Ano 4 • Número 168
R$ 2,00 São Paulo • De 18 a 24 de maio de 2006
Os arquitetos do caos em São Paulo Fotos: Divulgação
Violência do PCC é resultado do descaso dos governos com políticas sociais e com investimentos em segurança
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s 115 mortes nos 251 ataques à polícia, atribuídos ao Primeiro Comando da Capital (PCC), entre os dias 12 e 16, podem ser debitadas em grande parte na conta dos 12 anos de administração tucana no Estado de São Paulo. Durante esse período, os governos do PSDB em princípio negaram a existência do grupo criminoso e depois foram coniventes com ações da facção. Além disso, segundo o advogado Ariel Alves, integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos, a partir de 2000 o governo passou a negociar diretamente como os presos, contribuindo para o surgimento e para o fortalecimento de lideranças. A falta de políticas públicas voltadas para a área social, a inexistência de uma política nacional de segurança, a manutenção de um sistema penitenciário deficiente, as más condições de trabalho da polícia e a conseqüente corrupção policial também são citados por especialistas como causas da violência. Pág. 3
O ex-governador tucano, Geraldo Alckmin, protegido pela mídia...
EDITORIAL
A gritaria das elites
N
inguém pode deixar de se revoltar contra a violência dos bandidos que assassinaram policiais e civis, incendiaram ônibus e metralharam prédios públicos e residências, em dezenas de cidades do Estado de São Paulo. Mas não se pode tirar proveito do sentimento de horror da população para cultivar o sensacionalismo e a propaganda da truculência do Estado contra os bandidos, como estão fazendo alguns radialistas, comentaristas de televisão, deputados e senadores. Na verdade, o que essas pessoas querem não é acabar com a violência criminal, mas criar um clima para justificar a repressão, principalmente contra os movimentos sociais. O senador Romeu Tuma já procurou associar o levante dos presos ao terrorismo, numa evidente intenção de dar conotações políticas ao episódio. O senador Antônio Carlos Magalhães cometeu a irresponsabilidade de dizer que, em 15 dias, o Parlamento votará leis penais mais rigorosas! Políticos da direita e profissionais da mídia capitalista, que vivem da miséria humana, atacaram as Pastorais de Direitos Humanos e as Pastorais Carcerárias, insinuando que essas entidades fomentam a violência dos presos. Essa mesma elite reacionária e leviana chegou ao cúmulo de tentar associar a luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que organiza os pobres do campo por reforma agrária, à violência e ao crime organizado. Esse comportamento das elites não é novidade. Os poderosos não perdem a oportunidade de criminalizar e desqualificar as organizações de luta do povo. Mas toda essa gritaria tem um objetivo claro. Tenta evitar o debate das verdadeiras causas da violência que impera em nossas cidades e em nosso campo: a extrema desigualdade social do país; o abandono das populações condenadas a viver em favelas e nas periferias desoladas das grandes cidades; o descaso pela educação e pelo lazer da juventude. Os privilegiados consideram que mexer nesses assuntos é
muito perigoso, pois exige o corte de alguns de seus privilégios. Quem estiver, de fato, interessado em reduzir a violência, não tem que falar em mais armas para a polícia, penas mais duras para os criminosos, cadeias mais rigorosas para os presos; e sim em reforma agrária, reforma urbana, habitação popular, educação, lazer sadio para os jovens. Contudo, diante de um surto de violência, é preciso tomar providências imediatas. A primeira delas é trazer às claras questões como: de que forma os celulares e as armas de fogo entram nas cadeias? Se esses que falam tanto em rigor quiserem responder a essa pergunta, a primeira providência é instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o aparelho repressivo do Estado. Isso, sim, é necessário, para verificar até onde vai a corrupção. É preciso também substituir as penas de prisão por penas alternativas para crimes menos graves, separar presos de maior periculosidade dos demais, respeitar limites de lotação das cadeias, oferecer oportunidades de trabalho ao preso, promover a reabilitação dos criminosos com apoio de profissionais especializados - todas medidas humanas e eficazes no trato com pessoas que se desviaram das condutas socialmente aceitáveis. Uma política de segurança pública civilizada pode reduzir sensivelmente os índices de violência - embora não seja possível eliminá-la enquanto permanecer a injustiça social. Uma política de maior truculência do Estado não terá outro efeito que o aumento da truculência dos bandidos. Quando se trata o ser humano como bicho, ele reage como tal. Não podemos nos atemorizar com a gritaria dos porta-vozes das classes dominantes e abrir mão das normas civilizadas no combate ao crime.
Violações são rotina na capital paulista Um relatório sobre as violações de direitos humanos no centro da cidade de São Paulo denuncia a negligência do poder público em relação às populações de baixa renda. Elaborado pelo Fórum Centro Vivo, e obtido com exclusividade pelo Brasil de Fato, o documento relata o descumprimento das leis vigentes. Além de apontar a criminalização da pobreza, dos movimentos sociais e dos defensores de direitos humanos que defendem uma política urbana. Pág. 4
...o atual governador pefelista, Cláudio Lembo, ...
Resistência indígena ao neoliberalismo
... e o ex-prefeito de São Paulo, José Serra: juntos no desmonte do Estado
Os caminhos de ferro da privatização Pág. 4 Já está no ar o novo formato da Agência Brasil de Fato na internet. No endereço ( w w w. b ra s i l d e fa t o. c o m . b r ) , você poderá encontrar nossa produção diária de conteúdo exclusivo, entre reportagens, entrevistas e análises, além das edições anteriores do jornal impresso. Em breve, os assinantes terão uma seção específica para acessar a edição da semana. Vamos colocar no ar também um link para rádios comunitárias de todo o país baixarem documentos em áudio e poderem retransmitir para seus públicos locais.
Alvo de perseguição política por parte do Vaticano, o teólogo indígena mexicano Eleazar López Hernández defende o diálogo com os movimentos sociais das Américas como forma de fortalecer o processo de autonomia religiosa indígena. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele fala da importância do movimento zapatista na construção de novos caminhos para a participação política dos povos indígenas e de alternativa ao projeto neoliberal no México. Pág. 5
Corporações européias no banco dos réus As transnacionais européias divulgam imagens de justiça e apoio ao desenvolvimento de comunidades pobres. No entanto, são suspeitas dos piores crimes na América Latina, especialmente no Brasil. Formam quadrilhas paramilitares. Devastam regiões inteiras. Des-
respeitam direitos trabalhistas. Contaminam fontes de água. Na Áustria, entre os dias 10 e 13, essas empresas foram julgadas por um tribunal popular, que pretende investigar as denúncias. O veredicto, ao que tudo indica: culpadas. Pág. 7
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DEBATE
CRÔNICA
Quanto mais muda, mais é a mesma coisa
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Marcelo Barros
filático sempre foi a alegação de busca do consenso mas jamais poderá existir consenso nessas questões, como a experiência do FNT demonstrou. É sintomático que, no mesmo dia em que promulgou as tais medidas provisórias, o governo encaminhou ao Congresso projeto de lei que legaliza as associações de trabalhadores que se reúnem para trabalhar sem carteira assinada, ou seja, as assim chamadas cooperativas de trabalho. Sem entrar no mérito do “pacote de bondades” que o governo tanto celebra com relação às políticas públicas, a verdade é que, no campo da legislação trabalhista, o governo omitiu-se de tomar qualquer iniciativa realmente inovadora. João José Sady é advogado, mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor na Universidade de São Francisco,
CARTAS DOS LEITORES HUMILHAÇÃO NO INSS Parabenizo a reportagem “O caminho da humilhação no INSS”. Um trabalho primoroso e sério, que mostra a “via crucis” de trabalhadores e trabalhadoras brasileiros para conseguir o auxílio-doença de acordo com as novas regras impostas pela Cobertura Previdenciária Estimada (Copes). Tomei a liberdade de, a partir da reportagem do jornal Brasil de Fato, apresentar requerimento na Câmara Municipal de Santos, solicitando ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a imediata revisão e discussão da Copes no sentido de acabar com o desespero e humilhação de tantos homens e mulheres, vítimas das condições de trabalho desumanas em nosso país. Parabéns à equipe e continuem no caminho de mostrar o verdadeiro Brasil, o Brasil de fato. José Antonio Marques Almeida (Jama) Engenheiro e vereador pelo PDT em Santos Por correio eletrônico TUCANO E AS TARIFAS No momento em que a nação brasileira ainda carrega o pesado fardo legado pelos oito anos do governo tucano-PFL, principalmente a aterradora e sufocante dívida (que o Lula teima em pagar), é bom que um tucano de alta
plumagem se candidate a presidente para que possamos lhe fazer cobranças. Por exemplo, quando os tucanos privatizaram a telefonia, a Telebrás era a empresa que mais acionistas tinha no mundo. Éramos cerca de 15 milhões de privilegiados e inconscientes proprietários. Hoje somos mais de 100 milhões de despossuídos e conscientemente explorados usuários, remetendo bilhões de dólares para proprietários estrangeiros. Individualmente pagamos, na modalidade de telefone fixo, quase R$ 40, usemos ou não o aparelho, e na modalidade celular, pagamos até quatro vezes mais que em países onde a telefonia é estatal. Se o tucano está disposto a corrigir as falhas do governo Lula, aconselhamos que ele mobilize as bancadas tucana-PFL no Congresso para ajudar o Lula a, já e agora, fazer como o Kirchner fez na Argentina: congelar as tarifas telefonicas, além de cancelar a cobrança da extorsiva assinatura. Se a Petrobras, retirando petróleo do fundo do mar ou importando-o por um alto preço, há três anos nos fornece gás de cozinha a preço congelado, por que as teles sanguessugas não podem fazer o mesmo? Reny Barros Moreira São Paulo (SP) EVO MORALES Grande parte da imprensa brasileira e internacional se une para demonizar Evo Morales e Hugo Chavez e fortalecer a
A ONU consagra o 5 de maio como Dia Mundial das Comunicações porque sabe que a atuação dos meios de comunicação social é decisiva para fomentar uma cultura de paz ou, ao contrário, situações que favorecem a violência. A imprensa, a rádio e a televisão tanto podem contribuir com a paz e a justiça no mundo, como legitimar discriminações socioeconômicas, raciais e de gênero. Infelizmente, no cotidiano, muitos dos meios de comunicação prestigiados de cada país estão atados a grandes grupos econômicos. Países como os Estados Unidos privatizaram não muitos, mas todos os meios de comunicação. Isso gerou uma concentração das empresas de comunicação. A Televisa mexicana criou um império. O grande grupo de mídia venezuelano, pertencente a Gustavo Cisneros, controla hoje mais de 70 empresas de comunicação. A Venevisión, principal emissora de televisão da Venezuela, entra em toda a América Latina e produz programas para a televisão espanhola. No Brasil, os grandes meios de comunicação continuam em mãos de poucas famílias que condicionam o que o povo deve pensar e sentir. Em vez de o mundo se tornar a aldeia global, multicultural e planetária proposta por Mashall Mac Luhan, a concentração das comunicações transforma o mundo em uma aldeia provinciana, à mercê dos poucos poderosos que dominam o mercado das comunicações. É o que se constata quando o grupo Cisneros encabeça uma campanha violenta e permanente contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, não por seus defeitos, mas justamente por este pretender acabar com as desigualdades sociais no país. O mesmo tipo de interesse mais econômico que político faz com que, no Brasil, erros e desvios de políticos ligados ao governo atual recebam uma condenação extremamente mais rígida do que todos os casos de corrupção e roubalheira comprovados no governo anterior. Nos grandes veículos da imprensa, muitas vezes, a informação está deformada ou mesmo envenenada, tanto ou mais do que os alimentos em uma sociedade que não hesita em usar agrotóxicos e sementes transgênicas para lucrar mais. Os meios de comunicação não agem assim por alguma doença que os impede de ver algo de bom em alguém aparentado com o que antigamente se chamava de esquerda. O problema é outro. O mundo da comunicação exige imensos investimentos e assim os meios acabam dominados por grandes grupos econômicos. Estes confundem informação com manipulação da opinião pública. Até os governos trocam comunicação por publicidade. Há décadas, os setores mais conscientes da sociedade se deram conta de que a informação é um bem comum e direito da sociedade. Mesmo se não existe uma versão totalmente objetiva e neutra de cada fato ocorrido, no mundo atual, os lados da questão não são iguais. Um incidente que envolva índios e empresários do setor de imobiliárias ou um grupo de mulheres sem-terra e os gerentes de uma multinacional não pode ser tratado como se, na sociedade em que vivemos, os dois lados do conflito tivessem o mesmo direito de informação e as mesmas condições de se defender. É claro que “todo ponto de vista é sempre vista de um ponto”, mas os direitos privados de um proprietário não podem ter o mesmo valor perante à lei que a vida e a sobrevivência de uma comunidade de milhares de pessoas. A liberdade dos meios de comunicação é essencial para a democracia. Como tal, implica responsabilidade social e o seu exercício deve, em última instância, estar sujeito ao controle da sociedade. Marcelo Barros é monge beneditino. É autor de 27 livros, entre os quais está no prelo A vida se torna aliança (Como orar ecumenicamente os Salmos), Ed. Cebi-Rede da Paz, 2005. Marcio Baraldi
s medidas provisórias editadas dia 8 devem entrar para os anais do Direito do Trabalho como um marco no rol das normas inócuas. O traço peculiar do governo anterior era a especialidade em legislar de forma sorrateira, incluindo inovações desagradáveis lá no fim de uma lei sobre outro assunto. O presidente sociólogo reeditava as medidas provisórias várias vezes e lá pelas tantas acrescentava um artigo novo para ver se a pancada passava despercebida na reedição. O atual governo pratica uma forma de ilusionismo pela qual cria a impressão de que está legislando mas não introduz nada de novo na ordem jurídica. A medida provisória 293, que anuncia o reconhecimento das centrais sindicais, não atribui a tais entidades nenhuma função de representação. Diz a norma: “Art. 1º – A central sindical, entidade de representação geral dos trabalhadores, constituída em âmbito nacional, terá as seguintes atribuições e prerrogativas: I – exercer a representação dos trabalhadores, por meio das organizações sindicais a ela filiadas”; e “II – participar de negociações em fóruns, colegiados de órgãos públicos e demais espaços de diálogo social que possuam composição tripartite, nos quais estejam em discussão assuntos de interesse geral dos trabalhadores”. Vamos atentar para o inciso I: a central exerce a representação dos trabalhadores, por meio das organizações sindicais a ela filiadas. Então, por si mesma, a central não exerce representação sindical. Continua a ser um fantasma que assombra a estrutura sindical e sua manifestação concreta em termos legais somente poderá ocorrer por meio de sindicatos, federações e confederações. A única intervenção direta no mundo jurídico que lhe é permitida está fixada no item II, quando se
estabelece que a central poderá indicar representantes para “espaços de diálogo social”. Que espaço é esse? É o tão famoso e tão inócuo Fórum Nacional do Trabalho (FNT), reinventado como Conselho Nacional de Relações de Trabalho e que terá a função de apresentar pareceres. A experiência do FNT, que levou quase dois anos para produzir um anteprojeto de reforma sindical renegado pela maioria das entidades e que o governo sequer apresentou ao Congresso Nacional, é elucidativa quanto à utilidade desse novo órgão. Ficou assim: o reconhecimento das centrais sindicais, nesse formato, possibilita apenas que essas indiquem representantes para um órgão que irá produzir pareceres. É a insistente política de tentar fritar o ovo sem quebrá-lo. A única conseqüência prática da medida provisória não está escrita: a estabilidade no emprego para os dirigentes das centrais. Os patrões já não poderão despedi-los sem prévio inquérito judicial em que se apure falta grave. As centrais são reconhecidas, sem que lhes seja permitido negociar em favor dos trabalhadores. Não é à toa que as centrais somente reclamaram de que, junto com o reconhecimento, não veio nenhum aporte financeiro. O autoproclamado governo popular caminha para seus últimos meses de mandato sem que tenha produzido qualquer inovação legal que beneficie concretamente os trabalhadores. Desde o começo, há preocupação em não bater onde dói no patronato. O pretexto para esse cuidado pro-
Kipper
João José Sady
Nova comunicação para uma humanidade
Alca. A nacionalização do gás e petróleo boliviano é usado para tentar a discórdia entre “los hermanos”: Lula, Chávez, Morales e Kirchner. Vale lembrar que os negócios feitos por Fernando Henrique Cardoso na Bolívia prejudicou os interesses bolivianos e brasileiros e favoreceu as multinacionais de petróleo que naquele momento era quem mandava no petróleo e gás da Bolívia. O gasoduto Brasil-Bolívia, o Gasbol foi para favorecer além das multinacionais as grandes empreiteiras, 3150 km de gasoduto para trazer o gás da Bolívia seria suficiente para interligar o Brasil por dutos e resolver o problema doméstico de abastecimento de gás. A Petrobrás não fala até para não prejudicar seus negócios, mas teve que comprar as termoelétricas inviáveis nos acordos de FHC, refazer os contratos do gás da Bolívia que entre outras pérolas garante pagamento mesmo sem consumo; quanto às termoelétricas, elas teriam que ser remuneradas mesmo sem produzir energia. A política de FHC no campo da energia foi um fracasso ou já esquecemos do “apagão”. Não concordo que os acordos com a Petrobrás sejam ilegais, como disse Morales. Mas são lesivos aos interesses bolivianos e brasileiros e principalmente para favorecer as multinacionais de petróleo. Emanuel Cancella Rio de Janeiro (RJ) Por correio eletrônico
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De 18 a 24 de maio de 2006
NACIONAL CAOS SOCIAL
Violência começa por ausência do Estado F
alta de políticas públicas voltadas para a área social e de uma política nacional de segurança, sistema penitenciário deficiente, más condições de trabalho e conseqüente corrupção policial, crise de valores na sociedade, irresponsabilidade do governo estadual. A lista de fatores que explicam os fatos ocorridos em todo o Estado de São Paulo, entre os dias 12 e 16, não termina aí. O saldo da onda de violência atribuída ao Primeiro Comando da Capital (PCC), divulgado pela Secretaria de Segurança Pública estadual, é aterrador: 251 ataques e 115 mortos; entre estes, 32 policiais, oito carcereiros, quatro civis e 71 suspeitos. De acordo com Ariel de Castro Alves, advogado e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), o próprio governo paulista é responsável pelo fortalecimento do PCC, ao “fomentar lideranças dentro do sistema prisional”. Segundo ele, a partir do ano 2000, na gestão do tucano Mário Covas (1995-2001), a entrada de entidades de direitos humanos nas prisões, que estabelecia o canal de interlocução entre os presos e o poder executivo, foi proibida. “Então o governo começou a fazer mediações, acordos, diálogos com lideranças”, diz Alves. O deputado estadual Renato Simões (PT-SP) identifica três fases na atuação do governo estadual em relação à facção: “De 1994 a 1999, negou sua existência, tanto publicamente, quanto do ponto de vista de atuação interna. Apenas mandaram os líderes para penitenciárias no interior do Estado, o que contribuiu para alastrar o grupo”. A segunda etapa foi de conivência, quando, para garantir a governabilidade, o governo passou a selar acordos com os criminosos. “A terceira fase é a atual, quando o PCC utiliza a chantagem e a força para intimidar o Estado”, avalia o parlamentar.
Diante do ministro da Justiça Thomaz Bastos e dos holofotes, o governador Lembo jurou que “estava tudo sob controle”
área de segurança pública, tanto na prevenção quanto no combate ao crime”, diz ele.
OUTRAS CAUSAS Na opinião do jurista Alberto Silva Franco, um das causas da violência em São Paulo é a ausência
diz. Franco cita também o sistema penitenciário, “absolutamente inadequado”. Para Alves, do MNDH, a manutenção da “calamidade” no sistema penitenciário, com a ausência de um trabalho de ressocialização dos detentos, contribui para que facções como o PCC surjam
Que a surpresa fique para os cegos Marcelo Salles do Rio de Janeiro (RJ) Os meios de comunicação corporativos aproveitam o momento para reforçar a criminalização da pobreza e exigir do poder público medidas repressivas e leis mais rigorosas. Em sua edição do dia 15, o Jornal Nacional, por exemplo, assim divulgou o número de mortos: “43 policiais e cidadãos foram mortos; 38 suspeitos pelos atentados também morreram”. Sutilmente o telejornal transforma suspeitos em não-cidadãos. Na cabeça do telespectador, porém, o efeito é contundente: quem não é cidadão não possui direitos. É exatamente o que pede Marcelo Rezende na Rede TV!: “É preciso cessar os direitos civis dos presos”. E por falar nisso, os direitos humanos foram violentamente atacados por Datena em seu Cidade Alerta. Sem qualquer sutileza, mais sincero, o apresentador da TV Bandeirantes só faltou repetir Wagner Montes, para quem o lugar de bandido é “na vala”. No final da noite, o Jornal da Globo disse, em editorial, que “é preciso exigir que os legisladores ofereçam ao Executivo instrumentos para combater o crime”. A Anistia Internacional divulgou nota aos meios de comunicação. Nela havia dois posicionamentos centrais. 1) Condenou os ataques do PCC e pediu que o Estado garantisse que os responsáveis pelos ataques fossem levados à Justiça. 2) Cobrou das autoridades brasileiras reformas profundas
no sistema prisional do Brasil. O Jornal Nacional só divulgou o primeiro ponto.
ANÁLISE
Nocaute da segurança pública
AS QUESTÕES SÃO OUTRAS Não foi à toa que o Jornal Nacional omitiu a crítica ao sistema prisional por parte da Anistia Internacional. A ONG toca num dos pontos centrais da discussão. O então governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, costumava comemorar que São Paulo, com cerca de 20% da população do país, tem a metade da população carcerária. Mas em que condições os presidiários brasileiros vivem? Do mesmo modo, Fernando Henrique Cardoso costumava se regozijar ao dizer que noventa e tantos por cento das crianças estavam nas escolas. Mas não explicava o tipo de educação que recebiam. Quando as autoridades dizem que cada preso custa R$ 700 por mês ao Estado, estão falando meia verdade. Esse dinheiro deveria ser utilizado para a manutenção do detento, mas qualquer um que conheça presidiários ou seus parentes sabe que se alguém de fora não levar comida, roupas, remédios, roupa de banho e acessórios simples como ventiladores, o cidadão dificilmente sobrevive nas condições extremamente hostis a que são submetidos. As denúncias de superlotação nas cadeias, maus-tratos e torturas não são levadas em consideração pelos donos do poder. Seus porta-vozes na mídia de massa mostram isso com perfeição. (Veja a íntegra deste artigo no portal Fazendo Média, www.fazendomedia.com)
Sérgio Andrade
TUCANAGEM Responsabilidade, portanto, das administrações tucanas, incluindo a do candidato a presidente Geraldo Alckmin, “esquecido” pela mídia na cobertura das ações de violência. “Assim como Saulo (de Castro, secretário de Segurança Pública), Alckmin assumiu uma postura covarde, deixou a bomba estourar no colo de seu comparsa Cláudio Lembo (atual governador). É uma postura eleitoreira de fugir das responsabilidades, como se não fosse o PSDB que estivesse no comando há 12 anos”, explica Simões. Relatório elaborado pela liderança do PT na Assembléia Legislativa de São Paulo, com base em levantamento do Sistema de Gerenciamento da Execução Orçamentária do governo estadual, aponta que o governo deixou de aplicar R$ 615 milhões de recursos próprios na segurança pública, de 2001 a 2005. Simões critica ainda a morte de 71 suspeitos de participar das ações: “Começam a chegar denúncias de execuções sumárias na periferia. Vamos pedir para que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados monitore as mortes desde o dia 12, com a ajuda do Instituto Médico Legal. É possível que o número de vítimas seja maior”. No entanto, para Alves, do MNDH, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva também tem responsabilidade pelos acontecimentos. “O presidente se elegeu prometendo o Sistema Único de Segurança e o Plano Nacional de Segurança Pública. Mas nada disso saiu do papel. O governo federal também tem reduzido o orçamento para a
de uma política nacional de segurança – que serviria para articular as ações entre o governo federal e os Estados – impossibilitando a centralização de informações. “Não há como fazer um trabalho de inteligência nessa matéria porque está tudo totalmente descoordenado”,
pregando justamente melhorias nas condições dos presídios. Segundo ele, “a ausência do Estado oficial acaba fazendo com que um Estado paralelo cresça e se fortaleça”. Além da ineficácia das políticas de segurança, a ausência do Estado na área social também está no cerne da violência principalmente nas grandes cidades. “Há anos não há políticas públicas voltadas principalmente para os jovens, que é o setor mais vulnerável”, alerta Alves. “Todas as verbas destinadas a atendimentos de programas sociais são, na primeira dificuldade, contingenciadas, para que se tenha o chamado superavit primário”, lembra Franco. Para a antropóloga Rita Amaral, a miséria e a desigualdade são fatores determinantes no aumento da criminalidade: “Não dá para convencer um molequinho de dez anos a não entrar no crime, se não há nada para dar em troca”. Segundo Rita, a violência também pode ser explicada por uma profunda crise de valores na sociedade, que perde a esperança nas soluções e a fé nas instituições. “Quando você começa a ver injustiça social, a lei que não funciona, a imensa desigualdade, então passa a funcionar a lei do mais forte”, diz. (Colaborou Dafne Melo, da Redação)
Eliana Rodrigues
Igor Ojeda da Redação
Eliana Rodrigues
A onda de ataques que atingiu várias cidades do país resulta do descaso do governo com as políticas sociais
O ex-governador Geraldo Alckmin (à esquerda), “esquecido” pela mídia
O comandante-geral da PM, Elizeu Eclair, admitiu “conversas” com o PCC
Arthur Conceição Não é de hoje que a segurança pública se mostra deficitária, tanto na proteção da sociedade civil quanto na guarda dos presos. Não podemos culpar somente as mazelas deixadas por aqueles que fazem segurança pública. Precisamos entender o passado da organização policial brasileira. Há muito tempo nossas forças de segurança servem a interesses particulares de grupos econômicos, que não querem mudanças profundas nas instituições policiais. Essa é a grande pergunta: como será brecada a violência por parte do Estado? A resposta nenhum estudioso tem, mas a origem do problema todos conhecem! Basta fazer um recorte histórico das organizações das polícias estaduais nas unidades da Federação. Estas estão pautadas numa doutrina que vem desde 1930, com Getúlio Vargas. Tiveram mudanças na década de 1960, com o golpe militar, tornando nossas forças policiais tecnocratas, burocratizadas e violentas. Dessa época até hoje, nunca houve um planejamento adequado e valorização dos homens que estão na linha de frente do combate à criminalidade. Falta de estrutura, salários baixos, ausência de uma política unificada para a segurança pública e um pensamento militar tecnocrático abriram lacunas para organizações criminosas dentro das próprias instituições policiais e do Judiciário. Enquanto a Justiça, co-partícipe da situação e abarrota de processos, gasta tempo e verbas com os ritos processuais, os criminosos não são punidos e a criminalidade aumenta.
O Estado passa a ser refém da criminalidade. Se os principais gestores em segurança pública, os comandantes das PMs, continuarem doutrinariamente a combater a criminalidade urbana dentro dos moldes militares, continuarão gastando tempo e dinheiro do erário público. Nas corporações militares, os deveres emanam de um conjunto de pensamentos e medidas de alienação coletiva. Gestão em segurança pública não se faz em portas fechadas de quartéis e das corregedorias de polícia. É preciso inclusão de políticas públicas que envolvam temas multidisciplinares na área da educação, saúde, habitação. O que não dá para admitir são as formas e os modos organizativos na área de segurança. Até os dias de hoje, os policiais militares são regidos pelo Regimento Disciplinar do Exército (RDE), tornando essas instituições policiais iguais às Forças Armadas brasileiras. Portanto, tornando os policiais militares indivíduos metodicamente alienados. É preciso rever urgentemente a política criminal brasileira. A sociedade não pode tratar violência com mais violência, ou fomentaremos uma guerra muito maior, nocauteando de vez a segurança pública brasileira, entregando-nos a essa barbária provocada indiretamente pelos próprios políticos. Arthur Conceição é cientista político e integrante do Laboratório de Estudo sobre Polícia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
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NACIONAL POLÍTICA URBANA
Relatório denuncia violações
Hamilton Octavio de Souza
O Fórum Centro Vivo critica atuação do poder público no centro da capital paulista
Disputa eleitoral Durante os dias em que o Estado de São Paulo viveu o caos e a violência gerados pela organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), governos estadual e federal, respectivamente PFL-PSDB e PT, disputaram críticas e acusações mútuas sobre a responsabilidade pela situação. Não que tenham demonstrado interesse real em enfrentar as causas dos problemas, mas apenas para se resguardar de eventuais desgastes nas próximas eleições. A idéia fixa de sempre! Reação conservadora A mídia burguesa destacou o poder de fogo do PCC, que teria 130 mil associados nas cadeias, 10 mil “soldados” nas ruas e arrecadação mensal de R$ 700 mil só de contribuições individuais. Nessas horas, as vozes dominantes do sistema defendem mais repressão policial e mais investimento na indústria da segurança para as classes médias, enquanto as vozes minoritárias lembram do desemprego, da falta de moradia e de investimento na inclusão social. É a escalada da truculência. Puro oportunismo Conforme o esperado, devido aos antecedentes, o PMDB mais uma vez abriu mão de candidatura própria para atender as várias posições existentes no partido, desde os governistas interessados em manter suas boquinhas com a reeleição de Lula até os oposicionistas que vão embarcar na campanha da aliança PSDB-PFL. O que une o PMDB atualmente é a perspectiva de continuar na máquina pública com qualquer bloco político. Onda entreguista De tempos em tempos, os privatistas e entreguistas, que defendem a privatização e a entrega de tudo para o capital estrangeiro, voltam ao ataque. Tiveram muito sucesso nos governos do PSDB e, agora, estão de olho na reforma universitária do governo Lula. O projeto em debate permite que o capital externo adquira até 30% da cada universidade, mas tem gente querendo essa participação liberada. Mesmo porque já existem escolas brasileiras controladas por empresas estrangeiras. Pequena diferença O governo da Venezuela acaba de liberar mais oito mil bolsas integrais para estudantes universitários matriculados em escolas privadas. A única exigência é que estejam participando dos projetos sociais do governo. Já receberam essas bolsas, este ano, mais de 13 mil universitários. É uma forma de engajar a juventude em ações relevantes para a sociedade. Esquemão digital O governo federal promete concluir, até o final deste mês, o leilão para escolha do padrão de TV Digital, um negócio que deve render milhões de dólares nos próximos anos. O ministro da Globo, Hélio Costa, defende o modelo japonês; o lobby europeu se fortaleceu com novas promessas para compensar o lucro das patentes; e tudo indica que o padrão brasileiro, tecnologia criada pelas universidades do país, foi mesmo descartado. Mais um golpe contra os interesses nacionais. Protesto consentido Grandes produtores rurais de vários Estados bloquearam estradas federais por mais de uma semana e não sofreram qualquer repressão policial; empresários de ônibus de São Paulo decidiram manter suas frotas nas garagens e deixar mais de dois milhões de pessoas sem transporte. A Justiça não determinou nada em contrário e a imprensa empresarial considerou tudo normal. É claro que o mesmo não acontece quando trabalhadores protestam ou fazem greve. Dois pesos, duas medidas! Situação negativa Setores industriais registraram em abril nova queda no nível de emprego. Depois da Volkswagen, outra montadora estrangeira, a General Motors, anunciou que vai demitir quase mil trabalhadores nos próximos dias. De seu lado, o governo federal continua obtendo taxas de superavit primário (economia dos recursos da União para pagar juros aos credores) acima da meta de 4,25% da receita orçamentária. A estagnação mantém o desemprego nas alturas.
Dafne Melo da Redação
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epressão e criminalização de movimentos sociais, paralisação de programas sociais, falta de interlocução com o poder público, ausência do Estado na execução de uma política urbana que englobe a população de baixa renda. Essas são algumas das denúncias feitas no relatório “Violação dos Direitos Humanos no Centro de São Paulo: Propostas e Reivindicações Para Políticas Públicas”, obtido com exclusividade pelo Brasil de Fato, e que será lançado em São Paulo, no dia 25. Elaborado por entidades reunidas no Fórum Centro Vivo (FCV), o documento aponta dezenas de violações a legislações vigentes, como a Constituição Federal, e os estatutos das Cidades, do Idoso e da Criança e do Adolescente. Dividido em sete capítulos, o relatório tem como foco a violação dos direitos humanos de diferentes grupos sociais historicamente excluídos, que vivem no centro da capital paulista: sem-teto, catadores de material reciclável, moradores de rua, crianças e adolescentes em situação de risco, trabalhadores do comércio informal. O relatório ainda destaca a criminalização da pobreza, dos movimentos sociais e dos defensores de direitos humanos que lutam por uma política urbana – entre eles, o FCV, criado em 2000 por universidades, organizações não governamentais, movimentos sociais, pastorais, coletivos de arte e de mídia independente, entre outros.
OBJETIVOS Francisco Comaru, pesquisador do Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais (Polis), uma das entidades que compõem o FCV, explica que a decisão de elaborar o relatório surgiu no segundo semestre de 2005: “Sentimos um refluxo, um aumento de ações mais duras”. Benedito Barbosa, da Central de Movimentos Populares (CMP), conta que desde o início da gestão de José Serra (PSDB) há uma ação com-
binada entra a subprefeitura da Sé (que atua na região central de São Paulo), a Secretaria de Habitação e a Secretaria de Assistência Social, no sentido da paralisação de programas sociais para a população do centro. “Temos feito muitas mobilizações. A partir disso, decidimos compilar esse material, não só com denúncias, mas também com proposições”, explica Barbosa. Desde o ano passado, a gestão Serra tem sido alvo de críticas em relação às ações no centro de São Paulo. Para Barbosa, não há políticas públicas, mas sim “limpeza social” e “higienização”. O problema ganhou espaço até mesmo na grande imprensa, quando foram feitas as “rampas antimendigo” em uma passagem subterrânea próxima à Avenida Paulista. A justificativa da prefeitura foi o crescimento de assaltos na área. Entretanto, mostra o relatório, a própria Polícia Militar desqualificou o argumento, desmentindo a prefeitura. Para Comaru, essa e outras medidas apontam para uma concepção de que a população de baixa renda deve ser afastada das áreas centrais – as mais bem equipadas. “O discurso do secretário de Habitação (Orlando Almeida) é de que o lugar de pobre morar não é no centro e de que é natural os mais pobres viverem em áreas mais afastadas”, diz o pesquisador. Embora o relatório busque evidenciar os retrocessos da atual gestão tucana, o documento mostra que – salvo alguns avanços nas gestões de Marta Suplicy (2000-2004) e Luiza Erundina (1989-1992) – uma política habitacional e urbana baseada na inclusão social e no acesso democrático à cidade “nunca foi prioridade em São Paulo”, segundo Comaru. O relatório será entregue a órgãos das três esferas do poder público – federal, estadual e municipal –, como o Ministério das Cidades, secretarias de Habitação do Estado e do município, além de comissões de Direitos Humanos; além do Judiciário, por meio dos ministérios públicos estadual e federal.
Luciney Martins/ BL 45Imagem
Fatos em foco
Despejo de sem-teto na ocupação Plínio Ramos, no centro de São Paulo
FALHAS E ERROS Principais denúncias do relatório feito pelo Fórum Centro Vivo (FCV) - Interrupção de programas habitacionais populares e mutirões (projetos auto-gestionários) - Interrupção de programas sociais como o Operação Trabalho (que atendia a população de baixa renda) - Não aplicação de recursos previstos para habitação em 2005; só foram utilizados 42% da verba prevista para as consideradas áreas de risco - Deslocamento de financiamentos internacionais da área de habitação para políticas de assistência social - Transferências de albergues da região central para a periferia - Pagamento (R$ 1 mil a R$ 5 mil) para sem-teto voltarem a suas cidades de origem - Falta de diálogo com orgnizações da sociedade - Ausência do poder público municipal na intermediação de conflitos fundiários, contribuindo para reintegração de posses e despejos forçados - Restrição à circulação dos catadores de lixo no centro e ameaças à autonomia das cooperativas de catadores - Criminalização e repressão violenta dos trabalhadores do comércio informal
PRIVATARIA
Cresce monopólio privado nas ferrovias Tatiana Merlino da Redação A venda, dia 9, de três concessões ferroviárias – Ferronorte e Ferroban, que compõem a Brasil Ferrovias, e Novoeste Brasil – representa o fracasso do processo de privatização de ferrovias federais e reforça o monopólio existente no sistema de transportes brasileiro, em prejuízo para a soberania da nação. A avaliação é de Roque José Ferreira, coordenador nacional da Federação Nacional Independente dos Trabalhadores Sobre Trilhos (FNITST) e integrante do Movimento Nacional Contra a Extinção da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e pela Reestatização das Ferrovias. O negócio prevê o pagamento de cerca de R$ 1,4 bilhão em ações da compradora, a operadora de logística América Latina Logística (ALL), que deverá reduzir o número de funcionários e cortar outros custos, em busca de maior eficiência para uma malha que cobre cerca de 20 mil quilômetros nos territórios do Brasil e da Argentina. “Isso significa a continuidade do processo que se iniciou com as privatizações da malha ferroviária, marcado por demissões em massa”, diz Ferreira.
INVESTIDA A privatização da Rede Ferroviária Federal teve início em 1998, du-
O MAPA DA PRIVATIZAÇÃO Rotas privatizadas, entre as principais ferrovias existentes no país. Trajetos em planejamento.
Fonte: Ministério dos Transportes, 2006
rante o governo Fernando Henrique Cardoso, e está sendo aprofundada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. “Toda a malha ferroviária foi privatizada durante a era FHC e o atual governo está tentando extingui-la. Tínhamos a expectativa de que o governo Lula tivesse mais sensibilidade para rever essas privatizações. Não fez isso, e foi ainda mais longe”, critica. De acordo com Ferreira, a primeira tentativa de acabar com as
ferrovias ocorreu no final do ano passado, com a edição das medidas provisórias (MPs) 245 e 246, que pediam a extinção da Rede: “Conseguimos derrubar as MPs depois de muita mobilização”. No entanto, em fevereiro, o governo editou a MP 283 que reestrutura o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit). “O departamento assumirá as atribuições da Rede Ferroviária, que vai acabar morrendo de inanição”, completa.
A FNITST e entidades que defendem a reestatização da malha ferroviária brasileira divulgaram um documento intitulado “Carta aos Brasileiros”, em que propõem ao governo a retomada do sistema ferroviário brasileiro e detalham “o desmonte que os consórcios fizeram em toda a Rede”. Segundo o texto, existem mais de 30 mil ações trabalhistas “provocadas pelas demissões de mais de 35 mil empregados pelas concessionárias privadas e o fechamento de 5 mil quilômetros de linhas”. Os ferroviários também alegam encontrar resistência dentro do governo Lula, que deveria decretar a caducidade dos contratos de concessão das operadoras privadas que não cumprem suas obrigações. As entidades apresentaram ao governo a proposta de fusão das empresas Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb), Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (Geipot), Engenharia, Construções e Ferrovias (Valec) e RFFSA, formando uma única empresa que teria como função administrar, operar, projetar e fiscalizar projetos e obras, pesquisar e auxiliar o governo no planejamento dos transportes. “Mas nós não fomos ouvidos”, lamenta Ferreira. (Colaborou Eduardo Sales, de São Paulo)
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NACIONAL TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
A voz indígena que incomoda Perseguido pelo Vaticano, teólogo mexicano defende projeto político com participação indígena, dentro e fora da Igreja
“A
força dos pequenos: vida para o mundo” foi o tema do V Encontro Continental de Teologia Índia, realizado em Manaus no final de abril. Cerca de 170 lideranças indígenas e religiosas de 13 países das três Américas e dois da Europa dialogaram sobre as diferentes culturas, realidades e organizações sociais. O primeiro a utilizar o termo “teologia índia”, no sentido em que esta é hoje entendida, foi o sacerdote indígena guatemalteco Tomás García, no início dos anos 70. “Teologia índia”, produzida por sacerdotes e comunidades cristãs herdeiros dos povos originários do continente, e não “teologia indígena”, produzida por outros “para os índios”. Daí em diante, o termo se difundiu por toda a América Latina, significando o esforço de colocar a fé e os ensinamentos cristãos em dia com a cultura e os valores religiosos dos povos indígenas. Um dos principais representantes dessa corrente teológica e conferencista do encontro de Manaus é o teólogo mexicano Eleazar López Hernández. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele defende que o diálogo com os movimentos sociais do continente latino-americano é uma forma de fortalecer o processo de autonomia religiosa indígena. Eleazar é considerado um dos teólogos da libertação mais respeitados por sua produção intelectual e seu apoio às mobilizações populares no México. Sacerdote indígena zapoteca, Eleazar recebeu recentemente um comunicado da Congregação da Doutrina da Fé, em que autoridades do Vaticano manifestam certa “preocupação” por seu trabalho na constituição das Igrejas indígenas autóctonas, em que o protagonismo da espiritualidade indígena é o ponto principal. A reação do Vaticano foi entendida por muitos como parte da onda de incompreensão e resistência à luta dos povos indígenas no México. País perto de mais uma eleição presidencial, mas com poucas aspirações de mudanças por meio da tradicional via política por parte de seus movimentos sociais, em especial o movimento zapatista, símbolo da resistência às políticas neoliberais. Brasil de Fato – Como o movimento indígena está inserido na conjuntura política para as eleições presidências no México? Eleazar López Hernández – É um pouco difícil analisar o assunto devido às características do México, dos partidos e da luta indígena. Durante muito tempo, a realidade indígena não aparecia na agenda dos candidatos. O partido que esteve no poder durante 70 anos incorporou algo da realidade indígena, mas sempre classificando os povos na categoria de camponeses marginalizados, não dentro das suas especificidades de indígenas, que são anteriores à nação mexicana. Esses programas indigenistas implementados pelo governo parte da idéia de integrar, de assimilar a população indígena a todo o resto da população. Mas nos últimos anos tem havido um novo cenário político. Isso porque, em 1994, se dá o levante armado dos povos indígenas que dizem: “No, Ya Basta!” Esse levante é resultado de uma longa caminhada. Pouco a pouco, os indígenas foram tomando consciência, o movimento foi adquirindo consistência. Eles foram se articulando em organizações indígenas e finalmente puderam emergir sua voz como uma voz diferente
do conjunto das vozes da sociedade mexicana. Uma sociedade que acreditava que não havia indígenas. Ou que a presença indígena era tão mínima que não era respeitada politicamente. A partir do levante de janeiro de 1994, essa voz indígena aglutinou uma solidariedade muito ampla de diversos setores que despertaram para a problemática indígena e que identificaram que, no seu interior, também viviam os indígenas. Só que renegados, rechaçados. Dessa mobilização nasceu uma nova consciência de que havia que se construir um projeto de nação com todos.
As teologias índia e afro da libertação, que estão emergindo no seio da Igreja, não são feitas para dialogar com teorias ou teses filosóficas, mas sim para dialogar com a vida BF – É essa a proposta do movimento zapatista do qual você está falando. Eleazar – Sim. Assim os zapatistas convocaram todo o restante da sociedade a sonhar e desenhar este projeto de nação, em que todos pudessem caber. No entanto, desde 1994, esse esforço de fazer com que o conjunto da sociedade mexicana e suas estruturas – governamentais e partidárias – assumissem a causa indígena, não aconteceu. De modo que, depois de 12 anos da voz indígena forte que se insurgiu através do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional), não houve muitos avanços em matéria de leis que reconheçam os povos indígenas como povos. E agora, que estamos em plena campanha eleitoral, os partidos que estão disputando praticamente não levam em conta a realidade indígena. BF – Mas qual a possibilidade de mudança? Eleazar – O partido no poder (Ação Nacional, PAN, do presidente Vicente Fox) é um partido empresarial em favor do projeto neoliberal, e os indígenas não contam para eles. O partido anterior, que ficou mais de 70 anos no poder e que perdeu para o governo atual, tão pouco tem um planejamento sério. O partido de esquerda (Revolução Democrática, PRD), que tem dado alguma atenção ao movimento indígena, colocou como uma de suas primeiras propostas que os acordos feitos entre os zapatistas e o governo mexicano – os chamados acordos de San Andrés – sejam levados ao Congresso para que sejam aprovados e, portanto, certamente sofrerá modificação. Mas os mesmos zapatistas e o subcomadante Marcos alertam a população assinalando que não podemos esperar muito de um partido de esquerda como o que está atualmente. Porque a proposta desse partido não está desenhando um novo projeto de nação onde caiba o projeto indígena. Então, não sabemos como vão se comportar as populações indígenas. Certamente, indígenas votarão nos partidos mais conservadores, outros votarão no partido de esquerda, que também defende o projeto neoliberal. Se esse quadro prevalecer, não há espaço para luta indígena.
voz tão especial, tão particular, que é a voz indígena. Porque a sociedade ocidental está acostumada a um só esquema, uma só linguagem, a uma só forma de ver as coisas. De repente, esses povos reclamam algo próprio. Esse novo fenômeno cria nas instituições eclesiásticas diversas suspeitas. Cria dificuldades de aceitação. E eu acredito que isso seja normal para uma Igreja que vem de um experiência monocultural, monoespiritual, que não tem sido tolerante nem dialoga com outras formas. E a situação de emergência que colocou os indígenas de pé exige uma compreensão especial, novos esquemas e formação adequada para acolher essa palavra. A força desse movimento levou à criação do que chamamos de igrejas autóctonas, inculturadas e protagonistas pelo mundo indígena. O temor leva alguns setores a reações e prevenções. Por isso, alguns consideram que essa abertura à diversidade da Igreja pode fracionar, fazê-la perder a unidade.
Cristiano Navarro
Cristiano Navarro de Manaus (AM)
Religiosos e lideranças indígenas celebram a resistência ao modelo neoliberal
Outros indígenas, movidos pela proposta zapatista da “Outra Campanha”, decidiram assumir o protagonismo desse processo eleitoral. A “Outra Campanha” defende que não são os governos nem os partidos que vão resolver os problemas sociais nem os problemas indígenas, mas sim a sociedade civil em conjunto. BF – Qual a força da “Outra Campanha”? Eleazar – Se a campanha alcançar o seu objetivo de criar essa verdadeira consciência na sociedade mexicana, penso que isso terá mais efeito do que gastar esforços nas eleições. Pois, a partir daí, no futuro, não iremos mais depender de uma ideologia de partido ou de uma figura pessoal, mais sim das opções que a sociedade civil tomar – opção pelos indígenas e pelos mais pobres. BF – Como a Igreja está envolvida na “Outra Campanha”? Eleazar – No México, tradicionalmente, as Igrejas estiveram impedidas por lei de participar da política. Só recentemente foi aprovada uma lei que reconhece religiosos como cidadãos. Então, a Igreja não tem tido uma posição política definida nem declarada. Como sempre fez, tem se colocado à margem, sem optar por este ou aquele partido. No entanto, os zapatistas têm encontrado muita gente consciente dentro da Igreja, não na instituição como tal, nem na Conferência dos Bispos, mas nas bases da Igreja. Há muita sintonia entre os agentes de pastoral, as comunidades eclesiais de base ou em grupos organizados que assumem as reivindicações dos zapatistas e lhe dão o apoio necessário. Por outro lado, há um certo radicalismo de que a Igreja não deve apoiar nenhum “lado”, então se manifestam contra a “Outra Campanha”. Fora isso, há também os que acreditam que devemos votar no menos pior. BF – No ano passado, no Brasil, parte do setor de pastorais sociais somou sua agenda com a dos movimentos sociais para realização de uma grande Assembléia Popular, no intuito de constituir um mutirão por um novo país. Você vê semelhanças nestes processos? Eleazar – Acredito que sim, há uma certa semelhança. Porque essas assembléias populares são
as expressões da sociedade civil que, independentemente dos partidos, assumem seu protagonismo. É quando ela passa a decidir que governo quer e como pode controlar quem está governando, com consultas e plebiscitos. No México, isso ainda não está muito desenvolvido; apenas os zapatistas estão impulsionando essas idéias.
O triunfo dos povos indígenas na Bolívia é expressão da necessidade de mudança. Mas não creio que as mudanças serão tão rápidas BF – Como a teologia índia pode ajudar a superar o neoliberalismo? Eleazar – As teologias índia e afro da libertação, enfim estas que estão emergindo no seio da Igreja, não são teologias feitas para dialogar com teorias ou teses filosóficas, mas sim para dialogar com a vida. São teologias companheiras de luta dos povos. Nesse sentido, a vida vai se marcando com a descoberta da presença de Deus no caminhar concreto desses povos oprimidos. Na luta pela vida, quando há 500 anos não havia impérios de fora, cada povo tinha sua experiência divina: caminhando para a terra sem males e buscando seus grandes ideais. Ao tomar sua teologia como espaço de resistência, aprenderam a sobreviver em situações adversas, dialogando com quem chegou, criando novas sínteses de seu mundo com o mundo que chegou. E, atualmente, com a insurreição indígena, a teologia índia está se convertendo naquela que ilumina e que vai até às verdades profundas e fundamentais, a fonte de sabedoria dos povos para a luta, para sonhar com esse mundo distinto que buscamos. BF – Como se dá o reconhecimento das expressões espirituais dos povos dentro da Igreja? Eleazar – Temos que reconhecer que, nesse processo, nem tudo está sendo compreendido pelos outros setores da Igreja e da sociedade. Para compreender, é necessário estar próximo desta
BF – Na sociedade, quais são os aliados dos povos indígenas? Eleazar – Há quem reconheça que é preciso fazer mudanças de fundo. Não só mudanças de cor e coisas externas. Mas de sonhar uma sociedade diferente. Chegamos a um ponto onde nos damos conta de que esses modelos de sociedade, principalmente, esses que se decidem de fora para dentro, sem levar em conta os interesses das populações, são nocivos à dignidade dos nossos povos, e que não é por aí que devemos pensar a política, a economia, a cultura. Teremos que desenhar outro modelo de sociedade. São os que compreendem que a voz indígena é mais uma dentro de um mar dos que querem um outro modelo de sociedade. Outros estão recrudescendo, não aceitam, por isso querem acabar com as outras vozes. Nesse contexto, é preciso ressaltar o caso do triunfo dos povos indígenas na Bolívia, que é expressão da necessidade de mudança. Mas não creio que as mudanças serão tão rápidas. Porque mesmo que um indígena chegue ao poder, não necessariamente poderá dar aporte à causa indígena. Temos que reconhecer que este é um longo caminho a ser feito pouco a pouco, para fazer com que o projeto indígena chegue ao projeto de outra sociedade. Por outro lado, há quem revista seu projeto liberal com cores indígenas, como no Equador, que em tão pouco tempo o movimento indígena teve que rechaçar o presidente, porque não respondia às causas populares. Cristiano Navarro
Quem é Um dos principais expoentes da Teologia da Libertação na América Latina, Eleazar López Hernández é sacerdote, indígena zapoteca do México e escritor. Entre suas principais obras, estão: O que é Teologia Índia?, Insurgência Teológica Índia, Pueblos indios e Iglesia: Historia de una relación difícil.
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INTERNACIONAL AFEGANISTÃO
Transnacionais saqueiam o país William Fisher de Nova York (EUA)
“O
governo dos Estados Unidos vende suas operações pelo desenvolvimento do Afeganistão como se tudo fosse um sucesso”, denuncia a jornalista afegã Fariba Nawa em um relatório para a organização não governamental Corp Watch, uma pedra no sapato das grandes companhias transnacionais. “As empresas, que contam com boas ligações políticas e realizam um trabalho semelhante no Iraque”, jogaram por terra a reconstrução afegã, mas ainda assim conseguem “bons contratos por um prazo indeterminado”, afirmou Fariba. “Essas corporações estão embolsando milhões de dólares e deixando a população cada vez mais frustrada e irritada com o resultado de seu trabalho.” Os empregados estrangeiros contratados “cobram mil dólares por dia, enquanto os afegãos recebem apenas 5 dólares por dia de trabalho”, diz a jornalista. O relatório menciona alguns exemplos: “Uma estrada que desmorona antes de ser construída. Uma escola cujo teto cai. Uma clínica com problemas no encanamento. Uma cooperativa de agricultores na qual agricultores não podem entrar. Policiais e militares afegãos que depois do treinamento não podem fornecer nem a mais básica segurança”.
: Amnisty International
Relatório denuncia a forma corrupta como as companhias dos Estados Unidos atuam no território afegão trabalho de reconstrução. Entre elas o Rendon Group, empresa de Washington que “goza de boas relações com o governo Bush”. O Departamento de Defesa concedeu a essa empresa mais de 56 milhões de dólares em contratos desde 11 de setembro de 2001, “para divulgar informação positiva sobre os Estados Unidos e seu exército no mundo em desenvolvimento”.
INSEGURANÇA
População é a principal vítima das operações corruptas das transnacionais estadunidenses que operam no Afeganistão
de milhares de milhões de dólares, e, ao quebrar, tinha uma dívida de 30 bilhões de dólares e numerosas acusações de fraude contábil. “Como no desaparecimento da Enron, no futuro do Afeganistão haverá uma classe superior que terá vivido um ‘enriquecimento meteórico’ e que terá fugido com o botim, enquanto os pobres, levados a investir grandes quantidades de dinheiro na ‘reconstrução’ em troca de prosperidade, ficarão na ruína”, segundo Grosscup. A jornalista detalhou alguns casos em seu relatório. “Na cidade de Qalai Qazi, perto de Cabul, se constrói uma nova clínica, pintada de amarelo brilhante, construída pela empresa estadunidense The Louis Berger Group”, escreveu. “Essa clínica deveria servir de modelo para a construção de outros 81 centros semelhantes para os quais a Berger já foi contratada (bem como para construir estradas, represas e escolas, entre outras obras)
PAÍS “ENROZINADO” O estudo de Fariba “confirma que o Afeganistão foi ‘enronizado’ pelo governo Bush”, disse o professor Beau Grosscup, da Universidade da Califórnia, numa referência à empresa estadunidense Enron, que quebrou em 2001 em meio a um escândalo de corrupção. A Enron não pagou impostos nos 15 anos anteriores à sua bancarrota, apesar de obter lucros anuais
em troca dos 665 milhões dólares que já recebeu de Washington”, explicou. “O problema é que essa ‘clínica-modelo’ desabou. O teto apodreceu. Os encanamentos, quando funcionavam, pingavam e vibravam. A chaminé, feita de metal fino, pode causar um incêndio no teto. Os banheiros careciam de água corrente e emanavam cheiro de esgoto”, diz o documento.
RECONSTRUÇÃO ZERO A reconstrução dirigida pelos Estados Unidos inclui milionários projetos para a erradicação de cultivos ilegais de papoula, matéria-prima do ópio, da morfina e da heroína. Para isso, contratou por quatro anos uma empresa privada por 120 milhões de dólares para capacitar agricultores em cultivos alternativos. Parte do programa se concentrava na localidade de Parwan e na obtenção de compradores dentro do país e no exterior. Os agricultores, acostumados a plantar
grãos, como feijão e lentilha, foram incentivados a produzir verduras. Mas tiveram perdas. A verdura inundou o mercado e os preços baixaram, diz o relatório. Os especialistas do programa determinaram que os agricultores – que com suas famílias representam 80% da população – precisavam de canais e sistemas de irrigação e meios para melhorar a colocação de seus produtos no mercado interno, a fim de minimizar as perdas com a colheita e restabelecer sua participação no comércio internacional. A solução da empresa contratada foi construir canais para a irrigação. Mas o relatório diz que a papoula precisa de pouquíssima água para crescer e, por isso, os agricultores acabaram usando a água dos canais para cultivar mais ópio ainda. Segundo denúncias da jornalista afegã, o governo dos Estados Unidos contratou várias firmas de relações públicas para promover uma imagem positiva de seu
Os afegãos “estão perdendo a confiança nos especialistas em desenvolvimento cujo trabalho é reconstruir e reparar seu país. O que a população vê é um punhado de companhias estrangeiras determinando as prioridades para tirarem o maior proveito e que, para o cúmulo, às vezes são o contrário do que se necessita”, ressalta o documento. Enquanto isso, “a segurança no Afeganistão continua se deteriorando, ameaçando diretamente a reconstrução. Alguns enfrentamentos são simplesmente o resultado da profunda frustração e desconfiança entre os afegãos que já não acreditam que a comunidade internacional vele por seus interesses”, revela o informe. O “deliberado uso dos senhores da guerra e das milícias na reconstrução só lhes deu maior credibilidade e poder, enfraquecendo ainda mais o governo imposto e avivando a insurgência liderada pelo movimento fundamentalista Talibã, que continua ganhando poder”, segundo a jornalista. A infra-estrutura básica do país “cai aos pedaços” e “o narcotráfico vive um auge repentino. Esses resultados deveriam ser interpretados como um importante revés para ‘guerra contra o terrorismo’. Isso é um grande sofrimento para os afegãos, que depois de décadas de guerra acreditaram que, finalmente, teriam um descanso”, conclui o informe. (IPS/Envolverde, www.envolverde.com.br)
NIGÉRIA
Caos e ira nos campos de petróleo Jean Christophe Servant de Abuja (Nigéria)
REPRESSÃO O Exército nigeriano dirige regularmente operações brutais de represália contra a população local. Em novembro de 1999, em Odi, região Ijaw, a repressão após o assassinato de 12 policiais provocou a morte de uma centena de civis. Em 2003, diante dos levantes do NDPVF, o governo lançou a operação Restore Hope (operação Restaurar Esperança) – evocando a operação homônima dos Estados Unidos na Somália que se revelou um fiasco –, deixando uma centena de vítimas na região do Port Hacourt. A fim de proteger suas jazidas, as empresas, que também recorrem a companhias de seguran-
ça privadas, não hesitam em apoiar essas intervenções. Desse modo, a Chevron Nigéria, filial da Chevron Texaco, braço estadunidense das importações do petróleo nigeriano, emprestou seu terminal petrolífero e seus helicópteros para que Abuja pudesse conduzir ataques aéreos às comunidades hostis à companhia. Além disso, as firmas não hesitam, do mesmo modo, em instrumentalizar as rivalidades locais. Assim, a Chevron fez da comunidade dos Itsekiri, rival ancestral dos Ijaw desde a época do tráfico de escravos, a principal beneficiária de seus programas de desenvolvimento.
PETRODÓLARES O Sudeste da Nigéria tornou-se o centro de um “novo triângulo co-
Brasil de Fato
Dez anos após a execução por enforcamento do escritor Ken Saro Wiwa, que se opunha à ditadura petro-militar de Sani Abacha, a população do Delta do Níger, Sudoeste da Nigéria, procura novos heróis. É o caso de El-hadj Dokubo Asari, chefe do Niger Delta People’s Volunteer Force (NDPVF, Forças Populares e Voluntárias do Delta do Níger), preso em outubro de 2005 por ter atentado contra a segurança do Estado. Os confrontos entre milícias e forças do governo causam vítimas regularmente. Além disso, o NDPVF e outros grupos que atuam na região multiplicam os ataques contra as companhias – Shell, Chevron, Agip, Total etc. – que, como todas as empresas estrangeiras na Nigéria, se beneficiam de um dos melhores retornos do investimento global. Assim, como um Estado dentro do Estado produzindo 43% do petróleo bruto nigeriano, a Shell Petroleum Development Company of Nigeria (SPDCN) perde diariamente 10% de sua produção por motivo de sabotagem. Em 18 de fevereiro de 2006, o Movimento para a Emancipação do Delta da Nigéria (MEND) seqüestrou nove funcionários estrangeiros que trabalhavam para uma subsidiária da Shell. Libertando seis de seus reféns no dia 1º de março, o MEND decidiu intensificar seus ataques anunciando, no dia 5 do mesmo mês, que
“doravante não procurará mais seqüestrar: atirará para matar”.
Enquanto as transnacionais lucram com petróleo, nigerianos sofrem com carestia
mercial”, aquele do petróleo bruto e dos petrodólares, com efeitos humanos tão desastrosos como fora antigamente, na mesma região, o tráfico de escravos. Numa região corrompida por uma economia a base de pensões, a crise política que afeta o Estado de Bayelsa é particularmente simbólica. Esse Estado não é somente o coração da região Ijaw, como também um lugar histórico de onde foram extraídos, em março de 1956, os primeiros barris de petróleo nigeriano para a companhia britânica Shell. É também o bastião das revoltas sociais e políticas do delta que poderiam perturbar as eleições presidenciais de 2007. Segundo os relatórios publicados por ocasião dos dez anos da execução de Ken Saro Wiwa, a situação no Delta do Níger “é pior que em 1995: mais violência, mais gangues e milícias melhor armadas. Mais corrupção ainda na concessão e comercialização de petróleo e gás”. Contam-se, em média, mil mortes violentas por ano em uma região transformada em uma zona obscura similar à Chechênia ou Colômbia. Existem igualmente vítimas indiretas dessa economia: no ano passado, o coquetel tóxico lançado pelas tocheiras – já declaradas ilegais pela justiça nigeriana em novembro de 2005 – provocou 5 mil casos de doenças respiratórias e mais de 120 mil casos de crises de asma na região. Para escapar à poluição que afeta a cadeia alimentar, milhões de refugiados ecológicos deixam o coração do delta para
unir-se aos guetos explosivos do Port Harcourt ou àquele mais longe de Ajegunle, em Lagos, capital econômica do país.
OS CRIMES DA SHELL Em peças publicitária destinadas a convencer a opinião pública de suas boas práticas, a SPDCN, filial nigeriana da Shell, que representa 15% da produção global da matriz, declara dedicar 60 milhões de dólares por ano a projetos de desenvolvimento. Mas para Marc Antoine de Monclos, do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), “é necessário saber ler as entrelinhas dos números, levando em conta que as companhias petrolíferas negam o acesso de seus arquivos aos pesquisadores e não respondem a questões demasiado sensíveis. Dos 60 milhões de dólares que a Shell diz ter concedido a projetos de desenvolvimento em 2002, mais de 33 milhões foram destinados à construção de estradas que serviam também para as operações de exploração. Em um outro conto-do-vigário por escrito, a Shell declara ter gasto mais de 513 milhões de dólares a favor do meio ambiente entre 1996 e 2000. Ora, a maior parte dessa soma, 282 milhões de dólares, foi na realidade destinada à canalização de tocheiras, queimando a céu aberto, inscrita no programa do grande canteiro de comercialização de gás natural da Nigéria”. (Le Monde Diplomatique, tradução: Simone Pereira Gonçalves)
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De 18 a 24 de maio de 2006
INTERNACIONAL MUNDO DE ALTERNATIVAS
Integração dos povos contra transnacionais Movimentos sociais organizam tribunal para julgar ações de corporações européias na América Latina João Alexandre Peschanski da Redação
O
cenário é conhecido dos altermundialistas. Onde há encontros oficiais de governos, há atividades alternativas paralelas. Em Viena, capital austríaca, entre os dias 10 e 13, não houve exceção à regra: a cidade foi, ao mesmo tempo, palco da Cúpula da União Européia - América Latina e Caribe, que reuniu chefes de Estado e ministros de 60 países, e do fórum Conectando Alternativas 2, do qual participaram cerca de 3 mil ativistas das mesmas regiões da reunião oficial. Os encontros de Viena fugiram do convencional: a atividade paralela teve mais visibilidade e resultados mais concretos do que o oficial. As negociações na Cúpula não avançaram. Todas as medidas neoliberais, principalmente propostas pelos governos inglês e austríaco, foram barradas pelos líderes venezuelano e boliviano, Hugo Chávez e Evo Morales. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva teve uma participação discreta. O momento mais vibrante do moroso encontro dos governantes foi a performance da ativista argentina Evangelina Cardoso, da entidade Greenpeace, que, de biquini, desfilou diante dos governantes com um cartaz de protesto contra a Comércio justo – devastação amParceria comercial baseada em diálobiental causada go, transparência e por indústrias respeito, que busca de celulose no maior equidade no comércio internacio- Uruguai. nal. Contribui para No fórum alo desenvolvimento ternativo, movisustentável, por mentos sociais meio de melhores condições de troca europeus, latinoe a garantia dos americanos e cadireitos para produribenhos criaram tores e trabalhadores marginalizados alianças entre os - em especial do povos. OrganiHemisfério Sul. zações austría-
Manifesto produzido pelo povo Mapuche contra ação criminosa da transnacional italiana Benetton em suas terras na Argentina
cas estabeleceram acordos de comércio justo com entidades equatorianas. A declaração final do encontro ressalta a convergência dos movimentos, destacando a construção de um espaço de mobilização birregional, para “resistir e denunciar as políticas neoliberais aplicadas em ambos os continentes, particularmente as políticas das empresas e de governos europeus”. Criou-se uma agenda positiva entre os povos, que foi além de protestar contra o encontro oficial, avalia Leo Gabriel, integrante do comitê organizador do Conectando Alternativas 2, em entrevista ao Brasil de Fato. “A integração entre os continentes superou os entraves burocráticos e as contradições po-
líticas da reunião oficial. Chávez e Morales, que também foram ao encontro alternativo, apoiaram as iniciativas de convênios multilaterais dos povos para os povos”, afirma. Os dois presidentes pretendem expandir a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), intercâmbio comercial entre países latino-
No encontro alternativo, os movimentos sociais organizaram
Área / Setor
Transnacional denunciada
Descrição do caso
Agronegócio
Bayer - Bayer Crop (Alemanha)
Contaminação de produção agrícola de camponeses de Tauccamarca (Peru) com o veneno Folidol, que a empresa produz, e outras substâncias químicas. Em virtude de intoxicações com esses produtos, 24 crianças da região morreram em 1999.
Vion Food (Holanda)
Um dos maiores vendedores de produtos suínos, depende da soja brasileira para alimentar os animais. Estimula, assim, com o desmatamento da Amazônia, a expulsão de camponeses e a contaminação de plantações com pesticidas.
British American Tobacco (Inglaterra)
A Souza Cruz, líder do mercado de cigarros brasileiro, é subsidiária da corporação inglesa. O modelo produtivo adotado pela empresa viola os direitos dos trabalhadores, forçados a viver em um regime próximo à servidão.
Suez (França)
Com o aval de governos neoliberais, a corporação monopolizou o serviço de água em Córdoba (Argentina), Maldonado (Uruguai) e Amazonas (Brasil). Sem prestar contas à sociedade, aumentou as tarifas em até 700%, excluindo a população pobre do acesso à água.
Águas de Barcelona (Espanha)
A empresa, responsável pela distribuição de água em Hermosillo (México), abusou de seu poder e, desafiando ordens do governo e mobilizações populares, aumentou as tarifas do recurso. Em 2004, o lucro da corporação alcançou níveis recordes: 6 milhões de dólares.
Água
Celulose
As empresas são responsáveis pelo desmatamento de centeAndritz AG (Áustria), ENCE (Espanha), BOTNIA (Finlândia), nas de milhares de hectares de florestas nativas, usadas para a extração de madeira. A monocultura causou a devastação Aracruz Celulose (Noruega) de áreas na Argentina, Brasil e Uruguai. O impacto ambiental é tão grave que causou a desertificação de regiões.
Eletricidade
Union Fenosa (Espanha)
Com sucursais na Colômbia, Costa Rica, Guatemala, México, Nicarágua e Panamá, a corporação tem aumentado sua força com ações ilegais: desconectar casas da rede elétrica sem aviso prévio e violar direitos trabalhistas internacionais.
Hidrocarbonetos
British Petroleum (Inglaterra)
Gigante mundial do petróleo, a companhia treinou e armou militares da Colômbia para reprimir ações guerrilheiras contra suas instalações no país. Os soldados violam os direitos humanos de trabalhadores da empresa e impõem o terror na população local.
Repsol - YPF (Espanha)
A empresa, a 97ª mais rica do mundo, usa qualquer método para aumentar seus lucros: a exploração ilegal em territórios indígenas no Equador, o financiamento de grupos paramilitares na Colômbia, a devastação ambiental de Llancanelo, na Argentina, a prática de corrupção para forçar o governo boliviano a privatizar fontes de gás.
Mineração
Monterrico Metals (Inglaterra)
Contaminação das fontes do rio Quiroz, no Peru, do qual dependem para viver camponeses e indígenas. A empresa atacou organizações e entidades que denunciam o crime ambiental.
Pesca
CALVO (Espanha)
Violações de direitos dos trabalhadores em El Salvador, que são submetidos a reduções de salário arbitrárias e más condições de segurança no emprego.
Prod. de Limpeza
Unilever (Inglaterra-Holanda)
A empresa IGL Industrial, braço brasileiro da transnacional, adota práticas anti-sindicais, montando uma organização paralela ao sindicato na empresa. Os operários recebem bônus se decidem desfiliar-se da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Terra
Benetton (Itália)
A corporação, que divulga uma imagem de progressista, ocupa, ilegalmente, áreas indígenas na Argentina. Além disso, incentiva o governo a reprimir as mobilizações dos Mapuche, proprietários das terras.
Arquivo Via Campesina
Na Áustria, a ex-primeira-dama francesa Danielle Mitterand (esquerda) se solidariza com os protestos de camponesas contra a empresa Aracruz Celulose, em encontro com João Pedro Stedile e Patrícia Martins, da Via Campesina
TRIBUNAL
EMPRESAS EUROPÉIAS NO BANCO DOS RÉUS
Aracruz sob investigação A Aracruz Celulose é uma das empresas sob investigação no Tribunal Permanente dos Povos (TPP) sobre as transnacionais européias que atuam na América Latina. No encontro Conectando Alternativas 2, realizado em Viena (Áustria) entre os dias 10 e 13, a corporação foi alvo de denúncias por parte de entidades brasileiras, como a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Rede de Integração dos Povos (Rebrip), Terra e Direitos e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As organizações acusam a transnacional de promover a devastação de terras em diversos Estados, principalmente Bahia, Espírito Santo e Rio Grande do Sul. Para produzir celulose, a Aracruz estabelece monoculturas de eucalipto, pois levam ao desaparecimento de fauna e flora locais. O TPP recolheu as denúncias e vai investigar a ação da empresa. Uma nova sessão do Tribunal deve ocorrer no Brasil, em 2007, onde devem ser recolhidos outros documentos e depoimentos. O veredito definitivo está previsto para ser divulgado em março de 2008, quando presidentes latino-americanos e europeus irão se reunir em Lima, no Peru. Em nota divulgada em sua página na internet, a Aracruz se defende das acusações: “Gostaríamos de reiterar o nosso compromisso com a responsabilidade corporativa e com o desenvolvimento sustentável. Estamos interessados em ouvir os nossos legítimos públicos de interesse e sermos analisados por eles”. (JAP)
americanos, firmado por Cuba e Venezuela. O acordo movimentou 2 bilhões de dólares em 2005, de acordo com a assessoria de imprensa venezuelana.
o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) sobre as transnacionais européias que atuam na América Latina (veja quadro ao lado). Foram apresentadas denúncias contra dezenas de empresas, várias delas instaladas no Brasil. “A União Européia pressiona para negociar acordos de livre comércio com a América Latina. A realização do TPP foi importante para mostrar as calamidades que suas transnacionais, que divulgam uma imagem de justas e corretas em comparação com as estadunidenses, fazem nos países pobres”, comenta Oscar Reyes, um dos responsáveis pela organização do Tribunal, em entrevista ao Brasil de Fato. Os julgamentos que ocorrem no TPP não são oficiais nem têm valor legal, apesar de reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, diz Reyes, tem grande valor simbólico. A idéia dos tribunais populares é do filósofo inglês Bertrand Russell, que, em 1966, montou um julgamento dos crimes dos soldados estadunidenses contra a população do Vietnã, país que invadiram de 1964 a 1975. As conclusões do TPP de Viena só devem sair após mais investigações sobre as ações das empresas, que devem ser concluídas até 2008. (Leia a declaração final do Conectando Alternativas 2 em www.alternativas.at )
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CULTURA
De 18 a 24 de maio de 2006
TEATRO
Mostra reúne arte da América Latina Fotos: Lis Oliveira
Grupos trocaram experiências e debateram políticas de integração cultural entre os povos
O grupo Bando de Teatro Olodum, da Bahia, apresenta o Cabaré da Raça. Ao lado, os mineiros do do Teatro Kabana, mostram o espetáculo de rua Êh Boi!
Cristiane Gomes de São Paulo (SP)
E
xpressões como integração, trabalho em rede e troca de experiências aparecem mais do que nunca nos diálogos entre os países da América Latina. Mas essas propostas não se restringem apenas às questões políticas e econômicas. A intensa – embora um tanto desconhecida dos brasileiros – produção cultural latino-americana também deve transcender as fronteiras dos países da região. Entre os dias 9 e 14, foi a vez do teatro, com a Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, realizada na cidade de São Paulo. Além dos espetáculos das companhias, houve debates e apresentações dos grupos. O invisível bloqueio cultural, em grande parte criado pelos regimes autoritários que dominaram a América Latina, impediram que o Brasil conhecesse as experiências latinas. Nessa mostra, os brasileiros puderam conhecer trabalhos como os do Teatro Experimental de Cali (TEC), da Colômbia; do Coletivo La Patogallina, do Chile; do La
Hormiga Circular, da Argentina; e do Teatro Altosf, da Venezuela. O Brasil foi representado na Mostra por grupos como o Bando de Teatro Olodum, da Bahia; o Grupo Imbuaça, do Sergipe; o Tucan, de Brasília; o Grupo dos Cinco, do Rio Grande do Sul; o Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte; e o Grupo de Teatro Kabana de Belo Horizonte. A mostra foi organizada pela Cooperativa Paulista de Teatro, que realizou eventos similares, em âmbito nacional, nos anos de 1997 e 1999. “O diferencial desse projeto é a possibilidade do encontro artístico e da troca de experiências estéticas, como conseqüência das iniciativas que debatem as políticas para o setor”, afirmou Ney Piacentini, presidente da cooperativa.
DESCONHECIMENTO Durante o debate sobre a história do teatro latino-americano, que marcou a abertura da mostra, a pesquisadora Iná Camargo Costa disse que os brasileiros têm muito a aprender com as experiências latinas e que os grupos do país
desconhecem a intensa produção teatral latina. Para ela, esse lapso tem origens históricas – enquanto a maior parte dos países da região se tornaram repúblicas independendes na metade do século 19, o Brasil permaneceu sob o regime monárquico. “As classes dominantes sempre olharam as ‘republiquetas’ sul-americanas com uma postura de superioridade que caracteriza os aristocratas”, diz Iná. Entretanto, mesmo sem o contato com os grupos latinos, o Brasil teve experiências similares às que ocorriam na América Latina, cuja marca era a aproximação com os temas nacionais e também com os movimentos sociais que desenvolviam lutas políticas. Esse foi o caso do Teatro Escambray, de Cuba, e das experiências teatrais desenvolvidas pelas brigadas de alfabetização durante a Revolução Sandinista na Nicarágua. “No Brasil, temos que analisar as experiências dos Centros Populares de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE), social e culturalmente. Eles, mesmo sem contato com o trabalho desenvolvido na mesma
época por grupos latino-americanos, fizeram algo muito parecido”, afirmou César Vieira, diretor do grupo Teatro União Olho Vivo, de São Paulo, que este ano completa 40 anos de atividades. A necessidade de políticas públicas para a cultura e de formação de uma rede que integrasse os grupos teatrais da América Latina foi discutida durante os debates da mostra. “Existe uma grande dificuldade na integração cultural. Governos e empresas têm interesses imediatos e econômicos. Mas a verdadeira integração só vai se dar se acontecer pelo viés da cultura e não do mercado”, defendeu Nitis Jacon, organizadora da Rede Cultural do Mercosul. Tiche Viana, integrante do grupo Barracão Teatro, de Campinas, falou sobre a Rede Moinho, uma iniciativa de grupos de teatro de todo o Brasil que têm mais força na reivindicação de políticas públicas para a cultura, em especial ao teatro. Ela conta que a Rede Moinho tem como objetivo principal fazer a cultura ser reconhecida como uma questão de Estado, dispondo de
verbas definitivas para as áreas culturais. “Somente o trabalho em rede propicia o nascimento de uma cultura política”, argumentou Tiche. A questão da língua não foi impedimento para o público apreciar, em português e em espanhol, os espetáculos teatrais das companhias. A mostra comprovou que a produção cultural desses povos deve ser conhecida e divulgada, integrando a América do Sul em um projeto que vem desde a década de 1970, mas que foi interrompido pelos regimes autoritários. “Além da troca de trabalho, estética e de linguagem teatral, resgatamos nossa velha idéia de retomar os vínculos para manter viva essa nossa proposta de integração. Por isso, uma atividade como esta é fundamental, porque do outro lado só encontramos cultura de consumo, oficial, que deixa a sociedade imóvel. A tentativa de unir o teatro latino-americano é um sonho antigo e quando ele se renova é sempre um presente para todos e todas”, afirmou Hugo Villavicenzio, diretor teatral peruano radicado em São Paulo. (Colaborou Douglas Estevam)
ENTREVISTA
Há 50 anos difundindo a história latino-americana Muita gente não sabe, mas as experiências teatrais desenvolvidas na América Latina são duradouras. As que acabaram foram, em grande parte dos casos, atropeladas pelas ditaduras militares que assolaram os países da região nas décadas de 1970 e 1980. Uma experiência de sucessos é o Teatro Experimental de Cali (TEC), criado pelo colombiano Enrique Buenaventura, falecido em 2003. O grupo desenvolve, há mais de 50 anos, um trabalho teatral que retoma as tradições culturais da Colômbia. Buenaventura é considerado um dos maiores nomes do teatro da América Latina e um dos responsáveis pela disseminação do método de criação coletiva em todos os países da região. O TEC, que tem em seu repertório mais de 30 obras, esteve em São Paulo para participar da Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo. Foi o último grupo a se apresentar, com o espetáculo Crônica, que fala sobre a chegada dos colonizadores espanhóis em Yucatán, no México, território dos povos maias. Integrante do grupo, Jaqueline Vidal fala das atividades do TEC. Brasil de Fato – Conte como nasceu o Teatro Experimental de Cali.
Jaqueline Vidal – Quando Enrique Buenaventura era ainda muito jovem, saiu em viagem por toda a América Latina, passando por Caribe, Brasil, Argentina e Chile. Quando voltou a Cali, em 1955, começou a formar gente para desenvolver o teatro que desde o principio era o sonho dele: um trabalho que tivesse a ver com o teatro popular da Colômbia e da América Latina, para retomar as tradições do país com uma visão crítica. Seu objetivo era chegar a uma dramaturgia nacional com obras e histórias sobre o pensamento latino-americano. O ideal de Buenaventura era (e continua sendo) um teatro que, ao mesmo tempo que falasse do aqui e do agora, pudesse também falar do passado para projetar um possível futuro de liberdade para a América Latina e todos os outros países que foram colonizados. Essa era a inspiração do movimento de liberação do chamado Terceiro Mundo. BF – Por que a opção de trabalhar com o método de criação coletiva? Jaqueline – A criação coletiva,
para nós, é uma questão artística. Pensamos que o teatro é e sempre será uma criação coletiva. Até mesmo um monólogo é assim, porque é da natureza do teatro. Acreditamos que a criação coletiva é uma disciplina, uma militância artística e teatral que tem conseqüências políticas. Esse método coletivo de criação inclui todos os elementos para o fazer teatral, mas não elimina a especificidade de atores, músicos, autores, diretores e público. Porque a relação com o público também está envolvida nesse processo. Por isso nós, depois de cada apresentação, realizamos um debate com quem está assistindo. Para nós, a criação coletiva é uma forma de envolver todo o fenômeno da representação teatral. Cada integrante do grupo também é criador. Por isso usamos a improvisação, que tem a ver com o discurso teatral, não de conceitos ou de informação, mas de cunho artístico, que se relaciona com a figura política. Por isso nós fazemos esse tipo de improvisação. Partimos da idéia de que a matéria elementar para o teatro é o conflito. O teatro apenas acontece quando há duas forças que se encontram.
BF – Nos anos de 1960 e de 1970, os grupos de teatro latino-americanos se aproximaram dos movimentos sociais, principalmente os de luta pela terra. Jaqueline – Desde o seu nascimento, o movimento teatral independente latino-americano esteve ligado à luta pela libertação dos povos que, depois de colonizados, passaram a viver sob a dominação imperialista. Essa realidade sempre orientou nosso trabalho. Nós sempre pensamos que o compromisso político de cada um é uma questão individual dos atores, mas a responsabilidade do coletivo é com a arte, com o teatro que desenvolvemos. Evidentemente, sobretudo nos anos de 1960, de 1970 e parte dos anos de 1980, esse trabalho esteve atrelado ao desenvolvimento da luta política das famílias camponesas e dos operários nas cidades. Entretanto, na segunda metade da década de 1980, a Colômbia passou por um processo de repressão fortíssimo, jovens foram massacrados, assassinados. Essa criminalização teve como resultado o isolamento, tanto dos grupos
de teatro, entre eles mesmos, como das organizações populares, que foram muito atingidas e reprimidas. BF – Essa época que você cita marca também o desenvolvimento das políticas neoliberais nos países da América Latina. Hoje, apesar da conjuntura difícil em alguns países, os movimentos sociais estão se rearticulando. Como você vê esta situação? Jaqueline – Acredito que hoje está surgindo um novo pensamento entre os jovens, mas é um pensamento diferente. Não se trata de repetir o que se praticou no passado, mas sim de criar um movimento de comprometimento individual, que tem a ver menos com discursos, e mais com a vida na prática, com a ação. Outro ponto que está mudando é o conceito de massas. Hoje, o pensamento é saber que cada coletividade, pessoa e atividade tem um movimento próprio, que visa encontrar um pensamento comum que não seja imposto. Acredito que isso está mais claro no pensamento dos jovens de hoje. (CG)