica que uma das principais complicações do governo para a implantação das missões é a oposição oferecida ao poder nacional pelas alcadias (municípios). “Por questões políticas, muitos alcades (prefeitos) ainda dificultam a chegada das missões a todos os venezuelanos”, explica.
As missões são as beneficiárias diretas da nova forma de distribuição dos lucros do petróleo – principal fonte de renda do país –, de uma maneira mais eqüitativa. A Petróleos da Venezuela (PDVSA), companhia estatal, apóia diretamente quase todas as missões sociais e programas de desenvolvimento que estão em execução no país. “As missões foram ainda um mecanismo para usar esses recursos de acordo com as necessidades do povo, cortando parte da verba que alimentava a corrupção existente no aparato estatal”, analisa Álvarez.
Cooperativas: a receita contra o desemprego A missão Vuelvan Caras forma e capacita para o trabalho produtivo pessoas excluídas socialmente e do mercado de trabalho. Além disso, tenta incentivá-las a criar cooperativas na indústria e na agricultura. Todos os participantes recebem uma bolsa de aproximadamente 100 dólares, alimentação e oito horas de capacitação diárias. E, depois, podem montar projetos como o da cooperativa têxtil do Núcleo de Desenvolvimento Endógeno Frabricio Ojeda, localizada na grande Caracas, é composta por 299 pessoas – sendo 297 mulheres, formadas pela missão Vuelvan Caras, em uma escola pública localizada ao lado da cooperativa. As trabalhadoras cuidam de todo o processo. Cortam, costuram e cuidam da impressão das estampas nos tecidos. A maior parte das encomendas ainda é demandada por empresas estatais, mas os primeiros pedidos de empresas privadas já estão chegando. Todas as questões produtivas e de organização de trabalho são discutidas coletivamente. A missão Vuelvan Caras está inserida em uma nova concepção de trabalho produtivo que busca o governo bolivariano. É a primeira vez, na Venezuela, que se fala em formação maciça de cooperativas, como forma de combater o desemprego, a exclusão social e incentivar a mobilização e participação popular. Segundo dados do governo bolivariano, o número de cooperativas saltou de 800 para 8 mil em toda Venezuela.
INCENTIVOS GOVERNAMENTAIS O Instituto Nacional de Cooperação Educativa (Ince), responsável pela educação técnica em toda Venezuela, estava ligado às gran-
Mariana Tamari
governo bolivariano da Venezuela encontrou um novo instrumento, dentro da constitucionalidade, para burlar a lentidão da burocracia estatal e promover a efetiva participação popular na resolução de seus próprios problemas, principalmente nos setores emergenciais, como nas áreas da saúde e educação. São as chamadas misiones (missões, em português), que firmam um novo tipo de relacionamento entre o Estado e a sociedade civil. As coordenações das missões são interinstitucionais e interministeriais, mas não estão subordinadas às estruturas burocráticas tradicionais dos ministérios. Cada missão tem seu próprio perfil e é mantida pelo esforço dos voluntários chamados ao trabalho pelo governo bolivariano. A participação ativa e protagônica das comunidades organizadas é um dos elementos fundamentais dos programas. Segundo Raúl Pacheco, vice-ministro do Ministério de Planejamento e Desenvolvimento, todo o processo de mudança deve ser feito com o povo. Ele admite a possibilidade de haver alianças temporárias com as elites, “mas o poder ao povo deve ser mantido”. Com as missões, o Estado chega às regiões desamparadas de políticas e serviços públicos, os chamados barrios. Médicos, dentistas e professores convivem com as comunidades e vivenciam seus problemas e carências cotidianamente.
Liceus e prédios públicos, casas de pessoas da comunidade e universidades podem ser locais de abrigo das missões. A Universidade Simón Bolívar, localizada no barrio El Valle, na grande Caracas, tinha o prédio utilizado apenas por universitários. Com a chegada das missões e com a articulação da comunidade local, o prédio passou a ser abrigo de missões educacionais, como Robinson, Ribas e Sucre (de ensino universitário), além de ser sede de uma rádio comunitária, a Ali Primera. “As portas se abriram para as pessoas excluídas. Todos que querem podem estudar agora”, diz Ofelía Ortega, de 42 anos, aluna da missão Robinson, de alfabetização de adultos, em El Valle. Para a professora da missão Robinson, Yasenka Acevedo, também de El Valle, a comunidade está se articulando e usando o espaço público. “Comecei a fazer trabalho comunitário depois que as missões vieram para cá. Tinha uma vida apartada da comunidade”, explica Yasenka, graduada em Administração. A missão Robinson é mantida por professores jovens, sobretudo mulheres, voluntários que recebem uma bolsa de 170 mil bolívares, o que corresponde a cerca de 100 dólares mensais. Comparativamente, o piso salarial do professor na Venezuela é de 700 mil bolívares, mais os benefícios. A missão emprega a metodologia “Eu, sim, posso!”, desenvolvida por especialistas de Cuba conjuntamente com educadores venezuelanos. É baseada em aulas por vídeos e conta com os chamados facilitadores que ajudam a compreensão do conteúdo das aulas. Televisores, videocassetes, apostilas e os vídeos são doados pelo governo cubano, como parte do convênio entre os dois países.
Missão Vuelvan Caras, incentivo às cooperativas, como a têxtil
des empresas antes do governo bolivariano. Pedro Alvarez, diretor do Ince, explica que, naquele período, incentivava-se a formação de 20 microempresas para cada turma formada. Hoje é orientada a formação de uma cooperativa a ca-
da duas ou três turmas que se formam, cujo trabalho deve responder às necessidades da comunidade em que é estabelecida, baseando-se no conceito de co-gestão operária. A formação de cooperativas está sendo incentivada pelo governo
principalmente com a liberação de créditos. Em 2005, apenas no Estado de Mérida, segundo informações do diretor do Ince, o governo liberou cinco vezes mais crédito para os pequenos agricultores do que os bancos privados. “Isto sem cobrança de juros, sem necessidade de fornecer garantias ou comprovação de renda. O pequeno produtor começa a pagar apenas um ano depois”, diz Alvarez. A missão Vuelvan Caras teve início em fevereiro de 2004 e cerca de 350 mil pessoas participaram da primeira etapa do programa. A segunda fase, já colocada em prática, foi o acompanhamento e assessoria do governo para as cooperativas estabelecidas. Foi anunciada pelo presidente Hugo Chávez no dia 14 de janeiro, com o incentivo de formação ampla dos Núcleos de Desenvolvimento Endógeno – espaços coletivos, rurais ou urbanos, que se ativam quando a comunidade se organiza em benefício da coletividade, por um esquema de cooperativismo e democracia participativa. Além de cooperativas, os núcleos devem receber outras missões. A terceira fase, ainda em processo de formulação, deve buscar a formação do cooperativismo revolucionário, com enfoque na formação política. O sistema de cooperativismo na sociedade venezuelana enfrenta ainda problemas como, por exemplo, na cadeia de distribuição de alimentos. “Existem hoje na Venezuela, por exemplo, cem cooperativas de produção de frango. Mas passam por dificuldades no momento de entrar na cadeia de comercialização, pois ainda há monopólio da Empresa Protinal, maior produtora de frango na Venezuela”, explica. (RB e MT)
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AMÉRICA LATINA LIVRE-COMÉRCIO
Uma frente popular contra a OMC Acordo apoiado pelo Brasil reanimou negociações na organização; movimentos planejam fortalecer resistência
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futuro da Organização Mundial do Comércio (OMC) está nas mãos dos movimentos sociais. Os acordos firmados durante a 6ª Reunião Ministerial da OMC, em Hong Kong, realizada em dezembro de 2005, representam sérias ameaças para os países em desenvolvimento, e só a pressão das organizações sociais pode impedir que as negociações se concretizem, acredita Fátima Mello, secretária executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip). “Os acordos que foram firmados durante o encontro oferecem riscos enormes para a indústria dos países em desenvolvimento, que fizeram concessões em serviços, agricultura, e quanto ao Acesso aos Mercados para os Produtos Não-Agrícolas (da sigla em inglês, Nama)”, diz. De acordo com Fátima, o futuro do acordo de Hong Kong depende da força das manifestações que serão feitas até a próxima reunião da OMC, que irá acontecer em Genebra, Suíça, em abril. “Estamos muito mobilizados. Nos próximos meses, estamos convocando todos os movimentos do Brasil para criar uma grande resistência para impedir que esse acordo venha a se realizar”. A aposta é que, nos próximos meses, as entidades consigam pressionar para impedir o avanço das negociações. Para isso, estão previstas mobilizações durante a Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, de 7 a 10 de março, no Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, e durante a Reunião do Conselho Geral da OMC, dias 15 e 16 de maio, que será realizada em Genebra.
A posição do governo brasileiro durante o encontro de dezembro foi duramente criticada pela ativista estadunidense Lori Wallach, da organização não-governamental Public Citizen (Cidadão Público, em tradução livre). De acordo com ela, ao invés de defender os interesses dos pobres, o Brasil privilegiou os interesses dos Estados Unidos e de outras potências do Primeiro Mundo ao ajudar a fortalecer a OMC, “que só serve para organizar o sistema produtivo de forma a permitir a expansão da dominação das forças do capitalismo”. Segundo Lori, a alternativa à atuação brasileira deveria ser “tirar a agricultura” da agenda da OMC. Para ela, a liberalização do comércio agrícola beneficia o agronegócio e as transnacionais em detrimento da agricultura familiar. Antes da reunião de dezembro, a OMC estava “quase morrendo, mas os governos do Brasil e da Índia a ressuscitaram”, além de terem sufocado iniciativas mais ousadas de países como Venezuela e Indonésia, avalia Lori.
Indymedia/Nova York
Tatiana Merlino da Redação
FALSAS ILUSÕES
Fátima avalia que, se as negociações forem firmadas nessa reunião de maio da OMC, será uma derrota política para os movimentos sociais. As ameaças são de se eliminar o espaço para políticas públicas que
ANÁLISE
A administração de George W. Bush abandonou o multilateralismo da Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) e desatou uma verdadeira ofensiva para impor o bilateralismo dos chamados Tratados de Livre-Comércio (TLC’s). Estes acordos se baseiam em abrir as fronteiras ao “livre-comércio” de norte a sul, de países superdesenvolvidos a subdesenvolvidos, dos que possuem uma tecnologia de ponta aos que não possuem uma ponta de tecnologia, das transnacionais às empresas de médio porte. No dia 16 de fevereiro, ocorreu uma oficina informativa da Comissão Equatoriana negociadora do TLC Andino (que envolve os Estados Unidos, o Equador, a Colômbia e o Peru), quando houve o bloqueio legislativo feito pela Esquerda Democrática, fato que tornou possível fazer uma análise sucinta do que consideramos uma verdadeira ameaça para o Equador. O TLC é desses pactos geopolíticos que sempre nos fará mal de todas as maneiras: se o assinarmos, porque consagraremos mediante um tratado obrigatório a perda de nossa soberania; e se não o assinarmos, porque o país será objeto de uma verdadeira guerra desestabilizadora. A Comissão negociadora equatoriana nasceu no mandato do expresidente Lucio Gutiérrez, que depois se tornou aliado de Bush, e podemos deduzir com que mentalidade se iniciaram as conversas pelo mandato do atual governante, Alfredo Palacio. Esse grupo se reconfigurou, mas o espírito predominante é fatalista.
Conseguimos barrar a Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) e eleger governos sintonizados com as demandas populares. Se permitirmos que a OMC avance, será uma derrota imensa”, diz Fátima.
PERU
Ameaça à soberania do Equador Alfredo Vera
garantam serviços essenciais (como educação e saúde) e de ter nosso setor público de compras governamentais entregue às transnacionais, entre outras. “Estamos vivendo um ciclo de vitórias na América Latina.
Fátima Mello, da Rebrip, lembra que o Brasil sempre quis firmar um acordo com a OMC –“isso não é novidade” –, mas ressalta que as entidades apostavam e trabalhavam para que a organização fosse “afundada” em Hong Kong. Não foi o que se viu. “O Brasil, juntamente com outros países, trabalhou para que isso não ocorresse”. No entanto, alguns setores dos movimentos se iludiram com a posição defendida pelo Itamaraty, achando que poderia ser um fator de resistência ao livre-comércio. “Para quem tinha essa esperança, fica parecendo que o Brasil mudou de posição, mas isso não é verdade”.
Apesar da intenção de retardar a assinatura do TLC até ver se é possível amolecer algumas imposições imperiais, existe, no entanto, a decisão de finalmente assiná-lo. Os temas visíveis de controvérsia convergem em assuntos como os subsídios agrícolas que os Estados Unidos dão aos seus produtores, com os quais acaba por destruir todo o princípio de competitividade. Não existe nem mesmo resposta para o que vai acontecer com produtos como o arroz, o milho, a soja, que vão ser arrasados pela invasão a um custo suicida para os cerca de um milhão de camponeses equatorianos que dependem de sua comercialização. Outro dos temas é o da propriedade intelectual, até o momento também sem solução. Alguns desses negociadores dizem que deveríamos subsidiar os produtores equatorianos. Como? Quando não temos nem para dar-lhes uma educação mediana, uma saúde mínima, um salário minimamente capaz de sobreviverem. Com o que vamos subsidiar a produção com os níveis de pobreza crítica e miséria que predominam no país? Ainda há temas invisíveis que os negociadores aceitam existirem, mas não informam como vamos preservar nossa soberania. O mais grave é que estaremos impossibilitados de renegociar a dívida externa (como fizeram Argentina e Brasil), a qual teremos que servir incondicionalmente. E nossa soberania? Vai mal, desgraçadamente. Alfredo Vera é ex-ministro da Educação do Equador e colaborador da Prensa Latina (www.prensa-latina.com)
Candidato nacionalista se opõe a acordo com os EUA Roberto Hernández de Lima (Peru) A oposição ao Tratado de LivreComércio (TLC) Andino – negociado pelo Peru, Equador e Colômbia com os Estados Unidos – e a luta pela integração latino-americana ocupam hoje lugar especial na agenda do candidato nacionalista peruano Ollanta Humala. “De modo algum, o atual Congresso pode ratificar o TLC com o país do Norte”, disse Humala, durante coletiva de imprensa. Humala, que é tenente-coronel aposentado, está em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto para presidente para as eleições de 9 de abril, com 21,4%, atrás de Lourdes Flores, com 23,3% . “Exigimos que o governo de Alejandro Toledo publique tudo o que se refira ao acordo comercial que está em vias de ser firmado com Washington”. Toledo, atual presidente do Peru, disse que, no dia 10, irá aos Estados Unidos para assinar o tratado com o presidente George W. Bush. Depois disso, os legisladores de ambos os países terão 90 dias para aprovar o pacto ou não. “Não se pode assinar tal documento sem que o setor produtivo tenha todas as informações e que possa opinar sobre o tratado, que está dividindo o Peru em dois, pois enquanto alguns o apóiam radicalmente, outros o rechaçam por considerá-lo lesivo aos interesses nacionais”, disse Humala, adiantando que um eventual governo seu impulsionará a integração latino-
americana. “A unidade regional é um sonho a longo prazo, mas temos que começar a construí-lo”, disse o líder do Partido União pelo Peru.
ALIANÇAS ESTRATÉGICAS “Temos agendas comuns com os vizinhos. Temas como a folha de coca, que deve ser tratado com a Bolívia, e o setor energético, com a Venezuela e com o Brasil”. Humala, que se mostra confiante em ganhar até mesmo no primeiro turno, disse que em um governo nacionalista haveria tolerância zero com o narcotráfico, mas que trataria as plantações de folha de coca como um problema agrário e social, que implica mais de 270 mil camponeses. “Esse cultivo teria que ser substituído por outros totalmente rentáveis porque não se pode mandar centenas de peruanos passarem fome”, disse Humala, que em sua fala defendeu a folha de coca como parte do patrimônio nacional. Ao referir-se à saída pelo mar requisitada pela Bolívia ao Chile, Humala disse que este assunto deve ser resolvido de maneira bilateral entre La Paz e Santiago, ainda que tenha se declarado solidário aos bolivianos. “Sou solidário com um povo que já está há mais de 100 anos sem saída para o mar”.
INCERTEZA ELEITORAL Cerca de 40% do eleitorado peruano ainda está indeciso sobre quem vai votar nas eleições gerais de abril ou votará em branco ou nulo, revelou um funcionário de
uma agência de pesquisas. Ainda não há nada definido para o dia das eleições, nem com relação a listas presidenciais ou parlamentares, esclareceu Manuel Saavedra, gerente geral da Companhia Peruana de Investigações de Mercado (CPI). Saavedra comentou que a massa dos eleitores indecisos e indiferentes constitui um importante potencial, tanto para os partidos com menor respaldo, como para os que estão à frente. “Uns e outros ainda podem capitalizar essa porcentagem de vacilantes e apáticos”, opinou. O gerente da CPI fez essas considerações ao comentar os resultados de uma eleição realizada por sua empresa na região metropolitana de Lima sobre as intenções de voto para o Congresso Unicameral. De acordo com a pesquisa, somente seis dos 25 partidos e alianças políticas envolvidos na campanha teriam representantes no Parlamento. Os que estariam em melhor situação seriam a aliança de direita Unidade Nacional (com 26,2%) e o Partido Aprista Peruano (com 21,3%). Quotas menores obteriam a Frente de Centro (11,6%), União pelo Peru (11%) – do nacionalista Humala –, Aliança pelo Futuro (9,5%) e Peru Possível (5,9%), enquanto as demais organizações políticas não ascenderiam ao Parlamento. Em setembro de 2005, o órgão legislativo aprovou que só poderiam ocupar cadeiras no Parlamento os agrupamentos cujas listas recebam mais de 4% dos votos válidos emitidos no dia 9 de abril.
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INTERNACIONAL GLOBALIZAÇÃO
Mídia intensifica conflitos culturais Priscila Duarte, Viviane Cordeiro e Cecília Luedemann de São Paulo (SP)
Weda/EFE/AE
Cientista social analisa a polêmica causada pela publicação de charges contra a imagem do profeta Maomé
A
polêmica em torno das charges ofensivas ao profeta Maomé toma dimensões imprevisíveis. Causou a queda do ministro italiano Roberto Calderoli, que usou camisetas com as caricaturas de Maomé e pediu demissão após protestos até mesmo da direita de seu país. Dia 22 de fevereiro, na Nigéria, os protestos contra as charges causaram a morte de mais de 20 cristãos e a destruição de igrejas, que simbolizam, de certa forma, o Ocidente. Publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, de origem fascista e neoliberal, dia 4 de fevereiro, em uma campanha de difamação que se iniciara em 30 de setembro de 2005, com o lançamento de um concurso contra a religião muçulmana, as charges causaram uma sucessão de conflitos entre europeus e islâmicos. Mesmo sob protestos, as caricaturas foram reproduzidas por jornais ocidentais e até mesmo árabes, intensificando a revolta em países como Afeganistão, Irã, Iraque, Síria e no interior de países europeus com forte presença da população muçulmana. Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista social Renato Ortiz discute o tema da mundialização da cultura e reitera que os conflitos causados pelas charges já não são mais o foco do problema, mas o uso que se faz delas por diversos grupos nos diferentes países. E alerta: este episódio não é tão imenso, mas é uma expressão da modernidade no mundo, do papel estratégico dos meios de comunicação nas mãos das grandes corporações transnacionais no processo de globalização. Brasil de Fato – Como avalia os desdobramentos causados pela publicação das charges contra Maomé? Renato Ortiz – Eu tenho acompanhado pela imprensa, não sei muito mais além disso. Tenho a impressão de que é um evento interessante. Interessante, porque carrega, nele mesmo, um conjunto de significados. Sobretudo, deixa claro um conflito entre concepções muito diferentes. Por um lado, do ponto de vista estritamente religioso, as charges são consideradas realmente inadequadas na medida em que tem uma representação da imagem do profeta. Porém, do ponto de vista, digamos, da modernidade, isso coloca o problema dos direitos: o direito daqueles que não são muçulmanos. O mais interessante é que isso se dá numa arena que nós podemos chamar de uma “esfera pública” mundial, ou seja, não é um debate localizado, é um debate que transcende as fronteiras. Nesse sentido, talvez ele seja pedagógico para todo o mundo: seja para o mundo islâmico, seja
Muçulmanos indonésios realizam protesto em Jacarta, na Indonésia, contra publicação de charge do profeta Maomé
para o mundo ocidental, ou as outras partes do planeta que, de alguma maneira, interagem com este tipo de debate. Não creio que seja, também, coisa tão imensa, como às vezes aparece nos jornais televisivos ou na imprensa. Eu acho que é uma expressão da modernidade no mundo, mas é uma expressão entre várias outras.
A charge, em si, já não diz mais nada, o que importa, agora, é como ela é utilizada por grupos mais distintos nos países mais diversos BF – Como entender esse episódio, as raízes desse conflito, sem nos atermos na análise da mídia? Ortiz – Eu tenho a impressão de que são duas coisas: primeiro, as mídias atuais (entendendo publicidade, televisão, rádio, imprensa) tem uma tendência. Na verdade, é como se ela estivesse um pouco fora da história. É curioso. É um imediatismo muito profundo e as coisas têm que ser claramente vinculadas em determinado conjunto. Um evento desse tipo expressa que, dificilmente, se pode analisá-lo dentro de uma perspectiva, de uma conjuntura. Na verdade, eu tenho que entender, primeiro, sobre o mundo islâmico; segundo, sobre o mundo tradicional islâmico; terceiro, sobre o fundamentalismo islâmico, que é recente, é apenas do século 20; e, quarto, evidentemente, toda a relação conflituosa entre o mundo europeu e, depois os EUA, com os países
árabes em particular. Então, se não entender esse conflito que tem pano de fundo, que tem uma história muito longa, dificilmente, nós podemos entender o que emerge numa simples charge feita na Dinamarca e que, de repente, toma um vulto desse tamanho. Evidente que a charge, em si, já não diz mais nada, o que importa, agora, é como essa charge é utilizada por grupos mais distintos nos países mais diversos. BF – De acordo com a sua análise sobre o processo de mundialização da cultura, esse episódio seria uma espécie de ação violenta para a destruição da memória tradicional, para a criação de uma nova memória mundial? Ortiz – Acho que esse evento, como vários outros, a guerra do Iraque, por exemplo, são episódios de uma constituição, de uma eventual “esfera pública”. Não gosto de dizer esfera pública, porque ela não existe, porque se existisse uma esfera pública, deveríamos ter todos os acessos, deveríamos ter voz igualmente, e isto sabemos que não existe nem do ponto de vista nacional, muito menos do ponto de vista transnacional. Mas, não há dúvida nenhuma de que isso faz parte, digamos, desse espaço transnascional no qual as opiniões aparecem e no qual os meios de comunicação têm um papel fundamental. BF – Sobre o processo de desterritorialização, o senhor apontou o papel estratégico da mídia. Acredita que enfrentaremos outros episódios como esse? Ortiz – Não há dúvida nenhuma. Já estamos enfrentando vários episódios como esse e, daqui para a frente, vão se proliferar na medida em que o processo de globalização se acentua, na medida em que os meios de comunicação
e o conjunto de instituições, de instâncias que são transnacionais se acentuam. E isso faz com que determinados temas deixem de ter uma coloração exclusivamente local. Significa que esses temas implicam em conflitos. Da mesma maneira que nós temos conflitos, debates das regiões, das nações, esses conflitos aparecem, agora, em escala mundializada. BF – De que forma a mídia alternativa poderia servir para expressar a diversidade cultural, para se pensar essa identidade complexa? Ortiz – Eu sou totalmente favorável a todas as produções. Eu não gosto muito da palavra alternativa, mas desejamos que remem contra a maré. Agora, evidentemente, o quadro midiático, no contexto nacional e transnacional, pertence às grandes corporações. Isso é uma coisa bastante clara: sejam corporações administradas pelo mercado, no contexto do mercado, ou no próprio mundo islâmico, por corporações administradas por Estado e religião. Então, nesse contexto, os espaços existem, porém, eles são em minoria, evidentemente, como todo espaço de conflito. Eu acho muito importante os diversos meios que existem para a possibilidade de atuar nesse espaço público, culturalmente. Agora, evidentemente, isso não se resolve da noite para o dia e eu não sou ingênuo de imaginar que uma proposta alternativa venha a nascer de repente. O problema não é apenas que outros falem mas, que se fale de maneira diferente. A impressão que eu tenho, muitas vezes, no mundo atual, é que as pessoas já não falam mais as coisas de outra forma, a própria maneira de narrar já é mais ou menos padronizada. E isso de certa forma dificulta a escuta ou dificulta o olhar.
BF – Como romper esse círculo vicioso? Ortiz – É difícil, não há nenhuma regra para isso. Eu acho que a regra tem a ver, pelo menos, com algumas noções de uma maior autonomia. Ou seja, que os grupos que produzem informações tenham um grau razoável de autonomia. Mesmo porque, nós sabemos que uma autonomia plena é impossível. Que essa autonomia permita, também, um grau razoável de criatividade e de experimentação. É muito interessante perceber, hoje, que a mídia transnacional é muito repetitiva e muito pouco experimental. É mais ou menos como ir ao cinema e ver uma série de filmes parecidos, abrir os jornais e ver na primeira página, em Paris, Nova York e Tóquio, praticamente as mesmas notícias, com a diferença das notícias locais. Então, esse processo de padronização, na verdade, não é só um conteúdo, é uma forma, mesmo, de narrar. Eu acho que, às vezes, é necessário romper com isso e espero que as diversas mídias alternativas façam experimentos diversos, porque eu acho que é mais criativo. E, pelo menos, o que se dizia na teoria da informação velha: teremos alguns ruídos dessa visão monopolista do mundo contemporâneo.
A mídia transnacional é muito repetitiva e muito pouco experimental. É mais ou menos como ir ao cinema e ver uma série de filmes parecidos
Priscila Duarte
Quem é Renato Ortiz é graduado em Sociologia pela Universidade de Paris, e doutorado em Sociologia e Antropologia pela École dês Hautes Études em Sciences Sociales (Paris). Atualmente, é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista em cultura, seu mais recente livro é O próximo e o distante: Japão e modernidade-mundo, publicado pela Editora Brasiliense.
Rumsfeld declara outra guerra Emad Mekay de Washington (EUA) O secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, anunciou uma campanha para influenciar a cobertura jornalística internacional sobre as ações de seu país, o que, sem dúvida, desencadeará um novo debate sobre a liberdade de imprensa. O governo de George W. Bush prepara uma cruzada para divulgar e defender as posições de Washington, em especial a “guerra contra o terrorismo”, disse Rumsfeld perante o Conselho de Relações Exteriores, instituição acadêmica conservadora com sede em Nova
York. O secretário mencionou, como antecedentes e modelo, duas iniciativas da Agência de Informação dos Estados Unidos na época da Guerra Fria: a Rádio Europa Livre e a Rádio Liberdade. É provável que a campanha, como ocorreu com esforços semelhantes nos últimos cinco anos, se projete em duas áreas principais: os meios de comunicação estadunidenses e os do mundo islâmico, nos quais Washington deseja exercer uma influência estratégica. Rumsfeld disse que o Pentágono está “revisando” sua prática de pagar a transmissão de notícias favoráveis sobre o Iraque na imprensa dos Estados Unidos.
A nova campanha se soma a uma longa lista de decisões do governo questionadas por ativistas dos direitos humanos, como a escuta – sem autorização – de comunicações de cidadãos, a inspeção de registros bibliotecários e a compilação de bases de dados sobre pessoas que discordam das políticas do governo. Estas medidas – afirmam – estão levando o país por um caminho autoritário. Além disso, dizem que os principais meios de comunicação dos Estados Unidos já tendem a fazer uma interpretação conservadora dos fatos, com pouca atenção para os pontos de vista que a contradizem. As vozes conserva-
doras predominaram notoriamente sobre as liberais nos programas jornalísticos dominicais dos últimos nove anos, segundo um estudo divulgado em fevereiro pelo centro independente de pesquisa sobre jornalismo Media Matters for América. Além disso, Rumsfeld anunciou sua intenção de integrar mais a imprensa na “guerra contra o terrorismo”, inclusive capacitando pessoal militar nas diversas técnicas de comunicação. O secretário disse que contratará especialistas em jornalismo do setor privado. Por sua vez, o Departamento de Estado também redobra seus esforços em propaganda. No final
de fevereiro, a secretária de Estado, Condoleezza Rice, pediu 74 milhões de dólares para ampliar suas campanhas de transmissão de televisão, divulgação de sites na internet e intercâmbio de estudantes no Irã, destinadas a desestabilizar o governo do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Para o Pentágono, “divulgar informação só tem o propósito de alcançar objetivos militares. Não é em honra à verdade. Uma vez que se começa a olhar os fatos desta maneira, a diferença entre uma declaração verdadeira e uma falsa é muito pequena”, disse Jim Naureckas, editor da revista Extra! (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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INTERNACIONAL AIDS-ÁFRICA
Pagar o funeral é morrer mais um pouco Kristin Palitza Durban (África do Sul)
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s funerais tradicionais das vítimas da Aids, no sul do continente africano, estão causando graves problemas financeiros às famílias da região, especialmente nas áreas rurais. Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Onusida), um em cada cinco adultos na África Austral contraíram o vírus de deficiência imunológica humana (causador da Aids). Estudo feito em 2004 pelo Programa Conjunto de Economia, Aids e Pobreza (Jeapp, sigla em inglês), da Universidade de KwaZulu-Natal (UKZN), na cidade de portuária de Durban, na África do Sul, descobriu que para os cidadãos sul-africanos custava quase sete vezes mais para enterrar uma pessoa do que para cuidar de um parente enfermo. Algumas famílias afetadas pela Aids gastam até 30 vezes mais em funerais do que em cuidados com a saúde. O custo médio de uma cerimônia fúnebre tradicional gira em torno dos 4,9 mil dólares na África do Sul, segundo o Jeapp. A renda média anual das famílias é estimada em 3,63 mil dólares, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Os custos do funeral incluem o pagamento à empresa funerária, de aproximadamente 325 dólares, além de gastos adicionais que vão desde a limpeza do corpo e outros rituais até vestimenta, anúncios do enterro em rádios e jornais, animais para
François Goemans/ECHO
Sul-africanos gastam quase sete vezes mais para enterrar uma pessoa do que para cuidar de um parente enfermo
Em um país no qual metade da população vive abaixo da linha da pobreza, um funeral não saí por menos de 300 dólares
sacrifícios e alimentos e transporte para os parentes. Na Suazilândia, a situação é semelhante. Segundo a Divisão de Pesquisa em Saúde, Economia e Aids (Heard), da UKZN, os suazis gastam até 980 dólares em cerimônias fúnebres, embora estimese que dois terços da população vivam abaixo da linha de pobreza, com menos de um dólar por dia. Na Tanzânia, as famílias atingidas pelo HIV/Aids podem gastar a renda de um ano em cuidados com a saúde e custos de funeral, afirma o Instituto para os Recursos Mundiais, orga-
nização de especialistas com sede em Washington (EUA). Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), os gastos com funerais representam 60% dos custos diretos com uma pessoa doente de Aids que logo morre.
EMPRÉSTIMOS Os custos diretos compreendem gastos com materiais de cuidados médicos, alimentação, transporte, enterros e afins. Os custos indiretos se relacionam com a perda de renda dos membros da família que cui-
Tradição em risco Paulo Pereira Lima
UGANDA
Eleições são um teste para a democracia do país da Redação Dia 23 de fevereiro, os ugandenses votaram nas primeiras eleições multipartidárias de Uganda em 25 anos, que colocam à prova o presidente Yoweri Museveni, que monopoliza o poder há 20 anos. Museveni, de 61 anos, concorre à Presidência com outros cinco candidatos, mas de todos eles o único que pode tirar a vitória de suas mãos é seu ex-médico particular e ex-companheiro de luta, Kizza Besigye, 49 anos. Os eleitores vão eleger também 310 deputados para o Parlamento. O governante, que chegou ao poder à frente de uma rebelião armada em 1986, quer renovar o mandato que obteve nas urnas em 1996 e 2001, em eleições que não tiveram a participação de partidos políticos. Nessas eleições só houve a participação do Movimento da Resistência Nacional, o partido único, e aqueles que desejavam ocupar cargos públicos tinham que se candidatar como independentes. A reforma constitucional aprovada em 28 de julho de 2005 aceitou a participação aberta de todos os partidos, mas também permitiu que Museveni pudesse renovar seu
com a pessoa morta”, explicou. “O trauma psicológico de não ser capaz de dar um enterro digno leva as pessoas a se sentirem culpadas e, inclusive, entrar em depressão”. Aparentemente, há poucas organizações que proporcionam apoio fúnebre. Uma delas é o Centro Hillcrest para a Aids, em Kwazulu-Natal, cujo pessoal negociou um preço especial com vários velórios. Pelo preço relativamente baixo de 120 dólares, de segunda a quinta-feira, estas empresas vão buscar o corpo e o preparam, emitem o atestado de óbito, fornecem um caixão simples e levam o falecido para a propriedade familiar ou para o cemitério onde será enterrado. O custo é menor porque os enterros feitos durante a semana não contam com grande quantidade de parentes, porque a maioria está trabalhando, disse a diretora do Centro Hillcrest, Juli Hornby. O centro paga um terço do preço reduzido, enquanto espera-se que as famílias contribuam com cerca de 80 dólares pela cerimônia. Algumas têm grandes dificuldades para conseguir essa quantia, e, nesse caso, o centro procura acrescentar fundos adicionais. (KP e IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
mandato, ao eliminar o limite de dois mandatos presidenciais. As pesquisas de opinião indicam que o governante não tem vitória garantida no primeiro turno, e que provavelmente será necessário um segundo turno. No entanto, tanto Museveni como Besigye se mostram confiantes em suas vitórias. “Besigye não é uma ameaça para nós, porque já ganhamos dele em 2001”, afirmou Museveni. Besigye, que representa a esperança de mudança de muitos dos 10,4 milhões de eleitores ugandenses, voltou do exílio em 26 de outubro de 2005, mas Museveni tentou atrapalhar sua campanha eleitoral com ações judiciais. Logo após chegar ao país, Besigye foi acusado na Justiça civil de traição e estupro, e na militar, de terrorismo, acusações que o mantiveram preso de 14 de novembro de 2005 a 2 de janeiro de 2006, e que o obrigaram a comparecer periodicamente perante os tribunais desde que foi colocado em liberdade, após pagamento de fiança. Segundo organizações como a Human Rights Watch, as acusações contra Besigye, o uso de meios públicos a favor de Museveni e as interferências do governo e do Exército geram dúvidas sobre as eleições. “O
ONU
Miséria e pandemia de Aids ameaçam funerais, tradicionais e custosos
Segundo o Conselho de Pesquisa em Ciências da Saúde da África do Sul, com sede na Cidade do Cabo, sem fins lucrativos e parcialmente financiado pelo governo, as famílias desse país experimentam uma queda na renda, entre 48% e 78%, quando um de seus membros morre vítima de Aids, excluindo os custos do funeral. Apesar destas dificuldades, as práticas fúnebres continuam sendo seguidas pela maior parte da população. Segundo a pesquisadora da Divisão de Pesquisa em Saúde, Economia e Aids (Heard), da Universidade de KwaZulu-Natal (UKZN), na cidade de portuária de Durban, Nina Veenstra, esta conduta pode estar associada a uma negativa em enfrentar o HIV/Aids. “Seria mais importante reduzir o estigma e a negação, para que as pessoas possam reconhecer publicamente a pandemia e os custos financeiros que são obrigadas a assumir.” As famílias que só conseguem um caixão básico e um local para enterrar o parente sofrem uma traumática quebra da tradição, disse Patience Mavata, enfermeira que dirige um centro para pessoas com Aids na província de KwaZulu-Natal. “Sentem que sem um funeral decente falharam
dam dos parentes enfermos. Tendências comparáveis são evidentes em Moçambique. Os pesquisadores do Departamento de Sociologia da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, capital do país, demonstraram que um funeral custa, no mínimo, 300 dólares, enquanto mais da metade da população vive abaixo da linha de pobreza. Centenas de dólares mais podem ser gastos em alimentos e flores para as visitas ao cemitério. Mais para o ocidente, em Botsuana, não é raro uma família gastar entre 740 e 920 dólares em um serviço
fúnebre, enquanto o salário mensal médio de um trabalhador equivale a 55 dólares, disse Fred Kalits, professor-assistente de Antropologia da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, que fez amplas pesquisas nesse país africano. Certas famílias enfrentam os gastos fúnebres fazendo dívidas com parentes e amigos. Também podem esgotar sua poupança ou vender bens, como animais. Outros pegam empréstimos que não podem pagar, se afundando em dívidas que passam de geração para geração. Outra forma de assistência são as sociedades de enterros, clubes que arrecadam dinheiro de seus integrantes. Porém, o constante esvaziamento das comunidades ameaça quebrar completamente este sistema de seguro funerário tradicional. No interior da Tanzânia, muitas comunidades ficaram na bancarrota, segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE), instituição multilateral de países industrializados, com sede em Paris. A alternativa para as sociedades de funerais é aumentar suas tarifas, como fizeram em Botsuana, observou Kalits. Contudo, isto pode deixar de fora as famílias pobres. Apesar de tudo, as famílias onde há mortes por Aids continuam pagando os funerais, cujo custo freqüentemente representa menores gastos em educação, bens para a casa e outras necessidades. Isto pode piorar uma situação financeira que já é precária. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
Yoweri Museveni, desde 1986 como presidente, concorre com outros 5 candidatos
UGANDA Localização: centro-leste da África Nacionalidade: ugandense População: 22,8 milhões Superfície: 236.860 km2 Capital: Campala Língua: inglês (oficial), swahili, kinganda, kinyoro, kigisu, kinynkolé Religião: 33% católica; 33% protestante; 16% muçulmana; 18% tradicionais Moeda: novo xelim
Exército está passando por cima da lei, prejudicando a possibilidade de eleições livres e justas”, avalia a organização em documento publicado em meados de fevereiro. Ela acusa o governo de intimidar a oposição, de desigualdade nos fundos de campanha e de influenciar a cobertura dos meios de comunicação. O governo negou as acusações e disse que o relatório da ONG foi baseado em rumores e especulações. A votação também permitirá conhecer o grau de desgaste de Museveni desde que chegou ao poder. Embora o governante tenha obtido sucessos econômicos e na luta contra a Aids, ele começa a ter problemas em suas relações com outras nações. Uganda, país de 27 milhões de habitantes, está situado em 144º lugar da lista de 177 países segundo o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. (Com agências internacionais)
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De 2 a 8 de março de 2006
DEBATE CARNAVAL
Luiz Ricardo Leitão Quem é você que não sabe o que diz... Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Fábio Cruz
Mais um palpite infeliz do capital (Noel Rosa, Palpite Infeliz, 1936)
recente episódio protagonizado pelo emérito compositor Martinho da Vila (presidente de honra da Unidos de Vila Isabel) e pela diretoria da sua escola de samba reacendeu a discussão sobre o implacável processo de mercantilização e espetacularização a que vem sendo submetida a maior festa popular brasileira ao longo das últimas décadas. A fim de prestigiar a escolha e despertar o interesse do público e da mídia, os cartolas da escola o convidaram a participar da disputa do samba-enredo/ 2006, mas depois decidiram cortar a música composta por Martinho (autor de enredos geniais como Sonho de um sonho e Pra tudo se acabar na quarta-feira) e Luiz Carlos da Vila (co-autor de Kizomba, a festa da raça, com o qual a Vila foi campeã em 1988), sem dar a mínima satisfação aos dois sambistas. Magoado com a agremiação, cujo badalado enredo Soy loco por ti, América — a Vila canta a latinidade foi concebido pelo artista, Martinho resolveu afastar-se do Rio em 2006, preferindo viajar para Pernambuco e animar os festejos em Recife e Jaboatão, onde ainda é possível ver maracatu, maculelê, vaquejada, fandangos e marujada, manifestações praticamente ignoradas pelos nossos meios de comunicação. Entrevistado pelos jornais, Martinho mediu bem as palavras, mas não poupou críticas à nova fisionomia imposta pela sociedade do espetáculo ao desfile das escolas de samba cariocas, que, ao lado do frevo pernambucano e dos gêneros afro-baianos, foram convertidos nos maiores ícones do carnaval em Pindorama. Para ele, a festa mudou completamente: quando começou a desfilar, nos anos 1960, as escolas tinham em média 400 componentes; hoje, só a bateria possui 400 ritmistas e algumas agremiações chegam a passar com 5.000 pessoas na Sapucaí, muitas delas inteiramente alheias à Escola, comprando fantasia pela internet e desembarcando no Sambódromo às vésperas do evento, para curtir sua fugaz “celebridade” por algumas centenas de dólares ou reais. O sambista da terra de Noel sintetiza a alienação reinante com uma frase de efeito: — Silas de Oliveira não ganharia hoje uma disputa de samba-enredo. A pesquisadora Lygia Santos, filha de um patriarca do samba (o inesquecível Donga, que não apenas compôs, como também lutou em defesa da cidadania negra), é ainda mais contundente em sua análise: “Acho que o que está acontecendo com Martinho e as escolas de samba é o resultado dessa loucura avassaladora da classe dominante em busca de dinheiro, fama e diversão barata. Ninguém tem amor a escola alguma.”
O
Superescolas de Samba S/A superalegorias escondendo gente bamba,que covardia (Beto Sem Braço & Aluísio Machado, Bumbum paticumbum prugurundum, Império Serrano/1982)
A gênese desse voraz processo de metamorfose do carnaval remonta aos anos de chumbo da ditadura militar. Se, por um lado, o desfile sofreu até o duro controle ideológico dos aparelhos de censura e repressão, com a expressa recomendação de que os únicos temas abordados deveriam ser os
de fundo cívico ou histórico, por outro, com a consolidação dos meios de comunicação de massa e, em especial, da televisão — que, a partir da criação de um sistema nacional de telecomunicações (Embratel), pôde atingir 98% do nosso território, fator decisivo para o crescimento da Rede Globo no período —, as classes dominantes investiriam gradualmente nesse novo “produto”, até transformá-lo em sofisticada mercadoria visual, cuja exportação lhes traria gordos dividendos anuais. Há distintas etapas nessa mudança, todas elas marcadas pelos obscuros acordos firmados entre o poder público e os grandes grupos empresariais de turismo e comunicação de massas. Nos anos 70, ainda em pleno regime de exceção, eram notórias as conexões entre os políticos da ditadura e os “banqueiros” do jogo do bicho, principais “patronos” ou dirigentes das escolas, quase todos eles ativos cabos eleitorais da Arena e, posteriormente, do PDS. A mulher e o filho do General Figueiredo, por exemplo, mantinham estreitas relações com Anísio Abraão David, homem forte da Beija-Flor de Nilópolis, município da Baixada Fluminense governado durante décadas pela família David. Coincidência ou não, ao longo desse namoro a escola ganharia seis desfiles no Grupo Especial do carnaval carioca, todos eles sob a batuta de Joãosinho Trinta, o polêmico e talentoso maranhense que iniciara sua carreira nos anos 60 como auxiliar de mestre Fernando Pamplona no Salgueiro (onde criou enredos como A visita do rei de França ao Maranhão) e depois viria a ser o grande maestro da escola de Nilópolis. Embora costume dizer, por cinismo ou conveniência, que ele “não gostava da ditadura”, o carnavalesco desenvolveu temas laudatórios ao regime, conforme ilustra, em 1974, o enredo O Grande Decênio, óbvia exaltação das conquistas dos governos tecnocráticos dos militares após 1964. Joãosinho iria consagrar na avenida a “estética do luxo” e, em resposta às críticas que a esquerda lhe formulava, cunhou a célebre frase segundo a qual “quem gosta de miséria é intelectual”... Em 1983, após a fragorosa derrota do regime nas eleições estaduais de 82, a ditadura vivia seus últimos suspiros, mas o espetáculo, decerto, não iria parar. Leonel Brizola, eleito governador do Rio de forma surpreendente (superando, inclusive, na apuração dos votos o esquema fraudulento armado pela direita em favor de Moreira Franco, candidato do PDS, episódio que ficou conhecido como “o escândalo
do Proconsult”, convocou Darcy Ribeiro para ocupar-se do evento e este delegou a Oscar Niemeyer a tarefa de criar, em nove meses, uma nova estrutura para a pista de desfiles. Surgia, assim, o singular “Sambódromo”, um monumental palco de concreto capaz de abrigar 70 mil pessoas, o que representaria, nos anos seguintes, o progressivo abandono do carnaval de rua pelos governos municipal e estadual (com o esvaziamento dos desfiles de blocos e sociedades carnavalescas em outros pontos da cidade, como a Avenida Rio Branco, no Centro, ou os bairros de Vila Isabel e Madureira, cujos desfiles, sempre gratuitos, atraíam dezenas de milhares de foliões).
As classes dominantes investiriam gradualmente nesse novo “produto”, até transformá-lo em sofisticada mercadoria visual O samba possuía enfim o mesmo status do futebol ou de outros espetáculos de massa. A cultura popular, fosse ela um plástico jogo corporal com o qual as crianças se divertem na rua (sonhando ou não com as glórias de Pelé, Romário e Ronaldinho) ou uma expressão musical e coreográfica que condensa em uma festa mágica séculos de ritos, cantos e danças que atravessaram três continentes, devia transformar-se em vedete da sociedade espetacular. Para tanto, fabulosos contratos comerciais passariam a ser firmados entre a Prefeitura, a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA) e as emissoras de televisão. Era de se supor que estas, por decisão do poder público, não detivessem qualquer monopólio sobre a transmissão; porém, desde os anos 1990, resumem-se a uma única empresa: a onipotente Rede Globo, que hoje organiza o desfile da maneira mais comercial possível, reunindo 14 escolas no Grupo Especial e dividindo o desfile em dois dias (domingo e segunda-feira). O esquema, aliás, também já se estendeu a São Paulo, onde o “espetáculo” se realiza em duas noites (sexta e sábado), preenchendo inteiramente a grade da programação “globeleza”. Como cantava, com rara lucidez, o samba do Império Serrano em 1982, surgia enfim a era das “Superescolas de Samba S/A”, a partir da qual muita gente bamba seria escondida pela covardia do monopólio midiático e empresarial que regia a “festa”.
Sem preconceito ou mania de passado sem querer ficar do lado de quem não quer navegar Faça como o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar (Paulinho da Viola, Argumento, 1975)
A bem da verdade, a industrialização da cultura não é prerrogativa da segunda metade do século 20. Ela retrocede ao século anterior, quando Edison inventa o fonógrafo (1877) e os irmãos Lumière projetam o seu primeiro filme (1895). Nasciam na Europa e nos EUA as empresas fonográficas e cinematográficas: a britânica The Gramophone Company e a alemã Deutsche Gramophon são fundadas em 1898 e a estadunidense Victor Talking Machine se constitui em 1901. A companhia inglesa, por sua vez, logra instalar em 1908 uma fábrica em Calcutá e estúdios em Bombaim, os quais exportam para a África Oriental, estimulando precocemente a indústria cultural indiana, cuja produção cinematográfica supera há muito as cifras de Hollywood (os indianos produzem 900 filmes por ano, em sua maioria melodramas de larga difusão na Ásia e na Rússia). O prelúdio da indústria cultural, porém, situa-se entre 1830 e 1840, quando surge o poderoso “império dos sentimentos” na imprensa européia. Mesclando as tradições da literatura popular da Espanha, França e Inglaterra, o romancefolhetim foi o primeiro produto de exportação da moderna “cultura de massas”. O negócio prospera. Depois da era das ferrovias e do império do automóvel, o capital patrocina a “indústria da informação”, que em 1960 já respondia por 29% do PIB estadunidense. Nas últimas décadas do século XX, quando o Estado do Bem-Estar Social cede passagem à globalização neoliberal, testemunhamos a avassaladora eclosão da “sociedade do espetáculo”, essa esquizofrenia pós-moderna por meio da qual as manifestações legítimas de um povo são convertidas em uma artificial representação midiática. Após o vertiginoso processo de urbanização do planeta, nada escapa a esse fenômeno transnacional, desde o megaespetáculo do futebol (o contrato firmado entre a Fifa e as redes de TV para a transmissão das duas últimas Copas alcançou a incrível marca de 2,3 bilhões de dólares) até uma das mais exuberantes festas populares que o mundo conhece — o carnaval brasileiro. Apesar da adversa conjuntura que a era neoliberal iria instaurar no país a partir da eleição de Fer-
nando Collor de Mello em 1989, não convém perder o otimismo acerca do caráter contraditório da indústria cultural, por mais que ela se empenhe em pasteurizar todas as produções mais nobres do espírito humano, aniquilandoas por meio da reprodução tecnológica e o consumo de massas da “aldeia global”. Como bem advertiu Marx, os fenômenos humanos são uma “síntese de múltiplas determinações”. A própria Vila Isabel, em 1988, sem dispor de nenhum “padrinho” ou patrocinador, ganhou o título do Grupo Especial prestando uma homenagem emocionante ao centenário da abolição da escravatura no Brasil. Martinho da Vila, o criador do enredo, convidou grupos culturais de Angola e Moçambique, celebrando com o desfile uma dionisíaca festa de identidade afro-brasileira. Como eles conseguiram superar o luxo e a riqueza das grandes escolas? Bem, na América Latina, “ou inventamos, ou fracassamos”, preconizava o sábio Simón Rodríguez, mestre do libertador Bolívar. Diante das câmeras de TV, as fantasias e carros alegóricos adornados de ráfia e outras fibras vegetais obtiveram um efeito originalíssimo e superimpactante. Um reino virtual... porém deste mundo. Além disso, era um baile de negros, contando a toda sua gente uma história de opressão secular e eterna luta em prol da liberdade. Agora mesmo, em 2006, a grande novidade do carnaval tem sido os “ensaios técnicos” das escolas na Sapucaí, de sexta a domingo, em que as agremiações, livres da obrigação de competir, desfilam à vontade na pista, com as alas da comunidade caprichando em suas coreografias e os ritmistas deleitando o público com suas acrobacias musicais. Como a entrada é franca (durante o carnaval, o ingresso de arquibancada custa em média R$ 150,00), cerca de 40 mil pessoas lotam o Sambódromo a cada noite, fazendo dos ensaios uma das mais democráticas formas de lazer da cidade. Contente com a iniciativa, Martinho da Vila sugere que, a partir do próximo ano, os componentes coloquem um abre-alas com o nome da escola à frente do cortejo e vistam-se com fantasias bem leves, “nas cores dos pavilhões, com os mestres-salas e as porta-bandeiras devidamente fantasiados”. Já que não há concurso oficial, nem profusão de câmeras de TV, o desfile fica diferente, bem distante do caráter mercantil e espetacular do domingo e segunda de carnaval. Martinho lembra ainda que, sem a sonorização da avenida, os foliões “têm de levar o samba no gogó”, o que termina por conferir ao evento uma autenticidade há muito perdida. Sinais de vida no planeta samba. Mais uma vez, o velho Marx tinha razão: tudo que é sólido desmancha no ar... Parece que os sambistas cariocas, pouco a pouco, somam-se a todos aqueles brasileiros indignados com a promiscuidade a que as elites submeteram as mais genuínas expressões culturais do nosso povo. Quem apostou na morte do carnaval, por sua vez, vai pagar caro por isso. Como diz a canção, façamos como o velho marinheiro, “que durante o nevoeiro leva o barco devagar”: apesar dos pesares, saberemos resistir a mais um palpite infeliz do capital. Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura LatinoAmericana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Editora Ciencias Sociales, Cuba)
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De 2 a 8 de março de 2006
agenda@brasildefato.com.br
AGENDA LIVROS
ingresso custa de R$5 a R$10. Local: Teatro dos Arcos, R. Jandaia, 218, Bela Vista, São Paulo. Mais informações: (11) 3101-7802
A MOSCA AZUL, REFLEXÃO SOBRE O PODER O novo livro de Frei Betto é uma revisão do governo Lula, vinculando esta a uma análise da recente história da esquerda no panorama nacional e mundial. Com uma narrativa em primeira pessoa, Frei Betto mescla sua trajetória pessoal à militância política e resgata o sonho de testemunhar “um outro mundo possível” com base nos ideais do socialismo. O livro da Editora Rocco tem 320 páginas e custa R$32. Mais informações: www.rocco.com.br
Divulgação
NACIONAL CAMPANHA DA FRATERNIDADE Até 16 de abril “Fraternidade e pessoas com deficiência” é o tema da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano. Entre os objetivos, o de trazer ao centro do debate a atenção às pessoas com deficiência, que são freqüentemente vítimas de preconceito e de discriminação. Sobretudo em um ambiente cultural que tende a marginalizar e excluir os que têm menos capacidade individual de competir com os outros e de se afirmar social e economicamente. Criada em 1962, a Campanha da Fraternidade se apresenta como um grande mutirão de evangelização e conscientização da Igreja Católica no Brasil, com o apoio de várias Igrejas cristãs. Organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a CF é desenvolvida durante o período da Quaresma, que vai de Quarta-Feira de Cinzas à Páscoa. A cada ano é escolhido um tema para ajudar os cristãos a viverem a fraternidade e a solidariedade em compromissos concretos. Mais informações: www.cnbb.org.br
GLOBALIZAÇÃO: O FIM DE UM CICLO Em seu livro, Kostas Vergapoulos, trata sobre a tendência do sistema atual a se desestabilizar, e regredir. Aponta para os Estados Unidos como uma potência que não tem conseguido exercer uma hegemonia construtiva, nem no plano político nem no financeiro. Associa a globalização como um evento que mostra o fim de um ciclo. A obra conta com a revisão do sociólogo Cesar Benjamin, tem 288 páginas, e custa R$ 44. Da Editora Contraponto. Mais informações: www.contrapontoeditora.com.br
INTERNET MNPR - MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO DE RUA Criar um ponto de convergência e facilitar os contatos com os movimentos que defendem a população de rua pelo país. Esse é o principal objetivo da página na internet www.mnpr.guardachuva.org, do Movimento Nacional da População de Rua. Mais informações: www.mnpr.guardachuva.org
ESPÍRITO SANTO ENCONTRO FÉ E POLÍTICA 11 e 12 Em sua quinta edição, o encontro Fé e Política tem como tema o “Profetismo no poder”, e vai abordar questões relacionadas ao meio ambiente, mídia, economia solidária, igualdade racial, democracia direta, participação popular, entre outros. Entre os eventos programados está o lançamento do novo livro de Frei Betto, com a presença do autor. As inscrições custam R$15, e devem ser feitas por depósito bancário. Local: Ginásio Álvares Cabral, Av. Beira Mar, Vitória Mais informações: (11) 6694-0321, (27) 3223-6711, ramal 238 www.geocities.com/fepolitica/ coord.htm
RIO DE JANEIRO ESPECIALIZAÇÃO EM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Inscrições até dia 2 Dirigido a graduados nas áreas de humanas e biológicas que atuam com crianças, o curso tem como objetivo oferecer técnicas para atuação em diferentes casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes. A duração é de um ano, sendo que as aulas acontecem duas vezes por semana. A taxa de inscrição é de R$ 30 e a mensalidade, R$296. Local: Rua Marquês de São Vicente, 225, casa XV, Gávea, Rio de Janeiro Mais informações: 0800-90556; www.pucrj.com.br CURSO: JORNAL PARA ONGS Inscrições abertas Realizado na Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro, o curso pretende capacitar o aluno para a concepção, administração e comercialização de veículos de comunicação, focando na área das organizações não-governamentais (ONGs). A duração do curso vai de 15 de março a 5 de maio e custa R$ 150. Local: Biblioteca Pública do Esta-
do do Rio de Janeiro, Av. Presidente Vargas, 1.261, Rio de Janeiro Mais informações: (21) 3970-0961
SÃO PAULO CHUVA DE PRATA A partir do dia 3 No seu 15° ano, o projeto Chuva de Prata faz uma homenagem às mulheres no mês de março,
apresentando shows de cantoras e bandas femininas. As atividades acontecem uma vez por semana. No palco, apresentações de Amanda Costa, Dalva Cunha e a banda punk Cansei de Ser Sexy, entre outras. As entradas custam R$10. Local: R. Vergueiro, 1.000, Paraíso, São Paulo Mais informações: (11) 3277-3611, ramal 221
COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER E APRESENTAÇÃO DO BRASIL DE FATO 9 , 19h O jornal Brasil de Fato promove um evento em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, emTaubaté. A atividade contará com a participação do cantor e compositor Cacá Lopes e com a palestra de Priscila Siqueira, do Movimento de Mulheres. Nessa ocasião será feita a apresentação do jornal Brasil de Fato pelo jornalista João Alexandre Peschanski. Haverá ainda um debate coordenado por João Camillo. Local: Câmara Municipal, Plenarinho, Av. Prof. Walter Thaumaturgo (Av. do Povo), 208, Jardim das Nações, Taubaté Mais informações: (11) 2131-0800
DO FUNDO DO BAÚ De 4 de março a 4 de junho A peça infantil traz a história de seis viajantes que esperam em um ponto qualquer de uma cidade grande, e são interpelados por brincadeiras como trava-língua, cirandas, adivinhações, entre outras. A peça pretende resgatar a imaginação infantil nos adultos, e mostrar para as crianças a magia das brincadeiras simples. O
SEMINÁRIOS: ENCONTROS AMBIENTAIS A partir de 13 Realizado pela Caixa Econômica, o evento acontecerá na Galeria Paulista de Arte, e contará, todas as segundas-feiras, até 3 de julho com seminários tratando de questões ambientais. Estão previstas 16 palestras. A primeira delas, dia 13, será com o jornalista Reinaldo Canto, ex-diretor de comunicação do Greenpeace, para tratar sobre as características da cobertura jornalística quando o assunto é meio ambiente. Entrada gratuita, e as inscrições devem ser feitas por telefone. Local: Conjunto Nacional, Av. Paulista, 2.083 Mais informações: (11) 3107-0498 www.caixa.gov.br TRILHA, TOADA E TRUPÉ 15 Entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2005, o grupo A Barca viajou várias regiões do país por conta do projeto Turista Aprendiz. No Sesc Pompéia, apresenta o resultado desse projeto com a exibição do documentário feito durante a viagem, que retrata desde quilombos e aldeias indígenas até as periferias da cidade grande. Às 14 horas, Mestre Walter França, de Pernambuco, coordena uma oficina de maracatu; e às 20 horas ocorrerá a exibição do documentário. O ingresso é gratuito e deve ser retirado com antecedencia. Local: Sesc Pompéia, R. Cléia, 93, Pompéia, São Paulo Mais informações: www.sescsp.org.br CORTEJO DE CONGADA 28, 13h Os grupos de congada Cambaia - Cia. de Moçambique de São Benedito de São Paulo e a Congada de Santa Efigênia de Mogi das Cruzes participam de um cortejo que sai do Pátio do Colégio e da Igreja Boa Morte, convergindo na Praça Poupatempo, na Sé, no Centro da capital paulista. A iniciativa conta com o apoio do Sesc do Carmo. Local: Pátio do Colégio, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3105-9121 www.sescsp.org.br
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CULTURA
De 2 a 8 de março de 2006
CINEMA
O saque da Argentina Fernando Solanas registra a crise em seu país e denúncia a exploração dos povos Divulgação
Cena do filme Memórias do Saqueio, no qual Solanas retrata a crise argentina de 2001. Ao todo são quatro filmes que denunciam o “genocídio social” que este país sofreu durante os anos neoliberais
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ilitante político e documentarista social há quase 40 anos, Fernando Pino Solanas vem dedicando os últimos cinco à investigação e à denúncia da crise da história recente da Argentina. O resultado do trabalho do cineasta pode ser visto numa série de quatro filmes, dois deles ainda em produção. O ápice dessa crise ocorreu em 19 de dezembro de 2001, quando os argentinos sairam às ruas para protestar contra o governo de Fernando de la Rua e a situação de miséria em que se encontrava a maior parte da população. Durante as manifestações, que foram reprimidas pelas forças policiais, 34 pessoas morreram e o presidente acabou renunciando. Em meio ao caos que se tornou a cidade de Buenos Aires, Solanas pegou sua câmera digital e foi para as ruas registrar os acontecimentos. O resultado foi o primeiro dos quatro filmes, Memórias do Saqueio, que denuncia o “genocídio social” na Argentina durante os anos de neoliberalismo. O “saqueio” do título não se refere aos saques em supermercados realizados pela população argentina jogada na miséria, mas ao saqueio do país, à desnacionalização completa da economia. O processo começou com a dívida externa e uma política de juros e se completou com a implementação das privatizações e dos planos neoliberais na década de 1990. As lentes de Solanas também voltaram-se para as manifestações do povo argentino, que tomou as praças e as ruas de panelas em punho – o chamado panelaço –, clamando pela saída de todos os políticos do poder, sob o refrão “Que se vayan todos!” Já em A Dignidade dos Ninguéns, de 2005, Fernando Solanas acompanha histórias de pessoas que se unem em projetos comunitários. As histórias de resistência popular levaram o diretor a realizar mais dois filmes, atualmente em fase de produção (La Tierra Sublevada e Argentina Latente). Solanas tem uma longa história de denúncias cinematográficas, que começa com o documentário La Hora de los Hornos (1968), um clássico do cinema latino-americano sobre a ditadura na Argentina. Por causa desse filme, apresentado pela primeira vez no Festival de Pesaro, na Itália, o cineasta acabou exilado na França, onde realizou um único filme, Le Regard des Autres (1980). De volta do exílio, Solanas fez Tangos, o Exílio de Gardel (1985), entrou para a política e se elegeu deputado pelo partido de esquerda Frente Para um País Solidário (Frepaso), pelo período de
cinco anos, entre 1993 e 1997. Durante sua participação no Fórum Social Mundial em Caracas, Venezuela, realizado de 24 a 29 de janeiro, Solanas concedeu entrevista ao Brasil de Fato, em que afirmou estar otimista com o momento que a América Latina vive hoje: “Aqui os povos se cansaram desse tipo de política neoliberal dos anos 1990 e foram buscar outras opçôes”.
Os povos voltaram-se à esquerda, mas isso não significa que os governos resultaram da esquerda Brasil de Fato – Por que o senhor decidiu fazer uma série de filmes sobre a crise na Argentina? Fernando Solanas – A Argentina nunca passou por uma crise como esta. Sofremos o seqüestro dos depósitos bancários, o desemprego subiu para 23%. Em Memórias do Saqueio eu quis denunciar a desnacionalização do país, por meio das inúmeras privatizações exigidas pelo Fundo Monetário Internacional e aplicadas com rigor pelo governo do presidente Carlos Menem. Empresas das mais importantes e mundialmente reconhecidas, como a de petróleo e a de gás, foram vendidas a preço irrisórios e levaram milhares de pessoas ao desemprego. BF – Por que é tão importante resgatar a memória dos povos latino- americanos? Solanas – A memória é a principal arma de defesa dos povos, ainda mais com o grande aparato de desinformação que existe hoje e que tenta destruir a memória dos povos. Mas a resistência, a participação popular são fundamentais. E é imprescindível mostrar o que realmente aconteceu, que nunca é incorporado à história dos vencedores. BF – Apesar de o filme ser sobre a crise na Argentina, denuncia o resultado de políticas neoliberais, e também retrata a realidade de outros países, como a brasileira. Solanas – Quando faço um filme, parto das minhas necessidades, e da necessidade das pessoas. Acho que minha contribuição é importante para o debate que está se desenvolvendo contra essa desumanizaçâo mundial. Nesse sentido meu trabalho é mais global. Precisamos de filmes que denunciem,
cada um com sua própria leitura, os mecanismos que condenam nossos povos. BF – O senhor disse que a grande imprensa deu pouca atenção aos seus filmes. Que explicação tem para essa reação da mídia? Solanas – A grande imprensa ignorou o filme. Mas isso é normal, porque o filme ataca a atuação dos grupos midiáticos no processo político, quando deram aval às operações de corrupção. No governo atural, de Néstor Kirchner, a situação continua semelhante, mas os meios de comunicação privados, frente à onda de democratização dos últimos anos na Argentina, estão mais cautelosos. BF – Qual o seu propósito, quando fez o segundo filme, A dignidade dos Ninguéns? Solanas – Acredito na força da participação popular e, em conseqüência, na política enquanto instrumento de melhorias e de transformações sociais. Quis mostrar a luta dos “ninguéns”, que organizam almoços coletivos para os que não têm o que comer, sobrevivem catando lixo e ocupam casas que sofrem com enchentes. BF – Qual o impacto do filme na Argentina? Solanas – É um filme que ataca os meios de comunicação e as grandes corporações. A partir do Festival de Berlim, onde recebi um Urso de Ouro pela minha carreira, foram muitas homenagens: na Venezuela, em Cuba e em vários outros países.
Um documentarista social tem que fazer o seu ofício com ética social, aprofundando a realidade BF – O seu trabalho é constantemente chamado de panfletário pela imprensa. Como o senhor vê isso? Solanas – Me sinto orgulhoso de fazer panfletos estéticos com algum esforço para traduzir temas e imagens que são constantemente banalizados pela mídia. BF – Como o senhor avalia o momento que a América Latina vive hoje, com um crescimento de governos de esquerda? Solanas – Esse é um momento interessante do continente, depois da experiência terrível dos anos
1980 e 1990. Na Venezuela, com Carlos Andrés Pérez, e depois com Rafael Caldeira. No Uruguai e Argentina também vivemos experiências muito nefastas. Mas os povos se cansaram desse tipo de política e de governo e foram buscar outra opção. Isso não quer dizer que são todos governos de esquerda. Os povos voltaram-se à esquerda, mas isso não significa que os governos resultaram da esquerda. No Brasil, a base popular, 50 milhões de pessoas votaram por uma mudança, mas o país segue o mesmo modelo econômico de antes. Na Argentina, o povo vinha votando por mudanças, mas teve seu voto traído. O governo Kirchner promoveu algumas mudanças, o que despertou esperanças, mas outras continuam sendo as mesmas de antes. O modelo econômico continua sendo o neoliberal, segue o mesmo modelo impositivo de Carlos Menen e De la Rua. A política petroleira e de privatização segue mais ou menos a mesma. Kirchner não cancelou as concessões das privatizações, e há grande debate na Argentina entre o público e o privado. Tampouco investigou os delitos contra o patrimônio público, o saqueio. Esse é o lado neoliberal do Kirchner. BF – Como o senhor vê a atual produção de filmes e documentários na América Latina? Solanas – Há um grande movimento de documentaristas em quase todos os países. No Brasil, há grandes documentaristas, como Eduardo Coutinho, por exemplo. Na América Latina há um renascimento do cinema, o Brasil ainda tem grandes diretores de ficção. No México também. Argentina vive um momento rico. Produzimos cinema de grande público, com certa qualidade. E há um forte movimento de documentaristas. BF – O senhor tem uma longa trajetória de militância política. Ainda se considera um otimista em relação à esquerda na América Latina? Solanas – Creio que a Argentina e a América Latina estão no caminho de uma mudança. Na Argentina há um grande crescimento econômico e a atual integração com Venezuela, Brasil, Bolívia é um momento bem diferente da década de 1990. Além disso, há o povo exigindo com muita consciência. A dignidade dos ninguéns é um testemunho da tomada de consciência desse povo. São pequenas vitórias e avanços que passam despercebidos.
BF – Na sua opinião, qual é a responsabilidade do documentarista social? Solanas – Ser o mais fiel e leal à realidade que se está testemunhando. Um comunicador e um documentarista social têm que fazer o seu ofício com ética social, aprofundando a realidade, tratando de olhar objetivamente o que vê, e não ir à realidade para buscar o que quer dizer. Há muita gente que acha que para fazer uma denúncia social, um documentário social, basta mostrar as coisas e testemunhá-los de qualquer maneira. Não. Tem que fazer uma elaboração, uma montagem, não se pode fazer um filme sem ter uma proposta cinematográfica. BF – Nos dias de hoje ainda existe espaço para um cinema revolucionário? Solanas – Enquanto existir injustiça, opressão, roubo dos bens públicos, enquanto existir a vida, vai existir a necessidade de filmes que a defendam.
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Tatiana Merlino da Redação
Quem é Expoente do cinema político latino-americano, o documentarista argentino Fernando Ezequiel Solanas, mais conhecido como Fernando “Pino” Solanas, 68 anos, recebeu, em 2004, o Urso de Ouro especial do Festival Internacional de Cinema de Berlim, pelo conjunto de sua obra. Há mais de 30 anos retrata a realidade de seu país. Sua trajetória como documentarista começa com o documentário La Hora de los Hornos (1968), um clássico do cinema latinoamericano sobre a ditadura na Argentina. Por causa desse filme, apresentado pela primeira vez no Festival de Pesaro, na Itália, o cineasta foi exilado na França, onde realizou um único filme, Le Regard des Autres (1980). Exilado político na França entre 1976 e 1984, foi deputado entre 1993 e 1997.