Ano 4 • Número 159
R$ 2,00
40 mil mortes em três anos de guerra
João Zinclar
São Paulo • De 16 a 22 de março de 2006
No dia 18, milhares de pessoas voltam às ruas do mundo para exigir que tropas de 26 países deixem o Iraque
A
guerra do Iraque completa mais de mil e uma noites. Mas, ao contrário desse conto de fadas – ironicamente de origem iraniana –, não se vislumbra, até o momento, um final feliz. Cerca de 40 mil pessoas já morreram – o equivalente a meio Maracanã. E os números não param de crescer. Neste último ano, segundo
contagem realizada pelo Iraq Body Count, 36 civis foram mortos por dia – quase o dobro da média do primeiro ano da “ocupação”, com 20 mortes diárias. Entre os soldados estadunidenses e britânicos, o número de baixas fatais também é significativo. Até o dia 6, os Estados Unidos – que têm 138 mil militares no Iraque – já
haviam perdido 2.304 deles, enquanto o Reino Unido – com 8.900 soldados – já contabilizava 103 mortes. Parece que, depois de tanto “esforço”, os países invasores não vão conseguir evitar uma guerra civil estimulada pelo vizinho Irã – alcançando o impensável: unir o Iraque a seu eterno inimigo. Pág. 9
América Latina busca integração livre dos EUA
Mulheres em ação contra o agronegócio março, as camponesas chamaram atenção do mundo ao ocupar uma das instalações da empresa responsável pelo chamado “deserto verde” no Rio Grande do Sul. Págs. 2, 3, 4 e 14
Pela primeira vez na história, a América Latina começa a enveredar pelos caminhos de uma verdadeira integração, e quem lidera esse movimento é o presidente venezuelano Hugo Chávez. É o que defende o lingüista estadunidense Noam Chomsky, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato. “Não há dúvidas de que os Estados Unidos estão muito incomodados com essa situação, uma vez que a região começou a sair do seu controle”, avalia. Para ele, é importante que os recursos naturais sejam explorados em benefício da população, como na Venezuela. Pág. 11
Dia 18, um protesto mundial contra a política de ocupação dos EUA no Iraque
Mobilização nacional por reforma agrária Trabalhadores rurais sem-terra organizam manifestações e ocupações em todo o país para pressionar o governo Lula a aumentar o número real de assentamentos.
Depois de acampar em terras improdutivas, camponeses farão ações nas cidades, para dialogar com a sociedade civil. Pág. 5
José Cruz/ABr
Marcio Baraldi
Responsável por criminosa degradação ambiental, a Aracruz Celulose foi alvo do protesto de duas mil integrantes da Via Campesina. Em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, 8 de
Brasil aceita identificar carga transgênica
40% do lucro da Petrobras vai para fora
Ao contrário da postura defendida até agora, o Brasil foi favorável à identificação de cargas de organismos vivos geneticamente modificados. Foi um avanço, na opinião de ambientalistas – que consideraram muito longo o prazo de quatro anos para as adaptações à regra. Pág. 6
Dos R$ 23,7 bilhões que a Petrobras faturou em 2005, o maior lucro de sua história, R$ 13,65 bilhões foi para investidores privados, que têm 57,6% das ações. Quase 40% dessas ações pertencem a estrangeiros. A pressão pelo lucro impede que a companhia adote políticas sociais. Pág. 7
E mais: ÁGUA – No 4º Fórum Mundial das Águas, realizado no México, movimentos sociais se contrapõem a modelo do Banco Mundial para gestão dos recursos hídricos. Pág. 13 CULTURA – Os governos tucanos põem em risco Tendal da Lapa, a maior casa de cultura popular da cidade de São Paulo, localizada no bairro da Lapa. Pág. 16
Classe média empobrece e diminui Pág. 7
Trabalhadores da educação em greve no RS Pág. 8
Na Nigéria, rebeldes contra transnacionais Pág. 12
TV digital – Mesmo após a escolha do padrão estrangeiro, sociedade civil vai continuar pressionando o governo federal por uma TV mais democrática Pág. 8
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De 16 a 22 de março de 2006
CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Cavalcanti Proença • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores
CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim
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NOSSA OPINIÃO
A resposta combativa das mulheres
A
s mulheres brasileiras saíram às ruas em todo o Brasil, no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher. As ações tiveram como marca a denúncia da situação de opressão vivida pelas mulheres, nos últimos anos agravada pelo neoliberalismo, tanto no âmbito público como no privado, seja na família ou nas demais relações interpessoais. Ao mesmo tempo, o mercado tenta subverter essa data, transformando-a em um dia de comemorações e promoções nas lojas de lingerie e de eletrodomésticos. Mas essa tentativa apenas confirma as denúncias das ativistas de que o mercado tenta se expandir apropriando-se do corpo e da vida das mulheres. E se dá pela imposição de um padrão estrito de beleza, pela interferência da medicina no corpo da mulher, pela utilização da força de trabalho de forma intensiva e com um padrão de superexploração, pelo incremento do tráfico e da prostituição, pelo fato de as mulheres serem responsabilizadas pelo equilíbrio da família e da comunidade diante da ausência de políticas que garantam os direitos sociais. Como resposta, as mulheres organizadas mostram combatividade e atuam por mudanças globais na sociedade, reafirmando a história de luta desse dia. Além das antigas reivindicações pela descriminalização do aborto, pelo combate à violência sexual e doméstica, por igualdade no mercado de trabalho, pela refor-
ma agrária e urbana, as mulheres levaram às ruas a campanha pela valorização do salário mínimo, para tirar dos trilhos a Organização Mundial do Comércio (OMC), pelo fim da ação nefasta e de morte das transnacionais – que tem garantido por lei o direito de explorar o trabalho de homens e mulheres, mas também de destruir o ambiente. Foi nesse mesmo espírito de luta por mudanças radicais que as mulheres se uniram em uma ação mundial pela retirada das tropas do Iraque. Desde o dia 7, as mulheres estavam nas ruas com as colagens realizadas pela Marcha Mundial das Mulheres, as vigílias contra a violência doméstica e sexual chamadas pela Articulação de Mulheres Brasileiras e pela ação direta, organizada pelas mulheres da Via Campesina, na empresa de celulose Aracruz, em uma vigorosa denúncia ao deserto verde com a ocupação de seu laboratório no Rio Grande do Sul. Em Natal (RN), militantes foram detidas pela Polícia Militar quando colavam cartazes denunciando a hipocrisia do aborto criminalizado – que faz com que a maior parte dos 750 mil abortos ocorridos no país levem milhares de mulheres à morte e a enfrentar problemas graves de saúde, resultado de seqüelas de abortos inseguros. A ordem de prisão foi dada com o argumento de que estavam incitando o crime, e
por formação de quadrilha. A mesma ameaça foi feita a quem apoiou a ação das mulheres na Aracruz. A feroz reação da direita e em particular dos meios de comunicação de massa e de muitos jornalistas demonstram a aceitação acrítica do poder das transnacionais, da institucionalidade que mantém esse poder, como é o exemplo da OMC e de várias legislações e políticas governamentais, em detrimento de compreender o direito de resistência do povo organizado diante de ameaças graves ao direito à vida e à soberania popular e nacional. A crise de legitimidade do projeto neoliberal exige dos governos ações contundentes de defesa das reivindicações populares e de mudanças radicais nas políticas que hoje sustentam as transnacionais e garantem o atual padrão de acumulação que jogam milhões de seres humanos no desemprego e no emprego precário. Mas, sobretudo, esse modelo rouba o futuro de mais de uma geração, condenada a uma vida no limite da sobrevivência e sem esperança de uma vida baseada na igualdade e na emancipação. O 8 de março trouxe a indignação com a injustiça e o anseio de uma vida com liberdade. Oxalá 2006 siga como ano de lutas que congreguem o conjunto dos movimentos no Brasil e no mundo para impor uma derrota ao imperialismo e sua política de dominação.
FALA ZÉ
OHI
CARTAS DOS LEITORES DESAPONTADO Estou desapontado com o freqüente uso de dados da ONU, como o IDH e a linha da pobreza, cuja base de cálculo já foi contestada pelo próprio jornal. A ONU não passa de um tentáculo institucional do império estadunidense. Ressalto que tenho 15 anos apenas. Bruno C. Rodrigues Thomaz Petrópolis – RJ Por correio eletrônico COVARDIA O lamentável e covarde posicionamento do PT e do ministro do Desenvolvimento Agrário, o “trotskista” Miguel Rossetto, contribuem para a tentativa da mídia burguesa de isolar o MST. Este é um momento para o parlamentarismo revolucionário entrar em ação. Com a palavra a senadora Heloísa Helena, o deputado Babá e, principalmente, por ser gaúcha, a deputada Luciana Genro. Sérgio Cardoso Morales Por correio eletrônico ARBITRÁRIO É absurdo e arbitrário o procedimento tomado pelo Poder Judiciário em relação à impunidade, absolvendo uma pessoa que foi julgada culpada. Os desembargadores mandaram o seu recado à elite desse país: ricos e poderosos podem fazer qualquer coisa em relação a presidiário, negros, pobres e
ERRATA A oficina de fotografia promovida pelo fotógrafo Anderson Barbosa, em São Paulo, é denominada Arquitetura da Exclusão, e não Arquitetura da Destruição, como publicado na edição 158.
todos os outros segmentos excluídos que nunca serão punidos. É indigno um Poder Judiciário agir dessa forma, imoral. Isso trará sérias conseqüências para a nossa nação. Sinto repulsa por essa instituição! Khadija Slemen Porto Real (RJ) Por correio eletrônico INDIGNAÇÃO Entre as causas da revolução russa de 1917, o historiador Mc Nall Burns (História da Civilização Ocidental pág. 888) cita corrupção generalizada, incompetência sem limites, sendo o primeiro-ministro incapaz de controlar a cobiça dos fornecedores ladrões. Como se vê, as semelhanças são muitas com o que se passa em nosso belo e triste país. Só que por aqui tudo parece normal. Os corruptos estão aí pregando soluções e ninguém parece indignar-se. José Mário Ferraz Por correio eletrônico QUERIDA EQUIPE DO BRASIL DE FATO É com grande alegria e satisfação que venho por meio desta comunicar-lhes o quanto este jornal se tornou importante para mim. Quando estou triste, ele me deixa entretido, quando sereno, me informa e quando estou alegre, ele me abre os olhos e me faz pôr os pés no chão. É incrível como é interessante, útil e acima de tudo sério. Tornei-me assinante por acaso, quando estava lendo a revista Família Cristã, vi a propaganda e resolvi fazer a experiência de assinatura por seis meses e posso atestar que ele é completo e indispensável. Todos precisam assinar urgentemente o Brasil de Fato. Daniel dos Santos Oliveira Brumado (BA)
Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815
CRÔNICA
Brasileiras guerreiras da paz Leonardo Boff No mundo inteiro as mulheres sofrem ainda sob o efeito do sistema patriarcal. Este não apenas as marginalizou senão criou também um tipo de sociedade e de cultura no qual elas ou são subalternizadas ou feitas invisíveis. Continua ainda especificamente na China, India, Bangladesh e Taiwan o abortamento de meninas, a ponto de desiquilibrar a proporção entre homens e mulheres. O indiano Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, denunciava já nos anos 1990 a falta de cem milhões de mulheres vítimas desta prática assassina. Apesar de tudo, já há quase dois séculos, que as mulheres despertaram dessa situação desumana e se organizaram para gestar outro tipo de relação de gênero, criando os fundamentos de outro paradigma civilizacional não mais ligado à subordinação mas à reciprocidade e à parceria. Para reforçar a luta de libertação das mulheres, criou-se na Suíça a Associação 1000 mulheres para o Prêmio Nobel da Paz 2005. A tarefa era identificar 1000 mulheres em 153 países do mundo que nas grandes cidades e nos grotões estivessem lutando pela segurança humana e pela libertação. No Brasil coube à Clara Charf, companheira de Carlos Marighella, assassinado em 1969 pelos órgãos de repressão, criar uma
comissão para identificar nomes de mulheres guerreiras. Entre tantas outras foram apontados 262 nomes dos quais dever-se-ia tirar apenas 52 pois esta era a quota que correspondia ao Brasil. Foi um trabalho árduo. O prêmio, entretanto, foi concedido a Moahamed El Baradei, presidente da Agência Internacional de Energia Atômica. Agora acaba de ser lançado o livro Brasileiras guerreiras da paz pela Editora Contexto. Narra a saga destas 52 mulheres brasileiras. Há nomes conhecidos das várias áreas do saber e das artes. Mas a grande maioria é anônima e todas guerreiras. Lendo suas biografias mal conseguimos conter a emoção. A mim veio-me à mente a cena do Apocalipse quando um dos anciãos fez a pergunta ao anjo: “Estas e estes quem são e de onde vieram”? E o anjo respondeu: “Tu és que sabes”. E então o ancião revelou: “Estas e estes são aqueles que vieram da grande tribulação”. Sim, a grande maioria carrega em seus corpos os sinais da tribulação histórica do Brasil marcada pela pobreza e pela exclusão. Mas são mulheres que não se resignaram. Furaram o cerco da opressão, não para ascender de patamar social, mas para habilitar-se melhor a lutar ao lado de suas companheiras de padecimentos.
Cito quase ao léu alguns nomes, sem querer fazer injustiça às demais. Concita Maia, filha de pai índio e de mãe branca do Acre, educadora popular, feminista e ambientalista, subindo e descendo os rios para conscientizar extrativistas e parteiras de seus direitos. A indígena Eliane Potiguara que criou a Rede de Escritores Indígenas. Joênia Batista de Carvalho, índia wapichana de Roraima, é a primeira mulher indígena a se formar advogada no Brasil para defender seu povo, atendendo hoje a cerca de 280 comunidades. Dedico este artigo àquelas anônimas que diariamente cruzam nosso caminho, guerreiras que levam com destemor a vida avante. Sou da mesma opinião da FAO: se não dermos mais poder de decisão às mulheres, dificilmente salvaremos nosso Planeta. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos. Autor junto com Rose Marie Muraro do livro Feminino e Masculino, uma nova consciência para o encontro das diferenças (Sextante)
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De 16 a 22 de março de 2006
NACIONAL ARACRUZ OCUPADA
A força feminina contra o deserto verde A
s mulheres da Via Campesina alteraram a pauta de debates da 2ª Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR), em Porto Alegre, no dia 8. Com um ousado protesto, elas denunciaram que a reforma agrária não avança no Brasil e na maioria dos países pobres porque o agronegócio está se apropriando do campo e provocando impactos muito negativos tanto do ponto de vista socioeconômico quanto do ambiental. Para simbolizar essa situação, o alvo escolhido foi o chamado “deserto verde”. Na madrugada do dia 8, duas mil mulheres da Via Campesina dos Estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina ocuparam o horto florestal da Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro, a cerca de 80 km de Porto Alegre. Protegidas por um lenço lilás com a frase “não ao deserto verde”, as mulheres chamaram atenção do mundo para as conseqüências do crescimento vertiginoso das plantações de acácia, pinus e principalmente de eucalipto, no sul do país. O horto florestal da Aracruz é o maior viveiro de mudas de eucalipto da América Latina, com uma produção de dez milhões de mudas por ano. Em nota divulgada à imprensa, as mulheres da Via Campesina explicam por que decidiram combater as grandes florestas de eucalipto: “Onde existe o deserto verde a biodiversidade se destrói, os solos se degradam, os rios secam. Além disso, para fazer essas grandes plantações, as empresas se apropriam de enormes quantidades de terras impedindo a produção de alimentos. E o povo não come eucalipto. Sem contar a enorme poluição provocada pelas fábricas de celulose, que usam produtos químicos pesados, contaminando o ar, as águas, e ameaçando a saúde humana. Nos países ricos há fortes restrições para esse tipo de fábricas. Já no Brasil, especialmente aqui no RS, há total apoio dos governos federal e estadual”.
CELULOSE AVANÇA No Rio Grande do Sul já existem cerca de 200 mil hectares plantados com madeira para celulose. Três empresas são donas dessas florestas homogêneas no Estado: a Aracruz Celulose, a Votorantim e a Stora Enso. A Aracruz tem uma fábrica no município de Guaíba, região metropolitana de Porto Alegre, e já anunciou a ampliação da indústria no Estado. As outras empresas também declararam que vão implantar fábricas em breve. E para viabilizar as fábricas as empresas alegam que precisam dobrar a área plantada no Estado. “Se o deserto Deserto verde – Nome dado às verde continumonoculturas de ar crescendo, eucalipto, destinaem breve vai das normalmente às indústrias de faltar água para papel e madeira. beber e terra Provoca degrapara produzir dação ambiental, pois substitui a alimentos. Não plantação nativa por conseguimos grandes áreas de entender como eucalipto, destruindo a biodiversidade um governo por onde avança. que quer acabar com a fome patrocina o deserto verde em vez de investir na reforma agrária e na agricultura camponesa”, afirmam as mulheres da Via Campesina. Segundo especialistas, um pé de eucalipto consome cerca de 30 litros de água por dia. Além de todos os problemas ambientais, Irma Ostrowiski, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), chama atenção para o fato de que o avanço do deserto verde se tornou um obstáculo para a reforma agrária no Rio Grande Sul. “Onde cresce o deserto ver-
Cerca de 2.000 mulheres da Via Campesina protestam contra os crimes cometidos pela Aracruz Celulose e a monocultura do eucalipto, em Barra do Ribeiro (RS)
de a reforma agrária pára. No RS há cerca de 200 mil hectares cobertos com eucalipto, pinus e acácia. Se essas áreas do deserto verde gaúcho fossem destinadas para a reforma agrária daria para assentar dez mil famílias, com lote de 20 ha. Nos últimos três anos, só o grupo Votorantim comprou 66 mil hectares no RS, área suficiente para assentar mais de três mil famílias. Mas nesse período só 220 famílias foram assentadas em novas áreas”, afirma.
Após a ação na Aracruz, as mulheres seguiram para Porto Alegre, onde lideraram uma grande marcha rumo à conferência da FAO (veja reportagem na página 4). Segundo a polícia, cerca de quatro mil pessoas percorreram cerca de 2 km por uma movimentada avenida, carregando uma cruz de eucalipto e três caixões com os nomes das três empresas que controlam o deserto verde no sul do país. “A Aracruz, a Votorantin e a Stora
Enso estão provocando a morte em nosso país e nós defendemos a vida, por isso somos contra o deserto verde”, disse Loiva Rubinick, do Movimento de Mulheres Camponesas.
RUMO À CONFERÊNCIA Na chegada à Pontifícia Universidade Católica (PUC), onde se realizava a Conferência, a Polícia Militar gaúcha deu uma demonstração do despreparo para lidar
O ALVO DO PROTESTO A nota das mulheres da Via Campesina esclarece por que a ação foi realizada na Aracruz: 1. É a empresa que tem o maior deserto verde no Brasil – mais de 250 mil hectares plantados em terras próprias (Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia e Rio Grande do Sul). Só no Rio Grande do Sul são quase 50 mil hectares. Suas fábricas produzem 2,4 milhões de toneladas
de celulose branqueada por ano, gerando enorme contaminação no ar e na água, além de ameaçar a saúde humana; 2. Em solidariedade aos povos indígenas, que tiveram suas terras invadidas pela Aracruz no Espírito Santo. Em janeiro, as populações indígenas foram violentamente expulsas de seus próprios territórios, apropriados pela empresa. A polí-
cia federal usou as máquinas da empresa na ação de despejo. 3. É a empresa desse ramo do agronegócio que mais recebeu dinheiro público. São quase R$ 2 bilhões nos últimos três anos. No entanto, uma empresa como a Aracruz gera apenas um emprego a cada 185 hectares plantados, enquanto a agricultura camponesa gera 1 emprego por hectare.
com manifestações populares. Em pleno Dia Internacional da Mulher, as mulheres foram vítimas de truculência. Conseguiram entrar no estacionamento da universidade, mas a tropa de choque impediu o acesso ao prédio da conferência. Depois de muita confusão e negociações, as mulheres foram vitoriosas. Uma delegação de 60 mulheres da Via Campesina, entre elas sete indígenas de outros países da América Latina, entrou no prédio da conferência carregando galhos de eucalipto. As ativistas leram o manifesto para os representantes dos 80 países participantes, inclusive o ministro do Desenvolvimento Agrário Miguel Rossetto, representante do governo brasileiro. Após a leitura do manifesto as mulheres da Via Campesina foram aplaudidas de pé pelos delegados da conferência e saíram ao som de palavras de ordem: “Reforma agrária, urgente e necessária”, “Soberania sim, deserto verde, não!”, “Globalizemos a luta, globalizemos a esperança!”
Mídia faz papel de polícia Daniel Cassol de Porto Alegre (RS) Episódio um: sexta-feira, dia 10. Integrantes da coordenação da Via Campesina Internacional concedem entrevista coletiva de imprensa para avaliar a Conferência da FAO sobre Reforma Agrária e expressar o apoio da organização à ação das mulheres na Aracruz, dois dias antes. Impaciente, o repórter da RBS TV telefona, possivelmente para a redação: “A coletiva já começou, quando a polícia vai chegar?” Instantes depois, dois policiais civis aparecem portando intimação para três dos cinco integrantes da Via Campesina. Paul Nicholson, Juana Ferrer e Henry Saragih foram convocados a prestar depoimento. A confusão se arma e o repórter cumpre a pauta combinada já na redação. Episódio dois: madrugada de sábado para domingo, dia 12. Uma fita VHS gravada por um acampado do MST na Fazenda Guerra, em Coqueiros do Sul (RS), mostra cenas de tortura psicológica promovida pelo Batalhão de Operações Especiais (BOE) da Polícia Militar. Sirenes, gritos, motosserra ligada e fortes batidas em latas compõem a “trilha sonora” da “Rádio Companheirada”, anunciada pelo policial, em deboche à forma como os militantes do MST se tratam. O tempo
Leonardo Melgarejo
Christiane Campos de Porto Alegre (RS)
Neco Varella/ AE
No Dia Internacional da Mulher, uma ação combativa em defesa da saúde humana e do ambiente
Integrantes da Via Campesina apoiam ação contra a transnacional da celulose
que a fita consegue gravar à noite – cerca de uma hora – é todo preenchido pelo barulho e pela ameaça dos PMs, que não deixam os quase dois mil sem-terra dormir. Ciente de que o povo está com fome, um dos policiais grita: “Troco dois pacotes de bolacha por aquela sem-terra loirinha”. A manchete do jornal Zero Hora de segunda-feira, 13, não deixa nenhuma dúvida sobre como está a situação na região: “MST mantém ameaça à Fazenda Coqueiros”. Os dois episódios relatados acima mostram que a imprensa brasileira – em especial a do Rio
Grande do Sul – não segue apenas criminalizando os movimentos sociais. Agora também cumpre o papel da polícia, ou age em parceria com ela. As poucas declarações que dirigentes da Via Campesina concederam à imprensa após a ação na Aracruz já resultam em processos por incitação ao crime, entre outros. Falar com determinados veículos de imprensa, atualmente, é como prestar um interrogatório à polícia. Neste momento, a linha montada pelos grandes meios de comunicação pode ser resumida assim: a
ação na Aracruz faz parte de uma conspiração internacional contra o desenvolvimento e a democracia de países como o Brasil. Para inviabilizar novas ações das “quadrilhas travestidas de agentes da mudança”, como afirmou o editorial da Folha de S. Paulo, a mídia ajuda a polícia e identifica participantes da ação, empresas de ônibus que levaram as manifestantes e buscam de todas as formas cortar relações institucionais dos movimentos com os governos. Em paralelo a isso, a reação virulenta da mídia não chega a ser novidade. A Folha de S. Paulo, que não gosta de sujar as mãos, afirmou que “é com polícia e processo judicial que se ‘dialoga’ com quem invade e destrói”. Apenas uma amostra de como os meios de comunicação do centro do país têm reagido à questão. O Globo e o Estado de São Paulo não deixam por menos. No Rio Grande do Sul, os tradicionais órgãos da imprensa conservadora são a ponta de lança de uma ofensiva que revela um pacto entre empresários, governo e mídia. Ávida por prisões desde a ação da Via Campesina em uma distribuidora de leite, no ano passado, a imprensa pede que se apontem culpados, em páginas de notícias patrocinadas com as logomarcas da Aracruz.
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De 16 a 22 de março de 2006
Espelho REFORMA AGRÁRIA
Compromisso com o debate
Cid Benjamin
O Globo apoiando Lula? O título da principal reportagem de política do O Globo do dia 11 foi “Tucanos escolhem... um paulista”. Lendo o texto, vê-se que a notícia era outra: o PSDB adiara a escolha de seu candidato para a terça-feira seguinte. Mas que ele seria paulista, sabia-se há tempos. Afinal, os dois pretendentes eram de São Paulo. Por que, então, a manchete? Seria para intrigá-los com o público leitor do jornal, que é carioca, e ajudar Lula? Pode ser que não. Mas pode ser que sim. Ah, as previsões... De Londres, na comitiva de Lula, Palocci previu forte crescimento da economia em 2006. Nenhum jornal lembrou as declarações do ministro sobre o mesmo tema no início de 2005. Em vez de um crescimento quase haitiano, Palocci prometia mundos e fundos. Já é hora de os jornais aprenderem que, dada às contínuas (e furadas) previsões de espetáculos do crescimento, é sempre bom checar as previsões anteriores, para ver se elas se concretizaram. A balela do risco país De novo os jornais voltam a falar no tal risco país. Ora, ele nada mais é do que a avaliação de agências estadunidenses sobre a perspectiva de lucros com aplicações no mercado financeiro de um dado país. No dia em que o Brasil baixar os juros e mudar a política econômica, vai subir o risco país, porque vão cair as perspectivas de lucro fácil com a compra de títulos da dívida pública. A situação do país terá piorado? Não. Estará a caminho de melhorar. Medo do Opportunity? O Globo publicou na semana passada, escondido na seção de economia, que a juíza Márcia Cunha de Carvalho, da 2ª Vara Empresarial do TJ do Rio, declarou-se “sob suspeição” para julgar questões que envolvam o banco Opportunity. Márcia diz não ter “forças suficientes para enfrentar o poder econômico” do Opportunity. É notícia que merecia destaque. Ou a juíza é irresponsável, ou estamos diante de um caso gravíssimo, em que o poder econômico intimida o Judiciário. Ofensiva reacionária A imprensa reacionária está fazendo a festa com a destruição de um laboratório científico da Aracruz Celulose por militantes da Via Campesina. Vai fazer render a questão o quanto puder. E aproveitou para deslocar o debate da questão do modelo agrícola (onde os conservadores ficam na defensiva) para a do suposto vandalismo (onde o movimento popular é chamado a se explicar). O melhor do Pasquim Está saindo do forno o primeiro dos quatro volumes que vão reproduzir o que de melhor foi publicado no Pasquim, semanário que marcou a história da imprensa brasileira e a resistência à ditadura no plano cultural. A editora é a Desiderata e o livro custa R$ 69. Vale a pena conferir. Segredos da CIA O Chicago Tribune mostrou, em reportagem publicada dia 12, a vulnerabilidade da CIA. Usando apenas a internet, o jornal chegou a uma relação de 2.653 funcionários da CIA, entre eles vários agentes secretos. A pesquisa localizou, ainda, dezenas de instalações em que o órgão de inteligência dos EUA opera sob sigilo. A pedido da CIA, o texto foi publicado sem citar nomes ou endereços. Blog do Cid Benjamin: http://blog docidbenjamin.zip.net/
Conferências da FAO e sociedade civil reforçam a necessidade da participação popular Raquel Casiraghi de Porto Alegre (RS)
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epois de 30 anos da realização da 1ª Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, em Roma, na Itália, o tema da reforma agrária voltou à pauta em nível internacional. Durante os dias 6 a 10 de março ocorreu, em Porto Alegre (RS), a 2ª Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, promovida pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário brasileiro. Ao mesmo tempo, a sociedade civil se organizou e fez o Fórum Terra, Território e Dignidade, a fim de pressionar os chefes de Estado presentes pela distribuição de terras. Em jogo, está o modelo de reforma agrária e de soberania alimentar que os movimentos sociais querem que os governos implementem. Logo na abertura do fórum paralelo, os cerca de 150 representantes de movimentos camponeses, indígenas, de pescadores e de mulheres de todo o mundo deixaram claro que a Conferência oficial não deveria definir modelos, mas sim elencar possíveis medidas e políticas que os governos poderiam adotar. Na avaliação das organizações, a reforma agrária é um tema muito complexo para ser discutido durante apenas uma semana, em um encontro organizado às pressas e sem conseguir mobilizar os verdadeiros atores do processo, que é a população rural. “Queremos que a Conferência seja um espaço para o debate de idéias, apontando perspectivas para futuras discussões sobre o tema”, afirmou Egídio Brunetto, da coordenação nacional
Valter Campanato/ABR
Preço de banana A imprensa noticiou que a Vale do Rio Doce teve um lucro líquido de R$ 10,4 bilhões em 2005. O resultado supera em 61,7% os R$ 6,4 bilhões registrados em 2004. Mas nenhum jornal lembrou que a Vale foi privatizada em 1997 por ridículos R$ 3,3 bilhões. A este preço, computando-se apenas os lucros em 2004 e 2005, se poderia comprar cinco Vales. E os tucanos ainda posam de vestais diante da corrupção do PT.
Lucia Piovesan, do MST, lê documento de reinvidicação da 2ª Conferência Internacional de Reforma Agrária
do Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
CONTRA A FOME E foi esta linha que a declaração final da Conferência da FAO seguiu. No documento, a reforma agrária aparece como o instrumento com maior capacidade de combater a fome e desenvolver o campo. Os chefes de governo das 96 delegações presentes se comprometeram a estimular a participação da mulher em discussões e instâncias governamentais, valorizar os cadastros e as titulações de terra como forma de transparência no campo e ressaltar a importância das instituições e órgãos internacionais na aplicação de políticas públicas. Já a discussão sobre soberania alimentar se aproximou mais das questões apontadas como importantes, pela sociedade
civil, nesse tema. A Conferência delimitou o conceito de soberania alimentar, afirmando que o desenvolvimento das áreas rurais, a reforma agrária e o respeito aos povos indígenas são elementos que fazem parte da problemática. Reiterou-se que a reforma agrária é uma decisão política que cada governo deve tomar e que os movimentos e organizações sociais são peças-chave na promoção do debate. No fórum paralelo, a necessidade de uma distribuição de terras baseada na desapropriação e não na compra de terras, como o Banco Mundial indica, dominou a discussão sobre políticas agrícolas. A apresentação de uma pesquisa inédita realizada pela Rede Terra de Pesquisa Popular sobre os programas de crédito fundiários do governo federal para compra de terras
atestou a incapacidade de tais medidas em realizar a reforma agrária e desenvolver o campo. “A alternativa é a reforma agrária, como manda a Constituição brasileira. Desapropriação do latifúndio improdutivo, aplicando a função social da terra. E que a reforma agrária seja uma política de desenvolvimento e não compensatória, promovendo a soberania alimentar”, defende Maria Luísa Mendonça, diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. A presença das transnacionais além do campo também foi destacada. “O que se passa com a terra também acontece com o mar. Se as empresas continuarem avançando, apenas quatro transnacionais dominarão 80% do mercado da pesca, o que é um perigo para a soberania alimentar dos povos”, relata Pedro Medanha, pescador do Chile.
O efeito nocivo dos eucaliptos No Rio Grande do Sul, a monocultura de árvores para a produção de papel foi adotada pelo governo do Estado como política de desenvolvimento da região chamada “metade sul”, conhecida como pampa gaúcho. Estruturada em grandes áreas de terra para a criação extensiva de gado, a região entrou em crise com a desvalorização do preço do animal, aliada à desistência dos filhos dos grandes fazendeiros em dar continuidade à pecuária. “A monocultura dessas árvores como forma de desenvolvimento econômico na região é um processo antigo, que vem desde a década de 1980. No entanto, foi nos anos 2000 que a prática se intensificou, por meio de incentivos fiscais às transnacionais, concedidos pelos governos”, analisa Roberto Verdum, geógrafo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Esvaziado o campo, as terras ficam baratas, o que atrai ainda mais as transnacionais. Um dos argumentos muito utilizados pelos defensores da implantação do pinus e do eucalipto na região é que diminuiriam a circulação de ventos no local, evitando a degradação do solo – transformado em areia devido a problemas de erosão. Verdum destaca que as árvores, além de não servir para estancar o processo de destruição, podem torná-lo ainda mais prejudicial. “O pinus e o eucalipto são plantas de crescimento rápido e, por isso, absorvem muita água. As árvores em áreas já arenosas, como é a região dos campos, certamente vão afetar a fauna e a flora da região, assim como o solo e os mananciais de água”, explica. No lugar das monoculturas, o pesquisador defende o plantio de culturas
Arquivo Brasil de Fato
da mídia
NACIONAL
Indígenas protestam contra invasão de suas terras por parte da Aracruz
variadas, a fim de reequilibrar as vitaminas e fortalecer a terra. Ambientalistas temem os prejuízos que as plantas exóticas trazem não somente ao bioma do pampa gaúcho, como a todo o meio ambiente brasileiro. Cientistas apontam que árvores próprias de clima temperado (diferente do país, que é tropical), em regiões de baixa umidade, podem secar poços subterrâneos, olhos d’água e banhados. Além disso, baixar o lençol freático e diminuir a água dos pequenos córregos e riachos.
DESTRUIÇÃO DO AMBIENTE As árvores têm grande poder de evapotranspiração, eliminando cerca de 36,5 mil litros de água por ano cada pé, segundo dados publicados pelo pesquisador Zoraido Ceroni. Um estudo da Associação Brasileira de Florestas Plantadas estima que, durante um ano, o consumo de água do eucalipto varia de 800 a 1,2 mil litros por metro quadrado. Isso significa que para produzir um quilo de madeira da planta são necessários 350 litros de água. Daí o grande inte-
resse das transnacionais em recorrer aos países da América do Sul, como Brasil, Uruguai e Argentina, onde se localiza boa parte do Aqüífero Guarani, maior reserva natural de água subterrânea no mundo. Outro impacto ambiental causado pelo monocultivo do pinus e do eucalipto é a redução da biodiversidade da flora e da fauna. Por não serem árvores frutíferas e se caracterizarem como “estranhas” ao ambiente em que são implantadas, acabam por afugentar os animais. Essas árvores também produzem naturalmente uma substância tóxica, que acaba eliminando as plantas ao seu redor. Por esses motivos, o pinus e o eucalipto causam o “deserto verde”.
POLÍTICA Levantamentos mostram que os benefícios econômicos que as empresas afirmam gerar não são verdadeiros. Todos os projetos das transnacionais de celulose no Brasil são direcionados ao plantio de pinus e eucalipto, a fim de obter a pasta para a fabricação de papel. Para a
industrialização do papel, parte que gera mais empregos, a matéria-prima é enviada para a Europa. No manifesto distribuído no Rio Grande do Sul, as mulheres da Via Campesina relatam que um único emprego é gerado a cada 185 hectares de árvores plantadas, enquanto a agricultura familiar cria um posto de trabalho a cada hectare (Veja reportagem na página 3). Recente estudo sobre empregos, realizado nas regiões de atuação da Aracruz no Estado do Espírito Santo, aponta que a empresa, na época em que buscava financiamento, afirmava que cada hectare de plantação de eucalipto geraria em média quatro empregos diretos. Portanto, com seus 247 mil hectares plantados, deveria gerar 988 mil empregos. No entanto, gerou apenas 2.031, segundo dados de 2004. Além disso, todas as empresas que estão investindo no Brasil na área ou são transnacionais (como a sueco-finlandesa Stora Enso) ou são formadas por capital estrangeiro (Veracel, Aracruz e Votorantim). Isso faz com que o lucro obtido não seja investido diretamente no país. Mesmo assim, as empresas obtêm financiamento de governos estaduais e federal. O banco Caixa RS, que gerencia o programa de crédito do governo do Rio Grande do Sul, em parceria com a empresa sueco-finlandesa Stora Enso, criou uma linha de financiamento somente para os agricultores interessados em monocultura. Também existe o ProFlora, que fornece empréstimos a nível federal. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social comprou 12,5% das ações da Aracruz, utilizando recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, a fim de estimular investimentos da empresa no Brasil. (RC)
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NACIONAL REFORMA AGRÁRIA
Ocupações lembram massacre de Carajás Maíra Kubík Mano de São Paulo (SP)
JST
Camponeses recordam que criminosos continuam impunes e exigem do governo mais assentamentos ção, dia 14, o Estado com maior número de ocupações era Pernambuco. Mais de 3 mil famílias estão acampadas em 19 fazendas improdutivas.
H
á dez anos, 19 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados em Eldorado dos Carajás (PA). As imagens gravadas em 17 de abril de 1996 por uma rede de televisão local, durante a manifestação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ainda chocam. Assim como choca a impunidade dos autores do massacre. Para lembrar essa ferida aberta na história da luta pela terra no Brasil, trabalhadores sem-terra e militantes de mais de 18 Estados estão realizando ocupações e atos políticos, numa jornada que vai até o dia 24 de abril. “Trata-se de uma mobilização nacional para pressionar o governo federal a assentar imediatamente todas as famílias acampadas e aprovar a mudança nos índices de produtividade”, afirmou João Paulo Rodrigues, integrante da direção nacional do MST. Os índices não são modificados há 30 anos e o processo está parado na mesa do ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. O Movimento calcula que hoje existem mais de 140 mil famílias acampadas.
VIOLÊNCIA CORRE SOLTA
Trabalhadores rurais sem-terra ocupam fazenda improdutiva no interior de Pernambuco para pressionar governo Lula
Entre as últimas áreas ocupadas, está a Fazenda Cantanhede, de 8.500 hectares, localizada no município de Matões do Norte (MA). As 400 famílias sem-terra
que estão no local aguardam há cinco anos pelo assentamento. Em Santa Catarina, cerca de 300 famílias de agricultores ocuparam uma fazenda no município de Campo
No Pará, famílias resistem em fazenda de Reis do Gado Beatriz Pasqualino e Nina Fideles de São Paulo (SP) As 600 famílias sem-terra que dia 8 ocuparam a Fazenda Rio Vermelho, no município de Sapucaia, a 200 km de Marabá (PA), já se organizam para iniciar a plantação de hortaliças, arroz e feijão. A fazenda, acusada de uso de mão-de-obra escrava, é de propriedade da família Quagliato. Os donos são chamados de “Reis do Gado” do Brasil por terem grande atuação nos segmentos de fornecimento de bois e de melhoramento genético do rebanho. Essa é a primeira ocupação da região, considerada perigosa devido ao poder político-econômico dos fazendeiros na região. Dos 200 mil hectares, 85 mil são usados para pasto. Nessa fazenda cabem todos os 12 assentamentos e 3 acampamentos do MST no Pará, conta Maria Raimunda César, integrante da direção nacional do Movimento. Segundo a dirigente, a ocupação tem
ATINGIDOS POR BARRAGENS
Em debate nacional, modelo de energia que explora a população
o objetivo de questionar a grande propriedade, o crime ambiental e o trabalho escravo. Muitos acampados fugiram da escravidão de outras fazendas e outros ainda têm parentes vítimas desse crime no Estado. Os trabalhadores rurais do novo acampamento receberam manifestações de apoio da comunidade local e até de fazendeiros da região. De acordo com o MST do Pará, os fazendeiros que tiveram as terras ocupadas já se reuniram, mas ainda não se manifestaram publicamente sobre a ação. Até agora, as ameaças são indiretas, por meio de comentários na cidade. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ainda não vistoriou a área. Os advogados da família Quagliato prometem entrar com pedido de reintegração de posse da área ainda esta semana. De acordo com o MST, durante o governo, houve somente um assentamento do movimento resultante de desapropriação de terra. Sessenta e nove famílias conquistaram o direito à terra.
Alexania Rossato de Curitiba (PR) A diversidade cultural está sendo a marca do 2º Encontro Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), realizado em Curitiba entre os dias 13 e 17. Vindos de 14 Estados, 1.300 militantes representam comunidades de indígenas, negros, imigrantes e pescadores, entre outros. Eles chegaram com comidas típicas e músicas regionais que integraram os participantes. Mas o que une tanta diversidade? Todos eles vivem na pele a difícil situação de ser atingidos ou ameaçados por barragens. São inúmeros problemas sociais e ambientais enfrentados a partir dos primeiros murmúrios de instalação de barragens. Dessas pessoas, são tiradas a terra e a água que lhes é fundamental para a sobrevivência, e milhares delas acabam na miséria. O encontro acontece na semana do dia 14 de março, data em que se comemora o Dia Internacional de Luta contra as Barragens, definido durante o primeiro Congresso Nacional dos Atingidos por Barragens, em Brasília, no ano de 1991. Em diversos lugares do mundo, há protestos contra a construção de barragens. Segundo Gilberto Cervinski, da direção nacional do Movimento, o encontro tem o ob-
RONDÔNIA
A perspectiva das construções das usinas hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia, mobilizou os movimentos sociais e as entidades ambientais. As instalações das duas usinas poderá inundar uma área de 217 quilômetros, atingindo diretamente 21 vilas e comunidades nas cercanias de Porto Velho. Além desses problemas, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) considera que a obra pretende atender outros interesses, conforme explica Marco Antônio Trierveiler, da coordenação do movimento. “O interesse de construir essas barragens, que vem com o discurso de desenvolvimento e da integração entre os países, nada mais é do que um canal de escoação desses minérios existentes, da grande quantidade de minério que está sendo
explorado ali na região, da questão da madeira, e da questão da soja. A idéia, então, seria criar um canal de exportação desse material”. As entidades e os movimentos sociais lançaram, no mês de fevereiro, uma cartilha que descreve os impactos sócio-ambientais previstos com a obra. Esse material foi distribuído gratuitamente em escolas, faculdades e organizações governamentais e não-governamentais, buscando a conscientização das comunidades sobre o problema. A pesca, principal fonte de renda dos ribeirinhos nessa região, também poderá ser comprometida pela contaminação do mercúrio. Segundo pesquisadores, o leito do Rio Madeira já está poluído pelas atividades de garimpo, e outras ações de impacto como essa poderão remexer o metal e provocar sua infiltração nos lençóis freáticos que fornecem água para parte da cidade de Porto Velho.
jetivo de estudar e debater os temas relacionados à água e à energia, diretamente ligados à soberania do povo brasileiro. “O modelo energético brasileiro é controlado por bancos e transnacionais, financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, com dinheiro público, e quem paga essa conta é o povo brasileiro”, denuncia o dirigente. O encontro também fortalece a luta dos atingidos por barragens. “A organização e a luta são ferramentas importantes para a consolidação de um movimento nacional, forte a articulado”, afirma Cervinski. Outro debate importante é o dialogo com a sociedade brasileira, pois a questão da água e da energia envolve toda a sociedade. O MAB não é contra a produção de energia, nem contra o desenvolvimento do país, e sim contra o modelo de produção de energia que explora a população e que causa inúmeros impactos sociais e ambientais”, finaliza Cervinski.
MÚLTIPLAS CRISES O primeiro painel do encontro teve como tema a análise das realidades nacional e internacional. Integraram a mesa João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e a coordenadora dos movimentos sociais da Argenti-
na, Cláudia Korol. Depois de fazer um histórico da situação social, política e econômica do Brasil desde 1930, Stedile disse que estamos vivendo um momento de crises. A primeira é a crise da economia: “Nossa economia cresce na média de 2,6% ao ano, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. Somos o segundo país no mundo cuja economia está parada, só perdemos para o Haiti”, disse o dirigente. A segunda é a crise social, já que, segundo ele, 25% da população está desempregada. Temos ainda a crise política: “O povo não acredita mais nos políticos e no Congresso”. E, por fim, a crise ideológica, pois, nas palavras de Stedile, “nem a burguesia nem os trabalhadores conseguem debater um projeto de sociedade”. Na análise de conjuntura internacional, Cláudia Korol falou dos golpes que aconteceram em toda a América Latina, numa tentativa de deter os processos de luta que aconteceram no continente, e lembrou que no dia 24 completam 30 anos do golpe militar na Argentina. Cláudia falou também do imperialismo estadunidense na América Latina. Segundo ela, estamos vivendo “um processo de recolonização. Um projeto de governo dos Estados Unidos e das transnacionais para assegurar uma hegemonia estadunidense”.
MAB
Comunidades temem hidrelétricas Gisele Barbieri de Brasília (DF)
Erê. Existem indícios de crime ambiental na fazenda e embalagens de veneno foram encontradas próximas às nascentes. Até o fechamento desta edi-
A violência e as ameaças aos sem-terra são parte do dia-a-dia das famílias. Na Fazenda Santa Maria, em Ribeirão Preto (SP), o arrendatário Paulo Junqueira ameaçou de morte os advogados do MST Antonio Escrivão e Vanderley Caixe Filho, na sede do Ministério Público no município. A área foi ocupada no início de março, por 200 famílias. Junqueira afirmou que, se a Justiça não der a reintegração de posse, ele mesmo fará o despejo, com a ajuda de três ônibus de jagunços. Até agora, a Justiça não encontrou no processo a existência de pré-requisitos para determinar a reintegração de posse da área, que apresenta dívidas com o governo. “Nesse primeiro momento, a característica central da jornada é a denúncia do latifúndio improdutivo. Por isso, as ações ocorrem no interior. Depois, já no mês de abril, vamos para as cidades dialogar com a sociedade”, anunciou Rodrigues, do MST.
Atingidos por barragens participam de celebração durante encontro que analisou os impactos do atual modelo energético
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NACIONAL SOBERANIA ALIMENTAR
Brasil tira o bode da sala
Hamilton Octavio de Souza
Depois de retrocesso em 2005, governo brasileiro avança na identificação de cargas transgênicas
Ordem medieval Criada há mais de cinqüenta anos, na Espanha, a Opus Dei é uma ordem católica extremamente conservadora com forte influência no Vaticano, que apóia o capitalismo neoliberal, a aristocracia e a visão moralista do mundo. Ela atua principalmente no meio empresarial, na mídia e na educação. Recentemente resolveu mostrar as caras de maneira mais acintosa no Brasil, para dar combate ao que existe ainda sob influência da Teologia da Libertação. A Opus quer disputar o poder. Tiroteio inútil A operação do Exército nos morros do Rio de Janeiro lembra muito a ação do Exército contra os cortiços, também no Rio, no final do século 19, em especial no Focinho de Porco, quando a população negra e mulata – remanescente da escravidão – foi covardemente bombardeada. Aquela operação inclusive contribuiu para a ocupação dos morros e o surgimento das favelas. Agora a ação bélica aterroriza a população e não serve para combater o tráfico de drogas. Reação popular Não apenas uma boa parte da população dos morros protestou contra a presença de soldados na operação de guerra: o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis lançou, na semana passada, a campanha contra o “Caveirão”, o carroforte da tropa de choque da Polícia Militar que também intimida a população pobre dos morros cariocas. Por que os governos não usam esses aparatos para prender políticos corruptos e banqueiros ladrões? Convocação geral - 1 Em seu programa dominical de TV, o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, convocou todos os trabalhadores para defender a soberania do país. Pediu também a todos os militares, políticos e funcionários do Estado que contribuam com a organização da defesa nacional tomando como eixo a estruturação dos movimentos sociais. Convocação geral - 2 Aqui no Brasil, em seu programa de rádio, o presidente Lula manifestou solidariedade ao jogador de futebol Ronaldo Nazário, atacante do Real Madri, da Espanha, que anda em má fase de desempenho há vários anos, e disse que espera vê-lo recuperado para os jogos da seleção brasileira na Copa do Mundo de Futebol, em junho, na Alemanha. Cada qual com as suas prioridades. Videotape collorido As denúncias contra o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, estão cada vez mais parecidas com o processo político que levou o expresidente Collor a ser destituído: primeiro um motorista afirmou que o ministro freqüentava uma mansão em Brasília onde o grupo de Ribeirão Preto articulava seus crimes, e, agora, o caseiro da mansão confirmou a versão do motorista; o ministro continua negando tudo. Biodiversidade É inconcebível que setores progressistas e da esquerda embarquem na versão escandalosa da mídia burguesa sobre a ação das mulheres da Via Campesina no canteiro de eucaliptos da Aracruz. Qualquer pessoa informada sabe que as florestas de eucalipto e as fábricas de celulose construídas no Brasil são altamente destruidoras do meio ambiente. Ao invés de criticá-las, devemos agradecer a essas mulheres por terem alertado as autoridades para a gravidade da situação. Chega de mentiras!
Luís Brasilino enviado especial a Curitiba (PR)
E
m junho de 2005, 119 países estavam prontos para estabelecer regras claras para o comércio internacional de transgênicos. Em Montreal (Canadá), ratificariam o artigo 18.2(a) do Protocolo de Cartagena, determinando que carregamentos de organismos vivos geneticamente modificados (OVMs) deveriam ser identificados com a palavra “contém” seguida da espécie e dos cuidados para evitar que esse transgênico contaminasse o país importador. O Brasil, no entanto, surpreendeu a todos. Orientada pela Casa Civil, a delegação se eximiu de emitir opinião e, como as decisões são tomadas por consenso, as tais regras claras não foram estabelecidas. O único país que acompanhou o Brasil foi a Nova Zelândia. De lá para cá, as expectativas se voltaram para a 3ª Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP3, na sigla em inglês), que se realiza entre os dias 13 e 17 em Pinhais, região metropolitana de Curitiba (PR). País sede, o Brasil foi pressionado por entidades e movimentos sociais de todo o mundo para rever sua posição de subordinação aos interesses das empresas de biotecnologia. Sem identificação clara, não há como o mercado consumidor, predominantemente avesso aos transgênicos, rejeitar uma carga geneticamente modificada. Sendo assim, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu, dia 13, que a delegação brasileira na MOP3 passaria a defender a expressão “contém”, em vez da expressão “pode conter”, mais vaga. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) comemorou e o Ministério da Agricultura lamentou por entender que a definição “onera a produção”.
Ambientalistas protestam contra o poder das transnacionais que colocam em risco a segurança alimentar
O bode foi tirado da sala, mas o rabo ainda ficou para dentro. A proposta brasileira é que as cargas sejam identificadas de forma clara, mas oferece um prazo de quatro anos para as empresas se adaptarem à nova regra. No entanto, integrantes da delegação brasileira indicados pelo Ministério do Meio Ambiente asseguram que esse prazo pode ser reduzido, pois entrará em negociação com os demais países signatários do Protocolo. Até o fechamento desta edição, dia 14, não havia definição sobre esse ponto.
AVANÇO OU RETROCESSO Diversas entidades comemoraram a posição brasileira. O Greenpeace, por exemplo, chamou-a de “vitória para a biosegurança”. Enfim, o governo federal reconheceu a importância da identificação
e, assim, da informação como elementos indispensáveis para a biossegurança. Além disso, a lei de rotulagem existente no Brasil, apesar de não ser cumprida, obriga as exportações brasileiras a identificar imediatamente com a expressão “contém” seus carregamentos com transgênicos. Contudo, a Protocolo é internacional e o prazo de quatro anos oferece diversas oportunidades para as transnacionais de biotecnologia gerarem novos fatos consumados, ou seja, contaminação. No dia 13, o primeiro da MOP3, foi divulgado o “Relatório sobre Registro de Contaminação Transgênica”, elaborado pelo Greenpeace e pela organização não-governamental britânica GeneWatch. Segundo o estudo, 39 países apresentaram 113 casos de contaminação por transgênico nos últimos dez anos.
Segundo os movimentos, a proposta de mais quatro anos de prazo não tem nenhum fundamento. Marijane Lisboa, da Associação de Agricultores Orgânicos (AAO), lembra que o Protocolo foi assinado em 2000. Na época, as nações exportadoras de transgênicos alegaram não ter tempo para montar sua estrutura de segregação e pediram um prazo. O acordado foi dois anos da entrada em vigor do Protocolo. “Ele entrou em vigor em setembro de 2003. Ou seja, o prazo já está esgotado”, pontua Marijane. Altacir Bunde, da Via Campesina Brasil e do MPA, sustenta que o governo tenta agradar tanto ambientalistas quanto o agronegócio. “Mas o maior beneficiado é o agronegócio. Vai ter quatro anos para se organizar e montar uma estratégia para poder romper a tendência de identificação”, prevê Bunde.
Via Campesina ocupa cultivo ilegal Solange Engelmann de Curitiba (PR) Para protestar contra os transgênicos e mostrar que a preservação da biodiversidade do planeta é necessária e urgente, cerca de 600 agricultores ligados à Via Campesina ocuparam, dia 14, o campo experimental da transnacional de sementes Syngenta Seeds, em Santa Teresa do Oeste, na região Oeste do Paraná (a 16 km de Cascavel). A ocupação aconteceu simultaneamente à 3ª Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (MOP3), realizado no centro de eventos Expotrade, na região metropolitana da capital paranaense. Nessa conferência está sendo discutida justamente a questão da rotulagem dos transgênicos. Segundo os camponeses, a ocupação aconteceu para denunciar um experimento ilegal de transgênicos existente no local, já confirmado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Na vistoria da área próxima ao parque, dia 8, o órgão constatou a existência ilegal de cerca de 12 hectares de cultivo de soja geneticamente modificada. O plantio é ilegal pois o campo de experimento da Syngenta está localizado em zona de amortecimento (num raio de 6 km) do Parque Nacional do Iguaçu – o mesmo onde estão as Cataratas, local declarado Patrimônio da Humanidade. O plantio de transgênicos em locais próximos a 10 km de unidades de conservação é proibido pela Lei de Biossegurança e de acordo com o artigo 11 da Lei 10.814/2003 (que estabelece normas para o plantio e a comercialização de soja geneticamente modificada da safra 2004). “Essa prática cons-
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Escalada fascista Junto com o desgaste do PT e do governo Lula, acelerado após as denúncias de caixa dois e corrupção, em 2005, vem acontecendo uma nova escalada de direita no Brasil, em grande parte porque a principal força popular e da esquerda deixou de fazer antagonismo ao sistema neoliberal e às oligarquias. Basta ver o comportamento da mídia contra os movimentos sociais, o avanço da igreja conservadora e a articulação dos grupos econômicos mais atrasados. O Brasil anda para trás.
Greenpeace
Fatos em foco
Plantio de soja da Syngenta é ilegal, pois está em área de preservação ambiental
titui crime ambiental, pois está vedado o plantio de sementes de soja transgênica nas áreas de unidades de conservação e respectivas zonas de amortecimento”, condena Darci Frigo, coordenador executivo da organização não-governamental Terra de Direitos.
AÇÕES CRIMINOSAS Após a ocupação da área, a Via Campesina enviou nota para a imprensa onde denuncia a “conduta criminosa da transnacional Syngenta, e a ameaça de prejuízos incalculáveis a esta área de preservação ambiental”. Segundo Roberto Baggio, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), os camponeses ocuparam a área de experimento da Syngenta porque estão preocupados com a biodiversidade e querem que seja intensificada a fiscalização nas áreas próximas ao parque. “Esperamos que o governo federal abra uma negociação direta com os defensores da biodiversidade
para buscar uma saída. Os camponeses acreditam que a única saída seria interditar de forma definitiva os experimentos, impedir que a Syngenta continue ocupando o imóvel, por causa das ações criminosas cometidas, pelo experimento de soja transgênica. E solicitamos que o Ministério do Meio Ambiente passe um pente fino em toda a área próxima ao parque para averiguar se há mais cultivo transgênico nas proximidades”, destaca Baggio. Ele denuncia ainda que, além da produção de soja transgênica, há indícios de experimentos de milho geneticamente modificado na área da transnacional Syngenta. Segundo Maria Rita Reis, assessora jurídica da Terra de Direitos, a ocupação dos trabalhadores é um instrumento de pressão sobre a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNbio) e o Ministério da Ciência e Tecnologia, sendo uma ação legítima apoiada por várias organizações ambientais. “Esperamos que com essa ação dos trabalhadores o governo se sensibilize. Estamos
cansados de esperar as transnacionais implementarem a rotulagem e seguirem as normas de biossegurança que temos no Brasil”, protesta. O plantio de transgênico próximo ao parque foi constatado após a operação Parque Livre, realizada em fevereiro pelos fiscais do Ibama. “Nessa vistoria identificamos que alguns proprietários tinham cultivo de transgênicos e também a multinacional Syngenta. Imediatamente pedimos o embargo da produção e pedimos apresentação de licença”, garante o superintende do Ibama do Paraná, Marino Gonçalves. Ainda segundo Gonçalves, a Syngenta está sujeita a um embargo completo de toda a atividade, com a possibilidade de aplicação de multa de R$ 2 mil a R$ 1,5 milhão. Os proprietários responderão também por crime contra a biossegurança.
FAMA MUNDIAL Segundo Maria Rita, a empresa Syngenta foi responsável pelo maior caso de contaminação genética já comprovado no mundo. Por quatro anos, nos Estados Unidos, a empresa comercializou de forma criminosa o milho Bt10, que era vendido como Bt11, sem autorização. “O milho transgênico da Syngenta não foi avaliado pelos órgãos reguladores e nem seus efeitos sobre a saúde humana e o ambiente. As sementes comercializadas contaminaram o milho exportado para vários países”, denuncia. A empresa Monsanto também foi autuada pelo Ibama em pelo menos dois campos experimentais no Brasil: um localizado em Rolândia, outro em Ponta Grossa. Somente nesses dois casos, a dívida da Monsanto em multas ambientais é de R$ 2 milhões.
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NACIONAL PRIVATIZAÇÃO
Petrobras: o lucro vem antes do social Igor Ojeda da Redação
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Investidores privados controlam quase 60% das ações da estatal e impedem que empresa tenha gestão soberana
17,8%
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Petrobras divulgou, em meados de fevereiro, o lucro recorde de R$ 23,7 bilhões em 2005. Um dinheirão que serviu para engordar os cofres públicos, certo? Errado. Pois, do total, apenas R$ 7,63 bilhões ficaram com a União. Isso porque nada menos que 57,6% das ações da estatal estão nas mãos de investidores privados que, no ano passado, faturaram R$ 13,65 bilhões. Pior: como cerca de 40% das ações da Petrobras pertencem a estrangeiros, R$ 9,43 bilhões do faturamento da nossa estatal foram enviados para fora do país. Tudo começou quando o governo Fernando Henrique Cardoso decidiu, em 1999, alterar o estatuto da estatal. Entre outras mudanças, a nova versão permitia a venda das ações da companhia na bolsa de valores de Nova York, nos EUA. Desde então, a grande parte do lucro da Petrobras não fica em terras brasileiras. “Isso implica que você está tirando esse dinheiro do governo federal, porque o Reischtul (Henri Philipe Reischtul, ex-presidente da Petrobras), vendeu 40% das ações para estrangeiros”, diz Fernando Siqueira, diretor de Comunicações da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet). Paulo Metri, do Clube de Engenharia, resume as conseqüências dessa ação do governo FHC: “Hoje, temos essa situação esdrúxula que faz com que a gente torça para que a Petrobras dê lucro, pois é nossa empresa, mas ela não é tão nossa assim. No fundo, estamos transferindo riqueza para o exterior”. Segundo ele, a justificativa na época da venda das ações era a de que o dinheiro seria usado no abatimento da dívida pública. No entanto, esta só cresceu. “Se compararmos o preço que o FHC vendeu essas ações e o que elas valem hoje (e o que o governo estaria obtendo de retorno), vemos que é um crime
32,2% 8,3% 2,6%
15,7%
7,6%
15,8%
Capital Social União Federal BNDSPar ADR (Ações ON) ADR (Ações PN)
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FMP - FGTS Petrobras Estrangeiros (Resolução nº 2.689 C,M.N) Demas pessoas físicas e jurídicas
Refinaria da Petrobras no interior de Sergipe: 57,6% das ações da estatal estão nas mãos de investidores privados
que foi feito”, protesta Hélio Seidl, coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP).
PRESSÕES PELO LUCRO Além da transferência de recursos para fora do país, um dos principais efeitos negativos do controle das ações da Petrobras por investi-
dores estrangeiros é a pressão para que a estatal mantenha o preço de seus derivados atrelados à cotação internacional. Com o Brasil quase auto-suficiente em petróleo, não teria necessidade que os preços cobrados dos brasileiros seguissem os parâmetros do mercado internacional. Trata-se de um lobby poderoso, pois
a maior fatia destas ações está com bancos e seguradoras estadunidenses. Isso ocorre, mesmo com a União detendo a maioria das ações ordinárias, ou seja, com direito a voto. A Petrobras fica também impedida de lançar mão de políticas de caráter social, como baixar o preço dos combustíveis e do botijão de
Recompra de ações seria alternativa Hélio Seidl, coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP),diz que a entidade pressiona o governo federal a recomprar ações da Petrobras, de maneira que se estabeleça novamente como maioria sobre todo o capital social da empresa. “A União deveria ter 51% também das preferenciais (ações com direito a lucro, mas sem direito a voto), uma vez que pode haver pressões mais tarde. Houve uma mudança na legislação das Sociedades Anônimas (em 2002) , e isso pode criar problemas com relação ao controle da empresa”, explica. O diretor de Comunicações da Aepet, Fernando Siqueira, conta que a entidade já tentou fazer com que as ações saíssem das mãos do investidor privado. Quando o atual presidente da estatal, José Sérgio Gabrielli, assumiu como diretor financeiro da empresa, em 2003, Siqueira propôs que os fundos de pensão da companhia comprassem as ações. “Ele disse que não havia garantia de rentabilidade. Na época em que ele assumiu, cada ação valia R$ 40. Hoje, quadruplicou de preço”. Outra tentativa da Aepet foi com o então presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Carlos Lessa, que teria ficado entusiasmado com a sugestão de compra das ações da Petrobras pelo banco. “Aí, o sistema financeiro passou a querer derrubá-lo e acabou conseguindo. Uma das razões porque ele caiu (em novembro de 2004) foi essa”. A reportagem do Brasil de Fato encaminhou as críticas à Petrobras, mas até o fechamento desta edição não havia obtido resposta. (IO)
gás. “O brasileiro recebe um salário mínimo (algo em torno de 100 dólares), mas paga pelo gás de cozinha, um insumo indispensável, o mesmo que um trabalhador francês, alemão, japonês ou estadunidense, cujos salários mínimos são superiores a 1.500 dólares. Essa é uma das perversidades da desnacionalização das ações. O lucro fica acima da parte estratégica e social”, lamenta Siqueira, da Aepet. Investidores querem também que a Petrobras exporte seu petróleo, para gerar mais dividendos. Tal opção faria com que o Brasil voltasse a depender do mercado externo já em 2011, estima Siqueira, com base em dados sobre as reservas brasileiras e a demanda interna. O problema é que, durante esse período, o barril de petróleo estará valendo mais de 100 dólares, já que a demanda mundial será superior à oferta. “Imagina o que isso significa para a economia brasileira. Precisamos economizar hoje, para dar tempo de buscar energia alternativa”, diz.
TRABALHO
Pobreza chega à classe média Tatiana Merlino da Redação A classe média, que viveu seu “apogeu” no período da ditadura militar – em especial durante o chamado milagre econômico –, passou por empobrecimento nas duas últimas décadas. Destaque para dois processos nesse período: os baixos índices de crescimento econômico do país desde o início dos anos 1980 e as reformas neoliberais realizadas durante os 1990 por meio da abertura comercial e produtiva do Brasil. Combinadas, essas políticas “impuseram juros altos, forçaram a diminuição do Estado, reduziram a população assalariada e empobreceram a classe média”, avalia o economista Ricardo Amorim que, em conjunto com outros pesquisadores de universidades paulistas, entre eles Márcio Pochmann, publicou o estudo Classe Média - Desenvolvimento e Crise, a partir dos dados do Censo de 2000. De 1980 a 2000, 7 milhões de pessoas perderam seus empregos. Sem conseguir voltar ao mercado de trabalho, deixaram de fazer parte da classe média. “Nos anos 1990, muitas empresas fecharam ou diminuíram o número de funcionários. A reestruturação do mercado de trabalho se deu sobretudo em cargos ocupados pela classe média”, explica Amorim, lembrando que pessoas que foram demitidas ganhando de R$ 4 mil a R$ 5 mil por mês tiveram que aceitar empregos por salários de R$ 1,5 mil. “A precarização do trabalho chegou às
a uma nova divisão do trabalho, da qual nasceu um novo proletariado, terceirizado. “Esse processo também atingiu a classe média”, afirma. Segundo ele, as privatizações dos setores de energia, siderurgia e telefonia “trouxeram novos elementos para as classes dominantes brasileiras que se tornaram ainda mais subordinadas às transnacionais”. Se de um lado milhares de pessoas dos setores médios da sociedade “desceram vários degraus da hierarquia social, outras poucas subiram, e a concentração de riqueza aumentou ainda mais no país”, aponta Antunes. Dados da publicação estadunidense Forbes confirmam a afirmação do sociólogo. A lista de bilionários divulgada pela revista mostra que, no Brasil, o número de integrantes na relação dos mais ricos do planeta dobrou em apenas um ano. O ranking tem agora 16 brasileiros, contra oito em 2005, e é liderado pelo banqueiro Joseph Safra.
PADRÃO DE CONSUMO
Fonte: Estudo Classe Média - Desenvolvimento e Crise
camadas médias. Houve uma piora na distribuição de renda no Brasil nos últimos 20 anos. A classe média empobreceu e o capital especulativo enriqueceu”, conclui. Os anos 90, classificados pelo sociólogo Ricardo Antunes como a “década da desertificação social no
Brasil”, foram marcados por inúmeras privatizações, crescimento da informalidade e “financeirização da economia”. Segundo Antunes, juntamente com a aplicação de uma política econômica neoliberal, houve uma reestruturação produtiva com o objetivo de adequar o país
O estudo feito pelos pesquisadores também aponta mudanças no padrão de consumo da classe média, formada por 15,4 milhões de famílias (31,7% das famílias existentes no país). “Foram reduzidos gastos mais luxuosos e aumentaram o consumo de itens mais básicos”, explica o economista Ricardo Amorim. Em 1987, os gastos com alimentação tinham participação de 24,5% nas despesas do mês; em 2003, caíram para
15,9%. A participação em vestuário era de 11% e caiu para 5% no mesmo período. Já o gasto em itens como habitação, transporte e educação subiu de 17,6% para 29,5%, de 8,7% para 16,9% e de 2,2% para 3,6%, respectivamente. O impacto do neoliberalismo no bolso da classe média também se dá pela precarização da atuação do Estado na área social. “Com a diminuição do Estado e o sucateamento dos serviços públicos, a classe média arca duas vezes com os mesmos serviços. Paga os impostos, mas como sabe que o serviço público é ruim, acaba gastando com serviços públicos”, analisa.
MAIS CONSERVADORISMO A pauperização da classe média, historicamente conhecida como conservadora, poderia indicar uma aproximação com as classes trabalhadoras. Será? “Poderíamos, sim, esperar que a classe média se politizasse, mas aconteceu o contrário, está mais conservadora”. Os números explicam: em 1980, 64,6% da classe média era assalariada em relação à População Economicamente Ativa (PEA) urbana. Esse percentual caiu para 55,8% em 2000. No mesmo período, aumentou a participação da classe média proprietária sobre a PEA urbana, de 35,4% para 44,2%. “Quando a classe média é assalariada fica mais próxima dos trabalhadores, como era na década de 1980. A partir do momento que se torna proprietária, fica mais individualista e conservadora”, constata Amorim.
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De 16 a 22 de março de 2006
NACIONAL EDUCAÇÃO
Greve cresce e se consolida em todo o RS João dos Santos e Silva de Porto Alegre (RS)
D
ecretada em 2 de março, durante assembléia geral com a presença de oito mil pessoas, a greve dos professores e funcionários de escolas públicas do Rio Grande do Sul cresce e se consolida em todo o Estado. Segundo os organizadores, mais de 80% da categoria aderiu à paralisação. Pressionado pela força da mobilização, o governador licenciado Germano Rigotto ameaça com retaliações e tem se negado a negociar com os grevistas. Alega que só terá como apresentar uma proposta em maio, quando “terá concluído estudos sobre a viabilidade de reajustar os salários dos trabalhadores em educação”. Para o Comando de Greve do Sindicato dos Trabalhadores em Educação (CPERS/Sindicato), o governo ficou três anos acompanhando o comportamento da receita, portanto tem condições de negociar em março a correção salarial da categoria.
REPOSIÇÃO SALARIAL Os grevistas reivindicam reposição salarial de 28% mais reajuste de 8,69%. O último reajuste foi de 10%, em 2004, parcelado em três vezes – correção usada pelo governo como desculpa para aumentar as alíquotas de ICMS sobre os preços dos combustíveis, telefonia e energia elétrica. Hoje, o Rio Grande do Sul tem o combustível mais caro do país. Os trabalhadores em educação também reivindicam o cumprimen-
CPERS/Sindicato
O governador licenciado Germano Rigotto se nega a negociar com professores e funcionários públicos de reajuste à categoria, Rigotto se contradiz. “Ora, se é possível reajustar nossos salários em maio, por que não fazer agora?”, questiona a presidente do CPERS/Sindicato, Simone Goldschmidt. “E tem mais: quem garante que em maio o governo irá apresentar um índice de reajuste que atenda às reivindicações da categoria?”
MENOS INTRANSIGÊNCIA
Professores e funcionários de escolas marcham pelas ruas de Porto Alegre: mais de 80% da categoria aderiu à paralisação
to da legislação e pagamento do 13º em dia (o governo gaúcho tem obrigado o servidor público a contrair empréstimos no banco estatal gaúcho para receber o 13º salário), repasse integral e em dia das verbas destinadas à manutenção das escolas, regulamentação da dependência no Instituto de Previdência do Estado, possibilitando que as mulheres (90% da categoria) possam incluir maridos ou companheiros como dependentes, tanto na saúde
como na previdência, entre outras reivindicações. A força do movimento pôde ser dimensionada, dia 9, quando dez mil pessoas tomaram as ruas do Centro de Porto Alegre e se concentraram na Praça da Matriz, tradicional ponto de manifestações do funcionalismo gaúcho e onde está localizado o Palácio Piratini, sede do governo do Estado. Nesse dia, as portas do Palácio foram fechadas, impedindo qualquer tipo de acesso. O presidente estadual
da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Quintino Severo, criticou a posição do governo. “Infelizmente, temos um governo que prefere fechar as portas a negociar com os trabalhadores”, reclamou. Severo disse ainda que os estudantes sabem que quando professores e funcionários de escola tiverem um bom salário, eles certamente vão ter uma educação com mais qualidade. Ao afirmar que só em maio terá condições de apresentar um índice
O livre direito de greve tem sido tratado como ilegal pelos representantes do Palácio Piratini. O diálogo está sendo substituído por ameaças e intimidações. Dia 10, o Comando de Greve denunciou as tentativas de coação do movimento pelo governo do Estado. Um professor contratado, de Porto Alegre, foi exonerado de suas funções. Os representantes do governo alegam que ele estava simplesmente sendo substituído por outro profissional concursado. Para o Comando, o caso é um exemplo de retaliação, pois o professor afastado estava em greve juntamente com outros colegas. Fundado em 21 de abril de 1945, como Associação das Professoras Primárias, o hoje CPERS/Sindicato é o maior sindicato de trabalhadores do Rio Grande do Sul e foi o primeiro no Estado a realizar uma greve no crepúsculo da ditadura militar. Em 1979, a categoria parou para exigir melhores salários e condições de trabalho. Em 1985 e 1987, o sindicato organizou duas de suas maiores greves, a primeira com uma paralisação de 60 dias e a segunda, ainda maior, com 96 dias.
CPERS/Sindicato
Pisos salariais estão TV DIGITAL entre os menores do país Escolha do padrão não encerra o debate
O Rio Grande do Sul tem um dos menores pisos salariais entre os Estados brasileiros para professores e funcionários de escola. A partir de março, um professor da rede pública gaúcha passará a ter um piso salarial de R$ 251,20 por 20 horas semanais, enquanto um funcionário de escola passará a ter piso de R$ 258,40 para uma jornada de 40 horas semanais. O Rio Grande do Sul chega ao fim do governo Rigotto amargando índices negativos. Em 2004, o Produto Interno Bruto (PIB) gaúcho registrou crescimento inferior ao nacional e, em 2005, o Estado foi o único que apresentou queda no desempenho industrial. A gestão do PMDB tem sido marcada pelo protecionismo às grandes empresas em detrimento das pequenas e médias. Só o Grupo Gerdau, a 13ª empresa de siderurgia do mundo, recebeu R$ 1,2 bilhão em isenções
fiscais do governo gaúcho. Em recentes declarações, o governador em exercício, Antônio Hohlfeldt, disse que o reajuste de 28% nos salários dos trabalhadores em educação causaria um impacto de R$ 1,1 bilhão na folha de pagamento. Cálculos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) indicam que esse montante chegaria a R$ 700 milhões. Os grevistas questionam: se tem para a Gerdau, que ganha recursos com o pretexto de gerar empregos, mas não os gera, por que não tem para os profissionais da educação, responsáveis pelo aprendizado de 1,4 milhão de crianças e adolescentes do Rio Grande do Sul? Ao mesmo tempo em que alega falta de recursos, o governo do Estado fechou vários postos tributários, promovendo a sonegação fiscal. (JSS)
Pressionado por empresas de radiodifusão e telecomunicações, produtores de tecnologia, e também pela sociedade civil, o governo federal ainda não se manifestou - pelo menos oficialmente – a respeito de qual padrão de TV digital o país irá adotar. Agora, entre o padrão japonês ou europeu, o governo deixou de lado a criação de um Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) feito predominantemente com tecnologia nacional. “O governo abandonou a tentativa de construção de um genuíno SBTVD. O coração do sistema será estrangeiro”, lamenta Diogo Moysés, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Ao que tudo indica, o padrão japonês – defendido pela Rede Globo e pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa – será a opção do governo. Dia 8 de março, o jornal Folha de S.Paulo publicou a decisão como certa. Dilma Roussef, chefe da Casa Civil, negou. “Nos reunimos com a Dilma no dia em que saiu a matéria. Ela disse estar tão surpresa quanto nós, e que a decisão não tinha sido tomada”, conta Moysés. Se a opção pelo padrão japonês
se concretizar, ficará mais evidente que o governo brasileiro cedeu às pressões da Rede Globo. Na tentativa de amenizar o peso da escolha, Dilma Roussef declarou que esta não era tão relevante, dado que, futuramente, a convergência destes padrões deixaria poucas diferenças entre eles. Também alegou que a decisão será guiada pelo país que oferecer melhor contrapartida. Segundo Moysés, a primeira observação da ministra não tem respaldo técnico. Quanto à segunda declaração, todas as contrapartidas colocadas pelos japoneses, são equiparadas pelo europeus, não restando muitas justificativas pelo padrão japonês. Moysés acredita ainda que esta postura reflete a pressão exercida pelas radiodifusoras. Na sua opinião, deixar uma decisão tão importante como esta para um ano eleitoral dá mais poder de barganha às empresas de radiodifusão. “Isso porque eles, que já têm muito poder, exercem de maneira mais radical o poder midiático em ano de eleições, ou seja, o poder de pressão sobre o governo é ainda maior”, avalia.
ALÉM DO PADRÃO Após a decisão do governo federal, que deve ser formalizada por meio de um decreto presidencial,
José Cruz/ABR
Grevistas reivindicam reposição salarial de 28% mais reajuste de 8,69%
Dafne Melo da Redação
Ativistas condenam a decisão do governo de escolher um padrão estrangeiro
há ainda outras inúmeras decisões, e muito debate a ser feito. Entre eles, as definições acerca de como será feita a transição, e estabelecer uma regulamentação para a TV digital. Os temas, entretanto, têm sido evitados pelo governo. Moysés, acredita que “o governo não sabe ainda como fazer o debate sobre a exploração dos serviços”. Mesmo que o padrão japonês seja escolhido, há possibilidade de administrar hoje o espaço ocupado por uma emissora de TV (de 6Mhz), de modo a garantir uma TV digital mais democrática e mais voltada para as necessidades do país. Uma exemplo é a criação do chamado operador de rede, um concessionário público responsável por passar o conteúdo dos radiodifusores ao público. O operador administraria o espaço de 6 Mhz de modo mais democrático possível, podendo disponibilizar serviços, e também garantindo a transmissão de canais universitários, públicos e estatais. “O que não pode é deixar o espaço na mão das emissoras, pois vão utilizar todo o espaço e, depois, vai prevalecer a lei do fato consumado”, diz Moysés. Daí, a necessidade de se estabelecer as regras do jogo antes de se iniciar as transmissões. Mesmo escolhendo um padrão estrangeiro, adaptações terão de ser feitas para a realidade brasileira. Takashi Home, do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), órgão que coordenou as pesquisas realizadas em universidades, com o objetivo de criar o Sistema Brasileiro de Televisão Digital, chama atenção para o fato de que tanto o padrão japonês quanto o europeu terem sido desenvolvidos no meio da década de 1990. Como as pesquisas brasileiras foram feitas nos últimos três anos, a tecnologia está mais avançada e mais aperfeiçoada. “Criamos novas tecnologias e gostaríamos que elas fossem usadas”, diz.
Ano 4 • número 159 • De 16 a 22 de março de 2006 – 9
SEGUNDO CADERNO TERRORISMO DE ESTADO
As muitas faces da guerra de Bush Mark Smith
Dia 18, a invasão do Iraque completa três anos; manifestações vão pedir mais uma vez a retirada das tropas do país Marcelo Netto Rodrigues da Redação
Países que mantêm soldados no Iraque e os que já saíram
N
as palavras do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, a guerra do Iraque já terminou faz tempo. Durou apenas 42 dias – entre março e abril de 2003 –, custou a vida de alguns poucos soldados, e deixou um saldo de 7.312 civis iraquianos mortos. Para o restante do mundo, porém, os números são outros. A guerra já matou mais de 40 mil pessoas (o estádio do Pacaembu lotado) e, no dia 18, chega ao seu terceiro ano, com uma média crescente de 36 mortes de civis por dia – a maior desde o início da chamada “ocupação”, que registrou no primeiro ano 20, e no segundo, 31 mortes diárias. Para lembrar o início da invasão do Iraque, estão previstos protestos nos cinco continentes. Como de costume, no Brasil, o Comitê contra a Alca, a Marcha Mundial das Mulheres e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vão engrossar marchas pelo país. Em São Paulo, a concentração será no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), às 14 horas. Nos Estados Unidos, as maiores manifestações devem ser as encabeçadas pela organização não-governamental CodePink (Código Rosa, em inglês – uma brincadeira com as cores dos códigos de alerta de segurança contra o terrorismo: amarelo, laranja e vermelho). No Dia Internacional da Mulher, a CodePink conseguiu entregar na Casa Branca um abaixo-assinado com 100 mil nomes pedindo a retirada das tropas estadunidenses do Iraque.
Até dia 6, os EUA, que contam atualmente com 138 mil soldados em território iraquiano, já haviam perdido 2.304 militares
Sunitas e xiitas – Uma onda de violência entre facções sunitas e xiitas se espalha pelo país já nos moldes de uma guerra civil. O histórico conflito étnico-religioso ganha combustível renovado com diversas explosões de carros-bomba desde o dia 12, que tiveram como estopim um atentado contra um santuário xiita, ocorrido dia 22 de fevereiro. Mesmo três meses após as eleições, a formação do novo governo ainda não se efetivou. Nem todos concordam que o primeiro-ministro interino, o xiita Ibrahim al-Jaafari, assuma o cargo à frente do novo governo, cujo mandato é de quatro anos. Pela primeira vez, os xiitas (60% da população) estão, de fato, com o poder nas mãos. À época de Sadam Hussein, eram os sunitas (20%) que monopolizavam as decisões. (MNR)
Vinte seis países ainda fazem parte da coalizão liderada pelos Estados Unidos e Reino Unido, enquanto outros 16 já mandaram seus soldados de volta para casa. Até dia 6, os EUA – atualmente com 138 mil soldados em território iraquiano – já haviam perdido 2.304 deles, enquanto que o Reino Unido – com 8.900 militares – já contabilizava 103 mortes. Além desses dois, Coréia do Sul, Itália, Polônia, Romênia, Georgia, Dinamarca, Austrália, El Salvador, Azerbaijão, Mongólia, Albânia, Letônia, República Tcheca, Lituânia, Eslováquia, Armênia, Bósnia, Estônia, Macedônia, Cazaquistão e Fiji ainda mantêm soldados no Iraque. Bulgária, Ucrânia, Nicarágua, Espanha, Honduras, Noruega, República Dominicana, Filipinas, Tailândia, Hungria, Nova Zelândia, Portugal, Cingapura, Holanda, Moldávia e Tonga já retiraram suas tropas. Uma decisão, que segundo fontes do Ministério de Defesa do Reino Unido, ouvidas pelo jornal inglês The Sunday Telegraph, deve ser logo seguida por Bush e pelo primeiro-ministro britânico Tony Blair. Segundo o jornal, “o grosso das forças dos EUA e do Reino Unido será retirado simultaneamente” no primeiro semestre de 2007. Além das baixas fatais, os dois países já contabilizam cerca de 20 mil militares feridos no conflito – entre eles 5 mil mutilados. (MNR)
Irã: a bola da vez – Grupos extremistas xiitas iraquianos, sob a influência do Irã, estariam incitando uma guerra civil no Iraque, vislumbrando o que antes da guerra seria impensável: a união do Irã e do Iraque sob uma hegemonia xiita. Isto, somado à recente ameaça do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, de converter para euros a exportação de petróleo do seu país, faz do Irã – o quarto maior produtor de petróleo do mundo – o mais novo alvo dos EUA. A história se repete: Sadam Hussein fez o mesmo no Iraque antes de ter seu país invadido. E a desculpa é a mesma: o Irã estaria enriquecendo urânio para a fabricação de armas de destruição em massa. Neste caso, para ser específico, uma bomba atômica contra Israel – que ganha contornos mais dramáticos com a recente eleição do grupo islâmico Hamas. (MNR)
ANÁLISE
A guerra sem fim do imperialismo Mário Maestri O grande capital produz cada vez mais mercadorias para populações que destrói ainda mais velozmente como produtores e consumidores. Por isso, necessita desesperadamente da guerra, como o fogo do oxigênio, para não perder força, virar cinzas, dar lugar ao revivescer do mundo social. A indústria bélica e a guerra constituem meios imprescindíveis ao desvio de riquezas sociais para a produção dessas estranhas mercadorias que, para serem consumidas, exigem apenas que a população morra. Para sobreviver, o capitalismo em crise senil produz industrialmente guerra e morte que também necessita para apropriar-se predatoriamente das riquezas mundiais. A ocupação colonial do Iraque estava na pauta da segunda gestão presidencial de Bush I, frustrada pela vitória do democrata Bill Clinton, em 1992. A entrega judicial da Presidência aos republicanos de Bush II, em janeiro de 2001, constituiu exigência do grande capital financeiro, interessado na expansão dos gastos militares e no saqueio dos recursos petrolíferos mundiais. O ataque terrorista às Torres Gêmeas,
em 11 de setembro, constituiu mana dos céus para a administração Bush, que não conseguia arregimentar a opinião pública para a “guerra mundial” contra o “terror” que justificasse gastos militares monstruosos, sem a ameaça do arquivilão soviético, em momento em que a pobreza avançava entre a população estadunidense.
O LUCRO DA MORTE A invasão do Afeganistão e do Iraque garantiu ao capital estadunidense expansão ininterrupta apoiada em gastos militares, financiados com déficits públicos astronômicos. Os negócios da guerra e da reconstrução do Iraque ensejaram negociatas de fazer corar a classe pública e empresarial brasileira. A privatização selvagem das riquezas iraquianas prometia ciclo de acumulação pirata de longo fôlego. A guerra do Afeganistão-Iraque era etapa do projeto de expansão incessante do capital, através de gastos militares e apropriação colonial das riquezas mundiais. Com esse projeto, os republicanos planejam manter-se no poder e difundir no mundo governos autoritários adaptados às necessidades imperialistas. Fazem parte desse projeto as leis antiterro-
ristas; as propostas de legalização da tortura, da prisão e da execução arbitrárias; a criminalização do direito de opinião, organização, etc., em desenvolvimento sobretudo nos EUA e na Inglaterra.
A invasão do Afeganistão e do Iraque garantiu ao capital estadunidense expansão ininterrupta apoiada em gastos militares, financiados com déficits públicos astronômicos A reorganização neocolonial do Iraque-Afeganistão é parte de movimento dirigido especialmente contra a Palestina, a Síria e o Irã. Após a ocupação do Iraque, com o apoio da ONU, as tropas sírias tiveram que abandonar o Líbano, desequilibrando ainda mais a região em favor do imperialismo e de Israel. A acusação de Bachal
al-Assad pelo assassinato de Rafik Hariri, o político e milionário libanês pró-imperialista, constitui hoje a principal política imperialista para pressionar a Síria, apoiada estranhamente pelo governo Lula da Silva. Bush II acaba de propor que al-Assad compareça “perante o tribunal internacional”.
BANDIDOS E MOCINHOS O controle das reservas petrolíferas do Irã constitui o próximo passo do projeto imperialista no Oriente Médio, de mais difícil efetivação, devido à força econômica, demográfica e militar do país. Porém, ali, ao contrário do que no Iraque, o imperialismo conta com a simpatia de segmentos proprietários que esperam participar do saque das riquezas iranianas. Com a impugnação do direito iraniano ao armamento nuclear, os anglo-estadunidenses pretendem conquistar desde já apoios à aventura militar que lhes faltaram no Iraque. O governo do Brasil, a única nação continental desprovida do armamento atômico, seguiu também o imperialismo na acusação do Irã, diante do Conselho de Segurança da ONU, por exercer direito nacional indiscutível. A capacidade de resposta
nuclear, mesmo tática, é o único argumento capaz de frear, no seu início, uma ofensiva imperialista. No seguimento da primeira guerra do Golfo e da invasão do Afeganistão, apoiado na sua enorme superioridade militar, o imperialismo se dispôs a repetir, no Iraque, o script risonho da guerra da cinematografia imperialista, onde os mocinhos sempre vencem e apenas os inimigos morrem. Porém, se o “imperialismo põe, os povos dispõem”. Devido à poderosa oposição mundial contra a agressão imperialista, os angloestadunidenses iniciaram a agressão contra o Iraque com escassos aliados e sob forte oposição interna e externa. Mais ainda, nos últimos três anos, cada helicóptero que beija a terra, cada blindado que salta aos ares, cada soldado abatido pela resistência iraquiana tem fortalecido as resistências iraquiana, afegã e palestina e, certamente, contribuído à demonstração de profunda disposição antiimperialista, de janeiro e fevereiro passados, das populações mundiais de confissão islâmicas, motivada pela provocação de jornal dinamarquês direitista. Mário Maestri é historiador. E-mail: maestri@via-rs.net
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De 16 a 22 de março de 2006
AMÉRICA LATINA LIVRE-COMÉRCIO
Indígenas retomam protestos no Equador da Redação
O
s movimentos indígenas equatorianos decidiram retomar as mobilizações nacionais em um processo que pode desestabilizar o governo provisório de Alfredo Palacio. No poder desde abril de 2005, quando o então presidente Lucio Gutiérrez foi derrubado por protestos em Quito (capital), Palacio é acusado pelas organizações sociais de manter a mesma agenda neoliberal, favorável às transnacionais estadunidenses e à assinatura de um Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos. No dia 13, os indígenas começaram uma paralisação na província de Cotopaxi para pressionar Palacio a não assinar o acordo com os Estados Unidos. Moradores e agricultores do Seguro Social Campesino (SOC) bloquearam várias estradas que cortam o território equatoriano. O protesto reivindica do governo federal que, antes de qualquer acordo, sejam realizados estudos mostrando os riscos e a viabilidade das propostas em questão. Os indígenas querem também o compromisso de Palacio de que não assinará o TLC sem que o povo equatoriano tenha sido consultado. “Esse acordo de livre-comércio significa a quebra dos agricultores nacionais que não suportarão o ingresso dos produtos agrícolas estadunidenses”, avaliou Danny Montolla, do SOC. Os movimentos indígenas de
Indymedia/ Equador
Movimentos sociais pressionam governo de Alfredo Palacio a não assinar acordo com os EUA e a expulsar transnacional ta popular com a população sobre o acordo em negociação com os Estados Unidos. A Conaie soltou, ainda, um manifesto em que acusa o governo de Palacio de manter a mesma política de seu antecessor, apesar de ter prometido o contrário. Os indígenas, que reivindicam a construção de um Estado Plurinacional contemplando a diversidade étnica dos equatorianos, denunciam que o “governo provisório” está criminalizando e perseguindo as lutas e resistência dos povos e dos pobres do país.
SEM DIÁLOGO
Movimento indígena exige do governo equatoriano uma consulta popular sobre acordos firmados com os Estados Unidos
Cotopaxi também cobram do governo a expulsão da companhia petrolífera Oxy do Equador, pois a empresa teria violado as leis nacionais ao vender 40% de suas ações sem consultar o Estado. Em Quito, na capital do país,
cerca de cem pessoas organizadas pela Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) ocuparam a Catedral Metropolitana. Os manifestantes pretendem deixar o local apenas depois de obterem de Palacio uma resposta das posições
expressas pelas organizações populares em relação ao TLC. No dia 14, era esperada ainda a chegada de outras duas mil pessoas da Conaie para ampliar a ocupação da Catedral e pressionar o governo equatoriano a realizar uma consul-
No entanto, o presidente equatoriano tem resistido a sentar na mesa com os movimentos sociais e avisou que não vai dialogar com quem realizar paralisações, bloqueios de estradas ou outras ações de pressão. Palacio programou para o dia 23 mais uma etapa das negociações do TLC com os estadunidenses. Os jornais equatorianos já cogitam que o governo fará concessões para conseguir a assinatura desse tratado. No início do mês, o presidente colombiano, Álvaro Uribe, anunciou que vai assinar um acordo de livre-comércio com os Estados Unidos. O chefe do Executivo do Peru, Alejandro Toledo, também pretende fazer o mesmo. Essas três nações andinas negociam o acordo com os EUA desde 2004. A Bolívia também participa das discussões, mas na condição de “observador”. (Com agências internacionais)
PORTO RICO
Um alerta ao novo governo da Costa Rica No horizonte, uma independência negociada da Redação
A independência de Porto Rico pode estar próxima. Até uma data recente, essa aspiração parecia uma dívida moral incapaz de ser honrada. Há um século, o tema está presente na retórica de todas as tendências políticas latino-americanas e há anos é enfatizado – sem oposição – nas resoluções das Nações Unidas. No entanto, não se vislumbrava uma solução prática. Em 2000, depois de receber na Casa Branca o líder pela independência Rubén Berríos, o então presidente Bill Clinton criou um Grupo de Trabalho (White House Task Force) sobre o status de Porto Rico e suas opções, posteriormente confirmado duas vezes por George W. Bush. Em dezembro, o Grupo determinou que a atual condição de Porto Rico de Estado Livre Associado (ELA) é de natureza colonial, transitória e não baseia no consentimento mútuo. Além disso, foi estabelecido que enquanto permanecer essa situação, a ilha deve ficar sujeita ao poder do Congresso estadunidense. O Grupo recomendou também aos parlamentares que legislem para os portoriquenhos decidirem, por meio de um referendo, se estão a favor ou contra o seu atual status de subordinação ao governo dos Estados Unidos. Caso a população da ilha escolha a descolonização, deverá então ser realizado um plebiscito para que os portoriquenhos decidam entre se anexarem como o 51º Estado dos EUA ou se tornarem uma República independente.
REVIRAVOLTA Nem ingênuos e tampouco preguiçosos, no dia 2, 73 congressistas enviaram à Câmara de Representantes um projeto de lei para encaminhar à ilha o debate sobre a anexação ou a independência. Não há por que se surpreender com os parlamen-
tares estadunidenses. A questão é que cresce, em Porto Rico, as preferências por duas opções (a anexação e a independência), enquanto cai o apoio à manutenção da condição de Estado Livre Associado. O establishment estadunidense não está indiferente a esse quadro. Na realidade, perderam todo o vigor os interesses geopolíticos, militares e econômicos que antes justificavam para Washington manter Porto Rico como colônia. A permanência dessa condição – para os EUA – traz custos econômicos, políticos e étnicos-culturais bem maiores do que os velhos benefícios da colonização da ilha. Um exemplo disso é a retirada da Marinha estadunidense da base naval de Vieques, após a épica mobilização de 2000. Meses mais tarde, os militares dos EUA abandonaram também a enorme base de Roosevelts Roads, com um detalhe: nesse caso, não houve mobilizações; a saída foi uma decisão unilateral. Hoje, não há mais bases militares estadunidenses na ilha.
MODERAÇÃO Por outro lado, o Partido Independista Portoriquenho não propõe mudança traumática, mas uma transição pactuada, à semelhança do que, em seu tempo, fez Omar Torrijos no Panamá para resolver a disputa que envolvia o Canal e recuperar a via marítima. Assim, a proposta pela independência de Porto Rico não pretende acentuar uma confrontação com os EUA, mas sim uma solução conjunta para pôr fim a um problema do qual os estadunidenses também querem se desfazer. Durante longos anos, o tema foi motivo de justificadas denúncias antiimperialistas. Mas o que agora se coloca é uma outra coisa: é dar um passo que abre caminho para a efetiva independência dessa nação latino-americana e caribenha. (Agência Latino-Americana de Informações, www.alainet.org)
PERU
Humala cresce nas pesquisas da Redação A poucos dias das eleições no Peru, o candidato nacionalista à Presidência Olanta Humala segue como um dos favoritos no pleito marcado para 9 de abril. Uma pesquisa encomendada pela América Televisión divulgada no dia 13 mostrou que Humala teve crescimento de quatro pontos percentuais e já conta com apoio de 30% do eleitorado – empate técnico com a líder da pesquisa, a conservadora Lourdes Flores (Aliança Unidade Nacional), que apresentou queda de dois pontos percentuais em relação à pesquisa de fevereiro. Em terceiro lugar, vem Alan García, com 22%. O levantamento indica que o apoio popular à candidatura de Flores pode ter alcançado um teto, pois manteve-se estável nas últimas cinco semanas. Já a candidatura do tenente-coronel Humala parece ganhar mais força. Apesar disso, a política conservadora teria vantagem sobre o nacionalista em uma disputa no segundo turno, que ocorreria em 7 de maio caso nenhum dos candidatos consiga apoio superior à metade dos votos válidos. Flores venceria Humala por 54% a 46%. No entanto, uma outra pesquisa feita pela IMA Estudos de Marketing mostrou que há um certo descrédito do eleitorado em relação às mudanças que possam decorrer das
Indymedia/ Peru
Nils Casto da Cidade do Panamá (Panamá)
Os sindicatos do setor público e organizações sociais da Costa Rica deram um recado público ao novo presidente do país, o Prêmio Nobel da Paz Oscar Arias. Caso dê prosseguimento às negociações do Tratado de Livre Comércio da América Central (Cafta, na sigla em inglês) com os Estados Unidos, os movimentos populares prometem transformar o início de seu governo em “dias muito difíceis”. Nas eleições, Arias defendeu os supostos benefícios que o acordo de livre-comércio traria para o país. Afirmou que “não hesitará” e seguirá com o Cafta independentemente “dos ventos e da maré”. No dia 10, Arias recebeu um telefonema em que o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, lhe pediu que acelerasse a aprovação do acordo que, desde o dia 1º, já está em vigor em El Salvador – país que já tem a economia dolarizada. Na América Central, Nicarágua, Guatemala, Honduras e República Dominicana já aprovaram o Cafta, com exceção da Costa Rica. (www.bilaterals.org)
Pesquisas mostram descrédito dos eleitores em relação aos candidatos
eleições de abril. O instituto apurou que nada menos do que 66,5% da população está convencida de que nenhum dos candidatos tem uma estratégia clara para a solução dos graves problemas relacionados à infância no país. A pesquisa disse, ainda, que 36,5% do eleitorado considera que os aspirantes à Presidência tratam mal o tema dos problemas infantis. Já em relação ao Congresso, o descrédito é ainda maior: 78% afirmam que os candidatos a deputados não
têm propostas claras sobre o que fazer a respeito desse tema. O instituto mostra que, para os peruanos, os maiores problemas relacionados às crianças são o da educação, alimentação, saúde, violência familiar e abuso sexual. Além disso, para 76,6% do eleitorado, a questão do emprego deveria ser o tema principal da campanha presidencial, à frente de educação (47,1%) e saúde (39,3%). (Prensa Latina, www. prensa-latina.com)
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AMÉRICA LATINA IMPERIALISMO
Tempos novos para a América Latina Para o lingüista Noam Chomsky, o presidente venezuelano Hugo Chávez representa o verdadeiro golpe ao domínio dos EUA guerrilha. Grandes áreas do território colombiano estão fora do controle do Estado e nas mãos da guerrilha camponesa. Para compreender como as intervenções dos EUA pouco têm a ver com a luta contra a droga, basta observar como grande parte da produção de droga seja feita em áreas sob controle paramilitar. As operações do Plano Colômbia, por outro lado, são feitas contra os camponeses pobres do sul do país, nas regiões de Putumaio e do Cauca, entre outras. A Colômbia é um dos países com o maior número de deslocados, atrás somente do Afeganistão e do Sudão. Cerca de dois milhões de pessoas são forçadas a viver nos subúrbios urbanos mais degradados. Afastada a população, chegam as companhias petrolíferas e de mineração que começam a explorar as montanhas e o subsolo, ou então chega a Monsanto e outras companhias da agroindústria que praticam a agricultura intensiva para exportação, provavelmente geneticamente modificadas. Um típico modelo colonial, onde os ricos tornamse mais ricos e as companhias estrangeiras acumulam enormes capitais. Os camponeses, se sobrevivem, devem ir embora.
Nama
Bruno Simone de Boston (EUA)
C
Brasil de Fato – Com a eleição de Evo Morales, na Bolívia, a região parece estar realmente sem controle sob o ponto de vista dos Estados Unidos? Noam Chomsky – Não há dúvidas de que Washington está muito incomodado com esta situação, já que há algum tempo a região começou sair do controle estadunidense. Tradicionalmente, é uma região que sempre esteve sob o controle dos Estados Unidos, pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial. A Venezuela foi essencialmente conquistada pelos Estados Unidos nos anos 1920, ou seja, no início da idade do petróleo, quando foram descobertos os enormes recursos deste país. Os Estados Unidos expulsaram os ingleses e, a partir daquele momento, tiveram o controle do país. Com exceção deste e do Canal do Panamá, o controle dos Estados Unidos nunca se estendeu na América do Sul, até o final da Segunda Guerra Mundial. Com o fim da guerra, a Europa foi expulsa da região e o continente entrou sob o domínio de Washington, que de algum modo sempre deu por certo o controle sobre a região, patrocinando golpes militares de Estado. Na última década, o sistema de domínio começou a fragmentar-se, o continente começou a se mover com alguns graus de independência que Washington certamente não quer tolerar. Mas na verdade não há muito o que se possa fazer. As eleições brasileiras foram motivo de forte preocupação, mitigadas de algum modo pelo fato de Lula não ter perseguido políticas realmente de esquerda; pelo contrário, continuou com uma política não muito diversa dos seus predecessores. De qualquer modo, o único golpe verdadeiro ao domínio estadunidense foi dado por Chávez. A América Latina pela primeira vez na sua história está começando a integrar-se. Os modelos coloniais dos espanhóis, primeiro, e sucessivamente dos ingleses, franceses e assim por diante, criaram um sistema em que os países latino-americanos se orientavam na direção das potências ocidentais que os controlavam, e não entre si. Agora está tendo início a integração, a América Latina possui recursos realmente enormes e desigualdades muito grandes, opressões e violências, com pouquíssimas interações, mas este sistema começa a inverter-se. É algo difícil, uma união das nações já nasceu, mas até o momento ainda está no papel. Seja como for, ela começa a adquirir forma e contar com o apoio de outras forças externas, em particular a China. O comércio entre a China e a América Latina está crescendo.
Pelas ruas de Caracas, venezuelanos protestam contra a invasão do Iraque e as ameaças de Bush ao presidente Chávez
BF – Sobretudo com a Venezuela. Chomsky – A Venezuela está mandando petróleo e a China está começando a investir no país. A Venezuela sempre foi uma das maiores fontes de energia dos EUA desde 1970. A partir de então, as coisas mudaram, mas a Venezuela sempre foi o maior fornecedor dos estadunidenses e possui os maiores recursos na região. A Bolívia conta com enormes fontes de gás natural que até agora não foram exploradas pelos EUA, que de qualquer modo contam com isso dentro do mais breve. E nos outros países da América Latina existem também grandes quantidades de recursos naturais. Os acordos com a China estão decolando lentamente, assim como as relações comerciais com a Europa, além disso, estão nascendo também as relações Sul-Sul. BF – É esta a grande novidade? Chomsky – Certamente. O Brasil, a África do Sul e a Índia, entre outros, estão formando uma aliança independente do Sul. E tudo isso está fugindo do controle de Washington. Os Estados Unidos deram por certo, desde o final da Segunda Guerra Mundial, um controle quase total sobre o planeta, com exceção de alguns setores do Leste da Europa, mas o restante era dado como certo. Mas a ameaça da Venezuela aos Estados Unidos é ainda maior e diz respeito às relações entre Cuba e Venezuela. Há décadas que os Estados Unidos tentam destruir Cuba. Esses dois países estão estreitando as relações, o que escandaliza Washington e a imprensa. Mas se analisarmos estas relações, observaremos que são muito bem estudadas, ambos usam os pontos fortes. A Venezuela manda o petróleo e Cuba envia pessoal altamente qualificado, alta tecnologia médica, professores, doutores, etc. É uma relação muito natural que está se difundindo em toda a região. Tudo isso aterroriza os EUA. BF – Parece a primeira vez que alguém utiliza o petróleo como um meio de integração, ao invés de algo para criar conflitos e guerras. Chomsky – Em geral, o petróleo foi usado apenas por dois motivos: para seguir a direção do Ocidente, dos países ricos; e para enriquecer os administradores locais. Este é o modelo no Oriente Médio e na Venezuela. E é por isso que a Venezuela, um país potencialmente muito rico, sempre teve um setor de ricos muito pequeno e de origens ocidentais que vivem muito bem, e uma enorme massa de pessoas extremamente pobres. Este é o modelo do petróleo, enriquece as elites locais e escorre através das multinacionais em direção ao Ocidente, onde contribui para o
desenvolvimento industrial. Foram feitos esforços para que houvesse uma mudança. Nasser no Egito (Gamal Abdel Nasser), por exemplo, foi temido e comparado a um novo Hitler, principalmente porque o seu nacionalismo estava orientado ao uso dos recursos da região, não para enriquecer o Ocidente e as pequenas elites locais. Esta é a razão pela qual teve que ser destruído. Foi isso que marcou o nascimento da aliança entre os EUA e Israel.
A preparação dos militares latino-americanos agora é de responsabilidade do Pentágono, não existem restrições ou supervisões. Se querem ensinar métodos de tortura, não há problemas, ninguém virá jamais a saber BF – Isso também acontece em relação à Venezuela? Chomsky – Pela primeira vez na história, o país usa seus recursos energéticos para o desenvolvimento. Podemos discutir se vai ter sucesso ou não, mas os recursos são utilizados em reconstrução, saúde, etc. Existe também um certo nível de participação no controle da indústria petrolífera por parte dos trabalhadores. Mais uma vez, podemos discutir sobre o sucesso ou não dessas políticas, mas o final do programa é muito claro e isto transtorna Washington. A idéia que os recursos de um país devam ser utilizados para a população do próprio país mete mesmo muito medo. BF – É possível que a popularidade de Hugo Chávez na América Latina e suas políticas de integração através de acordos com o petróleo possam de alguma maneira ajudar os outros presidentes de centro-esquerda da região a manter uma política mais à esquerda e mais popular? Chomsky – É difícil fazer previsões, mas certamente Chávez está exercendo uma pressão nesse sentido. Podemos estar certos de que os EUA tentarão detê-lo a todo custo. Se dermos uma olhada nas despesas estadunidenses na América Latina, nos damos conta de que estamos diante de uma mudança. Durante o ápice da Guerra Fria, a ajuda econômica era consideravelmente superior àquela militar, hoje é mais ou menos a mesma, a ajuda militar cresceu e termina principalmente na Colômbia e nos países que
apoiam tais esforços. Portanto, as ajudas militares aumentaram muito. Além disso, a presença militar de estadunidenses também alcançou um pico. Mesmo o treinamento dos militares latinoamericanos sofreu uma mudança. Era feito pelo Departamento de Estado e teoricamente havia a supervisão do Congresso, que ditava condições baseadas nos direitos humanos. Essas medidas não eram aplicadas de maneira perfeita, mas sim de maneira muito sumária, mesmo assim surtiam efeito. Hoje houve uma mudança, a preparação dos militares latino-americanos agora é de responsabilidade do Pentágono, não existem restrições ou supervisões. Se querem ensinar métodos de tortura, não há problemas, ninguém virá jamais a saber. A passagem da responsabilidade ao Pentágono significa que a condicional sobre os direitos humanos desaparece, e eles são livres e felizes de fazer o que quiserem. O Pentágono está reexaminando as finalidades desses treinamentos. BF – É assim que os EUA pretendem fazer a guerra contra o “terror”? Chomsky – Há algum tempo, falava-se de defesa do hemisfério, pois Kennedy modificou os objetivos passando da defesa do hemisfério à segurança interna. Isso significa praticamente combater contra suas próprias populações, terrorismo de Estado e assim por diante. Hoje a finalidade mudou novamente, fala-se de guerra contra o tráfico de drogas, mas na realidade na mira estão os temas sociais: grupos radicais, formações sociais, ativistas, sindicalistas. Tudo isso é muito explícito e sob o controle do Pentágono, sem alguma supervisão. Estas são as mudanças concretas e estão correlacionadas ao aumento da grande preocupação dos EUA com os movimentos de independência e de integração da região. E a Colômbia joga um papel muito importante para os Estados Unidos. BF – Podemos dizer que a Colômbia, a exemplo de Israel, pode ser um fator de instabilidade regional que tem a tarefa de manter a área e os países confinantes sob pressão? Chomsky – Acho que os Estados Unidos gostariam de fazer algo do gênero, mas simplesmente não podem. Só o controle da Colômbia é um problema suficientemente grande. Os Estados Unidos ainda não conseguiram tomar o controle da Colômbia. A guerra contra a droga é somente uma branda cobertura de uma luta contra a guerrilha. Aquilo que é chamado treinamento antinarcótico é na verdade um treinamento antiguerrilha. O Plano Colômbia sempre foi um programa anti-
BF – Muitas vezes o senhor afirmou que a região Andina será o próximo interesse da administração Bush, depois do Iraque. Chomsky – Antes da invasão do Iraque, eu achava que ela não duraria mais que três dias. Uma das razões da invasão era que o país estava completamente sem defesas, depois de pesados bombardeios e um embargo fortíssimo, o país se mantinha unido de modo muito precário. Mas de algum modo transformou-se em uma incrível catástrofe, uma das piores catástrofes militares da história. Os soldados estadunidenses estão imobilizados, não podem ir embora sem estabelecer um Estado-satélite no modelo centro-americano ou dos satélites do Leste Europeu, com uma democracia formal que faça com que as coisas funcionem no modo justo. Eles não podem ir embora deixando o petróleo do Oriente Médio nas mãos de uma série de governos xiitas que controlam o Irã, o Iraque e a Arábia Saudita. Eles estão em grandes dificuldades. Sim, eu achava que o próximo passo seria a região Andina, mas no momento isso é impossível, estão imobilizados. Por isso, acho que é uma oportunidade de crescimento para a integração da região Andiana. (Tradução Nicia Nogara) Bruno Simone
ontinente marcado pelas desigualdades sociais e contínuas agressões dos Estados Unidos, a América Latina começa, de fato, a trilhar caminhos novos rumo à verdadeira integração. È o que defende o lingüista e intelectual estadunidense Noam Chomsky. Escolhido em votação como o intelectual ativo mais importante na atualidade, numa recente pesquisa realizada pela revista britânica Prospect, Chomsky recebeu cerca do dobro dos votos do segundo colocado, o filósofo italiano Umberto Eco. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, ele fala sobre a situação que está vivendo a América Latina em geral e, em particular, a América do Sul, região sacudida por fortes ventos inovadores e que parece estar se libertando da tradicional influência dos Estados Unidos.
Quem é Avram Noam Chomsky, 71, lingüista estadunidense, é professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT), um dos principais centros de pesquisa dos EUA. Respeitado crítico da política e da mídia do seu país, escreveu mais de 60 livros, entre eles 23 sobre a política dos Estados Unidos. Chomsky é também um dos mais renomados pensadores de esquerda da atualidade
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INTERNACIONAL NIGÉRIA
Separatistas ameaçam transnacionais Divulgação/ Shell
Movimento de Emancipação do Delta do Níger promete matar reféns e exige indenização por danos ambientais da Redação
M
aus tempos para o presidente nigeriano, Olusegun Obasanjo, acusado de “incompetência” para resolver os problemas nacionais no momento em que se inicia o debate da revisão constitucional que lhe permitiria candidatar-se a um terceiro mandato, em 2007. Enquanto a gripe das aves se alastra pelo país, separatistas do Delta do Níger obrigaram a Shell a fechar o seu principal terminal petrolífero, provocando uma quebra de 20% nas exportações. A Nigéria é o maior produtor de petróleo na África e o sexto entre nações que formam a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). O Movimento de Emancipação do Delta do Níger (MEND, na sigla em inglês), que declarou “guerra total” às petrolíferas estrangeiras, ameaça executar três reféns (dois funcionários estadunidenses da ExxonMobil e um especialista britânico em segurança). Os três estrangeiros foram feitos reféns com mais seis colegas durante uma série de ataques a instalações petrolíferas da região, dia 18 de fevereiro. O MEND acusou o Exército de ter lançado ataques contra algumas comunidades Ijaw (a etnia maioritária na região) e como represália o grupo desatou uma onda de violência, que reduziu a produção nacional de petróleo de 2,5 milhões de barris por dia para 445 mil. A milícia prometeu realizar mais ataques com a intenção de reduzir em mais 1 milhão de barris a exportação nacional de petróleo em março, se o governo não cumprir com suas exigências. O MEND exige o controle total do Delta do Níger e o pagamento de 1,5 bilhão de dólares pela Shell ao governo estatal como compensação pela poluição gerada pela indústria na região. Reivindica também a libertação de dois líderes Ijaws. Um
NIGÉRIA Nome oficial: República Federativa da Nigéria Localização: África Ocidental Principais cidades: Abuja (capital) e Lagos (capital comercial) Línguas: haussa, ibo, ioruba, fulani, inglês, francês Divisão política: 36 Estados Regime político: República presidencialista População: 126 milhões (ONU, 2003) Moeda: naira Religiões: islâmica (50%), cristã (45,9%) e crenças locais MEND, proporcionando ondas de violência contra o Exército, diminuiu de 2,5 milhões para 455 mil barris a produção de petróleo
deles é Muhajid Dokubo-Asari, líder da Força de Voluntários do Povo do Níger, que tinha assinado em 2004 um cessar-fogo com o governo federal. Quando em novembro de 2005, foi a Abuja para negociar com Obasanjo o estatuto de autonomia para a região, Asari foi preso, acusado de secessionismo. Um mês depois, os ataques armados contra as instalações petrolíferas recomeçaram, sob a sigla do MEND. O novo líder, Tamuno, diz que não será ingênuo como Asari, e que pretende tomar o “controle total” da região.
NA MIRA Um porta-voz anônimo do MEND anunciou, dia 12, que o grupo vai deixar de fazer reféns entre funcionários das petrolíferas da região, passando a atirar
para matar. “Vamos concentrar os nosso fracos recursos em alvos fáceis, o que deixará o governo nigeriano num grande embaraço e convencerá as companhias petrolíferas e respectivos empregados da necessidade de abandonar o Delta do Níger”, afirmou o porta-voz às agências internacionais. “Todas as nossas unidades têm ordens para deixar de fazer reféns seja em que circunstâncias for”, acrescentou. Em todo o caso, representantes do governo consideram que as conversações para libertação dos reféns atualmente em cativeiro devem prosseguir. “Esperamos que este pesadelo termine em breve”, declarou Abel Oshevire, porta-voz do governador do Estado do Delta, James Ibori. Os pântanos do Delta do Níger e o mar adjacente produzem 90% do
petróleo e do gás da Nigéria. Mas o ouro negro não traz nenhum benefício e agrava a miséria dos habitantes da região. Estes são reprimidos com brutalidade quando protestam contra a poluição ou reivindicam empregos nas explorações petrolíferas. A maior parte da atual produção da Nigéria vem do lado leste do delta, onde a Shell, as gigantes estadunidenses ExxonMobil e Chevron, a italiana Agip e a francesa Total operam.
CRISE MILITAR Os militares, que governaram o país de forma quase ininterrupta desde 1960, sustentam que só a força pode impedir a implosão da Nigéria. Desde a sua eleição, em 1999, Obasanjo, general reformado, sulista e cristão, tenta provar que se pode chegar ao mesmo objetivo em democracia.
Dia 8, autoridades militares substituíram o comandante das Forças Militares nigerianas encarregadas de proteger as instalações petrolíferas do Delta do Níger. Elias Zamani e seu suplente interino, Mike Okedotun, foram substituídos pelo general A.A. Ilogho, designado para ocupar o cargo de comandante das Forças Militares na “Operação para Restaurar a Esperança”. A decisão foi qualificada pelo vice-ministro de Defesa, Rowland Oritsejafor, de “exercício militar de rotina”. No entanto, fontes militares afirmam que a substituição pode estar ligada aos recentes ataques contra as comunidades Ijaw. Desde o fim do ano passado, pelo menos 15 soldados morreram e outros muitos ficaram feridos nos enfrentamentos com o MEND.
ÁFRICA
Mudança climática põe em risco fontes de água A redução das chuvas devido ao aquecimento do planeta ameaça os rios e outras fontes de água doce em áreas densamente povoadas da África, alertam especialistas da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Algumas dessas regiões, em particular no sul da África, já sofrem secas periódicas, por isso um agravamento da situação teria “conseqüências devastadoras” para a população, segundo estudo de Maarten de Wit e Jacek Stankiewicz publicado nos Estados Unidos pela revista Science. Também é particularmente vulnerável a faixa de território que cruza o continente desde o Senegal, no extremo-oeste, ao Sudão e sul da Somália, no Leste, através de várias massas de água, como os pântanos Sudd, na bacia do Rio Nilo, e o Rio Níger, disseram Wit e Stankiewicz, da Rede de Observatórios Terrestres Africanos da Universidade da Cidade do Cabo. Como boa parte da chuva é absorvida pelo solo e pelas plantas antes de alcançar os espelhos de água e vias fluviais, a redução nas precipitações nessas zonas representa uma grande redução do líquido disponível para uso humano.
outras massas de água que portam as águas superficiais sofrerá uma baixa por causa da diminuição das chuvas, o que afetará significativamente o acesso à água em 25% da África até o final do século 21, diz o informe. O estudo se baseia em vários modelos climáticos para estabelecer o impacto do aquecimento do planeta na chuva. Em janeiro, o Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Administração Nacional para a Aeronáutica e o Espaço (Nasa, dos EUA) confirmou que 2005 foi o ano mais quente de que se tem registro. Também os últimos
dez anos foram os mais quentes. A rede de rádio e televisão britânica BBC informou que no final deste mês o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, que reúne centenas de cientistas de todo o mundo, alertará que com as atuais projeções de emissões de gases causadores do efeito estufa, a temperatura do planeta aumentará entre dois e 4,5 graus centígrados até o final do século, muito mais do que afirmavam as previsões anteriores. As geleiras da Groenlândia estão derretendo no dobro da velocidade que se supunha, segundo
François Goemans/ ECHO
Jim Lobe de Washington (EUA)
CONTINENTE DIVIDIDO
EFEITO ESTUFA Uma redução de 10% nas precipitações em regiões que recebem 600 milímetros de chuva por ano implicaria 50% de queda na drenagem à superfície. A drenagem perene de rios, lagos e
algumas pesquisas. Outras tiram conclusões semelhantes a respeito do mar Adriático e das geleiras de montanha. Estes dados indicam que, como diz o diretor do Instituto Goddard, James Hansen, o mundo “está se aproximando de um ponto além do qual será impossível evitar uma mudança climática com conseqüências indesejáveis e de grande alcance”. Apesar de Hansen se referir fundamentalmente ao impacto da elevação do nível do mar pelo derretimento das geleiras, os cientistas concordam que as mudanças climáticas, incluída as dos padrões de chuva, também serão dramáticas. Mantida a atual tendência, as chuvas na África Subsaariana diminuirão 10% até 2050, o que originará uma grande escassez de água potável, calculou o cientista Anthony Nyong, da Universidade de Jos, na Nigéria.
Mantida a tendência, até 2050, as chuvas diminuirão 10% na África Subsaariana
O estudo da Universidade da Cidade do Cabo avança em relação ao trabalho de Nyong, ao aplicar os últimos modelos computadorizados para determinar como o calor afetará as chuvas e os sistemas de drenagem em regiões específicas da África. O estudo de Wit e Stankiewicz mostra um continente dividido, até o final do século, em três “regimes” climáticos: áreas secas, que recebem menos de 400 mm de chuva por ano e, portanto, carecem virtualmente de drenagem perene; áreas úmidas com mais de 800 mm anuais, e zonas intermediárias ou instáveis, nas quais cairão entre 400 e 800 milímetros.
Segundo o estudo, a zona seca cobrirá virtualmente toda África Setentrional, o deserto de Sahel e a maior parte do Chifre da África (região Nordeste do continente), bem como a metade ocidental da África do Sul, Namíbia e a costa de Angola.
ÁREAS INSTÁVEIS Tudo isso soma 41% da superfície do continente africano. Com exceção da Somália e de áreas próximas da Etiópia e do Quênia, onde as chuvas aumentarão entre 10% e 20%, a maioria da região sofrerá uma queda nas precipitações que chegará a 20% no Norte e Sudoeste. As áreas úmidas incluirão o centro do continente e boa parte do ocidente, ao redor do golfo da Guiné e estendendo-se às zonas orientais de Uganda, Sudão, Tanzânia, Moçambique e norte de Madagascar. A maioria dessas áreas registrará um aumento das chuvas de até 10%, segundo o estudo. Vinte e cinco por cento do território africano estarão compreendidos por áreas instáveis, que supõem a maior preocupação, segundo os autores do estudo. A redução das chuvas terá aí um sério impacto no fornecimento de água, advertiram. Em algumas dessas zonas, especialmente no Leste, provavelmente haverá aumento das precipitações de até 10%, mas em outras, como na África Ocidental e Meridional, haverá uma redução. A África do Sul estará “em uma situação muito perturbadora”, alerta o informe. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
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De 16 a 22 de março de 2006
NACIONAL ÁGUA
Patrimônio privado ou da humanidade? da Redação
ESCASSEZ DE RECURSOS HÍDRICOS
O
4º Fórum Mundial da Água, que acontece entre 16 e 22 de março, na Cidade do México, reunirá nomes internacionais para troca de informações sobre gestão da água. O fórum abriga um modelo mundial de gestão do recurso que implica reconhecer o valor econômico do recurso – no que se inclui uma crescente participação de investimentos privados no setor, uma gestão de bacias hidrológicas e a maior participação social vinculada à governabilidade. A este programa internacional, impulsionado por organismos como o Conselho Mundial de Água e o Banco Mundial, se contrapõe uma visão alternativa, a partir da ótica de movimentos sociais, povos indígenas, camponeses e ambientalistas. Suas propostas – entre as quais, reconhecer que a água é um patrimônio comum da humanidade, considerar que o acesso ao recurso é um direito humano e propiciar seu uso sustentável – também integram um movimento de resistência contra sua privatização. O objetivo é assegurar a equidade e a participação social das comunidades, a fim de manter um domínio público do recurso e reverter qualquer processo de privatização em sua distribuição. No México, integrantes de organizações ambientalistas, camponesas, urbanas e defensoras dos direitos humanos reconhecem que o desenvolvimento de um movimento articulado e com objetivos concretos contra a privatização do recurso e por seu reconhecimento como direito humano “é uma tarefa que se iniciou há pouco tempo e tem como um primeiro passo a criação, em junho de 2005, da Coalizão de Organizações Mexicanas pelo Direito à Água”.
Agência Brasil
No fórum do México, movimentos sociais resistem a modelo de privatização dos recursos hídricos
Fonte: Programa da ONU para o meio ambiente
A eles se somam 120 organizações civis agrupadas na Assembléia Nacional em Defesa da Terra e da Água e contra sua Privatização, as quais participam do Fórum Internacional em Defesa da Água, que se realiza entre os dias 17 e 19, “aberto a toda a sociedade civil, em favor de um modelo comunitário e inclusivo para a gestão do recurso”.
América Latina a ter um plano nacional de gestão de recursos hídricos. O Brasil vai apresentar a experiência de gestão de águas das bacias dos rios Paraíba do Sul, São Francisco e Piracicaba, Capivari e Jundiaí, e o banco de águas do sistema Cantareira, que abastece a cidade de São Paulo. “É uma oportunidade única para o Brasil mostrar ao mundo os avanços alcançados na área de recursos hídricos”, afirmou o diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) e vice-presidente do Conselho Mundial da Água, Benedito Braga. Ele informa que o fórum do México vai discutir, entre outros temas, as metas para a área de saneamento aprovadas pelos países que participaram da Conferência de Johannesburgo, em 2002. (Com agências e La Jornada, www.jornada.unam.mx)
PLANO NACIONAL As organizações civis também planejaram atividades paralelas ao fórum que incluem debates internacionais e a instalação de um acampamento cidadão em defesa da água, além de apresentações artísticas, eventos culturais e da difusão de tecnologias alternativas para uso sustentável do recurso. O Brasil participa do Fórum Mundial como o primeiro país da
Fórum Mundial, que acontece no México, luta pelo domínio público da água
da Redação O mundo tem muitas fontes de água potável, apesar de estarem mal distribuídas. Entretanto, segundo o Relatório das Nações Unidas Sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos no Mundo, gestões equivocadas, recursos limitados e mudanças climáticas têm trazido sérios problemas: um quinto da população do planeta não tem acesso à água potável e 40% não dispõem de condições sanitárias básicas. O estudo trienal é a mais abrangente e completa avaliação sobre as fontes de água para consumo humano no mundo. Apresentado à imprensa dia 9, na Cidade do México, às vésperas do 4ª Fórum Mundial da Água, o documento se intitula “Água: uma responsabilidade compartilhada”, e se concentra na importância da governança na gestão dos recursos hídricos e no combate à pobreza. Segundo o relatório, um sistema de governança “determina qual, quando e como é distribuída a água e decide quem tem direito ao recurso e a outros serviços adjacentes”. Tais sistemas não estão limitados ao “governo”, incluem também autoridades locais, setor privado e sociedade civil. Da mesma forma, tratam de uma série de questões intimamente ligadas à água, de saúde e segurança alimentar ao desenvolvimento econômico, uso da terra e preservação dos ecossistemas naturais, dos quais nossas fontes de água dependem. O Relatório destaca que: Apesar de haver progressos significantes e estáveis, e que “em escala global há abundância de água potável”, as estimativas do Programa de Monitoramento Conjunto da OMS/Unicef indicam que 1,1 bilhão de pessoas ainda não têm
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acesso a fornecimentos adequados de água potável. O Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, para 2015, de diminuir pela metade a proporção de pessoas sem saneamento básico, não será alcançando globalmente se as atuais tendências persistirem. De acordo com o estudo, “a má gestão, a corrupção, a falta de instituições apropriadas, a inércia burocrática e a carência de novos investimentos na construção de capacidades humanas assim como em infra-estruturas físicas” são amplamente responsáveis por esta situação. A má condição da água é fator-chave para problemas de subsistência e saúde globais. Doenças relacionadas à diarréia e à malária mataram cerca de 3,1 milhões de pessoas em 2002. Noventa por cento dessas mortes foram de crianças com menos de cinco anos de idade. Aproximadamente 1,6 milhão de vidas poderiam ser salvas anualmente com o fornecimento de água potável, saneamento básico e higiene. A qualidade dos recursos hídricos está piorando em muitas regiões. Evidências indicam que a diversidade de espécies e de ecossistemas ligados à água potável está se deteriorando mais rapidamente que os ecossistemas terrestres e marítimos. Noventa por cento dos desastres naturais são relacionados à água e estão aumentando. Muitos são resultados do uso inapropriado da terra. A trágica e crescente seca do Leste Africano, onde houve um grande desmatamento das florestas para a produção de carvão e madeira para combustível, é um triste exemplo. O relatório também cita o caso do Lago de Chad, na África, que já diminuiu 90% desde a década de 1960, principalmente devido à exploração excessiva do solo, ao desmatamento e a grandes projetos
Indymedia/México
Falta água potável para 1,1 bilhão no mundo
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Fornecimento de água potável poderia salvar 1,6 milhão de vidas por ano
insustentáveis de irrigação. Duas em cada cinco pessoas vivem em áreas suscetíveis às enchentes e ao aumento dos níveis do mar. As nações em maior perigo são Bangladesh, China, Estados Unidos, Filipinas, Holanda, Índia, Paquistão e as pequenas nações insulares. O estudo ressalta que as mudança climáticas irão ampliar esta situação. O mundo necessitará de 55% mais de comida em 2030. Isso deve ser traduzido em uma demanda crescente de irrigação, que já utiliza cerca de 70% de toda a água para consumo humano. A produção de alimento teve um grande crescimento nos últimos 50 anos, entretanto 13% da população mundial (850 milhões de pessoas, a maioria da área rural) ainda não dispõem de alimentos suficientes. Metade da humanidade se concentrará em cidades e municípios, em 2007. Em 2030, esse número crescerá para perto de dois terços, produzindo um drástico aumento da demanda por água nas áreas urbanas. Cerca de 2 bilhões dessas pessoas viverão em assentamentos irregulares e em favelas, configurando-se, assim, na parte da
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população urbana que, geralmente, sofre com a falta de água potável e saneamento. Mais de dois bilhões de pessoas dos países em desenvolvimento não têm acesso a formas de energia confiável. A água é a principal fonte de geração de energia que, em contrapartida, é vital para o desenvolvimento econômico. A Europa utiliza cerca de 75% de seu potencial hidroenergético. A África, onde 60% da população não tem acesso à eletricidade, desenvolveu apenas 7% deste potencial. Reconhecendo o papel vital da água potável no desenvolvimento e na segurança humana, o Plano de Implementação de Johannesburgo, adotado pelos Estados Membros da Unesco, e a Cúpula Mundial Sobre Desenvolvimento Sustentável (Johannesburgo, 2002), convidou os países a desenvolver gestões integradas dos recursos hídricos e planos eficientes para 2005. O relatório indicou que apenas 12% dos países o fizeram, apesar de muitos terem iniciado o processo. As fontes de financiamentos para água também não mostram avanços. De acordo com o estudo, o
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total da Assistência de Desenvolvimento Oficial para o setor da água nos últimos anos foi, em média, 3 bilhões de dólares por ano, com um adicional de 1,5 bilhão de dólares em empréstimos não-concessionais efetuados, principalmente, pelo Banco Mundial. Entretanto, apenas uma pequena proporção (12%) desses fundos chega aos mais necessitados. E apenas 10% sao direcionados para o desenvolvimento de políticas de água, planejamento e programas. Somado a isso, os investimentos do setor privado em serviços de água estão diminuindo. Durante a década de 1990, este setor investiu cerca de 25 bilhões de dólares em suprimento de água e saneamento nos países em desenvolvimento, principalmente na América Latina e Ásia. Contudo, muitas companhias transnacionais de água começaram a recuar ou diminuir seus investimentos no mundo em desenvolvimento devido aos altos riscos políticos e financeiros. Apesar das constantes falhas de performances no sentido de unir as expectativas dos governos de países em desenvolvimento e a de países doadores, o relatório ressalta que “seria um erro” cancelar os investimentos do setor privado. Governos financeiramente sensíveis e com regulamentações fracas, ressalta o relatório, “são alternativas precárias para responder às questões da má gestão dos recursos hídricos e suprimentos inadequados de água”. O Relatório das Nações Unidas Sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos no Mundo é um esforço conjunto de 24 agências do sistema ONU e entidades envolvidas na gestão da água. Será formalmente apresentado durante o 4ª Fórum Mundial da Água. (Envolverde, www.envolverde.com.br)
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DEBATE MÍDIA CAPITALISTA
A “neutralidade” da ciência Mário Augusto Jakobskind episódio da destruição de um laboratório da Aracruz Celulose no Rio Grande do Sul remete a uma série de discussões. No caso da mídia, mais uma vez prevalece o esquema do pensamento único, sendo que a empresa transnacional, que está desertificando cerca de 250 mil hectares de terras no Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Bahia, conta com toda a ajuda do governo brasileiro. Até conseguiu do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) R$ 2 bilhões para os seus projetos perniciosos ao meio ambiente e às comunidades locais com a plantação de eucaliptos. Ou seja, a transnacional planta e o governo garante para produzir papel para o exterior, em detrimento da vida de indígenas, quilombolas (negros descendentes de escravos fugitivos que integravam os quilombos) e dos pequenos proprietários de terra. Esse fato a grande mídia conservadora omite, preferindo criminalizar o MST e a Via Campesina. Quanto às pesquisas científicas, que estão na ordem do dia em função dos acontecimentos no Rio Grande do Sul, algumas perguntas não podem deixar de ser feitas: Pesquisas científicas são neutras, não têm coloração ideológica? Os “laboratórios” destruídos da Aracruz estavam a serviço de quem? Da ciência, da comunidade ou da própria transnacional para desenvolver os seus projetos que, segundo os defensores do meio ambiente, entre estes o Greenpeace, comprovadamente afetam o meio ambiente? Em passado recente, cientistas alemães também faziam pesquisas. Eram projetos científicos “neutros”? Estavam a serviço de quem? Da comunidade, da ciência ou de um projeto racista que visava a eliminação de grupos étnicos e políticos como judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, etc? MÍDIA CONSERVADORA
Recentemente, até um vereador carioca, egresso da União Democrática Nacional (UDN), que
Kipper
O
defendia o projeto da “purificação da raça”, conseguiu se eleger por várias legislaturas. Pois bem, se eventualmente algum grupo de resistência destruísse laboratórios a serviço do 3º Reich, estaria impedindo o “progresso da ciência”? A “neutralidade” da ciência é algo no mínimo discutível e que deve servir de reflexão para parte do mundo acadêmico, que, geralmente, prefere não tomar posição quando é questionado nesse sentido, por entender que “a ciência está acima de tudo”. A grande mídia conservadora, sobretudo os noticiários das TVs, apresentaram com grande estardalhaço o “atentado à ciência”, mas simplesmente não entraram em detalhes sobre o tipo de pesquisas que estavam sendo feitas nos tais laboratórios destinados a aprimorar os eucaliptos causadores de danos aos vizinhos das áreas onde se instalam. Denúncias sobre o caráter nocivo dessas pesquisas estão sendo divulgadas há anos, mas não são levadas em conta ou sequer noticiadas. Qualquer tipo de protesto contra a Aracruz Celulose é
tratado de forma violenta pelos “defensores da lei e da ordem”. Por que será que a mídia conservadora não promove um debate sobre essa questão? Por que o silêncio em relação ao fato de a família real da Suécia ter vendido as ações da Aracruz Celulose? Por que não informar que isso foi feito em função das notícias veiculadas no país escandinavo sobre o desrespeito aos direitos humanos e ao meio ambiente, cometidos pela Aracruz Celulose em território brasileiro? REAÇÕES EM OUTROS PAÍSES
Por que a mídia conservadora não noticia, por exemplo, o que aconteceu em países da Ásia em função da plantação de eucaliptos? No Laos, Camboja, Tailândia e Vietnã, segundo revelou há anos, quando passou pelo Brasil o ambientalista Chris Lang, da World Rainforest Moviment (Movimento Mundial pelo Reflorestamento), milhares de hectares de terras foram ocupados pelo eucalipto, não tendo havido apenas destruição ambiental, mas o esfacelamento de comunidades inteiras de agricultores. Houve reação por parte
dos agricultores prejudicados, variando de país para país o grau de resistência, chegando em alguns casos até à destruição dos cultivos de eucaliptos pelos camponeses. Portanto, o que aconteceu no Rio Grande do Sul, no Dia Internacional da Mulher, tem precedentes em outras partes do mundo. Por que a mídia conservadora quase não noticia a crise entre o Uruguai e a Argentina em função da instalação de uma fábrica da Aracruz Celulose no Departamento de Fray Bentos, na desembocadura do Rio Negro, vizinho da província argentina de Entrerios? Por que a grande mídia conservadora praticamente silencia o fato de o presidente argentino Néstor Kirchner ter pedido ao governo uruguaio uma moratória de três meses na instalação da fábrica para que uma comissão integrada por especialistas dos dois países dê um parecer definitivo sobre a questão?
Por que a mídia conservadora ignora que as facilidades concedidas à Aracruz Celulose no governo de Fernando Henrique Cardoso ocorreram em detrimento dos pequenos agricultores? Por que a mídia conservadora não divulgou que um governo de esquerda, ou que se diz de esquerda, como o de Tabaré Vázquez, estava defendendo com unhas e dentes a Aracruz Celulose sob o pretexto de que a fábrica em Fray Bentos criasse empregos? Então, para um governo de esquerda, ou que se pretende de esquerda, empregos valem mais do que a preservação do meio ambiente? OPINIÃO PÚBLICA
pelos grandes proprietários de terra ao Ibope mostrando que a opinião pública está contra as ocupações (que os editores chamam de invasões) e defende (53%) uma repressão policial pura e simples? Por que tanta exposição de uma pesquisa, no mínimo questionável por ter sido encomendada por grandes proprietários de terras? Por que os editores da mídia conservadora ignoram que as facilidades concedidas pelo BNDES, no governo anterior de Fernando Henrique Cardoso, à Aracruz Celulose ocorreram em detrimento dos pequenos agricultores? Se há dúvidas nesse sentido, nada melhor do que ouvir os dois lados. Mas a grande mídia conservadora já tem posição firmada e fechou questão em defesa dos laboratórios da Aracruz Celulose. Muitas outras questões poderiam ser refletidas pela mídia conservadora, se, claro, ela agisse fora do padrão do pensamento único, que envenena a opinião pública com “verdades” que, no caso em questão, só interessam aos grandes proprietários de terras. O ódio dos articulistas da mídia conservadora e dos boquirrotos de extrema-direita à Via Campesina, ao MST e aos demais grupos representativos do movimento social, manifestadas em páginas de opinião da grande imprensa ou em páginas na internet, não é de hoje e, portanto, não chega a surpreender. O que se lamenta é o comportamento cada vez mais do gênero partido político por parte da mídia conservadora. Por essas e muitas outras questões, o julgamento apriorístico em defesa da “ciência” e de condenação as “baderneiras” da Via Campesina deve ser questionado. Até porque, se depois de tantas denúncias e alertas às autoridades nada fosse feito, a Aracruz Celulose estaria reinando absoluta e sendo aplaudida pela grande mídia conservadora pelas suas pesquisas “em favor do desenvolvimento da ciência”.
Por que a mídia conservadora não questiona o resultado de uma pesquisa encomendada
Mário Augusto Jakobskind é jornalista e escritor
Big Brother Brasil: a outra cena perversa arece voyerista o prazer de espionar a vida encenada nos reality shows da tevê – mas não é. O prazer do voyeur consiste em captar o corpo do outro em sua dimensão obscena – do que deveria estar fora de cena – em busca da realização imaginária de outra cena, montagem inconsciente que regula um gozo dito perverso. Talvez o telespectador do Big Brother Brasil sinta algum prazer em se fazer de perverso, em flertar com uma perversão falsificada, que é o modo como os neuróticos comuns às vezes tentam burlar a monotonia de suas fantasias sexuais. Mas mesmo este voyerismo é falso, mais uma entre as infinitas possibilidades de falsificação que a televisão oferece. Afinal, os participantes do jogo sabem que estão sendo filmados. Sabem que cada movimento seu, cada diálogo, cada jogo de corpo, vai contar pontos a favor ou contra na grande gincana de popularidade que realmente interessa, o mais é conversa. Se existe alguma perversão no BBB, está do lado do exibicionismo dos participantes, e não do pretenso voyerismo do público, que por sinal, a essas alturas já sabe que, em se tratando de um “show de realidade”, está sujeito a ser mais
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enganado do que nunca. E como sempre, está gostando disso. A perversão dos participantes, por sua vez, vai sendo cada vez menos sexual – o que não parece decepcionar muito o telespectador, já que o Ibope do programa está cada vez mais alto. Não foi sexual o frenesi que animou público e participantes da terceira edição do Big Brother Brasil. O que esquentou o programa foi a encenação – esta sim, realista – da concorrência – esta sim, perversa – característica do contexto mais selvagem do capitalismo selvagem a que estamos todos, atores e telespectadores, submetidos. TOPA TUDO POR DINHEIRO
A modalidade de concorrência predatória nas sociedades capitalistas dominadas pela indústria da comunicação e da imagem é mais opressiva do que a que explorava a força braçal, o esforço, a dedicação ou a competência dos trabalhadores. É mais opressiva e também mais eficiente, porque se apóia justamente nos anseios de liberdade individual e na produção de uma superabundância que promete a superação tanto das necessidades vitais quanto dos imperativos do trabalho. A indústria da imagem não libera os sujeitos da concorrência, mas estende seu
alcance a todos os recantos da vida privada. É o que se encena em Big Brother Brasil. O caráter “escapista” do programa – gente jovem e bonita vivendo dias de ócio em uma casa cinematográfica, etc – é muito menos determinante para sua popularidade do que o teor das aflições não nomeadas, das quais ainda mal nos apercebemos, que o reality show mobiliza. Os concorrentes estão envolvidos em uma espécie de “topa tudo por dinheiro” cujas regras são absolutamente subjetivas. Não há provas que exijam habilidades específicas em BBB, como no caso do finado No Limite. As armas que contam nesse campo de batalha pós-
moderno são 100% “psicológicas” – a dimensão dos afetos, que poderia perturbar a eficiência da sociedade industrial repressiva até a primeira metade do século 20, transformou-se na “força de trabalho” mais valiosa na sociedade regida pela indústria da imagem. Os concorrentes ao prêmio final de BBB conspiram, manipulam, traem uns aos outros – esta é a verdadeira dimensão “obscena” do show – até que o mais esperto, que se apresente como mais amável para o público, ganhe a bolada prometida.
A destruição da dimensão publica da vida humana, a privatização do sentido da vida e a consagração do homem subjetivo em lugar do homem político, como novo paradigma do melhor que nossa sociedade produziu, são os componentes secretos do sucesso desse tipo de programa. Que o prêmio seja concedido com bases em critérios afetivos, puramente imaginários, revela o tamanho da opressão a que estamos todos submetidos: se o espaço público é invadido pelas representações da vida privada, quem não quiser ser expulso do jogo tem que comprometer não uma parcela de seu tempo de vida (como o operário das páginas d’O Capital), mas sim todo o seu “ser” nessa alienação, em que a tirania do sentimentalismo coletivo é que dita as normas para a “seleção de pessoal”.
Kipper
Maria Rita Kehl
Maria Rita Kehl, psicanalista, poeta e ensaísta, é autora de A Mínima Diferença (Imago) e Processos Primários (Estação Liberdade). Texto originalmente publicado em Videologia, co-autoria de Eugenio Bucci (Boitempo)
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agenda@brasildefato.com.br
AGENDA FEIRA COMUNITÁRIA ITINERANTE 17 e 18 Com o objetivo de promover o resgate da feira como espaço de comercialização de artesanatos e comidas locais, a segunda edição da Feira Itinerante será sediada no Parque São João. Promovida pela associação comunitária Delmiro Gouveia, a feira pretende fortalecer as entidades locais, propiciando aos participantes geração de renda durante o evento. Local: R. Sabino Filho, Parque São João, Fortaleza Mais informações: (85) 3498 –1348 SEMINÁRIO – ASSEMBLÉIA POPULAR: MUTIRÃO POR UM NOVO BRASIL 18 O seminário está dentro das articulações para o 12° Grito dos Excluídos e tem como objetivo contribuir para o entendimento de como se dará o processo da Assembléia Popular nacionalmente, que este ano atuará junto com o Grito dos Excluídos. Também serão articuladas as propostas que serão levadas para a coordenação nacional. Local: Auditório do Seminário da Prainha, R. Tenente Benévolo, 201, Fortaleza Mais informações: (85) 3231-5882
MINAS GERAIS BRASIL: CAMINHOS PARA O PÓS-NEOLIBERALISMO 24 e 25 Promovido pela Fundação Perseu Abramo, o ciclo de seminários passará por seis capitais, com o intuito de promover o debate sobre um novo projeto de nação. A primeira cidade a sediar o evento será Belo Horizonte (24 e 25 de março). Em seguida, virão Fortaleza, Porto Alegre, Belém, Brasília e Rio de Janeiro. As inscrições para o evento em Belo Horizonte estão abertas e são gratuitas. Mais informações: www.fpa.org.br
PARANÁ ÁGUA PARA A VIDA E NÃO PARA A MORTE 19 A Comissão Pastoral da Terra do Paraná está organizando uma caminhada em defesa da qualidade das águas do Rio Tibagi, que banha grande parte do Estado do Paraná. A caminhada está prevista para ir das 9 às 11 horas. Local: Praça Matriz Jataizinho, Londrina Mais informações: (43) 3347-3141 3º FÓRUM ESTADUAL DE EDUCOMUNICAÇÃO 23 a 25
tica dos resíduos sólidos, entre elas políticas públicas, novas formas de tratamento, Protocolo de Kyoto e as ações do governo brasileiro para sua implantação. Espera-se a presença do ministro das Cidades, Márcio Fortes. A taxa de inscrição varia de R$ 65 a R$ 300. Local: Universidade Católica de Pelotas, Auditório Jandir Zanotelli, R. Félix da Cunha, 412, Pelotas Mais informações: www.assemae.org.br
IMPRENSA LIVRE
Três anos de Brasil de Fato da Redação
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ma vitória dos milhares de militantes sociais que acreditaram em um veículo de comunicação a partir de uma visão popular, o jornal Brasil de Fato completa três anos. Para comemorar o sucesso dessa construção coletiva de imprensa de esquerda, sem compromisso com correntes partidárias, e vinculada a todas as lutas do povo brasileiro, estão sendo programadas várias atividades em todas as capitais do país. Um dos marcos da celebração será o lançamento de É preciso Coragem para Mudar o Brasil, uma coletânea de entrevistas publicadas desde a edição número zero, que circulou no Fórum Social Mundial, em janeiro de 2003, e a partir da primeira edição de circulação regular, que foi para as bancas em março de 2003. Editado pela Expressão Popular, o livro traz o pensamento de ativistas e intelectuais brasileiros e estrangeiros, como Celso Furtado, Apolônio de Carvalho, Oscar Niemeyer, Aleida Guevara, Hugo Chávez e Yasser Arafat, entre outros. Temas como biodiversidade, os rumos da esquerda na América Latina, ofensivas do imperialismo e os efeitos devastadores do neoliberalismo são objeto de reflexões que não são encontradas nas páginas da grande imprensa. O terceiro aniversário do Brasil de Fato vai ser comemorado
A Educomunicação é um projeto que une a comunicação com a educação, levando para a sala de aula jornais, revistas e outras mídias. Os alunos aprendem como são feitos os veículos de comunicação e passam a fazer uma leitura crítica desses meios de informação. Em sua terceira edição, o fórum contará com a presença de Anita Freire, viúva do pedagogo Paulo Freire. O evento é voltado para profissionais da educação e da comunicação de todos os Estados. Local: Salão Paroquial Frei Rafael Proner, R. Frei Rafael Proner, Centro, Bandeirantes Mais informações: (43) 9103-8519
PERNAMBUCO MULHERES DE OLINDA Até 24 Exposição realizada pelo Ateliê Coletivo e pela Galeria da Ribeira para homenagear as mulheres, no mês de março. Trabalhos em pintu-
Divulgação
CEARÁ
SÃO PAULO POR ESTES SANTOS LATIFÚNDIOS 18, 20h Peça teatral apresentada pelo grupo “Os filhos da mãe...terra”, da Brigada de Cultura Patativa do Assaré do Coletivo de Cultura do MST. O espetáculo, de autoria do colombiano Guilhermo Maldonado Peréz, foi escrito em 1975 e aborda o violento processo de luta pela terra, que ocorreu na Colômbia nos primeiros meses de 1972, quando o movimento camponês organizado realizou mais de duas mil ocupações. A peça, que faz parte da corrente do Novo Teatro Colombiano, será apresentada no teatro Arena, na mostra de dramaturgia latinoamericana. A entrada é franca. Local: Teatro Eugênio Kusnet, R. Teodoro Baima, 94, São Paulo Mais informações: (11) 3256-9463
também com muitas festas e mobilizações, que serão divulgadas nas próximas edições. Em São Paulo, haverá um ato político cultural, dia 31 de março. Artistas, intelectuais e representantes de organizações populares vão par-
ticipar do evento, a partir das 19 horas. Local: Quadra da Gaviões da Fiel, Rua Cristina Tomaz, 183, Bom Retiro, São Paulo, SP Mais informações: (11) 2131-0800
ra, escultura e cerâmica que valorizam as artistas plásticas da região. Local: Ateliê Coletivo,Galeria da Ribeira, Mercado da Ribeira, R. de São Bento, 225, Olinda
um marco para a reconstrução da imagem da comunidade, uma rede formada por oito instituições e grupos da comunidade da Rocinha vai promover uma semana de mobilização social. Entre as atividades do encontro estão apresentações de teatro, música, sarau, exposição de fotos, um baile multicultural, campanha de prevenção à Aids, doação de sangue e coleta de medicamentos, além de atividades esportivas. Haverá ainda ações de cidadania, como fóruns de discussão sobre políticas públicas e uma grande campanha de arrecadação de alimentos para as creches comunitárias. Local: a definir Mais informações: (21) 3324-1331
RIO DE JANEIRO O PROFETA DAS ÁGUAS 25, 16h O filme, dirigido por Leopoldo Nunese Eduardo Passos, com o apoio da ONG Tortura Nunca Mais, conta a história de Galdino, líder comunitário e religioso que enfrentou a ditadura militar contra a construção da hidrelétrica de Ilha Solteira. Ele foi preso e torturado. Após a exibição, debate com o diretor e convidados. A entrada é franca. Local: Casa Rui Barbosa, R. São Clemente, 134, Rio de Janeiro MOBILIZAÇÃO SOCIAL NA ROCINHA 6 a 16 de abril Com o objetivo de estabelecer
RIO GRANDE DO SUL SEMINÁRIO NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS 15 a 18 O seminário pretende debater as várias questões que envolvem a temá-
DESLOCAMENTOS 18 de março a 14 de maio Durante três anos, a artista plástica, jornalista e fotógrafa Marie Ange Bordas conviveu com refugiados que vivem em albergues de Johannesburgo, na África do Sul, e Massy, na França, e no Campo de Refugiados de Kakuma, no Quênia. O resultado dessa experiência está nessa exposição de fotos, que traz também instalações de vídeo e som. A entrada é franca. Local: Edifício Sé, Pça. da Sé, 111, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3107-0498 A FARSA DO JUIZ CORREGEDOR 5 de abril a 25 de maio Montada pelo grupo teatral “Pato com Trufas”, a comédia conta a história de um julgamento executado por um corregedor corrupto e comilão, que abusa de seu poder para defender tendenciosamente um submisso cozinheiro – o qual, em benefício do próprio juiz, havia cometido algumas fraudes. A peça pretende dialogar com o público sobre a atemporalidade da corrupção, num período de CPIs no qual estamos vivemos. Entrada entre R$ 10 e R$ 20, às quartas e quintas-feiras, 21h. Local: Rua da Consolação, 1.623, Centro, São Paulo Mais informações: (11) 3255-5922 www.fabricasaopaulo.com.br
Arquivo Brasil de Fato
NACIONAL COOPERATIVA CENTRAL DE CRÉDITO RURAL DOS PEQ. AGRIC. E DA REFORMA AGRÁRIA – CREHNOR CENTRAL CNPJ: 05.879.577/0001-39
NIRE: 43400088547 DE 28/08/2003
ASSEMBLÉIA GERAL ORDINÁRIA E EXTRAORDINÁRIA
EDITAL DE CONVOCAÇÃO O Coordenador-Geral da Cooperativa Central de Crédito Rural dos Pequenos Agricultores e da Reforma Agrária – CREHNOR CENTRAL, inscrita no CNPJ sob o nº. 05.879.577/0001-39, estabelecida à Rua Pietro Cescon, 1622 sala 2, município de Sarandi – RS, no uso de suas atribuições que lhe confere o Estatuto Social, CONVOCA todos as associadas que nesta data somam 8 (oito) em condições de votar, para reunir em ASSEMBLÉIA GERAL ORDINÁRIA E EXTRAORDINÁRIA a ser realizada no dia 31 de março de 2006, nas dependências da sede social da Crehnor Sarandi, situada na Av. Expedicionário, 983 no município de Sarandi – RS, às 8h00 (oito horas) em primeira convocação com a presença mínima de 2/3 (dois terços) dos associados em condição de votar, às 9h00 (nove horas) em segunda convocação com a presença de metade mais um dos associados em condição de votar e às 10h00 (dez horas) em terceira e última convocação com a presença de qualquer número de associados em condição de votar, para deliberar sobre os seguintes assuntos:
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM MOVIMENTOS SOCIAIS Inscrições até dia 26 A Cáritas Brasileira, em parceira com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Instituto Cultiva, promove um curso via internet, para abordar questões como organizações populares e democracia participativa, sob uma perspectiva crítica e propositiva. Acontecerão dois encontros nacionais e encontros por região. Os interessados em participar devem fazer parte de organizações parceiras da Cáritas ou das pastorais que já realizem trabalho de base. As inscrições devem ser feitas pela internet. Mais informações: www.democraciaparticipativa.org/caritas
EM REGIME DE AGO 1) Prestação de Contas do exercício de 2005, compreendendo: a) Relatório de Gestão; b) Demonstrativo de Resultados do exercício social; c) Apresentação do Parecer do Conselho Fiscal; d) Apresentação do Parecer de Auditoria; e) Destinação dos resultados apurados no exercício; 2) Eleição da diretoria conforme estabelece o Art. 35 do Estatuto Social; 3) Eleição dos membros do Conselho Fiscal conforme estabelece o art. 47 do Estatuto Social; 4) Fixação do valor dos honorários, das gratificações e da cédula de presença dos membros do Órgão de Administração e Conselho Fiscal; A instalação da AGE acontecerá 1(uma) hora após o término da AGO, para deliberar sobre a seguinte Ordem do Dia: 1.Alteração do Art. 1º, I do Estatuto Social Sarandi(RS), 14 de Março de 2006. Valdemar Alves de Oliveira Coordenador-Geral OBS: A Assembléia não se realizará na sede da cooperativa por falta de acomodações aos delegados credenciados.
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CULTURA
De 16 a 22 de março de 2006
DESMONTE
Cultura sofre nas mãos dos tucanos Dafne Melo da Redação
Divulgação
Em São Paulo, acordo entre governo estadual e municipal pode pôr fim a espaço popular que existe há mais de 16 anos
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ais uma vez, as gestões tucanas de Geraldo Alckmin e José Serra, (governador do Estado e prefeito da cidade de São Paulo, respectivamente) tomam uma decisão unilateral e autoritária. Desta vez, uma “troca de imóveis” entre governo e prefeitura pode pôr em risco a maior casa de cultura popular da capital paulista, localizada no bairro da Lapa, conhecida como Tendal da Lapa. O objetivo do governo estadual é construir um Poupatempo. De acordo com informações do Poupatempo – Órgão que reúne presgoverno do Estadoras de serviços tado, o Poupade natureza pública num único espaço. tempo está preEm ano de eleições, visto para funo governador Geraldo Alckmin pretende cionar no seinstalar, ao todo, 23 gundo semestre postos no Estado. deste ano. Em troca, o Estado cedeu instalações próximas à biblioteca municipal. Segundo a professora de teatro Yandra Firmo, somente com a publicação do decreto que oficializou a troca, foi que funcionários e usuários do Tendal tiveram certeza da ação. “Em momento algum fomos consultados”, diz. Entretanto, a intenção da prefeitura já era sabida desde dezembro do ano passado, quando o fato foi noticiado por um jornal de bairro. Na ocasião, conta Yandra, os freqüentadores e funcionários tentaram ser recebidos
O Tendal atende principalmente à população de baixa renda, pois oferece cursos de teatro e espetáculos gratuitamente
pela Secretaria de Cultura e pela Subprefeitura da região. “Fomos ignorados”, desabafa a professora. Nem mesmo o coordenador do espaço, funcionário da prefeitura, Marcos Ozzeti, foi avisado com antecedência da operação. “Fiquei sabendo por causa da notícia do jornal aqui da região”, revela. De acordo com Yandra, apenas conversas informais foram feitas com o secretário de Cultura, José Roberto Sadek, uma vez que a prefeitura ainda não os recebeu formalmente. Ela
conta que não há nenhuma proposta concreta de viabilizar outro espaço para a casa de cultura. Da insatisfação dos freqüentadores do espaço nasceu um movimento em defesa do Tendal, que busca reverter a situação. “Vamos lutar para manter o espaço, acreditamos que o bom senso vá prevalecer”, diz Yandra. Thiago Vasconcelos, diretor da Companhia Antropofágica de Teatro, que utiliza a casa de cultura para ensaios e apresentação de peças de teatro, acredita ser im-
portante deixar claro que o movimento não é contra a construção do Poupatempo na região, mas acredita que outro lugar pode ser destinado à sua construção. “Com a quantidade de espaços existentes na zona oeste, por que utilizar um onde a arte já está instalada há mais de 16 anos?” Segundo o professor, a atitude dos tucanos mostra total insensibilidade. “Há pouquíssimos espaços como este na cidade, não faz sentido destruir o Tendal. É uma atitude que não pode ser perdoada”, avalia.
Marcos Ozzeti explica que, no espaço, hoje são realizadas 11 oficinas – como teatro, artes integradas, percussão e oratória –, oferecidas gratuitamente não só para a população local. Segundo pesquisas informais, conta Yandra, o público é majoritariamente de baixa renda, e com faixa etária entre 16 e 30 anos. Em média, são mil usuários atendidos por semana. Vasconcelos reforça: “Na minha oficina, a maior parte dos alunos não tem condições de pagar por um curso. Há, inclusive, bastante jovens desempregados, que se não puderem fazer teatro no Tendal, não vão mais fazer”. Além disso, o espaço é concedido gratuitamente para a realização de shows, peças de teatro e eventos, “desde que sejam gratuitos e abertos ao público”, explica Ozzeti. Duas ações civis públicas já foram impetradas no Ministério Público, e aguardam uma reposta. Além disso, diz Yandra, o movimento vai seguir com mobilizações. Em uma delas, a idéia é levar até a prefeitura um abaixo-assinado com mais de 5 mil assinaturas, além de documento com todas a história do Tendal. “Queremos ser recebidos pelo prefeito e sermos ouvidos”, diz Yandra. Visite a página do Tendal da Lapa na internet e acompanhe a resistência desta casa de cultura que luta contra a política de desmonte cultural de Serra e Alckmin: www.vivaotendal.net
TEATRO
40 anos de resistência à dominação cultural Gissela Mate de São Paulo (SP) O grupo de teatro União e Olho Vivo é considerado o mais antigo das Américas. São 40 anos de trajetória lutando pela democratização da cultura. O grupo surgiu em 1966 com objetivo que mantém até hoje: levar aos bairros pobres da cidade de São Paulo peças de teatro que nunca vão para as periferias. Fundador do grupo desde sua concepção, o diretor de teatro César Vieira fala sobre a tática do “teatro Robin Hood” – personagem cuja característica era tomar dos ricos e dar aos pobres. Com formação em Direito, Vieira fala com propriedade da resistência cultural que o teatro representou durante a ditadura, período em que esteve preso. Ele também foi um dos maiores advogados de presos políticos do regime militar. Brasil de Fato – Qual a importância do teatro na cultura brasileira? César Vieira – O teatro fala ao coletivo diretamente. É diferente da televisão e do cinema, em que há uma máquina distante. O teatro é olho no olho. Especialmente no Brasil, tem representado um fator de resistência às investidas de potências que querem dominar culturalmente não apenas o Brasil, mas todos os países do mundo. O teatro vem sendo um sinônimo de resistência por levar ao público coisas que falam de liberdade e justiça social. BF – Nos períodos de repressão política, o teatro se caracterizou como elemento de resistência. Como o senhor avalia o papel do teatro na construção de uma resistência nos dias de hoje? Vieira – Na época da ditadura, autores como Plínio Marcos, (Gianfrancesco) Guarnieri, Dias Gomes tiveram papel preponderante de resistência e o sistema estabeleceu uma censura terrível em cima do teatro. Para você liberar uma peça, era preciso submeter o texto à leitura de censores
despreparados culturalmente, que poderiam liberá-la com cortes ou proibí-la. Terminada essa modalidade de censura, fazia-se outra, a do espetáculo. Eles poderiam cortar o espetáculo pelo que estavam lendo e também pelo próprio espetáculo. Foi uma fase terrível, de muita repressão. Hoje pode-se dizer que o teatro tem coisas muito ruins, principalmente nas grandes capitais em que há uma predominância de espetáculos estrangeiros, que tiveram êxito em Nova York e, a partir da tese de que “se é bom pros Estados Unidos, é bom para o Brasil”. As peças vêm pra cá, mas o fato é que elas não têm nada a ver com a nossa realidade cultural, nada a ver com a vida do povo brasileiro, com suas angústias, necessidades e alegrias. Falo de coisas como O Fantasma da Ópera, Os Miseráveis. Isso, infelizmente, é um modismo que está vigorando. Coloca-se para as classes mais abastadas um preço de R$ 100, R$ 200, R$ 300, para assistir a esse tipo de coisa. Mas existe muita resistência, sobretudo para aqueles que fazem teatro como uma coisa coletiva, o teatro de grupo, que fala de coisas muito poéticas e muito bonitas e que tem a ver com nossa realidade. BF – Esses espetáculos estrangeiros acabam disseminando a idéia de que teatro não é para o povo... Vieira – Infelizmente, a cultura é algo inacessível ao povo brasileiro. Assim é com o teatro também. Caríssimo, se localiza em grandes capitais, no Centro da cidade. Fica impossível para o povo que reside na periferia. Tem que pegar condução em horários problemáticos, a peça às vezes é muito cara, muito intelectualizada. Aí o teatro se transforma em uma arte de elite. Mas existem resistentes, grupos, autores, que fazem um trabalho sério e acessível ao povo. Trabalhos que falam de coisas de uma forma estética muito bem-feita, porque é importante que a estética, a apresentação do teatro, seja algo
inteligível. E, claro, com um preço acessível. Então, no geral, eu diria que há cerca de 40%, 50% de iniciativas de teatro num sentido de liberdade e de justiça social. BF – Como funciona a técnica Robin Hood? Vieira – O União e Olho Vivo vai fazer 40 anos. Nosso objetivo é levar teatro e trocar experiências com o povo de bairros populares. O poder público dificilmente irá colaborar com a gente porque não fazemos uma arte do sistema. Por isso, para cenários, figurinos, transporte, alimentação e iluminação, sobrevivemos com a tática que chamamos de Robin Hood, personagem que tomava dos ricos e distribuía aos pobres. Atualmente estamos apresentando o espetáculo João Cândido do Brasil, a revolta da chibata. Vendemos o ingresso a um bom preço para clubes, prefeituras e secretarias de Cultura e com esse dinheiro a gente vai aos bairros gratuitamente. BF – Como foram os 40 anos do União e Olho Vivo? Vieira – O grupo nasceu em 1966, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, com o objetivo de montar espetáculos que falassem da realidade, da felicidade e das dificuldades do povo brasileiro. Visava não apenas o público do bairro do Bixiga, mas dos bairros populares da cidade de São Paulo. Inicialmente o grupo se chamava Teatro dos 11. Depois se afastou do Centro Acadêmico 11 de agosto (da Faculdade de Direito) e passou a se chamar União e Olho Vivo. A peça inicial foi Corinthians, meu amor. Em todos esses anos de estrada, foram mais de 3 mil espetáculos e 3 milhões de espectadores. O atual espetáculo, João Cândido, fica em cartaz até o fim do ano e faz parte da comemoração de nossos 40 anos. Aliás, segundo Augusto Boal (diretor do Teatro dos Oprimidos), é um recorde de um grupo de teatro se não do mundo, da América. O grupo é composto por 20 pessoas,
dos quais quatro estão desde o princípio. O elenco tem pessoas que estão no grupo há dez, onze anos. Apesar de ter mudado muito a formação, a idéia de base continua: trocar experiências com a população carente, por meio de espetáculos que falem do Brasil e que levem questionamentos para os públicos dos bairros. BF – Que iniciativas culturais se contrapõem à cultura hegemônica, hoje? Vieira – Em São Paulo temos o movimento Arte contra a Barbárie, que inicialmente partiu do teatro, e depois se espalhou para outras áreas como artes plásticas, cinema, circo etc. O entendimento do movimento é de que o teatro não seja uma coisa de eventos, ou para pessoas privilegiadas econômica e culturalmente. Esse movimento é uma das coisas mais importantes que tem acontecido para fomentar a nossa cultura participante, e é esteticamente muito bem-feito. Outra coisa importante: houve um florescimento no Brasil, há 15, 20 anos, do teatro de grupo, grupos de pessoas reunidas em torno de um objetivo para fazer arte. Durante um bom tempo esqueceu-se um pouco desse tipo de teatro, mas agora reaparece esse movimento de teatro coletivo com muita força. Tivemos, por exemplo, o lançamento do anuário de teatro de grupo, que reuniu a experiência de 92 grupos. BF – Qual sua avaliação das políticas públicas de incentivo à cultura, especialmente ao teatro? Vieira – As leis de incentivo são muito fracas e favorecem quem já está comendo caviar e quer comer faisão. São pessoas que às vezes não precisam de muita ajuda, mas a recebem pela lei Rouanet, que transfere às transnacionais o direito de escolha. Ajudam e colaboram apenas com espetáculos que falem a seu favor ou que falem de flores. Mas não vão querer subvencionar espetáculos que falem da realidade brasileira. A política cultural
brasileira tem que ser mudada, mais ativa, mais dinâmica. Houve avanços, mas poucos. As coisas têm que ser mais discutidas com as bases, os artistas devem opinar em profundidade junto ao ministério. Deve haver maior participação da população cultural, seja de atores, escritores, artistas plásticos, pessoal das artes populares, do circo, da capoeira. E que sejam programas e projetos em continuidade e não apenas projetos que visem um festival, a inauguração de um teatro, mas dentro de uma política cultural diversificada e de continuidade. É preciso também estar de acordo com as necessidades brasileiras de cada região. A cultura de São Luís do Maranhão, por exemplo, é completamente diferente da cultura de Porto Alegre, e tem que ser amparada dentro de suas necessidades.
Graciela Rodriguez
Quem é César Vieira é o nome artístico do advogado de presos políticos Idibal Piveta. Antes de ser preso, em 1973, já tinha escrito várias peças teatrais, encenadas no circuito comercial. Em 1970, fundou o Teatro do Onze, do Centro Acadêmico 11 de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que deu origem ao Teatro Popular União e Olho Vivo. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e integra a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)-São Paulo.