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Ano 4 • Número 167

R$ 2,00 São Paulo • De 11 a 17 de maio de 2006

Explorar, demitir e lucrar Valter Campanato/ABR

Fabricantes de automóveis precarizam o trabalho e acentuam desemprego para não ter que reduzir ganhos

Transparência – A Frente Parlamentar pelo Fim do Voto Secreto realiza ato simbólico na rampa do Congresso Nacional, dia 9, em Brasília

Refém da falta de investimentos verno deveria implantar políticas consistentes, que incluam fontes alternativas de energia, como biomassa (gerada pela queima de produtos orgânicos), energia eólica (gerada por vento) e energia solar. Um manifesto lançado pelos movi-

Uma Europa criativa contra o neoliberalismo

mentos sociais brasileiros apóia “o direito do povo boliviano de controlar suas riquezas naturais e de iniciar, com o governo Evo Morales, a reconstrução da sua identidade nacional e popular”. Pág. 4

Os movimentos sociais europeus, vitoriosos nas lutas contra propostas neoliberais, estão reinventando o modo de fazer política no continente. Articu-

lam-se cada vez mais, como no Fórum Social Europeu, ocorrido em Atenas (Grécia), entre os dias 4 e 7. Pág. 7

Marcio Baraldi

País que se tornou extremamente dependente do gás boliviano, o Brasil cometeu um equívoco estratégico: negligenciar os investimentos na produção doméstica desse recurso. Segundo especialistas, além de reparar esse erro, o go-

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produção automobilística no Brasil deve bater novo recorde pelo terceiro ano consecutivo, em 2006. Porém, entre 1990 e 2004, o setor extinguiu mais de 36 mil postos. Até o final deste ano, essa estatística deve aumentar, principalmente graças ao anúncio feito pela Volkswagen, dia 2, de demitir 5,7 mil funcionários brasileiros. Considerando os empregos indiretos gerados pelas fábricas da transnacional, esse corte pode levar cerca de 270 mil trabalhadores ao desemprego. O sociólogo Ricardo Antunes, da Unicamp, revela que as empresas automotivas não aceitam operar em mercados periféricos, como o brasileiro, senão com altas taxas de lucro. Quando perdem mercado – no caso da Volks, o baixo valor do dólar em relação ao Real dificulta as exportações –, reduzem custos por meio de demissões. Cria-se, assim, uma lógica destrutiva que precariza a força de trabalho. Pág. 3

EDITORIAL

Avança a integração sul-americana

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inda não cessou a campanha dos setores neoliberais contra a tranqüilidade com que o Brasil enfrenta a decisão do governo boliviano de nacionalizar seus recursos naturais em gás e petróleo. Repentinamente convertidos ao “nacionalismo”, esses setores e seus porta-vozes da mídia comercial insistem em campanhas alarmistas, propostas de represálias e, como a cereja em cima da torta, restabelecer as negociações com o império estadunidense para implantar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Recorrem ao “nacionalismo” de estádio – primeiro os “interesses do país”, depois o restante. Estranho. São os mesmos que nunca defenderam os “interesses” do país no reino da privataria. Jamais fizeram um editorial contra a venda da Vale do Rio Doce a preço de banana, ou se opuseram à introdução de mecanismos de privatização na própria Petrobrás, (com enormes prejuízos para o país), ao sucateamento da indústria naval local. Por que, hoje, tanto alarde pelo gás boliviano? Enquanto isso, a Volkswagen, beneficiária de créditos e facilidades incríveis, “anuncia” a demissão de 6 mil trabalhadores. E há quem, no governo, pense numa “ajuda”, com o apoio da mesma mídia que se opõe à ajuda à Bolívia. Essa mesma mídia antinacional critica também o governador do Paraná, Roberto Requião, por ameaçar cortar os incentivos fiscais da Volks no Estado, caso a empresa não desista da demissão em massa.

O que está em pauta, na realidade, é um novo modelo de desenvolvimento, muito menos dependente das transnacionais. A Bolívia mostra que “outro mundo é possível”. Mas esse é o processo: renacionalizar quer dizer retomar o controle de processos econômicos fundamentais para o desenvolvimento dos nossos povos. É isso que amedronta a elite. O governo brasileiro apontou em outra direção, muito mais produtiva: reforçar a aliança entre os países sul-americanos. Enfrentar em comum a nova situação. Reforçar os laços, a cooperação, os investimentos, os projetos comuns. Nada de mandar tropas para “lavar a honra”. Ao contrário, cooperação. Basta imaginar os benefícios oriundos de um salto no desenvolvimento social e na distribuição de riquezas na Bolívia: um enorme mercado comprador potencial, principalmente de produtos brasileiros. Os empresários do Sul não teriam muito do que reclamar, mesmo pagando mais pelo gás boliviano, pois o retorno é seguro, por meio da venda de fogões, sapatos, chuveiros, utensílios domésticos etc. Tudo o que falta na Bolívia e que, no Brasil, a capacidade de produção está ociosa. Pela mesma ótica, o gasoduto Venezuela-Brasil-Argentina vai contemplar inclusive o Peru e a Bolívia. Esse é um enorme vetor de desenvolvimento, de potencialização do comércio e da indústria de todos os nossos países. Desta vez, com uma visão endógena de desenvolvimento. Não mais

as “veias abertas da América Latina”, como escreveu o intelectual Eduardo Galeano. Urge, portanto, o governo Lula acelerar as medidas de integração, fazer os acertos necessários na questão da Petrobrás e começar a pensar em uma virada em política econômica, a começar por uma ofensiva para reforçar o Mercosul. Os Estados Unidos estão comendo pelas beiradas, com propostas de livre comércio com o Uruguai, o Paraguai, a Colômbia, o Peru. Com o reforço da Venezuela, a integração da Bolívia e a proposta de adesão do Chile, o Mercosul pode dar um salto, com a criação de um Banco do Sul, que garanta os investimentos sem depender do dólar. Pode ajudar a resolver a crise Argentina-Uruguai pela construção das empresas de papel – poder-se-ia assumir o projeto em conjunto com todos os países do Cone Sul. E estreitar laços com o Paraguai, que está se aproximando perigosamente dos Estados Unidos por meio de uma presença militar. A ocasião é propícias para uma virada à esquerda na América Latina. Cabe aos movimentos sociais aproveitar esse sinal de vitalidade que o governo Lula oferece nesta crise para pressioná-lo a romper definitivamente com a política econômica neoliberal.

Imóveis da União para moradia popular Pág. 5

Prefeitura de SP tira emprego de pobres Pág. 5

No Chile, indígenas em greve de fome Pág. 6

Já está no ar o novo formato da Agência Brasil de Fato na internet. No endereço ( w w w. b ra s i l d e fa t o. c o m . b r ) , você poderá encontrar nossa produção diária de conteúdo exclusivo, entre reportagens, entrevistas e análises, além das edições anteriores do jornal impresso. Em breve, os assinantes terão uma seção específica para acessar a edição da semana. Vamos colocar no ar também um link para rádios comunitárias de todo o país baixarem documentos em áudio e poderem retransmitir para seus públicos locais.


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De 11 a 17 de maio de 2006

DEBATE

CRÔNICA

Ética e política Manfredo Araújo questão das relações entre ética e política se transformou na questão número um do debate nacional a partir das denúncias de corrupção no ano passado. Esse debate tem certamente méritos e é de fundamental importância para a vida nacional, mas é marcado por uma visão muito unilateral do fenômeno político. Ele dá a entender que tudo seria maravilhoso se nossos governantes possuíssem um conjunto de virtudes que atestassem seu bom caráter do qual dependeriam a paz e a ordem social. Perde-se assim uma das intuições fundamentais do pensamento político ocidental desde seus primórdios: o que é decisivo para a ética na política não são simplesmente as virtudes privadas dos governantes, mas o ordenamento institucional, porque é dele que depende se os cidadãos têm acesso ou não a seus direitos universais. Por essa razão, a questão da corrupção não pode ser reduzida a um problema específico da esfera individual. Desde os gregos, que inauguraram o pensamento político ocidental, falar de ética na política não significava apenas uma consideração crítica frente às ações privadas dos cidadãos, mas sobretudo da configuração das relações sociais segundo princípios de justiça. A partir dessa ótica, falar de ética na política significa hoje para nós compreender que é tarefa do Estado garantir a participação popular na gestão da

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coisa pública através da criação de mecanismos permanentes de participação direta da população e da constituição de comitês populares para acompanhar e fiscalizar as atividades e as obras do Estado. Só assim será possível assegurar e ampliar os direitos sociais e enfrentar a questão básica que nos marca secularmente, a questão da desigualdade e da exclusão social. Isso implicaria uma reversão das prioridades no que diz respeito às políticas públicas, passando para o primeiro plano as que visam assegurar oportunidades de emprego e salário justo e os meios necessários para uma vida digna entre as quais em nossa situação específica se vão situar o acesso à terra e ao solo urbano como também moradia e saneamento para todos. Nessa perspectiva se revela como intrinsecamente corrupta uma política macroeconômica que transfere para os banqueiros a riqueza produzida por toda a nação e que impede a universalização do acesso a esses meios. Claro que nesse contexto é muito

O aprendiz de “coronel”

importante ter presente que a corrupção individual e social não começou no atual governo, mas lamentavelmente se transformou num elemento estrutural do exercício do poder e da cultura política que nos marca. Por isso, não espanta e nem causa indignação a muitos o fato de que nossos partidos políticos não tenham defendido no Parlamento de modo consistente as reformas e as políticas públicas que tornariam o país menos vulnerável seja à corrupção individual, seja à continuidade de uma configuração iníqua da vida coletiva, porque marcada por um conjunto de instituições que sustentam as diferentes formas de exploração e de degradação da vida humana. Para além das virtudes pessoais dos governantes, o que realmente pode garantir a ética na política é a existência de instituições sólidas e de mecanismos de administração transparente, que sejam capazes de garantir os direitos universais do cidadão assim também como a existência de meios de comunicação livres, independentes, e de organismos de controle social que acompanhem o exercício do governo. O grande desafio do momento é que sejamos capazes de ir além de uma crítica moralizante à corrupção pessoal, que facilmente é acompanhada de enorme hipocrisia, e nos empenhemos com seriedade numa crítica cívica às instituições e às políticas públicas. Manfredo Araújo é filósofo, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)

CARTAS DOS LEITORES DECISÃO POPULAR Apesar de todo esse oba-oba em torno da nacionalização do gás boliviano, deve-se considerar que não se trata de um fato decidido às pressas, e pela vontade de uma única pessoa, Evo Morales. Em 18 de julho de 2004, o próprio povo boliviano decidiu em referendo, que o Estado recuperasse a propriedade de todos os hidrocarbonetos produzidos no país; a lei 3058, aprovada pelo Parlamento, estipulava em seu artigo 5º o prazo de 180 dias para que fossem assinados novos contratos, e que estes deveriam cumprir os requisitos constitucionais, que consideram os hidrocarbonetos bens inalienáveis e propriedade do povo e do Estado boliviano. Portanto, decisão popular verdadeira, e não “movimentos pró-cidadania” pela redução de impostos. Humberto Amadeu Capellari São Paulo (SP) Por correio eletrônico PRIMEIRO DE MAIO Primeiro de Maio passou. Trabalhadores de diversos países organizaram manifestações, houve protestos e até quebra-quebras. Aqui no Brasil, festejos, shows de axé organizados por centrais sindicais, povão nas ruas. Obviamente, os artistas que se apresentaram o fizeram por identificação ideológica e engajamento. Aqueles cortadores de cana que, contrariando o aforismo, morreram de tanto trabalhar e os escravos modernos libertados em diversas fazendas se sentiram bem representados nessas festividades. Humberto Amadeu Capellari São Paulo – SP Por correio eletrônico

IMPRENSA OMISSA A grande imprensa nada disse sobre o estelionato eleitoral praticado por Serra, que após um ano apenas na Prefeitura de São Paulo a largou nas mãos do seu mal afamado vice — ex-secretário do Pitta, também de triste memória. Porém, a população que votou, não entre a prefeita Marta, com uma administração bem avaliada, e uma figura cuja propriedade mais relevante foi o rápido enriquecimento na vida pública, e sim entre ela e o badalado ex-ministro da saúde, teve algo a dizer sim. Nas duas primeiras aparições públicas da figura (quando da vinda do Dalai Lama e no 1º de Maio), saudou-o com uma entrondosa vaia. Antônio Rodrigues de Souza São Paulo (SP) E O POVO? Se, de fato, os números “positivos” do governo Lula foram até agora melhores do que os de FHC, ficará mais do que claro para quem ele mais trabalhou. Para o povo é que não foi. Aliás, o Lula mudou de lado. Pouco ou quase nada fez em favor da maioria do povo. Dedicou-se ao sistema financeiro que jamais teve tanto lucro quanto agora. O governo Lula recebeu do governo FHC uma dívida de R$ 600 bilhões e a transformou em R$ 1 trilhão, apesar de ter pago R$ 300 bilhões. Não estaria funcionando os mesmos esquemas de corrupção do governo anterior, onde boa parte do nosso patrimônio foi “vendido” em troca de muita comissão, cujo volume deve ter enriquecido muita gente. Vivenciamos o que de pior o sistema capitalista produziu. Ou seja, o neoliberalismo global, corrupto e corruptor, que leva de roldão a economia mundial, carreando lucros sobre lucros para meia dúzia de

nações e suas empresas transnacionais sanguessugas da humanidade. João C. da L. Gomes Porto Alegre (RS) TARIFA DE ÔNIBUS Sou estudante de Geografia da Universidade Federal de Santa Maria/RS. Aqui em Santa Maria está se travando uma batalha ferrenha entre os empresários do transporte e o movimento estudantil no Conselho Municipal dos Transportes. A prefeitura elaborou um estudo no qual recomendava um aumento de 12,5% na tarifa de ônibus (de R$1,60, ela subiria para R$1,80). Como contraponto a planilha da Prefeitura, que atende ao interesse dos empresários, o Prof. de Economia da UFSM, Ricardo Rondinel, elaborou um estudo no qual comprova que na verdade o preço da passagem em Santa Maria deveria ficar em R$1,57. Venho pedir a ajuda do Brail de Fato no sentido de tornar pública essa batalha para todo o Brasil. Não esperamos uma matéria com seriedade de nenhum veículo da grande mídia. Contem a nossa história no seu jornal, entrevistem o Prof. Rondinel, ou o presidente do CMT, Cláudio Scherer, que é sindicalista e está do lado do povo, ou o representante do Diretório Central dos Estudantes da UFSM no Conselho, Roberto Flech, todas essas pessoas saberão contar uma história sobre a qual a opinião pública só tem ouvido a versão dos empresários. Esperamos justiça ao menos uma vez. O fato de vocês publicarem algo coloca em evidência uma luta desigual, e pode alterar a correlação de forças a favor do povo. Igor Corrêa Pereira Santa Maria (RS) Por correio eletrônico

Luiz Ricardo Leitão Quando eu ainda era criança e sequer desconfiava do papel que Hollywood possuía dentro da política de “guerra fria” dos EUA, assisti com enorme enlevo a um filme de Walt Disney, chamado “Fantasia”, cujos desenhos eram inspirados em clássicos da música erudita. Uma das histórias até hoje não me sai da memória: “o aprendiz de feiticeiro”. Quem não se lembra do jovem criado de um velho bruxo, que, na ausência do mestre, resolve encantar as vassouras para que tratem de realizar o serviço que lhe cabia, mas, não sabendo reverter o “feitiço”, termina por inundar o castelo? As coisas só voltam ao normal quando o feiticeiro reaparece e, num passe de mágica, desfaz as trapalhadas do desastrado aprendiz. Pois a política brasileira também está cheia de amadores e, sobretudo, péssimos aprendizes de “coronel”. Que o diga o grotesco Little Boy (Garotinho para os íntimos), ex-governador do Rio de Janeiro, que sonhava tornar-se mais um cacique das elites de Pindorama. Apesar dos estragos que ele e a esposa, vulgo “Little Rose”, têm causado ao povo fluminense, a pirracenta criatura cismou em ser presidente e, no caminho rumo a Brasília, julgou que nada poderia detê-lo. O projeto, é claro, soa quase absurdo diante do caos em que se encontra o Estado: as escolas e hospitais estão literalmente caindo aos pedaços (na UERJ, em janeiro, um bloco de concreto de 10 t desabou do 12º andar e só não fez vítimas porque era o mês de férias), seu minguado orçamento sofreu um corte de 25% e os servidores não têm reajuste salarial há mais de cinco anos. Vieram as sucessivas greves de professores e servidores estaduais, mas, ainda assim, o menininho pensou que iria encantar o eleitor com a política de comida e remédio a um real. De quebra, lançou uma campanha de mídia anunciando “10 mil obras” em seu governo. Mal sabia ele que o feitiço iria desandar... Primeiro, o seu candidato à Prefeitura de Campos sofreu uma fragorosa derrota nas eleições, quando a oposição uniuse em bloco contra Little Boy e sua turma. Depois, presunçoso e onipotente, subestimou as velhas

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Isa Gomes, Jorge Pereira Filho, Paulo Pereira Lima • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Igor Ojeda, João Alexandre Peschanski, Luís Brasilino, Marcelo Netto Rodrigues, Tatiana Merlino • Fotógrafos: Alícia Peres, Alderon Costa, Anderson Barbosa, César Viegas, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga, Gilberto Travesso, Jesus Carlos, João R. Ripper, João Zinclar, Leonardo Melgarejo, Luciney Martins, Maurício Scerni, Renato Stockler, Samuel Iavelberg, Ricardo Teles • Ilustradores: Kipper, Márcio Baraldi, Maringoni, Ohi • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Silvio Sampaio • Assistente de redação: Bel Mercês • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Valdinei Arthur Siqueira • Endereço: Al. Eduardo Prado, 342 - Campos Elíseos - CEP 01218-010 - Tel. (11) 2131-0800 - São Paulo/SP - redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: GZM Editorial e Gráfica S.A. Conselho Editorial: Alípio Freire • Celso Horta • César Sanson • Erick Schuning • Frederico Santana Rick • Hamilton Octávio de Souza • José Arbex Jr. • Kenarik Boujikian Felippe • Leandro Spezia • Luiz Antonio Magalhães • Luiz Bassegio • Marcela Dias Moreira • Maria Luísa Mendonça • Mario Augusto Jakobskind • Milton Viário • Nalu Faria • Neuri Rosseto • Plínio de Arruda Sampaio Jr. • Ricardo Gebrim

raposas do PMDB e achou que seu único desafio seria derrotar Germano Rigotto nas prévias do partido para, depois, sacramentar a sua vaga na corrida ao Planalto. Ledo engano. Sarney & cia. tinham suas cartas guardadas e começaram a sacar os coelhos da cartola, desde a suspensão das prévias até o anúncio da pré-candidatura de Itamar à Presidência. Lance após lance, o jovem aprendiz iria enredar-se com os truques dos feiticeiros. Por fim, uma série de escândalos divulgados pela mídia (leia-se Veja e O Globo), coroou o inferno astral do menininho. Tanto as notícias sobre o “chuviscoduto”, ou seja, a nebulosa rede de “doações” feitas à campanha do pré-candidato (dinheiro de empresas fantasmas e de ilustres hóspedes das prisões de segurança máxima), quanto as denúncias de enriquecimento ilícito dos seus “aliados” na Assembléia Legislativa o deixaram desnorteado. Sem saída, decidiu entrar em greve de fome, acusando a mídia de conspirar contra a sua imagem e exigindo a presença de observadores internacionais no país. É claro que o povo não perdoou a pirraça de Little Boy: com o humor típico dos cariocas, milhares de pessoas decidiram “apoiar” a greve, esperando que ela seja para valer, e até mesmo um empresário paulista chegou a oferecer um belo caixão para o enterro. Pelo visto, esse tiro também saiu pela culatra. Creio até que, em vez dos desenhos de Walt Disney, seria melhor servir-se de uma série da tv a cabo para apelidar o casal de Garotinhos: eles agora se chamarão “Pink & Cérebro”, aquela dupla de ratos de laboratório cujo sonho é dominar o mundo, mas que sempre fracassa em seus planos mirabolantes. É um pouco decadente, reconheço, para quem pretendia ser Mickey, o rato aprendiz de Disney; porém sempre lhes restará o consolo de poder filiar-se ao clube dos roedores, seja em terras de Pindorama, seja sob as barbas do tio Sam... Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latinoamericana pela Universidade de La Habana, é autor de ¿A dónde va la telenovela brasileña? (Edit. Ciencias Sociales, Cuba)

Para assinar o jornal Brasil de Fato, ligue (11) 2131- 0812 /2131- 0808 ou mande mensagem eletrônica para: assinaturas@brasildefato.com.br Para anunciar, ligue (11) 2131-0815


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De 11 a 17 de maio de 2006

NACIONAL INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA

Volks demite 5,7 mil para preservar lucro Luís Brasilino da Redação

Brasil de Fato

Produção de automóveis deve bater recorde pelo terceiro ano consecutivo; mesmo assim, transnacional demite

O

contingente de brasileiros desempregados está prestes a receber um reforço de cerca de 270 mil trabalhadores. O alerta está em um manifesto do Comitê Nacional dos Trabalhadores na Volkswagen, redigido com base no anúncio da transnacional alemã feito no dia 2 – e antecipado com exclusividade pela Agência Brasil de Fato – de demitir 5,7 mil funcionários no Brasil. De acordo com o manifesto, cada uma dessas vagas nas montadoras da Volks – Curitiba (PR), Resende (RJ), São Bernardo do Campo, São Carlos, Taubaté (SP) – corresponde a 47 empregos na cadeia produtiva. Considerando-se as famílias dos demissionários, 660 mil pessoas deverão ser afetadas. A determinação, que partiu da matriz da Volks, não foi exatamente uma surpresa. Desde 1990, um modelo que combina automação e precarização do trabalho vem sendo implantado no Brasil. Nesse ano, a indústria automobilística brasileira empregava 138 mil trabalhadores e produzia 914 mil unidades (carros, caminhões e ônibus). Até 2004, a produção aumentou mais do que o dobro, chegando a 2,2 milhões de unidades – enquanto os postos de trabalho regrediram 26%. Foram extintos 36 mil empregos. Em 2005, o setor quebrou novamente o recorde de produção, com 2,5 milhões de unidades. A estimativa para 2006 está em torno dos 2,7 milhões. Rafael Marques, secretário geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (região da Grande São Paulo composta pelos municípios Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano), explica que a abertura de mercado implantada pelo governo Fernando Collor a partir de 1990 estabeleceu uma

Lopes Feijóo, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e lideranças sindicais de outros países discutem a possibilidade de greve mundial contra a Volks

“parafernália de mudanças no perfil da mão-de-obra, no processo de gestão e no maquinário”. A situação se agravou no governo Fernando Henrique Cardoso (19952002). O ex-presidente optou por um novo regime automotivo e trouxe, no primeiro ano de mandato, novas e modernas montadoras para o Brasil. Além disso, introduziu a guerra fiscal entre os Estados como ferramenta para estimular a instalação de fábricas. Ou seja, tecnologias cada vez mais avançadas – portanto, menor dependência da força do trabalhador; e redução de impostos – portanto, menos retorno à população.

GLOBALIZAÇÃO Além dos cortes no Brasil, a Volks anuncia a demissão de mais 20 mil funcionário em todo o mundo. Para Marques, o episódio é apenas a ponta de um iceberg. “Recentemente, a General Motors, a Ford e a Daimler-Chrysler também

anunciaram reduções da ordem 20 mil empregados. Há um movimento mundial para precarizar direitos. Na Alemanha, as corporações conseguiram fazer um acordo coletivo com o sindicato e o governo para introduzir o contrato de 5 mil horas de trabalho. Essas horas podem ser cumpridas em dez anos. Nesse período, a empresa pode dispor do empregado no dia e na hora que precisar”, adverte o sindicalista. Para Marques, depois da globalização e da redução do Estado, a nova bandeira do capital é acabar com os direitos sociais, “especialmente os dos trabalhadores mais organizados”. Até o dia 19, José Lopes Feijóo, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, permanece reunido com representantes dos trabalhadores das demais fábricas da Volks pelo mundo. Eles discutem a possibilidade de fazer uma greve mundial contra a transnacional alemã.

PRODUÇÃO AUMENTA, EMPREGO CAI Ano

Produção de autoveículos (unidades)

Empregos na indústria automobilística (unidades)

Relação unidade produzida por empregado

1990

914.466

138.374

7

1991

960.219

124.859

8

1992

1.073.861

119.292

9

1993

1.391.435

120.635

12

1994

1.581.389

122.153

13

1995

1.629.008

115.212

15

1996

1.804.328

111.460

17

1997

2.069.703

115.349

18

1998

1.586.291

93.135

17

1999

1.356.714

94.472

15

2000

1.691.240

98.614

18

2001

1.817.116

94.055

20

2002

1.791.530

91.533

20

2003

1.827.791

90.697

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2004

2.210.741

101.989

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Fontes: Anuário 2005 da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea)

ENTREVISTA

Os cortes e a capacidade de reação dos sindicatos Diante da concorrência acirrada e das oscilações que afetam a dinâmica do mercado, o primeiro impulso das grandes companhias é demitir trabalhadores como medida de redução de custos. Essa é uma “lógica destrutiva”, que precariza o trabalho, denuncia o sociólogo Ricardo Antunes, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas. Porém, ele explica, a resistência das empresas em operar apenas com altas taxas de lucros – mesmo às custas de elevados índices de desemprego – “tem a ver com a capacidade maior ou menor dos sindicatos dos trabalhadores nos países, nos ramos e nos setores onde os cortes incidem”. Brasil de Fato – O que explica as demissões na Volkswagen? Ricardo Antunes – Estão ocorrendo demissões na indústria automobilística mundial. A mais recente é na Volks, mas houve também na General Motors (GM), na Ford, na Nissan... São expressão de um conjunto de fatores. O primeiro é a intensificação da acirrada concorrência mundial entre as fabricantes de automóveis. A produtividade de uma aumenta rapidamente em relação a outra, seja pelo desenvolvimento tecnológico, seja pela migração da produção para áreas onde a exploração da força de trabalho é mais intensa – o que permite a redução salarial. A principal conseqüência dessa guerra é que, quando uma montadora transnacional começa a perceber que está em desvantagem, perdendo mercado, é quase inevitável optar por demissões para redução de

custo. O capitalismo global tem um traço presente em todos os ramos: a precarização do trabalho. O trabalho entendido como custo. BF – As oscilações do mercado também levam as empresas a demitir? Antunes – Sim. Oscilações que vão desde as mutações tecnológicas que reduzem a força de trabalho até, por exemplo, no caso brasileiro, a oscilação do dólar – que torna menos competitiva a parcela da produção voltada para a exportação. Essa lógica destrutiva incide sobre a força de trabalho, que vai se degradando. Daí as terceirizações e o desemprego, quando as montadoras não encontram outras alternativas frente a esse conjunto de fatores: mutação tecnológica, recessão no mercado consumidor ou diminuição do poder de compra, aumento da produtividade na concorrência, relativa desvalorização do dólar em relação ao real. Especialmente em países como o nosso, as empresas monopólicas do ramo automotivo não aceitam operar senão com altas taxas de lucro. Quando essas taxas dão sinais de redução, é hora de cortar. E isso tem a ver com a capacidade maior ou menor dos sindicatos dos trabalhadores nos países, nos ramos e nos setores onde os cortes incidem. BF – No caso da Volks, os sindicatos brasileiros ajudam ou atrapalham? Antunes – Aqui existe um sindicato forte, com atuação dentro das fábricas. Mas que há muito tempo

segue uma linha de colaboração, uma linha negocial. É um sindicato capaz de defender os objetivos da empresa, desde que de alguma maneira ela beneficie os trabalhadores. Mas isso tem conseqüências. Num momento em que a empresa puxe o tapete, ela pega o sindicalismo desprevinido. É verdade que o sindicato do ABC tem uma tradição que vem dos anos 1970, mas não é como antes. Uma ação desse tipo, como uma demissão em massa, obriga uma resposta dura do sindicato. Essa resposta dura nem sempre encontra respaldo nos trabalhadores, na medida em que essa resposta não tem sido dura sistematicamente. Ou seja, vai depender da capacidade de força e de mobilização do sindicato dos metalúrgicos nesse momento, da capacidade de atuar internacionalmente com o conjunto de sindicatos da Volks mundial. Eu acho que o sindicato do ABC tem sido muito moderado nas suas ações e respostas. BF – Se as empresas fogem dos sindicatos fortes, um sindicato fraco é garantia de emprego? Antunes – Na luta para reduzir custos, as empresas procuram operar nos green fields – áreas com isenção de impostos, sem tradição sindical ou com sindicatos colaboracionistas. É evidente que em São Bernardo a Ford opera diferente do que em regiões mais atrasadas. O mesmo vale para a GM, para o cenário de um país a outro. Se o preço da força de trabalho nos Estados Unidos fosse igual ao do México ou ao da Ar-

gentina, dificilmente essas empresas transportariam suas unidades de produção para outros países. Agora mesmo começa-se a falar que as montadoras vão transferir suas plantas produtivas para a China – os chineses estão abrindo a força de trabalho para níveis de exploração acentuados. Então as empresas procuram áreas onde o sindicato tenha menor tradição. Por outro lado, a Volks tem uma planta histórica em São Bernardo, montada na década de 1950, a primeira de uma grande indústria de base taylorista e fordista. Desmontar aquela planta seria uma perda de investimento monumental. Por isso, há décadas a Volks está reestruturando e enxugando aquela unidade, transferindo o que pode para outras unidades, como a de Resende (RJ), muito mais leve, com uma planta flexível e moderna. Porém, no caso do ABC, há outro motivo para não sair de lá: existe um sindicato com organização de base. Essas empresas fizeram uma política negocial com o sindicato do ABC e conseguiram diminuir o impulso de confrontação do sindicato. Trata-se de uma faca de dois gumes. Se o sindicato confronta, as empresas podem fugir. Se o sindicato não confronta, elas deitam e rolam. Um caso exemplar do ABC foram as câmaras setoriais e a política claramente de parceria. Já o sindicato dos metalúrgicos de São José dos Campos se manteve combativo, assim como o sindicato dos metalúrgicos de Campinas. Não fizeram sindicato de parceria, nem câmaras setorias, e continuam tendo uma

base importante. É claro que as empresas tendem a fugir do sindicato combativo... Mas, por exemplo, por que a Toyota e a Honda foram para Campinas? Porque há outros fatores em conta. A proximidade do mercado consumidor, vantagens fiscais... Não há nenhuma garantia de que, indo para a Bahia ou para o Rio Grande do Sul, as empresas não vão se deparar com um sindicato que possa vir a se fortalecer. Na minha opinião, todo sindicalismo hoje encontra dificuldade. (LB) Brasil de Fato

Quem é Titular do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Ricardo Antunes é autor, entre outros, de Adeus ao Trabalho? (Cortez/ Unicamp), O Novo Sindicalismo no Brasil (Pontes) e A Rebeldia do Trabalho (Unicamp) e organizador da coleção “Trabalho e Emancipação”, da Editora Expressão Popular.


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De 11 a 17 de maio de 2006

NACIONAL POLÍTICA ENERGÉTICA

Crise do gás evidencia erro

Hamilton Octavio de Souza

Em vez de investir em fontes alternativas, Brasil optou pela importação de um recurso finito

Contradição liberal Defensores ferrenhos da propriedade privada, da livre iniciativa do capital e do mundo regulado pelos mercados, grandes produtores rurais reivindicam do governo a redução do preço do óleo diesel, a elevação do dólar, a ajuda para combater a ferrugem asiática na soja e a reestruturação das dívidas com o Banco do Brasil e com as multinacionais dos insumos. No Brasil é sempre assim, o lucro é privado e o prejuízo é socializado. Nada como o capitalismo sem riscos. Arapuca petista Logo após as primeiras denúncias do mensalão, a direção do PT justificou a dinheirama através de empréstimos bancários repassados pelo publicitário Marcos Valério. Agora, que Marcos Valério cobra na Justiça a devolução de R$ 110 milhões, a direção do PT argumenta - por seus advogados - que aqueles empréstimos foram irregulares. Se os empréstimos existiram, o partido tem de pagá-los; se não existiram, é preciso explicar de onde veio o dinheiro. Silêncio rompido O ex-secretário-geral do PT, Sílvio Pereira, depois de quase um ano de silêncio sobre o escândalo do caixa dois petista, abriu a boca para o jornal O Globo: revelou que o esquema de arrecadação de Marcos Valério visava atingir R$ 1 bilhão junto a empresas que tinham negócios com o governo. A entrevista retoma o assunto num momento em que o esquecimento favorece a campanha da reeleição de Lula. Conversa fiada O BNDES deve liberar até o final do mês mais um empréstimo de R$ 497 milhões para a empresa alemã Volkswagen, assim como fez em novembro passado. Tais empréstimos de dinheiro público com juros baixos e excelentes condições de pagamento fazem parte de um pacote de incentivo à exportação. Em contrapartida, a multinacional anunciou que vai demitir 5.700 empregados brasileiros nos próximos meses. Preconceito contra Morales O tratamento da mídia à nacionalização do gás boliviano está carregado de preconceito e desrespeito contra Evo Morales. Jornais e revistas procuram um tutor, que estaria por trás de suas decisões. Ora esse tutor seria Hugo Chávez, ora seria Fidel Castro. Veja chega a dizer, na capa, que Chávez “tramou o roubo do patrimônio brasileiro na Bolívia”. E, na matéria, chama Morales de “fantoche de Chávez”. Não aceita que os bolivianos pensem por contra própria. Má-vontade contra Morales Só mais de uma semana depois da nacionalização do gás boliviano a imprensa informou que o Brasil pagava por ele um valor muito inferior ao do mercado internacional. Enquanto lá fora o gás é vendido em torno de 7 dólares por milhão de BTU (unidade térmica britânica), o Brasil o comprava da Bolívia a 3,26 dólares. Assim, mesmo após o aumento de 2 dólares anunciado por Morales, pagará um valor inferior ao do mercado internacional. Fidel na lista dos mais ricos Transcrevendo matéria da revista estadunidense Forbes, também editada no Brasil, O Globo estampou o título: “Fidel é mais rico do que a rainha da Inglaterra”. O critério da revista, surpreendentemente encampado pelo jornal brasileiro, é ridículo: como Fidel mandaria nas empresas estatais cubanas, o patrimônio dessas empresas foi computado como se fosse do presidente cubano. Francamente...

Tatiana Merlino da Redação

A

recente nacionalização das áreas de petróleo e gás na Bolívia fomentou o debate sobre a política energética do Brasil. Após o anúncio do governo boliviano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que o governo brasileiro cometeu um erro estratégico no passado ao tornar o país extremamente dependente do gás boliviano. Especialistas também acreditam que a dependência do Brasil de um recurso estrangeiro foi um equívoco e é resultado direto de baixos investimentos na produção doméstica. “Erramos em não buscar aumentar a produção brasileira de gás e admitir outras hipóteses, como investimentos em fontes alternativas de energia”, acredita o professor da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Pinguelli Rosa. Para ele, faltou ao Brasil “elaborar uma política energética”.

JOGO DAS TRANSNACIONAIS A opção pela importação do gás boliviano foi feita em 1996, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou os acordos de fornecimento de gás com a Bolívia. Apesar de setores da sociedade civil, como a Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet), terem protestado, o governo ignorou as propostas alternativas e firmou contrato com as empresas transnacionais que atuavam na Bolívia, como a estadunidense Enron, envolvida em esquemas de fraudes contábeis e de corrupção, e a anglo-holandesa Shell, envolvida em diversos crimes contra os direitos humanos na África. O projeto do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol) contava, ainda, com apoio do Banco Mundial. De acordo com físico

e engenheiro José Bautista Vidal, estudiosos apresentaram na época outras sete opções de investimento energético que o governo rechaçou: “O Brasil tem um grande potencial de energia que pode ser obtido dos derivados da biomassa (gerada pela queima de produtos orgânicos), mas não investiu nisso. Também poderíamos ter investido no gás nacional”.

CONDIÇÕES ABSURDAS Além da vulnerabilidade que a dependência de uma fonte de energia externa gera, o professor explica que “as condições do contrato (do gasoduto) eram absurdas”. De acordo com ele, uma das cláusulas do contrato chamada take and pay (pegue e pague, tradução livre) foi extremamente danosa ao país, pois determina que o Brasil pague pelo valor de uma possível demanda de pico de gás. “Não interessa quanto consumimos, pagamos pelo pico. Por exemplo, se recebemos 18 milhões de metros cúbicos de gás, iremos pagar por 25 milhões, que foi o pico estabelecido”, explica. Para Vidal, FHC fez essa escolha para o país porque tinha compromisso “com corporações transnacionais na internacionalização do problema energético brasileiro”. No entanto, diferentemente do que a imprensa comercial brasileira vem divulgando, o físico acredita que a nacionalização dos recursos hidrocarbonetos no país vizinho pode ser positiva para o Brasil, pois será mais fácil rever as condições do contratos e “estabelecer parâmetros mais justos para nós, anulando a cláusula take and pay, por exemplo; agora, vamos negociar com o Estado vizinho, e não mais com corporações”. Bautista Vidal, que vê a nacionalização dos recursos energéticos bolivianos como “defesa do princípio de soberania”, acredita que o momento é propício para o Brasil fazer uma campanha pela reestatização da Vale do Rio Doce.

Política energética da era FHC deixou país refém do gás boliviano

Governo precisa investir em energias renováveis Para reverter o equivoco histórico e diminuir a dependência da Bolívia, estudiosos defendem a diversificação da matriz energética brasileira, por meio do desenvolvimento de campos de gás em território nacional, além de investimento em fontes alternativas de energia, como biomassa (gerada pela queima de produtos orgânicos), eólica (gerada por vento) e solar. “Temos a alternativa da biomassa, que é energia direto do sol. Em dois meses, o girassol transforma a energia solar em biodiesel, enquanto o petróleo leva 400 milhões de anos para se formar. O investimento em gás é válido, mas devemos lembrar que se trata de um recurso finito”, salienta o físico e engenheiro José Bautista Vidal. “Então, para quê buscar energia fora do nosso território nacional correndo todo tipo de risco?”, questiona. O problema é que, apesar de o Brasil ser “a grande potência energética do planeta, ainda não está capacitado a responder por essa vocação. O quadro é melancólico”, acrescenta. Que a diversificação da matriz energética é saída para o país, não há dúvidas. Mas, no curto prazo, é difícil ter bons resultados, explica Vidal. Segundo o professor do Programa de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo (USP) Célio Bermann, a substituição do gás importado da Bolívia por energia doméstica requer investimentos pesados e demanda tempo. “Temos um enorme potencial solar, eólico, de produção de energia a partir dos ventos, das

MANIFESTO

Movimentos sociais apóiam o povo boliviano Movimentos sociais lançaram, dia 3, um documento conjunto em que reconhecem “o direito do povo boliviano de controlar suas riquezas naturais e de iniciar, com o governo Evo Morales, a reconstrução da sua identidade nacional e popular”. O manifesto lembra que “durante cinco séculos os bolivianos sofreram a sangria de seus recursos naturais não renováveis pelas potências coloniais e imperiais. Os minerais preciosos foram levados pela Europa para enriquecer suas nações e financiar suas guerras fratricidas. O estanho foi levado como matériaprima para produtos industriais da Europa e dos Estados Unidos”. As diversas entidades que assinam o documento, questionam: “Por que não reconhecer para a nação irmã o direito que reivindicamos como legítimo para nós e que deu origem à nossa maior estatal, a Petrobrás? Hoje a riqueza natural boliviana está praticamente reduzida ao petróleo e ao gás natural. E, por obra e graça da atividade predatória dos países ricos, a Bolívia é hoje o país mais empobrecido da América do Sul”. Os ativistas também condenam a mídia comercial brasileira, que “finge ignorar a diferença entre nacionalização e expropriação”. Lembram que, na época do lançamento da proposta do gasoduto Brasil-Bolívia, a sociedade organizada fez campanha contra, sob o argumento da ameaça ambiental

que o duto representava. Porém, aponta o manifesto, havia outro argumento. As transnacionais dos combustíveis queriam garantir ganhos transferindo despesas da construção do duto para a Petrobrás. “Apesar das evidências de mau negócio que o gasoduto representaria, foram impostos à Petrobrás o custo da construção, o risco cambial, a cláusula take-or-pay e a obrigação de compra de gás por 60 dólares por kwh para a venda por apenas 4 dólares. A imprensa, na época, aplaudiu. E o prejuízo de então foi muito maior do que o que a mesma imprensa acena agora em conseqüência da decisão de Morales. Por que a imprensa foi conivente, então, e hoje vocifera contra a Bolívia?”, questiona o texto. Esclarece o manifesto que, hoje, a mídia defende “os ganhos de uma empresa estatal – a Petrobrás – cujas ações são hoje controladas por acionistas privados dos EUA na proporção de 60%, sendo 49% de estadunidenses e 11% de testas-deferro no Brasil. Fruto do criminoso gesto do então-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao assinar a Lei n. 9478/1997, que emenda a Constituição de 1988, quebrando o monopólio estatal e concedendo a empresas vencedoras de licitação de exploração de jazidas a propriedade do produto bruto e o direito de exportá-lo”. (Veja a íntegra do manifesto na Agência Brasil de Fato, www.brasildefato.com.br)

fontes de biomassa como bagaço de cana de açúcar e resíduos de arroz. Todavia, enfrentamos um problema de custos, que ainda são altos.” Hoje, a participação dessas fontes ainda é incipiente, não passa de 3,5% de toda a produção de energia gerada no país.

QUESTÃO DE TEMPO A substituição do gás importado da Bolívia por energia doméstica também demanda tempo. Segundo Bermann, desde o investimento para a recuperação do campo gasífero de Santos, por exemplo, até sua viabilidade econômica, seriam necessários de 5 a 6 anos. Para reduzir a dependência do gás boliviano a partir das energias renováveis, o tempo estimado é ainda maior, afirma. “Levaria de 20 a 30 anos para que a participação dessas fontes fosse significativa.” Já no longo prazo, a tendência é de os custos reduzirem, afirma o professor da USP. Porém, isso depende de incentivo por meio de políticas públicas voltadas para as energias renováveis, avalia Bermann. Na sua opinião, o Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), criado em novembro de 2003 pelo governo Lula, ainda é muito tímido em relação ao potencial do país. O objetivo principal do programa é financiar, com suporte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), projetos de geração de energias a partir dos ventos, pequenas centrais hidrelétricas e bagaço da cana, casca de arroz, cavaco de madeira e biogás de lixo (biomassa). (TM)

Greenpeace

Eliminação política Os pequenos partidos correm sério risco de desaparecer nas eleições deste ano, caso não consigam 5% dos votos (cerca de cinco milhões) válidos para a Câmara dos Deputados – exigência da chamada cláusula de barreira da nova legislação eleitoral. A corrida pela sobrevivência ameaça as principais siglas no campo da esquerda.

Brasil de Fato

Fatos em foco

Especialistas defendem investimento em novas fontes de energia, como a eólica


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NACIONAL HABITAÇÃO

União cede imóveis para moradia popular Igor Ojeda da Redação

O

s movimentos sociais que lutam por moradia comemoraram a assinatura, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, da Medida Provisória (MP) 292, cujo principal apelo é a desburocratização do processo de regularização de imóveis da União ocupados por famílias sem-teto. Segundo o Ministério das Cidades, a nova MP – publicada no Diário Oficial dia 27 de abril – vai beneficiar 423 mil famílias que já tiveram iniciado o processo de reconhecimento de posse por meio do Programa Papel Passado, pelo qual cerca de 213 mil títulos de posse já foram concedidos desde 2004. Assim que a MP for aprovada no Congresso, as famílias poderão obter a Concessão de Uso Especial ou a Concessão de Direito Real de Uso. Caso tenham renda até cinco salários mínimos (antes, a exigência era de até três mínimos), terão direito a usar tal documento como garantia no Sistema Financeiro de Habitação (SFH), podendo requisitar financiamento para construção ou reforma de imóvel. “É uma medida que abre perspectivas para antigas demandas nossas”, avalia Wanderley Gomes da Silva, tesoureiro-geral da Federação das Associações Comunitárias do Estado de São Paulo (Facesp) e diretor da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam). “Reforça o compromisso do governo com esse setor da sociedade, formado pelas famílias que padecem com a falta de uma política habitacional séria”, acrescenta. Para Benedito Barbosa, o Dito, da Central de Movimentos Populares (CMP), a MP 292 vai atingir o universo das famílias que compõem o déficit habitacional qualitativo, ou seja, não se restringe aos que não têm moradia (déficit quantitativo, de 7 a 8 milhões de famílias), mas

Jorge Henrique

Movimentos sociais comemoram medida do governo que amplia e agiliza concessão de posse

Para resolver o problema dos brasileiros que moram em condições precárias, é preciso haver uma ação integrada entre governo federal e municípios

inclui os que moram em condições precárias. Barbosa calcula que cerca 10 milhões de famílias se encaixam dentro desse conceito no Brasil. Portanto, “algo em torno de 40 milhões de pessoas podem ser beneficiadas (pela MP), no sentido de viabilizar a regularização fundiária”, diz.

GRANDE IMPACTO Segundo Nelson Saule Jr., advogado urbanista e coordenador da equipe de Direito à Cidade do Instituto Pólis, a medida contribuirá para viabilizar a aplicação de instrumentos já previstos na legislação brasileira e no Estatuto da Cidade. “Fica claro que nas terras da União esses instrumentos são aplicáveis. Antes havia uma dificuldade de entendimento nesse sentido”, explica Saule. Para ele, outro aspecto positivo da MP 292 é o fato de a União poder conceder

aos municípios áreas para aplicação da regularização fundiária. Devido ao fato de boa parte das terras da União estarem localizadas em áreas de grande demanda habitacional, a MP, na opinião de Saule, “pode ser uma medida de impacto, sim, se houver uma ação integrada do governo federal com os municípios”. A MP 292 permitirá ainda que os imóveis ociosos da União, mas não ocupados, também sejam utilizados para projetos habitacionais de interesse social. Estima-se que existam cerca de 600 mil nessas condições. A medida prevê ainda a utilização para moradia popular de imóveis da União que estão emprestados mas que não exercem suas funções de origem. Serão utilizados, por exemplo, imóveis ociosos do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e da Marinha.

De acordo com o diretor da Conam, os movimentos sociais tiveram um papel decisivo na elaboração e assinatura da MP. “É uma vitória nossa. Por mais que o governo tivesse o interesse, o compromisso de fazer, ele não faria por si só. Demandou muita movimentação das entidades do movimento popular”. Barbosa, da CMP, concorda que a pressão foi decisiva: “A gente está há muito tempo no Conselho das Cidades e no Ministério das Cidades forçando para agilizar os procedimentos de regularização fundiária”.

MP FRANKENSTEIN A partir da publicação da medida no Diário Oficial, o Congresso Nacional tem 90 dias para aprovar ou rejeitar a proposta. Gomes da Silva acredita que a aprovação deve ocorrer sem problemas mas, por ser uma

medida social avançada, o texto poderá sofrer diversas modificações. “Com certeza, a oposição vai trabalhar para fazer com que a medida se transforme num Frankenstein, isto é, tenha o conteúdo modificado. É bom ficar alerta.” No dia 16 será realizado, em São Paulo, um encontro de preparação para o Fórum Urbano Mundial, que acontecerá em Vancouver, no Canadá, entre os dias 19 e 23 de junho. Três temas compõem a pauta: o impacto das políticas neoliberais sobre as cidades; a terra urbana para moradia social e o lugar dos movimentos sociais, no Brasil e no mundo, na conjuntura atual. Na ocasião, será apresentada a Carta Mundial pelo Direito à Cidade, com propostas das entidades brasileiras para o fórum de Vancouver. (Para mais informações, consulte a página do fórum na internet ).

TRABALHO

Eduardo Sales de Lima de São Paulo (SP) Pessoas de baixa renda, baixa escolaridade, em situação de rua e egressos do sistema prisional dispunham, na capital paulista, de uma alternativa que lhes garantia a subsistência. Porém, desde o dia 15 de abril, também essa oportunidade lhes foi retirada. A Secretaria Municipal do Trabalho (SMT) de São Paulo anunciou o fim do programa Operação Trabalho, em vigor desde 2001. Até o final de março, restavam 24 participantes no programa que começou com 158 mil desempregados inscritos e atendeu mais de 20 mil pessoas – 15% das quais moradores de rua ou albergados. A página SMT na internet enfatiza que o programa Operação Trabalho não é emprego e seus beneficiados não têm ‘qualquer vínculo’ empregatício com a prefeitura de São Paulo ou entidades parceiras. Ressalta que eles não assinam contrato de trabalho e sim um Termo de Compromisso e Responsabilidade com a prefeitura. No albergue Espaço Luz (região da Luz), um jovem afirmou ter participado da Operação Trabalho contratado de forma efetiva pela prefeitura. Outro rapaz afirmou que trabalha como jardineiro no campus da Universidade de São Paulo (USP) por meio do programa, mas há somente mais dois meses de “contrato”. O rapaz relata que amigos que faziam parte do programa na área central da cidade estão desesperados: “Eles têm família e precisam do dinheiro para

Luciney Martins / Rede Rua

Prefeitura de São Paulo fecha programa social

Antes de ser fechado pela atual gestão tucana, programa de combate ao desemprego atendeu mais de 20 mil pessoas

sustentá-la, mesmo morando em albergue”. Os entrevistados pediram para não ser identificados. Em 2005, 1500 pessoas participaram do projeto. No início deste ano, foram criadas outras 2 mil vagas voltadas para serviços relacionados a enchentes. Os participantes recebiam R$ 363,45 mensais para trabalhar em limpeza de galerias e bocas-de-lobo. Servidores da subprefeitura de São Miguel Paulista revelaram que a ausência dos trabalhadores do programa tem causado o acúmulo de lixo em bueiros da região. Porém, o assistente técnico M. disse que já estava previsto o término do “contrato” quando acabou a ação antienchente. Para o vereador José Ferreira (PT), conhecido como Zelão, este

governo está desmantelando os projetos sociais feitos pelo governo passado. Segundo Zelão, o importante é moradia fixa e trabalho fixo, mas a frente de trabalho é um “mal necessário” pois dá condições para que as pessoas possam lutar.

ALBERGADO E SEM TRABALHO As secretarias informaram, em nota conjunta, que todas as ações tiveram durações determinadas e que “a administração se opõe à possibilidade de que essas intervenções venham a se perenizar, na forma de empregos públicos permanentes”. A SMT explicou que “frente de trabalho” não deve ser prioridade pública numa cidade como São Paulo e focará programas de atendimento à população jovem, microcrédito

para pequenos empresários e intermediação de vagas para empresas privadas. Ressaltou ainda que as novas frentes serão abertas apenas se houver orçamento e necessidade específica. Com o fim do Operação Trabalho, a SMADS implantou o programa São Paulo Protege, cujo objetivo é o de desenvolver ações como a reestruturação e ampliação do número de vagas em albergues. A pasta contou com um aumento de verbas de R$ 150 milhões de 2005 para 2006, destinados sobretudo a políticas assistenciais por intermédio de organizações sociais. Para o coordenador da Associação Rede Rua, Alderon Costa, trabalho e moradia são essenciais para retirar as pessoas da rua. Mas ele afirma que o

albergue deveria ser considerado um tratamento de emergência pois “não contribui para que as pessoas saiam das ruas”. “A prefeitura vai abrir albergues na periferia como forma de tirar a pressão. Isso ocorre desde a época do PT, quando houve um aumento muito grande de albergues já na gestão da Marta Suplicy. Em São Mateus foram criadas mais cem vagas. É uma questão de exclusão, na periferia já há muitos problemas”, explica Alderon. Nos albergues Arsenal da Esperança (Brás) e São Camilo (Tatuapé), muitas pessoas ficam sentadas e deitadas nas calçadas, onde há um intenso odor de urina . No São Camilo, ligado à prefeitura paulistana, a coordenadoria não permitiu que a reportagem do Brasil de Fato conversasse com albergados que haviam participado do Operação Trabalho. Para o coordenador da Associação Rede Rua, o fim do programa retrata um problema cultural na política brasileira, que visa o engrandecimento de pessoas e de partidos, o que não permite uma articulação em longo prazo de políticas sociais e econômicas voltada para a retirada das pessoas das ruas. Segundo pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) de 2003, existem em São Paulo 10.500 pessoas em situação de rua oriundos de todas as partes do país; 70% são do sexo masculino em idade ativa (18 a 55 anos); 32% são catadores de materiais recicláveis. Mas um dado impressionante é que 20% dos moradores de rua têm nível superior.


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AMÉRICA LATINA CHILE

Em defesa da terra, até a morte

AÇÃO URGENTE O risco de morte é iminente, com a perda de 9 a 17 quilos, alerta o médico mapuche Juan Carlos Reinao Marileo, em nota publicada pelo Grupo de Familiares e Amigos dos Presos Políticos Mapuche. Ele recomendou que “devido à grave situação médica dos quatro grevistas” deveria se avaliar a possibilidade de um recurso de amparo que os libere da tortura física e psicológica. O quadro de saúde debilitada fez com que a Anistia Internacional interferisse com uma Ação Urgente para pedir às autoridades chilenas que eles recebam atendimento médico adequado. As denominadas Ações Urgentes da Justiça chilena são empreendidas para salvar prisioneiros em perigo de tortura, execução iminente ou “desaparecimento” sob custódia, mas também quando um preso precisa de assistência médica imediata, quando há tortura ou as condições de reclusão colocam sua vida em perigo. Mas os indígenas prometem seguir com a greve até que a sentença seja revista.

LEI MILITAR O julgamento de Juan Marileo, Juan Carlos Huenulao, Florencio Marileo e Patricia Troncoso foi realizado sob denúncias de irregularidades. Eles foram julgados de acordo com a Lei Antiterrorista (resquício da ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet, entre os anos de 1973 e 1990, no Chile), que só é aplicada na IX Región e, efetivamente, só contra os Mapuche. A Lei possui disposições que dobram automaticamente as penas dos condenados. Como permite essa lei, foram apresentadas, durante o julgamento contra os indígenas, testemunhas que não precisavam mostrar o rosto ou anônimas. Segundo a nota do Grupo de Familiares e Amigos dos Presos Políticos Mapuche, as testemunhas foram pagas para testemunhar. Para agravar as desconfianças sobre a Justiça nesse julgamento, foi denunciado também que a juíza de Garechazó, que repudiou o caráter terrorista do delito, foi inabilitada pela Corte Suprema de Justiça. Os Mapuche em Temuco disseram, desde o primeiro dia na nova prisão, estão sendo mais maltratados. Patricia Troncoso está amarrada à cama e separada dos outros presos; na mesma enfermaria onde estão os que fazem greve de fome, é dada a comida dos presos comuns; a tortura psicológica é permanente, com comentários e constantes ameaças. Dia 5, a polícia chilena pediu à Justiça que obrigue os indígenas a ingerirem alimentos. A polícia tam-

Pelas ruas de Santiago, capital chilena, manifestantes repudiam a prisão dos quatro indígenas Mapuche

Solidariedade aos Mapuche vo Pataxó, na Bahia, possuem centenas de histórias de contaminação ambiental de suas terras por agrotóxicos; de invasão de terras; de atrasos de anos nos processos de reconhecimento de suas terras pela pressão das poderosas empresas de produção de celulose e de extração de madeira; da pressão que sofrem para assinarem acordos ilegais; de expulsões violentas realizada pela polícia com apoio das empresas de celulose e madeira. Experiência parecida vivem os trabalhadores rurais sem terra, criminalizados pelas empresas que têm muito poder econômico e nenhum respeito à vida das pessoas. São também essas mesmas empresas que hoje protagonizam um grave e perigoso incidente diplomático entre Uruguai e Argentina, na localidade argentina fronteiriça de Frai Bentos.” As organizações concluem o documento “pedindo a revisão da sentença por ‘incêndio terrorista’, a liberdade dos presos e a anulação da lei antiterrorista, que foi injustamente utilizada para a sua condenação”.

Movimentos e entidades sociais de diversos países estão promovendo uma campanha de solidariedade ao povo mapuche. No Brasil, organizações indigenistas e de defesa dos direitos humanos assim como personalidades também se mobilizaram e enviaram à presidente chilena Michele Bachelet a “Carta de Apoio à Luta dos Mapuche por Justiça e Liberdade”. “Os indígenas questionam as provas utilizadas no julgamento; questionam o embasamento sobre o qual foram proferidas as sentenças que os condenaram a dez anos de prisão e questionam o uso, para sua condenação, de uma lei antiterrorista, criada durante aquele período tenebroso, que foi a ditadura militar do general Augusto Pinochet”, diz o documento, assinado por várias entidades, como o Conselho Indigenista Missionário e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. “Aqui no Brasil, diversos povos indígenas lutam contra empresas que invadem suas terras para produzir celulose ou explorar madeira. Os povos Tupiniquim e Guarani, no Estado do Espírito Santo, e o po-

bém pediu que os quatro grevistas sejam submetidos a exames médicos e recebam assistência profissional para preservar a sua integridade física e psíquica. Organizações mapuches denunciaram o silêncio do governo e, em particular, da presidente Michelle Bachelet no caso da greve de fome desses quatro presos e a compararam com a ex-primeiraministra conservadora Margareth Thatcher, que governou a GrãBretanha nos anos 80. Os porta-vozes da comunidade mapuche lembraram que em 1981 a “Dama de Ferro” britânica não ouviu o apelo dos presos do Exército Republicano Irlandês que, após 61 dias de greve de fome, começaram a morrer um após o outro por se negarem a vestir o uniforme de réus comuns.

e que suspenderia a utilização da Lei Antiterrorista, dia 4, a Suprema Corte chilena negou, de forma definitiva, a apelação da defesa pela revisão do julgamento. “O recurso de revisão foi negado pela Corte Suprema. Havía-

mos pedido que a sentença fosse cancelada por que não avaliou as provas e não realizou análises que expliquem a convicção de que há conotação terrorista no ato (dos réus). Esperávamos que o tribunal revisasse essa sentença”, declarou

VISTA GROSSA Apesar de declarações da presidente chilena Michele Bachelet de que o governo combateria a criminalização dos movimentos sociais

Perseguição política é amparada por lei dos tempos da ditadura de Pinochet

Luta pelas terras tradicionais A ação que levou ao julgamento e à prisão dos quatro líderes Mapuche (a queimada de áreas da empresa Florestal Mininco) faz parte de uma luta pela retomada de cerca de 1,6 mil hectares do território ancestral mapuche, desapropriados na década de 1970 pela ditadura militar no processo de contra-reforma agrária de Pinochet. Entre 1982 e 1986, essas áreas foram adquiridas pela Forestal Mininco S.A., mas em 1995 se constitui na região a comunidade indígena Tricauco, que continua solicitando ao governo a devolução das terras agora ocupadas pela empresa florestal com apoio do órgão indígena federal. A falta de resposta às demandas indígenas levou, em 2000, a uma ocupação de 100 hectares da Mininco pelo movimento indígena, e a partir desse momento são adotadas outras formas de mobilização e luta, como ações diretas sobre a área. Entre janeiro de 2000 e novembro de 2001, foram 12 ações reivindicatórias desse tipo. E no dia 19 de dezembro de 2001, um grupo de ativistas indígenas colocaram fogo em focos isolados da área, o que levou ao processo e à prisão, em 2004, das lideranças da ação. (Agência Carta Maior, www.agencia cartamaior.uol.com.br)

a advogada dos indígenas, Alejandra Arriaza. Segundo Alejandra, também não houve avanços nas negociações com o Poder Executivo, e, em termos jurídicos, as possibilidades jurídicas no Chile se esgotaram. “Agora, é possível apelar apenas à Comissão Internacional de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Vamos continuar buscando um indulto ou anistia especial para os réus.” Em defesa dos Mapuche também o Prêmio Nobel Alternativo da Paz, Martin Almada, o mesmo que descobriu os arquivos secretos da Operação Condor em uma repartição policial de Assunção. Ele fez um apelo à presidente chilena no sentido de o seu governo respeitar o direito dos Mapuche e que determine imediatamente o fim do saque das riquezas da área onde eles vivem. Almada pede também que termine o “deflorestamento selvagem¸ a contaminação das águas e das terras da região onde eles vivem”. (Com agências internacionais)

Indymedia/ Santiago

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ais de sessenta dias de greve de fome, e desde 5 de maio em greve seca (sem ingerir água). É com esse gesto extremo que os indígenas chilenos Juan Marileo, Juan Carlos Huenulao, Florencio Marileo e Patricia Troncoso intensificaram o protesto pedindo a anulação da sentença que os condenou a 10 anos de prisão e multa de 850 mil dólares por atear fogo no campo Poluco Pidenco, área indígena invadida pela empresa Forestal Mininco (um dos maiores grupos econômicos do país que ocupa mais de um milhão de hectares com plantações de eucalipto e pinheiros para a produção de papel e celulose), em dezembro de 2001. A greve é completamente ignorada pelo governo chileno e silenciada pela grande mídia nacional e internacional. Os Mapuche, maior grupo indígena do país, lutam há mais de dez anos pela recuperação de territórios ocupados pela Mininco.

Indymedia/ Santiago

da Redação

Indymedia/ Santiago

Em greve de fome há mais de sessenta dias, quatro presos políticos Mapuche pedem anulação de sentença injusta

Mapuche cobram do governo chileno a restituição de suas terras


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INTERNACIONAL FÓRUM SOCIAL EUROPEU

O Velho Continente se reinventa João Alexandre Peschanski da Redação

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s rumos da Europa estão em disputa. Desde a formalização da União Européia, em 1992, a política do continente era hegemonicamente definida por governantes neoliberais, como os da Alemanha, da França, da Inglaterra e da Itália. Não havia espaço para o contraditório. As políticas sociais européias, que faziam do continente um bastião do bem-estar social, foram desmanteladas, uma a uma, da educação à saúde, passando pela Previdência e pelos transportes públicos. Descontentes, os movimentos sociais se revoltaram e, desde 2005, acumulam vitórias contra os defensores do projeto neoliberal. Ressurgem nas arenas de decisão e de formação de opinião. Reinventam os rumos do continente. O espírito União Européia – Bloco econômico, das recentes vipolítico e social tórias se reflete, estabelecido em intensos 1992 pelo Tratado de com Maastricht, que tinha debates e procomo metas, entre testos criativos, outras, a integração na quarta edição em áreas como sedo Fórum Social gurança, trabalhista e política externa; a Europeu (FSE), formulação de uma realizado em Constituição e o Atenas, capital estabelecimento da unidade monetária, da Grécia, de 4 a pela adoção do euro. 7 deste mês. Em Reúne 25 países. depoimento ao Brasil de Fato, a ativista Claude Lemarre, da Central Geral do Trabalho (CGT), principal central sindical francesa, descreve o encontro: “Há um novo espaço público transnacional, quase tangível, nas salas de debate, onde se aglomeram todos os que conseguem entrar. Muitas pessoas não conseguem participar das discussões, as mais diversas possíveis - questão de gênero nos países do Leste europeu, luta contra a precariedade, Diretiva Bolkestein. Em um debate sobre a ação das grandes corporações, trabalhadores alemães disseram ter usado os argumentos dos sindicatos franceses, na luta contra o Contrato de Primeiro Emprego (CPE), para impedir a perda de garantias sociais”.

Paulo Pereira Lima

A luta dos franceses contra o Contrato de Primeiro Emprego (CPE) motiva a resistência ao neoliberalismo na Europa

DIFÍCIL ARTICULAÇÃO

Realizado em Atenas (Grécia), o Fórum Social Europeu faz um balanço das vitórias conquistadas pelos movimentos sociais

avaliaram o impacto de duas outras mobilizações do continente: contra a ratificação da Constituição Européia e contra a Diretiva Diretiva Bolkestein Bolkestein. A – Conhecida pelo ativista da CGT nome do ex-comiscita o discursário europeu do so de um dos mercado interno, o holandês Frits organizadores Bolkestein, a Diredo FSE, Nicos tiva Relativa aos Houdis, do parServiços no Mercado Interno visa tido Synapisabrir à competição comercial o setor de mos, na abertura do encontro: serviços em todo o território da União “O diferencial Européia. dessas mobi-

lizações, além do fato de terem conseguido barrar as propostas neoliberais, é que colocaram para a opinião pública uma série de alternativas. Alternativas de integração continental e de modelo de desenvolvimento. Não foram somente reações a projetos dos quais não gostamos, mas espaços espontâneos, fóruns espontâneos, de propostas populares”. Em 29 de outubro de 2004, os parlamentares da União Européia apresentaram uma proposta de Constituição Européia, a ser ratificada por todos os países do bloco.

No texto, havia todo o jargão neoliberal: estímulo às privatizações, flexibilização dos direitos trabalhistas e investimento em poderio bélico. Sete meses depois, os franceses votaram contra a aprovação do texto - logo seguidos pelos holandeses. O documento, neoliberal, afundou e os movimentos sociais exigiram a realização de consultas populares no caso de outras propostas. Desde 2003, os governos que integram a União Européia tentam implementar a Diretiva Bolkestein, criando um bloco comercial europeu, parecido com o que seria a

Em nome da guerra ao terror, EUA apóiam repressão no país William Fisher de Nova York (EUA)

Unidos não mostram disposição de pressionar em favor da democracia muitos regimes que considera chave” em sua campanha, disse Samer Shehata, especialista do Centro para Estudos Árabes Contemporâneos da Universidade de Georgetown. Washington “necessita desses regimes para ter informação de inteligência sobre organizações terroristas, e em alguns casos para a cooperação e coordenação em ações de ‘entregas’ extrajudiciais” de prisioneiros, afirmou. Esse tipo de colaboração consiste no envio de suspeitos de terrorismo detidos pelos Estados Unidos a países com antecedentes de abuso contra islâmicos radicais, o que constitui uma violação da Convenção das Nações Unidas

Pentágono

Com o único desejo de avançar em sua “guerra mundial contra o terrorismo”, os Estados Unidos avalizam e promovem medidas antidemocráticas nos regimes mais repressivos do planeta, como o do Egito. Esse país da África setentrional constitui um exemplo clássico. Há cerca de 20 dias, ignorando as críticas de ativistas locais defensores dos direitos humanos, o Egito prorrogou a Lei de Emergência, com mais de 20 anos de existência, que permite ao governo prender e manter detida uma pessoa sem necessidade de apresentar acusação judicial. Além disso, o governo do presidente Hosni Mubarak se negou a

moderar suas pretensões de reduzir a independência do já débil sistema judiciário. Esses acontecimentos deixam claro como a “guerra contra o terrorismo” promove medidas contra a governabilidade e a sociedade civil, que poderiam ser poderosas ferramentas contra os verdadeiros terroristas que o Egito pretende derrotar. Esse país foi sacudido em abril por novos atentados em uma zona turística no Mar Vermelho. Pelo menos 18 pessoas morreram e outras 80 ficaram feridas após a explosão de bombas em duas cafeterias e em um supermercado no balneário de Dahab. “A promoção da democracia e a cooperação na guerra contra o terrorismo estão freqüentemente em conflito entre si, e os Estados

OUTRAS VITÓRIAS Os participantes do FSE, de acordo com Lemarre, também

O deputado do Parlamento Europeu, Francis Wurtz, ouvido por Lemarre, relativiza as vitórias contra os neoliberais europeus: “Apesar de nossas vitórias, o neoliberalismo continua avançando, de modo velado”. Os movimentos sociais não definem, ainda, os rumos do continente. Disputam-nos com os defensores do neoliberalismo, que continuam fortes. Em especial, ressalta a ativista da CGT, a Diretiva Bolkestein continua sendo um risco, pois, diferentemente do CPE, continua rondando as negociações do Parlamento Europeu. Outro desafio, destaca Lemarre, é o fortalecimento institucional do FSE: “Participantes do encontro disseram que o modelo organizativo estava falido, pois não levava a decisões claras. Não precisamos ser tão alarmistas, mas o que é claro é a necessidade de se discutir o futuro do Fórum. O de Londres [capital inglesa que sediou, em 2004, a terceira edição do FSE] foi muito pautado em uma reação às políticas neoliberais, à Constituição e à guerra do Iraque. Hoje, precisamos criar alternativas claras, um conjunto unificado de propostas continentais”. (Colaborou Igor Ojeda, da Redação)

EGITO

INSPIRAÇÃO ANTI-CPE Um dos principais temas do FSE, que reuniu 15 mil pessoas em 210 atividades, foi a vitória da população da França contra o CPE, projeto de lei do governo para supostamente conter o desemprego, galopante, no país. Movimentos sociais franceses – para os quais a proposta seria a institucionalização da precariedade no trabalho, na medida em que eliminaria garantias sociais – organizaram protestos, reunindo milhões de participantes. Em abril, o governo recuou e o CPE foi extinto. Lemarre relata que o FSE destinou um espaço de debate privilegiado à avaliação da vitória contra o governo francês. O título da discussão: “Resistência ao neoliberalismo. O CPE é só o começo”. Em consonância com a vitória francesa, o principal tema de articulação dos diferentes grupos que participaram do FSE foi o combate à precariedade. “Devemos enfrentar a globalização, então temos que colaborar uns com os outros”, afirmou o sindicalista grego Tanos Vasilopoulos, entrevistado pelo jornal francês L´Humanité. Atualmente, ele participa da criação de uma rede de organizações de trabalhadores de centros comerciais europeus. “Precisamos reconhecer que os sindicatos não têm a mesma força de antes. Organizar-se em escala continental é um imperativo. Isso talvez dará a possibilidade para fortalecer o movimento sindical”, diz Vasilopoulos.

Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Organizações européias, principalmente sindicatos, se mobilizaram para deter as negociações. Tiveram êxito. Apesar de ainda ser debatido nos corredores do Parlamento da União Européia, a proposta não tem previsão para ser levada a votação, nem para implementação.

Sob a alegação de conter focos “terroristas”, o governo estadunidense interfere na política egípcia

sobre a Tortura. “Com freqüência, o custo que os Estados Unidos devem pagar é não poder pressionar esses regimes em questões como direitos humanos, estado de direito, corrupção e democratização”, acrescentou Shehata. Após as eleições presidenciais do ano passado no Egito, que muitos consideram fraudadas, juízes exigiram que lhes fosse permitido investigar informes sobre irregularidades na votação, casos de violência contra cidadãos e magistrados que acompanhavam o pleito eleitoral e falsificação de votos. A resposta do governo foi despojar seis juízes de sua imunidade para que fossem interrogados pela polícia, abrindo, assim, a porta para a acusação penal por difamação e injúrias. Ativistas escreveram uma carta ao primeiro-ministro, Ahmed Nazif, manifestando sua “preocupação por várias violações de direitos humanos ocorridas com renovada força nos últimos meses no Egito e, em particular, pelas repetidas restrições à liberdade de expressão e opinião sofridas por diferentes grupos da sociedade.” O destino dos magistrados detidos permanece no limbo político e judicial. O Egito adotou sua Lei de Emergência em 1981, em resposta ao assassinato do antecessor do Mubarak, Anwar el Sadat (19701981), e foi usada para prender mais de 30 mil pessoas indefinidamente e sem acusações. Desde então, Mubarak renovou a lei a cada três anos. Organizações de direitos humanos calculam que cerca de 15 mil pessoas permanecem presas nos cárceres egípcios sem acusações formais. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)


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CULTURA

De 11 a 17 de maio de 2006

CINEMA SOCIAL

Os pobres produzem sua arte O grupo carioca Nós, do Cinema oferece às populações de baixa renda a oportunidade de fazer seus próprios filmes

Divulgação

Marcus Almeida / Somafoto

Nestor Cozetti do Rio de Janeiro (RJ)

Divulgação

O

audiovisual como instrumento de crítica social se contrapõe à mídia burguesa e “serve para explicar por que o pobre e o negro não estão incluídos nesses meios de comunicação”, garantiu Júlio César Siqueira, coordenador e professor da Escola de Educação Audiovisual Nós, do Cinema, voltada para a produção de filmes sociais. Siqueira explica que “é fundamental para o ser humano de hoje entender o audiovisual, porque os meios de comunicação de massa, rádio, jornais, mas principalmente a televisão, são meios de dominação política”. Hoje com 23 anos e professor, sobretudo de cinema, Siqueira tinha 16 quando houve o processo de seleção e os ensaios do filme Cidade de Deus, entre 1999 e 2000. Na época, ocorreu uma distinção no grupo que se formava. Uns se diziam Nós, do cinema. Outros, Nós, do morro. Daí surgiu o nome do que veio a se constituir como organização não governamental (ONG), em 2003, como Nós, do Cinema, responsável pela escola. O jovem Siqueira teve como professores cineastas que depois concorreram ao Oscar e são fundadores da Escola de Educação Audiovisual: Fernando Meirelles, Walter e João Moreira Salles e Kátia Lund. Segundo ele, que é um dos sócios fundadores do grupo, os objetivos do curso de cinema vão além da profissionalização. “A escola vai além dessa proposta, com certeza. Até como fruto de uma reflexão que a gente fez, uma conclusão que fomos elaborando no decorrer do processo de construção da escola”. A organização trabalha com o audiovisual como ferramenta de inclusão, para que as pessoas de baixa renda possam produzir seus próprios filmes.

Proposta da Escola Nós do Cinema é romper a dominação política por meio da produção de filmes sociais

“Se nós somos uma ONG que trabalha com audiovisual, restrita a uma educação exclusivamente dessa linguagem, poderíamos chegar ao ponto em que muitas pessoas, ao sair das oficinas, diriam, talvez, que perderam seu tempo. Porque aprenderam uma profissão que não exerceriam”, acrescenta Siqueira. A intenção do grupo é consolidar um projeto que trabalha muito além da questão teórica e prática. “Na verdade, é uma oficina que tenta contribuir não para a formação de um técnico, mas de um ser humano mais crítico, com uma visão mais ampliada”, completa o cineasta.

com a melhoria de sua auto-estima. Siqueira explica: “A partir do momento em que começa a compreender melhor as coisas, a se encontrar um pouco, o jovem passa a ser um produtor e não apenas um consumidor de cultura. Ele deixa de ser única e exclusivamente receptor para se tornar produtor cultural”. Para o coordenador de audiovisual da ONG, arte significa uma visão do mundo e da vida. E o espaço artístico é o lugar onde

PRODUTOR DE CULTURA A Escola de Educação Audiovisual Nós, do Cinema ajuda os alunos a entender melhor o funcionamento das mídias, contribuindo não só com o processo de inserção social mas também

se pode subverter algumas coisas que estão, por questões culturais, impostas pelo sistema. “Hoje entendo um pouco melhor o poder da arte. Por exemplo, como profissional do cinema, a mim não interessa a arte do entretenimento. Mas essa forma de cinema aparentemente banal tem a maior quantidade de informação e de posicionamento político-cultural. Os filmes do Rambo, por exemplo. Apesar de detestar todos eles, acho que influenciaram mais a humanidade do que a maior parte dos filmes politizados que conheço. Foi por causa de Rambo que cresci achando que os Estados Unidos eram a nação mais poderosa do mundo. Com os Armagedons da vida achei que os Estados Unidos eram o país salvador do mundo. Então, é no entretenimento que estão embutidas as ideologias. E a arte, nesse sentido, é uma coisa perigosa. Sobretudo nas mãos de quem

estão os meios de difusão de arte, principalmente a mídia. Entender isso é fundamental para entender melhor esta sociedade.” Um filme produzido pelo Nós, do Cinema que vai ser exibido fora do país é Vida Nova com Favela (documentando o surgimento das favelas no Rio de Janeiro). O filme participa do Festival del Cine Pobre, em Cuba e na Europa. Vida Nova com Favela será também o título do primeiro longa do grupo, previsto para ser produzido até 2007. Enquanto isso, o curta-metragem, junto com outros filmes, estará sendo exibido na Europa, até o dia 12. Kátia Lund, fundadora e uma das realizadoras do filme Cidade de Deus e uma das cineastas do filme Crianças Invisíveis, junto com o atual coordenador executivo, Luis Nascimento, vão representar o grupo Nós, do Cinema também no Festival de filmes brasileiros, este mês, em Paris, na França.

AGRESTE

A música vence a pobreza Mario Osava de São Caetano (PE) A música de Mozart transformou a pequena e pobre cidade de São Caetano, esquecida no interior de Pernambuco, quando há 13 anos sua orquestra de crianças começou a ganhar fama nacional e internacional. A Banda Sinfônica do Agreste, mais conhecida como Meninos de São Caetano, embora já sejam adultos, se apresenta nos melhores teatros do Brasil e de vários países europeus desde meados dos anos 1990. Constitui a parte mais visível de um projeto que também compreende a Fundação Música e Vida, na qual 200 crianças recebem ensino musical e reforço escolar. O autor da façanha é Mozart Vieira, que tem como nome o sobrenome do famoso compositor austríaco Wolfgang Amadeus, em evidente indicação da paixão herdada de sua família. “Ele mudou minha vida e a mentalidade da minha família”, disse Maria Lauciete da Silva, atraída ao coro formado pelo “maestro” Mozart há 22 anos. Hoje, aos 30, ela ensina oboé na Fundação, como recém-formada na universidade, e também dá aulas de canto a um grupo criado por uma empresa. Filha de uma família pobre de camponeses, Lauciete teve de trabalhar para financiar seus estudos,

que também incluíram graduação em língua portuguesa. “Sempre quis ser professora”, contou, mas agora realiza sua vocação na música. Teve de vencer a resistência dos pais que “rejeitavam a música como profissão”. Na cultura local, cabe às mulheres “o trabalho doméstico ou de ensino” como únicas alternativas. E a formação clássica “agravou o choque”, mas pouco a pouco a família a aceitou e hoje um de seus irmãos estuda clarinete. Lauciete é uma dos 17 integrantes da banda atual, as primeiras crianças que agora já são maiores de 25 anos, são músicos reconhecidos, tocam ou ensinam em instituições de outras cidades e estudam em universidades, mas nos finais de semana se reúnem na Fundação para dar aula como voluntários e ensaiarem em conjunto. Outro exemplo é Íris Vieira do Nascimento, única mulher que toca trombeta em uma orquestra sinfônica brasileira. Ela conseguiu o primeiro lugar em um concurso para a Orquestra do Recife, contou com orgulho Mozart.

TRABALHO VOLUNTÁRIO São esses músicos da primeira geração formada por ele os que garantem a maior parte dos recursos para a Fundação, contribuindo com o dinheiro conseguido pela orquestra ou por suas atividades indivi-

duais remuneradas. São discípulos fiéis que garantem a iniciativa. “Posso sair para uma apresentação no exterior, mas volto para São Caetano”, diz Lauciete. A banda inicial de 35 componentes foi reduzida à metade para facilitar as apresentações em locais distantes, ao baratear os custos de passagem e hotel, explicou o maestro. Seu sonho é que algum patrocínio ou outra fonte de recursos lhe permita garantir a sobrevivência e ampliação da Fundação. A sede tem capacidade para receber apenas 200 alunos, mas por anos se apresentam entre 400 e 500 candidatos, ressaltou. Lauciete também desenha uma ajuda financeira permanente. “Não posso continuar como voluntária a vida toda” e, além disso, a Fundação poderia fornecer refeições aos alunos, quase todos muito pobres, afirma. A Fundação existe há 13 anos, estruturou a ação social e musical iniciada por Mozart Vieira em 1978, quando tinha 15 anos. Seu primeiro impulso, inspirado por um avô músico e filantropo, foi ajudar as crianças pobres da cidade, ao ver que quase diariamente eram enterrados “caixões de anjos” no cemitério vizinho. “Às vezes doava aos pobres alimentos que faltavam em minha casa”, contou. A idéia de empregar a música surgiu ao observar o interesse que

ele despertava nas crianças mais rebeldes quando tocava violão. Formou um coral, tocava nos bairros pobres e, desde então, trabalha “de domingo a domingo” em seu projeto. Depois, percebeu a necessidade de estudar mais para continuar ensinando, e freqüentou por 10 anos o Conservatório Musical do Recife e uma universidade distante, onde se graduou em flauta transversa. Atualmente, cursa mestrado em direção orquestral. A Fundação Música e Vida está integrada ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e recebe dezenas de crianças cujas famílias recebem uma ajuda financeira do governo para tirar os filhos do trabalho e mantê-los na escola. “Se reconhece sua importância social”, afirmou à IPS a secretária municipal de Assistência Social de São Caetano, Lúcia Marquim.

RECONHECIMENTO Essa iniciativa musical criou novas oportunidades de trabalho para a população mais pobre da cidade, além de “formar verdadeiros cidadãos”, destacou Mozart Vieira. Muitos de seus ex-alunos hoje são músicos de bandas militares e outras instituições. Está em marcha também um processo para seu reconhecimento oficial como escola profissional de nível secundário pelo governo de Pernambuco, fato que

abre novas possibilidades para financiar suas atividades. No momento, seu ensino é complementar, e exige-se dos alunos que sejam bons estudantes em escolas regulares. A música melhora o desempenho escolar, afirmou Maria José dos Santos, 17 anos, que estuda oboé com Lauciete e afirma “conhecer crianças endiabradas que se disciplinaram e ganharam interesse pelas aulas”. É “um trabalho impressionante, humanista”, em que a música promove a “redenção das pessoas”, definiu o cineasta Paulo Thiago, que decidiu fazer um filme sobre o trabalho do maestro Mozart. Será uma obra de ficção, mas “baseada em fatos reais”, com o roteiro quase pronto e as filmagens previstas para o último trimestre deste ano. Uma parte do filme tratará da ação “agressiva, violenta” que Mozart sofreu há 11 anos, acusado de ter promovido o seqüestro de um de seus alunos, que apareceu com sinais de violência e inconsciente por efeito de alguma droga. Essa foi uma reação dos “coronéis” da política local, temerosos da popularidade do maestro que viam como possível adversário, segundo o cineasta, que investigou extensamente o caso. Thiago é autor de Coisa mais linda, sobre o movimento musical da bossa nova. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)


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