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Ano 4 • Número 164

R$ 2,00 São Paulo • De 20 a 26 de abril de 2006

Agronegócio, impunidade e violência N

o dia 17, celebrado hoje como Dia Internacional da Luta Camponesa, o massacre de Eldorado dos Carajás (PA) completou dez anos. Marchas, vigílias e sessões solenes em 13 Estados lembraram que os dois únicos condenados da operação, em que foram assassinados 19 trabalhadores rurais, continuam em liberdade. O governador de então, assim como o secretário de Segurança Pública, sequer foram indiciados. Os 155 policiais autores dos disparos também estão soltos. Enquanto isso, dia 6, o agronegócio foi beneficiado pelo governo com um pacote agrícola de R$ 16,8 bilhões. Como já se tornou costume, os latifundiários terão suas dívidas roladas e ainda receberão mais crédito. A 60 quilômetros de Carajás – O prefeito de Parauapebas, Darci José Lermen (PT), critica a Justiça, defende os sem-terra e cobra a reestatização da Vale do Rio Doce. Págs. 2, 3 e 8

Anderson Barbosa

Marcello Casal Jr/ABr

Enquanto trabalhadores rurais fazem jornada nacional por justiça e reforma agrária, governo rola dívida de latifundiários

Em Cuba, movimentos buscam unidade Redes de organizações sociais e movimentos populares de 36 países traçaram novas estratégias para “unir forças” no continente americano e combater as políticas dos Estados Unidos. O 5º Encontro Hemisférico de Luta contra a Alca, realizado em Havana, enfatizou que a disputa pela consciência popular é fundamental nessa caminhada. Na ocasião, foram discutidas as novas ofensivas dos EUA, como a Aliança de Segurança e Prosperidade da América do Norte (Aspan) e os Tratados de Livre Comércio (TLCs). Pág. 9

Estudantes discutem participação política cional dos Estudantes (UNE). Delegados representando jovens de todo o país decidiram elaborar um documento a ser apresentado aos candidatos à Presidência. Pág. 5 Marcio Baraldi

O papel dos estudantes no processo político brasileiro foi tema de debates em Campinas (SP), de 13 a 16, durante o 11° Conselho Nacional de Entidades de Base (Coneb) da União Na-

Justiça de São Paulo age contra o ECA O corregedor-geral do Tribunal de Justiça de São Paulo desrespeita o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao determinar a transferência de 131 internos do Complexo do Tatuapé, da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), para a Penitenciária Feminina do Tatuapé. Pág. 6

Na Guatemala, movimentos fazem ultimato Pág. 10

Bancos mantêm juros altos; governo se omite

A cultura do consumo sem necessidade

Enquanto a queda na taxa básica de juros, a Selic, foi de 17% desde agosto de 2005, os juros cobrados pelos bancos praticamente não caíram. Para agravar o problema, o governo nem tem usado os bancos públicos para reduzir os juros do dinheiro emprestado à população. Pág. 7

Herança do padrão de vida estadunidense, os shopping centers estimulam o consumo desenfreado. São templos de uma conduta doentia, na opinião da socióloga Valquíria Padilha, que aponta: os centros comerciais destróem o espaço público e deturpam o conceito de cidadania. Pág. 16

Fidel: “Queriam fuzilar Hugo Chávez” Pág. 11

Novas luzes sobre genocídio em Ruanda Pág. 13

Em São Paulo, dia 17, ato lembra as vítimas do latifúndio, há 10 anos

Fecham cursos que integravam o ProUni Após um ano e meio de funcionamento do Programa Universidade Para Todos (ProUni), continuam surgindo críticas e denúncias. Em São Paulo, faculdades que participavam da iniciativa

fecharam cursos; os alunos bolsistas denunciam a falta de amparo do Ministério da Educação na hora de realizar a transferência para outras faculdades. Pág. 4

Indymedia/ New York

Maria Alice Oliveira, viúva de Joaquim Pereira Alves, assassinado em Carajás

Nos Estados Unidos, imigrantes exigem fim da política de perseguição de Bush

Nos Estados Unidos, protestos e boicote Organizações de imigrantes e dos direitos humanos pretendem ir além dos protestos de rua que chegam a reunir milhões nos Estados Unidos há algumas semanas. Para 1º de maio, promovem greve geral dos imigrantes e boicote de produtos estadunidenses em países latino-americanos. Sindicatos e movimentos sociais do México e da Guatemala já divulgaram apoio à iniciativa, que tem como objetivo protestar contra a proposta de lei que prevê criminalização dos imigrantes ilegais. Pág. 12

E mais: FRANÇA 1 – Imigrantes sem papéis ocupam prédio abandonado em Paris. Lutam contra o preconceito e a perseguição do governo, que os considera ilegais no país e pretende expulsá-los. Pág. 12 FRANÇA 2 – O escritor português Miguel Urbano Rodrigues avalia o impacto das manifestações que tomaram o país: a burguesia européia se amedrontou. Pág. 14


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De 20 a 26 de abril de 2006

CONSELHO POLÍTICO Achille Lollo • Ari Alberti • Ariovaldo Umbelino de Oliveira • Assunção Ernandes• Aton Fon Filho • Augusto Boal • Cácia Cortez • Carlos Marés • Carlos Nelson Coutinho • Celso Membrides Sávio • César Benjamim • Claus Germer • Dom DemétrioValentini • Dom Mauro Morelli • Dom Tomás Balduíno • Edmilson Costa • Elena Vettorazzo • Emir Sader • Egon Krakhecke • Fábio de Barros Pereira • Fernando Altemeyer • Fernando Morais • Francisco de Oliveira • Frei Sérgio Görgen • Horácio Martins • Ivan Cavalcanti Proença • Ivan Valente • Jasper Lopes Bastos • Jesus Antunes • João Alfredo • João Capibaribe • João José Reis • João José Sady • João Pedro Stedile • Laurindo Lalo Leal Filho • Leandro Konder • Luís Alberto • Luís Arnaldo • Luís Carlos Guedes Pinto • Luís Fernandes • Luis Gonzaga (Gegê) • Luiz Eduardo Greenhalgh • Marcelo Goulart • Marcos Arruda • Maria Dirlene Marques • Mário Maestri • Michael Löwy • Nilo Batista • Oscar Niemeyer • Pastor Werner Fuchs • Pedro Ivo • Raul Pont • Reinaldo Gonçalves • Renato Tapajós • Ricardo Antunes • Ricardo Rezende Figueira • Roberto Romano • Rodolfo Salm • Rosângela Ribeiro Gil • Sebastião Salgado • Sérgio Barbosa de Almeida • Sérgio Carvalho • Sérgio Haddad • Tatau Godinho • Uriel Villas Boas • Valério Arcary • Valter Uzzo • Vito Gianotti • Vladimir Araújo • Vladimir Sacheta • Zilda Cosme Ferreira •Também participam do Conselho Político os membros do Conselho Editorial e jornalistas colaboradores

CONSELHO EDITORIAL Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

• Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Isa Gomes, Jorge Pereira Filho, Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, 5555 João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, 5555 Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César 55 Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus 5 5555 Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dilair Aguiar • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 55 Administração: Silvio Sampaio 55 Programação: Equipe de sistemas 55 Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira 55 Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 55555555555 Campos Elíseos – CEP 01218-010 55555555555 PABX (11) 2131-0800 – São Paulo/SP 55555555555 redacao@brasildefato.com.br 55555555555 Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. 55 Distribuição exclusiva para todo o Brasil em bancas de jornais e revistas 55 Fernando Chinaglia 55 Rua Teodoro da Silva, 907 55 Tel.: (21) 3875-7766 55 Rio de Janeiro – RJ

NOSSA OPINIÃO

Que democracia é esta?

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burguesia descobriu que a democracia pode ser usada para reprimir a classe trabalhadora de um modo mais eficaz do que a ditadura. Para isso basta dispor de um sistema legal adrede preparado para punir os pobres e proteger os ricos, e de um aparelho judicial conivente com o sistema de dominação. Neste exato momento esse mecanismo está funcionando a todo vapor. A classe trabalhadora assiste atônita, e sem entender, pobres mulheres do campo e um líder camponês reconhecido internacionalmente serem processados por um ato de desobediência civil – enquanto os principais responsáveis por um massacre que ceifou 19 vidas continuam em liberdade, apesar das reiteradas condenações ditadas pelo Júri popular. O crime ocorreu há dez anos e durante todo esse tempo a Justiça não foi capaz de terminar o processo aberto contra os responsáveis. Não há algo errado nisso? Não há, não. É assim mesmo. O sistema não existe para punir o criminoso poderoso. O habeas corpus impetrado, anos atrás, para libertar um sem-terra levou um mês para ser julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Na mesma ocasião, o “investidor” Nagi Nahas, preso por crime do colarinho branco, ficou menos de uma semana atrás das grades. O mesmo Tribunal, a mesma lei. Como é que pode? Pode. É assim mesmo que o Estado democrático da burguesia funciona. O mínimo que os sem-terra po-

diam fazer diante dessa calamidade é o que estão fazendo: atos públicos de protesto, passeatas, ocupações de estradas, fazendas e prédios públicos, saques de caminhões com alimentos. Para dizer ao país que não esqueceram dos irmãos de infortúnio sacrificados em Eldorado dos Carajás e que exigem a punição dos responsáveis pelos crimes. Foi o bastante para que a grande imprensa burguesa detonasse suas baterias, clamando contra a desordem, a violência contra o regime estabelecido, o perigo do “terror vermelho”. Sem dúvida, as manifestações desta semana são rudes, embora não tenham causado nenhum dano físico a qualquer pessoa. Mas, de que modo uma sociedade insensível quer que pessoas injustiçadas tenham seus direitos reconhecidos? Os sem-terra estão clamando há vários anos contra o estado de coisas que impera no campo, onde jagunços e pistoleiros, a mando dos grandes fazendeiros e do agronegócio, semeiam o medo e a morte entre as populações rurais. Mas há sempre um artigo de lei a impossibilitar uma desapropriação; sempre um parágrafo único a proteger a liberdade, senão do assassino (que é sempre um homem do povo degenerado), do mandante; sempre um juíz ou um tribunal para usar a lei contra a Justiça e ser implacável contra o sem-terra que protestar de forma mais veemente. A legislação criminal e a le-

gislação processual precisam ser modificadas. Neste ano eleitoral, os eleitores do campo precisam usar o poder do voto para eleger deputados e senadores comprometidos com a mudança dessas leis, a fim de impedir que a impunidade dos poderosos continue a ser a regra no meio rural. Isso precisa ser feito urgentemente, pois a classe dominante brasileira, na sua miopia, não consegue ver que, sem uma reforma agrária, a tensão social só tenderá a agravarse, pois o lento crescimento da economia fechou a válvula de escape que existia anteriormente: a migração para as cidades. Sem meios de sobreviver no campo e sem possibilidade de encontrar um emprego nas cidades, o que a classe dominante quer que os sem-terra façam? O mais incrível é que, pertinho de nós, há um exemplo gritante do que acontece quando o regime fecha todas as portas de sobrevivência à população rural. Na Colômbia, uma situação muito parecida com a que está se configurando aqui estilhaçou o poder do Estado colombiano no campo entre três forças que se entredevoram: a guerrilha, o narcotráfico e os paramilitares. Quem não deseja esse destino para o Brasil precisa juntarse aos que estão se solidarizando com os sem-terra e exigindo uma verdadeira reforma agrária, até como forma de redimir a sociedade brasileira de horrores como o massacre de Eldorado dos Carajás.

FALA ZÉ

OHI

CARTAS DOS LEITORES AINDA É POSSÍVEL Depois de muito anos, felizmente temos um jornal brasileiro – Brasil de Fato – para manifestar as questões populares que durante os cinco séculos de nossa história vinham sendo embutidas ou sem espaço na opinião pública. Agora, temos que segurar esta oportunidade, fazendo com que sejamos unidos, solidários e responsáveis pela manutenção deste jornal, pois somente dessa forma ele poderá sobreviver, sendo indispensável ao país e sua população. Com determinação e coragem podemos continuar a luta pelo Brasil de Fato, segundo as condições de cada participante, para que assim possamos nos fortalecer e enfrentar, através da razão e sabedoria, as forças contrárias aos interesses populares. Quando falamos em união, lembramo-nos das formigas e abelhas que sempre reunidas podem enfrentar os grandes adversários, sem que esses pequenos animais tenham a racionalidade humana. Com boa vontade e consciência será possível a transformação do mundo em que vivemos. Arlindo de Melo Freire Natal (RN) Por correio eletrônico DITADURA Fiquei muito decepcionado com a edição 161 deste Brasil de Fato. Na época de mais um aniversário do golpe de primeiro de abril, vocês deram uma página inteira para falar da ditadura militar na Argentina. Não que eles não mereçam. Afinal lá, pelo menos, tenta-se acertar contas com passado e colocar na cadeia os criminosos. Mas vocês não esqueceram nada não? No Brasil teve uma ditadura militar, não? Acabou e não se fala mais nisso? Até o programa do doutor fantástico democrático Marinho deu mais espaço que vocês. Eu pensei que este Brasil fosse

de Fato resgatar a memória deste país. Talvez seja pedir demais. Marcelo Dourado Pelotas (RS) Por correio eletrônico MAZELAS DO INSS Tenho visto constantes reportagens sobre o INSS, que a cada dia me faz perguntar, isso realmente é um beneficio nosso, ou está aí para mostrar o quanto somos bonecos e humilhados pelos órgãos do governo. A minha história não é diferente de milhares de brasileiros que “não têm mais o direito de ficar doentes”, e se o mesmo “insiste” em ficar tem que se preparar para uma série de obstáculos e humilhações, como por exemplo, o fato de seu corpo ter que ignorar a dor, a fraqueza ocasionada pela doença e se prestar a se pôr como um verdadeiro palhaço, enfrentando filas e uma série de funcionários inaptos e mal educados, sem a menor compaixão, frente a um sistema que não funciona, te explora e rouba o seu dinheiro. Será que vale a pena ser contribuinte, pois a nós jovens ainda paira a dúvida: será que um dia conseguirei me aposentar, este beneficio ainda existirá até lá? Os nossos direitos ainda existirão neste país que empurra a nossa bandeira na lama e massacra o proletariado? Simone de Souza Silva São Paulo (SP) Por correio eletrônico

ERRATA A taxa de desemprego na França é de 8,5% da população economicamente ativa, estimada em 23 milhões de pessoas, e não de 22%, como publicado na página 11 da edição passada. O segundo número corresponde à taxa de desemprego entre os jovens ativos.

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815

CRÔNICA

O futuro da vida Marcelo Barros A preocupação com o futuro da vida no planeta Terra foi o assunto do Fórum inter-religioso que, na semana passada, reuniu milhares de pessoas em Vitória, bela cidade do país basco, no norte da Espanha. Um dos pontos de partida daquela assembléia foi a afirmação de Vandana Shiva: “Um desafio para o planeta Terra é sobreviver ao atual modelo de desenvolvimento que a sociedade ocidental consagrou como o único”. No Brasil, aconteceu em Curitiba a conferência mundial sobre biodiversidade. No final, no jornal O Estado de S. Paulo, escreveu Washington Novaes: “Qual é a urgência real para as transformações nos nossos modos de viver? Quanto tempo o mundo pode esperar pelo cumprimento de objetivos como os das Metas do Milênio? Serão as grandes convenções internacionais caminho eficiente para assegurarem condições para a vida no planeta e a redução das brutais desigualdades entre seres humanos, países, regiões?” A revista Science, de 16 de fevereiro, publicou as descobertas de E. Rignot e P. Kanagaratnan, dois dos maiores geólogos do mundo. Eles

mostram que as geleiras do leste da Groelândia estão se desfazendo a uma velocidade de 38 metros por dia e 14 quilômetros por ano. Está também se derretendo o gelo do Antártico, do Himalaia, dos Alpes e dos Andes. O resultado disso é um aumento do nível do mar, mudança das correntes marítimas responsáveis pelo clima nos continentes e a temperatura da terra sofreu um aumento de quase três graus, provocando secas no hemisfério sul e invernos mais rigorosos no norte. Fui convidado para falar aos participantes do Fórum inter-religioso de Vitória sobre a espiritualidade ecológica como contribuição ao futuro da Vida. As pessoas se perguntam que contribuição as religiões e tradições espirituais podem oferecer à humanidade para transformar o modo de nos relacionarmos com a terra, a água e todos os seres do universo. Para as religiões contribuírem efetivamente em garantir o futuro da vida, é fundamental que sejam humildes e abertas ao diálogo com a ciência atual. Em poucos anos, a ciência passou por um desenvolvimento maior do que toda a evolu-

ção científica de vários séculos. As ciências atuais são marcadas pela interdisciplinaridade. A Cosmologia procura um paradigma mais holístico na abordagem da natureza e das relações entre o ser humano e o universo. O universo aparece como um complexo conjunto de possibilidades múltiplas e indeterminadas. Todos os caminhos espirituais podem nos ajudar a nos converter ao cuidado solícito com a casa comum e com todos os seres que a habitam. Somos chamados a reorganizar nossos valores e optar por um estilo de vida que não comprometa o futuro. Assim, daremos impulso ao desabrochar das melhores promessas. Então, firmaremos no mundo uma cultura não violenta, um modo de viver construtivo e sociedades nas quais a compaixão seja um idioma comum. Para além do deserto, sempre há um caminho, uma vida com futuro. Marcelo Barros é monge beneditino. É autor de 27 livros, entre os quais está no prelo A Vida se torna Aliança, (Como orar ecumenicamente os Salmos), Ed. CEBI-Rede da Paz, 2005

Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores. • Como participar: Você pode colaborar enviando sugestões de reportagens, denúncias, textos opinativos, imagens. Também pode integrar a equipe de divulgação e venda de assinaturas. • Cadastre-se pela internet: www.brasildefato.com.br. • Quanto custa: O jornal Brasil de Fato custa R$ 2,00 cada exemplar avulso. A assinatura anual, que dá direito a 52 exemplares, custa R$ 100,00. Você também pode fazer uma assinatura semestral, com direito a 26 exemplares, por R$ 50,00. • Reportagens: As reportagens publicadas no jornal podem ser reproduzidas em outros veículos – jornais, revistas, e páginas da internet, sem qualquer custo, desde que citada a fonte. • Comitês de apoio: Os comitês de apoio constituem uma parte vital da estrutura de funcionamento do jornal. Eles são formados nos Estados e funcionam como agência de notícias e divulgadores do jornal. São fundamentais para dar visibilidade a um Brasil desconhecido. Sem eles, o jornal ficaria restrito ao chamado eixo Rio-São Paulo, reproduzindo uma nefasta tradição da “grande mídia”. Participe você também do comitê de apoio em seu Estado. Para mais informações entre em contato. • Acesse a nossa página na Internet: www.brasildefato.com.br


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NACIONAL LUTA PELA TERRA

MST lembra Carajás e cobra justiça da Redação

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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realizou uma série de ações no Dia Internacional da Luta Camponesa da Via Campesina, 17 de abril, quando manifestações, marchas, vigílias e sessões solenes em 13 Estados homenagearam a memória dos 19 trabalhadores assassinados em 1996 pela Polícia Militar do Pará, no Massacre de Eldorado dos Carajás. Até o final da semana, mais atividades estão previstas em outros Estados. O massacre é um caso exemplar da impunidade: depois de uma década, permanecem soltos os 155 policiais participantes da operação. Dos 144 incriminados, os dois únicos condenados – o coronel Mário Collares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira – estão em liberdade. Os responsáveis políticos, o governador Almir Gabriel e o secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, não foram indiciados. “O MST acredita que apenas uma reforma agrária integral e genuína, que desconcentre a propriedade da terra e resolva os problemas dos pobres no campo, vai acabar com a violência das áreas rurais. Nesse sentido, exigimos do governo federal o assentamento das mais de 150 mil famílias acampadas nas beiras de estrada”, diz nota da coordenação nacional do MST, divulgada dia 17. As ações do MST nesta jornada de lutas apresentam três eixos: relembram o Massacre de Eldorado dos Carajás, exigem a aceleração do processo de reforma agrária (com o assentamento das 150 mil famílias acampadas e a atualização dos índi-

Douglas Mansur/ Novo Movimento

Jornada nacional de mobilizações denuncia impunidade e combate o agronegócio

Indenização não convence

Ato no Centro de São Paulo recorda o massacre dos 19 trabalhadores rurais sem terra em Eldorado dos Carajás

ces de produtividade), e combatem o modelo do agronegócio.

MANIFESTAÇÕES NACIONAIS Nas regiões Norte e Nordeste, famílias sem-terra fizeram vigílias em Rondônia, ocupação na Bahia, manifestações na Paraíba e em Alagoas. No Pará, houve um ato ecumênico e um ato político na mesma hora e no mesmo local onde aconteceu o massacre. Em Pernambuco, cinco estradas foram fechadas e as famílias reivindicaram as cestas básicas que estão atrasadas quatro meses.

No Sudeste, foi realizado um protesto em defesa dos direitos humanos no centro de São Paulo, um ato em repúdio à impunidade em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, e duas ocupações de terra em Minas Gerais. Na região sul, os sem-terra catarinenses fizeram uma marcha. No Rio Grande do Sul, foram trancados 12 pontos de rodovias por 19 minutos para lembrar as 19 mortes. No Distrito Federal, além das ocupações de duas fazendas, parlamentares realizaram sessões solenes na Câmara dos Deputados

Federais e na Assembléia Legislativa. No Mato Grosso, camponeses fizeram uma vigília em frente à sede da Justiça Federal de Cuiabá. “Só com um processo efetivo de reforma agrária, a consolidação da agricultura camponesa, casada com agroindústrias, assistência técnica, educação e uma nova tecnologia agrícola que respeite o ambiente será possível melhorar a condição de vida dos camponeses, diminuir substancialmente a violência e acabar com a fome de milhares de brasileiros”, diz a nota do MST.

O governo do Estado do Pará concordou, dia 18, em cumprir uma determinação da Justiça que estabeleceu, no final do ano passado, indenização de R$ 1,2 milhão para 20 trabalhadores feridos em Carajás. “Isso não é justo. Devem ser indenizados todos os 67 feridos. Hoje são 67 porque três morreram ao longo desses dez anos, elevando o número de mortos no Massacre para 22”, diz Charles Trocate, liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pará. A saúde dos mutilados de Carajás é preocupante. “O Estado fala na mídia que dá assistência médica, mas isso não é verdade”, diz Antônio Alves, coordenador do grupo de mutilados do massacre, rebatendo declarações da Secretaria de Estado da Saúde do Pará, que assegura prestar todo atendimento aos feridos. Muitos feridos têm dificuldade para andar, trabalhar e não podem ficar expostos ao sol. Tarefa difícil para quem vive da roça para garantir o alimento em casa. “Naquela época eu trabalhava. Hoje, trabalho algumas horas e largo por causa da cabeça. Só vive doendo direto”, conta um sem-terra sobrevivente.

AGRONEGÓCIO

Marcelo Netto Rodrigues da Redação Como sempre, os latifundiários tiveram parte de suas dívidas rolada pelo governo e, como se não bastasse, receberam mais crédito. Um absurdo, diriam os chefões do agronegócio, se a oferta fosse feita a assentados pela reforma agrária ou a pequenos agricultores. Como os beneficiados são eles próprios – aliás, beneficiados há 25 anos –, não vêem nada de errado em usar dinheiro público para saldar negócios particulares. E ainda acham pouco. O pacote agrícola de R$ 16,8 bilhões, anunciado dia 6, que inclui a renegociação de dívidas no valor de R$ 7,7 bilhões e a liberação de novos recursos, está sendo considerado apenas um quebra-galho por representantes do agronegócio. O ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues – proprietário de fazendas em Ribeirão Preto e no sul do Maranhão –, já adiantou: um novo pacote deve ser divulgado nas próximas semanas. Em nota, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) comentou o oportunismo: “Na hora dos altos preços e dos lucros fantásticos das transnacionais e das exportações, eles (agronegócio) defendem o mercado. Na hora da crise, recorrem ao Estado para garantir seus lucros”. Estima-se que a dívida dos latifundiários do agronegócio – roladas desde a década de 1980 – atinja hoje R$ 30 bilhões, com uma taxa de inadimplência em torno de 90%. Em 1998, por exemplo, algumas dívidas foram renegociadas para pagamento em parcelas anuais, até o ano de 2025. Já entre os pequenos produtores e assenta-

Arquivo Brasil de Fato

De novo, governo beneficia latifundiários

Na política agrária de Lula, os beneficiados são criadores de gado e latifundiários

dos, os atrasos no pagamento são inferiores a 2%.

ESPETÁCULO DE MENTIRA O problema é que nem para plantar esse dinheiro está sendo usado. Desde a década de 1980, a área total cultivada com lavoura temporária no Brasil não passa de 45 milhões de hectares. Se o agronegócio está realmente in-

teressado em produzir, por que, passados 26 anos, esses milhões de hectares não aumentam? A resposta é lógica. Porque 50% dos imóveis rurais do agronegócio são improdutivos. São 54.781 latifúndios improdutivos, entre os 111.495 existentes no país (acima de 15 módulos fiscais). Trata-se de grandes propriedades – 120 milhões de hec-

tares, mantidos como reserva de valor, para especulação e obtenção de financiamentos – que, de acordo com dados de 2003 enviados pelos próprios proprietários ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), não atingem os níveis de produtividade mínimos exigidos pela Constituição. A falácia do chamado “desenvolvimento fantástico do agronegócio” é facilmente desmascarada também quando se observa a tremenda queda nas vendas de máquinas agrícolas no Brasil, nos últimos anos. Os números, insuspeitos, são da Associação Nacional dos Fabricantes de Máquinas Agrícolas (Anfavea). Em 1976, foram compradas 80.215 unidades no país. Em 2000, 24.291 unidades, enquanto em 2005 o número despencou para 17.729 unidades. Pelos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no último censo, as fazendas com mais de 2 mil hectares tinham em seu patrimônio apenas 35 mil tratores. As pequenas propriedades,

Sem saber, presidente da Fiesp defende reforma agrária Sem a mínima noção das leis que garantem a reforma agrária no Brasil, o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, confirmou, indiretamente, que todas as grandes fazendas da região de Ribeirão Preto devem ser desapropriadas. Skaf disse ao jornal Folha de S.Paulo que tem em mãos um estudo segundo o qual apenas 14% do solo da região de Ribeirão Preto são ocupados por matas. O restante são áreas produtivas, ou ocupadas por infra-estrutura, como estradas. Ou seja, uma situação totalmente contra a lei, suficiente para desapropriar todas as fazendas apontadas nesse estudo. Pelo artigo 186 da Constituição, uma fazenda deve ser desapropriada se não não for cumprido mesmo que apenas um dos quatro requisitos

exigidos. A preservação compulsória de 20% de mata nativa é um desses requisitos. Skaf quer ir mais fundo. Desconfiado de que a mesma situação deve se repetir em todo o Estado, vai gastar R$ 2 milhões em um estudo que sustente a sua proposta: diminuir o percentual de preservação ambiental exigido por lei – que ele desconhece pertencer a uma lei mais ampla, a de reforma agrária. Ele poderia ter prestado atenção às declarações do ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, durante homenagem aos sem-terra, em Eldorado dos Carajás: “O MST é mal compreendido. É um movimento que tem compromisso com as leis e com as regras da democracia”. Dessa forma, teria evitado agir como réu confesso do agronegócio, sem saber. (MNR)

com menos de 200 hectares, tinham mais de 500 mil.

GOVERNO LULA Apesar de tantos números favoráveis à pequena agricultura, o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva parece não querer alterar a história e segue dando prioridade aos latifundiários devedores. No ano de 2004, enquanto o agronegócio recebeu R$ 39 bilhões de crédito agrícola, a agricultura familiar ficou com R$ 7 bilhões. Tal prioridade se reflete, sem escrúpulos, até mesmo em propagandas recentes do Banco do Brasil. A instituição divulga que concedeu para menos de 15 empresas transnacionais que controlam a agricultura e a produção da celulose um volume de crédito equivalente ao destinado a 4 milhões de agricultores familiares – cerca de R$ 5 bilhões. A disparidade entre os investimentos que o governo destina ao agronegócio e à pequena agricultura começa na divisão do orçamento das pastas responsáveis por essas áreas. Para 2006, estão previstos, em conjunto, R$ 8,4 bilhões. Alocados da seguinte forma: R$ 5,4 bilhões para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e R$ 3 bilhões para o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) – R$ 2,3 bilhões para o Incra e 700 milhões para o MDA. Ou seja, 65% ao primeiro e 35% ao último – nos últimos anos, apesar de projeções parecidas, o MDA, na prática, só teve acesso a R$ 1 bilhão. Os R$ 7,7 bilhões dos cofres públicos concedidos pelo governo para postergar o pagamento das dívidas dos latifundiários devem beneficiar, em média, apenas 30 mil fazendeiros.


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Espelho

NACIONAL

da mídia

EDUCAÇÃO

Os estudantes-órfãos do ProUni

Cid Benjamin Procurador chancela noticiário Tem razão Alberto Dines, em comentário no programa de rádio do Observatório de Imprensa, semana passada: a denúncia do procuradorgeral Antônio Fernando foi mais um golpe nos que classificam as acusações de fruto de complô da mídia. O procurador reafirmou a existência do mensalão e referiu-se a uma “organização criminosa” formada por dirigentes do PT e Marcos Valério. A imprensa não tinha ido tão longe.

Dafne Melo da Redação

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m março deste ano, os alunos do curso de Jornalismo e Rádio e TV da Faculdade Anglo Latino, em São Paulo, tiveram uma surpresa desagradável já no primeiro dia de aula. “A porta da sala de aula estava simplesmente fechada. Fomos procurar o diretor da faculdade e só aí ele nos informou que os cursos haviam sido fechados”, conta a estudante Andreza d’Ávila, bolsista integral do Programa Universidade Para Todos (ProUni), lançado pelo governo federal em 2005. Para especialistas, episódios como este – além de refletirem os problemas causados pela expansão desenfreada do ensino superior privado no país – reforçam uma das críticas feitas ao ProUni: a de que o Ministério da Educação (MEC) é omisso no controle da qualidade das instituições que aderem ao programa (ver reportagem abaixo). Recentemente, também na cidade de São Paulo, o próprio MEC determinou o fechamento da Faculdade Piratininga, que participava do ProUni. Segundo o Sindicato dos Professores de São Paulo, a medida foi tomada depois que a organização denunciou as irregularidades trabalhistas existentes na instituição. Em 2005, professores chegaram a ficar seis meses sem receber os salários, o que levou o corpo docente a realizar greve, além de manifestações contra o descaso, arbitrariedade e truculência dos mantenedores da faculdade.

As entrevistas da Folha Correta a crítica do ombudsman Marcelo Beraba à entrevista da Folha de S. Paulo com o pré-candidato Anthony Garotinho: foram evitados temas espinhosos. Assim, não se fez menção à recente campanha publicitária que anunciava dez mil obras nos governos Garotinho/Rosinha, número contestado pelo jornal O Globo. Diz Beraba: “Imagino que a Folha, para ser coerente, deverá fazer uma entrevista com Lula só com perguntas políticas e econômicas, sem mencionar os escândalos que marcaram o governo petista. Vai ser curioso”. Cesar Maia fez terrorismo A internet abre enormes possibilidades de se difundir boatos. Foi o que fez o prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, na Semana Santa. Espalhou que uma revista semanal traria uma bomba contra um ministro próximo a Lula, dando a entender que este seria Márcio Thomaz Bastos. Os blogs de política entraram no jogo e reproduziram a “informação”, que era só espuma. Polícia e crime organizado Há matérias que não são novidades, mas sempre causam impacto. É o caso das que mostram promiscuidade entre o crime organizado e policiais. No O Globo do dia 18 há a foto de um coronel da PM acompanhando a instalação de um caçaníqueis numa padaria no Rio. O coronel não foi punido. Foi premiado com um curso de especialização nos Estados Unidos.

APOIO VIRTUAL Andreza d’Ávila explica que, desde o ano passado, os alunos já se sentiam inseguros em relação à continuidade do curso de Comunicação Social. Como seriam a primeira turma a ser formada, o diploma ainda não é reconhecido pelo MEC. “No primeiro ano, formou-se uma ProUni – Programa turma de cerca do governo federal de 40 estudantes que dá isenções fiscais a instituições com os alunos privadas de ensino de Jornalismo, em troca de bolsas e de estudo integrais Publicidade e parciais a estuRádio e TV. Ao dantes de baixa longo do ano, os renda. alunos pagantes

A mídia e Richtoffen Aproximando-se o dia do julgamento de Suzane Richtoffen, a imprensa volta a se interessar pelo caso e a defesa da acusada resolve mostrar seu lado humano. Enquanto Veja publicou matéria que destaca o lado da jovem que, tendo cometido um crime, queria reconstruir sua vida, o Fantástico flagrou e pôs no ar instruções do advogado para que Suzane chorasse diante das câmeras. Foi mais forte o impacto deste último. Suzane voltou à prisão. Acordo estranho O portal de internet Observatório da Imprensa informou que a Editora O Dia fechou contrato com a Supervia – empresa que explora o serviço de trens urbanos no Rio – por meio do qual a concessionária garante exclusividade da venda dos jornais O Dia e Meia Hora nos trens e nas estações. Em contrapartida, segundo um dos editores dos jornais, que não se identifica, não será publicada qualquer matéria criticando os serviços prestados pela Supervia.

Explosão da Internet A fonte é o The New York Times: “O percentual de estadunidenses que se conectaram à internet em busca de notícias saltou de 13%, na campanha eleitoral de 2002, para 29% em 2004, segundo pesquisa feita após a última eleição nos EUA. No início de março deste ano, 50 milhões de estadunidenses entraram na internet diariamente em busca de notícias. Em março de 2002, o número tinha sido quase a metade: 27 milhões”. Blog do Cid Benjamin: http://blog docidbenjamin.zip.net/

Estudantes beneficiados pelo ProUni se sentem desamparados e lesados pelo MEC

se sentiram inseguros e se transferiram, enquanto os bolsistas do Prouni permaneceram”, conta. No início de 2006, quando os cursos se separariam, só havia cinco alunos para cursar a habilitação em Jornalismo – três eram do ProUni. De acordo com Andreza, a justificativa do diretor da Faculdade, Sérgio Antônio Salles, foi a de que não havia número suficiente de alunos para dar prosseguimento ao curso. Salles sugeriu, como opção, vagas em Publicidade. “Eu quero fazer Jornalismo. É uma vocação, acham que só porque você é bolsista está desesperado e vai contra seus princípios”, diz Andreza. Após o fechamento do curso, o próprio diretor ajudou na transferência dos alunos pagantes. “Nós, bolsistas, ficamos sem apoio, como baratas-tontas”, desabafa. Outros dois colegas de curso de Andreza estão na mesma situação. A estudante explica que, como não há atendimento regionalizado do ProUni, o atendimento aos bolsistas é virtual. “Só tem o ‘fale conosco’ da página na internet do programa para reclamar. Manda-

mos mensagens e não obtivemos resposta”, relata. A estudante procurou a representação do MEC em São Paulo. “Apenas me orientaram a trancar a bolsa, mas não souberam me dizer o que fazer a respeito da transferência. Falta apoio, agora temos que bater de porta em porta nas faculdades”, lamenta a estudante. “Não imaginei que uma faculdade pirata estaria no ProUni. Eles têm que regularizar nossa situação. Não deviam dar mais bolsas se não conseguem resolver o problema de quem já a tem a bolsa mas está sem estudar”, avalia. Andreza conta que, desde 2005, os alunos denunciavam ao MEC os problemas do curso, como alta rotatividade de professores e falta de infra-estrutura. Nunca obtiveram resposta.

REMANEJAMENTO Celso Carneiro Ribeiro, diretor do Departamento de Modernização e Programas da Educação Superior do MEC, explica que em casos de fechamento de cursos, a instituição de ensino deve garantir a permanência do aluno na facul-

dade, remanejando os alunos para vagas em outros cursos. Mas, no caso de o aluno optar por seguir com o curso em outra instituição, a transferência deve ser feita pelo próprio estudante. “O MEC não intervém nisso. A coordenação do ProUni de cada faculdade é que opera isso”, explica o diretor, que não quis comentar o caso específico da Faculdade Anglo Latino. “Cabe aos alunos encaminharem ao MEC a denúncia do que está ocorrendo”. Questionado sobre as denúncias que já vinham sendo feitas pelos estudantes da faculdade desde o ano passado, Ribeiro afirmou que “não se pode fazer nada quando há apenas boatos de que uma instituição de ensino possa fechar”. Andreza conta que contatou a coordenação do ProUni de diversas faculdades para tentar uma transferência, mas apenas ouviu que as vagas já estavam preenchidas. “Quando eu falava que era bolsista do ProUni havia uma mávontade em resolver o problema. Só conseguia informações quando dizia que era pagante”, relata a estudante.

Privilégios para os empresários da educação Quando ainda era apenas um Projeto de Lei, o Programa Universidade Para Todos (ProUni) já era alvo de críticas de todos os lados. De um lado, entidades estudantis e de docentes criticavam o projeto por privilegiar o setor privado da educação. Do outro lado, os empresários da educação achavam excessivo o número de bolsas que deveriam ser concedidas em troca da isenção fiscal. Ganhou o segundo grupo. O projeto inicial previa que 25% das vagas de universidades privadas

e filantrópicas seriam destinadas a bolsas de estudo integrais para estudantes de baixa renda oriundos da rede pública de ensino (ou que cursaram escolas privadas com bolsas integrais). Outra exigência é a aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). No projeto final, a porcentagem baixou para 8,5% das vagas, sendo que são admitidas bolsas parciais de 50% e 25%, dependendo da renda familiar do candidato à bolsa. Com medo que mesmo assim o projeto não passasse pelo Congres-

Arquivo Brasil de Fato

Defesa da tortura Dia 16, em horário nobre, o canal Sony (49 da Net) fez a defesa da tortura num episódio da série Commander in Chief. Na história, um terrorista é preso com explosivos e o croquis de uma escola. O governo estadunidense supõe que haverá atentados contra outras escolas e decide torturar o preso, que entrega os parceiros. Outros atentados são evitados, salvando-se centenas de criancinhas, que teriam morrido não fosse o uso da tortura.

Arquivo Brasil de Fato

Bolsistas do programa denunciam omissão do governo federal quando faculdades fecham cursos

Uma das críticas feitas ao ProUni é de que privilegia o setor privado da educação

so, o governo aprovou o ProUni por meio de uma medida provisória, em janeiro de 2005 – atitude vista como autoritária por boa parte do movimento estudantil e por sindicatos de docentes.

CRÍTICAS Maria Inês Marques, da direção do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes – SN), afirma que com o ProUni, o governo federal tomou a decisão de beneficiar empresários da educação em detrimento do ensino público, gratuito e de qualidade. Estudo feito pelo próprio Andes revelou que o governo pode deixar de arrecadar R$ 4 bilhões em quatro anos. Com apenas um quarto disso, seriam criadas 400 mil vagas nas universidades federais em apenas um ano. O MEC estima que criará esse mesmo número de vagas em quatro anos de ProUni. Na época, alguns críticos afirmaram que o programa era a “bóia de salvação” do setor privado. Maria Inês lembra que as faculdades pagas sofriam com vagas ociosas e com a inadimplência de alunos. Segundo dados do próprio MEC, 20,2% das vagas no ensino superior privado estavam ociosas em 1998.

Em 2004, esse número subiu para 49,5 % do total.

FALTA TRANSPARÊNCIA Outra crítica é que o governo federal pouco se preocupou em inserir no programa faculdades com ensino de qualidade. No início deste ano, uma denúncia apontou que o programa estava oferecendo bolsas em cursos reprovados pelo Exame Nacional de Estudantes (Enade) ou pelo antigo “Provão”. Atualmente, um curso só pode ser excluído do ProUni após três reprovações seguidas. Celso Carneiro Ribeiro, diretor do Departamento de Modernização e Programas da Educação Superior do MEC, explica que, no projeto original, bastavam duas reprovações e explica que essa foi outra mudança que os empresários da educação conseguiram fazer. Segundo Maria Inês, do Andes, o MEC também não tem tratado a questão com transparência. “Eles sempre falam de quantas vagas são criadas, mas não sabemos qual a evasão ou quantos cursos que participam do programa fecharam”. Questionado pelo Brasil de Fato, Celso Carneiro Ribeiro afirmou que o MEC faz esse levantamento, mas que não tinha as estatísticas disponíveis. (DM)


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NACIONAL MOVIMENTO ESTUDANTIL

Estudantes discutem sua organização Bruno Terribas de Campinas (SP)

À

Bruno Terribas

Em congresso com muitas festas, jovens propõem programa para candidatos à Presidência

luz da vitória dos jovens franceses, que derrotaram o Contrato de Primeiro Emprego (CPE) nas mobilizações de rua, representantes de entidades do movimento estudantil brasileiro se reuniram, no 11° Conselho Nacional de Entidades de Base (Coneb) da União Nacional dos Estudantes (UNE), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para debater o papel dos estudantes no processo político nacional. Os estudantes também discutiram formas de sua entidade representativa se estruturar para assumir a responsabilidade de participar, junto a outros movimentos sociais, das mobilizações populares. Entre os dias 13 e 16, 2.267 delegados representantes de Centros e Diretórios Acadêmicos (CAs e DAs), além de integrantes de Diretórios Centrais dos Estudantes (DCEs), aprovaram resoluções nas áreas de conjuntura nacional, educação e movimento estudantil (veja o quadro abaixo). A eleição de 2006 foi um dos temas que suscitou maior divergência entre as teses apresentadas no Coneb. Setores ligados ao PT propuseram que a entidade assumisse a defesa do mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva e integrasse a campanha presidencial petista. Contudo, prevaleceu a posição de que seja elaborado um programa de desenvolvimento a ser apresentado aos candidatos e contra a volta da direita ao governo federal.

Estudantes de todo o país discutiram a participação nas mobilizações populares junto com outros movimentos sociais

matriculados. Em caso de IES com menos de 1000 estudantes, será eleito um delegado. Para Rossano Fernandes, diretor do DCE da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), e integrante do campo “Ya Basta!”, essa mudança vai restringir a participação dos estudantes no processo decisório da entidade. “Vai impedir a renovação dos delegados participantes. O congresso acabará restrito aos mesmos militantes de sempre”, argumentou Fernandes.

Roberto Gerbi, estudante de Letras da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do campo da Aliança da Juventude Revolucionária (ligada ao Partido da Causa Operária), acusou de “golpista” a proposta da direção da entidade por tentar “reduzir ao máximo o debate”. O presidente da UNE, Gustavo Petta, explicou que há algum tempo existia a idéia de fazer essa alteração: “O Congresso da UNE se transformou em um grande evento juvenil, que reúne cerca de 15 mil

jovens. Organizar um evento desse porte é muito complexo. Poucos espaços no Brasil podem ser utilizados, além do quê, requer uma enormidade de recursos. Além disso, o aprofundamento de debates cruciais para o país, para a educação e para o movimento estudantil fica inviabilizado com tantas pessoas”.

MUITA FESTA Apesar do caráter eminentemente sério do evento, houve sinais evidentes da falta de compromisso

Resoluções do 11º Coneb

ELEIÇÕES INTERNAS A principal e mais polêmica mudança no estatuto da entidade foi a reformulação do formato para eleição dos delegados ao Congresso da UNE (Conune). Entre as teses apresentadas, havia o apoio à eleição direta e à manutenção do modelo atual, com modificações. Porém, a proposta vencedora – apoiada pela atual direção majoritária da UNE e apresentada pela tese “Na Pressão pelas Mudanças”, da União da Juventude Socialista (UJS), ligada ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) – estabeleceu a diminuição do número de delegados nos Congressos, atualmente de cerca de 5 mil, para no máximo um quinto disso. Hoje os delegados são eleitos por curso. De agora em diante, as eleições para delegado ao Congresso da UNE passarão a realizar-se por Instituições de Ensino Superior (IES). No caso de IES presentes em mais de um Estado, será considerado o âmbito estadual. A proporção de eleição de delegados será de 1 para cada 1000 estudantes regularmente

• Combater a criminalização dos movimentos sociais • Organizar os movimentos sociais em uma frente antineoliberal na América Latina, por meio da Organização Continental Latino-americana e Caribenha de Estudantes (Oclae) • Investir para a garantia da reforma agrária e do combate ao latifúndio • Combater novas privatizações; exigir auditoria e reestatização das empresas estratégicas e anulação da privatização da Companhia Vale do Rio Doce • Combater a autonomia do Banco Central • Combater a renovação dos acordos com o FMI, contra a Alca • Defender a soberania, principalmente em áreas estratégicas como a Amazônia • Defender uma política econômica a serviço do desenvolvimento econômico e social, pelo fim do arrocho fiscal; pelo estímulo à poupança interna, criando alternativas contrárias à promoção das altas taxas de juros • Defender a democratização dos meios de comunicação; contra a ditadura midiática; por um Sistema Nacional de TV e Rádio Digital que privilegie a tecnologia nacional e pela multiprogramação Na Educação: • Lutar pelo fim de todo e qualquer curso pago em instituições de ensino superior públicas; contra as terceirizações e a cobrança de taxas e mensalidades no ensino superior público • Lutar pela verba pública só para os serviços públicos • Combater a evasão escolar; pela implementação imediata de um programa de assistência estudantil com rubrica específica no orçamento da União; pela assistência estudantil não só para os alunos das faculdades de capitais, como também do interior • Combater a precarização da docência a partir da contratação indiscriminada de professores substitutos • Combater os cursos que utilizam exclusivamente o ensino à distância • Defender a matrícula de estudantes inadimplentes

A Campanha “Nossa Educação Não Está à Venda” foi lançada dia 15, durante o 11° Coneb. Com isso, a UNE encampou a proposta do deputado federal Ivan Valente (PsolSP) contra a venda de instituições educacionais para o capital externo. Já foram registradas duas transações nas quais grupos estrangeiros se tornaram acionistas majoritários de instituições de ensino superior no país – casos da universidade paulista Anhembi-Morumbi e do grupo mineiro Pitágoras. “É preciso impedir o avanço do setor privado que em nove anos passou de 600 instituições para mais de 1700, respondendo por 70% das matrículas no ensino superior brasileiro”, afirmou Valente. Entre os interesses dos grupos estrangeiros apontados por ele nesse filão estão o tamanho e a lucratividade do setor, que movimenta, atualmente, cerca de R$ 15 bilhões, e a velocidade com que o segmento vem crescendo.

Bruno Terribas

Combate ao capital estrangeiro na educação

Ao tratar a educação como mercadoria, instituições estrangeiras põem em risco o futuro do Brasil, diz o deputado Ivan Valente

O deputado também alertou que a questão das universidades é particularmente sensível, dos pontos de vista cultural e político. Segundo o parlamentar, a educação, quando encarada como mercadoria, e não

mais como uma missão da sociedade, coloca em risco o próprio futuro do país. “Além disso, a colonização cultural e política conta com um instrumento certo e direto para formar elites desinteressadas

da melhoria das condições de vida do povo. A propriedade estrangeira das instituições de ensino leva à disseminação de idéias e valores dissociados dos interesses nacionais”, acrescentou.

dos participantes. Eram diversas as opções de mesas temáticas, painéis e grupos de discussão. Entretanto, as opções de “tendas” musicais e o cansaço em razão dos shows das madrugadas anteriores faziam com que durante o dia os gramados ficassem repletos de pessoas dormindo ou alcoolizadas, longe do que se poderia chamar de participação política no evento. Durante a plenária final, era difícil ouvir a defesa de cada proposta pois alguns grupos faziam do espaço de discussão uma verdadeira guerra de torcidas, com tambores, surdos e “gritos de guerra”. “O Coneb como espaço de discussão e de lutas não está se concretizando. Existe um esforço brutal de buscar a dispersão dos estudantes. Os delegados vêm para o evento com a promessa de festas e diversão. O objetivo final da direção da maioria dos campos é levar os estudantes no cabresto, para votar na plenária final”, denuncia Juliana Leitão, da União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE-SP) e do campo “A UNE é pra Lutar – Por uma UNE Independente, Democrática e de Luta”, ligado à corrente O Trabalho. O presidente da UEE-SP e apoiador da tese Na Pressão Pelas Mudanças, Augusto “Lesmão” Chagas, rebate as críticas, sustentando que a UNE “não tem como exigir atestado ideológico dos delegados para que participem de seus congressos”.

ATIVIDADE PARALELA Construir uma unidade para organizar a luta contra a reforma universitária, os governos e as reitorias. Com esse chamado, o Centro Acadêmico de Ciências Sociais e História (CACH) da Unicamp promoveu uma atividade paralela ao 11° Coneb da UNE, envolvendo os estudantes de diversas tendências, dentro de setores que romperam ou não com a UNE, independentemente de estarem integrados à Coordenação Nacional de Lutas dos Estudantes. “Acreditamos que a UNE seja uma entidade burocratizada. Então, pensamos no evento como um fórum para discutir alternativas de organização que fujam do aparelho governista que essa entidade tem se mostrado”, explica o coordenador do CACH, Henrique Áreas de Araújo. Durante o encontro, que contou com a participação de cerca de cem estudantes, houve exibição de vídeos sobre as lutas estudantis na França e no Brasil – PUC-SP e estaduais paulistas – e de um documentário sobre a luta zapatista em Chiapas (México). Também houve discussões em grupos e uma mesa redonda.

Em defesa da Amazônia Diante do aumento do interesse de empresas e governos estrangeiros e à importância das questões ambientais no século 21, a Amazônia se torna cada vez mais um patrimônio a ser defendido. Para promover o debate em relação a essa questão e iniciar uma jornada de defesa da biodiversidade brasileira, a UNE lançou, durante o 11º Coneb, a campanha “A Amazônia é do Brasil”. O evento teve a presença do geógrafo Aziz Ab´Saber, professor da Universidade de São Paulo e referência internacional em estudos sobre a região amazônica. Durante a campanha, a UNE vai elaborar um relatório sobre as ações ilegais na floresta. Também serão promovidos debates nas universidades e uma Caravana Cultural nos nove Estados brasileiros que fazem parte da Amazônia Legal.


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NACIONAL DIREITOS HUMANOS

Adolescentes vão para prisão

Fatos em foco

Terceira via – 2 Setores progressistas e correntes de esquerda descontentes com os rumos neoliberais do governo Lula ainda vislumbram a possibilidade de uma candidatura capaz de unificar amplos segmentos sociais sem risco de sofrer impeachment logo em seguida. Acham que o novo nome para substituir Lula e derrotar a coligação direitista PSDB-PFL pode surgir no próprio PT, no PMDB ou no PCdoB. O risco Lula aumenta rapidamente. Torcida organizada Assim como na Venezuela, no Brasil, no Chile e em boa parte da América Latina, a imprensa conservadora do Peru entrou com tudo na campanha contra o candidato nacionalista a presidente, Ollanta Humala, vencedor do primeiro turno e que disputará o segundo turno com um dos candidatos da direita. Como sempre, os principais veículos de comunicação empresarial tomam partido do lado das elites e do capital nacional e estrangeiro. Terrorismo imperial Mais uma vez os Estados Unidos ameaçam incendiar o planeta com sua política de agressão contra países produtores de petróleo que não se submetem às suas imposições imperiais. Agora é a vez do Irã. De acordo com o jornal britânico The Guardian, forças militares dos Estados Unidos e da Inglaterra já realizaram exercícios com a simulação de ataque ao território iraniano. A desculpa desta vez é que aquele país está fazendo pesquisa nuclear não autorizada. Dívida esportiva O ufanismo de setores governistas com a economia esconde sempre um dado bastante significativo: o aumento da inadimplência no comércio acima do aumento das vendas. De acordo com levantamento da Associação Comercial de São Paulo, o número de carnês não pagos em relação ao número de carnês emitidos foi de 4,8% em janeiro, 6,1% em fevereiro e 7,3% em março. A previsão é de que aumente ainda mais em abril. As pessoas não ficam devendo por prazer ou por esporte. Julgamentos históricos O julgamento do ex-ditador do Iraque, Saddam Hussein, apenas reforça que o mundo vive uma época de grandes farsas reais e midiáticas. Saddam, que não é nenhum monge tibetano, corre o risco de ser condenado pelo massacre de 148 xiitas em 1982, um crime provavelmente determinado pela hierarquia governamental. E qual será a condenação de George W. Bush pelo assassinato de mais de 50 mil iraquianos? Ameaça direitista Nem bem assumiu a pré-candidatura do PSDB à presidência da República, o ex-governador paulista Geraldo Alckmin começou a revelar – em entrevistas, conversas e discursos – seus compromissos com as classes dominantes e com o programa neoliberal mais submisso ao imperialismo. Ele tem defendido o apoio financeiro ao agronegócio e à privatização da educação e de outros serviços públicos. Nada muito diferente do que tem feito o governo Lula, o que prova que a verdadeira crise brasileira é de falta de futuro!

Tatiana Merlino da Redação

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ontrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual medidas sócio-educativas não podem ser cumpridas em prisões, a Justiça de São Paulo autorizou a transferência de 131 internos do complexo do Tatuapé da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) para a Penitenciária Feminina do Tatuapé. O corregedor-geral do Tribunal de Justiça de São Paulo, Gilberto Passos de Freitas, aceitou o pedido da presidente da Febem, Berenice Maria Gianella, dia 7. De acordo com a Fundação, os menores devem permanecer na penitenciária até dia 31 de setembro, quando irão para unidades da fundação a ser inauguradas no interior do Estado. A medida vem recebendo duras críticas por parte das entidades de defesa de direitos da infância e juventude. “A transferência é ilegal. Fere o artigo 185 do ECA. Já vimos esse filme, e é um filme de terror”, afirma o advogado Ariel de Castro Alves, coordenador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), referindo-se a outros casos de transferência de internos da Febem para presídios que tiveram resultados desastrosos. No ano passado, os 550 internos transferidos para a penitenciária de Tupi Paulista foram vítimas de torturas e maus tratos. “A Justiça tem sido omissa em razão de influências políticas. O governo do Estado controla o Legislativo e também quer controlar o Judiciário”, analisa Ariel. Entre as preocupações das entidades estão as condições do local, considerado inabitável pelo laudo da Vara de Execuções Penais

Luciney Martins/ BL 45 Imagem

Terceira via - 1 O PT paulista tem eleição prévia, no dia 7 de maio, para escolher o seu candidato ao governo do Estado, entre o senador Aloizio Mercadante e a ex-prefeita Marta Suplicy. Apesar do empenho da militância do partido em torno desses nomes, integrantes da cúpula nacional analisam que somente outra candidatura – não queimada na praça – tem condições de enfrentar o candidato tucano José Serra nas urnas. Falta informar os postulantes!

Justiça paulista fere Estatuto da Criança e do Adolescente e coloca internos da Febem em presídio

Mães de adolescentes em medidas sócio-educativas condenam “marketing do governo”

de São Paulo de 2003. A perícia constatou infiltrações nas paredes e até esgoto saindo do chão.

CRISES NA INSTITUIÇÃO Dia 29 de março, quando o governo de São Paulo iniciou a desativação do Complexo Tatuapé – antes de entregar 41 novas unidades prometidas no ano passado –, a assessoria da Febem negou, em entrevista ao Brasil de Fato, na edição 162 (de 6 a 12 de abril), a possibilidade de envio de jovens do Tatuapé para o sistema prisional. Porém, agora argumenta que a transferência foi feita em decorrência da rebelião ocorrida no Complexo dias 4 e 5, o que teria deixado duas unidades com a estrutura abalada e risco de desabamento. Considerado o centro de internação de crianças e adolescentes em conflito com a lei mais pro-

blemático do Estado de São Paulo nos últimos anos, o Complexo do Tatuapé registrou, em 2005, 18 rebeliões. Em momentos de crise da instituição, o governo estadual prometeu várias vezes desativar essa unidade. Em 2005, em meio a uma das maiores crises da história da instituição, o então governador Geraldo Alckmin garantiu a inauguração de 41 unidades até o final do ano e a destruição da Febem Tatuapé, conforme as unidades fossem implantadas. Porém, dois dias após a demolição, entidades de direitos humanos realizaram uma visita ao Tatuapé e descobriram que os internos do prédio demolido haviam sido, na verdade, transferidos para outras unidades dentro do próprio complexo. “Foi só marketing do governo. Não está ocorrendo nenhuma desativação, ao contrário, o complexo tem rece-

bido mais adolescentes”, afirma o advogado Ariel de Castro Alves. De acordo com Antônio Maffezzoli, da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, “a situação da Febem está igual, você volta lá e é sempre a mesma coisa. A única coisa que muda é a unidade que está com mais problemas no momento”. Alves e Maffezzoli visitaram, dia 10, várias unidades do Complexo Tatuapé, junto a parlamentares e representantes de entidades de direitos humanos, de conselhos tutelares e do Ministério Público, para descobrir as causas da rebelião do dia 4. Em conversa com os visitantes, os jovens relataram que a a rebelião foi uma reação às práticas de tortura e maustratos. “Alguns jovens foram obrigados a tomar banho gelado para disfarçar os hematomas. Na unidade 17 houve uma denúncia de tortura com choque elétrico”, contou Ariel.

SEM-TETO

Comandante diz que vai apurar acusações Fernanda Sucupira de São Pqaulo (SP) Nos últimos meses, moradores de rua e de albergues e vendedores ambulantes vêm denunciando recorrentes ações violentas da Guarda Civil Metropolitana (GCM) na região central de São Paulo (SP). A corporação, vinculada à prefeitura paulistana, tem a função de proteger bens, serviços e instalações municipais e fazer a mediação de conflitos, por meio de diversas atividades como a ronda escolar, a fiscalização do comércio ambulante e a preservação de hospitais e parques públicos, mas ultimamente tem sido acusada de agressões a grupos marginalizados. Por conta disso, o coronel Rubens Casado, comandante da GCM, foi convidado a participar de audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo, na semana passada, para prestar esclarecimentos sobre a atuação dessa instituição. No abrigo Boracéia, que recebe pessoas em situação de rua, existe um posto da guarda que vem sendo alvo de diversas reclamações de agressões físicas e de abordagens violentas. Para Leônidas Luz, que vive no Boracéia e faz parte do Fórum do Povo em Situação de Rua, é necessária a capacitação dos guardas civis para lidar com essa população de forma adequada, porque a ação deles hoje mostraria claramente que não estão preparados para isso. “Como entregar uma comunidade a uma pessoa que nem sabe onde está trabalhando? Gente sempre tem que respeitar, seja moribundo ou mendigo, como eles nos chamam. A gente entra lá para depois sair com as próprias pernas, não para ser humilhado”, afirma. Os dados oficiais apontam que

Luciney Martins/ BL 45 Imagem

Hamilton Octavio de Souza

Entidades de direitos humanos recordam massacre de moradores de rua

existem 10 mil moradores de rua em São Paulo, mas o Movimento Nacional de Luta e Defesa dos Direitos da População de Rua estima que, por conta da última onda de despejos e remoções, esse número já chegue a 30 mil pessoas. “O subprefeito da Sé, Andrea Matarazzo, falou em entrevista que iria limpar a cidade. Como vai fazer isso, espancando de madrugada as pessoas que dormem na rua? Tomando tudo que elas têm? De quem parte essas ordens?”, questiona o representante dos moradores de rua Vanderley Gaspar. No primeiro ano da gestão do ex-prefeito José Serra (PSDB), o efetivo da GCM na região central dobrou de 750 para 1.500 guardas. De acordo com Anderson Lopes Miranda, do Movimento Nacional de Luta e Defesa dos Direitos da População de Rua, a GCM só faz ações repressivas e nunca acompanhou as políticas sociais. “A população de rua não nasce em árvores, somos seres humanos, cidadãos que por questões de saúde, trabalho ou burocráticas fomos parar nas ruas. Não queremos repressão, queremos que além do patrimônio a GCM seja

também guarda das políticas públicas de saúde, habitação; que ela possa encaminhar essa população que tanto precisa de cuidados. Defendemos uma ação política conjunta com a GCM”, explica Miranda.

AGRESSÃO O vendedor ambulante José Severiano da Silva, também presente à audiência, foi uma das vítimas da violência de integrantes da corporação. “No dia 16 de março, um guarda apontou uma arma para mim e afirmou ‘eu já matei seis pessoas, o sétimo dá na mesma’. Outro veio covardemente por trás e deu com o cassetete na minha costela. Entrei algemado na viatura e me desferiram cotoveladas violentas no rosto. Mesmo desmaiado continuaram me batendo. Queriam me matar como fizeram com o outro que levou um tiro na perna e chegou no hospital morto, com vários hematomas”, relata Silva. Essas agressões resultaram em duas costelas quebradas, fraturas no rosto, um grande corte na boca e num boletim de ocorrência na delegacia que acusa o ambulante de agredir os guardas com o capacete.

“Se já tomou a mercadoria, pra que bater?”, questiona Silva. Na audiência pública, ele reivindicou que seu caso seja de fato investigado. Existe também um desrespeito muito grande por parte da GCM em relação aos deficientes físicos da categoria dos ambulantes, que são agredidos e marginalizados, diz a dirigente sindical Bernadete de Lima, portadora de deficiência visual. Ela denuncia ainda que os guardas não utilizam identificação no trabalho na rua. “Eles não querem se identificar para que a gente não possa buscar nossos direitos. Não temos mais condições de continuar desse jeito, a fiscalização corrupta foi trocada pela GCM agressora, não resolveu o problema da gente”, avalia. O coronel Rubens Casado, comandante da GCM, garantiu que as apurações desses casos estão sendo feitas e que, se extrapolarem a esfera administrativa, serão levados à esfera penal. Ele se comprometeu a aumentar a fiscalização do uso da identificação por parte dos guardas. “Se o fato é isolado, é isolado, mas quando é recorrente passa a ser uma política ou a perda do controle”, rebateu o vereador Paulo Teixeira (PT). “É necessário dar tratamento adequado, já que se trata de uma população extremamente vulnerável, que luta por sua sobrevivência e cidadania”, completa. As principais reivindicações são que o procedimento para abordagem do morador de rua não inclua remoções forçadas, mas convencimento; que os casos relatados sejam apurados; que os guardas sejam identificados; e que a GCM tenha um representante no Conselho de Monitoramento da População em Situação de Rua da Cidade de São Paulo. (Agência Carta Maior, www.cartamaior.com.br)


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NACIONAL ECONOMIA

Bancos permanecem intocáveis Luís Brasilino da Redação

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política econômica do governo federal escancara a falta de controle do poder público sobre o mercado financeiro. Em setembro de 2005, a taxa básica de juros (Selic) iniciou uma trajetória de queda – pífia, é verdade. Era de se esperar que os juros cobrados pelos bancos acompanhassem esse movimento. Entretanto, enquanto de agosto de 2005 até hoje a Selic caiu cerca de 17%, os juros bancários de empréstimo pessoal tiveram redução pouco superior a 1% e o cheque especial nem passou disso. O primeiro foi de 5,44% ao mês para 5,37% e o segundo de 8,29% para 8,21%. O fenômeno também pode ser observado pelo crescimento do spread bancário (diferença entre o que o banco paga ao captar recursos e o que cobra ao conceder empréstimos) no período. Em agosto de 2005, o índice estava em 28,5%. Já na última medição realizada pelo Banco Central (BC), em fevereiro, o spread estava em 30,2%. Segundo o professor Gerson Lima, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e vice-presidente do Conselho Regional de Economia do Paraná (Corecon-PR), isso acontece porque a Selic é extremamente alta. Mesmo depois das reduções que a levaram de 19,75% a 16,5%, a taxa básica de juros brasileira continua sendo a maior do mundo. “A diferença entre a Selic e os juros para as pessoas físicas é tão grande que o fato da primeira cair um ponto ou dois não significa que o banco vai se comover e abaixar a minha taxa de juro. Não tem necessidade nenhuma para abaixar e ganhar mais clientes”, esclarece Lima.

COMPETIÇÃO DESLEAL O banco não se sente motivado a emprestar dinheiro se a rentabilidade da taxa básica de juros é maior. Ao final de cada dia, o BC

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Queda da taxa Selic é insuficiente para reduzir juros cobrados pelos bancos das pessoas físicas tistas há anos: reduzir drasticamente a Selic. O governo alega que precisa tomar empréstimos dos bancos porque se ele simplesmente emitir dinheiro a inflação explodiria. Lima acha que isso não é bem verdade. “Primeiro, porque os juros pagos ao banco não provocam aumento do consumo. Portanto, não vai puxar inflação nenhuma. Outro fato é que o governo, de fato, faz dinheiro para pagar o juro. Não o faz para construir hospitais e estradas. Se parasse de fazer isso, aí o mercado teria que se virar com o consumidor e com empresas”, opina o professor. Para Lima, se o governo abaixasse a taxa de juro de 16,5% para 8% – um patamar ainda elevado –, o governo economizaria dinheiro para pagar melhores remédios, aposentadorias mais altas, um salário digno para os professores, etc. Em 2005, o governo investiu mais de R$ 100 bilhões no pagamento de juros da dívida pública. “Caso meu salário aumentasse 15% ao mês, não estaria preocupado em pagar 10% de taxa de juros por um financiamento. O problema é que a taxa de juros se mantém alta e o salário vai caindo”, completa.

PERSONALIDADE

Desempregados estão entre as principais vítimas da política econômica, que beneficia os bancos

apura o saldo dos bancos comerciais que têm conta lá e alocam automaticamente o excedente na chamada conta investimento. O dinheiro passa a noite por lá, rendendo a Selic e Selic – Sigla de Sistema Especial de isso não custa Liquidação e Custónada aos bandia. Indica o quanto cos. É um grano governo paga de remuneração ao de negócio para captar recursos. os banqueiros.

No patamar atual, o “reduzido”, a taxa básica rende mensalmente algo em torno de 1,3%. A poupança rende 0,5% nesse mesmo período. Por outro lado, quando emprestam para a população, os banqueiros ficam sujeitos ao risco da inadimplência e precisam arcar com uma série de custos administrativos, tais como folha de pagamento, maquinário, agências etc..

De acordo com o professor Lima, caso os bancos operassem apenas com o governo, este sendo seu único cliente e dispensando todos os outros, seus lucros seriam mantidos em aproximadamente 50%.

SAÍDAS A solução para esse problema está na mesma tecla batida pela esquerda e pelos desenvolvimen-

Mas além da redução da Selic, o governo poderia ser mais contundente e enfrentar os lucros dos bancos de frente. Para isso, ele poderia usar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, os bancos estatais. Para reduzir o spread dos grandes bancos comerciais, bastaria o governo abaixar os juros destes dois bancos para o consumidor. Assim, atrairia empréstimos e forçaria os grandes privados a também reduzir seus juros sob o risco de ficar sem clientes. No entanto, os juros cobrados por empréstimo pessoal pelo Banco do Brasil em abril eram de 4,8%. Em agosto de 2005, 4,85%. Na Caixa, os juros eram de 5,28% e agora estão em 4,81%.

Países ricos estão “chutando a escada” Início de noite, Ha-Joon Chang desce ao saguão do hotel para uma rápida entrevista antes de partir. Tem um jantar marcado com o então ministro das Relações Institucionais, Jacques Wagner. “Vai falar para ele de sua crítica aos juros altos?”, perguntamos ao final da entrevista. Balança a cabeça afirmativamente, colocando embaixo do braço uma edição brasileira de seu livro, para presenteá-lo a Wagner. Chutando a escada, lançado pela Editora Unesp em 2004, é uma crítica às regras de livre-comércio e abertura da economia defendidas pelos países ricos e exigidas por instituições como a Organização Mundial de Comércio (OMC) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). O título remete a uma expressão do economista alemão Friedrich List. Em seu livro O sistema nacional de economia política, de 1841, List já fazia a mesma crítica de Chang. “É um expediente muito comum e inteligente de quem chegou ao topo da magnitude chutar a escada pela qual subiu a fim de impedir os outros de fazerem o mesmo”, escreveu há mais de 150 anos. Dois séculos depois, o economista sul-coreano afirma que os países ricos “não seriam o que são hoje se tivessem adotado as políticas e as instituições que agora recomendam às nações subdesen-

volvidas”. Chang considera que os países ricos usaram, ao longo de sua história, tarifas protecionistas contra a importação para incentivar sua indústria nacional. Após alcançar o desenvolvimento de sua indústria, passariam a pregar o contrário do que fizeram. Chang também afirma que a hiperinflação dos anos 1980 provocou um trauma no Brasil que precisa ser superado. “Esse país é como uma pessoa que estava acostumada a sair, ir a festas, beber, conhecer pessoas. Um dia é atropelada. Então, fica paranóica e nunca mais sai de casa, por medo de ser atingida de novo por algum acidente”, brinca. Como o senhor poderia resumir o conceito central do seu livro Chutando a escada? Ha-Joon Chang – Através dos anos, estive pesquisando a história dos países desenvolvidos. E percebi que devia me atentar mais às políticas que esses países usaram para se desenvolver, em vez de escutar o que os seus governos atuais dizem que deve ser feito para se desenvolver. Descobri muita informação que vai diretamente contra o discurso que fazem para os países subdesenvolvidos. O melhor exemplo é que eles vivem defendendo o livre-comércio, mas olhando a história deles nunca fizeram o livre-comércio, faziam o contrário, um protecionismo alto. Outro exemplo é que muitos desses

a maior taxa de juros do mundo. Recordes são bons em geral, mas não nesse caso. Isso está matando a indústria. Se você olhar para as taxas de juros reais nos anos 60 e 70, nos países desenvolvidos, estavam entre 1% e 3%. Na Coréia do Sul, os juros estavam o tempo todo negativos nesse período. Ninguém vai investir em empregos e produtividade com essas taxas. Você acha que um investidor prefere ganhar 6% com um investimento produtivo ou ganhar 12% com juros?

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André Deak e Daniel Merli de Brasília (DF)

Economista sul-coreano critica as regras de livre-comércio e abertura da economia

países sequer tinham um banco central. Até recentemente, não tinham um banco central independente. Diante dessa realidade, o que os países pobres podem fazer para recuperar a escada do desenvolvimento? Chang – Fica difícil adotar algumas medidas que poderiam ser implementadas, porque as regras globais estão ficando mais apertadas. A OMC diz que não se pode fazer isso ou aquilo. Se você se recusa a baixar suas taxas, o Banco Mundial e o FMI podem se recusar a emprestar dinheiro. Existe pouco espaço para trabalhar. Entretanto, ainda não é como se não houvesse nada que pudesse ser feito. Que países você poderia citar que

estão reconstruindo a escada? Chang – Países como a Coréia do Sul se tornaram ricos, mas agora também a Coréia está querendo chutar a escada. Mas você tem também a China... Claro, há vários problemas, desigualdades crescentes, disparidades regionais, não é o modelo ideal, mas se olharmos como desenvolveram suas indústrias... Os chineses estão basicamente utilizando os mesmos princípios usados pelos países que hoje são desenvolvidos. Assim, estão se desenvolvendo muito rápido. Protegem suas indústrias, ajudam as exportações. Existe uma discussão enorme no Brasil sobre a taxa de juros. O senhor abordou o tema em sua palestra aqui. Chang – Basicamente, vocês têm

O argumento principal do governo é que só com essa taxa de juros é possível manter a inflação controlada e baixa. Chang – Isso é um erro. Perdeuse o tempo histórico. Não digo que não houve um propósito no início, quando havia um gatilho inflacionário, mas agora tornouse totalmente contraprodutivo. Não há evidência de que uma taxa de inflação de 10%, 20% seja ruim para o crescimento dos países. Esse país é como uma pessoa que estava acostumada a sair, ir a festas, beber, conhecer pessoas. Um dia é atropelada. Então, fica paranóica e nunca mais sai de casa, por medo de ser atingida de novo por algum acidente. Claro que, ficando em casa, esses acidentes não vão acontecer, mas nada de bom vai acontecer também: não vai arrumar emprego, não vai viver a vida. (Agência Brasil – www.radiobras.gov.br)


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De 20 a 26 de abril de 2006

NACIONAL ENTREVISTA

Terra de prosperidade... para a elite Prefeito de Parauapebas defende os sem-terra, critica a Justiça e cobra a reestatização da Vale do Rio Doce

Brasil de Fato – Como o senhor analisa a questão agrária na região de Parauapebas? Darci José Lermen – Como na ocupação da Amazônia, grandes grupos econômicos apropriaramse de imensas áreas por meio da grilagem. Posseiros entram na terra dispostos a morrer por ela. Por outro lado, entidades como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag) e sindicatos têm avançado. O MST chegou na nossa região em 1992. Com a ocupação de uma parte da Fazenda Rio Branco, que pertencia ao grupo Lunardelli, do Paraná. Conquistaram um assentamento para 240 famílias. Depois disso, conquistaram as outras duas partes da Fazenda Rio Branco. Uma fazenda que era realmente improdutiva, com uma terra muito boa em algumas partes, próxima à cidade. De qualquer forma, os trabalhadores resistem até hoje. A violência tem sido a única coisa da nossa região que dá manchete nacional. Ao mesmo tempo, existem grandes iniciativas, na região, por parte da agricultura familiar, que está se estruturando em vários assentamentos. Eles fazem a melhor feira de pequenos produtores do interior do Estado, a Feira de Parauapebas, com centenas de itens. BF – Como se dá a luta pela terra? Lermen – Por exemplo, recentemente, o MST ocupou uma área pública grilada, de 20 a 30 mil hectares, “pertencente” à Fazenda Rio Vermelho, do grupo italiano Quagliato. O acampamento não se estende sobre outra área, da mesma fazenda, não grilada. Entretanto, a Justiça concedeu a reintegração de posse. A ordem para desocupação foi feita para uma terra que ficava a 10 quilômetros de onde as famílias estavam acampadas. Isso mostra que se utiliza qualquer tipo de artifício para fazer desocupação. O agronegócio concentrando e os trabalhadores lutando para repartir. BF – Como é a relação com o Judiciário? Lermen – O Poder Judiciário no Pará, embora constituído legalmente, age ou por ignorância, e aí não poderia agir, ou por má-fé, sabendo o lado que está tomando. Então, está errado de qualquer jeito. BF – E quando a situação fica violenta? Lermen – Tivemos alguns conflitos graves na região. Um deles foi na Fazenda Goiás 2. O MST ocupou a área e até o exército foi mobilizado para a região. Depois da polícia – organizada pelos fazendeiros – tirar os companheiros da terra, os latifundiários provocaram uma das lideranças da ocupação, o Doutor (Valentim Serra). Ele acabou morto com um tiro no

BF – Não é isso que a empresa faz? Lermen – Só para dar uma idéia, de cada 15 funcionários que produzem o lucro fabuloso da CVDR, 14 recebem saúde, educação, saneamento, água, tudo, da prefeitura. A Vale arca com apenas um. Não está certo. Temos boa arrecadação mas as políticas públicas não acompanham o crescimento da cidade. No ano passado, quando o Jornal da Globo passou a série “Mapa do Emprego”, nossa região foi pintada como se estivesse correndo leite e mel, do ponto de vista do emprego. Isso aumentou tremendamente a vinda das pessoas. Recentemente, a CVDR anunciou um investimento de 4,5 bilhões de dólares em novos projetos na região. Com essa nova frente, a população vai dobrar. A projeção é de 250 mil habitantes até 2010. Achávamos que isso pararia, mas não pára. Agora estão abrindo a Serra Pelada de novo. Já tem cerca de 30 mil garimpeiros por lá, esperando. Se der algum problema, eles vão correr para Marabá ou Parauapebas.

Monumento em homenagem aos 19 trabalhadores rurais sem-terra assassinados em Eldorados dos Carajás

coração. O Fusquinha (Onalício Araújo Barros, outro líder) correu pedindo para que não matassem o companheiro e acabaram atirando nele também. Prova de que o Fusquinha foi morto sem estar agredindo é que a bala entrou debaixo do braço. Ou seja, ele só poderia estar com as mãos levantadas. Baleado, Fusquinha saiu correndo e caiu numa juquira (um mato) e o pessoal não o achou. Levaram o Doutor para cerca de 10 quilômetros do local onde ele foi baleado e o jogaram dentro de um brejo. Depois, pisaram em cima até ele afundar na lama. Só foi achado no outro dia. Depois disso os companheiros voltaram a ocupar a terra e conquistaram a região. O que mais impressiona é pegar as estatísticas dos conflitos e constatar que os julgamentos são raríssimos. Apenas os casos que aparecem na mídia nacional têm a possibilidade de um dia, 10, 20 anos depois, serem julgados.

O Doutor foi levado a cerca de 10 quilômetros do local onde foi baleado e jogado dentro de um brejo. Depois, pisaram em cima até afundar ele na lama BF – O senhor acompanhou o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996? Lermen – Trabalhava na equipe de educação de Parauapebas. Dávamos apoio para o MST. O motivo da morte dos 19 companheiros é absurdo. Havia sido feita toda uma jornada de lutas e os sem-terra negociaram com a polícia para arrumar ônibus que os levassem a Marabá e Belém. A combinação era que, até 11 horas do dia 17 de abril, eles deveriam retomar a negociação. Caso contrário os trabalhadores voltariam a ocupar a rodovia. Como não houve negociação, os sem-terra foram para a estrada. Nesse momento, os policiais não vieram mais para negociar. A ordem era do então governador Almir Gabriel (PSDB): “Desocupar a qualquer custo”. Na noite do mesmo dia fui para lá e cruzei com a caminhonete cheia de corpos. De arrepiar. Chegamos lá tarde da noite e a quantidade de sangue no chão era impressionante. O que impressiona nisso tudo é que o mandante (Gabriel) está na boa. Será candidato a governador neste ano. De repente, ganha as eleições de novo. Essas mortes não podem ser esquecidas. Quando alguém morre é só mais um.

BF – O que produzem os grandes proprietários em Parauapebas? Lermen – Só gado, uma produção viável apenas em grandes áreas. No passado, os pequenos foram dominados por essa idéia de querer ser grandes fazendeiros, ter muito gado, e entraram nessa linha da pecuarização. Isso foi uma desgraça para a região. Muitos pequenos derrubaram a parte da floresta de suas terras e acabaram não produzindo efetivamente. Conseguem 100, 150 cabeças, que é o máximo para suas terras, e acabam vendendo a propriedade depois. A coisa mais grave que enfrentamos na região é a venda de lotes. Há um reconcentração. Devemos colocar que, por períodos de até seis meses, essas famílias ficavam jogadas na terra, sem assistência. Está em curso também a produção de grãos para a região, só que de forma velada. O agronegócio se movimenta para produzir girassol e soja e dificulta a desapropriação de terras. Isso é complicado porque ainda tem muita terra grilada na região. BF – Como o senhor se elegeu nessa conjuntura? Lermen – Foi uma eleição totalmente diferente. Não tínhamos nenhum vereador do nosso partido. Dos 13, apenas um nos apoiava. Destes, apenas um se reelegeu. Havia um grande anseio por mudança na cidade. Eu já tinha sido candidato a prefeito e deputado estadual nos anos anteriores, quando fizemos um trabalho de visita às famílias. Hoje temos 120 mil habitantes e visitamos algo em torno de 9 mil casas. Era uma forma de chegar ao povo. Ganhamos a adesão da população, principalmente dos comerciantes. Onde quer que fossemos, eram 10 mil, 20 mil, 30 mil nos acompanhando, coisa de cidade capital. O mandato anterior não tinha nenhuma obra de mais de R$ 500 mil feita com recursos próprios. Na educação, por exemplo, em vez de construir mais escolas, foi criado o turno intermediário, turmas das 11 às 15 horas, além da manhã e da tarde. Para acabar com isso, vamos construir mais 18 escolas, além das seis que já fizemos. Apesar do aumento anual de 20% da população, eles deixaram o abastecimento de água para 70 mil habitantes. Vamos gastar R$ 13 milhões para levar água para as pessoas. Nosso maior desafio é incorporar o povo no governo. Trabalhamos com um excelente ponto de partida, que é o orçamento participativo (OP). Ele mobilizou 10% da população no ano passado, para gerir metade do plano de investimentos, R$ 32 milhões. Temos o maior programa de habi-

tação do Estado, são 514 casas. Que não são dadas. A pessoa pode morar lá pelo resto da vida, mas é patrimônio da prefeitura. Assim, impedimos que qualquer sobressalto resulte na venda da casa. Temos ainda o maior programa de agricultura familiar do Estado. Investimos talvez mais até que o governo. Fizemos estradas, açudes e aramos a terra para os agricultores. Com isso conseguimos frear o desmatamento. No entanto, apesar das obras, se não trabalharmos a consciência das pessoas, não teremos feito nada. Estamos criando os círculos populares de leitura para a cidadania. É uma forma de chegarmos aos bairros com uma bolsa para que os jovens reúnam-se uma vez por semana, durante três horas, para praticar a leitura. Temos uma taxa de 15% a 20% de analfabetos em Parauapebas, por isso é importante criar uma rede de educadores populares. BF – Como é a história de Parauapebas? Lermen – Parauapebas surgiu em função do Projeto Carajás. É uma região de florestas e montanhas muito lindas onde já é explorado manganês, ferro, ouro, cobre e níquel. Descoberta na década de 1960, começou a ser explorada pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). No final dos anos 1970, descobriram Serra Pelada, a cerca de 70 quilômetros de Parauapebas, para onde foram 80 mil homens. De um lado havia a grande companhia, sob a tutela do Estado, explorando a região. Do lado de fora, os pobres querendo seu pedacinho. Com o tempo, a região passou a ser vista de forma estratégica. Em 1985, o Projeto Carajás começou, efetivamente. No entanto, se você tinha 20 mil homens trabalhando na implantação, para o funcionamento eram necessários apenas 1,2 mil. Com a exploração do ferro, entra em funcionamento a ferrovia de Carajás. Nela circulam 20 trens por dia, passando por regiões muito pobres. As pessoas imaginam: “De onde vem esse trem, só pode ter emprego”. O trem chega três vezes por semana em Parauapebas. Fizemos um levantamento: em nenhuma vez veio menos de 50 famílias. Essa é a nossa cidade. Cresce de forma assustadora e as pessoas moram em áreas de risco. BF – Como é o conflito entre a Vale e os agricultores? Lermen – A Vale queria impedir a passagem dos agricultores do assentamento Palmares por cima da ferrovia. A roça fica de um lado e as casas, de outro. Os trabalhadores ameaçaram ocupar a ferrovia e a Vale começou a negociar. Propôs a construção de túneis, cercas, mas repassou as obras para outra

No entanto, apesar das obras, se não trabalharmos a consciência das pessoas, não teremos feito nada BF – Qual sua opinião sobre a campanha para reestatizar a Vale? Lermen – É extremamente importante. Primeiro, pelas condições em que foi feita a privatização. A Vale foi dada de presente. O pessoal mostra que, hoje, a Vale lucra muito mais. Claro. O grupo político do governo federal na época tinha interesse em sucatear a CVDR, a Petrobrás, a Caixa Econômica... O mínimo que devemos fazer é colocar esse debate de novo na mesa. Luís Brasilino/Brasil de Fato

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ma elite conservadora e um Poder Judiciário que pende para o lado dos mais fortes, no Estado brasileiro com os maiores índices de violência no campo, não impediram Darci José Lermen (PT) de conquistar o cargo de prefeito da cidade paraense de Parauapebas, em 2004. Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Lermen comenta a questão agrária e o crescimento populacional “maluco” de 20% ao ano. Rodeada pelo Projeto Carajás, da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a cidade de Parauapebas recebe mais de 150 famílias de migrantes por semana.

empresa, que não cumpriu os prazos. Os trabalhadores se sentiram enganados e estão novamente dispostos a ocupar a ferrovia.

Marcello Casal Jr/ABr

Luís Brasilino da Redação

Quem é Darci José Lermen nasceu há 40 anos em Santo Cristo (RS). Aos 12, foi para um seminário, onde ficou mais de dez anos. Quando saiu foi para o Pará, trabalhar na Equipe de Educação Popular de Parauapebas. Nesse período, exerceu a profissão de professor concursado em filosofia, história, geografia e sociologia. Foi candidato a prefeito em 2000, tendo 5,7% dos votos. Em 2002, tentou a Assembléia Legislativa do Pará. Ficou com 22% dos votos de Parauapebas, percentual insuficiente para se eleger. A campanha, contudo, pavimentou o caminho para a vitória nas eleições municipais de 2004.


Ano 4 • número 164 • De 20 a 26 de abril de 2006 – 9

SEGUNDO CADERNO ALTERNATIVA POPULAR

Em Havana, movimentos sociais do continente americano traçam planos para combater a dominação dos EUA

Arquivo Brasil de Fato

Prioridade: ganhar a consciência popular Idânia Trujilo, de Havana (Cuba)

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erca de 400 delegados de 36 países reunidos em Havana convocaram os movimentos sociais da América Latina a “unir forças” contra o que denunciaram como “as crescentes ameaças hegemônicas do governo dos Estados Unidos”. Depois de quatro dias de análises sobre como “enterrar definitivamente a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) impulsionada por Washington”, as organizações chegaram, de forma consensual, à avaliação de que “para combater a dominação imperial e o neoliberalismo, é fundamental ganhar a guerra pela consciência popular”. O 5º Encontro Hemisférico de Luta contra a Alca, realizado entre 12 e 15 de abril, em sua declaração final, também alerta que a “mentalidade bélica da Casa Branca constitui um perigo para a soberania dos países da América Latina”. Para os líderes sindicais, camponeses e indígenas, “a comunhão de pensamento e ação deve se elevar aos níveis superiores com a participação de todas as forças progressistas do mundo, pois são muitos os desafios na construção e na defesa de alternativas à Alca”. Ganhar a consciência do povo – acrescenta o texto – passa pela difusão de outras iniciativas, como a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), promovida por Cuba e Venezuela, e os Tratados de Comércio dos Povos (TCP), lançados pelo presidente boliviano, Evo Morales. Em outro momento, a declaração final define que “neste caminho, não pode estar ausente a necessidade de acabar com a dívida externa,

Cubanos protestam contra campanha dos Estados Unidos para disseminar terrorismo na Ilha e em outros países da América Latina

usada pelas grandes potências e instituições financeiras como instrumento de chantagem para disciplinar os países devedores”.

AGENDA Na sessão de encerramento do encontro, presenciada por estudantes de vários países latino-americanos e caribenhos que estudam medicina em Cuba, Aliança Social Continental – foi apresentada a Fórum de organiza- agenda de ação ções e movimentos da Aliança Sosociais progressiscial Continental. tas das Américas criado para trocar O Encontro Heinformação, definir misférico criou estratégias e proespaços para que mover ações conjuntas. Um de seus as redes e campaobjetivos é busca nhas pudessem de um modelo de se reunir e dedesenvolvimento alternativo e demo- senhar suas prócrático. prias estratégias,

Diálogo com a Comunidade Sul-Americana de Nações Um dos principais eixos do 5º Encontro Hemisférico de movimentos sociais e redes que lutam contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foi a discussão de alternativas aos acordos de livrecomércio que os Estados Unidos estão impulsionando na região. Mais concretamente, debateu-se como os atores populares podem incidir nos processos de integração em curso. As organizações decidiram organizar uma Cúpula Social pela Integração dos Povos para ser realizada ao mesmo tempo que o encontro da Cúpula da Comunidade Sul-Americana de Nações, em setembro, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. O objetivo é avançar nas propostas concretas que deverão ser consideradas pelos governos para não reproduzir os exemplos de integração subordinada, conceito presente nas propostas dos Estados Unidos com sua agenda de livre-comércio. Essa decisão de realizar um encontro paralelo decorre de uma leitura da conjuntura atual das organizações que enfatiza a necessidade de trabalhar em uma “agenda ofensiva” de apresentação de propostas para avançar na integração dos povos. Essa idéia é um passo à frente na “agenda defensiva” que se concentra, sobretudo, em resistir e denunciar os efeitos nefastos dos acordos de livre-comércio sobre os bens naturais, a agricultura camponesa, etc. Ou seja, a formulação de alternativas de integração

surge como etapa seguinte para a unificação das lutas contra o neoliberalismo na região. A Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN) é o protótipo de um acordo de livre-comércio entre os países que hoje integram o Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e o Pacto Andino (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela), além do Chile, Suriname e Guiana. Da América do Sul, apenas a Guiana Francesa não integra o novo bloco regional por já fazer parte da União Européia – trata-se de um departamento ultramarino francês. A CNS nasceu em dezembro de 2004, a partir da Declaração de Cuzco. Atualmente, os países-membros estão discutindo os seus mecanismos de funcionamento interno. (Minga, www.movimientos.org)

articulação e construção de alternativas regionais. Representantes de organizações, movimentos e outras redes e campanhas socializaram suas experiências e puderam conformar planos de ação comuns em torno dos temas centrais da agenda dos movimentos sociais na região, tais como: a oposição ao livre comércio em todas as suas complexas e diversas formas de expressão – Alca, Organização Mundial do Comércio (OMC), Tratados de Livre Comércio (TLCs); a resistência à ofensiva militarista, a oposição à globalização neoliberal e suas instituições financeiras internacionais e a construção de alternativas a favor da integração de nossos povos. Também recebeu destaque a discussão sobre o desafio de se avançar com propostas alternati-

vas a partir política do chegada ao eleitos com gemônicas.

da nova conjuntura continente, com a poder de governos propostas contra-he-

RESISTÊNCIA Muitas das ações propostas pelos movimentos sociais presentes neste 5º Encontro respondem às manobras de Washington, empenhada em fazer valer seus objetivos de dominação por meio de acordos como os TLCs com regiões ou países, separadamente. Em tal sentido, convocou-se um boicote aos produtos estadunidenses para o 1º de maio (leia mais na página 12). Outra ameaça enfatizada foram os planos da Aliança de Segurança e Prosperidade da América do Norte (Aspan). Trata-se de uma

associação dos Estados Unidos, Canadá e México que tem como objetivo a ampliação das políticas de livre-comércio para outras regiões do continente. Além disso, a Aspan estabelece a adoção de políticas comuns em relação à segurança e à fronteira desses países. Por meio dessa iniciativa, os Estados Unidos querem exercer via México um maior controle sobre latino-americanos que pretendem migrar para o seu território. Os movimentos sociais afirmaram que combater esses planos implica não só ampliar as campanhas através dos meios de comunicação alternativos e comunitários, mas também fortalecer as convergências e mobilizações populares para criar uma eficaz rejeição a esse projeto. (Minga e agências internacionais)

Aspan: a nova estratégia dos EUA Representantes do México, dos Estados Unidos e do Canadá se reuniram em Havana, durante o Encontro Hemisférico, para articular um plano de ação regional contra as políticas neoliberais que afetaram seus países. No debate, discutiramse temas como a situação eleitoral na América do Norte, a possível articulação com outras campanhas de lutas. Um dos objetivos centrais é manifestar oposição à Aliança de Segurança e Prosperidade da América do Norte (Aspan), iniciativa lançada pelos presidentes George W. Bush (EUA), Vicente Fox (México) e o primeiro-ministro Stephen Harper (Canadá). A agenda desse acordo explicita a necessidade do

império estadunidense de responder a um contexto contrário a seus propósitos e renovar sua política de subordinação política e econômica sobre os países vizinhos.

ANEXAÇÃO PROGRESSIVA Dois eixos ocultos da Aspan são as reformas econômicas para fazer a América do Norte – sob liderança dos EUA – mais competitiva frente a outras potências como China e União Européia e a criação de uma coalizão militar que permita aos Estados Unidos defender seu próprio território. “Trata-se de uma anexação progressiva que não se obtém sem a piora das condições de vida dos trabalhadores e das pessoas pobres do Norte”, expressaram os ativistas.

Uma das características da Aspan é que os três mandatários discutem e aprovam sua agenda sem consultas ao poder Legislativo. Na prática, essa metodologia facilita a penetração do lobby das transnacionais estadunidenses e, além disso, reforça a capacidade de resposta militar dos Estados Unidos diante de um caso de emergência nacional. Por essa razão, os ativistas planejam a realização de uma reunião trinancional de parlamentares em junho, na cidade de Ottawa (Canadá), para articular estratégias de combate à Aspan e para alertar a opinião pública dos riscos embutidos nesse acordo. (Minga e agências internacionais)

Bolívia propõe comércio entre os povos Frente aos Tratados de Livre Comércio (TLCs), projetos impulsionados pelos Estados Unidos, o governo boliviano defendeu, durante o Encontro Hemisférico contra a Alca, uma relação estreita entre os povos em defesa de seu bem-estar social. Essa proposta foi apresentada por Pablo Sólon, em nome do presidente boliviano, Evo Morales, que a defendeu como uma alternativa para a integração das nações da região. Batizada de Tratado de Comércio com os Povos (TCP), a proposta foi defendida como uma resposta ao esgotamento do modelo neoliberal, fundado

na desregulamentação, na privatização e abertura indiscriminada dos mercados. Sólon explicou que, ao contrário do referencial capitalista, o TCP introduz no debate sobre a integração comercial temas como complementação, cooperação, solidariedade e respeito à soberania nacional. A iniciativa incorpora objetivos como redução efetiva da pobreza, preservação das comunidades indígenas, recursos naturais e os valores autônomos da cultura. Segundo o boliviano, o TCP não trabalha com a idéia de que o comércio e o investimento sejam fins em si próprios, mas sim

como meios de desenvolvimento e benefício para as nações do continente. A Bolívia está se propondo o desafio de alcançar uma integração que transcenda o campo comercial e cuja filosofia seja alcançar o desenvolvimento interno de forma justa e sustentável. Uma característica particular do TCP é seu traço indígena, pois promove a idéia do trabalho como um espaço de felicidade para a familia, conforme a tradição milenar dos povos, dentro de uma perspectiva na qual o mercado “deixa de ser o novo patrão”, explicou Sólon.(Minga e agências internacionais)


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De 20 a 26 de abril de 2006

AMÉRICA LATINA GUATEMALA

Movimentos sociais lançam ofensiva da Redação

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Guatemala poderá ver, nos próximos dias, o início de uma série de mobilizações de grande envergadura, prevê Juan Tiney, dirigente da Coordinadora Nacional Indígena y Campesina (Conic). Organizações camponesas, indígenas e sindicais do país se preparam para realizar, nos dias 20 e 21, protestos nacionais frente à falta de resposta do governo do presidente guatemalteco, Oscar Berger, a nove reivindicações reunidas em um documento e entregue aos três poderes do Estado no dia 30 de março. Os movimentos sociais exigem, entre outras coisas, a solução dos conflitos de terra, o perdão da dívida agrária de milhares de famílias camponesas, o fim dos despejos violentos, o acesso a programas de desenvolvimento e o fim de concessões de mineração a estrangeiros. Estavam previstas para os dias de mobilizações a ocupação de estradas, fronteiras e aeroportos, assim como o impedimento de entrada em edifícios públicos. Tiney afirmou que os setores sociais decidiram apoiar a convocação por estarem cansados de esperar uma resposta a suas demandas. De acordo com ele, a única coisa que pode deter um levante nacional é uma proposta concreta por parte do governo, com prazos e orçamentos definidos. Enquanto o Executivo enviou uma resposta não satisfatória, os movimentos ainda aguardam a manifestação do

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Organizações exigem do governo o fim dos despejos violentos e o perdão da dívida agrária dos camponeses

MÉXICO

ELZN encampa guerra contra hidrelétrica da Redação

Camponeses guatemaltecos resistem às agressões de latifundiários e do governo, que não resolve os conflitos agrários

Congresso da República e da Corte Suprema de Justiça.

ADESÃO DOS PROFESSORES Ao mesmo tempo, os professores guatemaltecos declararam-se em assembléia nos dias 20 e 21 para apoiar os protestos dos camponeses e tomar uma decisão sobre o diálogo com as autoridades da área de educação. Segundo Joviel Acevedo, da Asamblea Nacional Magisterial, já existe uma aliança entre os docentes e a Conic em defesa dos interesses populares. Respondendo a um chamado da entidade camponesa para renuncia-

rem a seus cargos no governo e para se somarem aos protestos, funcionários indígenas que trabalham em cerca de 25 instituições do Estado pediram audiência ao presidente para apresentarem propostas para a solução da crise que se avizinha. No dia 16, em mensagem à nação, o presidente fez um chamado à reflexão e à prevenção de ações de polarização da sociedade, e advertiu que “não aceitará violência de nenhuma forma”. Para Juan Tiney, a fala de Berger foi mais uma ameaça que um convite ao diálogo. No dia 18, a Frente Nacional de Lucha, entidade composta por

mais de 30 organizações sociais e sindicais, anunciou sua adesão a um boicote a produtos estadunidenses, convocado por imigrantes nos Estados Unidos para o Dia Internacional dos Trabalhadores, dia 1º de maio. O objetivo é protestar contra a política de Washington de criminalizar os indocumentados, punir quem os ajude e construir muros na fronteira com o México. A Central General de Trabajadores de Guatemala anunciou para os próximos dias uma manifestação em frente à embaixada estadunidense. (com Prensa Latina – www.prensa-latina.com)

A construção do megaprojeto hidrelétrico La Parota, impulsionado pelo governo do presidente Vicente Fox, poderá desencadear um conflito armado no sudeste mexicano, advertiu o subcomandante Marcos, agora conhecido como delegado Zero. O líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) fez a advertência ao lado de moradores do município de Acapulco, onde se pretende construir a usina. “Queremos avisar a Vicente Fox e seu braço amarelo e negro (o governador do Partido da Revolução Democrática), Zeferino Torreblanca, que se o exército atacar estas terras terá também que atacar as montanhas do sudeste mexicano”, ameaçou. Marcos reuniu-se no dia 16 com integrantes do Conselho de Comunidades Opositoras à Represa La Parota (Cecop), quando foi lido o manifesto da organização social, que denuncia que o referido projeto destruirá 17 mil hectares, acabará com 36 comunidades, expulsará 25 mil pessoas e afetará diretamente outras 50 mil. (Prensa Latina – www.prensa-latina.com)

ANÁLISE

Abracadabra Discurso no enterro de Ubagesner Chaves: “Aqui não há desaparecidos” foi, durante trinta anos, a versão oficial no Uruguai. Agora começam a aparecer. Mortos na tortura, enterrados nos quartéis. O funeral do primeiro deles, em 14 de março passado, reuniu uma multidão nas ruas de Montevidéu. Em cada 14 de março, as uruguaias e os uruguaios que foram prisioneiros da ditadura, celebram o Dia do Libertado. É algo mais que uma coincidência. Os desaparecidos que estão começando a aparecer, Ubagesner Chaves, Fernando Miranda, convocam-nos a lutar pela libertação da memória, que continua presa. O nosso país quer deixar de ser um santuário da impunidade, impunidade dos assassinos, impunidade dos ladrões, impunidade dos mentirosos, e nessa direção estamos dando, por fim, depois de tantos anos, os primeiros passos. Este não é um fim de caminho. É um início. Custou muito, mas estamos começando o duro e necessário percurso da libertação da memória, num país que parecia condenado à pena de amnésia perpétua. Todos os que aqui estamos partilhamos a esperança de que, mais cedo que tarde, haverá memória e haverá justiça, porque a história ensina que a memória pode sobre-

viver tenazmente a todas as suas prisões e ensina que a justiça pode ser mais forte que o medo, quando conta com a ajuda dos homens. Dignidade da memória, memória da dignidade. No desigual combate contra o

Kipper

Eduardo Galeano

medo, nesse combate que cada um trava a cada dia, que seria de nós sem a memória da dignidade? O mundo está sofrendo um alarmante desprestígio da dignidade. Os indignos, que são os que mandam no mundo, dizem que os indignados são pré-históricos, nostálgicos, românticos, negadores da realidade. Todos os dias, em todas as partes, ouvimos o elogio do oportunismo e a identificação do realismo com o cinismo, o realismo que obriga ao encontrão e proíbe o abraço, o realismo do vale-tudo e do arranja-te como puderes e se não puderes lixa-te. O realismo, também, do fatalismo. O mais lixado dos muitos fantasmas que espreitam, diariamente, o nosso governo progressista, aqui no Uruguai, e outros novos governos progressistas da América Latina. O fatalismo, perversa herança colonial, que nos obriga a crer que a realidade pode ser repetida mas não pode ser transformada, que o que foi é e será, que amanhã não é mais que outro nome para hoje. No entanto, acaso não foram reais, acaso não são reais, as mulheres e os homens que lutaram e lutam para transformar a realidade, os que creram e crêem ainda que a realidade não exige obediência?

Não são reais Ubagesner Chaves e Fernando Miranda e todos os que estão chegando, desde o fundo da terra e do tempo, a dar testemunho de uma outra realidade possível? E todas e todos os que com eles acreditaram e quiseram, não foram, não continuam sendo reais? Foram irreais os verdugos, irreais as vítimas, irreais os sacrifícios de tanta gente neste país que a ditadura converteu na maior câmara de torturas do mundo? A realidade é um desafio. Não estamos condenados a escolher entre o mesmo e a mesma coisa. A realidade é real porque nos convida a transformá-la e não porque nos obrigue a aceitá-la. Ela abre espaços de liberdade e não nos encerra necessariamente nas cadeias da fatalidade. Bem dizia o poeta que um galo só não tece a manhã. Não estive sozinho na vida, e na morte não está só, este crioulo Ubagesner, de nome tão raro, que é hoje um símbolo da nossa terra e da nossa gente. Este militante operário encarna o sacrifício de muitas companheiras e de muitos companheiros que acreditaram no nosso país e na nossa gente, e que por acreditar

O “primeiro aparecido” da Redação O mundo comprovou em 29 de novembro de 2005 o que os militares no Uruguai sempre negaram: que a ditadura no país deixara vítimas ou “desaparecidos”. Nessa data, foram encontrados os restos mortais de Ubagesner Chaves Rosa, enterrados em uma chácara a vinte quilômetros de Montevidéu. Metalúrgico,

sindicalista e militante do Partido Comunista, Chaves Rosa tinha 38 anos quando foi seqüestrado por um militar na capital uruguaia, a poucas quadras de sua casa. Torturado e preso, morreu poucos dias depois. O funeral e o enterro de Ubagesner reuniram uma multidão nas ruas de Montevidéu. O dia escolhido foi o 14 de março, quando se comemora o Dia do Libertado – nessa data, em 1985, todos os prisioneiros

políticos foram soltos. Durante a cerimônia, foi realizado um protesto exigindo investigações de outros cemitérios clandestinos de vítimas das ditaduras e a punição dos militares que foram protegidos pela Lei de Caducidade, em 1986. O texto que publicamos ao lado foi lido por Eduardo Galeano na ocasião. O regime militar, no Uruguai, durou de 1973 a 1985.

apostaram e deram a própria vida. Viemos aqui dizer-lhes que valeu a pena. Viemos dizer-lhes que não morreram em vão. Aqui estamos hoje, reunidos, para dizer-lhes que razão têm aqueles tangos em que se canta que a vida é um instante, mas há vidas que duram assombrosamente muito, porque duram em todos os outros, nos que vêm a seguir. Tarde ou cedo, nós, caminheiros, seremos seguidos, pelos passos dos que hão-de vir, assim como os nossos passos caminham, agora, sobre as pegadas que outras passadas deixaram. Agora que os donos do mundo nos estão obrigando a arrepender de toda a paixão, agora que está tão na moda a vida frígida e mesquinha, não fica nada mal recordar aquela palavrita que todos aprendemos nos contos da nossa infância, ”abracadabra”, a palavra mágica que abria todas as portas, e recordar que abracadabra significa, em hebreu antigo: “Envia o teu fogo até ao fim”. Esta jornada, mais que um funeral, é uma celebração. Estamos celebrando a memória viva de Ubagesner e de todas e de todos as mulheres e homens generosos que neste país enviaram o seu fogo até ao fim, os que nos continuam ajudando a não perder o rumo, e a não aceitar o inaceitável, e a não nos resignarmos nunca, e a não deixarmos nunca de cavalgar o belo corcel da dignidade. Porque nas horas mais difíceis, naqueles tempos inimigos, nos anos de humilhação e medo da ditadura militar, eles souberam viver para se dar e se deram inteiros, se deram sem nada pedir em troca, como se vivendo cantassem aquela antiga copla andaluza que dizia, e diz ainda, e para sempre diz: “Tenho as mãos vazias, mas são minhas, as mãos”.


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AMÉRICA LATINA GOLPE DE ESTADO

Tentaram fuzilar Chávez, revela Fidel Presidente cubano desvenda os bastidores do fracassado golpe da oposição venezuelana em 2002

Ignacio Ramonet – Você tem acompanhado de perto a evolução da situação na Venezuela, em particular as tentativas de desestabilização contra o presidente Chávez? Fidel Castro – Sim, temos seguido com muita atenção os acontecimentos. Chávez nos visitou quando saiu da prisão antes das eleições de 1998. Foi muito valente porque o reprovaram muito porque iria viajar a Cuba. Veio e conversamos. Descobri um homem culto, inteligente, muito progressista, um autêntico bolivariano. Logo, ganhou as eleições. Várias vezes. Mudou a Constituição. Com um formidável apoio do povo, das pessoas mais humildes. Os adversários tentaram asfixiá-lo economicamente. Da Venezuela, nos 40 famosos anos da democracia que precederam a Chávez, eu calculo que foram desviados cerca de 200 bilhões de dólares. A Venezuela podia estar mais industrializada do que a Suécia e ter o mesmo nível de educação deste país, se houvesse ocorrido uma democracia distributiva, se esses mecanismos tivessem funcionado, se houvesse algo de certo e crível em toda essa demagogia.

Decidimos assumir a defesa da democracia venezuelana, já que tínhamos conhecimento de que países como Estados Unidos e Espanha, que tanto criticam Cuba, estavam apoiando o golpe de Estado Ramonet – Em 11 de abril de 2002, houve um golpe de Estado em Caracas contra Chávez. Como acompanhou esses acontecimentos? Fidel – Quando tomamos conhecimento que a manifestação da oposição caminhava para o Palácio Miraflores (sede do governo), que havia as provocações, os tiros, as vítimas e que alguns altos oficiais haviam se pronunciado publicamente contra o presidente, e que o exército queria seqüestrá-lo, eu liguei para Chávez porque sei que

Durante o golpe de abril de 2002, Fidel Castro aconselhou a Chávez (à esquerda) que não renunciasse

ele por telefone e confirmei exatamente o que María Gabriela havia dito. E o general me traçou uma avaliação da situação. Entendi que nada estava perdido, as melhores unidades das Forças Armadas, as mais aguerridas, estavam com Chávez. Logo depois, o general me passa o seu superior hierárquico e eu lhe falei da necessidade de enviar forças leais para resgatar Chávez. Eu lhe recordei da lealdade necessária, de Simon Bolívar, da história da Venezuela... E esse alto funcionário, em um lance de patriotismo e fidelidade à Constituição, afirma que se é certo que Chávez não se demitiu, ele segue sendo fiel ao presidente seqüestrado.

se encontrava indefeso e que é um homem de princípios. Eu disse: “Não te sacrifique, Hugo! Não faças como Allende! Allende era um homem só, não tinha um soldado. Tu tens grande parte do Exército. Não se demita! Não renuncies!” Ramonet – Você estava incentivando a resistir com armas na mão? Fidel – Ao contrário, isso foi o que fez Allende e pagou heroicamente com sua vida. Chávez tinha três soluções: fazer uma trincheira em Miraflores e resistir até a morte; convocar o povo à insurreição e desencadear uma guerra civil; ou render-se sem renunciar nem se demitir. Nós o aconselhamos com a terceira escolha. Porque, além do mais, como ensina a história, todo dirigente popular derrubado nessas circunstâncias, se não o matam, o povo o quer de volta e, cedo ou tarde, regressa ao poder. Ramonet – Vocês ajudaram de alguma maneira a Chávez neste momento? Fidel – Nós só podíamos atuar usando a diplomacia. Convocamos em plena noite todos os embaixadores sediados em Havana e propusemos que acompanhassem Felipe Pérez Roque, nosso ministro das Relações Exteriores, a Caracas para resgatar Chávez, presidente legítimo. Chávez havia sido feito prisioneiro pelos militares golpistas e não se divulgava seu paradeiro. A televisão difundia notícias de sua “demissão” para desmobilizar seus partidários, o povo. Mas, em um momento, permitiram a Chávez fazer um telefonema e pôde falar com sua filha María Gabriela. Ele lhe disse que não havia renunciado, mas sim que era um “presidente seqüestrado”. A filha teve, então, a idéia audaz de me telefonar e me informa. Nós decidimos então assumir a defesa da democracia venezuelana, já que tínhamos conhecimento de que países como Estados Unidos e Espanha (então governada por José María Aznar), que tanto falam de democracia e criticam Cuba, estavam apoiando o golpe de Estado. Pedimos a Maria Gabriela que repetisse a informação e gravamos a conversação dela com Randy Alonso, âncora do programa Mesa Redonda da televisão cubana. A conversa teve grande repercussão internacional. Imediatamente, a notícia se difundiu na Venezuela como rastro de pólvora. Ramonet – E que conseqüências teve? Fidel – Bem, os militares fiéis a Chávez souberam que estavam sendo enganados com a mentira da renúncia e então se produziu um contato com um general favorável a Chávez. Eu falei com

Ramonet – Mas naquele momento não se sabia onde Chávez estava? Fidel – No entanto, Chávez havia sido levado à ilha de La Orchila. Estava incomunicável. O arcebispo de Caracas, Baltazar Porras, vai vê-lo e o aconselha a se demitir. “Para evitar uma guerra civil”, disse, e depois lhe pede que escreva uma carta. Chávez não sabia o que estava se passando em Caracas ou então no resto do país. Tentaram fuzilá-lo, mas o pelotão de soldados encarregado de disparar se negou a fazê-lo e ameaçava se rebelar. Chávez tenta ganhar tempo com o bispo. Faz rascunhos de uma declaração. Teme que uma vez a carta escrita, utilizem-na para eliminá-lo. Não pensa em renunciar e declara que terão de matá-lo antes.

Chávez não sabia o que estava se passando em Caracas ou então no resto do país. Tentaram fuzilálo, mas o pelotão de soldados encarregado de disparar se negou a fazê-lo e ameaçava se rebelar

Ramonet – Como Chávez retorna ao poder? Fidel – Bom, em um momento, produz-se de novo um contato com o primeiro general com quem falei e ele me informa que já localizaram Chávez, na ilha de La Orchila. Conversamos sobre a forma de resgatá-lo e eu, com muito respeito, aconselho-lhe três coisas fundamentais: discrição, eficácia e força muito superior. Os pára-quedistas da base de Maracay, melhor unidade das Forças Armadas venezuelanas, fiel a Chávez, foram encarregados do resgate. Entretanto, em Caracas, o povo está mobilizado pedindo que Chávez volte, a guarda presidencial ocupava Miraflores e também exige o retorno do presidente. Os golpistas são expulsos do palácio. O próprio Pedro Carmona, presidente da federação patronal e brevíssimo presidente usurpador

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o livro Fidel Castro, biografia a dos voces (ainda sem tradução para o português), o presidente cubano confiou informações não divulgadas sobre os fatos de abril de 2002 na Venezuela – durante a malsucedida tentativa dos empresários locais, com apoio de Washington, de derrubar Hugo Chávez. Fidel afirma que ligou para o Palácio de Miraflores antes de Chávez se entregar e lhe disse: “Não te sacrifique, Hugo; não faça como Allende (Salvador Allende, ex-presidente chileno morto pelos militares no Palácio La Moneda), que era um homem só; tu tens uma grande parte do Exército, não se demita nem renuncie”. Fidel Castro, que tantos discursos pronuncia, deu poucas entrevistas, sobretudo extensas. Apenas quatro foram publicadas durante 50 anos. A quinta, concedida ao diretor do Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, virou o livro Fidel Castro, biografia a dos voces, resumo da vida e do pensamento do Chefe de Estado de Cuba registrados em 100 horas de conversação. Abaixo, publicamos trechos desse diálogo que se referem ao golpe da elite venezuelana de abril de 2002.

da Venezuela, quase foi seqüestrado ali mesmo no palácio. Por fim, já de madrugada, no dia 14 de abril de 2002, resgatado por fiéis militares, Chávez chega a Miraflores em meio a uma apoteose popular. Eu quase não dormi nesses dias em que durou o golpe de Caracas, mas valeu a pena ver como o povo e também uns militares patriotas defenderam a legalidade. Não se repetiu a tragédia do Chile de 1973.

Marcelo García

da Redação

Quem é Fidel Alejandro Castro Ruz nasceu em 1926, estudou em um colégio jesuíta e se formou advogado em 1950. Cuba vivia sob a ditadura de Fulgêncio Batista, um aliado dos Estados Unidos que reprimia internamente os movimentos nacionalistas. Preso em 1953 por liderar um malsucedido ataque ao quartel de La Moncada, Fidel foi anistiado e buscou exílio no México, onde montou uma guerrilha com o argentino Ernesto Che Guevara. No dia 1º de janeiro de 1959, os guerrilheiros apoiados pela população expulsaram Batista e tomaram o poder. Fidel Castro se tornou primeiro-ministro em 16 de fevereiro de 1959 e comandou as transformações que levaram Cuba a se tornar o primeiro país latinoamericano socialista, líder nos indicadores sociais do continente.

Ramonet – Chávez é um representante dos militares progressistas, mas na Europa e mesmo na América Latina, muitos progressistas o reprovam precisamente por ser um militar. Que opinião você tem sobre essa aparente contradição entre o progressismo e o militar? Fidel – Olhe, temos na Venezuela um Exército jogando um importante papel com a Revolução Bolivariana. E Omar Torrijos, no Panamá, foi um exemplo de militar com consciência. Juan Velasco Alvarado, no Peru, também levou a cabo algumas ações de progresso notáveis. Não há que se esquecer que, entre os próprios brasileiros, Luis Carlos Prestes foi um oficial do Exército que realizou uma marcha em 1924-1926 quase como a que fez Mao Zedong 1934-1935. Jorge Amado escreveu a história daquela marcha de Prestes, o Cavaleiro da Esperança, entre suas magníficas novelas – eu tive a oportunidade de ler todas –, e a marcha foi algo impressionante, durou dois anos e meio, percorrendo imensos territórios de seu país sem sofrer uma única derrota. Ou seja, houve proezas que saíram dos militares. Vou citar um militar do México: Lázaro Cárdenas, un general da Revolução Mexicana que nacionalizou o petróleo. Teve um valor muito grande, realizou a reforma agrária e conquistou o apoio do povo. Quando se fala de questões do México, não há que se esquecer de papéis desempenhados por personalidades como Lázaro Cárdenas, de origem militar. Como não se pode se esquecer que os primeiros que, no século XX, rebelaram-se na América Latina, nos anos 50, foram jovens guatemaltecos em torno da figura de Jacobo Arbenz que participaram de atividades revolucionárias. Bem, não se pode dizer que seja um fenômeno geral, mas há uma série de casos de militares progressistas. Perón, na Argentina, também tinha origem militar. No momento em que surge, em 1943, foi nomeado ministro do Trabalho e faz tais leis que quando o levam à prisão, o povo o resgata, e era chefe militar. Também há um civil que teve influência entre os militares, estudou na Itália, onde também esteve Perón, que foi Jorge Eliécer Gaitán, e eram líderes populares. Perón era agregado da embaixada, esteve ali em Roma nos anos trinta durante a era mussoliniana (Benito Mussolini) e algumas das formas e métodos de mobilizações de massa que viu o deixaram impressionado. Foi influenciado, inclusive em alguns processos; mas nos casos em que menciono essa influência, Gaitán e Perón a utilizaram de forma positiva porque é preciso ver que Perón fez reformas sociais. Ele cometeu, digamos, um erro: ofendeu a oligarquia argentina, a humilhou, retirando-lhe o teatro simbólico e algumas instituições. Trabalhou com as reservas e os recursos que o país possuía e melhorou as condições de vida dos trabalhadores. Os operários são muito gratos e Perón se converteu em um ídolo dos trabalhadores.


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INTERNACIONAL DIREITOS NEGADOS

Dia 1º de Maio, boicote contra os EUA da Redação

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enhum latino-americano residente nos Estados Unidos deverá ir para o trabalho ou para a escola dia 1º de maio. Também nos países latino-americanos, especialmente nos que mais enviam imigrantes, a população deverá boicotar os produtos vendidos por empresas estadunidenses. É o apelo que fazem organizações de imigrantes que atuam nos Estados Unidos. A campanha pretende pressionar o governo e o Congresso estadunidenses e faz parte das manifestações que exigem uma lei migratória “mais integral e mais humana”. O “Dia sem os imigrantes” quer mostrar a força que tem a mão-de-obra latina na economia dos Estados Unidos. Movimentos sociais no México e na Guatemala já se pronunciaram em apoio aos imigrantes. A Central Geral de Trabalhadores da Guatemala (CGTG) apoiará todas as medidas contra a reforma migratória. Além de participar do boicote, está organizando uma manifestação em frente à embaixada dos EUA para o dia 1º de Maio. No México, os sindicatos, grupos políticos e comunitários, jornalistas e alguns escritórios governamentais se uniram aos migrantes. Bispos da Igreja Católica pediram, durante a homilia da Sexta-Feira Santa, que os católicos mexicanos apóiem o boicote comercial contra os EUA. Em declarações à imprensa mexicana, Pablo González, porta-voz da Federação Revolucionária de Trabalhadores e Camponeses, disse que sua organização apoiará um boicote contra “pelo menos quatro das empresas mais importantes dos Estados Unidos, entre elas o Wall-Mart”, uma das maiores empresas no mercado mexicano. A campanha de boicote somase às mobilizações que não páram

Fotos: Indymedia/New York

Em milhões nas ruas, imigrantes exigem o fim da política de perseguição implementada pelo governo Bush de pedir residência). No início do mês, republicanos e democratas avançaram quase até um acordo sobre o assunto, mas o mesmo ficou truncado por discordâncias de última hora na redação do projeto, conhecido como “HR 4437”.

DIREITOS DOS IMIGRANTES

Protestos terão como alvo o projeto de lei nos EUA que criminaliza imigrantes ilegais e quem os ajuda

de crescer em várias cidades nos Estados Unidos nas últimas semanas. Os imigrantes são milhões nas ruas, para exigir que as leis sobre imigração não criminalizem os trabalhadores ilegais. “Abram as fronteiras, acabem com a guerra”, gritavam aproximadamente cem mil manifestantes enquanto caminhavam pelas ruas de Nova York, capital financeira e maior cidade do país, dia 10. “Somos os Estados Unidos”, gritavam uníssono, ao mesmo tempo em que se ouviam centenas de tambores. “Legalizar, não penalizar os imigrantes.” Os manifestantes de origem latino-americana eram maioria em Nova York, mas houve uma numerosa participação de imigrantes do sudeste da Ásia e da África. “É preciso participar. Não se deve esperar que eles (os legisladores) decidam por nós”, disse Mohammed Savane, do Senegal. “Temos que velar por uma

lei que realmente ajude nossas famílias”, acrescentou.

PROJETO DE LEI Estes protestos em nível nacional e, agora internacional, são uma resposta ao projeto de lei impulsionado pelo governante Partido Republicano e aprovado na Câmara de Representantes, segundo o qual entre 10 e 12 milhões de imigrantes ilegais seriam considerados criminosos, bem como os que os empregam ou dão qualquer tipo de ajuda a eles. O Comitê de Assuntos Judiciais da Câmara de Representantes, presidido pelo republicano James Sensenbrenner, conseguiu que o plenário aprovasse, em janeiro, esse projeto, que inclui completar um gigantesco muro ao longo da fronteira com o México e aumentar as penas para crimes migratórios, com condenações mínimas obrigatórias para quem fomentar a imigração ilegal e para os imigrantes já deportados

que tentassem ingressar novamente no país. Enquanto isso, republicanos e o Partido Democrata estiveram prestes a acertar, no Senado, outro projeto estabelecendo uma via para a legalização dos trabalhadores imigrantes que já residem no país. Os que vivem nos Estados Unidos por mais de cinco anos poderiam obter residência e o direito de postular a cidadania. Os que estão entre dois e cinco anos poderiam aspirar um visto de trabalho temporário, mas teriam de voltar ao seu país de origem e seguir o mesmo procedimento que qualquer um que busque entrar legalmente nos Estados Unidos. A proposta, que tomou por base um projeto aprovado em março pelo Comitê de Assuntos Judiciais do Senado, inclui medidas para reforçar a segurança fronteiriça e um novo programa de trabalhadores convidados (com visto de trabalho temporário sem direito

As manifestações foram organizadas por uma coalizão de grupos defensores dos direitos dos imigrantes, organizações estudantis e religiosas e sindicatos, e também contaram com a participação de inúmeros parlamentares democratas. Muitos que discursaram pediram mudanças radicais na política migratória, incluindo a possibilidade de obter a cidadania em lugar do limitado programa do trabalhador convidado temporário, proposto pelo governo de George W. Bush, assim como contemplar a reunificação familiar e o direito à sindicalização. As políticas externa e interna do governo Bush têm muito em comum, afirmou Hany Khalil, do grupo contra a guerra Unidos pela Paz e a Justiça, organizador de várias manifestações, especialmente contra a guerra no Iraque. “Ambas têm como premissas a agressão, a intolerância e a manipulação do medo das pessoas”, afirmou. “Somos plenamente conscientes de que este é um importante ano eleitoral”, acrescentou Leslei Cagan, coordenadora do grupo, se referindo às eleições legislativas de novembro. “Nenhum candidato poderá deixar de lado estes assuntos. Faremos todo o possível para acabar com a guerra no Iraque, conseguir a volta de nossos soldados e defender os direitos dos imigrantes.” Esta organização já planeja, junto com outras, uma manifestação em defesa dos direitos dos imigrantes e pela paz no próximo dia 27. (com Adital, www.adital.org.br, e IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)

FRANÇA

Imigrantes, em luta, contra o preconceito João Alexandre Peschanski de Paris (França)

milhões de pessoas, abaixo da linha da pobreza. O número é quase duas vezes maior que o brasileiro.

CPE, O ESTOPIM Ocupações como a do prédio do Marais ocorrem, duas ou três vezes por semana, nas principais cidades francesas, desde o início das manifestações contra o Contrato do Primeiro Emprego (CPE), em meados de janeiro. O projeto de lei propunha o fim de alguns direitos trabalhistas para empregados de até 26 anos. Protestos contra a proposta tomaram as ruas de toda a França, entre a apresentação do CPE até o dia 10, quando o governo retirou a

lei. O movimento, segundo suas lideranças, como noticiado na edição 163 do Brasil de Fato, considerou a mobilização vitoriosa. “A luta contra o CPE mobilizou as camadas mais pobres da França. O governo, de direita, estava abalado, vendo 3 milhões de pessoas tomarem as ruas contra ele. Isso revigorou movimentos que estavam muito acuados, como o dos imigrantes sem papéis. São os que mais sentem as políticas do governo da direita. O movimento contra o CPE é solidário à luta dos sem papéis, e ajudou a colocar suas reivindicações na discussão pública”, avalia JeanClaude Amara, da entidade Droits

João Alexandre Peschanski

Cinqüenta famílias esperam, agachadas, em silêncio, o sinal. Apito. Exclamações. Pronto, correm, desordenadamente no início. Ajeitam o passo e a cadência. É a madrugada do 13 para o 14 de abril. As famílias, todas imigrantes sem papéis, consideradas ilegais pelo governo, ocupam um prédio no Marais, região central de Paris, capital francesa. O prédio tem seis andares. As janelas dos dois primeiros estão tampadas com tijolos. Os degraus da escada – não há elevador – estalam. Homens, mulheres, crianças sobem. Carregam malas, trouxas de roupa, bandeiras. Estudantes, que acompanham as famílias, cobrem a porta de entrada com uma faixa: “Não existem humanos ilegais. O direito à vida e à moradia é universal”. Esperam. Com o rosto iluminado por uma lâmpada a querosene, Marcel Zakari conta sua história. Rosto comprido, mãos agitadas. O fundo dos olhos ganha proporções enormes, em virtude da escuridão do quarto, onde ele e sua esposa se instalaram. As palavras são cuidadosamente articuladas: “Chegamos do Togo em 1992. Morávamos em Lomé, capital. O país estava em guerra civil. Não dava para ficar. Meu tio, que mora em Cergy (periferia noroeste de Paris), nos emprestou o dinheiro. Viemos para cá, mas ele não tem condições de nos hospedar. Não temos dinheiro. Não temos trabalho. Não temos direito a ga-

rantias sociais. Somos perseguidos. Chamam-nos de vagabundos ilegais. Só queremos uma oportunidade, um trabalho, qualquer”. A eletricidade do prédio é ligada. Zakari conta que seu último emprego, de 1999 a 2005, foi de lavador de carros, em um posto de gasolina. Angèle, sua esposa, se aproxima. Ambos são formados em direito, mas seus diplomas não são reconhecidos pelas autoridades francesas. Esperam, um dia, conseguir atuar em sua área de formação. E sonham em voltar para Lomé, quando os conflitos no Togo cessarem. O país africano tem 32% de sua população, estimada em 5,5

As manifestações contra o Contrato de Primeiro Emprego (CPE) uniram as reivindicações de diversos setores

Devant (Direitos à frente), que luta pelos direitos dos imigrantes sem documentos. De acordo com estatísticas oficiais, há cerca de 5 milhões de imigrantes na França, 30% dos quais considerados ilegais pelo governo. A população total é 60,9 milhões de pessoas.

PERSEGUIÇÃO DO GOVERNO Os imigrantes sem papéis são estigmatizados e perseguidos pelo governo francês. A conclusão é do relatório de 2005 da Liga dos Direitos Humanos, segundo o qual os casos de xenofobia e agressões a estrangeiros aumentaram. A organização responsabiliza, em parte, o governo pela violência: “O primeiro-ministro, Dominique de Villepin, e o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, falam que a repressão aos imigrantes sem papéis é sua prioridade. Usam dos meios mais truculentos para tal fim, como a expulsão sumária de pessoas e ataques às liberdades individuais”. De acordo com o relatório, mais de 90% dos imigrantes sem papéis que vivem na França estão em condições miseráveis, sem acesso a saneamento e saúde. Em grande parte, moram, afirma o documento, em favelas, e não conseguem melhorar sua situação, pois são forçados, pela perseguição do governo, a viver na clandestinidade. No dia 17, quando a reportagem do Brasil de Fato, já havia voltado de Paris, chegou a notícia: as 50 famílias, que ocupavam o prédio no Marais, foram despejadas pela polícia. Sete pessoas foram presas.


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INTERNACIONAL RUANDA

A arquitetura de um massacre Igor Ojeda da Redação

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o mês em que o massacre de cerca de um milhão de pessoas da etnia tutsi em Ruanda completa 12 anos, a entidade de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) lança o relatório O Genocídio de Ruanda: Como Foi Preparado. Divulgado no dia 7, o documento expõe, com base em materiais que não haviam sido estudados anteriormente, a estratégia utilizada pelos hutus (no poder desde a chamada Revolução de 1959) para levarem a cabo o genocídio bem antes de ele acontecer. O plano se sustentava basicamente em dois pilares: a “demonização” da minoria tutsi e a arregimentação de civis hutus na “luta” contra o inimigo comum. O presidente ruandês, Juvenal Habyarimana, que havia subido ao poder em 1973, encontrava-se, desde o final da década de 1980, em uma encruzilhada. Desde outubro de 1990, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF, na sigla em inglês) – guerrilha formada por filhos de tutsis refugiados da revolução de 1959 –, com base na vizinha Uganda, realizava ataques periódicos à fronteira, exigindo o direito de voltarem a Ruanda e pretendendo a derrubada do governo, considerado repressor. Internamente, a oposição crescia, principalmente a de líderes políticos hutus. Habyarimana já não exercia um controle político tão forte, e a economia apresentava problemas. Pressionado, o presidente permitiu, em 1991, o estabelecimento do multipartidarismo, o que, segundo especialistas, ajudou a fortalecer a oposição. O principal temor de Habyarimana e de seus partidários era uma possível aliança entre a RPF e os oposicionistas. A solução encontrada para evitar tal união foi a de justamente eleger os tutsis como os inimigos comuns a serem enfrentados. Assim, entre 1990 e 1994, foi posta em marcha uma

François Goemans/ECHO

Human Rights Watch lança relatório sobre as estratégias utilizadas no genocídio da etnia tutsi, há doze anos

De 1990 a 1994, campanha contra os tutsi desencadeou onda de violência que resultou na morte de mais de um milhão de pessoas

propaganda massiva em jornais e rádios contra estes.

TUTSIS = INIMIGO Entre documentos achados pela HRW logo após o genocídio, estão notas mimeografadas que resumiam técnicas de propaganda. Como diz o relatório da entidade, “um dos métodos descritos é o de persuadir a população que o oponente pretende usar o terror contra ela; e se o convencimento for feito com sucesso, ‘pessoas honestas’ irão tomar as medidas que acharem necessárias para sua legítima defesa”. Em fevereiro de 1991, um oficial do Exército distribuiu um panfleto dizendo que a guerrilha planejava “um genocídio, o extermínio da maioria hutu”. No final de 1992, mesmo após a assinatura de um acordo de paz entre guerrilha

e governo, um oficial das Forças Armadas de Ruanda fez circular entre seus comandados um relatório de uma comissão militar que examinava as maneiras de derrotar o adversário. O documento, que por meio da imprensa se tornou bastante conhecido no país, caracterizava o inimigo principal como “os tutsis de dentro e de fora do país, extremistas e nostálgicos pelo poder, que nunca reconheceram e nunca reconhecerão as realidades da revolução social de 1959 e que desejam reconquistar o poder por todos os meios necessários, incluindo o uso de armas”. O relatório usava várias vezes a palavra “tutsi” como equivalente de “inimigo” e dizia que estes estavam unidos por uma única ideologia: a hegemonia de sua etnia.

Assim, Habyarimana alcançou seu objetivo. Uniu grande parte da população civil e dos antigos oposicionistas em torno do chamado Hutu Power. Todos contra a “ameaça” representada pelos tutsis. Com isso, impediu a temida aliança entre oposição e RPF e, como diz o relatório da HRW, conseguiu transformar um conflito nacional em uma guerra étnica.

PREPARAÇÃO DOS CIVIS A participação massiva dos civis no massacre tampouco foi obra do acaso. Desconfiados da capacidade do Exército ruandês de proteger o país da guerrilha, muitos passaram a defender a formação de uma força civil de autodefesa. Na agenda do coronel Theoneste Bagosora foram achadas anotações bem expressivas sobre o assunto.

Ele descrevia como deveriam ser feitos o treinamento e o armamento dos civis e que estes deveriam ser organizados em setores, sempre sob as orientações de ex-soldados, militares da reserva e policiais. No começo de 1994, foi produzido um documento, chamado Organização da autodefesa civil, que detalhou o plano e estabeleceu as tarefas de cada um no processo, enfatizando que a “resistência popular” deveria ser liderada por aqueles que “defendem o princípio da República e da democracia”. O alvo: combatentes da RPF em uniforme, mas também aqueles “disfarçados”. Ou seja, civis da etnia minoritária. “Ao procurar a eliminação dos tutsis, as autoridades ruandesas transformaram o sistema de autodefesa em uma arma de genocídio”, conclui o relatório da HRW.

ÁFRICA

Moyiga Nduru de Johannesburgo (África do Sul) A União Africana (UA) e agências da Organização das Nações Unidas pretendem consagrar este ano à prevenção do HIV/Aids, “para mudar o curso do vírus e da história”. Dos cinco milhões de pessoas que contraíram o vírus da deficiência imunológica humana no ano passado, 3,2 milhões moram na África subsaariana, segundo o Programa Conjunto das Nações para o HIV/Aids (Onusida). Mais de 60% dos portadores do vírus causador da Aids em todo o mundo (isto é, pouco menos de 26 milhões) vivem nesta região, que representa 20% da população mundial. O Ano para Acelerar o Acesso da Prevenção do HIV foi lançado dia 11, simultaneamente em Johannesburgo (África do Sul), Adis Abeba (Etiópia), Ouagadougou (Burkina Faso) e Cartum (Sudão), com a intenção de que o continente intensifique e melhore seus esforços para prevenir a infecção. “É inconcebível que a cada dia quase duas mil crianças contraiam o vírus devido à gravidez, ao parto ou à amamentação, a maioria na África subsaariana, e que a cada dia cerca de seis mil pessoas entre 14 e 24 anos sejam infectadas”, disse o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no lançamento da campanha. “Este ano apresenta uma oportunidade de mudar o cur-

Yves Horent/ ECHO

Um ano para a prevenção da Aids

Governos africanos prometem empenho no combate à Aids

so do vírus e da história”, acrescentou a agência.

USO DO PRESERVATIVO Para a campanha, estão previstos projetos educativos, de intercâmbio de informação, publicidade, especialmente sobre o uso correto do preservativo, e iniciativas para impedir a transmissão do HIV de mãe para filho. No lançamento da campanha em Johannesburgo, participaram a ministra da Saúde da África do Sul, Manto TshabalalaMsimang, e a cantora Angelique Kidjo, de Benin, embaixadora da Boa Vontade do Unicef. “Devemos identificar os fatores da propagação do HIV na região e realizar esfor-

ços conjuntos para resolvê-los”, disse Tshabalala-Msimang. “Entre esses fatores estão pobreza, subdesenvolvimento e desigualdade de gênero, o que torna as mulheres mais vulneráveis à infecção e ao impacto da Aids”, acrescentou. A prevalência do HIV na população adulta da África do Sul chega a 21,4%. Este país adotou a estratégia ABC (sigla em inglês para abstinência antes do casamento, fidelidade e uso de camisinha). “Com a distribuição maciça de 300 milhões de preservativos ao ano, nossa mensagem se concentrará no uso correto e consistente dos meios de prevenção que o governo fornece gratuitamente”, disse a ministra. Nos próximos

dois anos, acrescentou, seu governo destinará 33 milhões de dólares à campanha de prevenção à Aids. O governo sul-africano foi acusado de responder com lentidão no combate à doença. Ativistas mostram preocupação pela falta de liderança do presidente Thabo Mbeki e da ministra da Saúde, e pediram que seja acelerado o ritmo de entrega de medicamentos anti-retrovirais, os mais eficazes para impedir o desenvolvimento da Aids. A África austral é a região mais afetada do continente. Mais de um terço dos infectados no ano passado moram ali, o que elevou o total para 15 milhões. Os governos e a sociedade civil da região enfrentam antigas tradições para frear a propagação da Aids. “Em Maláui vigoram ritos tradicionais de iniciação. As meninas são obrigadas a manter relações sexuais com homens mais velhos para provar sua feminilidade. A prática aumenta o risco de infecção”, disse Maureen Kumwenda, ativista antiAids que assistiu a cerimônia em Johannesburgo.

DESEMPREGO “Alguns pais enviam suas filhas em busca de dinheiro com a prostituição”, acrescentou. O desemprego é um fator agravante. “Os estudantes que concluíram o secundário e não podem ir para uma universidade desenvolvem maus comportamentos”, disse a ativista. Kumwenda propôs capacitação

desses jovens em matérias como tecnologia da informação para aumentar suas possibilidades de arrumar emprego. A prevalência do HIV na população adulta de Maláui é de 14,2%, segundo a Onusida. O Zimbábue é o único país da África austral em que o ritmo de infecção diminuiu. O Unicef informou, em outubro, que a prevalência entre mulheres grávidas caiu de 24,6% para 21,3% entre 2002 e 2004. Além disso, toda a infecção adulta caiu para 20,1%. De todo modo, a situação da saúde continua sendo má no Zimbábue. Três bebês são infectados com HIV a cada hora e uma criança morre com Aids a cada 20 minutos, segundo o Unicef. Por sua vez, Kidjo exortou a que se ponha fim à violência contra as mulheres e se eduque a sociedade para que assumam o controle de suas vidas. “Vários pesquisadores demonstraram que as pessoas com instrução têm menos possibilidade de contrair Aids”, disse a cantora. “Porém, não é suficiente manter as crianças na escola. Também devem estar a salvo dos que abusam delas”, acrescentou. Outros ativistas advertiram que a campanha de prevenção deve estar combinada com boa alimentação e remédios anti-retrovirais para as mães, com a finalidade de evitar crianças órfãs. Mais de 12 milhões de meninas e meninos perderam seus pais devido à pandemia, informou a Onusida. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)


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DEBATE LUTA SOCIAL

Miguel Urbano Rodrigues s grandes meios de comunicação portugueses dedicaram pouco espaço e tempo aos acontecimentos da França. A gripe aviária e o passeio angolano do primeiro-ministro e a sua comitiva de empresários por Angola foram impostos à opinião pública como temas muito mais interessantes. A opção é compreensível. O que se passou na França nas últimas semanas alarmou as burguesias da União Européia. As lutas sociais de março e abril na pátria de Saint Just e o seu desfecho vieram recordar uma realidade que as classes dominantes temem e procuram ocultar. Confirmaram que é o povo e não elas o sujeito da história. Estava em Paris nos dias tempestuosos – para mim fascinantes – em que o governo e as forças do capital por ele representadas começaram a perder a batalha. Por um acaso, o hotel em que me hospedei, no Quartier Latin, era um posto de observação privilegiado. A rua passa em frente à Sorbonne. Caminhava uma centena de metros e contemplava e sentia a história em andamento. O belo edifício sede da velha universidade, iluminado pelo sol da primavera, aparecia como fortaleza inacessível. Para evitar que voltasse a ser ocupado pelos estudantes, a polícia tinha fechado com tapumes metálicos as ruas laterais, isolando o quarteirão. O dispositivo montado pelas forças da repressão era impressionante. Mais de cinco mil policiais nas ruas.

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Porque as lições da vitória alcançada nas jornadas de abril pelo povo daquele país são perigosas para as forças que controlam o poder na União Européia se delas forem extraídos e aplicados os ensinamentos que carregam Mas não intimidou a juventude. A luta transbordou, foi assumida por milhões. O povo da França fez seu o combate dos estudantes e dos sindicatos ao perceber que o não ao chamado Contrato do Primeiro Emprego expressava a recusa de um sistema e de um projeto que envolviam a nação como totalidade. Em março os estudantes ocuparam universidades, enfrentaram a polícia, saíram às ruas em manifestações torrenciais. Foi reconfortante dialogar com jovens universitários portugueses – como M.A., filho de um emigrante minhoto – que intervinham ativamente na organização. O primeiro-ministro Villepin, um aristocrata que despreza as massas, respondeu com arrogância, ampliando a repressão. O Parlamento, instrumento da burguesia, alinhou-se com o Executivo, transformou o projeto do governo em lei. O presidente Chirac avaliou mal a situação, acreditou que a decisão do Legislativo criava uma situação irreversível. Enganou-se. Villepin intimou os jovens a submeter-se. O povo, solidário com a juventude, inundou as ruas das grandes cidades. Na primeira grande manifestação de protesto participaram quase três milhões

Arte sobre foto de João Alexndre Peschanski

O exemplo da França

de pessoas, 700 mil das quais em Paris. A direita começou a apresentar fissuras. O presidente vacilou e num discurso à nação fez concessões, propondo mudanças cosméticas na lei reacionária que facilitava a demissão de jovens. As aspirações à Presidência de Villepin esfumaram-se, destruídas pela dinâmica da luta popular. As forças da direita enganaram-se novamente ao concluírem que os apelos ao diálogo, as férias da Páscoa e a proximidade da época dos exames iriam esvaziar o movimento de contestação. Ocorreu o contrário. No dia 4 de abril os desfiles mobilizaram novamente três milhões de franceses. Então o Poder entrou em pânico. Presidente, governo e Parlamento entenderam-se e a lei rejeitada pelo povo foi revogada. A capitulação da grande burguesia foi a conseqüência natural de um grande medo. LIÇÕES DA VITÓRIA DO POVO

Os acontecimentos da França, apesar do esforço dos grandes meios de comunicação para subestimar o significado, tiveram uma repercussão que transcende o quadro nacional. Em toda a Europa comunitária, as classes dominantes compartilharam o medo da grande burguesia da França. E porquê? Porque as lições da vitória alcançada nas jornadas de abril pelo povo daquele país são perigosas para as forças que controlam o poder na União Européia se delas forem extraídos e aplicados os ensinamentos que carregam. Seria uma ingenuidade admitir que na França se criou uma situação pré-revolucionária. Nas gigantescas mobilizações populares de março e abril participaram cidadãos com formações culturais muito diferentes e opções ideológicas por vezes antagônicas. A rejeição do capitalismo não foi nelas sequer um denominador comum. O medo nasce da demonstração de que o povo, quando se apresenta unido – transformando o slogan em realidade – se transforma de força passiva em sujeito da história. Não é por um capricho ou complexo de inferioridade cultural que a direita estadunidense, encastelada no poder, insiste em satanizar a França, pintando dela o retrato de um país decadente, com um povo turbulento, incapaz de se adaptar àquilo que Bush e sua gente definem como a nova ordem internacional (a globalização imperial tal como a concebem). O que lhes dói é identificarem

na França uma nação onde um povo adulto tem consciência dos direitos e conquistas sociais acumulados e, em situações de crise, quando estes são ameaçados pelo poder, se organiza para os defender. Não foi por acaso que a Revolução de 1789 teve a França por cenário. Ali principiou também a Revolução de 1848. E foi de Paris que irradiou para o mundo a mensagem revolucionária e humanista da Comuna. Hoje a França é um país onde sucessivos governos de direita têm aplicado políticas neoliberais. Mas sempre que ultrapassaram determinados limites, ameaçando direitos fundamentais, esbarraram com a oposição inultrapassável do povo. Isso aconteceu em 1986, quando os estudantes inviabilizaram um projeto de reforma universitária profundamente reacionário. E repetiu-se em 1994 e 1995, quando os governos de direita de Eduard Baladour e Alain Juppé foram derrotados ao tentarem reduzir o salário mínimo e reformar a segurança social. No ano passado foi o povo da França que, resistindo a pressões massacrantes, ao dizer não à Constituição Européia, enterrou na prática um projeto federalista que institucionalizava o capitalismo neoliberal. PORTUGAL E A FRANÇA

Profundas diferenças separam Portugal da França. O PIB per capita francês (a rondar os 30 mil dólares) duplica o português. Enquanto a economia da França é uma das mais avançadas do mundo, Portugal caiu para o último lugar entre os 12 países da zona euro.

Em Portugal as condições objetivas para a luta são aparentemente muito mais favoráveis. O atual governo Sócrates desenvolve uma política que faz dele um dos mais reacionários desde o 25 de abril Seria natural que o atraso no desenvolvimento, a agressividade do poder e a estagnação econômica se refletissem numa maior intensidade das lutas sociais em Portugal. Mas ocorre precisamente o contrário. Um argumento muito utilizado, inclusive por dirigentes sindicais, para justificar a redução em Por-

Os trabalhadores portugueses aplaudiram os seus camaradas franceses que derrubaram o mostrengo da Constituição Européia e festejaram a grande derrota que eles infligiram ao governo há poucas semanas tugal do número de conflitos sociais que desembocam em greves de grande amplitude e em manifestações de protesto de dimensão nacional é o da inexistência, devido ao agravamento da crise, de condições minimamente propícias à mobilização dos trabalhadores. A pobreza aumenta, o desemprego se alastra, a emigração para a França, Suíça e até a Espanha volta a despovoar muitas regiões do interior. O patronato quase retoma a linguagem anterior ao 25 de abril, a anêmica indústria nacional desmorona-se, milhares de pequenas e médias empresas entram em falência enquanto os lucros dos bancos e das transnacionais crescem escandalosamente. Na distribuição da riqueza produzida a fatia do grande capital cresce enquanto a parcela do trabalho mingua. A França é precisamente um dos membros da União Européia onde os trabalhadores assalariados, ao enfrentarem o Estado e o patronato, correm maiores riscos. Não obstante desigualdades sociais que se acentuam, a estrutura da segurança social garante direitos e conquistas inexistentes noutros países. Resultados de lutas seculares. O salário mínimo líquido (sem outras vantagens) é superior a 1.100 euros e o subsídio de desemprego dos mais elevados do mundo. Entretanto, tendo muito a perder, os franceses respondem com firmeza, combatividade e lucidez exemplares a medidas que ameaçam a qualidade de vida relativa que souberam conquistar. Tradicionalmente, superam condições objetivas desfavoráveis, unindo-se na luta, conscientes de que o Estado, como instrumento da classe que os oprime, não é onipotente e de que podem fazêlo recuar. A rapidez com que se formaram comitês de jovens e de trabalhadores para coordenar as lutas em nível nacional é outra lição que nos chega da França. Porque sem organização estruturada no transcorrer dos

choques com o poder não teria sido possível mobilizar milhões de pessoas. Em Portugal as condições objetivas para a luta são aparentemente muito mais favoráveis. O atual governo Sócrates desenvolve uma política que faz dele um dos mais reacionários desde o 25 de abril. Cultivando um estilo demagógico, levanta, por vezes com habilidade, grandes problemas nacionais (como a reforma da Administração) mas as soluções que trata de impor são invariavelmente incompatíveis com o interesse público. Como explicar então a dificuldade de mobilização das vítimas de uma estratégia concebida para benefício exclusivo do grande capital e de uma política externa de vassalagem perante o imperialismo? O que falta são as condições subjetivas. É um fato que o sistema midiático português, totalmente controlado pela direita – o Avante e alguns jornais regionais são quase as únicas exceções – atinge níveis de perversidade raramente identificáveis na Europa, contribuindo decisivamente para uma desinformação e uma alienação que adormecem a consciência social. Mas a manipulação midiática não pode justificar o pessimismo, a inércia, a pulverização das lutas sociais. Estamos em vésperas de jornadas de luta comemorativas do 25 de abril e do Primeiro de Maio. A memória de Abril permanece viva. Mas como efeméride. Não funciona hoje como estímulo, como incentivo para a luta. Nas semanas seguintes a tendência é para o regresso ao imobilismo. Ficará dessas jornadas, como em anos anteriores, a lembrança de um dever cumprido no protesto contra políticas repudiadas. Mas apenas isso. Os trabalhadores portugueses aplaudiram os seus camaradas franceses que derrubaram o mostrengo da Constituição Européia e festejaram a grande derrota que eles infligiram ao governo há poucas semanas. Esquecem, contudo, que também em Portugal o povo voltará a ser o sujeito da história. E que existe aqui um fator favorável, um partido de tradição revolucionária, o PCP, que permanece fiel aos seus ideais e pode vir a desempenhar um papel importantíssimo quando as massas despertarem para a luta. Falta, porém, no país o elemento que, nas grandes crises, é decisivo para mudar o rumo da vida, para construir a história. A consciência de que o inimigo – no caso o governo Sócrates e os seus aliados, cúmplices e instrumentos de ação – é muito mais vulnerável do que parece. Também em Portugal está ao alcance do povo inviabilizar a aplicação de decretos reacionários e mesmo de leis aprovadas por um Parlamento a serviço do Poder. As rotinas nascidas do funcionamento da engrenagem que identifica nos trabalhadores robôs sem vontade são anestesiantes e desmobilizadoras. Os acontecimentos da França assustam as classes dominantes porque iluminaram uma evidência: a força do povo como sujeito. Também ali parecia impossível a vitória da juventude e dos trabalhadores. Mas ao desafiar o Poder eles venceram. Miguel Urbano Rodrigues é jornalista, escritor e militante comunista. Foi deputado pelo Partido Comunista Português (PCP) no Parlamento português em várias legislaturas, e também no Parlamento Europeu


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AGENDA LIVRO DESTERRO A Comissão Pastoral da Terra lançou o livro Desterro, uma cronologia da violência no campo no Paraná na década de 90. A obra registra um dos períodos mais conflitivos da história do Paraná e também do Brasil, com um resgate das políticas de violação dos direitos humanos no Estado, durante a década de 1990. O enfoque é para a era Lerner, quando foram assassinados 16 trabalhadores, outros 31 sofreram atentados, 49 foram ameaçados, 7 torturados e 325 vítimas de lesões corporais, além de 516 presos. Desterro relata de forma detalhada a arquitetura dessa violência, fruto de uma política governamental que fez do Estado e principalmente, do aparato de segurança, um espaço de defesa inquestionável dos interesses dos latifundiários paranaenses. O livro tem 152 páginas e custa R$ 5.

RIO GRANDE DO SUL 4º CONGRESSO ESTADUAL DA ABRAÇO 21 e 22 Cerca de 250 delegados de todos os Estados brasileiros vão se reunir no Parque do Trabalhador, em São Leopoldo (RS), para discutir questões referentes ao processo de democratização e digitalização das comunicações, além de reforçar o movimento contra a repressão às rádios comunitárias. Eles participam do Congresso da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço). Não é necessário fazer inscrição prévia. O credenciamento será feito no local, mediante taxa de R$ 35. É permitido acompanhar o evento como observador. Mais informações: (51) 3568-4329 e (51) 9143-4822

RIO DE JANEIRO OFICINAS SOBRE DIVERSIDADE SEXUAL A Universidade Federal do Rio de Janeiro está oferecendo, a partir de abril, oficinas sobre diversidade sexual na escola, voltadas para instituições de ensino e de formação de professores. Os educadores que quiserem levar uma oficina para a sua escola devem entrar em contato com a Coordenação de Extensão do CCS/UFRJ. A atividade dura cerca de quatro horas e é realizada em apenas um dia. A oficina é gratuita, cabendo à instituição a viabilização das condições materiais para a sua realização (espaço, equipamento de projeção, divulgação etc.). A data para a realização da oficina será estabelecida com as instituições, com flexibilidade para se adaptar às possibilidades de cada grupo. Mais informações: (21) 2562-6704, fax (21) 2270-1749, extensao@ccsdecania.ufrj.br PENSANDO O BRASIL abril a setembro Ciclo de palestras, promovido pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet) e Centro

agenda@brasildefato.com.br

de Estudos para o Desenvolvimento (CED), que vai reunir personalidades brasileiras para refletir sobre os problemas políticos do país. Devem participar das palestras: o governador do Paraná, Roberto Requião, o ambientalista Jean Marc van der Weid e o economista Reinaldo Gonçalves, entre outros. A primeira palestra ocorreu em 19 de abril e a última está prevista para 14 de setembro. Os encontros estão marcados para as 18h30, e a entrada é franca. Local: Auditório da ABI, rua Araújo Porto Alegre, 71, 9º andar, Centro, Rio de Janeiro Mais informações: na página na internet da ABI (www.abi.org.br) ou no da Aepet (www.aepet.org.br)

SÃO PAULO 4 ANOS DA CIA. ANTROPOFÁGICA 21, 19 h A Cia. Antropofágica (Abaporu ) comemora quatro anos de trabalhos e pesquisa com uma festa no Tendal da Lapa, uma das maiores casas de Cultura de São Paulo, ameaçada de se transformar num posto do Poupatempo. A festa será temperada com música, palestras, performances, teatro, vídeo e um jantar antropofágico oferecido pela companhia. O evento marca também o lançamento da página do grupo na internet, que vai ao ar no próprio dia 21, nos endereços www.antropofagica.ato.br ou www.abaporu.ato.br. Entrada franca. Local: Tendal da Lapa, R. Guaicurus, 1.100 (entrada pela R. Constança, 72), estacionamento gratuito. Mais informações: (11) 9269-1968, tiborvasconcelos@gmail.com UM NOVO ELDORADO 24 a 26 O Instituto Rosa Luxemburg Stiftung (RLS) e a Aliança Social Continental (ASC) promovem o seminário internacional “Em busca de um novo Eldorado: as empresas transnacionais européias na América Latina. Impactos e Alternativas”. Participação gratuita. No dia 24, o tema será “Globalização/ Transnacionais, União Européia como ator global, respostas na América Latina”, no dia 25, haverá estudos de casos e debate; no dia 26, o tema será “Alternativas e Construção de movimentos e alianças”. Local: Sindicato dos Bancários, R. São Bento, 413, Centro, São Paulo Mais informações: agarcia@rls.org.br 1º ENCONTRO DE SENSIBILIZAÇÃO SOBRE OS POVOS INDÍGENAS 25, das 9h30 às 14h Promovido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o evento vai abordar os seguintes temas: “Povos indígenas no Brasil e em São Paulo e suas contribuições para a construção de um outro mundo possível”; “Povos indígenas, um tesouro a ser descoberto”. Local: Centro de Educação Unificado Curuçá, Av. Marechal Tito, 3450, Itaim Paulista, São Paulo Mais informações: (11) 6567-3939

Lançamento – livro de entrevistas do Brasil de Fato

É preciso coragem para mudar o Brasil É preciso coragem para mudar o Brasil – Entrevistas do Brasil de Fato José Arbex Jr. e Nilton Viana (orgs.) 217 páginas Editora Expressão Popular São Paulo, 2006 R$ 13

Pedidos: BRASIL DE FATO www.brasildefato.com.br – Fone: (11) 2131 0808, Fax: (11) 2131 0824 Alameda Eduardo Prado, 342 – Campos Elíseos – São Paulo – SP CEP 01218 – 010 EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA www.expressaopopular.com.br – Fone: (11) 3105-9500, Fax:(11) 3112-0941 Rua Abolição, 266 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01319-010


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CULTURA

De 20 a 26 de abril de 2006

A doença do consumo desenfreado

Arquivo Brasil de Fato

SOCIEDADE

Para a socióloga Valquíria Padilha, as pessoas se sentem compelidas a comprar, mesmo sem necessidade, constantemente João Alexandre Peschanski da Redação

A

sociedade contemporânea está doente. Homens e mulheres, descontroladamente, são levados a comprar, sem necessidade. Fazem do consumo uma opção de lazer e uma forma de libertação. Os shopping centers se tornaram os templos dessa sociedade – doente – de consumo. Reivindicam o espaço público, mas não passam de comunidades fechadas e restritas, onde se mantém a dominação do rico sobre o pobre. A análise é da socióloga Valquíria Padilha, que acaba de lançar o livro Shopping center: a catedral das mercadorias (Boitempo Editorial, 2006), resultado de sua pesquisa de doutorado. Em entrevista ao Brasil de Fato, por correio eletrônico, Valquíria contou que se dedicou a estudar o papel dos centros comerciais no lazer dos brasileiros. Sua conclusão estarrece: o shopping center cria um novo tipo de sociabilidade, mas uma sociabilidade destrutiva. Tanto para o ambiente, quanto para o cidadão. É a manifestação de uma sociedade doente, cuja cura só se dá sob uma transformação radical. Brasil de Fato – Por que os shopping centers assumem tanta importância na vida das pessoas, a ponto de ser considerados indispensáveis para algumas delas? Valquíria Padilha – A importância desse templo do consumo vem crescendo, nos últimos 40 anos. O shopping center integra o projeto capitalista estadunidense chamado de american way of life, que espalha pelos quatro cantos do mundo o estilo de vida nos Estados Unidos. O cinema foi e ainda é o principal veículo para disseminar esse conceito, acompanhado do shopping center, do fast food e do automóvel. Sem se dar conta, as pessoas vão assimilando a “cultura” estadunidense e a necessidade de integrar a chamada sociedade de consumo. O shopping center ganhou espaço nas sociedades capitalistas porque passou a significar uma nova cidade, mais limpa, segura, moderna, organizada e mais seletiva que a cidade real, aquela realidade que eu denomino de “mundo de fora”. BF – Qual o impacto dos shopping centers na definição do espaço público e da cidadania? Valquíria – Como nas últimas décadas as cidades e os espaços públicos entraram em um processo de declínio, acentuado com a implementação de políticas neoliberais, a noção de coletividade e de direitos sociais sofreu transformações. Com o desenvolvimento da sociedade de consumo, os sujeitos políticos – aqueles que têm deveres mas também têm direitos – foram praticamente engolidos pelos sujeitos consumidores – aqueles que vivem para produzir e gastar o salário, consumindo muito mais do que realmente precisariam para sobreviver. O shopping center, essa cidade artificial criada estrategicamente para incitar os desejos de compra, é um lugar privado travestido de público. Portanto, é uma comunidade sem política,

uma comunidade sem governo, sem democracia, sem discussão de assuntos que interessam à coletividade. Não acredito no consumo como um ato coletivo, por mais que consumir tenha um significado social na medida em que demarca status e diferenciação entre as pessoas. Não acho possível falar em consumidor cidadão. Cidadania exige espaço público, que não existe no shopping center. BF – No caso brasileiro, fala-se em dois níveis de cidadania: dos ricos, que podem tudo, e dos pobres, que são uma espécie de subcidadãos. Valquíria – No Brasil e nos países onde a desigualdade social é mais visível, a violência urbana aparece como um complexo fenômeno que acentua a degradação do espaço público e empurra as camadas privilegiadas da população para lugares mais “protegidos”, como o shopping center ou, para os mais endinheirados, a loja Daslu, em São Paulo. A cidadania e a democracia partem do princípio de que todos têm os mesmos direitos na vida em sociedade. Mas, na prática, os que têm mais dinheiro acabam tendo mais direitos que outros. A cultura do consumo nasce e se estabelece sobre os ideais da liberdade individual de escolha, o que gera uma equação complicada do ponto de vista da política e da cidadania, uma vez que a liberdade de escolha é maior, no capitalismo, para quem tem mais dinheiro. Então, quanto mais se acentua a liberdade individual do consumidor, mais a vida pública se debilita.

Quanto mais se acentua a liberdade individual do consumidor, mais a vida pública se debilita BF – Como surgiu o shopping center no Brasil? Valquíria – Aqui, os primeiros shopping centers se instalaram nos anos 1960, seguindo o padrão estadunidense. A expansão desse novo modelo de vida e de urbanidade se deu efetivamente nos anos 1980. A consolidação do shopping center no Brasil foi concomitante ao crescimento populacional, à proliferação da idéia desenvolvimentista e ao aumento do número de mulheres no mercado de trabalho, o que gerou modificações nos hábitos de consumo dos brasileiros. Os primeiros shoppings brasileiros atenderam à camada da população mais rica do país, oferecendo o consumo de luxo. A partir dos anos 1970 houve um crescimento do setor de serviços e da produção industrial, além de um aumento do consumo dos assalariados da chamada classe média. Segundo a Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce), o número de estabelecimentos praticamente dobra a cada cinco anos. Em 1966 existia apenas um shopping no

Os shopping centers se tornaram, desde os anos 60, templos da mercadoria, onde a realização pessoal depende do consumo

Brasil; em 2002 já eram 252. Só a região Sudeste concentra quase a metade desse número. Para se ter uma idéia, nos Estados Unidos, em 2001, existiam mais de 45 mil estabelecimentos desse tipo. BF – A senhora citou a Daslu. Até redigiu um apêndice sobre essa loja em seu livro. Por que essa butique de luxo a inquieta tanto? Valquíria – Esse tipo de espaço exclusivo para a circulação de milionários, que existe em São Paulo e no Rio de Janeiro, é no mínimo afrontoso, em um país como o nosso. Mais do que centros de compras de marcas internacionais, são lugares de encontro de pessoas que gastam uma pequena parte de suas fortunas em supérfluos e prazeres mundanos. Só chegaram nessa situação porque exploram trabalhadores ou roubam os cofres públicos. Sejamos lúcidos: quem é milionário, no Brasil, apenas trabalhando honestamente? A Daslu é um dos ridículos exemplos brasileiros do desperdício de tempo e de dinheiro, é o paraíso para 0,05% da população de nosso país. O que apenas uma cliente gasta por mês na Daslu – em média 15 mil dólares – daria para sustentar uma família inteira por vários meses. Isso é inaceitável, na minha opinião. BF – Os shopping centers aparecem como espaço de lazer. Ou seja, como fonte de prazer, diversão, algo que liberta do fardo do trabalho. Como se criou essa imagem? Valquíria – O shopping center é a catedral das mercadorias e do lazer reificado. O que isso significa? Que ocupar o tempo livre circulando nesses espaços é submeter o lazer à mercantilização. Lazer, que era para ser atividade de liberdade, criatividade, sociabilidade e autonomia, se converte em mais uma mercadoria a ser consumida no shopping center. Além dessa coisificação do lazer, o shopping center oferece opções americanizadas de lazer. Quantos filmes europeus, indianos, iranianos ou mesmo nacionais passam nas salas de cinema dos shoppings? O que resta além dos jogos eletrônicos, em inglês? Chamo de “shopping center híbrido” essa fórmula de estabelecimento que foi agregando num mesmo espaço lojas, serviços, alimentação e lazer. Quando esses centros comerciais se tornam a única opção da classe média e alta no Brasil, ao lado da televisão, para preencher o tempo livre, o que se pode concluir é que as pessoas estão buscando a felicidade na materialização dos sentimentos, dos desejos e do prazer. O “mundo de dentro” do shopping

Arquivo pessoal

center está conseguindo ser mais atraente que o “mundo de fora”, a vida real. BF – Quem controla as principais redes de shopping centers no Brasil? Valquíria – A primeira e maior é a Iguatemi Empresa de Shopping Center S.A., que pertence ao grupo Jereissati, do Ceará. A entrada do grupo Jereissati no ramo deu-se em 1974, com a construção do Shopping Center Um, em Fortaleza. Desde então vem crescendo e se expandindo em todo o país, alcançando a atual posição de liderança no setor. A empresa controla hoje os mais lucrativos shopping centers brasileiros, como os Iguatemi de São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas, Ribeirão Preto e Porto Alegre. Os outros proprietários são grandes grupos de investidores, holdings ou construtoras. Para dar um exemplo, o Shopping Parque Dom Pedro, de Campinas, pertence a um grupo português chamado Sonae, holding da área de telecomunicações, internet e multimídia. BF – A sociedade de consumo é irreversível? Valquíria – Nada é irreversível quando se pensa em sociedade. O primeiro e mais importante limite dessa cultura do consumo, que estamos testemunhando hoje, são os próprios limites ambientais. O planeta não suportaria se cada habitante tivesse um automóvel, por exemplo. Há também o sério problema do lixo produzido pela sociedade. Onde os países desenvolvidos estão despejando seus lixos? Li que jogam nos mares de países com alta dívida externa, como o Brasil. Psicológica e sociologicamente também não será suportável por muito mais tempo essa lógica de produção e consumo destrutivos a que estamos sujeitos hoje.

Ocupar o tempo livre circulando nesses espaços é submeter o lazer à mercantilização BF – Que tipo de ação pode acelerar esse processo? Valquíria – Eu gosto muito de uma idéia do pensador italiano Antonio Gramsci: devemos ser pessimistas na análise, mas otimistas na ação. Isso não é fácil porque, quando a gente ultrapassa a aparência e chega na essência e nas causas de um fenômeno social como a sociedade de consumo e o shopping center, no início dá um certo

Quem é Valquíria Padilha é especialista em estudos do lazer, mestre em sociologia e doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora no Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) na Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto. É autora de Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito (Alínea, 2000) e Shopping center: a catedral das mercadorias (Boitempo Editorial, 2006). desânimo e uma sensação de impotência para mudar. Mas é necessário ser radical – no sentido de ir fundo e buscar a raiz – quando se quer mudança. Isso, ao contrário do que dizem alguns intelectuais mais conservadores, não é esquizofrenia. Acredito em pelo menos dois níveis de mudanças possíveis de serem feitas ao mesmo tempo em que se desenvolvem análises críticas: um nível mais amplo, que fica na esfera do coletivo; e um nível mais restrito, que fica na esfera do indivíduo. Só que tudo isso acontece junto, num movimento crescente, em espiral. Movimentos sociais são importantes para chamar a atenção das pessoas para os problemas, além de exercer pressão sobre as formas de poder e manutenção da ordem existentes. Vale lembrar a repercussão que houve em todo o país quando, em agosto de 2000, o Shopping Rio Sul, no Rio de Janeiro, foi escolhido para uma manifestação de sem-teto e moradores de favelas da cidade. Quiseram mostrar que há uma realidade cruel no “mundo de fora” que contrasta com a “cidade artificial” do shopping center. Um outro nível também importante de mudança é o cotidiano, o dia-a-dia de cada um. Nesse sentido, cada indivíduo pode participar da construção de uma sociedade melhor quando respeita o próximo no trânsito, quando respeita o companheiro ou a companheira nas relações de intimidade, quando diminui o consumo do que não é necessário, quando recicla o lixo, quando não desperdiça recursos naturais.


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