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Ano 4 • Número 166

R$ 2,00 São Paulo • De 4 a 10 de maio de 2006

Bolivianos recuperam a soberania

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CIA E P

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Presidente da Bolívia, Evo Morales, anuncia decreto 28.701, dia 1º, determinando a nacionalização da exploração do petróleo e do gás do país

A violência do Deserto Verde

As camponesas que fizeram um protesto na empresa Aracruz, dia 8 de março, no Rio Grande do Sul, chamaram a atenção para os prejuízos do Deserto Verde – expressão que retrata a destruição

Joana Tavares

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presidente da Bolívia, Evo Morales, escolheu o simbolismo representado pelo centésimo dia de seu governo para fazer história. No dia 1º, assinou decreto que determina a nacionalização da exploração do petróleo e do gás do país, os chamados hidrocarbonetos, e ordenou a ocupação militar dos campos de produção das empresas estrangeiras, que terão 180 dias para se adequar às novas regras. Assim, Evo cumpriu uma de suas principais promessas eleitorais, fundamental para sua vitória em dezembro do ano passado. Para o sociólogo Emir Sader, o decreto veio em defesa da soberania do povo boliviano e é uma vitória de todos os movimentos sociais do continente. “Na Bolívia está se jogando grande parte do futuro da América Latina”, analisa. A estatal YPFB terá o controle da comercialização dos hidrocarbonetos, determinando condições, volumes e preços do recurso. Pág. 6

Agência Boliviana de Notícias

As atividades de exploração do petróleo e do gás foram reestatizadas, aos cem dias do novo governo

ambiental causada pela monocultura de eucalipto. Veja, neste caderno especial do Brasil de Fato, o quanto a saúde humana e a biodiversidade são afetadas por esse ramo do agronegócio.

Alto desemprego ofusca festa dos trabalhadores Um quarto da população brasileira está desempregada. Essa é a conta resultante da soma do número de desocupados com o número de subempregados no mercado informal que têm rendimentos inferiores a um salário

mínimo. Porém, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esbanjou otimismo para comemorar o Dia do Trabalhador, enquanto sindicatos marcaram presença com festas nas ruas. Pág. 5

Jovens pobres, vítimas da PM em Sergipe

EDITORIAL

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Já está no ar o novo formato da Agência Brasil de Fato na internet. No endereço www.brasildefato.com.br você poderá encontrar nossa produção diária de conteúdo exclusivo, entre reportagens, entrevistas e análises, além das edições anteriores do jornal impresso. Em breve, os assinantes terão uma seção específica para acessar a edição da semana. Vamos colocar no ar também um link para rádios comunitárias de todo o país baixarem documentos em áudio e poderem retransmitir para seus públicos locais.

Duas mil pessoas participam da 16ª Romaria dos Trabalhadores e das Trabalhadoras, na cidade mineira de Viçosa, dia 1º

Presidente Evo Morales mostra um caminho

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importantíssima decisão do presidente Evo Morales de nacionalizar, por decreto, as imensas riquezas energéticas bolivianas, cumprindo sua promessa de campanha eleitoral e ratificando a vontade popular expressa em plebiscito há 2 anos, é um enorme impulso para as transformações sociais no país vizinho. Mas também é um estímulo ao desenvolvimento de forças antiimperialistas em toda a América Latina, inclusive no Brasil, estimulando o governo Lula a repensar suas políticas para a Petrobras, empresa que hoje tem o controle acionário nas mãos de capitais externos na bolsa de Nova York, o maior deles o City Bank. A histeria da mídia capitalista para tentar culpar a política externa brasileira pelo gesto soberano do governo boliviano é, na verdade, expressão de seu pânico ao ver o antiimperialismo avançando pela América Latina, inclusive com o apoio de correntes militares importantes. A terceira nacionaliza-

ção dos recursos energéticos na história da Bolívia – nas duas vezes anteriores por iniciativa de correntes militares nacionalistas – ocorre agora sob o prisma da integração energética latino-americana, da consolidação da Revolução Bolivariana da Venezuela, e do importante apoio que Cuba, junto com o governo Hugo Chávez, está dando ao governo de Morales. O evidente esforço da mídia capitalista para criar um enfrentamento entre Brasil e Bolívia, ou entre Brasil e os demais países sul-americanos, apenas revela desorientação. Até os países capitalistas centrais, também temerosos ante a onda nacionalista, tendem a manter a negociação com o novo governo boliviano, enquanto apostam em outras políticas golpistas. Não por acaso, um grande jornal dos Estados Unidos, o Wall Street Journal, declarou que “os altos preços da energia é que estão fazendo ressurgir o nacionalismo estatizante de Caracas a Moscou”, lembrando que também a

Rússia anda reestatizando seus recursos energéticos. É importante que as forças progressistas intervenham para apoiar um entendimento entre Lula e Morales, a partir do respeito pela decisão soberana da Bolívia, no qual se discutam não ações de competição comercial, mas linhas efetivas de cooperação e de integração – ao contrário do apontado pela mídia do capital, pois ela fala em nome dos acionistas externos da Petrobras, que poderão ter seus lucros indefensáveis questionados. É preciso discutir e praticar contratos que não sejam de rapina, como os impostos à Bolívia pelas transnacionais que sempre usufruíram da riqueza mineral boliviana, mantendo o povo irmão na mais escandalosa miséria. Assim como é escandaloso o fato de São Paulo ter sua indústria e residências mantidas por gás boliviano, mas ter ali mesmo milhares de bolivianos que vivem como escravos, sem documentos, sem direitos. “Terminou o saque”, disse

Evo Morales, sinalizando que é a Petrobras, hoje controlada por acionistas estrangeiros, que deve mudar sua política, respeitando a imensa vitória do povo boliviano que hoje passa a controlar seu patrimônio, da mesma maneira que a estatal brasileira surgiu sob a égide da bandeira “O petróleo é nosso!”, uma histórica campanha cívico-militar. O gás é dos bolivianos. As transnacionais, se querem comprá-lo, ou explorá-lo, devem pagar preço justo. É um escândalo que um país energeticamente tão rico como a Bolívia tenha apenas 2% de seu povo com acesso ao gás de cozinha. A decisão boliviana encoraja o governo Lula a rever as ações internacionalizadas da Petrobras, a fundar uma empresa estatal para explorar a biomassa, bem como a retomar o patrimônio da Vale do Rio Doce, cuja privatização a própria Justiça já questiona. Há mudanças reais na América Latina, e o Brasil deve integrar-se cada vez mais a elas. A Bolívia está mostrando um caminho.


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DEBATE

Depois que Deus fez a luz... Pe. Dirceu Benincá livro do Gênesis abre a fabulosa narrativa da criação dizendo que, no princípio, Deus criou o céu e a terra. Em seguida, ordenou: “faça-se a luz”! De pronto ela surgiu, divisando entre o dia e a noite. Conta-se ainda que Ele criou as águas, os animais, as ervas, as árvores etc. Por fim, deu vida ao homem e à mulher, a quem entregou todas as coisas de “mão beijada”. Depois que a luz foi feita, decorreu longa história até chegar o tempo em que também surgiu a energia elétrica. Tinha-se a água que corria livre e solta pelos veios da terra. Então sobreveio a ação do invento humano. Passamos a ter barragens, relocação do povo atingido, instalação de turbinas, transmissores, redes e transformadores. Na ponta dos fios, apareceu a lâmpada, o televisor, a geladeira e um sem-número de eletrodomésticos, implementos, máquinas e motores. Hoje nem se imagina a vida sem o poder e a força da energia. Ocorre, porém, que junto com essa maravilha luminosa veio uma conta “salgada”. Ao converter água em eletricidade, instituiuse o “eletronegócio”. Algumas empresas nacionais e transnacionais abocanharam o “filé” e agora se arvoram o direito de estabelecer elevadas e absurdas tarifas. Faturam alto sobre os consumidores. De 1995 a 2002, por exemplo, a taxa da energia residencial aumentou mais de 180%, enquanto o Índice de Preços ao Consumidor teve aumento de 58%. Somam-se a isso os pesados impostos cobrados pelo governo. Na região do Alto Uruguai gaúcho, o valor do Kilowatt (KW) cobrado pelas grandes empresas do setor é cerca de 50 centavos, sendo que o custo de produção por KW é menos de 10 centavos. Com a privatização da produção e distribuição da energia perdemos o controle dos preços. E não é diferente com a água, com a educação, com a saúde etc. Descontentes com a situação, setores da sociedade civil orga-

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nizada começam a se manifestar. Em diversos lugares, entre os quais Erechim (RS), movimentos sociais protestam contra os preços e contra o atual sistema energético implantado no país. Segundo representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a questão energética não é de ordem tecnológica, mas de modelo político e econômico.

É fundamental discutir um novo modelo para o setor, que priorize as questões sociais e ambientais, onde a tarifa seja adequada para a realidade dos que utilizam a energia O Brasil é auto-suficiente em energia elétrica e petróleo. No entanto, estranhamente pagamos os maiores preços do mundo por esses “produtos”. E a solução não é inventar energias alternativas, se elas acabam se tornando monopólio de grupos poderosos como vem acontecendo. É por isso que alguns movimentos populares estão lutando pela justa redução da tarifa de energia.

Não adianta ficar trabalhando mais e mais só para dar conta de pagar as altas contas. Precisamos pagar menos por aquilo que necessitamos e temos por direito. Não basta dizer “Deus nos livre do preço da luz”, pois ela foi feita gratuitamente. Por certo, seu Criador também não anda de acordo com essa e outras formas de exploração. Quem poderá controlar o capital desgovernado é o povo organizado e mobilizado. Agora temos de fazer a nossa parte, o que consiste em reivindicar e negociar a baixa dos preços junto a quem se apropriou da energia. Ao mesmo tempo, é fundamental discutir um novo modelo para o setor, que priorize as questões sociais e ambientais, onde a tarifa seja adequada para a realidade dos que utilizam a energia. A água e a energia são componentes essenciais para a soberania nacional. Elas não podem continuar sendo vendidas como mercadoria e dando tamanho lucro para as grandes empresas, à custa do suor e sangue do povo. Como costumam afirmar os movimentos sociais: “Só a luta faz valer”. A organização faz a força capaz de garantir “luz” no fim do túnel e clarear uma realidade com mais justiça e igualdade social. Pe. Dirceu Benincá é coordenador das Pastorais Sociais da Diocese de Erechim (RS)

CARTAS DOS LEITORES EU TAMBÉM DEVO SER INDICIADO Estou acompanhando a ação de indiciamento da Polícia do RS contra as mulheres da Via Campesina e contra lideranças do MST. Por isso quero confessar à Polícia do meu Estado natal, Rio Grande do Sul, que o pecado que cometeram as mulheres da Via Campesina e as lideranças do MST também eu já cometi. Portanto, preciso ser indiciado pelas mesmas razões que o Stedile. Já em 1978 apoiei a luta dos índios Tupininquim, do Espírito Santo, contra a multinacional Aracruz, ontem, como hoje, acobertada pelo governo. A ditadura militar de então quis resolver o problema a favor da Aracruz Celulose, emancipando os índios, para que perdessem automaticamente o seu direito à terra. Mesmo acusado de insuflador, apoiei o direito dos donos das terras, ajudei os mesmos a cavar documentos relativos ao seu domínio sobre os 40 mil hectares grilados pela multinacional Aracruz e alertei-os sobre a emancipação requerida pelo governo federal. É profundamente lamentável a ação repressiva do governo do Rio Grande do Sul contra a Via Campesina. Não menos lamentável é a apatia do Governo Federal frente à ocupação ilegal das terras dos Tupininquim pela multinacional Aracruz Celulose, denunciada há 30 anos. Que ainda não tenha desapro-

priado e devolvido os 40 mil hectares aos indígenas. E que não tenha sido capaz de fazer a reforma agrária nas demais terras em mãos desta multinacional. Egydio Schwade Por correio eletrônico MUDOS Muitos são os anéis que seus aniversários desenharam em seu tronco. Estas árvores, estes gigantes cheios de anos, levam séculos cravados no fundo da terra, e não podem fugir. Indefesos diante das serras elétricas, rangem e caem. Em cada derrubada o mundo vem abaixo; e a passarada fica sem casa. Morrem assassinados os velhos estorvos. Em seu lugar, crescem os jovens rentáveis. Os bosques nativos abrem espaço para os bosques artificiais. A ordem, a ordem militar, ordem industrial, triunfa sobre o caos natural. Parecem soldados em fila os pinheiros e eucaliptos de exportação, que marcham rumo ao mercado internacional. Fast food, fast wood: os bosques artificiais crescem num instante e vendem-se num piscar de olhos. Fontes de divisas, exemplos de desenvolvimento, símbolos de progresso, esses criadouros de madeira ressecam a terra e arruínam os solos. Neles, os pássaros não cantam. As pessoas os chamam de bosques do silêncio. Eduardo Galeano Por correio eletrônico

FEBEM Parabéns pela passagem do terceiro ano de circulação do Brasil de Fato, que com muita garra vem cumprindo um papel importantíssimo na contra-informação e na formação política de nós leitores. Estou enviando para vocês um texto que redigi em março sobre uma matéria semelhante de um jornal local, que a meu ver cabe muito bem ao debate proposto na reportagem do Brasil de Fato, edição 162, “Na Febem, a crise continua.” Concordo na íntegra da matéria, mas alerto para o fato de que na maioria das vezes em que este assunto é tratado, observa-se apenas um lado da questão: o adolescente, que é sempre mostrado como vítima. E o monitor (profissional que zela pela integridade física e moral do infrator, quando este está sob proteção do Estado) é prejulgado como espancador e torturador pela sociedade via os grandes meios de mídia. Não gostaria de ler nas páginas do Brasil de Fato esta mesma opinião, pois somos trabalhadores sociais mal remunerados que lidamos, entre outras coisas, com a índole desses adolescentes, que em esmagadora maioria matam a sangue frio e refugiam-se na sua condição de miséria. Itamar Santos Viamão-RS Por correio eletrônico

CRÔNICA

A vingança das galinhas Leonardo Boff A galinha talvez seja a primeira ave a ter sido domesticada há cerca de 12 mil anos, quando o ser humano começou a ficar sedentário. Desde então as galinhas têm um destino sinistro: raramente morrem de morte natural. São mortas para o consumo humano. Na perspectiva delas, a vida é simplesmente uma tragédia. Normalmente as galinhas eram e são criadas ao ar livre, perambulando ao redor das casas. Ainda hoje as “galinhas caipiras” são preferidas por serem muito mais saudáveis. Modernamente, com a sociedade da produção industrial, elas foram transformadas em máquinas para produzir carne e ovos. Fechadas, às milhares, em aviários nos quais em cada metro quadrado são criadas de dez a doze, enganadas pela iluminação que lhes tira a percepção da noite, alimentadas por promotores de crescimento e antibióticos para crescerem até um ponto comercialmente ideal, quarenta dias, elas são submetidas a grande padecimento. Se Gandhi, o Dalai Lama ou qualquer pessoa sensível ao sofrimento visitassem um desses currais aviários, seguramente se indignariam e até chorariam de compaixão. Mas nossa espécie se especializou em submeter impiedosamente todas as demais para tirar proveito delas, mesmo que implique grande sofrimento. Sabemos hoje que todos os seres vivos formamos uma única comunidade de vida, pois somos portadores do mesmo alfabeto genético – as quatro bases fosfatadas e os 20 aminoácidos. Por que então impor este padecimento na forma de crueldade para com nossos familiares e parentes naturais? Depois de séculos de violência, as galinhas agora estão nos dando o troco. É a vingança das galinhas. Ela vem sob a forma da gripe aviária que está atingindo outros seres vivos e pode alcançar também os humanos. É o famoso vírus H5N1. Vírus aviários sempre existiram em formas não letais. Agora este H5N1 se revela uma cepa patogênica. Se sofrer mutações que o tornarem capaz de transmitir-se aos seres humanos, ele pode se replicar loucamente e matar entre 150 milhões a um bilhão de pessoas, consoante previsões científicas. Surgido pela primeira vez em 1997 em Hong Cong, agora atingiu quase metade do mundo. Não existe um antídoto que o elimine, apenas possui efeito limitante. É o Tamiflu, que não age profilaticamente, apenas 18 horas após a infecção. Foi desenvolvido a partir de um ácido extraído de vagens de anis estrelado encontradas em algumas províncias da China. A companhia farmacêutica estadunidense Gilead Sciences, da qual o Secretário da Defesa do governo Bush, D. Rumsfeld, foi presidente e é sócio, desenvolveu o antivírus Tamiflu. Cedeu a licença exclusiva de produção à Roche suíça, que está lucrando milhões de dólares e reluta em subceder licenças de produção por causa da não anuência dos acionistas. Hoje é sabido: a origem da gripe não provém de galinhas criadas ao ar livre, mas das práticas avícolas industriais e pela utilização de “subprodutos” da criação avícola como ração industrial. A Fundação BirdLife demonstrou que o padrão de focos da gripe segue as rotas das estradas e das vias férreas e não as rotas dos vôos de aves migratórias. A gripe é conseqüência do manejo cruel que nós seres humanos temos feito com as galinhas confinadas. Ai está o nicho de reprodução do vírus. É uma doença sistêmica. Ela demanda uma forma de relação com os seres vivos que não implique crueldade mas racionalidade e compaixão. Leonardo Boff é teólogo e professor universitário. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Isa Gomes, Jorge Pereira Filho, Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Dilair Aguiar • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Silvio Sampaio • Assistente de redação: Bel Mercês • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasilde fato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

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NACIONAL DIREITOS HUMANOS

Estado executa jovens pobres em Sergipe U

m corpo masculino, muito jovem, crivado de balas e com incontáveis marcas de tortura é encontrado num matagal no município de Laranjeiras, na grande Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Mais uma vítima da violência que repousava com indigente no Instituto Médico Legal. A identificação foi rápida. O corpo era mesmo o do estudante Laerte Santos de Andrade, 16 anos, que sumiu das proximidades de sua casa depois que um policial civil o abordou e ordenou que entrasse num carro da Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado. Tudo às claras. A namorada do rapaz, de iniciais C.S, 17 anos, que estava com Laerte quando o policial apareceu e o raptou, é a principal testemunha-chave. Mas outras pessoas da localidade também presenciaram o crime. Como em Sergipe a impunidade impera, a jovem sobrevivente corre sério risco de morte. Infelizmente o caso de Laerte Andrade não é um fato isolado e nem fruto da ação criminosa de um policial. No Estado, territorialmente o menor do País, o governador João Alves Filho (PFL), no último ano de seu terceiro governo, resolveu, ao que parece, reeditar as ações oficiais dos esquadrões da morte que marcaram o seu segundo mandato como governador, de 1990 a 1994.

“A MISSÃO” DO GOVERNADOR

executava, com requintes de perversidade, desafetos de grandes proprietários de terra. O grupo, segundo denúncias do Ministério Público, liderado à época pelo tenente José Ancelmo dos Santos, só se desfez em janeiro de 1995, depois de intensa mobilização social com denúncias isoladas na imprensa, da intervenção da Anistia Internacional e da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Depois de oito anos fora do governo, João Alves Filho é novamente eleito governador e reassume o comando do Estado em janeiro de 2003. Preocupado com obras de fachada, nos três primeiros anos desse terceiro governo a violência urbana se alastrou por

Sergipe, chegando a afetar integrantes da classe alta no Estado. Vendo sua principal promessa de campanha, a segurança pública, criticada por todos e com grandes dificuldades de enfrentar a reeleição para um quarto mandato, o governador João Alves Filho relembra o seu segundo governo. Em fevereiro último nomeia como secretário da Segurança Pública o advogado Flamarion D´Ávila, que foi o secretário da SSP quando se instituiu “A Missão”. Para o comando da Polícia Militar, nomeou justamente o hoje coronel José Ancelmo dos Santos, o mesmo que comandou o Pelotão de Choque em seu segunJorge Henrique

Naquele período foi criado dentro do então Pelotão de Choque um grupo de policiais militares, intitulado de “A Missão”. Tinha como objetivo prender, julgar e executar sumariamente supostos ladrões de gado no interior de Sergipe. “A Missão”, na verdade,

Pais dos jovens desaparecidos Elieu e Josué encontram apoio no Ministério Público na luta contra o esquadrão da morte

Ana Lúcia, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa

Na mira, sem-terra e pobres da periferia Mas as ações truculentas do Governo do Estado não se registram apenas nos últimos dias. Os trabalhadores rurais sem-terra, organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), já sentiram e ainda sentem bem o peso da polícia sergipana. No início da terceira gestão de João Alves Filho no Governo do Estado, ainda em 2003, verdadeiras operações de guerra foram montadas pela Polícia Militar para desocupar à força todas as margens de estradas estaduais ocupadas pelos trabalhadores rurais sem-terra. Não ficou lona sobre lona. Casas, barracos, escolas, plantações, roupas, instrumentos de trabalho, tudo destruído. Em muitas operações, povoados e até municípios eram fechados. O terror se instalava. Sete lideranças do movimento foram presas. Na cidade, o clima também é de horror. Na periferia de Aracaju, num bairro conhecido como Mati-

nha, uma das áreas mais pobres da capital, na madrugada do dia 16 de março deste ano, dezenas de policiais militares e civis encapuzados e fortemente armados invadiram as casas dos moradores. Segundo o comando da Secretaria de Segurança, eles cumpriam mandados de busca e apreensão de drogas. Portas eram derrubadas e cadeados quebrados. Homens, mulheres e crianças foram agredidos. Em muitas casas os policiais exigiam que os moradores apresentassem as notas ficais de aparelhos de TV e som. Depois de três horas de terror e ameaças, nada foi encontrado. Em nota oficial a própria Secretaria de Segurança reconhece: “Apesar de não ter sido encontrado nenhum produto de roubo, drogas ou acusados de participação em atos ilícitos, a operação policial foi positiva”. Contrariando inúmeros depoimentos de moradores, a polícia descarta qualquer abuso de poder. (CG)

do governo e teria sido o comandante da “A Missão”.

MERA COINCIDÊNCIA? As primeiras palavras públicas, na imprensa, do novo secretário de Segurança e do recém-empossado comandante da Polícia Militar são uníssonas: “Não tratarei bandido com flores. Direitos humanos serão priorizados para as vítimas”, afirmou o secretário, justificando que a dureza do seu discurso faz parte do seu estilo. Relembrando os tempos de “A Missão”, o secretário reconheceu que “é claro que houve excessos de alguns policiais, mas isso é perfeitamente plausível”. Já o novo comandante da Polícia Militar prefere

dizer: “No cumprimento de minhas funções tenho a consciência tranqüila e não me arrependo de nada que fiz. Defendi uma sociedade que estava clamando por segurança”. Para muitos, as afirmações de Flamarion e do coronel Ancelmo soaram como um sinal verde. Numa coincidência macabra, nos meses seguintes foram registrados dez assassinatos onde todas as vítimas foram mortas, segundo as fontes oficiais do próprio Governo do Estado, em trocas de tiros com a polícia. Nenhuma vítima era policial. Os números não são oficiais, mas num levantamento feito pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de Sergipe, dos 80 assassinatos por arma de fogo nos três primeiros meses de 2006 no Estado 60 não têm autor conhecido. As vítimas são pobres, homens e de idade variando dos 14 aos 30 anos. “Casas estão sendo invadidas, moradores desrespeitados, jovens sendo exterminados. É uma situação extremamente grave, pois a violência está sendo cometida, na maioria das vezes, por aqueles que devem garantir a segurança à população”, denunciou a deputada Ana Lúcia, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. O Ministério Público Estadual acompanha as ações da Secretaria de Segurança Pública. O promotor de Justiça que cuida da atividade externa da polícia, Deijaniro Jonas, já abriu uma série de procedimentos para apurar as denúncias. Como porta-voz do Governo do Estado, o deputado Venâncio Fonseca (PP), líder do governo na Assembléia, garantiu que as providências estão sendo tomadas pela Secretaria de Segurança Pública, que todos os casos serão esclarecidos e que, se existirem culpados, serão exemplarmente punidos.

As vítimas do esquadrão da morte Um dos casos que mais repercute em Sergipe e que chegou ao conhecimento do Ministério da Justiça é o desaparecimento de Elieu Pereira dos Santos, 17 anos, e de Josué dos Santos da Vitória, 18 anos. No dia 16 de abril, madrugada de domingo, os primos Elieu, Josué e C.B.S., 18 anos, tinham acabado de sair de uma festa no povoado Mosqueiro, zona de expansão de Aracaju, quando foram abordados por policiais militares da Companhia de Choque. A ação policial foi presenciada por cerca de 50 pessoas. Os três jovens, sem motivo aparente, foram obrigados a entrar em uma caminhonete da polícia. Alguns quilômetros depois, C.B.S. passa por uma sessão de torturas até desmaiar. Ele é deixado num matagal. O rapaz consegue sobreviver e retorna para casa. Elieu e Josué nunca mais apareceram. Apesar das cobranças do Ministério Público Estadual e das Comissões de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado, da Câmara de Vereadores de Aracaju e da Ordem dos Advogados do Brasil em Sergipe, o Governo do Estado prefere o silêncio. Ninguém fala. “Não tenho mais esperanças de encontrar eles vivos. Mas a polícia tem que dizer onde jogaram eles. Os dois eram gente e precisam ter um enterro de gente”, disse o pescador Eliseu Pereira, pai de Elieu. Cerca de 15 dias antes do sumiço desses dois jovens em Aracaju, policiais civis e militares teriam prendido três pessoas acusadas de roubar caminhões e cargas no Estado. A operação policial aconteceu no município de Itabaiana, a 55 km de Aracaju.

Jorge Henrique

Cristian Góes de Aracaju (SE)

Jorge Henrique

Entidades de direitos humanos e Ministério Público denunciam grupos de extermínio formados por policiais

Casos de violência contra jovens e adolescentes se sucedem sem investigação

Segundo testemunhas que já prestaram depoimento à OAB/SE, Marcelo Carlos Nascimento Silva, 24 anos, Juan Ronald Celi Correia, 23 anos, e Flávio José Alves, 30 anos, já tinham sido presos quando foram torturados e sumariamente executados a tiros. A informação oficial do Governo do Estado e acatada como verdade pela imprensa sergipana é que ocorreu troca de tiros entre as vítimas e os policiais. Chegou-se até a apresentar uma arma supostamente dos mortos. Cinco dias depois da execução dos três jovens em Itabaiana, alguns policiais mataram a tiros

Cristiano Oliveira Santos, 20 anos, no bairro Cidade Nova, periferia de Aracaju. Cristiano era acusado pela polícia de assaltar pessoas na região. Não existiam testemunhas. Sabese apenas que ele foi perseguido e, segundo a polícia, numa troca de tiros, foi morto. Cristiano morreu com tiros na nuca e na testa. Os casos se sucedem. José Milton Nascimento, 19 anos, por exemplo, foi assassinado com tiros na cabeça e seu corpo jogado num matagal na zona Sul da capital sergipana, numa região praiana. Ninguém sabe sobre a autoria da execução. (CG)


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Espelho MATO GROSSO

Chico Mendes vive e resiste

Cid Benjamin A mídia e a Bolívia – I A imprensa brasileira está tratando a nacionalização do petróleo e do gás boliviano como usurpação dos direitos das companhias estrangeiras instaladas na Bolívia – entre elas, a Petrobras. Só lendo todas as matérias é que se vê, perdido entre outras informações, que o decreto firmado por Evo Morales obriga as transnacionais a vender 50% mais uma de suas ações na Bolívia para a estatal do petróleo e gás YPFB. Não se trata de expropriação. O Globo versus Garotinho – I Poucas vezes se viu, nos últimos tempos, campanha tão pesada como a das Organizações Globo contra Anthony Garotinho, cuja candidatura à Presidência não interessa ao Planalto. Mas, independentemente dos objetivos da Globo, a maior parte das matérias se sustenta jornalisticamente. São denúncias que exigem respostas. Reclamar de perseguição não basta. Se não quiser sair seriamente chamuscado, Garotinho precisa responder às denúncias. O Globo versus Garotinho – II Mas O Globo força a barra. Dia 30 de abril, reportagem na página 3 tem o título “Garotinho admite uso de avião de bandido”. O título induz a erro. Um criminoso preso teve os bens arrestados e eles estão sendo geridos por um administrador indicado pela Justiça. Esse administrador arrendou o jatinho do criminoso a uma empresa que aluga aeronaves. E Garotinho alugou o jatinho nessa empresa. Dizer que ele “admite” o uso do avião de bandido é sugerir empréstimo e vínculo com o bandido. Veja versus Garotinho A revista Veja entrou na campanha contra Garotinho e ressuscitou métodos que tinha usado antes: fazer capas com fotomontagens. Assim como exibira o líder do MST, João Pedro Stedile, empunhando uma pistola, no melhor estilo 007, na edição desta semana mostra Garotinho com chifres de diabo. Além disso, trata o caso do jatinho, citado na nota anterior, da mesma forma que O Globo. Benevolência da mídia Lula tem se superado nas bobagens e está sendo tratado com benevolência pela mídia. Os jornais registram a patacoada e seguem em frente, sem explorar mais o caso. Semana passada, em assertiva digna do Casseta & Planeta, o presidente afirmou que o sistema de saúde no país está próximo da perfeição. Dia 28, disse que nunca houve “em toda a história da humanidade” um governo com tanta participação dos trabalhadores. Menos, Lula, menos. Veja condenada A Justiça do Distrito Federal condenou a Veja e a Editora Abril a pagar uma indenização por danos morais de R$ 50 mil a Eduardo Jorge, secretário-geral da Presidência no governo Fernando Henrique Cardoso. O motivo da condenação foi uma série de matérias publicadas entre 1999 e 2001 vinculando Eduardo Jorge ao desvio de verbas na construção do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. A Justiça considerou que não há provas do envolvimento de Eduardo Jorge. Não sei se ele é inocente no caso, mas a Veja não deve ser. Os jornais e a interatividade A maior facilidade de se escrever para jornais e revistas, por causa da internet, e o conseqüente aumento do número de cartas obrigaram os veículos lidos pela classe média a dedicar espaço crescente às seções de cartas dos leitores. Já há, nos EUA, jornais que levam a interatividade mais longe e desenvolvem uma experiência interessante: estimulam leitores a reescrever, a seu gosto e com suas posições, artigos e até editoriais, republicando-os. Blog do Cid Benjamin: http://blog docidbenjamin.zip.net/

Depois de despejo ilegal, famílias erguem novo acampamento Gibran Lachowski de Cuiabá (MT)

E

ntre os dias 11 e 13 de abril, cerca de 280 famílias dos acampamentos Chico Mendes I e Chico Mendes II, na fazenda Espinheiro/Itambaracá, situados no município de Acorizal (a 747 km da capital), foram vítimas de um despejo ilegal e violento. Há três anos à espera de serem assentadas, essas pessoas fazem parte das 3,5 mil famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) acampadas no Mato Grosso. A justiça estadual de Mato Grosso desrespeitou o artigo 109 da Constituição Federal ao conceder liminar ao proprietário da área para expulsar os sem-terra dos dois acampamentos. A fazenda já havia sido declarada de interesse social em fevereiro de 2005. A desapropriação está em fase de ajuizamento, com dinheiro empenhado, e aguarda apenas decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Isso significa que o caso deve ser julgado pela justiça federal. A trabalhadora rural Helena de Souza conta que os acampados do Chico Mendes I foram surpreendidos dia 11 de abril, por volta das 5h30, com a presença de PMs fortemente armados, auxiliados por veículos, caminhões e máquinas de pá carregadeira. O chefe da operação deu uma hora para que as pessoas desocupassem a área. “Ele fazia pressão psicológica, dizia que ia meter a borracha, jogar o trator nos barracos e derrubar tudo se a gente não colocasse nossas coisas nos caminhões”, relata Helena. “A PM chegou mesmo

Arquivo Brasil de Fato

da mídia

NACIONAL

Justiça persegue sem-terra e defende o agronegócio no Mato Grosso, governado pelo produtor de soja Blairo Maggi

a passar por cima de vários barracos. Graças a Deus, sem-terra acorda cedo pra trabalhar, se não teria havido morte”, destaca. Enquanto a PM tentava cumprir a ordem ilegal de despejo, acampados procuravam a direção do MST em Cuiabá, que se empenhava em criar uma rede de solidariedade com movimentos sociais e promover uma intervenção política. O esforço resultou na suspensão do despejo, dia 12, e no agendamento de uma audiência na Assembléia Legislativa do Mato Grosso. Aerika Aparecida da Silva, militante do MST, conta que PMs e seguranças particulares furtaram a plantação dos sem-terra, além de saquearem o depósito de alimen-

ANÁLISE

Há uma década, o Mato Grosso passou a ser conhecido na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia como grande produtor de soja in natura. Há muito mais tempo, o Brasil já reconhecia o Estado como um celeiro de grãos. Mas essa é uma terra fértil também para o crime organizado. Durante 20 anos, foi governada pela quadrilha urbana de João Arcanjo Ribeiro, conhecido como “Comendador” – por conta do título concedido pela Assembléia Legislativa em 1998. Ribeiro e seis comparsas foram condenados, em dezembro de 2003, a 124 anos de prisão. Ainda assim, o Mato Grosso permanece sob o governo do crime, que tem fortes raízes na zona rural. Nos tempos do ex-policial civil Arcanjo, o jogo do bicho, os aparelhos caça-níqueis e as factorings eram os instrumentos de vínculo da quadrilha principalmente com a população da capital, Cuiabá, e de Várzea Grande. Atualmente, quem comanda o Mato Grosso é a cúpula do campo, do agronegócio de exportação, que escolheu e bancou o latifundiário Blairo Maggi (PPS-MT) ao governo do Estado nas eleições de 2002. Rondonópolis, Campo Verde, Lucas do Rio Verde, Sorriso e Sapezal são alguns dos municípios controlados por essa organização.

CRIMINOSOS “Comendador” foi preso por crime contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro e utilização de factorings como bancos ofi-

voltou a agir, retirando todas as famílias do local. Os PMs deixaram os sem-terra à margem da avenida do CPA, uma das mais movimentadas da cidade. “No trajeto, sumiram 28 fardos de feijão, 15 caixas de óleo, 15 fardos de leite, toda a merenda escolar enviada pela prefeitura de Acorizal, oito metros de lona, ferramentas, dois botijões de gás, um som de carro e uma caixa de som”, relata o acampado Carlos Ximenes. Porém, dias depois, surgiu na margem da avenida um novo acampamento, que foi chamado de Blairo Maggi. A sem-terra Helena, guerreira dos pés à alma, não hesita em demonstrar a força da resistência dos trabalhadores: “Nós vamos conseguir!”.

RUMOS DO PAÍS

O crime organizado campeia no Estado Gibran Lachowski*

tos. “Deixaram as famílias sem comer por dois dias. Durante essas noites a PM ficou falando alto, tocando sino e andando de moto entre os barracos”, lembra Aerika. No desespero de matar a fome, Germano, de sete anos, desequilibrou-se de um pé de cacau, caiu em cima de um pedaço de madeira pontiagudo e chegou a ter parada respiratória. “Só no dia 13 o pessoal foi comer porque o acampamento Chico Mendes II mandou alimento”, informa a militante. O resultado da audiência na Assembléia foi negativo. O MST não conseguiu, a tempo, uma decisão judicial que apontasse a incompetência da justiça estadual para julgar o caso Chico Mendes. O despejo foi reiniciado e a PM

ciais. A elite ruralista do Estado responde pelos delitos de trabalho escravo, envenenamento de águas, solos, animais e pessoas, despejo de trabalhadores e violenta concentração de terras. Em 2005, 1.411 homens e mulheres do Mato Grosso foram libertados de fazendas destinadas à plantação de cana-de-açúcar e de áreas desmatadas para a instauração do agronegócio, segundo a Delegacia Regional do Trabalho/MT. O Estado ganhou o título de campeão brasileiro na modalidade. No mesmo ano, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Mato Grosso consumiu 19% do agrotóxico usado no país, liderando este ranking também. Em 2004, foram aplicados 47 milhões de quilos de veneno nas áreas rurais do Estado. Sobre a concentração de terras, um dado exemplar: 8 mil propriedades têm 49,9 milhões de hectares, representando 69% das terras privadas mato-grossenses, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Se Arcanjo é acusado pelo Ministério Público Estadual de ter ordenado o assassinato de oito pessoas – entre as quais Sávio Brandão, proprietário do jornal Folha do Estado (Cuiabá) –, Maggi, como chefe da organização que hoje controla o Mato Grosso, atende oficialmente pelo despejo ilegal de centenas de sem-terra, pela violência física e psicológica contra adultos, crianças, idosos e mulheres grávidas. Gibran Lachowski é jornalista e militante do Comitê de Luta pelo Transporte Público

A alternativa para o Brasil, segundo Carlos Lessa Vanessa Ramos, Silvana Sá e Taynée Mendes do Rio de Janeiro (RJ) O Brasil precisa seguir o exemplo de Hugo Chávez e Evo Morales, na opinião do professor e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o economista Carlos Lessa. Em palestra do Ciclo Pensando o Brasil – Alternativas Políticas, promovido pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, Lessa disse que há uma distorção do termo “populista”, empregado pelas elites e pela grande mídia. Para o economista, a palavra assume outra conotação: “Populista, ou melhor, ‘neopopulista’, é quem se preocupa com o povo, assim como Hugo Chávez e Evo Morales. A elite brasileira não quer o desenvolvimento produtivo do país, quer o desenvolvimento de seus próprios interesses. Isso explica os 25 anos de estagnação da economia nacional. E quem tiver qualquer preocupação com o povo é rotulado como populista”. A princípio, ele menciona a Bolívia do século 19, país recémindependente, cuja exploração de recursos minerais era controlada por estrangeiros – como o estanho, pelos ingleses. Ainda hoje a exploração do estanho boliviano é feita por uma transnacional inglesa, que se apodera da maior parte dos lucros. Caso parecido ocorreu com as cervejarias brasileiras Brahma e Antártica, que recebiam incentivo estatal desde D. Pedro II. Então, em 2004, numa fusão de

proporções gigantescas, nasceu a Ambev, empresa agora belga. O mesmo ocorre, segundo ele, com partes da Companhia Siderúrgica Nacional e da Petrobras. Ou seja, empresas puramente nacionais estão se tornando transnacionais. Carlos Lessa chama atenção para a “desindustrialização” do Brasil desde a política neoliberalista do governo Fernando Collor, e agora continuada pelo governo Lula, do Partido dos Trabalhadores. “Há o crescimento do agronegócio da soja. Porém a estrutura, o maquinário, os fertilizantes são fabricados no exterior. É preciso valorizar o que é nacional, como fazia a ‘saudosa’ República Velha”, disse ele. Lessa fez elogios ao programa Fome Zero, do governo federal: “As pessoas costumam falar que não basta dar o peixe, é necessário ensinar a pescar. Mas quem está com fome precisa comer o peixe, para conseguir forças para pescar. Nesse sentido, louvo o programa Fome Zero do governo Lula, que de populista não tem nada!”. Segundo o ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o que atrasa o desenvolvimento do Brasil é a própria elite nacional, na medida em que não investe no desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Ao se declarar impressionado com o “instinto de sobrevivência” do povo brasileiro, o ex-presidente do BNDES propõe como alternativa um apoio estatal às micro e pequenas empresas, a partir de uma economia solidária: “Uma proposta não radicalmente transformadora, mas politicamente humanizada”.


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NACIONAL TRABALHADORES

No Brasil, o 1º de maio dos desempregados Luís Brasilino da Redação

N

o Dia do Trabalhador, 1º de maio, mais de dois milhões de pessoas festejaram pelas ruas de São Paulo (SP), em atos promovidos pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), na Avenida Paulista, e pela Força Sindical, na Praça Campo de Bagatelle. Porém, pelos indicadores do mercado de trabalho, a multidão comemorava mais a oportunidade de assistir a shows gratuitos de artistas famosos do que conquistas da classe trabalhadora. Talvez muitos tenham saído às ruas entusiasmados pelo pronunciamento otimista, em cadeia nacional de rádio e televisão, feito um dia antes pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em tom de campanha, o petista destacou a auto-suficiência brasileira em petróleo anunciada no dia 21 de abril e enumerou dados positivos de seu governo. “Muita coisa ainda precisa melhorar no Brasil, mas nos últimos três anos a balança se inverteu a favor do brasileiro comum, em especial do trabalhador. Vejamos: aumentou o emprego, a massa salarial, o salário mínimo, o microcrédito e a poupança interna. Diminuiu a inflação, a dívida externa e os juros para trabalhadores e aposentados”, afirmou Lula. O presidente também citou a criação de “quase quatro milhões de empregos com carteira assinada” e o fato de 90% dos acordos salariais estarem sendo feitos acima da inflação. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmam a fala de Lula. Segundo a Pesquisa Mensal de Emprego (PME), o desemprego caiu de 12,1% em março de 2003 para 10,4% em março de 2006. Além disso, a taxa de desemprego nesse mesmo mês em 2002, último ano do mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), era 12,9%. A renda subiu no governo atual – de R$ 989,28 em março de 2003 para R$ 1.006,80 em 2006. O valor, no entanto, ainda é inferior ao do último ano de gestão tucana: R$ 1.099,49.

Giorgio D’Onofrio

Festas reúnem multidões em São Paulo, mas 25% dos brasileiros vivem sem renda e na marginalidade Rendimento Médio da População Ocupada, nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre (em reais) março/2002

1.099,49

março/2003

989,28

março/2004

965,78

março/2005

982,49

março/2006

1.006,80 Fonte: IBGE

Em São Paulo, dois mil protestam na Sé Além das festas da CUT e da Força Sindical, houve, na cidade de São Paulo, um ato de 1º de maio com caráter exclusivamente de protesto. Organizada por partidos de esquerda e diversos movimentos sociais, a manifestação, que contou com duas mil pessoas – o dobro do ano anterior –, começou com uma missa na Catedral da Praça da Sé e seguiu com uma passeata até a prefeitura. Segundo Jorge Martins, da ala esquerda da CUT, o

governo de Luiz Inácio Lula da Silva mantém, na macroeconomia, uma submissão à lógica implementada na década passada pelo governo Fernando Henrique Cardoso: “Pagamento da dívida pública e altos juros internos cobrados pelos bancos, de um lado; e, do outro, um modelo voltado para a exportação. Ou seja, não investe no que chamamos de modelo auto-sustentável baseado na recuperação geral de salários dos trabalhadores e aposentados”, sustenta Jorginho, como é conhecido. (LB)

Taxa de Desocupação nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre março/2002

12,9%

março/2003

12,1%

março/2004

12,8%

março/2005

10,8%

março/2006

10,4% Fonte: IBGE

melhora ainda está longe de tornar-se objeto de comemoração. Ele lembra que, em relação a fevereiro (quando o índice medido pelo IBGE estava em 10,1%), a taxa de desemprego subiu. Assis também relativiza a ampliação dos postos com carteira assinada. “Mesmo que tenha havido um aumento das carteiras assinadas no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o desemprego continua crescendo pois a população economicamente ativa (PEA) aumentou ainda mais”, explica. Assis minimiza o crescimento da massa salarial – recuperada em relação ao ano passado, mas menor do que era em 1999 e 2000. Para ele, a recuperação não caracteriza uma tendência. Além disso, segundo a avaliação de Assis, os números absolutos de desemprego, independentemente de taxas, são altíssimos. Nas seis regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE na PME, isso significa 2,314 milhões de pessoas dentro de um total de 22,242 milhões que

BALDE DE ÁGUA FRIA No entanto, para o economista José Carlos de Assis, editor da página eletrônica Desemprego Zero (www.desempregozero.org.br), essa

integram a PEA e procuraram emprego na semana da enquete. Assis conta que durante essa semana, essas mais de 2 milhões pessoas procuraram ativamente emprego e não encontraram nenhuma forma de renda. “O cara não conseguiu nem vender um pastel na praia. Esse é o desocupado do IBGE. Se você pensar assim, 10,4% é uma taxa terrível porque esse pessoal praticamente não tem cobertura nenhuma. O salário desemprego (R$ 350 a R$ 486,46) dura cinco meses e mesmo assim é pequeno”, pontua o economista. Fica pior ainda se o subemprego for incluído na conta. Somados os 15% da PEA que ganham menos de um salário mínimo no mercado informal com a taxa de desocupação, temos um quarto da população brasileira virtualmente desempregada. “Os níveis de desemprego no Brasil representam um quadro de tragédia. Essa é a maior crise social da história brasileira”, analisa. O economista esclarece que o

desemprego é alimentador constante de uma crise social. “É isso que gera, por exemplo, a criminalidade. A tendência do desempregado primeiro é procurar um emprego. Depois ele vai para a informalidade e, por fim, para o mercado marginal. Ele tem que sobreviver”, descreve Assis.

GOVERNO LULA João Felício, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), destacou, no 1º de maio, os esforços do governo federal para mudar esse quadro. Ele lembrou que, este ano, o salário mínimo subiu de R$ 300 para R$ 350, atingindo seu maior poder de compra em 20 anos. Felício destacou ainda a elevação da massa salarial do país, o aumento de trabalhadores com carteira assinada e os investimentos na agricultura familiar. O líder sindical também fez cobranças: “Nós queremos um outro Brasil, queremos um Brasil que cresça, em média, 5% a 6% ao ano, queremos que essa imensa massa de jovens entre no mercado

de trabalho, queremos um Brasil no qual não haja tanta agressão às pessoas no mercado de trabalho. Por exemplo, as pessoas sofrem acidentes de trabalho na construção civil, no setor de alimentação, cortadores de cana. O Brasil é ainda um país profundamente desumano nessa área, portanto, só podemos falar em democracia quando o trabalhador for respeitado”. Para Assis, contudo, essas coisas só vão acontecer quando a política econômica for alterada, principalmente na hora em que os juros e o superávit primário forem reduzidos, possibilitando o investimento público e privado. “Como um empresário vai colocar recursos no setor produtivo se tem lucros exorbitantes com aplicações financeiras? É contra a lógica”, pondera o economista. Ele defende que, em lugar do modelo econômico atual, se implante uma política de pleno emprego, baseada em juros baixos, menor superávit primário e um programa de investimentos no setor público.

MINAS GERAIS

Romaria dos trabalhadores discute educação Caio Tatamiya Rodrigues e Raquel Lara Resende de Viçosa (MG)

da como Seu Neném, a esperança de mudança da educação passa também pela necessidade de repensar a qualidade de ensino no Brasil.

ATO PÚBLICO Na entrada da universidade, um ato público chamou atenção para diversos símbolos que sustentam o abismo entre o povo e a educação:

agronegócio, transgênicos, neoliberalismo, latifúndio e Monsanto foram alguns dos inimigos apontados. Para Alexandre Chumbinho, do MST, foi importante o ato acontecer em Viçosa, “cuja universidade é historicamente reacionária e contribui para formar os profissionais do agronegócio de hoje”. “A soja que dominou o cerrado brasileiro

Joana Tavares

O abismo que separa o povo da universidade foi o tema debatido por cerca de duas mil pessoas durante a 16ª Romaria dos Trabalhadores e das Trabalhadoras, na cidade mineira de Viçosa, como parte das mobilizações do 1º de Maio. As atividades – entre as quais uma marcha de dez quilômetros rumo à Universidade Federal de Viçosa (UFV) – foram promovidas pela arquidiocese de Mariana. Reuniram militantes e ativistas sociais de todas as regiões da Zona da Mata mineira, com a participação de sindicatos de trabalhadores, pastorais, estudantes e representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Segundo o padre Claret, da coordenação estadual do MAB, a função da mobilização popular pela universidade “é fomentar o surgimento de questões para a sociedade, pois há muitas contradições que não são debatidas abertamente”. O religioso disse ainda que a luta pela demo-

cratização desse importante setor nacional vai além da manifestação do Dia 1º de Maio: “Os diversos segmentos organizados da sociedade, ao se apropriar do debate sobre a Educação, poderão fazer a pressão necessária para a grande mudança de que as universidades precisam”. Para uma histórica liderança sindical e popular da Zona da Mata, conheci-

Este ano, romaria dos trabalhadores defendeu a união do movimento estudantil com diversos setores organizados da sociedade

foi pesquisada e desenvolvida aqui, inclusive pelo fulano que hoje é o excelentíssimo reitor”, disse ele. Eduardo Guatimosim, coordenador geral do DCE da UFV, afirmou: “Estamos convencidos de que somente pela união do movimento estudantil com os diversos setores organizados e combativos da sociedade é que realizaremos as transformações tão necessárias ao país e à educação brasileira”. Na celebração da missa do 1º de Maio, Dom Luciano Mendes, arcebispo da arquidiocese de Mariana, conclamou a todos a “lutar pelos direitos sociais básicos e para garantir o acesso à educação”. Dom Luciano destacou o papel protagonista dos movimentos sociais em relação à questão ambiental, principalmente nos episódios relacionados às ações na Aracruz (RS) e na Cemig (MG): “Quanto mais convicção, quanto mais coerência, melhor. O radicalismo é importante nas convicções, saber exatamente o que queremos, e compreender a justiça do que pretendemos. Ninguém pode abrir mão do que é certo, ninguém pode deixar de querer lutar para o bem dos outros. Nesse ponto, o radicalismo não tem limites”.


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AMÉRICA LATINA BOLÍVIA

O resgate da soberania de um povo Tatiana Merlino e Igor Ojeda da Redação

O

decreto 28.701, assinado no dia 1º pelo presidente da Bolívia, Evo Morales, foi tachado de autoritário pela grande mídia no Brasil e no mundo. Mas esta se “esqueceu” de levar em conta um detalhe: o apoio maciço do povo boliviano à medida. Ao completar cem dias de governo, Morales cumpriu uma de suas principais promessas de campanha, determinando a nacionalização da exploração dos hidrocarbonetos (petróleo e gás) do país. Em seguida, ordenou a ocupação pelo Exército dos campos de produção das empresas estrangeiras, que terão 180 dias para se regularizarem, respeitando as novas condições, ou deixarem o país. “Duas reivindicações fundamentais que levaram à vitória de Evo Morales foram a convocação da Assembléia Constituinte e a nacionalização dos recursos energéticos. As duas coisas ele está fazendo. A vitória é dos movimentos sociais bolivianos, que não apenas criticaram e resistiram, mas também construíram seu projeto partidário. É uma vitória de todos os movimentos sociais do continente. Na Bolívia está se jogando grande parte do futuro da América Latina”, analisa o sociólogo Emir Sader.

CONTRATOS NOVOS A medida obriga as petroleiras a entregarem toda sua produção à estatal boliviana Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), que passará a ser responsável pela comercialização dos recursos, de-

Agência Boliviana de Notícias

Ao completar cem dias de governo, Evo Morales nacionaliza a exploração de petróleo e gás tos de abastecimento ou de preço. Nada muito significativo. O mais importante é que, para além dessa conjuntura, fica explicitado que Bolívia, Venezuela e Brasil somos interdependentes. A Venezuela precisa do mercado brasileiro, que precisa do gás da Bolívia. Não temos que pensar medidas a curto prazo, temos que chegar a um bom acordo”, defende Sader.

INTERDEPENDÊNCIA

Exército ocupa refinarias de transnacionais, após anúncio da nacionalização da exploração dos hidrocarbonetos

terminando condições, volumes e preços, seja para o mercado interno, seja para o externo. Além disso, o governo controlará também a operação dos campos das petroleiras que se recusarem a aceitar os novos termos ou impedirem o cumprimento do decreto, garantindo, assim, a continuidade da produção. Para Sader, o decreto do presidente é, antes de tudo, uma medida em defesa da soberania do povo boliviano. Segundo ele, sem a propriedade estatal do setor de gás, por exemplo, a Bolívia não teria como fazer valer a vontade de sua população no processo de integração energética regional. Sydney Reis, diretor da Associação dos Engenheiros da Petrobras

(Aepet), concorda: “Todos os países têm direito à soberania. Não ficamos surpresos porque o Evo Morales, em sua campanha, disse que faria isso. E fez. Então ele é um presidente que cumpre o que promete”, diz. Perguntado sobre o modo como tal medida foi tomada, respondeu: “Qual seria a forma alternativa? Eu não sei”. Antônio Carlos Spis, diretor do Sindicato dos Petroleiros do Estado de São Paulo, também defende o decreto do governo boliviano. Para ele, “se um país se acha tão vilipendiado, tão sugado nos contratos que foram feitos historicamente, ele tem esse direito. A Bolívia está estrangulada, não tem saída para o mar. Ela tem nesses recursos naturais uma alternativa de

desenvolvimento nacional”. Pelo menos oficialmente, o governo brasileiro parece concordar. Nota divulgada no dia 2 afirmou que “a decisão do governo boliviano de nacionalizar as riquezas de seu subsolo e controlar sua industrialização, transporte e comercialização, é reconhecida pelo Brasil como ato inerente à sua soberania. O Brasil, como manda a sua Constituição, exerce pleno controle sobre as riquezas de seu próprio subsolo”. O comunicado disse também que o abastecimento de gás natural vindo da Bolívia foi garantido ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo próprio Morales e que ficou acertado que seu preço será negociado por ambos os países. “Pode haver problemas imedia-

Para Spis, “a Petrobras não vai sair de lá, assim como o governo boliviano não quer que ela saia”. Portanto, haverá negociações entre os dois países. “Não acredito que a Bolívia, num curto espaço de tempo, possa assumir toda a infra-estrutura necessária para desenvolver projetos de prospecções sem o apoio de uma país amigo, solidário, que por sua vez tem que ter essa visão de integração. Uma coisa não está separada da outra”, diz. Segundo Sader, a Petrobras encontrará uma maneira de colaborar com a nova realidade boliviana, “para que o Brasil participe da integração não somente através de projetos gerais, mas também na relação bilateral solidária”. Mostrando sua disposição de contribuir com a integração latinoamericana, Evo Morales, juntamente com os presidentes da Venezuela e de Cuba, Hugo Chávez e Fidel Castro, assinou, no dia 29 de abril, em Havana (capital cubana), diversos acordos de cooperação econômica e política, sinalizando a entrada da Bolívia na Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) e dos outros dois no Tratado de Comércio dos Povos (TCP), lançado por Morales.

EQUADOR

O jogo sujo das transnacionais petroleiras Igor Ojeda da Redação As corporações da Europa não se diferenciam em nada das estadunidenses. Com uma ou outra discordância, esta idéia foi, no geral, consenso entre a maioria dos palestrantes do seminário internacional Em busca de um novo ‘Eldorado’? As empresas transnacionais européias na América Latina. Impactos e Alternativas, promovido pelo Instituto Rosa Luxemburg Stiftung e pela Aliança Social Continental, entre os dias 24 e 26 de abril, em São Paulo. Antes mais “responsáveis” e tidas como benevolentes, as empresas européias aproveitaram o avanço da globalização e passaram a se valer da lógica do lucro, utilizando-se da União Européia (UE) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), para ter acesso aos mercados dos países menos desenvolvidos, e da subserviência dos governos destes para conseguir a institucionalidade necessária. Desde então, violações ambientais e dos direitos dos trabalhadores, entre outras, têm feito parte de seus comportamentos-padrão. Com o objetivo de tecer uma rede permanente entre os movimentos sociais na luta contra o poder econômico destrutivo dessas empresas, o seminário serviu de preparação para o julgamento de 38 casos de violações por parte de transnacionais européias no Tribunal Permanente dos Povos, que ocorrerá entre os dias 10 e 13 de maio, em Viena (Áustria), paralelamente à Cúpula União Européia-América Latina e Caribe. Entre os participantes do encontro, estava o ativista José Proaño, da organização não-governamental Acción Ecologica que, em entrevista ao Brasil de Fato, denunciou os danos ambientais e sociais causados pelas empresas petroleiras no Equador, entre elas a Petrobras: “Tem nos

custado ver como a atitude da Petrobras não se diferencia em nada da das demais transnacionais”. Brasil de Fato – Como se deu a entrada das petroleiras no Equador? Como foi o processo? José Proaño – Isso tem mais de cem anos. Primeiro, houve concessões na costa do Pacífico, e, a partir dos anos 30, chegou a Shell, com as primeiras explorações na Amazônia. Depois, as empresas foram expulsas por um governo de corte nacionalista. Mas a que realmente fez escola no Equador foi a Texaco (hoje Chevron Texaco). Entrou no final dos anos 1960, onde hoje está o que chamamos de Amazônia Norte. Foi responsável por uma série de destruições, tanto ambientais quanto sociais. O Estado entregou toda essa parte da Amazônia como se fosse fronteiras sem dono, mas lá era um território indígena. Assim foi até os anos 1980, quando se construiu a maioria da infra-estrutura petroleira. Foram construídos oleodutos, duas refinarias, se dividiu a Amazônia em blocos petroleiros, e basicamente a Texaco trabalhava em associação com o Estado. A transnacional saiu do Equador em 1991, quando o contrato acabou, e a partir daquele ano o Estado tomou posse de todas as suas instalações. BF – Fale um pouco sobre o processo de idealização e construção do consórcio Oleoducto para Crudos Pesados (OCP). Proaño – Dentro das políticas de ajuste que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional impõem a nossos povos, eles decidiram que, para priorizar o pagamento da dívida externa, o Equador teria de exportar mais petróleo. Optam pela constru-

ção de um novo oleoduto, para duplicar a produção petrolífera que existia até 2000. Nesse ano, 400 mil barris de petróleo diários saíam da Amazônia. Com esse novo oleoduto, poderiam ser produzidos 480 mil a mais. Porém, os contratos das transnacionais sócias do OCP – Perenco (França), Agip (Itália), Repsol (Espanha), Occidental (EUA), Petrobras (Brasil), AEC Ecuador (Canadá) e um consórcio de empresas pequenas –, bastante indecentes, imorais, diziam que 85% dos lucros eram para aquelas, e apenas 15% para o Estado equatoriano. Todo o petróleo que saía do OCP era das transnacionais e o pouco que ficava para o Estado era para o pagamento da dívida externa. BF – Então, nada foi revertido ao povo equatoriano. Proaño – Isso mesmo, nada. Essa construção começou quase autoritariamente. Nós fizemos uma campanha muito forte em 2001, e o presidente disse que o oleoduto iria sair de qualquer maneira. E conseguiu, com toda violência e o respaldo que pode usufruir um Estado, completamente servil e influenciado pelas transnacionais. Houve muita corrupção. Por exemplo, o oleoduto começou a ser construído quando o consórcio OCP não havia feito ao Estado o depósito do Fundo Social de Compensação, que é um pré-requisito para iniciar qualquer tipo de projeto. O Estudo de Impacto Ambiental foi mal feito, e mesmo o Banco Mundial reconheceu que o consórcio violava normas ambientais. BF – E mais especificamente sobre as petroleiras européias, como elas atuam? Proaño – As três petroleiras euro-

péias que são sócias do consórcio OCP têm uma lista suja por trás delas. São responsáveis por uma série de violações ambientais no Equador. As três trabalham dentro de áreas protegidas, parques nacionais, territórios indígenas. São responsáveis por uma perda enorme de biodiversidade. Há vazamentos de petróleo permanentes. Águas tóxicas, que resultam da separação do petróleo, são jogadas no meio ambiente. Temos desmatamento, por causa das plataformas, da construção de oleodutos, das estradas, dos acampamentos. Estas três transnacionais têm um total de 600 mil hectares de concessão de bosques amazônicos primários. E dentro destes vivem povos indígenas. As comunidades lá dentro estão cada vez mais empobrecidas, justamente pela deterioração ambiental de que padecem, porque suas economias tradicionais se vêem muito afetadas, por serem pescadores, caçadores ou horticultores. Já não têm terra para cultivar, pois está contaminada, não têm água para beber, então com isso os índices de doenças vão subindo. Temos altíssimos índices de câncer, de doenças de pele, gastrointestinais ou respiratórias. E as maiores vítimas de tudo isso são crianças e mulheres. E não existem planos de saúde por parte do governo. Algumas transnacionais tentam oferecer serviços médicos como compensações sociais. No momento em que a comunidade reclama, ameaçam tirar-lhes o benefício. BF – E a respeito da Petrobras? Proaño – A Petrobras tem dois blocos petroleiros na atualidade, que compreendem também uns 600 mil hectares de floresta amazônica, o bloco 18 e o 31. No primeiro, ela mantém um ce-

mitério tóxico em um terreno que foi comprado da comunidade com a promessa enganosa de que iam fazer cultivos ecológicos. Uma vez com a propriedade nas mãos, a empresa fez o que quis com ela. Este cemitério está a poucos metros das casas, das plantações e das fontes de água. Quanto ao bloco 31 iniciamos uma campanha no Equador, no Brasil e em outros países, porque a empresa está trabalhando dentro do Parque Nacional Yasuní. Esse parque é uma reserva da biosfera declarada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura). Também é território do povo Hauoarani, que tem apenas 30 anos de contato com a sociedade. Vamos manter a campanha, com todos os atores possíveis, tanto no Brasil como no Equador, para exigirmos a retirada da Petrobras. Igor Ojeda

Quem é O ativista ambiental José Proaño trabalha na Acción Ecologica, organização equatoriana que desde 1986 se dedica a lutar contra os impactos ambientais causados por diversas atividades, como a petroleira e a mineradora.


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INTERNACIONAL EUA-IRÃ

Prontos para resistir à invasão Arturo Hartmann de São Paulo (SP)

E

stados Unidos e Irã podem estar prestes a entrar em guerra. O conflito que parecia longe de sair das retóricas radicais de ambos os lados e ganhar a geografia do Irã ganha agora contornos mais definidos. Dia 1º de maio, os Estados Unidos, por meio da secretária de Estado Condolezza Rice, deixaram clara sua posição e as possíveis ações que podem tomar para fazer valer seus interesses no Oriente Médio: o país quer sanções ao Irã e pode levar a questão para fora do âmbito da ONU, ou seja, tomar decisões unilaterais e chegar ao uso de um ataque militar para conseguir o que quer. Com isso, eles rechaçam a proposta do Irã, que ofereceu suas instalações nucleares para visitas não-anunciadas de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica da ONU, mas quer a questão fora do Conselho de Segurança da entidade, pois não aceita sofrer sanções, econômicas ou militares, contra sua soberania. Se a briga dos discursos realmente caminhar para o desfecho de mais uma invasão – solução não desejada por grande parte da comunidade internacional –, os Estados Unidos abrem sua terceira frente de batalha na região – no corredor formado por Iraque, Irã e Afeganistão –, mas justamente no país que se apresenta como o pior dos quadros para uma frente de guerra.

Arquivo Brasil de Fato

Como uma potência econômica e com eleições democráticas, o país teria mais forças que Iraque e Afeganistão no, o que está acontecendo agora, eles tomam uma posição a favor do Irã. Todo o apelo dos discursos do presidente é nesse sentido, de um nacionalismo de defesa de um país. E aí, os jovens, por mais adeptos que sejam do Ocidente, preferem ficar com seu país.”

GOVERNOS INCOMPETENTES

Recuperação econômica do Irã implementada pelo governo de Khatami foi às custas de cortes na área social

campanha que prometia políticas efetivas contra a pobreza, um dos fracassos do mandatário anterior, Mohamed Khatami. Khatami fez uma reforma financeira e recuperou a economia do país depois de oito anos de guerra com o Iraque, mas o caminho de recuperação econômica escolhido teve custos sociais enormes que a população quer sanados. Por isso, o civil Ahmadinejad, filho de carpinteiro, ganhou. O Irã tem problemas políticos internos, uma luta entre moderados e conservadores e o impedimento de que candidatos progressistas concorram a cargos maiores nas eleições. Mas tudo se dá dentro de um sistema político com legitimidade e no qual ocorrem debates e manifes-

SISTEMA POLÍTICO O Irã, desde a revolução de 1979, tem um quadro político em que governam o líder religioso xiita – o primeiro foi Ruhollah Khomeini – e o presidente eleito pelo povo. Hoje, ocupam esses cargos Ali Khamenei e Muhmad Ahmadinejad. O atual presidente subiu ao poder com uma plataforma de

tações por mudanças. Ivonete Pinto, jornalista e autora de Descobrindo o Islã, esteve no país em 1997, 2001 e 2002. Nas conversas que teve com a população, sobretudo os jovens, ouviu que eles não querem que o regime, no sentido de ser uma teocracia, se modifique. “Eles vão continuar sendo muçulmanos, o regime vai continuar a ser regido pela Lei Islâmica, mas eles gostariam de ter mais liberdade.” Paulo Hilu, coordenador do Núcleo de Estudos do Oriente Médio da Universidade Federal Fluminense, dá uma definição de como pode ser entendida a forma do Estado iraniano. Para ele, o Irã tem estrutura de Estado moderno, enquadrado na religião, mas secularizado. “É um sistema com eleições definido den-

tro de um quadro religioso, mas que não é uma teocracia. Os clérigos no Irã controlam até certo ponto, mas o político prevalece sobre o religioso e as decisões, inclusive de cunho religioso, são tomadas por um parlamento eleito. Mulher e homem têm voto com a mesma validade, o que pela interpretação tradicional do Islã não existe. A razão vem antes da religião. Não é uma democracia, mas tem eleições abertas, mais abertas que na Síria, onde não se vota para presidente, e menos subordinado à religião que na Arábia Saudita”, analisa. Segundo Ivonete, comparado com os primeiros anos da revolução, a população está muito mais aberta às questões do Ocidente. “Agora, quando se toca na natureza do nacionalismo irania-

Na análise de Roberto Cattani, antropólogo e jornalista que passou muitos anos no Oriente Médio como correspondente internacional, o conflito entre Irã e Estados Unidos opõe dois governos incapazes de lidar com os assuntos internos e que projetam seus problemas para inimigos externos. Pelo lado do Irã, “Ahmadinejad faz quase nada internamente e, então, projeta tudo na ameaça externa para ocultar os problemas e a incapacidade. Eles prometeram combate à corrupção e combate à pobreza e não começaram a fazer nada, está tudo parado”. Já pelo lado dos Estados Unidos, Cattani acredita que, com a alta rejeição a seu governo, Bush procura mais um inimigo para despistar sua incompetência. “Ele cria guerras para compensar a total ineficácia de seu governo. Toda essa retórica e a mentalidade são as mesmas”, diz o jornalista. Para Ivonete, as brigas entre governos também são jogo de cena: “Os Estados Unidos sabem que ali não é a mesma coisa. Acho que fazem muito teatro e o Irã também, ‘vamos ver quem grita mais alto’”. Mas se um ataque acontecer, as baixas de soldados estadunidenses e, lógico, da população iraniana, seriam enormes. “Seria realmente uma coisa impensável o que poderia ser em termos de baixas, pois o Irã iria reagir, teria condições em termos de Exército para isso. Não é como o Iraque. O Irã é muito mais rico e mais organizado”, conclui Ivonete.

SUDÃO

Moyiga Nduru de Johannesburgo (África do Sul) O Programa Mundial de Alimentos (PMA), da Organização das Nações Unidas, expressou preocupação pela situação no sul do Sudão, para onde as agências humanitárias enviam ajuda apenas por ar, por causa das más condições das estradas na região, devastada por mais de duas décadas de guerra civil. “É catastrófico. O sul já estava extremamente subdesenvolvido antes da guerra. Agora a situação piorou ainda mais. A guerra destruiu tudo”, disse Peter Smerdon, do PMA. “As comunidades estão isoladas. É difícil chegar a algumas delas. Desmontar as minas terrestres e melhorar as estradas ajudarão as pessoas a se moverem dentro do país”, acrescentou. O Escritório de Ação contra as Minas, criado em 2003 pela ONU para coordenar todos os programas de remoção destes artefatos no Sudão, estima que 155 comunidades e 4.270 quilômetros quadrados de terreno estão em risco no sul do país. Entre 500 mil e dois milhões de minas foram implantadas no Sudão, segundo a MineTech International, empresa britânica dedicada à remoção desse tipo de explosivos e que opera nesse país africano. A companhia diz que o Sudão é um dos dez países com mais minas ativas no mundo, o que limita as operações das agências humanitárias. Os explosivos foram deixados tanto por forças rebeldes quanto pelo Exército sudanês durante 20 anos de guerra civil.

ECHO/François Goemans

Isolados por ruínas e minas terrestres

Entre 500 mil e dois milhões de minas terrestres foram plantadas no campo e estradas do Sudão

O PMA estima que seu programa de reparação urgente de estradas e desmantelamento de minas terrestres ao longo de três mil quilômetros das principais rotas do Sudão, no valor de 183 milhões de dólares, enfrenta um déficit de 70 milhões de dólares. “Desde o final de 2003, o PMA reconstruiu cerca de 1,4 mil quilômetros de estradas, reparou pontes e redes de água, e removeu e destruiu cerca de 200 mil artefatos explosivos”, disse a agência em um comunicado divulgado em meados de abril. “Se forem feitas as contribuições necessárias, o PMA abrirá finalmente toda a região e será possível transitar das fronteiras do sul do Sudão até Cartum, e inclusive

chegar ao Egito, pela primeira vez em uma geração”. Apesar dos obstáculos, já são visíveis os progressos com a iniciativa para reparar estradas. “Por exemplo, ir de Yei a Juba (distantes cerca de 160 quilômetros) costumava demorar dois dias de automóvel”.

ACORDO DE PAZ O sul do país goza de certa autonomia graças ao acordo de paz que pôs fim à guerra civil no ano passado. A região prevê submeter à votação a possibilidade de separar-se do resto do país em 2011. A guerra civil colocou frente a frente, durante 20 anos, o governo islâmico de Cartum e o rebelde Movimento

de Libertação do Povo do Sudão (SPLM). O Exército Popular de Libertação do Sudão, braço armado do SPLM, combate pela autonomia do sul, onde a população é majoritariamente negra e cristã ou adepta de religiões tradicionais, enquanto a do norte, em sua maioria árabe e muçulmana, controla o governo central e tentou, em 1983, aplicar no país a lei islâmica, o que desencadeou o conflito. Essa guerra, a mais antiga da África, causou a morte de mais de dois milhões de pessoas, em sua maioria civis e, em grande parte, pela fome provocada pelo conflito, bem como o deslocamento de quatro milhões de pessoas. De acordo

com o vice-presidente e governador do sul do Sudão, Salva Kirr, o governo planeja construir uma ferrovia para ligar Juba, capital regional, com a cidade portuária queniana de Mobasa, atravessando Uganda ou a região ocidental do Quênia. “Também estamos discutindo com a República Democrática do Congo (RDC) ligar Juba-Yei-Lasu com a cidade congolesa de Kinsangani, para que a RDC abra seus mercados ao sul do Sudão”, afirmou. Rebecca Nyandeng, viúva do fundador do SPLM, John Garang, foi designada ministra de Transportes e Estradas. Garang morreu em um acidente de helicóptero quando voltava de Uganda, em julho passado, apenas três semanas após ter assumido o cargo de vice-presidente. O ex-líder rebelde costumava dizer que no sul do Sudão não havia estradas “desde a Criação”. A maior dificuldade de Nyandeng será remover as minas terrestres, legado mortal de vários conflitos bélicos. A tarefa de Nyandeng será dificultada também pelas atividades do Exército de Resistência do Senhor (LRA), grupo rebelde ugandense que recruta à força meninos e meninas como combatentes e mutila suas vítimas. O LRA continua agindo no sul do Sudão. Em novembro passado, matou dois trabalhadores dedicados à remoção de minas, um sudanês e um iraquiano, o que levou a Fundação Suíça para a Ação contra as Minas a suspender temporariamente seus programas no sul do Sudão. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)


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CULTURA

De 4 a 10 de maio de 2006

Dignidade e esperança, na voz de um músico da rua

Anderson Barbosa

CULTURA POPULAR

Chico Neto das composições um desabafo de vida: coronelismo, pobreza, falta de moradia, dificuldades. O resultado, diz, não é revolta, mas felicidade

S

emibreves, clave de Sol, solfejo. O ensino da música é repleto de informações técnicas, burocracias, que funcionam como barreiras para a população pobre. Barreiras, entretanto, são feitas para serem quebradas. Assim como as dificuldades da vida. Desde que se mantenha a felicidade e o compromisso social. A música do paraibano Chico Neto, que insiste em dizer que suas composições não são suas, mas o resultado de experiências que ele não controla, reflete essa filosofia. Uma música do oprimido, usada para desabafar as dificuldades pelas quais o artista passou, como fome e falta de moradia, e para educar. Não a educação de quem se coloca acima dos outros, mas Rede Rua – Assoa educação pociação criada em 1991, para promover pular, do povo o resgate dos direipara o povo. É o tos sociais, principalque motiva Chimente das pessoas em situação de rua co Neto, agoem São Paulo (SP). ra que já alcanPágina na internet: çou certo recowww.rederua.org.br nhecimento na cena musical, Ocas – Revista, vencom a produção dida exclusivamente por pessoas que de DVDs e CDs, não têm onde morar, a pegar seu vioque usam o dinheiro lão e tocar para arrecadado com as vendas para repessoas em situconstruir suas vidas. ação de rua, no Página na internet: Centro de São www.ocas.org.br Paulo (SP). Nesses encontros, refaz parte de sua trajetória. A do retirante nordestino, que vem para a cidade grande em busca de um sonho. A do pobre, sem alternativas de vida. Mas, em cada experiência, em cada encontro, coloca o âmago de sua inspiração: a esperança, a teimosa, na felicidade.

BF – Você saiu de Dona Inês para desenvolver sua música? Chico Neto – Na minha vila, tocar violão era perigoso, pois diziam que música era coisa de vagabundo. Sofri muito com isso, até mesmo dentro de casa. Ficava me perguntando: será que estou errado em gostar de música? Eu era recriminado por alguns, mas outros gostavam. Apelidaram-me “maestro”, quando eu ainda só tinha 10 anos. Vim para São Paulo em busca de meu sonho. BF – Chegou em São Paulo e foi para Tatuí, onde tem o maior conservatório brasileiro. Como foi unir a influência da música nordestina e a erudita? Chico Neto – Professores, de jazz e blues, chegavam para mim e pediam para tocar comigo. Foi algo mágico. Fazíamos música: Mãe, estou no Rio de Janeiro/ Mãe, estou em Tatuí/ Eu vim no pau-de-arara/ Mãe, moro na Tijuca. A música caipira casa bem com a erudita. Zé Ramalho e blues, Luiz Gonzaga e jazz. Diziam que a música sertaneja de raiz raramente aparecia pelo conservatório, por isso foi um sucesso. Tem uma cultura ignorante que seleciona as músicas: essa é para ricos, essa é para pobres. Estar em Tatuí quebrou um pouco

DESPOLUIR Chico Neto Desperta em cada coração Uma vontade louca de um bem viver Viaja em cada pensamento Um segredo atento perto de você Em busca da felicidade Parte com saudade, louco pra vencer Desperta em cada coração Uma vontade louca de um bem viver Nada como um céu aberto, Com um sol por perto, Pra nos proteger Nada como a caminhada Sem tanta escarada Para não morrer Nada como o vento forte Que venha do Norte Derrubar poder Desperta em cada coração Uma vontade louca de um bem viver Coisas que não são segredo Homens que morrem de medo De se perderem e se matarem Por mais dinheiro Desperta em cada coração Uma vontade louca de um bem viver

Retirantes, de Candido Portinari

Brasil de Fato – Muito da influência de sua música é paulista, mas sua origem é paraibana. Como nasceu sua arte? Chico Neto – Ainda moleque, via (o músico paraibano) Jackson do Pandeiro, quando tocava em minha vila, Dona Inês. Naquela

A música pode ser instrumento para discutir violência e o álcool, que são problemas para a população de rua, diz Chico Neto

isso, tanto lá, quanto em mim, pois eu tinha vergonha de tocar com os professores. BF – Como você se manteve em Tatuí? Chico Neto – Passei muitas dificuldades, comendo só ovo com farinha o dia inteiro. Uma professora de música me convidou para dar aulas para crianças. Recebia uma cesta básica. Nunca tinha dado aula, antes. Não sabia como fazer isso, mas inventei uma brincadeira: lá na Paraíba, a semibreve tem quatro tempos de Sol? E a criançada respondia: tem. E eu falava: e lá no Ceará, tem? Ia fazendo assim e quebrei com o conservadorismo no ensino da música. As crianças aprendiam brincando, sem burocracia. Em qualquer país do mundo, qualquer Estado, são sete notas musicais. Não precisa fazer desse conhecimento algo insuportável. BF – Fazer um trabalho reconhecido e passar por dificuldades. Vendo isso hoje, isso o revolta ou o inspira? Chico Neto – No palco, isso me faz virar um leão. A música é um meio de expressar meus sofrimentos, minhas dificuldades e também as das pessoas que conheci. A fome que passei, a pobreza, me revoltou, mas a felicidade era muito grande, pois estava realizando meu dom. Pensei muitas vezes em abandonar, mas mantive meu sonho. Em Tatuí tem muito evangélico e não há espaço para tocar meu tipo de música. As pessoas vão para estudar, mas não conseguem lugar para tocar. A experiência foi ótima, pois tinha reconhecimento. Era o paraibano, que caiu de páraquedas para fazer música.

BF – Veio para São Paulo para tocar, então? Chico Neto – Quando a Marta Suplicy conquistou a Prefeitura, inscrevi-me para dar aula em uma Casa de Cultura, no Butantã. Dei um ano de aula, mas a Marta fechou o curso para construir um Centro Educacional Unificado (CEU) e perdi o emprego. Fiquei morando em um albergue, em Santo Amaro, onde conheci a Rede Rua e a Ocas, que adorei. Vendi a revista, às vezes 70 por dia. Tocava dentro do albergue. Encontrei felicidade, tendo um impacto social, levando dignidade onde todos acham que só há tristeza e humilhação. Não penso em ser rico, comprar muitas coisas, mas manter a felicidade em tocar. BF – Qual o impacto dessa experiência no albergue em sua música? Chico Neto – Não costumo falar em minha música, pois acredito que seja uma composição das diversas experiências que tive, com uma influência de vários elementos de minha trajetória. Morei um ano como sem-teto, no albergue e em hotéis. E casei isso com minha origem, como as frutas da Paraíba, que fazem parte de minha infância, e com o que vivi em Tatuí, o estudo da música. A experiência da rua, quando paro, dói muito, psicológica e fisicamente, mas é berço de felicidade também, pois conheci pessoas muito interessantes, amantes da música, que são moradoras de rua. Toco para o pessoal da rua, daí me oferecem cachaça, sorriem, aproveitam como poucos. A música é algo incrível, pois une as pessoas. E pode ser um instrumento para discutir a violência e o álcool, que são problemas para a população de rua. BF – Andava nas ruas, com um violão nas costas... Chico Neto – Cheguei a assumir, mesmo quando não estava com o violão, a postura do peso dele nas costas, o tempo todo. Andei por todos os cantos de São Paulo, tocando para as pessoas. Muitos me elogiavam. Isso é felicidade, para mim e para as pessoas para quem toquei. Uma vez estava com um violão, precisando de dinheiro, e fui andar nos Jardins (região nobre de São Paulo). Um homem me pediu para tocar para ele. Quando acabei, ele me deu duzentos dólares. Deu uma confusão em minha cabeça: será que é de verdade? Fazendo isso, ganho dinheiro, mas o que me motiva mesmo é fazer música com papel social. Hoje, também quero fazer mais shows, pois tem outro estilo, outra dinâmica. BF – Quando compõe uma música, como integra todas as experiências que viveu?

Igor Ojeda

época, ele se vestia como um cangaceiro, como o próprio Lampião, e dava medo na população local. A tradição coronelista dominava a região. Ao mesmo tempo, a música assustava e fazia parte do dia-a-dia da população, nos repentes, emboladas e improvisos. Minha mãe, católica, me impedia de tocar violão, porque considerava que era “música do mundo”. Minha prima me escondia dentro de um quarto e daí me deixava tocar. O conteúdo de minhas letras não se desprende da influência do nordestino pobre, que faz música, em assobios, enquanto trabalha. Depois, recebi, muitas vezes pelo rádio, a influência de artistas do jazz, como Nat King Cole.

João Alexandre Peschanski da Redação

Quem é Francisco Enedino da Silva Neto, 48 anos, paraibano, conhecido pelos amigos como “Chico Neto”, é cantor e compositor. Está em São Paulo desde 1993, Estado para o qual veio para realizar seu sonho de seguir a carreira de músico. Reuniu parte de suas composições no DVD Clarão da Lua. Chico Neto – Hoje, moro na periferia, na zona Sul, e ouvi uma senhora falando para sua neta que seu amor ia chegar. E isso me inspirou, algo do cotidiano, para uma música: Não me fale desse beijo seu/ Meu coração quase parou/ Nunca pense em me dizer adeus/ Nada disso tem valor/ Nesse toque, nesse beijo seu/ Meu coração quase parou. E, assim, as músicas vão brotando, uma mistura de ritmos e de experiências. BF – Você disse que a experiência da rua o marcou muito... Chico Neto – Não me arrependo de nada. Se não tivesse sido difícil, não teria conhecido a Rede Rua, onde descobri um mundo novo. As músicas acabaram tendo um impacto social, mexendo nas pessoas que mais precisam. Isso é brilhante. Emociona, até. Há tempo para chorar, para dormir, para olhar, para tocar. Há tempo para tudo, e o meu foi assim. Doído, mas feliz. Difícil, mas feliz. AGENDA SP - Apresentações de Chico Neto * 17 de maio, às 19h. Participação na Semana de Serviço Social da Universidade de Santo Amaro (Unisa), na Rua Isabel Schmidt, 349, Santo Amaro. * 21 de maio, às 20h. Show no bar Metrópolis, na Avenida Paulista, 2668, Bela Vista. * 25 de maio, às 21h. Show no Bar do Batata, na Rua Bela Cintra, 1333, Jardins. Mais informações com Fabiano Viana, da Rede Rua, nos telefones: 3311-6642 e 3227-8683.


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